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Copyright © 2022 Rubanne Damas

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ou mecânico sem a permissão por escrito do Autor.

Título
Na mira do inimigo

Subtítulo
Esquadrão de Homicídios, #3

Revisão
Valéria Nascimento

Capa e Diagramação
Rubanne Damas

Imagem da capa
Freepik.com / Dafont.com.br

D161
1. ed.

Damas, Rubanne, 1993


Na Mira do Inimigo / Rubanne Damas – 1. ed. – Paraná, 2022

1. Literatura brasileira 2. LGBT.


O maior inimigo do homem é o próprio homem.
- Robert Burton
Sumário
**ATENÇÃO**
Este livro contém cenas inadequadas para menores de 18
anos. Contém sexo explícito, violência, abuso físico e psicológico.
Pode ter gatilhos. É abordado temas como transtorno psicótico e
síndrome de culpa.
5 anos atrás.

Era final de verão e Aidan sentia que estava cozinhando


debaixo do terno. Puxando a gola de sua camisa preta e a gravata,
tentou manter o rosto impassível. Em Quebec não parecia fazer
calor como em Toronto. E apenas lembrar o que o fez sair de sua
cidade apenas o fez endurecer um pouco mais.
Mesmo que já tivesse estudado por um tempo na faculdade de
Toronto, Aidan nunca se acostumava com o calor infernal. Ou com o
barulho da cidade, o movimento constante. Ele gostava mais das
coisas calmas. Rolando os ombros, entrou na sede da TPS[1] e
procurou ao redor alguém que pudesse dar uma informação. Os
policiais passavam de um lado ao outro, presos em suas próprias
conversas e afazeres para perceber o homem vestido de preto.
Encontrando a recepção, Aidan se informou onde conseguia
protocolar o pedido de credencial para detetive particular. Já tinha
um primeiro caso para resolver e precisava daquele crachá para
atuar. Precisava ter sucesso se queria ter o que comer e onde
dormir. Não poderia viver de favores de sua amiga o resto da vida,
certo? Estava cansado de depender das pessoas.
Se afastando do balcão, procurou por um pouco de café. Seu
veneno, como Tiffany costumava dizer.
“Você é um viciado em cafeína, Snowbird.”
Aidan se declarava culpado. Sorrindo na borda do copo de
isopor descartável, quase engasgou quando dois homens entraram
rindo alto, fazendo tanto barulho quanto uma manada de elefantes.
O loiro segurava pelo pescoço o de cabelos castanhos em uma
chave de braço, os nós dos dedos coçando o couro cabeludo do
outro.
— Tire suas mãos de mim, Julian!
— Você é uma criança, Dam.
Aidan os observou caminhar entre os policiais e alguns
detetives. Eles batiam nas costas de Evans, nome que Aidan ouviu
ser chamado uma e outra vez enquanto havia troca de mãos e
apertos.
Suspirando, jogou o copo vazio na lixeira e tornou a se
aproximar do balcão. Enfiando as mãos nos bolsos, observou a
recepcionista folhear alguns papéis e resmungar com o colega ao
encaixar a foto de Aidan no topo de uma ficha antes dele ser
surpreendido quando um ombro bateu no centro de suas costas, o
empurrando sobre o balcão e apertando seu estômago na madeira.
Seu cotovelo bateu contra o balcão, um choque de dor subindo
para seu ombro recém-cicatrizado e o fazendo ranger os dentes.
Mãos firmes pegaram seus braços e o puxou de volta. Aidan cerrou
os olhos, virando bruscamente para a pessoa que ainda o segurava.
— O que pensa que está fazendo?
O homem piscou, franzindo as sobrancelhas e o soltando.
— Desculpe. Minha culpa. Sou um completo desastrado.
— Com dois pés esquerdos. — O loiro, Julian, riu ao cutucar o
outro com o cotovelo. — Perdoe meu parceiro, cara grande. Ele está
feliz demais com a promoção e não consegue parar de abanar o
rabo.
— Não é bem assim — disse em um resmungo.
Olhos verdes com toques de ouro se fixaram aos de Aidan,
receosos e curiosos. Aidan passou a mão na frente da camisa,
alisando rugas imaginárias em um ato nervoso que só quem o
conhecia muito bem poderia perceber. Puxando as mangas, desviou
os olhos pela sala, que estava cochichando sobre eles, e então para
o cara, Evans, ainda olhando em expectativa para ele.
Pelo que, exatamente? Aidan não tinha ideia.
Pigarreando, murmurou:
— Não se preocupe com isso. Acidentes acontecem.
Então, Evans sorriu. E isso tirou o fôlego de Aidan por alguns
segundos, fazendo-o esquecer como fazia para respirar. A mão
estendeu, o sorriso largo fazendo Aidan piscar como um idiota.
— Sou o novo Inspetor Detetive Damien Evans. Da
Homicídios.
— Detetive Particular Aidan Callaghan — respondeu,
aceitando a mão.
A luva de couro rangeu com o toque. Julian soltou um assobio
quando eles se separaram.
— Você não é o Corvo?
Aquilo fez a espinha de Aidan retesar. Espinhoso, lançou um
olhar cáustico para o homem.
— Isso não é da sua conta. Com licença.
Pegando o papel de cima do balcão e lançando um último
olhar para a recepcionista, Aidan se virou e caminhou para longe,
mas não distante o suficiente para perder a última conversa.
— Que filho da puta grosso.
— Mas é bonito. Muito bonito.
— Tsc, você sempre gostou dos mais difíceis, Dam.
Os murmúrios se tornaram conversas altas novamente,
abafando qualquer outras palavras discerníveis dos dois. Aidan
desceu os degraus com passos apressados, sem perceber que
estava sorrindo de lado e que o Inspetor Evans ficaria sob sua pele
por um longo, longo tempo.
Havia um tique nervoso no olho esquerdo de Damien, e ele
tinha quase certeza de que a causa disso era sua mãe. Annelise era
como uma força da natureza medindo um metro e cinquenta e três
centímetros. Era como um tsunami gigante dentro de um copo, mas
se você bebesse errado, poderia engasgar. Damien não sabia como
seu pai aguentava. E, olhando para o homem parado no pé da
cama, Damien entendeu o porquê. Gordon Evans a amava. Com a
energia caótica e tudo mais.
Unindo isso a todas aquelas flores e balões dentro do quarto,
Damien estava prestes a estourar.
— Essas bromélias são maravilhosas! Oh, estas rosas são tão
vermelhas! — Annelise cheirou o arranjo e olhou ao redor do quarto.
— Aonde posso colocá-las? Perto da janela?
— No lixo, depois de terem sido queimadas — Damien
resmungou.
Apenas se lembrar do cheiro enjoativo fazia com que ele
estremecesse. Samael havia deixado sua marca e Damien odiava o
filho da puta ainda mais. Queria ter o poder de reviver o homem
apenas para o matar com as próprias mãos. Sua falta de sono nos
últimos dias era tudo culpa do lunático que achava ser o braço
direito de Deus. Damien fechava os olhos e os pesadelos
começavam, fazendo-o acordar suando no meio da noite.
Como Aidan conseguiu sobreviver anos assim? Damien mal
passava uma semana e não suportava mais. Talvez visitar a Dra.
Goodwin seria uma boa solução.
— Credo, Squirt, você é tão mal-humorado e estraga prazer.
Se você fosse verde diria que é o Grinch.
— Não fique surpresa então se eu roubar os presentes de
Natal esse ano — Damien falou com um sorriso levemente tenso.
Every mostrou a língua enquanto seu pai resmungava sobre as
crianças nunca terem crescido. Annelise, ignorando todos, colocou o
arranjo perto da janela e se aproximou da cama mais uma vez.
— Você vai precisar de uma cadeira, meu doce?
Damien piscou, arqueando as sobrancelhas para o rosto
preocupado de sua mãe.
— Cadeira?
— Para o banho.
Every estava sentada na poltrona ao lado, suas pernas
encolhidas abaixo do corpo enquanto roía a unha do polegar.
Damien não perdeu o sorriso que ela tentava esconder.
— Mãe... — Damien suspirou, esfregando a bochecha e a
barba pinicando sua palma. — Eu consigo andar.
— Mas e se você cair? Pode quebrar mais duas costelas. —
Annelise terminou de dobrar pela quarta vez a coberta nos pés de
Damien, apenas para desdobrá-la e começar tudo outra vez. — Se
você estiver sentado, não corre perigo.
— Querida, Damien já tem trinta e dois anos. Acho que ele
sabe se pode cair ou não no chuveiro.
Annelise bufou, batendo a coberta sobre as pernas de Damien.
— Bem, ele também sabia muito bem o que acontecia ao
trabalhar como detetive. Veja só aonde isso o levou. — Ela balançou
a mão na direção de Damien, apontando um fato.
Ele rolou os olhos enquanto seu pai exalava e cruzava os
braços.
— Querida, você está exagerando.
— Sim, e dobrando a coberta pela décima vez, mãe. — Every
apontou do seu lugar.
— Hospitais me deixam nervosa. — Empurrando a coberta de
lado, Annelise sentou na ponta da cama e sorriu. Droga, Damien
conhecia aquele sorriso. — Sabe, meu doce, se você fosse casado,
isso não teria acontecido.
Porra, isso nunca ia acabar.
— Desculpe, mãe, mas não sabia que um papel de registro
civil me deixava blindado. — Damien riu e gemeu em seguida ao
sentir falta de ar. — Droga, isso dói.
— Isso que você ganha por ser uma criança. — Annelise
soprou a franja dos olhos.
Damien suspirou, recostando na cama e reprimindo a careta
de dor com as feridas cicatrizando e um pouco doloridas ainda.
Algumas coçavam e Damien odiava por não conseguir alcançá-las.
— Por que a senhora não me esclarece como isso poderia
acontecer, então? — Damien perguntou, gesticulando com as mãos.
— Essa é uma explicação que quero ouvir. — Every riu, se
ajeitando na poltrona.
— Eu também. Afinal, estou casado com você há quase
quarenta anos e já tive todo tipo de acidente doméstico — Gordon
falou, apoiando as mãos na grade da cama. — Muitos sendo
causados por você, querida.
— Meu Jesus, como vocês são terríveis! Estou apenas
dizendo que se Damien tivesse alguém em casa para voltar teria
mais cuidado. Coisa que ele não tem!
— Mas eu tenho Chips.
— Chips não conta, Damien! Ele é um cão!
— Que possui sentimentos. — Damien sorriu e então franziu
as sobrancelhas. — Isso me lembra... Como ele está?
— Muito bem. Seu parceiro está cuidando dele ainda.
Parceiro.
Era engraçado como os dias passavam, mas a lança quente
que trespassava seu peito ainda ardia. E a forma como ficou difícil
respirar não era por causa das costelas cicatrizando. Damien nunca
poderia imaginar que a dor sentimental poderia ser pior que a dor
física. Remédios ajudavam quando você tinha dor de cabeça, ou
uma inflamação no dedinho do pé. Porém, como fazia quando sentia
sua alma se despedaçando? Porque Damien sentiu exatamente isso
quando Aidan saiu do quarto sem deixar uma única palavra para
trás.
Era assim tão fácil?
Depois de um tempo pensando sozinho, chegou à conclusão
de que não seria tão simples assim Aidan se livrar dele. Com ego
ferido ou não, Damien teria aquele Corvo teimoso de volta. Com
passado sujo e quebrado. Foda-se. Saindo daquele hospital, estava
rebocando a bunda de Aidan com ele para casa e teriam uma longa
conversa.
— Parceiro? — A voz de Annelise chamou a atenção de
Damien de volta. — Ah! Você está dizendo aquele rapaz alto, bonito
e tão sério?
— Aidan Callaghan. Ele mesmo — Every disse satisfeita.
— Tão atencioso. Ele não saiu do seu lado até ter certeza de
que estava acordado. E vem todos os dias para saber como você
está. Não é adorável? — Annelise sorriu, ajeitando o travesseiro
abaixo das pernas de Damien e o fazendo resmungar.
Aidan vinha para o hospital? Realmente? Então, por que ele
não entrava no quarto e perguntava a Damien como ele estava se
sentindo? Corvo covarde. Andando ao redor, sondando, mas nunca
se mostrando.
— Ele está solteiro? — Annelise perguntou em um rompante.
— Mãe! — Damien rosnou, cobrindo os olhos com o braço
enquanto Every ria.
— O quê? É apenas uma pergunta. — Encolheu os ombros. —
Aidan parece ser gentil, calmo e educado. São excelentes
qualidades para ser candidato a genro.
Seria, se o homem não estivesse fugindo de Damien como o
Diabo foge da Cruz.
Damien bufou, tirando o braço do rosto e olhando sério para a
mãe.
— Apenas não. Aidan e eu... É um assunto delicado. —
Damien ergueu a mão quando sua mãe abriu a boca. — E não
quero falar sobre isso agora. Talvez em um futuro próximo.
— Bem, isso já é alguma coisa — Annelise disse, assentindo.
— Resolva isso o quanto antes. As festas de final de ano estão
chegando e preciso saber se tenho de fazer outro agasalho
temático. — Annelise virou para Every. — Qual o tamanho de
Aidan? Um metro e noventa? Acha que ele usa XXL?
— Pelo amor de Deus, mãe! — Damien ofegou, colocando a
mão sobre as costelas e olhou suplicante para Gordon. — Pai, por
favor, me ajude.
— Desculpe, mas desta vez concordo com a sua mãe. —
Gordon sorriu, balançando a cabeça.
Damien bufou.
— O senhor apenas não quer dormir no sofá essa noite.
— Você já dormiu lá. Sabe como deixa as costas de um
homem doloridas na manhã seguinte.
Isso era verdade. O sofá dos seus pais precisava ser trocado
com urgência. Empurrando esses pensamentos para o lado, olhou
para a irmã sentada confortável na poltrona e apontou um dedo
acusador para ela.
— Por que a senhora não está arrumando um marido para
Every? Daqui a pouco ela passa da idade de ter filhos e te dar
netos. — Damien se encolheu quando Every atirou um ursinho de
pelúcia contra ele, seu rosto torcendo em uma careta com a dor. —
Ai! Você não pode maltratar um enfermo!
Estremecendo, olhou para o rosto sisudo de sua mãe. Ela e
Aidan se dariam bem com essas expressões.
— Every é um tema para depois. Você é o mais velho, precisa
se casar primeiro. — Annelise franziu as sobrancelhas. — Quanto
aos netos... Existem muitas casas de adoção com crianças
esperando um lar. Isso vale para você também, Damien.
— Eu não sei se quero ter filhos — respondeu, fazendo uma
careta.
Entretanto, sua mente desenhou Aidan no parque, carregando
um pequeno garoto sobre os ombros. Eles sorriam, a gargalhada
infantil se misturando com a mais grossa do Corvo, as linhas do
rosto sempre sisudo mais leves. Engolindo em seco, desviou os
olhos para o lençol abaixo de sua mão ao mesmo tempo em que a
porta se abria.
Erguendo o rosto, viu Ava parada no vão parecendo incerta se
deveria entrar. Annelise ficou de pé, abrindo os braços e fazendo
toda a dúvida de Ava se evaporar.
— Ava! Meu Deus, há quanto tempo não te vejo! — Annelise a
puxou para um abraço apertado e Damien sorriu ao ver sua amiga
retribuindo antes de ser afastada e analisada pelos olhos sérios da
mulher mais velha. — Por que demorou tanto? Damien está quase
tendo alta.
— Muito trabalho na TPS, Anne. Sinto muito. — Ava sorriu,
seus dedos apertando o ombro da mãe de Damien. — E as crianças
não me deixam sair de casa depois que entro.
— Entendo muito bem disso. — Annelise piscou, apontando a
poltrona que Every tinha acabado de desocupar. — Por que não
senta? Nós vamos dar uma volta e deixar vocês dois conversarem.
Damien observou sua mãe acenar e puxar Gordon e Every
com ela para fora do quarto. A tensão se instalou por toda a coluna
de Damien, fazendo-o sentar reto na cama e tentando ignorar a dor
nas costelas e a falta de ar. Ava passeou ao redor, olhando os
cartões e as flores, sorrindo para um ursinho e outro. Parando nos
pés da cama, Damien lutou contra a vontade de se encolher no
lugar quando os olhos de mel de sua amiga se fixaram nele.
— Você não sabe como foi difícil vir até aqui.
— Você não precisava — Damien resmungou, desviando os
olhos para suas mãos no colo.
— Sim, precisava. — Ava suspirou, sentando perto dos pés de
Damien e apoiando a mão sobre a coberta. — Existem certas coisas
que precisamos conversar.
— Por favor, não pergunte nada sobre...
Damien se calou quando Ava ergueu a mão, palma voltada
para ele.
— Eu sei. Aquilo é assunto fechado e enterrado. O que tenho
que falar com você é outra coisa.
— Tudo bem. — Damien exalou devagar, recostando no
travesseiro. — Diga. Tenho todo o tempo que você precisar.
Aquilo fez Ava sorrir, mesmo que pouco. Seus olhos passaram
pelo quarto mais uma vez antes de voltar para Damien.
— Estou saindo no mês que vem.
— O quê? Você está brincando, certo? — Damien riu, então
franziu as sobrancelhas. — Não. Ava, está falando sério? Mesmo?
— Muito. — Ela assentiu, cruzando os dedos sobre as coxas.
— Dois motivos me fizeram tomar essa decisão. Primeiro foi Cam.
Sua paixão cega por mim acabou desenterrando seu passado e
fazendo minha amizade com você ficar abalada. Odeio isso,
Damien. Odeio você por não ter me contado antes, odeio toda essa
maldita situação. Porém, entendo você. Se estivesse na sua
situação, faria o mesmo se me surgisse a oportunidade. — Ava
suspirou, fechando os olhos por um momento e os abrindo para fitar
o teto. — Se Maya ou Zack precisassem, não pensaria duas vezes.
Assim, posso dizer que o perdoo por manter segredo de mim.
Ele sabia que Ava faria de tudo pelas crianças dela. Sentando
com um pouco de dificuldade, Damien esticou a mão e pegou o
braço de Ava, deslizando até segurar sua mão fina na dele. Dando
um aperto, Damien sorriu de leve.
— Não poderia contar, Ava. Deus sabe que odiava mentir,
mas... não podia. E se alguém escutar que você sabe...
— Sim, morte certa e sangrenta. — Ava apertou os dedos de
Damien.
— E a segunda coisa? Você disse que eram duas.
— Ah! Claro. — Ava sorriu, apoiando a mão sobre a cama e
deitando a cabeça sobre o ombro. — Mark e eu conversamos algum
tempo atrás que, se acontecesse uma gravidez novamente, eu teria
que sair. E, bem... Zack vai ser promovido a irmão do meio.
— Não brinca! Jesus, Ava! — Damien riu, ofegando em
seguida e deitando nos travesseiros. — Eu nem mesmo posso te
abraçar direito por isso! Porra!
— Guarde para depois. Você vai ter mais sete meses para me
parabenizar até ele ou ela nascer.
— Vai ser uma menina. Ouça o que estou dizendo. — Damien
inspirou o máximo que conseguiu e exalou. As cicatrizes das costas
começaram a arder, se juntando à coceira no ombro de sua
queimadura antiga. — Mark vai ficar maluco com três mulheres em
casa.
— Estamos apostando em outro menino. — Ava piscou,
suspirando. — Estamos bem, certo?
— Deus, sim. Estamos. — Damien riu com alívio, chiando ao
sentir as dores mais uma vez. Inspirando através de dentes
cerrados, gesticulou com a mão livre. — Sabia que não poderia ficar
longe de mim por muito tempo. Você me ama demais.
— Seu idiota egocêntrico. — Ava bateu em sua perna, rindo.
— Saiba que comi seu estoque de Skittles junto com Aidan.
A menção do nome do Corvo fez o humor de Damien azedar.
Torcendo a boca, desviou os olhos para a janela e lutou contra a
vontade de ranger os dentes. Só porque Damien decidiu que Aidan
não ia escapar tão fácil dele, não significa que havia esquecido
como o Corvo o deixou sozinho após tudo o que tinha acontecido.
Ele tinha sido estuprado por um maníaco, pelo amor de Deus.
Esfregando o nariz, Damien suspirou, derrotado. Apoiando a
cabeça no travesseiro, olhou de esguelha para Ava.
— Eu deveria colocar uma tranca naquela gaveta.
— Deveria. — Ava riu. — Apesar que, você pode não dividir
seus preciosos doces com ninguém na sede, mas os dá para seu
parceiro sem pensar duas vezes.
Isso fez Damien engasgar.
— Não mesmo!
— Sim, você fez. — Ava arqueou as sobrancelhas. — Seu
parceiro está completamente insano, aliás. Afundado no trabalho
como um louco. Eu saio de noite e ele ainda está lá. Chego pela
manhã e tenho a impressão de que o homem passou a noite. O que
está acontecendo com ele?
— Não saberia dizer o motivo — Damien respondeu
secamente. — Não falo com ele desde que acordei neste hospital.
Isso chamou a atenção de Ava, que o cutucou na perna.
— O quê? Por quê?
— Pergunte isso a ele — Damien resmungou.
— Você está fazendo biquinho. Merda, Evans, o que você fez
com o homem agora?
— Eu não fiz nada! — Damien exclamou, olhando horrorizado
para sua amiga. — Por que você chegou à conclusão de que fui eu?
Pode muito bem ter sido aquele Corvo estúpido que não quer
alguém sujo como eu em um relacionamento...
Damien pressionou os lábios, irritado. Some a ficha suja de
Damien com o complexo de culpa de Aidan, achando que tudo o
que ele toca morre, o resultado era exatamente aquilo: catástrofe.
Ava piscou lentamente, cruzando os braços e então sorrindo.
— Você está apaixonado por ele.
Damien engasgou.
— Não! Não foi isso o que eu disse.
— Está por todo seu rosto! — Ava inclinou na direção de
Damien e riu. — Merda, Evans. Vocês treparam, e agora está
apaixonado pelo Callaghan? Sério?
— Maldito Corvo idiota — resmungou, cruzando os braços. —
Existem problemas a serem resolvidos e ele apenas... foge! —
Damien balançou a cabeça. — Chega disso. Me conte o que
aconteceu depois que vim parar no hospital. Reese esteve por aqui,
mas se esquivou das perguntas como uma profissional.
— Talvez porque você não devesse estar perguntando sendo
que está de folga? — Ava arqueou uma sobrancelha.
— Não posso saber sobre meu próprio caso?
— Tudo bem, o que você quer saber? — Ava balançou a mão
com descaso e derrota.
— A única coisa que eu sei é que Samael foi morto. —
Cortesia de Aidan Callaghan, Damien pensou. — Como sabiam que
foi ele?
— Nosso rato digital conseguiu isso com muito custo. Herzog
achou o rastro de Samael e entregou para Aidan, que saiu como um
pássaro vingativo direto para sua casa. — Os olhos de Ava
escureceram. — Se ele tivesse demorado um pouco mais...
Sim, Damien sabia disso. Tocando sua garganta, percebeu
alguns pontos que o terço havia cortado a pele e deixado uma
cicatriz para trás. Ele quase morreu naquela noite.
— O falso padre foi preso?
— Sim. Aquele aliciador de merda — Ava resmungou. — Seu
caso foi fechado, a igreja interditada e os garotos que frequentavam
foram enviados para uma casa de apoio LGBT. Ajudei Aidan a
cuidar de tudo.
— Cam deve ter ficado uma fúria com isso. — Damien sorriu, o
que fez Ava bufar.
— Não me fale dele. Estou tão furiosa com tudo o que ele fez!
Investigando nas minhas costas, te acusando. Reese o chutou da
sala antes que ele pudesse dizer algo.
— Cam ia me delatar, então.
— Ia. Porém, a sua chefe estava ocupada demais para sequer
lhe dar ouvidos. Apesar que não duvido que ele continue tentando,
Damien. — Ava balançou a cabeça.
— Deixe-o. Já passou da hora de eu enfrentar as
consequências dos meus atos. — Damien exalou, a dor em suas
costelas voltando. — Vamos mudar de assunto. Me conte o que está
pensando em fazer assim que sair da sede.
Ava começou a contar seus planos enquanto Damien a ouvia,
empurrando os medos e as dúvidas de lado. Ele teria tempo para
resolver isso assim que saísse daquele hospital.

Observava os flocos de neve caindo pela janela, seu corpo


estremecendo com o frio e praguejando mentalmente o aquecedor
barato que não funcionava. Seu pequeno apartamento era um gelo
e a lareira a gás não aquecia o suficiente.
Chips o olhou de sua pequena cama ao lado da dita lareira e o
julgava criticamente com aqueles olhos caninos. Não diziam que
cães eram amorosos e gratos? Bom, Chips não estava nem mesmo
perto daquelas qualidades. Se o animal refletia o dono, Julian era
um cretino burguês quando vivo.
— Perdó[2], mas é o que posso te dar por enquanto. Sua casa
estará vazia até seu dono voltar, Chips. Não posso te deixar lá
sozinho.
Ou mesmo ficar por lá como se pertencesse à casa de
Damien. Aidan poderia estar ficando louco, conversando com um
cachorro e esperando uma resposta. Seu corpo estava rodeado de
pastas e folhas pelo chão, suas costas reclamando ao encostar no
sofá velho. Ele não tinha mais vinte anos.
Aidan esfregou o rosto e suspirou. Aquela investigação ainda
poderia durar semanas. Meses. Tantos departamentos envolvidos
em corrupção, recebendo dinheiro sujo da máfia para virar o rosto
quando algo acontecia. E também havia aquele relatório com o
nome de Damien nele. Quem seria confiável o bastante para ajudar
Aidan a forjar um documento em que Damien Evans não aparecia?
Aidan queria fazer algo assim?
O que o fazia pensar que Evans era confiável?
Sua mente o traiu, mostrando o rosto de Damien sorrindo e
então sereno em seu sono. As palavras doces quando Aidan
desmoronou na frente dele e chorou como uma criança de dez anos
novamente. Quando contou sua versão dos fatos e a doença da
mãe, a única escolha que via naquele momento e que levou Damien
a estar na folha de pagamento da máfia. Lembrou do toque quente,
da risada descontraída, das implicâncias entre eles.
Não era fácil para Aidan ter intimidade com alguém, se abrir da
forma como havia feito. Sexo para Aidan não era considerado
intimidade. Era uma liberação fisiológica necessária, onde duas
pessoas trocavam prazer, ficavam satisfeitos e então se levantavam
e iam embora.
Frio? Possivelmente.
Entretanto, a intimidade sempre precisou ser mais profunda. É
onde seus monstros mostravam suas caras feias e rosnavam, onde
Aidan era completamente vulnerável. Onde suas feridas não
cicatrizaram, constantemente sangrando e machucando. E, mesmo
depois de mostrar esse péssimo lugar para Damien, o homem
permaneceu. Deu apoio. Pegou sua mão e o trouxe de volta à
superfície, lhe deu ar para respirar.
Essa intimidade que Aidan buscava há tanto tempo, e que o
olhou com olhos verdes ternos e um sorriso complacente. Uma mão
quente que o segurou, apenas para ele a empurrar para longe na
primeira oportunidade quando o medo se fez presente e aquela voz
odiosa em sua cabeça foi mais forte. Aidan não tinha orgulho disso.
Desde aquele dia que saiu pela porta do quarto do hospital, Aidan
se chutava por ter abandonado o homem pela qual estava
apaixonado – que amava – e que tinha acabado de passar pelo
inferno.
Covarde.
Un gran covard.
Seu telefone tocou, tirando-o de seus pensamentos sombrios.
Olhando para o visor, gemeu e fechou os olhos. Tudo sempre
poderia melhorar, verdad?
Apertando o botão verde, rosnou:
— Callaghan.
— Como você está hoje, Aidan?
— Apenas diga logo o que você quer — resmungou.
O suspiro do outro lado foi audível.
— Certo. O último relatório veio faltando algumas páginas.
Espero que tenha sido intencional, ou isso pode significar que está
trabalhando demais. Sei que você está fazendo um trabalho duplo,
resolvendo casos e tentando desenterrar os podres da Homicídios e
Antidrogas ao mesmo tempo...
— Não me importo com uma jornada tripla. — Aidan coçou
uma sobrancelha com o mindinho.
Quanto mais trabalho, menos tempo ele tinha para pensar.
Porém, não disse isso em voz alta.
— Mas eu me importo. — Stanton suspirou. — Olhe, tenho
uma pessoa trabalhando para mim, infiltrado, que me enviou fotos
bastante... comprometedoras. São fotos muito importantes. Estou
terminando os arranjos para fazer parecer que ele foi morto e
então...
— Você acabou de dizer que vai forjar a morte dessa pessoa?
— Apertando os olhos, apoiou os cotovelos nos joelhos.
— Claro. Só posso tirá-lo de onde ele está se estiver morto. E
não quero meu melhor espião sem vida. Não que você não seja tão
bom quanto ele. Apenas possuem habilidades diferentes. — Stanton
cantarolou baixinho, o som de talheres ecoando e vozes
sussurradas. Aidan tinha certeza de que o promotor estava naquele
restaurante caro que frequentava, almoçando o valor de cinco
refeições em uma. — Vou movê-lo para a Homicídios em breve.
Então ele vai te ajudar a...
— Espere um segundo. Você está dizendo que vai ter dois de
nós investigando a Homicídios?
— E o Antidrogas, não se esqueça. Com ajuda, essa
investigação pode acabar mais rápido. Meu espião infiltrado vai ser
seu novo parceiro. Estarei falando com Reese em breve.
Novo parceiro.
Mas... e Damien? Aidan levantou, balançando a cabeça e
passando a mão pelo cabelo.
— Já tenho um parceiro, Stanton.
O promotor bufou do outro lado.
— Seu parceiro está no hospital e não vai voltar tão cedo.
Quando estiver apto, você nem vai estar mais na Homicídios, Aidan.
Então, não vai ter problema de trabalhar com...
Aidan riu, sombrio.
— Você não conhece Damien. Com alta do hospital, pode ter
certeza de que ele vai estar pisando naquele escritório no dia
seguinte.
E Aidan não sabia se estava preparado para aquele encontro.
Se sentia ansioso, mas também receoso. Eram sentimentos demais
para conseguir discernir de forma separada cada um.
— Reese vai concordar comigo sobre isso. Vamos nos falar
novamente em breve. Minha comida chegou. Se eu o convidasse
novamente para jantar sua resposta ainda seria não?
— Absolutamente — Aidan rosnou.
Stanton riu do outro lado.
— Céus, que homem difícil. Tudo bem, Corvo. Tenha um ótimo
final de tarde.
Aidan estava desligando antes mesmo que Stanton desse
mais uma palavra. Jogando o celular sobre o sofá olhou para Chips
deitado confortável em sua cama, as orelhas em pé e a cabeça
levemente inclinada.
— Quer um pouco dos meus problemas para você? — Aidan
observou o cão bufar, deitando a cabeça na borda da cama e o
ignorando. — Foi o que eu pensei.
Parando ao lado da janela, olhou para o céu escuro e a neve
que não parava de cair, mergulhado em seus pensamentos e
preocupações. Apesar de tudo o que havia acontecido, Aidan sentia
falta de Damien como nunca sentiu falta de qualquer outra pessoa.
Concentração era algo que Damien não estava conseguindo
obter naquela manhã fria de dezembro. Mover-se pelo quarto e
corredor era a única coisa que conseguia fazer, lutando contra a
vontade de sentar e respirar como uma pessoa normal.
Quem diria que costelas quebradas poderiam ser tão difíceis?
Porém, não era apenas por isso que ele se sentia cansado. Se
Damien olhasse no espelho daquele pequeno banheiro, poderia ver
as olheiras se tornando profundas, as bochechas um pouco
côncavas pela falta de alimentos. Damien não sentia muita fome.
Ele também não conseguia dormir. Sempre que fechava os olhos e
o sono chegava até ele, Damien via orbes azuis frias olhando para
ele de volta, cachos angelicais se tornando borrões demoníacos,
garras apertando sua garganta.
Damien acordava de um solavanco, seus olhos arregalados e
a boca aberta buscando por ar. Pesadelos sombrios retorcendo sua
mente e enviando calafrios por sua espinha. Mesmo agora, na luz
do sol invadindo a janela e o aquecedor ligado no último, Damien
sentia calafrios. Olhar para aquelas paredes nuas do quarto de
hospital estavam deixando Damien louco. Como seria voltar para
sua casa, para seu quarto? Onde tudo aconteceu?
Apoiando as mãos no beiral da janela, observou o pátio
coberto de neve. Algumas pessoas sentavam nos bancos
procurando pelo calor do sol que havia desaparecido nos últimos
dias com a tempestade de neve e a queda brusca de temperatura.
Damien viu algumas guirlandas penduradas aqui e ali. Toucas
coloridas passeavam pelo caminho limpo de cascalho, casacos
forrados e botas impermeáveis.
Dezembro estava ali, tão rápido que Damien sequer o viu
chegar. Preso naquele maldito quarto de hospital, andando em
círculos e pensando no quanto sentia falta de um homem sombrio
retrucando suas piadas. Como Aidan estava? Como aquele homem
conseguia dormir todas as noites? Franzindo os lábios, Damien se
afastou da janela e cruzou os braços.
Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível
sanidade[3].
Sentia falta do Corvo.
A porta do quarto se abriu, o médico responsável por Damien
entrando e dando um largo sorriso. Um que Damien não retornou.
Ele estava em um péssimo dia tendo dormido apenas duas horas
naquela noite.
— Como estamos hoje?
— Da mesma forma que ontem — Damien murmurou,
sentando na beira da cama. — Pronto para ir embora.
O médico riu baixinho, a prancheta debaixo do braço e os
óculos pendurados no pescoço junto com o crachá. Lia-se “Dr.
Schneider”. Alemão, provavelmente. Combinava com toda aquela
pele pálida quase translúcida e cabelos esfiapados na cor de cobre.
— Hoje é seu dia de sorte. Estou pronto para assinar sua alta.
— Graças a Deus... — sussurrou.
— Com uma condição.
Damien gemeu, cruzando os braços.
— Estava bom demais para ser verdade. — Olhando de
esguelha para o médico, perguntou: — Qual seria essa condição?
— Você vai me prometer que não vai se esforçar demais.
— Não sei se posso prometer isso.
— Então não posso te dar alta, Damien.
Aquilo era um impasse. Tamborilando os dedos no braço,
olhou para o médico.
— O que seria “não se esforçar demais” em seus termos? Só
para saber.
O Dr. Schneider sorriu, pegando a prancheta e clicando sua
caneta.
— Nada de exercícios físicos e extenuantes.
— Isso inclui sexo?
— O que você entende por “exercícios físicos”?
— Corrida e levantamento de peso? — Damien sorriu, fazendo
o médico balançar a cabeça.
— Nada de aeróbicos. Isso inclui sexo. — O médico colocou
os óculos na ponta do nariz e olhou seriamente para Damien sobre
a borda. — Digo isso por conta de suas costelas em recuperação,
Damien. Você também teve alguns danos nos músculos do ânus e
reto por causa do estupro. Vai sentir algum desconforto no início,
principalmente ao evacuar, mas vai melhorar com o passar do
tempo. E, se não cuidar direito, pode acabar se machucando mais
sério.
— Tudo bem. Entendi essa parte. — Damien expirou,
gesticulando para o médico continuar.
— Também vou dar uma licença médica de um mês, para ter
certeza de que suas costelas irão cicatrizar devidamente.
— O quê? — Isso fez Damien levantar da cama. — Não! Um
mês? Absolutamente não.
— O médico sou eu e sei o que é melhor para meu paciente.
— Dr. Schneider disse, assinando no final do prontuário. — E, se
continuar choramingando, vou aumentar para dois.
— O senhor é um homem cruel — murmurou.
— Faço o que posso.
A porta tornou a se abrir, fazendo os dois homens virarem para
olhar. Damien cerrou os olhos ao ver o sorriso e os brilhantes olhos
verdes de Kiam White. O homem segurava balões coloridos e um
ursinho branco felpudo com um coração vermelho escrito “desejo
melhoras”.
Jesus Cristo, aquilo era uma punição?
— Vou deixar você com sua visita. Sua saída está liberada
para daqui uma hora, Damien. Vou deixar as instruções com a
enfermeira, não esqueça de pegá-las.
Damien queria ajoelhar e agarrar a perna do médico para que
não saísse daquela sala. O sorriso de Kiam aumentou, parecendo
ler no rosto de Damien o desespero que ele sentia. A porta fechou,
deixando os dois sozinhos no quarto.
— Vejo que cheguei exatamente na hora certa. Meu ursinho de
recuperação teve um efeito instantâneo. — Kiam riu, entregando os
balões e o dito urso para Damien.
— Vou dizer aonde você pode enfiar esse urso, White —
Damien murmurou.
Soltando os cordões, Damien viu os balões flutuarem até o
teto, batendo e quicando até ficarem parados. Enfiou o urso dentro
da cesta com os outros presentes da TPS e virou com os braços
cruzados na direção de Kiam. O homem usava um sobretudo cinza
grafite com gola felpuda preta, luvas de couro na cor chumbo, calça
pretas e sapatos quentes e confortáveis. Um cachecol vermelho
enrolado no pescoço quebrava o padrão sério da roupa.
— Quanta agressividade. Pensei que, com os remédios, você
seria um pouco menos estressado.
— A sua presença é o suficiente para causar picos de
estresse, White. — Damien balançou a mão na direção da porta. —
Agora que já entregou seus malditos balões, pode ir embora.
— Se o que tenho a dizer para você não fosse importante,
pode ter certeza que nem mesmo teria vindo até aqui. — Kiam
aponta com o indicador na direção do chão e depois para Damien.
— Então guarde seus dentes, Totó.
Realmente. Se Kiam estava ali, deveria ser importante. Dando
de ombros, Damien sentou novamente na beira da cama e olhou
com sobrancelhas arqueadas para o homem, esperando.
— Bom garoto. — Kiam sorriu, o que só fez Damien rosnar.
— Diga logo o que você quer.
Kiam enfiou as mãos nos bolsos, o sorriso desaparecendo do
rosto.
— Pops está muito irritada, Damien.
— E o que eu tenho a ver com isso?
— Seu parceiro. Aquele Corvo está metendo o bico onde não é
chamado. E isso está deixando a Pops um pouco homicida, se é
que me entende.
Aquilo fez com que um filete frio descesse a espinha de
Damien, deixando-o sentado reto sobre a cama. Suas costelas
comprimiram, mas ele ignorou a dor, focando apenas no que Kiam
estava dizendo.
— O que você quer dizer com “metendo o bico onde não é
chamado”?
Kiam abriu a boca ao mesmo tempo em que a porta se abria
mais uma vez e Thomas entrava por ela. Seu rosto torcido com
raiva apontando um dedo na direção do marido enquanto batia a
porta atrás de si.
— Não se atreva!
Damien percebeu, tardiamente, que Thomas tinha uma criança
com cerca de quatro anos agarrada à sua mão e parcialmente
escondida atrás de suas pernas. Grandes olhos castanhos olhavam
para Damien com curiosidade, o gorro pink cobrindo seus cabelos
castanhos escuros.
Eles realmente haviam adotado uma criança.
Jesus.
— Ele merece saber, Thommy!
— Não! Lembra quando te odiei ao ouvir King falar sobre você
ao invés da sua própria boca? É isso que vai acontecer aqui, Kiam.
Tudo bem, Damien estava se sentindo perdido no meio
daquela conversa. Levantando da cama, ficou entre os dois e
gesticulou para calarem a boca por um segundo.
— Isso aqui não tem teto de lona pra ser um circo. É um
hospital e eu sou um enfermo. Falem mais baixo, porra.
— Criança! — Thomas exclamou, cobrindo o ouvido da
menina.
— O tio disse uma palavra feia! — exclamou de olhos
arregalados.
Damien fez uma careta, cruzando os braços.
— Desculpe. — Virando para Kiam, Damien fechou o rosto de
forma séria. — O que está acontecendo? O que Aidan está fazendo
e deixando a Pops irritada?
— Filho da mãe, você contou! — Thomas balançou a cabeça.
— Você ganha uma semana dormindo no sofá por causa disso.
— Ei! Isso é injusto! — Kiam exclama, horrorizado. — E a
coisa aqui é completamente diferente. O parceiro dele pode morrer,
Thommy.
Aquilo fez Damien engolir em seco.
— Me diga o que está acontecendo. Agora!
Kiam apontou as duas mãos para Damien enquanto arqueava
as sobrancelhas e Thomas balançava a cabeça. Se afastando com
a menina até a cesta cheia de presentes, sentou na poltrona
enquanto a criança se ocupava em escolher qual dos ursos pegaria.
— Espero que eles se acertem no final. Se esses dois ficarem
separados por causa do que vai falar, Kiam, nunca vou te perdoar —
Thomas falou, colocando a menina no colo.
— Nós somos apenas parceiros de trabalho — Damien
murmurou.
Soltando um suspiro, Kiam puxou uma foto do bolso e
estendeu para Damien. No papel podia ser visto uma igreja no fundo
e o carro vermelho de Damien enquanto Aidan o segurava perto,
ambos sorrindo. Eles tinham acabado de se beijar, ele se lembrava
muito bem. E, qualquer um que olhasse aquela imagem, saberia
que Damien e Aidan eram muito mais que apenas parceiros de
trabalho.
Seus dedos apertaram a fotografia, seus olhos se perdendo
por um momento no sorriso de lado de Aidan, naqueles olhos
escuros parecendo tão carinhosos. E doeu. Damien nunca poderia
imaginar que doeria tanto daquele jeito. Enfiando a foto dentro do
bolso da calça de moletom, tornou a olhar para Kiam.
— Vocês estavam nos seguindo.
— Pops sempre manteve um olho sobre você, Damien. —
Kiam balançou a cabeça. — O ataque a Julian...
— Eu sei. — Damien mordeu ao redor das palavras.
Se lembrava muito bem de tudo. De forma inconsciente, a mão
esfregou o ombro e bíceps, a pele cicatrizada abaixo da blusa. E
lembrou-se também do velório, quando viu a mulher lá no fundo da
igreja com seus óculos escuros, fingindo limpar as lágrimas das
bochechas.
Lágrimas de crocodilo.
— Acontece que o Corvo está trabalhando para o promotor
Stanton Russo e...
— Ele o quê? — Damien exclamou.
— Os balões do papai! — a exclamação maravilhada da
menina ecoou no quarto subitamente silencioso.
Kiam se balançou sobre os pés enquanto Thomas continuava
balançando a cabeça e fuzilando a nuca do marido com os olhos.
— Esse foi o verdadeiro motivo de Aidan Callaghan continuar
trabalhando na Homicídios. — Kiam arqueou as sobrancelhas. —
Ser espião do Stanton para descobrir o contato da Pops, com
permissão da sua Superintendente, aliás.
Damien precisava sentar. Esfregando a testa, as coisas
começaram a se encaixar na sua cabeça. Seria por isso que Aidan
se afastou? Inferno, será que Aidan iria delatá-lo para o promotor?
Sendo o espião dele é claro que faria. Porém, já fazia duas
semanas. Se Aidan tivesse falado, Damien já teria sido informado.
Tudo isso o fazia lembrar de Julian e sua grande estupidez,
pensando ser maior que o mundo e confrontando aqueles por trás
da corrupção do sistema. Damien sabia que Aidan era diferente de
Julian, mas tinha de medo de que o final fosse igual para ambos: a
morte.
— Se você está aqui, significa que a Pops sabe.
— Sabe e está furiosa — Thomas resmungou.
— Escute bem, Damien. Estou aqui porque eu sei que vocês
dois são mais que apenas parceiros de trabalho. Se Aidan continuar
com isso, Pops não vai pensar duas vezes antes de eliminá-lo. E
isso pode incluir você também. Sua família. Pops não é benevolente
duas vezes.
— E se ela souber que viemos até aqui para te contar, Kiam
vai ter a cabeça cortada. Braço direito dela ou não. — Thomas
apontou, o que fez Kiam se encolher levemente.
Damien bufou.
— Você parece ter se acostumado a essa vida, fotógrafo.
— A gente não manda no coração, Inspetor. — Thomas
encolheu um ombro, seu joelho balançando e fazendo a menina
saltar e rir. — Essa é a vida do homem que eu amo. Lute ou junte-se
a eles. Escolhi a segunda opção, como pode ver, mas não significa
que eu goste ou apoio.
Cruzando os braços, Damien tornou a olhar para Kiam, que
tinha os olhos na direção do marido e da criança. Filha deles. Ele viu
aquelas esferas verdes como esmeraldas, sempre tão frias e
cínicas, olharem com tanta ternura que Damien sentiu como se
estivesse observando algo íntimo. Invadindo algo privado.
Pigarreando, desviou os olhos.
— O que você quer que eu faça? Aidan nem mesmo tem me
visitado. Ele... Nós nos separamos depois do último caso.
E apenas dizer isso em voz alta Damien se sentia sangrar. O
cansaço, a falta de sono, os constantes pesadelos... Nada disso
parecia chegar aos pés da dor que ele sentia sempre que lembrava
de Aidan saindo por aquela porta. E saber o real motivo só o fez
ranger os dentes.
Aquele Corvo burro, sempre levando a culpa para si e
carregando o peso do mundo sozinho.
Damien não sabia como se sentia. Traído ou puto por saber
disso por outra pessoa? Talvez as duas coisas.
— Tem certeza? Aquele Corvo pode não estar entrando no
quarto, mas tem rondado a entrada do hospital todos os dias como
um pássaro irritado. — Kiam sorriu. — Quase religiosamente.
— E você continua abrindo sua boca, cretino... — Thomas
murmurou, levantando e segurando a mão da menina novamente.
Ela tinha o urso de Kiam agarrado contra o peito, um dedo
cutucando o nariz enquanto mantinha os olhos em Damien.
— Estou apenas informando fatos importantes aqui, Thommy.
— Kiam cruzou os braços, um sorriso largo para a menina antes de
virar para Damien novamente. — Volte para a sede, Damien, e
reboque a bunda de Aidan para casa. Tente persuadi-lo a esquecer
esse caso.
— Como eu sei que não está fazendo isso apenas porque a
Pops mandou? Talvez Aidan tenha conseguido algo importante que
finalmente vai ter sua chefe presa. — Damien arqueou uma
sobrancelha, duvidoso.
— Pode ser isso, ou também pode não ser. — Kiam deu de
ombros. — A decisão final é sua. Ter o sangue de Julian nas mãos
não foi suficiente? Ou vai acrescentar o do homem que você ama
também?
— Isso é o suficiente, Kiam. Aqui, pegue a Molly. — Thomas
entregou a menina para o colo do pai e empurrou o homem pelos
ombros na direção da porta. Olhando sobre o ombro, Thomas
acrescentou: — Meus sinceros desejos de melhoras, Inspetor.
A porta se fechou com um clique suave. O quarto tornou a ficar
silencioso, apenas a mente de Damien continuava com um completo
caos de pensamentos. De uma coisa Damien continuava certo:
Aidan e ele tinham muito o que conversar.

Mesmo com a porta fechada, Reese conseguia ouvir os


telefones tocando no escritório. Os murmúrios de conversa dos
detetives, passos pelo corredor de mesas, portas batendo. Olhando
para a tela do computador, Reese sentia que seus olhos estavam
prestes a saltarem das órbitas por conta da dor que pulsava atrás
deles.
Por que havia aceitado a promoção de Superintendente?
Ah, o ótimo salário. Na época parecia algo caído do céu. Com
os meses passando, Reese percebeu que era mais como um cargo
enviado direto do inferno. Às vezes, tinha certeza de que estava
sentada no colo do capeta.
Esfregando as têmporas, apoiou os cotovelos sobre a mesa.
Seu celular, agora com a tela apagada, parecia uma entidade viva
apenas esperando uma resposta. Ainda podia ver a mensagem de
Stanton brilhando naquele fundo branco, as letras pretas se
destacando como um dedo apontado para ela.
Um novo parceiro para Callaghan?
Achava aquilo praticamente difícil de acontecer. Pelo pouco
que conhecia do Corvo, o homem espinhoso e soturno não aceitaria
tão facilmente um novo parceiro. Trabalhar com Damien já havia
sido difícil, ela viu isso nos olhos de ambos quando se enfrentavam.
Eles não se mataram, o que já foi uma vitória. Agora, o
relacionamento que se criou depois disso... Porra, nem seus filhos
davam tanta dor de cabeça assim e eles ainda estavam na
adolescência.
Homens adultos sempre se comportam como crianças.
Reese queria apenas um minuto de silêncio e tranquilidade.
Conseguir tomar seu café e... Uma batida soou na porta e então o
rosto da última pessoa que ela queria ver naquele momento surgiu
pelo vão.
Damien Evans.
Sua esperança de tranquilidade acabava de ir para o inferno.
— Para você estar aqui, só existem duas possibilidades,
Evans: ou a pancada na sua cabeça foi tão forte que te fez perder o
resto do juízo; ou você morreu e voltou para me atazanar. E, para
seu bem, espero que seja a última opção.
Seu Inspetor sequer pareceu abalado. Fechando a porta atrás
dele, caminhou sem pressa até a mesa, puxou a cadeira e se
sentou. Quem não olhasse direito, não veria o que os olhos
treinados de Reese estavam vendo. Damien estava sentindo dor.
Suas costelas ainda não estavam totalmente curadas e ali estava
ele, sentado na sua frente ao invés de deitado em casa.
Descansando.
— Precisamos conversar.
Reese apalpou a cintura, se perguntando se ela seria errada
se atirasse no homem e o enviasse para o hospital novamente.
— Não temos nada para conversar. Você está de licença,
Evans.
— Você permitiu que Aidan Callaghan fizesse uma
investigação no Departamento de Homicídios a pedido de Stanton
Russo?
Recostando, Reese apoiou os cotovelos no braço curvo da
cadeira e cruzou os dedos.
— Quem te contou sobre isso?
— Não vem ao caso. Apenas responda minha pergunta,
Chefe.
Reese sorriu, suas narinas inflando como as de um tubarão ao
sentir cheiro de sangue.
— Acha que está em posição de impor isso, Inspetor Evans?
— É do meu parceiro que estamos falando. Se ele está
trabalhando como espião para o promotor, eu...
— Você nada, Evans — Reese rosnou. Seus olhos frios
deixando Damien preso na cadeira. — Entrando na minha sala e
exigindo respostas. Eu sou a chefe aqui, caso tenha esquecido. Sei
como dirigir essa porra de departamento. Eu já disse uma vez e
acho que entrou por um ouvido e saiu pelo outro. — Reese apoiou
as mãos na mesa e se inclinou na direção dele. — Eu sei de tudo o
que acontece no meu departamento, Evans. Tudo. Até como você
veio parar aqui, saído fugido do Antidrogas. Sua promoção pode ter
acontecido meses antes de eu ter esse cargo, mas sei os motivos
dela. Arco com esse maldito problema desde então. E, se você está
com medo de que seu parceiro descubra algo, fique tranquilo
porque nada sai daqui sem que eu saiba.
Damien piscou e então franziu as sobrancelhas.
— Mas Aidan descobriu tudo. Quer dizer, Cam descobriu. —
Damien desviou os olhos para as mãos. — Sabem da prisão dos
outros e como vim para cá. Os relatórios...
— Você acha, realmente, que esse tipo de relatório ficaria fácil
assim? — Reese riu, balançando a cabeça. — Merda, vocês são tão
ingênuos. Mesmo que Callaghan esteja trabalhando para Stanton,
as informações que ele recebe são as que eu deixo que ele saiba.
Aqueles relatórios que Cam achou não possuem nada além de que
você era suspeito de ser informante da máfia, mas inocentado por
falta de provas. Se Aidan sabe mais do que isso é porque você foi
um idiota apaixonado e contou.
Isso fez Damien tossir, as bochechas corando levemente.
— Hm... isso... Nós não...
— Não me trate como estúpida, Evans. Sou sua
Superintendente por um motivo, não é?
Ele cerrou os olhos, olhando para Reese com curiosidade e
uma ponta de julgamento.
— Você está envolvida com a máfia?
Arqueando a sobrancelha, Reese voltou a se recostar na
cadeira.
— Não, mas uma coisa que você, Callaghan e Russo precisam
aprender imediatamente é: ninguém escapa das garras da família
D’Angeles. Eles são antigos, são fortes e fazem tudo o que querem.
Conseguem tudo o que querem. Você tendo poder ou não para
impedi-los. — Reese apoiou o queixo no punho. — Uma bala pode
matar até o mais rico dos homens, Evans. Nenhum dinheiro ou
status pode salvar uma pessoa. Lembre-se disso. Agora, vá para
casa. Você está de licença por mais duas semanas.
Reese o observou levantar devagar e então caminhar até a
porta. Segurando a maçaneta, lançou um sorriso sobre o ombro.
Porra, ela odiava aquele sorriso porque sempre indicava problemas.
— Obrigado pelo seu tempo, Superintendente. Vejo a senhora
amanhã.
— Não se atreva!
Porém, ela estava falando com a porta. Soltando um gemido,
Reese cobriu o rosto com as mãos e sentiu vontade de gritar. Se a
Rainha não a matasse, Evans poderia muito bem fazer isso.

Caminhando para fora da sede, Damien enfiou as mãos nos


bolsos e tentou ao máximo não olhar ao redor como se procurasse
um Corvo espinhoso. Sua intenção de ir até a sede logo após sair
do hospital era apenas de tentar tirar da Superintendente Knight
alguma informação sobre Callaghan. O que ele conseguiu foi um
chute na bunda e perceber quão idiota ele era.
É claro que Reese Knight saberia sobre o passado dele, nada
passava por Reese Knight. Coçando a têmpora, Damien entrou no
carro e apoiou a testa no volante. Sabia que deveria ir para casa,
mas... não tinha certeza se queria. Levantando a cabeça, viu as
pontas de um sobretudo preto flutuando antes de desaparecer pelas
portas da sede. O coração de Damien disparou, apenas para se
apertar mais uma vez.
Ligando o carro, saiu da vaga e dirigiu para casa. Ele apenas
desejava que Aidan estivesse com ele naquele momento.
Entretanto, nem sempre seus desejos eram atendidos e teria de
enfrentar aquilo sozinho.
Mais uma vez.
**ATENÇÃO**
Este capítulo contém a cena pela visão do assassino. Contém
agressão física e menção de sangue.

Corra, corra, corra.


Por que ela não estava conseguindo correr mais rápido?
Talvez fosse pelo par de tênis grande demais para seus pés
pequenos. Olhou sobre o ombro, sua respiração ofegante naquela
noite fria se condensava diante seu rosto pálido. Seus pés
tropeçaram na barra da calça larga, suas mãos puxando o cós mais
para cima em sua cintura fina.
— Mas que grande porcaria... — resmungou ao escorregar na
grama úmida.
Estava sem dinheiro, tudo tinha sido gasto naquela corrida de
táxi até a rua de baixo. Empurrando o cabelo cacheado para longe
dos olhos, observou a grade alta da casa e praguejou ao perceber
que teria de escalar. O som de pneus soou no alto da rua, seu medo
correndo sobre a pele como pequenas formigas e fazendo com que
ela se apressasse. Seu pé escorregou, seu corpo tombando do
outro lado e a ponta fina da grade arranhando o interior de seu
braço e rasgando a manga do moletom. Com um gemido, se
encolheu quando faróis iluminaram a rua.
Cobrindo a boca e segurando a respiração, ficou quieta
enquanto o carro escuro e vidros fechados passou. Não poderia ser
eles, né? De forma alguma... Só conseguiu respirar novamente
quando o veículo desapareceu na esquina. Erguendo-se, sentiu o
corpo tremer com cansaço e frio. Puniu-se mentalmente ao lembrar
do pequeno portão de fechadura quebrada. Teria sido mais fácil e
prático passar por lá. As roupas eram largas demais e a estavam
atrapalhando, mas eram sua única opção no momento
Passando pelo jardim, foi para os fundos e ergueu o punho,
batendo ruidosamente na porta. Luzes se acenderam no interior, o
som de passos fazendo o coração da garota se acalmar um pouco.
A porta se abriu e o homem a olhou com sobrancelhas franzidas.
— O que está fazendo aqui? — sussurrou, apenas para
balançar a cabeça. — Esqueça. Dê o fora.
— Você precisa me esconder!
Ela passou por baixo do braço dele antes que fechasse a
porta, entrando na casa quente. Indo até a sala, olhou por trás da
cortina e mordeu o lábio ao ver que o carro passava pela rua mais
uma vez. Filhos da puta malditos! Eles realmente haviam seguido
ela até ali? Se a pegassem...
— Você não pode ficar aqui! E que roupas são essas?
— É claro que posso ficar! Você sempre disse que me
protegeria. — Ela o fuzilou com os olhos, cruzando os braços. — E
preciso dessa proteção agora. Pelo menos até que amanheça,
então posso voltar para casa.
— Aonde você estava? — perguntou, cerrando os olhos.
— Por aí. — Balançou a mão com descaso.
Ela passou por ele e voltou para a cozinha, sentando no banco
alto e deixando o rosto cair sobre as mãos. Apenas para resmungar
em seguida ao sentir o olho roxo dolorido.
— Desculpe aparecer assim. Só preciso me esconder por
algumas horas.
Ele suspirou, pegando um copo de água na geladeira e
entregando a ela. Agradecendo, tomou um longo gole e empurrou o
copo vazio pela bancada. Roubando um guardanapo rosê, começou
a fazer um pequeno barco. Ela sempre fazia origamis quando
estava nervosa.
— Vai ao menos me dizer o que aconteceu? Olhe para seu
rosto! — Ele balançou a cabeça.
— Não pergunte. É melhor para você.
Terminando o barco, colocou sobre a fruteira e suspirou.
Sentando de frente para ela, tentou novamente.
— Tudo bem. Quer que eu ligue para seu irmão? Seus pais...
— Não se atreva! — ela gritou, batendo a mão sobre a
bancada.
— Não precisa se alterar. Só estou tentando achar alguma
solução...
— Não pedi solução! Só um esconderijo! — Ela se levantou,
empurrando os cachos revoltos com a mão. — Mas que porra!
— Você está envolvida de novo com aqueles drogados, não é?
— Inferno, se continuar me perguntando, vou achar outro lugar
para ficar — disse, passando por ele.
Entretanto, a mão masculina agarrou o braço fino e feminino,
forçando-a a ficar onde estava.
— Você está me pedindo proteção. Acho mais do que razoável
saber o motivo. Ou pretende continuar mentindo para mim? — ele
sussurrou perto do ouvido dela. Tão baixo e tão sombrio que a fez
arregalar os olhos.
— Nunca menti pra você.
Ele a chacoalhou, raiva em sua voz.
— Não seja cínica! Acha que eu não sei do seu envolvimento
com aqueles traficantes viciados? Que você dorme com aquele filho
da puta em troca de algumas balas? Agora você entra em encrenca
mais uma vez e a quem você recorre, vagabunda? A mim!
Ela se desvencilhou da mão dele, esfregando a pele dolorida.
— Não é verdade.
— Não? — Ele riu com desprezo. — Semana passada você
dormiu na casa daquele vagabundo e disse para seu irmão que eu a
levei até sua amiga da faculdade. Eu a desmenti? Não! Então no
mês passado você estava tão drogada que tive de dizer para sua
mãe que era apenas um rompimento e que pediu para dormir aqui.
Quanto mais você quer que eu minta por você?
— Nunca te pedi que mentisse! — ela gritou, se afastando
devagar.
Ele estava alterado. As narinas se abriam e fechavam com a
respiração ofegante, as veias do pescoço salientes.
— Você sabe que eu mataria por você, então não se finja de
idiota.
Assim, ela riu. Aquela risada debochada que ele odiava tanto e
ao mesmo tempo amava. Aquela risada que o fez perder a cabeça
tantas vezes, apenas pensando em formas de fazê-la se calar com
o pau dele entre os lábios.
— Porque você é um idiota! É isso o que você é! — Ela o
empurrou no ombro e então no peito. — Você concordou em me
ajudar todas as vezes porque você é um completo idiota! Me
seguindo como um cachorrinho com olhos pedintes!
Ela virou, pronta para desaparecer daquela casa, quando ele a
puxou com força e as costas dela batendo no peito dele. Uma mão a
pegando pela garganta e a outra explorando um dos seios.
— Sua pequena víbora mentirosa. Você vai me dar o que
prometeu agora mesmo.
A mão dele desceu, vagando pela barriga lisa e então mais
abaixo. Quando estava prestes a enfiar os dedos nela, a sentir
aquela prova do céu que ela sempre prometia e nunca dava, sentiu
o cotovelo em suas costelas e então o tapa no rosto, atordoando-o.
Ela correu na direção da sala e ele a seguiu, pegando um objeto no
meio do caminho. Quando ela chegou na porta, algo a atingiu com
força na cabeça e a fazendo cair.
Por longos segundos, ele apenas a olhou. O sangue
começando a escorrer sobre a ponta do tapete e empapando os
cabelos claros. O desespero fez com que ele arregalasse os olhos,
percebendo o que, de fato, havia acontecido. Se aproximando
devagar, tocou suavemente na lateral do pescoço e soltou um grito
engasgado ao perceber que não havia pulso.
Ele a matou.
Porra, Sagrado sangue de Deus! Ele a matou.
Apavorado, ele se encarregou de encobrir o crime.
Depositando o corpo em uma mala velha, levou para o carro e de lá
para um bairro afastado e carente. Jogando a mala na lixeira,
fechou a tampa e voltou para o carro, fingindo que nada daquilo
havia acontecido.
Entretanto, ele sempre iria saber que a havia matado.
Os dias passavam lentos para Aidan. Era como um arrastar
silencioso, frio como a neve do lado de fora. Seus dedos cerraram
dentro do bolso, o couro da luva rangendo suavemente. Ele ainda
estava fugindo de maneira covarde e não se orgulhava nem um
pouco disso.
Aidan tinha visto Damien na tarde de ontem saindo pelas
portas da frente da TPS e, per Déu, o homem parecia terrível.
Aqueles olhos verdes sempre risonhos e brilhantes estavam
apagados, mergulhados nas bolsas escuras das olheiras, as
bochechas magras e a barba por fazer. Damien Evans parecia...
perdido. Tão perdido quanto Aidan se sentia
Aidan tinha tomado a decisão errada.
Sabia disso antes, e depois de ver como Damien estava
abatido tinha absoluta certeza. Aidan tomou uma decisão naquela
tarde ao ir para casa, recolhendo um mal-humorado Chips e o
levando de carro para a casa da irmã de Damien. Eles tinham
trocado os números desde que Damien havia sido hospitalizado.
Every o mantinha informado, mesmo que ele não houvesse
perguntado ou respondido algumas das mensagens.
Não que ele não quisesse manter um contato, mas Aidan não
se dava tão bem com telefones e mensagens. Ele preferia ligar. E
era isso que fazia, não com frequência como a própria Every
enfatizava. Damien havia se tornado mais uma marca no corpo de
Aidan. Uma cicatriz dolorosa e ao mesmo tempo macia dentro do
coração dele. A única que ele sentia e não estava ligado a dor.
Então, mais uma vez, ele se perguntava: por que você foi tão
estúpid, Corvo? Os fantasmas não deveriam assustá-lo mais.
Ele não tinha mais quatorze anos, per Déu.
Perdido nos pensamentos, Aidan subiu as escadas lentamente
e foi para a cafeteira, pegando um copo cheio e quente de café para
si. Resmungou cumprimentos e desceu para os arquivos. Tinha a
intenção de dar mais uma olhada em algumas pastas que tinha
separado no dia anterior e as recolheu, acenando para Connor atrás
de seu balcão.
Tomou mais dois copos de café ao terminar a terceira pasta e
suspirou. A maior parte dos relatórios tinham marcações pretas
sobre as letras, tornando impossível de ler. Empurrou as pastas
para longe e suspirou, olhando para o relógio e vendo que se
passava das nove. Saiu dos arquivos e subiu para o andar do
Departamento de Homicídios e o zumbido habitual o cumprimentou
ao passar pela porta. Seus olhos vasculharam o lugar como sempre
fazia, mas sabia que não encontraria quem estava procurando.
Afinal, Damien estava... de licença?
Aidan cerrou os olhos, apenas para arregalá-los em seguida.
Damien estava no centro de uma pequena roda de policiais,
sorrindo, sentado meio de lado na quina de sua mesa, usando uma
blusa de lã verde oliva de gola redonda. Ava estava sentada em sua
cadeira de rodinhas e olhava para o grupo com ar de riso,
balançando sutilmente a cabeça enquanto Cam rangia os dentes.
Voltando a olhar o centro da roda, sentiu o ar ser tirado de seus
pulmões quando os olhos verdes pálidos com toque de ouro
estavam fixos nele.
Engolindo em seco, fez seus pés se moverem mesmo que
parecesse estar tão pesado quanto chumbo. Ainda com as mãos
enfiadas nos bolsos, Aidan se aproximou e o grupo se abriu como o
Mar Vermelho ao dar passagem para ele. Mais tapinhas no ombro
de Damien foram seguidos de murmúrios, antes que os policiais se
afastassem e Aidan estava frente a frente com o homem que
marcava seus pensamentos dia e noite.
Um homem usando um bigode mustache ridículo.
— Uau. Callaghan está atrasado pela primeira vez na história.
— Damien riu, mas Aidan viu a tensão no som. — Parece surpreso
em me ver, Callaghan. Pensou que estava livre de mim?
Ele pensou, mas desejou no fundo da sua alma quebrada que
não fosse verdade. Olhando para as marcas no pescoço de Damien,
a culpa pesou sobre seus ombros mais uma vez, mas não tão forte
quanto antes. “O que acontece no mundo, as coisas ao seu redor,
não é culpa sua”.
Cruzando os braços, Aidan inclinou levemente a cabeça ao
olhar para o homem.
— Você não deveria estar de licença?
— Deveria. — Damien assentiu, levantando-se devagar e
parando na frente de Aidan com um sorriso arrogante. — Mas eu
tenho o péssimo costume de não obedecer às pessoas. Assim, não
pense que vai se livrar de mim tão cedo, Corvo.
Aquela pequena declaração poderia ser apenas sobre
trabalho, mas Aidan sabia que não era sobre isso que Damien
estava falando. Suas últimas palavras no quarto de hospital ainda
pareciam muito frescas em sua mente antes do som da porta se
fechando formasse um eco se misturando a dor dos sentimentos
confusos de Aidan. Ele não sabia se ficava feliz com isso, ou
completamente conturbado. A ideia de se afastar de Damien não
era para protegê-lo?
Proteger de quê? Do próprio Aidan? Ou da máfia? Stanton?
Já nem sabia mais.
— Idiota arrogante — Cam murmurou antes de se afastar.
Aidan abriu a boca, sem saber o que responder, quando o
telefone na mesa de Damien tocou e o homem se curvou para
atendê-lo. A blusa de lã verde oliva subiu com o movimento e uma
faixa de pele se mostrou para Aidan. E a ponta de uma cicatriz
avermelhada o fez trincar os dentes, desviando os olhos para o lado
e encontrando Ava o analisando com olhos cerrados. Colocando o
telefone no gancho, Damien pegou a jaqueta preta grossa da
cadeira e enfiou os braços.
— Nós temos um caso, Callaghan. Vamos, mova essa sua
bunda bonita para o carro — dizendo isso, Damien saiu caminhando
por entre as mesas do departamento.
Piscando, Aidan sentiu as bochechas esquentarem quando
alguns pares de olhos se voltaram para ele. Pigarreando, puxou a
lapela do sobretudo e estalou o pescoço antes de desviar das
mesas em direção à saída. E, se Aidan não quisesse perder sua
carona, tinha de correr.
Caminhou rápido para a saída quando viu Damien deixando a
recepção e descendo as escadas. Pegando-o no segundo lance, viu
que ele arfava um pouco, sua mão segurando a lateral esquerda. Do
lado de fora, Aidan apertou os olhos ao ver Damien puxando o ar
com um pouco mais de força que o normal e tateando os bolsos
atrás da chave.
— Evans, tem certeza de que está bem para trabalhar?
— Tenho. E você saberia disso se não tivesse me deixado
sozinho no hospital.
Aidan se encolheu, desviando os olhos para os sapatos. Ele
pensou quanto tempo demoraria para Damien soltar suas garras e
cravar os dentes na jugular. Não muito, Aidan percebeu.
— Eu...
— Não. Nós não vamos ter essa conversa agora, no horário de
trabalho. — Damien balançou a cabeça, tirando a chave do bolso.
— Mais tarde. Preciso ficar concentrado no caso e, se falarmos
sobre sua estupidez no hospital e nas semanas seguintes, vou ficar
muito irritado.
Aidan assentiu lentamente enquanto Damien desbloqueava o
carro e sentava atrás do volante. Inspirando profundamente, Aidan
abriu a porta e sentou sobre o couro macio e lutou contra a vontade
de fechar os olhos ao sentir o aroma de Damien tomando toda a
parte interna do veículo. Você só percebe que precisava de algo
quando é esfregado em seu rosto. E era exatamente assim que
Aidan estava se sentindo ao ter seus pulmões cheios daquele cheiro
de colônia que o lembrava de natureza e frescor.
Maleir-te[4].
Pigarreando, perguntou:
— Aonde estamos indo?
— Flemingdon Park. Aparentemente, uma garota foi
encontrada dentro de uma mala jogada na lixeira.
Cum[5], um dos bairros mais famosos por ter uma das escolas
mais violentas da cidade. Cerrando os dedos sobre as coxas, Aidan
virou o rosto para a janela e o manteve assim por boa parte do
caminho. O silêncio tenso entre eles quebrado apenas pelo som do
rádio tocando músicas dos anos 80. Conhecia muito bem o gosto
musical de Damien. Aidan ouviu diversas músicas enquanto eles
percorriam por Toronto, indo para cena de crimes ou até o CFS[6].
Quanto mais parava para pensar, mais ele se sentia estúpido.
Suas convicções daquele dia não pareciam tão importantes mais.
Seus medos, se comparados a tudo que Damien sofreu naquela
noite, se tornaram desbotados. Porém, não tinha como desfazer
suas ações e tudo o que sucedeu nos dias seguintes. A distância
que Aidan impôs, o silêncio. Muitas vezes, a quietude machucava
muito mais do que palavras.
O longo caminho dentro de Rosedale Valley Rd era repleto de
árvores altas, cheias de folhas alaranjadas e caindo com o inverno.
Aidan olhou de canto para Damien, as mãos segurando o volante
com um aperto mortal. Era visível o quanto estava irritado. A
mandíbula trabalhando, a veia pulsando na garganta e fazendo
aquelas marcas ondularem. Ele abriu a boca, apenas para fechá-la
quando Damien praticamente rosnou. Franzindo os lábios, olhou
para seus dedos cruzados.
Haveria outra chance para eles? Ou era tarde demais?
Aidan tinha fodido tudo como sempre fazia?
Engolindo com dificuldade, voltou a olhar para a janela, seu
polegar desenhando círculos sobre a coxa.
— Sinto muito — sussurrou.
— Jesus Cristo, Callaghan — Damien murmurou.
— Se trabalhar comigo se tornar difícil, posso pedir para ser
mudado de parceiro...
A risada de Damien soou como um latido ferido. Isso fez Aidan
se encolher, fechando os olhos quando a dor que emanou de
Damien o atingiu.
— Mudar de parceiro, hein? Tão fácil assim, Corvo?
Foda-se aquele pensamento sobre o silêncio machucar mais
que as palavras. Naquele momento, Aidan estava se sentindo
rasgado a cada frase que Damien proferia.
— Quero apenas tornar mais fácil para você.
— Não. Você quer fugir, como sempre fez. — Damien parou o
carro no semáforo no cruzamento entre Rosedale Valley e Bayview
Ave, virando para olhar para Aidan. Aqueles olhos verdes com
pontos de ouro cerrados. — Fugir dos seus medos. Mas, desta vez,
você não vai. Está preso comigo até o final, Callaghan. E para o
inferno com você me dizendo que acabou. Porque não acabou.
— Eu acho...
— Você não acha nada — Damien rosnou, empurrando a
primeira marcha como se a culpa de tudo aquilo fosse do câmbio, e
acelerou quando o sinal abriu. — Certo, você quer conversar agora?
Você realmente quer?
Aidan abriu a boca, apenas para fechá-la quando Damien
continuou sem esperar sua resposta.
— Pois bem. Você, mais do que ninguém, deveria saber o que
eu estava passando naquela porra de hospital. Eu estava sentindo
dor, Aidan. Dor. Física e emocional. E o que você fez? — Damien
apertou o volante, o pé afundando no acelerador ao sair pela
rodovia. Aidan agarrou a porta quando ultrapassaram pela esquerda
em alta velocidade. — Você simplesmente saiu! Fechou a porta. Na.
Minha. Cara. Duas malditas semanas se passaram e você olha pra
mim e diz: sinto muito?
O carro passou voando por um caminhão, a mão de Damien
batendo na seta e freando bruscamente ao fazer uma conversão
para entrar na Don Valley Pkwy que teve o ombro de Aidan batendo
contra a janela.
Cels, Damien ia matá-los se continuasse naquela velocidade.
No rádio, “Running Up That Hill” começou a tocar, a batida se
misturando com o som do coração de Aidan em seus ouvidos.
— Damien...
— Não! Você me deixou lá, naquele hospital, totalmente
quebrado. Me deixou sozinho com os pesadelos de Samael sobre
mim! Quando acordava no meio da noite, você não estava lá! Então
não diga que você sente muito! — Damien rugiu, lágrimas
escorrendo por suas bochechas. — Não diga isso quando ainda
estou tão machucado. Não quando sinto tanto sua falta e nem
mesmo consigo odiá-lo por isso! Não quando seus medos foram
maiores do que a esperança de que nós dois pudéssemos ser algo
mais.
A voz de Kate Bush soava pelos alto-falantes, parecendo
ecoar os sentimentos de Damien e vibrando pela pele de Aidan. “It
doesn't hurt me (Ye-yeah, yeah, yo) Do you want to feel how it feels?
(Ye-yeah, yeah, yo) Do you want to know. Know that it doesn't hurt
me? (Ye-yeah, yeah, yo)[7]”.
— Pensei: “agora que descobriu meu segredo, vai me odiar.
Por isso ele está partindo”. Que idiota. Eu disse que estaria lá para
você, mas você não disse isso pra mim, né? Criei esperanças e
expectativas pelo que achei que você sentia, mas acho que foi tudo
coisa da minha cabeça fodida.
Damien riu, seu pé saindo do acelerador ao fazerem o
contorno e entrarem na Don Mills Rd., serpenteando até a Gateway
Blvd e pelas ruas afastadas da periferia. A música trocou e o
assobio de “Patience[8]” encheu o interior do veículo. Os olhos
verdes de Damien brilhavam lacrimosos quando se virou para olhar
para Aidan.
— Eu imaginei tudo, Aidan?
Com o coração doendo, o Corvo negou com a cabeça uma vez
e Damien assentiu pesadamente. Aidan queria atravessar o
pequeno espaço e envolver o homem dentro de seus braços,
apertando perto de si. Garantir que tudo ficaria bem dali pra frente.
Mas, realmente ficaria?
Enxugando as bochechas com a manga da jaqueta grossa,
Damien fungou e estacionou no final do parque. Ao longo da rua do
lado esquerdo, podia ser visto as fitas amarelas voando com o vento
e o grupo de peritos trabalhando. Alguns curiosos ao redor como
abutres. Damien desligou o carro e olhou sério para Aidan.
— Imagina como me senti quando descobri que você fugiu por
outro motivo. Que você já sabia sobre meu segredo, investigando
sozinho, sendo uma porra de espião. — Damien balançou a cabeça.
— Sim, eu sei sobre seu trabalho para o Stanton, já que Kiam me
fez o favor de contar ao invés de você.
— Què[9]? — Aidan piscou, incrédulo.
— Sim. E, se aquele pretensioso do White sabe, é porque a
Pops sabe. Ou seja, sua cabeça está na mira, idiota. Exatamente
como Julian — Damien abriu a porta, o vento frio serpenteando para
o interior quente. — Diálogo, Aidan. Relacionamentos funcionam à
base de conversa. Se tivesse dito pra mim, se tivéssemos
conversado, teríamos chegado a alguma conclusão juntos. Mas
você fugiu como uma pássaro arisco.
Engolindo em seco, Aidan não sabia o que responder. Nunca
alguém tinha sido tão assertivo sobre as ações de Aidan como
Damien estava sendo. E isso o deixava desconcertado,
envergonhado.
— Corvo teimoso — Damien resmungou. — Vamos terminar
essa conversa depois, na minha casa, ouviu? Temos que nos
concentrar no trabalho agora.
Damien saiu do carro como uma nuvem de tempestade.
Concentrar no trabalho? Como? Não depois daquela bomba que
Damien havia jogado sobre o colo de Aidan como se não fosse
nada. Se a Pops sabia que estava sendo investigada, seria apenas
questão de tempo de tudo dar completamente errado. Era por isso
que a Pops havia investigado seu passado?
Maledicció[10].
E ele havia pensado que era porque estava trabalhando na
TPS com Damien. Franzindo os lábios, Aidan empurrou a porta e
saiu para o vento frio do inverno, suas botas afundando na neve.
Praguejando, bateu a porta e enfiou as mãos nos bolsos, afundando
o queixo na gola de sua blusa de lã preta. Com o frio intenso, Aidan
teve de abandonar os ternos e as gravatas, substituindo por blusas
grossas.
Inspirando e rolando os ombros, deixou a conversa no carro e
seus outros problemas empurrados em um canto escuro da sua
mente. Damien o queria focado, dret[11]? Se aproximando do local,
olhou ao redor e percebeu o quão ermo era ali. Um parque enorme
de um lado e então ruas espaçadas e com um prédio ao longe. Do
outro lado ficava o colégio. Um parquinho infantil com algumas
crianças brincando a poucos metros de onde os peritos
trabalhavam.
Calçando suas luvas de látex pretas, Aidan passou pela fita
após desviar de alguns civis e viu uma mala marrom claro aberta, o
corpo um pouco dobrado ao lado e uma massa de cabelos
castanhos escuros e cacheados balançando com o vento.
— Ei, por que seus olhos estão vermelhos? — Lohan
perguntou para Damien, guardando um cotonete com sangue
coletado.
— É o frio — retrucou e fungou, a ponta do nariz vermelha.
Jack franziu as sobrancelhas.
— Não estava de licença, Evans?
— Essa é a terceira vez que ouço a mesma pergunta —
Damien respondeu ao cruzar os braços.
— Talvez seja porque você deveria estar de licença? — Aidan
cutucou, dando a volta e cumprimentando Lohan rapidamente.
— Meu médico me proibiu apenas de fazer exercícios físicos.
Ir à uma cena de crime não conta como exercício.
— Então, por que está ofegante? — Lohan perguntou e
ganhou uma carranca de Damien.
Aidan sorriu de lado, lembrando de como sentiu falta disso.
— O que nós temos, Doc? — Damien mudou o foco da
conversa para longe dele.
Jack suspirou ao levantar.
— Garota branca, cerca de um metro e sessenta centímetros,
entre dezessete e vinte anos. Não identificada. Estamos pegando
suas impressões para conseguir encontrar algo no sistema.
— Não havia uma carteira com ela? — Aidan perguntou,
olhando para a mala aberta ao lado do corpo da menina.
O moletom cinza parecia folgado no corpo miúdo, a gola e o
capuz com manchas de sangue. O interior da manga esquerda tinha
um rasgo, a parte interna do braço com um corte longo de quase
quinze centímetros. Teria sido feito por uma faca? Aidan agachou e
ergueu o pedaço rasgado da manga, olhando o corte seco. Era mais
como um arranhão profundo. Uma faca não faria isso.
— Não encontramos nada nos bolsos além de um cartão. —
Lohan estendeu o saco plástico contendo o objeto retangular
vermelho. — Está no nome de Oriol Armand.
— Que tipo de assassino burro deixaria seu cartão para trás?
— Damien questionou ao pegar o saco da mão de Aidan e dar uma
olhada.
— Um que não tinha intenção de matar? — Aidan arriscou,
pegando seu telefone e discando o número de Herzog.
— O que está fazendo? — Damien perguntou, cruzando os
braços.
— Ligando para Herzog para procurar o dono do cartão.
— Me dê aqui. Deixe-me falar com ele.
Dando de ombros, Aidan passou o telefone para Damien.
Desviando os olhos para a garota, observou o rosto machucado que
um dia pode ter sido bonito. O olho esquerdo estava inchado, o
supercílio cortado e o nariz provavelmente quebrado. O lábio inferior
estava partido, a maçã do rosto arroxeada. Alguém tinha sido
bastante agressivo.
— Quem a encontrou?
— A coleta de lixo. — Lohan ficou de cócoras, os braços
apoiados nas coxas ao erguer a cabeça e olhar para Aidan. — Eles
deveriam ter passado às seis da manhã, mas houve um problema
no caminhão e eles atrasaram a rota.
— Qual a causa da morte? — Damien perguntou após desligar
e devolver o telefone para Aidan.
Se curvou levemente, uma mão apoiando o lado direito e
cerrando os olhos. Aidan não sabia se era de dor ou para olhar
melhor o cadáver.
— Provavelmente golpe na cabeça, atingida por um objeto
contundente. Pode ter sido empurrada ou atingida de propósito,
entre as nove e onze da noite. — Jack coçou abaixo do queixo,
pensando. — Preciso examinar com cuidado para ter uma resposta
exata. Os machucados da face foram feitos antes da morte, assim
como o corte no braço. É uma grande bagunça, entretanto, não há
sangue na mala.
— Isso pode indicar que a pessoa que a colocou ali levou
algum tempo limpando o local do crime antes de colocá-la dentro da
mala e então despejá-la na lixeira. — Lohan completou.
— Potser[12], quando o agressor dava os golpes, a vítima tenha
caído e ele entrou em pânico? — Aidan ponderou.
— Assim, o agressor não sabia o que fazer, o que resulta na
demora para colocá-la na mala. E, quando o faz, o sangue já está
empoçado em outro local. — Damien olhou para Aidan. — A
pergunta é: onde é o verdadeiro local do crime?
Aidan assentiu.
— As roupas também parecem grandes demais para ela.
Assim como os sapatos. — Aidan caminhou ao redor, olhando. —
Não há uma única câmera por perto?
— Nada. A única que pode ter, e se tivermos sorte de estar
ligada, fica no prédio a mais de cinquenta metros daqui. — Jack
gesticulou ao longo da rua. — Sem testemunhas se dependermos
do horário. E, se houver alguma, você não vai ter ela batendo na
porta da TPS. Você viu onde estamos, certo?
— O assassino sabia que ao despejá-la aqui, seria difícil ser
visto. — Damien bufou, impaciente.
— Isso me faz refletir se realmente foi premeditado ou algo
completamente inesperado. — Aidan enfiou as mãos nos bolsos e
suspirou. — Mas, por que há um cartão nos bolsos? O assassino
teria todo o trabalho de mover o corpo até uma lixeira apenas para
esquecer seu próprio cartão com a vítima?
— E as roupas? Por que ela estava usando roupas assim? —
Damien enrolou a ponta do bigode entre os dedos.
Aidan cerrou os olhos para aquele gesto, mas Lohan foi mais
rápido quando riu.
— Desculpe, Inspetor Evans, mas o senhor está parecendo o
Mario com esse bigode.
— Qual Mario? — Damien cerrou os olhos e Jack riu.
— Mario Bros. Do videogame.
Damien fungou e Aidan disfarçou a risada com uma tosse.
— Estava pensando mais como Henry Cavill em “Missão
Impossível: Efeito Fallout”.
— Se você está dizendo — Lohan murmurou, rindo baixinho e
voltando ao seu trabalho.
O telefone de Aidan tocou vibrou em seu bolso e ele o tirou,
olhando no visor e vendo que se tratava de Herzog.
— Hola, senyor Herzog. Com estàs? — disse assim que
atendeu.
— Urgh, você faz isso apenas para me irritar, não é? —
Herzog resmungou.
— Sí. Encontrou o dono do cartão?
— É claro que eu achei. Não ia ligar para você apenas para
ouvir o doce som da sua voz rabugenta. — Vlademir bufou e Aidan
tinha certeza de que o noi strany[13] estava revirando os olhos. —
Uma viatura foi procurá-lo.
— Gràcies. Obrigado, Herzog. — Guardando o telefone no
bolso, virou para Damien. — O suspeito está sendo procurado.
— Ótimo. — Damien esfregou os olhos e jogou a bolsa com o
cartão para Aidan antes de girar e caminhar pela calçada. — Vamos
dar uma olhada nessa câmera.
Devolvendo o cartão para Lohan, Aidan se afastou da cena
com passos pesados enquanto Jack curvou sobre a vítima, prontos
para ensacá-la. Um grito infantil seguido de uma gargalhada
irrompeu no meio daquele silêncio mórbido. A maior parte dos
curiosos já haviam se dispersado. Por ser uma área escolar, Aidan
esperava um pouco mais de barulho. Cadeiras arrastando,
conversas de adolescentes.
Entretanto, a escola parecia muito quieta. Aidan atravessou
correndo para o outro lado e viu quando Damien desapareceu pelo
portão baixo e subiu a rampa até a portaria. Para um homem com
costelas em recuperação, Damien parecia muito ativo. Erguendo os
olhos para a única câmera do prédio, Aidan exalou ao perceber que
estava virada para baixo.
— Mesmo que esteja ligada, essa porcaria não gravou nada
além do chão. — Damien gesticulou para o aparelho e então para a
rua. Coçando a bochecha, balançou a cabeça. — Isso não nos
ajuda em nada.
— A rua de travessia é bastante movimentada e com blocos
menores de oficinas. Talvez eles tenham algo?
— Difícil — Damien retrucou sombriamente. — Essa área é
conhecida por garotos problemáticos e vândalos.
Assentindo, Aidan cruzou os braços.
— Vamos ter que esperar descobrirem a identidade da garota
para podermos vasculhar seu círculo social.
— O dono do cartão pode ser uma boa pista. — Damien
apontou. — Vamos voltar para a sede. Ou você quer dar uma
olhada na próxima rua?
— No. Não acredito que vamos achar algo.
Em comum acordo, ambos voltaram para o carro. Aidan tinha a
sensação de que estava com as mãos vazias até agora e esperava
que Oriol Armand fosse a resposta de algumas perguntas daquele
caso.
Aquele não estava sendo um dos seus melhores dias. Damien
torceu os dedos no volante, pensando se havia levantado da cama
com o pé esquerdo apenas para se lembrar que mal havia dormido
por causa dos pesadelos. Seus olhos estavam abertos desde às
quatro da manhã. Talvez fosse a falta de sono o deixando mais
irritado que o normal. Ou talvez fosse Aidan Callaghan sentado no
banco do carona e deixando o carro impregnado com seu cheiro de
canela, café e couro.
Damien não tinha dito tudo o que estava engasgado em sua
garganta, ou mesmo tocado tão profundamente a dor que sentia.
Todavia, o que iria adiantar? Aidan sabia que havia causado dor
com aquela atitude e ambos estavam sofrendo por aquilo. Qual o
sentido de prolongar?
Inferno, aquela cena de crime havia demonstrado quão bem
eles trabalhavam juntos. Suas mentes objetivas pensando a mesma
coisa, indo pelo mesmo caminho, como uma máquina bem
lubrificada e suas peças encaixadas. Faltando apenas duas quadras
para chegar à TPS, Aidan grunhiu ao gesticular na direção da
calçada.
— Si us plau, por favor. Pode parar aqui?
Damien cerrou os olhos, mas decidiu não perguntar. Parando e
ligando o pisca alerta, Aidan abriu a porta e falou sem olhar para
Damien.
— Te encontro na sede. Não vou demorar.
— É melhor mesmo. Ou começo o interrogatório sem você.
A porta bateu, mas Damien ainda ouviu o grunhido
descontente. Balançando os ombros, saiu da vaga e deu a volta no
quarteirão. Pensando bem, deveria ter deixado o carro onde estava.
As vagas eram escassas por ali...
Conseguindo encontrar um lugar, por puro golpe de sorte,
Damien saiu do carro e inspirou o máximo que pode o ar frio. Suas
costelas doíam e isso o fez torcer o rosto em uma careta ao apertar
a palma contra o lado direito. Talvez não tenha sido uma boa ideia ir
trabalhar. Podia ouvir a voz do médico ecoando em sua cabeça
sobre exercícios físicos quando olhou para os degraus. Ele poderia
passar a usar o elevador. Então lembrou de quantas pessoas
entravam e saiam em cada andar e como isso o atrasava.
Ainda debatendo sobre os prós e os contras de usar o
elevador, subiu devagar os degraus da frente quando Aidan virou a
esquina correndo. Parando perto da porta, Damien franziu as
sobrancelhas ao ver uma pequena sacola na mão enluvada do
Corvo.
— Aonde você foi?
— Precisava comprar isso.
Aidan pegou a mão de Damien e colocou a sacola sobre ela.
Arqueando as sobrancelhas, abriu com cuidado e espiou o lado de
dentro ao mesmo tempo em que Aidan falava:
— Você está irritado. Sei que parte é culpa minha, mas acho
que também é falta de glicose no seu sangue.
Damien puxou o saquinho de Skittles para fora e o balançou.
— Acha que pode me comprar com doces?
Aqueles olhos escuros desviaram para o chão, as bochechas
afiadas escurecendo onde a barba não chegava. Aquela expressão
envergonhada de Aidan era algo tão incomum e raro que deixou
Damien com o coração apertado. O Corvo se balançou sobre os
pés, as mãos enfiadas nos bolsos da calça Gurkha[14] de lã preta.
Damien não era um homem estiloso e nem tudo ficava bem nele.
Porém, Aidan era um caso à parte. O homem de cabelos pretos
grossos, pele bronzeada e profundos olhos escuros poderia estar
vestindo saco de batata e ainda estaria irresistível.
— No era la meva intenció... — Aidan pigarreou. — Não era
minha intenção, mas... funcionaria, caso fosse?
Piscando devagar, Damien guardou o saco de Skittles de volta
na sacola e fungou.
— Não. — Damien virou nos calcanhares, acrescentando
sobre o ombro: — Talvez.
Ele subiu os degraus enquanto Aidan sorriu sutilmente às suas
costas. Não poderia esquecer tudo o que aconteceu só porque
Aidan comprou um pacote de seu doce preferido. Ele tinha orgulho.
Seu coração bateu mais forte, sua mão agarrando a sacola em um
aperto de morte contra o peito.
Jesus Cristo, ele era um otário.
Na entrada, foi informado que o suspeito ainda não havia sido
encontrado, o que deixou Damien frustrado. O zumbido familiar o
cumprimentou assim que passou pela porta e tentou fingir que não
estava tendo problemas para respirar. O que ele não daria por uma
cama confortável agora e um bom descanso? Um grupo de
detetives conversava quando Damien passou próximo e escutou
parte do que comentavam.
— ...um grande tiroteio em Regent Park ontem. Provavelmente
outro conflito da máfia.
— Ginger estava falando mais cedo que houve muitas mortes.
Civis e policiais. — O detetive Müller balançou a cabeça.
— Briga por território? — A detetive Diaz perguntou,
estourando uma bola de chiclete em seguida.
— Não fiquei sabendo de nada. O jornal da manhã estava
noticiando, mas também não tinham muitas informações.
Aquilo deixou o humor de Damien sombrio. Não era a primeira
vez que algo assim acontecia e sabia que não seria a última. Todos
sabiam que Regent Park era o bairro pobre mais habitado por
traficantes e ladrões, um prato cheio para a Pops e sua gangue.
Muitos achavam que aquele era o ninho, mas estavam terrivelmente
enganados. Olhando sobre o ombro viu o rosto soturno de Aidan.
— Se você continuar o que está fazendo, é assim que pode
acabar.
Aidan fez uma careta. Passando por sua mesa, Damien jogou
a sacola contendo o doce dentro da segunda gaveta e tirou a
jaqueta grossa, pendurando-a no encosto da sua cadeira. O relógio
marcava dez e cinquenta e cinco quando Damien ligou seu
computador e Aidan o imitou, tirando algumas pastas da gaveta.
— O que é isso?
— Alguns casos da semana passada que estou fechando —
grunhiu. Aidan ergueu os olhos para Damien. — Você quer me
ajudar enquanto espera?
Sem ter outra escolha, puxou a pasta marrom de cima da pilha
e a abriu enquanto encolhia o ombro.
— Não vai fazer mal.

Damien apoiou o queixo no punho, seus olhos presos no


relógio do computador indicando duas e quarenta e cinco da tarde.
Como uma busca por um suspeito poderia demorar tanto? Já tinha
perdido a conta de quantas vezes havia ligado para o escritório de
Jack, perguntando sobre algum resultado. As respostas eram as
mesmas. Muitos corpos, muito trabalho atolado e o Doc ainda não
tinha analisado a garota.
A última ligação de dez minutos atrás, Jack tinha desligado na
cara de Damien após mandá-lo ir se foder. Então só caía na caixa
postal. Estava pensando seriamente que Jack tinha bloqueado
Damien. E, para deixá-lo mais irritado, Aidan concordava com o
Doc.
“Eu também teria feito isso se fosse ele.”
“É claro que faria. O Corvo é ótimo em bloquear as pessoas
quando não quer conversar.”
Não tinha sido uma alfinetada intencional, mas fez Aidan se
encolher. Estava tamborilando os dedos sobre a pasta aberta em
sua mesa quando seu nome foi chamado da porta. Levantando
como que ejetado por uma mola, caminhou na direção do oficial que
apontava com o polegar sobre o ombro.
— Seu suspeito em custódia está na sala dois, Inspetor. E
essa aqui é a ficha dele.
— Já era sem tempo, hein? — Damien bufou ao pegar a pasta
fina e olhar por cima das duas folhas dentro. — Aonde vocês foram
buscar o cara? Do outro lado do estado?
— Ah... Ele não estava em casa, senhor. Nem no trabalho.
Descobrimos que hoje é seu dia de folga e só o encontramos agora.
— O oficial encolheu os ombros como desculpa.
— Tudo bem. Bom trabalho, de qualquer forma.
— Às ordens, senhor. — Acenando, o oficial se afastou
deixando Damien e Aidan se olhando.
— Então? — Aidan perguntou.
— Vamos conversar com Oriol Armand.
Aidan grunhiu em concordância. Damien liderou o caminho até
o longo corredor que levava para as salas de interrogatório e viu a
luz acesa com o número dois no centro. Segurando na maçaneta,
de repente se sentiu inseguro. Encostando o ombro na porta, olhou
para Aidan.
— Como você quer fazer isso?
— Como sempre fizemos. — Aidan cruzou os braços, seu
rosto suave. — Somos bons em sermos nós mesmos.
Eles realmente eram. E não apenas em interrogatórios.
Assentindo, empurrou a maçaneta e abriu a porta. Entrando na
sala, Damien olhou direto para a mesa de interrogatório e estancou
no lugar quando olhos furiosos se fixaram nos dele. O cabelo preto
grosso caía em uma franja longa pela lateral direita do rosto, lábios
apertados. Seus olhos castanhos não eram tão escuros, mas
emanavam fúria.
Inacreditavelmente, era como se Damien estivesse olhando
para um Aidan mais novo.
Oriol desviou os olhos para além de Damien e as sobrancelhas
escuras vincaram. Jesus Cristo, a forma como Oriol olhava era
idêntico ao jeito que Aidan olhou para Damien a primeira vez que se
encontraram. Como se Damien tivesse a culpa das calotas polares
estarem derretendo pelo aquecimento global e isso deixava o Corvo
furioso.
Porra, o que estava acontecendo ali?
Tinha entrado no multiverso da loucura?
— O que ele está fazendo aqui? — Oriol perguntou quase em
um rosnado.
— Ah... — Damien olhou para Aidan e então para Oriol de
volta. — Eu sou o Inspetor Detetive Evans, encarregado deste caso.
Este é...
— Antoni Fuentes — Oriol disse entredentes, seus dedos se
fechando em punhos sobre a mesa. — Eu não vou falar com ele.
Que merda ele está fazendo aqui? Saia! Eu não fiz nada e não
quero esse cara na mesma sala que eu!
Jesus Cristo, por que Damien não tinha lido a ficha do garoto
direito?
— Ei, ei, ei! — Damien entrou na frente de um Aidan silencioso
e gesticulou para Oriol. — Acalme-se, ok? Aidan Callaghan é meu
parceiro. Nós temos perguntas a fazer e você não está em posição
de exigir nada agora.
Oriol mexeu os punhos, grunhindo. Damien tornou a olhar para
Aidan, percebendo que o homem estava lívido. Como que em um
transe, seus olhos vidrados observavam Oriol com assombro e,
então, Damien viu o exato momento que algo clicou na cabeça de
Aidan e todo aquele olhar perdido se tornou uma fúria insana.
Espalmando as mãos no peito de Aidan, tentou conter a
avalanche sombria de um metro e noventa de desabar sobre Oriol.
— Qual o nome da sua mãe? — Aidan rosnou, avançando e
empurrando Damien contra a mesa como se ele não fosse nada. —
Qual o maldito nome da sua mãe?!
— Aidan, você precisa se acalmar — Damien disse, tentando
empurrar Aidan para trás.
Mas o homem era como uma montanha. Músculos tensos
abaixo das palmas de Damien, veias saltando no pescoço, olhos
escuros cheios de raiva explosiva. Olhando sobre o ombro,
percebeu que Oriol não ostentava mais a pose de garoto mau de
quando eles entraram. O garoto ficou de pé e se afastou da mesa,
completamente assustado. Seus olhos castanhos arregalados,
lábios franzidos e pálidos.
— A l'infern amb la calma! Tu, respon'm, carai! Quin és el nom
de la teva mare[15]?
— Gemma. Gemma Fuentes — Oriol sussurrou.
Oh, merda.
Merda, merda, merda!
Filho de Gemma? Isso queria dizer que... Porra. Aquilo era
uma brincadeira sombria do destino.
Aidan tornou a avançar, Damien o segurando nos ombros e
sentando com metade da bunda sobre a mesa. Suas costelas
gritaram pelo esforço repentino e ele ofegou, mas Aidan parecia
cego pelo ódio.
— Quants anys tens[16]?
— Dinou[17].
Dando um passo para trás, era como se Oriol acabasse de dar
um soco em Aidan. Damien esfregou o rosto, segurando um gemido
de dor. O Corvo passou a andar de um lado para o outro, as mãos
passando pelos cabelos uma e outra vez e os deixando
assanhados. Damien precisa tomar o controle daquela situação ou
eles perderiam o caso.
— Callaghan, preciso que saia e se acalme.
Os olhos escuros de Aidan viraram para Damien como adagas.
— Eu não vou sair.
— Você está deixando o suspeito nervoso e você não está em
condições de...
— Maleir-te! Esse garoto é filho de Gemma. Provavelmente
de... Jeff. — Aidan fechou os olhos, engolindo com dificuldade como
se dizer aquele nome levasse ácido em sua boca. — Não precisa
ser interrogado. Provavelmente é culpado!
— Aidan, saia desta sala agora — Damien disse, apontando
para a porta.
— Para o inferno, Evans! — Aidan rugiu. — Você vai prender
esse garoto. Agora.
— Ok, certo. Já basta!
Damien agarrou o braço de Aidan e o rebocou para fora da
sala. A porta bateu e o homem tentou escapar de suas garras, mas
Damien foi mais rápido. Agarrando as lapelas do sobretudo,
empurrou o Corvo contra a parede e o manteve preso lá.
— Me solte!
Segurando-o com força, Damien engoliu a vontade de bater o
homem uma e outra vez até um pouco de discernimento entrar
naquela cabeça oca.
— Você não manda em mim, porra. Pode estar trabalhando
como meu parceiro, mas sou o superior por aqui. E, como superior,
estou mandando você se acalmar. — Cerrando os dedos na lapela,
Damien socou os punhos no peito de Aidan uma vez. — Concentre-
se, Callaghan, ou vamos perder esse caso.
Exalando, Aidan pareceu desinflar na frente de Damien.
Sentindo que o homem estava um pouco mais controlado, o soltou e
deu um passo para trás. Apertando a ponte do nariz entre o polegar
e o indicador, Damien inspirou devagar e tentou não estremecer
com a dor que sentia. Porém, Aidan pareceu perceber.
— Perdó, Damien. Sinto muito — murmurou.
— Você está falando muito isso hoje — Damien suspirou e
balançou a cabeça. — Vá dar uma volta, esfrie a cabeça. Vou
continuar o interrogatório sozinho.
— Eu posso...
— Não — Damien disse com firmeza e balançou a cabeça. —
Você não pode. Se aquele garoto realmente for seu irmão, isso já
vai complicar as coisas. Eu preciso de você calmo, Callaghan.
Consegue fazer isso? — perguntou, olhando nos olhos escuros do
Corvo.
Assentindo uma vez, Aidan enfiou as mãos nos bolsos.
— Consigo.
— Ótimo. — Damien hesitou por um momento, olhou pelo
longo corredor e se aproximou de Aidan. Colocando a mão no
centro do peito duro, sentiu o coração martelando furioso sob a
palma. — Sei que isso não está sendo fácil, descobrir dessa forma.
Depois de tudo... ainda estou aqui. Tudo bem?
A mão enluvada de Aidan apertou a de Damien contra ele e
entrelaçou os dedos. Ele assentiu, pegando a mão de Damien e
deixando um beijo no pulso antes de soltar e caminhar pelo
corredor. Observou o homem soturno de ombros caídos
desaparecer na esquina e só então endireitou os próprios ombros e
abriu a porta novamente.
Oriol estava olhando para os dedos entrelaçados, apertados
até os nódulos ficarem brancos. A franja caía sobre os olhos como
uma cortina, impossibilitando Damien de ver quaisquer sentimentos
que pudessem estar passando neles. A pele das mãos e do rosto
era um pouco mais clara que a de Aidan, e sem marcas. Parecia
macia, como as mãos de uma pessoa que nunca precisou trabalhar
com algo pesado. Ou que teve cigarros sendo apagados nela.
Balançando a cabeça, Damien recolheu a pasta que tinha
caído no chão e puxou a cadeira para sentar. Oriol manteve os
olhos nas mãos. Colocando o gravador sobre a mesa, Damien
clicou no botão.
— Inspetor Detetive Damien Evans interrogando o suspeito
Oriol Armand. Estou gravando nossa conversa para possível análise
de caso. Tudo bem para você, Oriol?
Ele assentiu e Damien bateu o indicador sobre a mesa.
— Fale alto. Preciso da sua voz gravada, Oriol.
— S-sim. Tudo bem.
— Vamos começar. — Damien abriu a pasta e se chutou
mentalmente quando viu os nomes dos pais listados na folha. Ele
realmente deveria ter lido aquela ficha com calma e teria evitado
todo aquele problema. — Você sabe por que está aqui, Oriol?
Balançando a cabeça, ergueu os olhos para Damien e depois
para o gravador.
— N-não. Eu não sei, Inspetor.
— Você sentiu falta de algo? Chaves, carteira, seu cartão de
crédito pessoal?
As sobrancelhas de Oriol franziram.
— Não. Eu... tranquei minha casa antes de sair hoje. Usei
minha identidade para entrar na academia. — Oriol levantou os
olhos para Damien de forma abrupta. — Eu... eu perdi meu cartão.
Damien suspirou.
— Foi? Quando isso aconteceu? Que você deu por falta dele,
digo.
— Ah... talvez dois dias atrás?
— Uma garota foi encontrada hoje pela manhã, morta, dentro
de uma mala. Seu cartão foi encontrado junto do corpo. Sabe me
dizer porquê?
Os olhos de Oriol arregalaram, seu corpo indo para frente e as
mãos espalmadas sobre a mesa.
— No era jo[18]! Não matei ninguém!
— Então, por que ela estava com seu cartão?
— Jo... no ho sé.
— Inglês, por favor — Damien suspirou.
Inferno, até o catalão do garoto o fazia lembrar de Aidan.
— Eu não sei, Inspetor. Juro por tudo que é mais sagrado.
Aquilo era uma grande mentira, tremida na voz de Oriol e
muito clara aos ouvidos de Damien. Decidiu mudar a tática.
— Aonde você estava ontem à noite?
— Em casa. Não saí pra lugar algum — respondeu,
balançando a cabeça com afinco.
— Podemos verificar isso com alguém? Seus pais...?
— No! Eu não moro com eles desde os dezessete anos.
Isso significava que Gemma ou Jeff não estavam por perto. O
que era uma benção e uma praga ao mesmo tempo. Damien não
sabia o que poderia fazer se o padrasto de Aidan aparecesse na
frente dele. Apenas o nome já causava mal-estar em seu parceiro.
Damien nem mesmo queria imaginar o que aconteceria se Aidan
ficasse frente a frente com seu passado.
Damien virou a folha e batucou os dedos ao ler as passagens
de Oriol. A maior parte era porte ilegal de drogas, mas sempre em
quantidades muito pequenas. Era preso, apenas para ser solto
algum tempo depois. Isso, parecia a Damien, ter dedo da família
D’Angeles, mas não tinha como ele provar.
— Você tem uma ficha criminal extensa. E, com seu cartão
estando com a vítima, você é o nosso principal suspeito, Oriol.
Entende isso?
— Não fui eu!
— Tem como provar?
Oriol abriu a boca e então a fechou, seus olhos abaixando e
fitando suas mãos. Seus ombros estavam caídos quando respondeu
baixinho:
— Não. Não tenho.
A porta se abriu em seguida e Damien virou para encontrar um
homem magro vestindo um terno azul marinho caro e empurrando
com o indicador os óculos de aro dourado. Com o cabelo lambido de
lado, faltava apenas o bigode quadrado para Damien chamá-lo de
Hitler.
— Meu cliente se reserva o direito de ficar calado, Inspetor.
Esse interrogatório não deve continuar sem minha presença.
Fazendo uma careta, Damien segurou o gemido. Forest
Mclean, mais conhecido como o Advogado do Diabo, colocou sua
pasta sobre a mesa e apertou as mãos na cintura estreita. Aqueles
olhos azuis como cristais de gelo fitaram Damien com desgosto,
algo que sempre fazia quando se encontravam em circunstâncias
parecidas. Ou quando ele visitava o escritório da Pops na época que
fazia parte da sua folha de pagamento.
— Por que não estou surpreso em vê-lo, Forest? — Damien
perguntou ao levantar e fechar a pasta com as informações de Oriol.
— Preciso falar com meu cliente. A sós.
— Já estava terminando mesmo. — Damien sorriu friamente.
— Acredito que desta vez não vai ser fácil tirar um cliente da cadeia.
O rosto de Oriol empalideceu, mas Forest continuava olhando
para Damien com aquela cara azeda, o lábio torcido para baixo e o
nariz enrugado.
— Os anos passam e você não aprende nada, Evans.
Fingindo não dar ouvidos, Damien saiu da sala e fechou a
porta, empurrando para longe a vontade de bater apenas para
satisfazer sua frustração com tudo aquilo. Coçando o braço
esquerdo, caminhou na direção do escritório e deixou a pasta sobre
sua mesa, olhando ao redor e se perguntando aonde Aidan estava
enfiado.
Pegando seu telefone, discou o número de seu parceiro,
apenas para ser enviado direto para a caixa postal. Qual o
significado de ter um telefone se o mantinha desligado? Bufando,
Damien enviou mensagens para Herzog.

D: Preciso que verifique pra mim se Oriol possui algum


veículo. E se há câmeras perto de onde ele mora.
VH: Você ainda me deve uma pizza da última vez.
D: Vou compensar com borda recheada.
VH: Você é meu homem preferido.
VH: Posso te entregar uma resposta em uma hora?
D: Sem problemas.
VH: Seu parceiro teria dito obrigado.
D: Pensei que você não gostasse do meu parceiro.
VH: Não disse que gosto. Só disse que ele é educado.

Rindo, Damien guardou o telefone e andou por todo o


departamento, então desceu para os arquivos e depois para o pátio
central onde tinha a pequena lanchonete.
Nada. Nem mesmo a sombra do Corvo.
Coçando a nuca e inspirando lentamente, Damien fechou os
olhos e tentou pensar. Aidan não teria ido embora, ou teria? Não.
Damien o mandou esfriar a cabeça. Talvez ele apenas tenha dado a
volta no quarteirão? Abriu os olhos quando ouviu um oficial falar
para o outro ao passar por ele.
— Ele simplesmente está espancando o saco de areia! Nunca
vi algo assim. O homem é como um Cavaleiro do Apocalipse.
O outro bufou uma risada.
— Por isso o chamam de Corvo, o enviado da morte.
Então Aidan estava na academia compartilhada. Girando nos
calcanhares, Damien se perguntou por que não tinha ido lá desde o
começo. Descendo para o térreo, o ambiente abafado o
cumprimentou quando abriu as portas duplas. Passando por ele, um
oficial acenou antes de sair rapidamente da sala como se tivesse
sido expulso.
Aparelhos de ginástica espalhados pelo lugar amplo e quase
vazio, um tatame no centro onde praticava lutas corporais. No canto,
uma fila de sacos de areia nas cores vermelho e preto balançavam
com a força que Aidan batia no último. Agora entendia o porquê do
homem ter saído dali praticamente correndo. Descalço, o Corvo
vestia calções largos e uma regata, ambos na cor preta. Suas mãos
estavam enroladas por uma faixa vermelha e socava com fúria
desenfreada o saco.
Se aproximando em silêncio, Damien parou a poucos passos
de onde Aidan estava e observou. Suor escorria pela pele
bronzeada, aquele tom marrom claro brilhando na fraca luz branca.
Os cabelos pretos colavam na têmpora e nuca, os lábios separados
e mostrando os dentes pressionados, como se estivesse rosnando.
— Você bate no saco como se ele tivesse feito algo contra sua
pessoa.
Aidan parou, olhando para Damien com tanta intensidade que
o deixou com joelhos trêmulos.
— Você me mandou esfriar a cabeça.
— Isso significa “tomar um ar” ou enterrar a cabeça na neve.
— Damien gesticulou para o saco com o dedo. — Não bater em
algo até esfolar os dedos.
Aidan grunhiu, desenfaixando as mãos com gestos bruscos.
— Prendeu o garoto?
Damien suspirou.
— Não.
Jogando a faixa contra a parede, Aidan olhou para Damien.
— Por quê?
— Não me faça perguntas estúpidas, Aidan. Você é detetive,
sabe como funcionam as coisas, pelo amor de Deus.
Passando a mão pelo cabelo, soltou um som frustrado.
— Aquell normal... va tenir el valor de deixar embarassada
aquell fill de puta[19]?
— Não entendo catalão, Aidan.
Entretanto, o Corvo parecia não ouvi-lo.
— Després d'anys... Com pot tenir un nadó després d'haver-
me expulsat? Després de tot el que he passat[20]? — Aidan olhou
para Damien com desespero. — Vaig menjar de les escombraries
durant anys! I aquell noi no té ni una cicatriu[21]!
Jesus Cristo, parecia que Aidan havia esquecido como falar
inglês, tão perdido no meio da agonia.
— Aidan! — Damien segurou o rosto do homem entre as mãos
e o forçou a olhar para ele. — Não entendo catalão, querido. Por
favor, se acalme.
Aidan fechou os olhos, inspirando e expirando. Seus dedos
envolveram os pulsos de Damien em um aperto quando abriu os
olhos novamente. A dor era nítida naquelas íris escuras.
— Por que ela cuidou dele e não de mim?
Porra. Aquela pequena pergunta, feita em tom baixo e
dolorido, sangrou o coração já machucado de Damien. Puxando
Aidan para perto, pressionou suas testas juntas.
— Quem pode te garantir que ela cuidou de Oriol? Ele disse
que não mora com os pais desde os dezessete anos. Você não
sabe o que aconteceu que o fez sair.
— Ele não parece... não parece ter sido abusado. — Aidan
balançou a cabeça e riu sem humor. — Não há nada em Oriol além
de raiva. Raiva de mim e nem mesmo sei o motivo. Pela forma
como falou, ele sempre soube da minha existência, até meu nome
de batismo... Agora, a dor do abuso a gente reconhece. Quem
passou por isso vê nos olhos do outro.
Damien engoliu com dificuldade, desviando os olhos para a
boca de Aidan.
— É isso que você vê quando me olha? É por isso que não
consegue me olhar nos olhos como antes? Porque vê a dor sendo
refletida?
Um som de angústia subiu pela garganta de Aidan,
empurrando Damien para longe.
— Não é isso. Não é nada disso.
— Mas é o que parece! — Damien apontou com as mãos para
Aidan, as palmas voltadas para cima. Em seguida, passou-as pelo
cabelo em um movimento de frustração e cansaço. — E a única
coisa que peço é que me diga o que está acontecendo. Que
converse comigo! Assim eu posso tentar entender, podemos chegar
a uma solução ou...
Aidan praguejou, agarrando a frente da blusa de lã verde oliva
de Damien e o empurrando para o canto escuro atrás do saco de
areia. Damien estava ofegante quando suas costas bateram contra
a parede e fez uma careta quando as costelas doeram.
— Pare de falar sobre isso! Pare de tentar ser compreensivo.
Por que você não pode apenas ficar quieto e fingir que não se
importa, Damien? — Aidan rosnou.
Os olhos escuros de Aidan se fixaram no rosto de Damien
justamente quando abriu um sorriso largo. Os dedos firmes de
Damien seguraram Aidan pelos pulsos, polegares acariciando a pele
quente e sentindo as cicatrizes.
— Porque, se eu fingisse não me importar, você não seria
apaixonado por mim, Aidan.
Damien esticou o pescoço e sua boca tocou a de Aidan.

No momento que a boca de Damien estava sobre a dele,


Aidan perdeu qualquer raciocínio ou convicção. Principalmente
quando ouviu o gemido de Damien ecoar pela academia vazia e seu
pau pulsou ao reconhecer o som necessitado. Infern, sentia tanta
falta daquele som. Daquele beijo. O gosto de Damien, a textura da
sua pele.
Soltando o aperto que tinha na blusa de Damien, envolveu os
dedos na garganta e nuca, mergulhando mais profundamente
naquela boca que o provocava e que tanto ansiava. Seu polegar
acariciou a pele cicatrizando acima da veia que pulsava frenética.
Aquela marca nunca mais iria desaparecer, uma constante
lembrança do que Damien havia passado e, ao mesmo tempo, que
Aidan havia chegado antes que fosse tarde demais.
Aidan mordeu e chupou, rosnando quando sentiu as mãos de
Damien empurrando seu calção para baixo e se enfiando dentro da
cueca.
— Cariño... Amor, et trobo molt a faltar[22]... — Aidan murmurou
contra a boca de Damien.
— Porra, Aidan... — Damien chorou, sua mão apertando o pau
de Aidan e esfregando. — Não me afaste mais. Não ouse me
afastar.
— Cariño... Eu...
— Não. — Damien balançou a cabeça, o polegar acariciando a
fenda no pau de Aidan e o fazendo estremecer. — Não existe mais
eu ou você. É apenas nós. E nós vamos conversar e acertar os
pontos mais tarde, mas agora... Porra, agora eu preciso de você.
Não seria preciso pedir outra vez. Aidan descobriu que era
muito fraco quando se tratava de Damien. Assim, ele o beijou,
pegando tudo o que sentiu falta naquelas duas semanas. O gosto,
os gemidos, os ofegos. Aidan pegou para ele de volta e guardou
dentro do coração, girando a chave para trancar aquela porta.
Mantendo o que era bom dentro dele.
Seus joelhos tremeram com os dedos de Damien o apertando
e dando golpes duros. Aidan apoiou as mãos na parede ao lado da
cabeça de Damien e sua cabeça caiu no ombro do outro. Suas
respirações eram curtas e rápidas, seu coração batendo rápido em
seus ouvidos. Ali, naquele canto parcialmente escuro, qualquer um
poderia vê-los.
Apenas essa ideia deveria fazer Aidan puxar seu calção de
volta no lugar e guardar aquele momento para um quarto seguro.
Entretanto, sua espinha arrepiou com o perigo, seu quadril
acompanhando os movimentos da mão de Damien nele.
— Mare meva[23]... Cariño...
— Senti tanta falta de você me chamando assim.
Damien enfiou os dedos nos cabelos de Aidan, puxando-os na
nuca e fazendo Aidan olhar para aqueles olhos verdes com tons de
ouro desfocados. Pupilas dilatadas com luxúria e desejo. Os dedos
de Aidan se atrapalharam puxando o cinto e então o botão da calça
de Damien, empurrando o zíper para baixo.
Movimentos desleixados e apressados. Damien pareceu se
perder um pouco no que estava fazendo quando Aidan segurou-o
na mão, massageando o pênis de Damien como ele descobriu que
gostava tanto. A língua do Corvo saiu, lambendo a garganta exposta
do seu parceiro, contornando as cicatrizes e arranhando com a
barba crescendo. Aidan podia sentir os dedos ficando pegajosos
com o pré-sêmen e não resistiu à vontade que sentiu.
Dobrando-se nos joelhos, Damien soltou uma exclamação
surpresa e ao mesmo tempo deliciada com a visão do Corvo em
seus joelhos. A língua serpenteou para fora, contornando a coroa e
então engolindo-o inteiro e fazendo Damien soltar um grito. Aidan
agarrou a parte de trás das coxas do seu parceiro, os dedos
cavando no tecido da calça e abrindo os olhos para olhar para cima.
Damien tinha a cabeça contra a parede, lábios cobertos por
uma mão e olhos fechados. Aidan chupou, gemendo ao sentir o
gosto contra sua língua e tornando a fechar os olhos quando
Damien agarrou seus cabelos em um punho apertado antes de
deslizar pelos fios para agarrar sua nuca. Respirando pelo nariz,
Aidan se abriu e deixou que Damien fizesse o que bem entendesse.
Ele queria punir? Então Aidan aceitaria.
Receberia de bom grado qualquer coisa do homem que roubou
seu coração. Que segurou sua alma e confortou quando ele se
sentiu quebrado. E quando esse homem precisou, Aidan correu.
Fechando os olhos apertados, lágrimas escorriam pelo canto ao
segurar seu próprio pau em movimentos idênticos ao que Damien
fazia contra seu rosto. Não demorou muito e Aidan sentiu os jatos
contra sua garganta, o que o levou a gozar com mais alguns golpes
de sua mão.
Soltando o membro gasto de Damien, Aidan apoiou a testa
contra a coxa trêmula e fechou os olhos ao sentir os dedos
percorrendo seu cabelo em carícias suaves. Ele poderia ter
ronronado um pouco.
— Merda, Aidan. — Damien ofegou, puxando a respiração
com força. — Meu médico me proibiu de atividades aeróbicas.
Isso fez o Corvo rir, baixo e profundo. Erguendo-se, segurou
Damien perto, suas mãos em ambos os lados da garganta do outro
e analisou o rosto do homem. As olheiras estavam ali ainda, mas as
linhas estavam mais suaves. Um sorriso escondido debaixo daquele
bigode horroroso e os olhos pareciam mais vivos. Beijou
suavemente aqueles lábios, suspirando ao tornar a encostar suas
têmporas.
— Seu médico o proibiu de trabalhar. E veja onde você está.
— Um Corvo teimoso serviu de mau exemplo.
Aidan grunhiu. As mãos de Damien entraram por baixo da
camisa preta, as unhas curtas arranhando a pele.
— Gosto quando ri.
— Gosto que me faça rir — Aidan murmurou, passando o nariz
pela bochecha de Damien.
— Nós ainda vamos conversar. Só... para o caso de ter
esquecido.
— Eu sei. — Aidan suspirou. — Mais tarde.
— Sim. Eu... — Damien hesitou. Balançando a cabeça, exalou
pesadamente ao puxar Aidan para um beijo longo. Quando se
afastou, sua mão cobriu o peito do Corvo, sobre o coração. — Eu
amo você, Corvo teimoso.
Aidan sorriu lentamente e entrelaçou os dedos de Damien com
os seus.
— Jo també t'estimo[24]. Desculpe fazê-lo esperar tanto tempo.
Damien bufou.
— Definitivamente, preciso aprender catalão.
Tinha momentos que a vida era uma grande merda. E em
outros, como aquele, Aidan tinha certeza de que tudo poderia ficar
bem. Se Damien estivesse com ele.
De banho tomado, Aidan ajeitou a gola de seu sobretudo ao
subir os degraus que restavam para o Departamento de Homicídios.
Damien seguia na frente, olhando fixamente para seu celular e
franzindo a testa antes de parar na porta. Aidan olhou por cima do
ombro do seu parceiro, vendo a tela aberta no e-mail.
— Pare de bufar no meu ouvido — resmungou, mudando a
tela para as mensagens.
Aidan grunhiu, se afastando.
— Jack ainda está te evitando?
Olhos verdes cerrados desviaram do celular e miraram o rosto
de Aidan.
— Está. Qual o problema dele?
— Se eu disser que é você, vou ser chutado? — Aidan
perguntou.
— Sim, você vai — Damien rosnou. — E se eu precisar de
algo realmente importante e não conseguir contato?
— Tudo pra você é importante, Evans. Pelo menos foi o que
disse nas últimas vinte ligações desde essa manhã. Na verdade,
acho que é exatamente por isso que Jack te bloqueou — Aidan
falou secamente e enfiou as mãos nos bolsos.
Seu parceiro abriu a boca para falar quando o telefone vibrou
em sua mão. O nome “Doc” brilhou na tela e Damien apertou o
botão verde e em seguida o viva-voz.
Atencioso da parte dele.
— Até que enfim, Doc! Já estava prestes a ir até a CFS e
invadir sua sala.
— Eu nem deveria estar falando com você agora, Inspetor.
Sua licença médica te obriga a ficar em casa e descansar. O que,
em decorrência, eu descansaria de você.
— Dizendo assim, nem parece que me ama, Doc.
— Porque eu não amo. Meus pacientes são mais obedientes
que você.
— Porque eles estão mortos. — Damien piscou e olhou para
Aidan. — Isso significa que ele queria que eu tivesse morrido?
— Pelo amor de Deus, que tipo de homem você pensa que
sou? — Jack bufou do outro lado. — Vamos às coisas importantes.
O relatório inicial está pronto e as fotos da vítima também. Já enviei
para o sistema e você pode alcançá-los com sua senha.
— Obrigado, Doc — Damien resmungou.
— Alguma ressalva, Jack? — Aidan perguntou, inclinando
suavemente na direção de Damien.
— Pelo tamanho da ferida e formato, é muito provável que o
assassino a golpeou.
— Isso parece intencional para mim — Aidan murmurou,
olhando para Damien.
— Até que se prove o contrário. — Damien pontuou.
— Todas as impressões estão no relatório. Provavelmente
alguém mais alto, com um metro e oitenta centímetros. O golpe foi
de cima para baixo, em um golpe meio curvo. Rachou a base do
crânio, o que causou a falta de oxigênio para o cérebro.
Desacordada, sangrou até morrer.
— Jesus — Damien sussurrou, passando a mão pela
bochecha. — Algum DNA?
— Não. Lohan recolheu amostras da vítima. Assim que
tivermos um resultado, nós ligamos.
O telefone ficou mudo e Damien arquejou.
— Ele desligou na minha cara!
— As pessoas se sentem assim quando você não as agradece
de forma adequada. E Jack pode apenas estar evitando que você
tenha mais perguntas, das quais ele não possui resposta.
— Sabe, você não serve para acalentar as pessoas,
Callaghan. Estou sofrendo aqui e você pisa na minha ferida.
Aidan fez uma careta.
— Não estava tentando acalentá-lo. Estou dizendo a verdade.
— Vou dizer onde você pode enfiar sua verdade. Junto com
seu sarcasmo. — Damien apontou para Aidan, cutucando-o no peito
e então caminhou para dentro do departamento. — Só para você
saber, enquanto esfriava sua cabeça socando sua raiva em um saco
de pancadas, conversei com Herzog e pedi que buscasse
informações sobre Oriol. Recebi algumas mensagens dele minutos
atrás.
— Resultado?
— Ele possui um carro antigo que foi gravado em um posto
24h. Ele diz que não saiu de casa na noite em que a garota foi
morta, mas esse vídeo diz o contrário. — Damien encolheu os
ombros. Parando na mesa da recepção, sorriu abertamente para o
oficial. — Preciso que imprima para mim o relatório e as fotos do
caso da garota desconhecida do Flemingdon Park. O Dr. Mitchell já
enviou para o sistema.
— A garota da mala. Pode deixar. — O oficial assentiu,
clicando no mouse.
— Assim que terminar, leve para a sala de interrogatório dois.
— Por favor — Aidan emendou e lançou um olhar para seu
parceiro.
— Eu já ia dizer isso. — Damien bufou.
— Claro que ia — respondeu desapaixonadamente.
Seguiram em silêncio pelo corredor e Aidan segurou a vontade
de sorrir ao ver o bico que Damien fazia. Seu parceiro era tão
sensível quanto destemido. A porta da sala número dois estava
fechada e Aidan olhou para ela como se algo terrível estivesse
escondido atrás.
Damien parou com a mão na maçaneta novamente, fazendo
Aidan ter um déjà vu desagradável que revoltou seu estômago.
Cerrando os dedos ao lado do corpo, olhou fixamente para a
parede.
— Aidan, sei o quanto você é forte, assim como sei o quanto já
sofreu. Se não quiser entrar nessa sala...
— Eu consigo, Damien — Aidan falou baixinho.
— Só verificando. — Suspirou, apertando o braço de Aidan
rapidamente. — Vou estar aqui se precisar. Não hesite, Aidan. Tudo
bem?
Desviando os olhos da parede, olhou para aqueles olhos
verdes pálidos parecendo mais escuros por causa da blusa de lã e
assentiu em silêncio. A porta se abriu sem um único som e Aidan
tentou fazer sua respiração se acalmar, assim como seu coração.
A sala estava iluminada pela única luz no teto, deixando as
paredes ainda mais brancas. Oriol estava sentado, seus dedos
cruzados sobre a mesa, a cabeça caída e os ombros encolhidos. O
advogado estava sentado de lado, as pernas longas e magras
cruzadas e apoiava casualmente o braço sobre a mesa. O anel de
ouro em seu dedo indicador esquerdo brilhou, a inicial A em relevo.
Forest Mclean.
Já tinha visto notícias daquele homem. O Advogado do Diabo.
Nos relatórios que entregou para Stanton na semana passada, o
nome de Forest surgiu diversas vezes relacionado a casos de
pessoas suspeitas sendo investigadas. Kiam White era uma delas.
Cerrando os olhos, Aidan fechou a porta atrás de si com um
pouco mais de força que o necessário, o que fez Oriol erguer o rosto
e fazer uma careta.
— Eu disse que não queria esse cara aqui.
— “Esse cara” é meu parceiro. Ele vai aonde eu vou, tipo uma
promoção pague um leve dois. — Damien puxou a cadeira e sentou,
exalando bruscamente enquanto Aidan continuou de pé atrás dele.
— Está pronto para nos dizer o que você fez na noite de ontem? E
por que seu cartão estava com uma garota que foi encontrada morta
em uma lixeira?
— Oriol disse que perdeu seu cartão. Essa garota pode muito
bem tê-lo encontrado e o roubou ao invés de devolvê-lo. — O
advogado disse, olhando de Damien para Aidan.
Havia pessoas no mundo que Aidan tolerava. Outras ele fingia
que não existiam. E havia os advogados. Seres desprezíveis que se
achavam donos da razão e acima da lei. E pensar que um dia Aidan
sonhou em ser advogado. Estremecendo levemente, mudou sua
atenção para Oriol, que continuava silencioso.
Cels, olhar para o garoto era como se olhar no espelho, quinze
anos mais novo. Sem as cicatrizes e toda a raiva reprimida, assim
como o medo constante, mas ainda parecia com ele. Os traços que
lembravam Gemma e outros que faziam o estômago de Aidan
retorcer em nós. A mandíbula quadrada, a forma como o lábio se
torcia para baixo.
Malediccó, o passado não parecia nunca ficar onde devia.
Damien balançou a mão com descaso para o advogado.
— Isso é uma desculpa esfarrapada, Forest, e sabemos disso.
— Virando para o garoto, Damien cruzou os braços. — O silêncio
não ajuda ninguém, Oriol. Já sabemos que não estava em casa
ontem, como disse na nossa conversa anterior. O posto 24h gravou
você saindo de casa às 22h e retornando apenas depois das 1h.
Aonde você estava?
Silêncio.
— Meu cliente não estava com a vítima. Ele está em choque e
só porque não estava em casa, não prova que ele é o assassino.
— O cartão dele estava com a vítima — Aidan rosnou para
Forest.
— Isso não é prova concreta ou relevante. Assim, vocês não
possuem nada além disso para mantê-lo aqui. Nós vamos embora e
amanhã retornaremos para novo interrogatório caso precisem, mas
será apenas isso. Já orientei ao meu cliente abrir um boletim de
ocorrência da perda do cartão, coisa que ele deveria ter feito assim
que deu falta.
— Forest...
— Muito obrigado, senhores. — Forest levantou, abotoando
seu terno e recolhendo sua pasta. — Tenham um ótimo final de
tarde. Oriol.
Malditos advogados!
Aidan deu um passo para o lado, travando a passagem de
Forest. Com o canto do olho, viu Oriol fechar as mãos em punhos
apertados e comprimir os lábios.
— Isso ainda não acabou.
— Meu cliente me falou sobre você, detetive Fuentes.
O peito de Aidan se comprimiu ao ser chamado daquela forma.
Aquele sobrenome que pensou ter apagado da sua vida por
completo, de uma existência miserável que não gostava de lembrar.
Tirando qualquer expressão do rosto, cobriu todo e qualquer
sentimento com uma máscara de gelo impenetrável. Isso fez Forest
dar um passo para trás e alisar sua gravata.
— Detetive, vou declarar isso como abuso de poder.
— Primeiro de tudo: meu nome é Aidan Callaghan. Para você,
Detetive Particular Callaghan ou, se preferir, o Corvo. — Inclinando
sutilmente para frente, Aidan rosnou: — Segundo: eu sei o que você
fez no verão passado. E terceiro, mas não menos importante: não
gosto de você, pomposo imbecil.
Forest abriu a boca, seu dedo se erguendo, quando a porta
abriu e o oficial DeBlass apontou sua cabeça entre o vão.
— Com licença? O Oficial Lars me pediu para trazer os
relatórios do legista. Das roupas que a vítima usava.
— Porra, nunca pensei que fosse dizer isso, mas... estou feliz
em vê-lo, DeBlass — Damien disse, levantando e indo até a porta.
Aidan viu o rapaz dar um sorriso de lado e então aqueles olhos
de bebê estavam sobre ele. Assentindo, desviou a atenção para
Oriol enquanto Damien pegava a pasta e fechava a porta
novamente.
— Muito bem. O que nós vamos encontrar ao abrir isso aqui?
Abrindo a pasta sobre a mesa, Aidan se inclinou sobre o
ombro de Damien e viu as fotos se espalhando. O moletom cinza
com manchas e sangue, a calça preta larga, o par de tênis azul
marinho. Aidan ergueu os olhos a tempo de ver Oriol com o rosto
pálido antes de cobrir com as mãos.
— Interessante. Por que nossa vítima usaria roupas assim?
Grandes demais para uma garota pequena como ela — Damien
comentou.
— Essa pergunta deveria ser feita à vítima, mas ela não vai
conseguir respondê-lo, Inspetor — Forest zombou.
Os pelos na nuca de Aidan arrepiaram, seus dentes rangendo.
Damien pareceu não se importar com o comentário.
— Qual seu tamanho, Oriol?
— Não responda a isso.
— Olhando daqui, posso dizer um XL? Calçados 42? O que
acha, Callaghan?
Aidan grunhiu, concordando. Oriol soltou um som engasgado,
virando o rosto para a parede. Não fugiu aos olhos de Aidan que o
garoto tinha lágrimas não derramadas e seu lábio inferior tremeu.
— Estamos certos, Oriol?
— S-sim.
— Veja só. Calças e moletom de capuz do seu tamanho.
Grande coincidência, né?
— Isso não é...
— É prova suficiente para manter Oriol atrás das grades pelo
tempo que essa investigação levar. — Damien empurrou as fotos
para dentro da pasta novamente e levantou, apontando para Forest.
— Faça seu cliente falar, Mclean. Vai ser melhor para ele, para você
e para nós.
— Você é uma pedra no sapato, Evans — Forest rosnou.
— Com muito prazer — Damien curvou em uma saudação
jocosa. — Faça bom proveito do tempo aqui. Não temos serviço de
quarto, mas a cama é ótima para dores nas costas.
Deixando um último olhar para Oriol, Aidan acompanhou
Damien para fora da sala. Chacoalhando os ombros, sentia como se
pequenas aranhas percorressem suas costas. Aidan puxou as
mangas do sobretudo e ajeitou as lapelas quando Damien grunhiu
ao bater a pasta contra a coxa.
— Mas que porra! Odeio aquele idiota — resmungou. Virando
um sorriso para Aidan, Damien o cutucou com o cotovelo. — Você
foi excelente lá, colocando Forest no lugar dele.
— Apenas o corrigi de como me tratar e explanei meus
sentimentos de repúdio a existência daquele patife. — Aidan fungou.
Os olhos de Damien cerraram levemente.
— Estou em conflito com esse diálogo tão polido. Não sei se
bato em você ou se fico excitado.
— No momento, aconselho nenhum dos dois. — Aidan sorriu
de lado. — Mais tarde, voto na segunda opção.
— Você é um provocador — Damien resmungou.
Rindo baixinho, Aidan acompanhou seu parceiro até o balcão
para informar de que o suspeito ficará detido até segunda ordem.
Tamborilando os dedos sobre o balcão, seus olhos vagaram pelo
escritório quase vazio e o relógio marcando quase quatro da tarde.
Uma comoção nas escadas o fez virar naquela direção quando uma
mulher irrompeu como um furacão. Aidan franziu as sobrancelhas,
apenas para ter seu corpo completamente congelado no lugar.
Ele não poderia respirar.
Soltando um chiado por entre os dentes, que mais parecia um
sibilado, seus dedos cravaram nas costas da blusa de lã de Damien,
puxando o homem confuso e o usando como um escudo. A mulher
gritava, empurrando os oficiais do caminho e procurando alguém
como uma louca. Cabelos grisalhos cortados acima dos ombros se
misturavam com os fios pretos. Ela estava velha. Mais velha do que
deveria naquela idade.
Foi quando aqueles olhos castanhos escuros caíram sobre os
detetives na recepção. Damien soltou um frágil “oh”, como
entendesse naquele momento o que estava por vir. O coração de
Aidan lutava, batendo freneticamente em seus ouvidos enquanto
sua respiração era curta. Seus dedos tremiam, retorcidos na lã
verde oliva, quando Damien segurou sutilmente sua outra mão em
um aperto.
Infern, nunca teria um minuto de paz nessa maldita vida?
— Você fez isso com ele!
Ele se encolheu, desviando os olhos para a nuca de Damien.
Covarde.
Você sempre foi um menino covarde, Antoni.
Mordendo a bochecha por dentro, Aidan se recusou a chorar.
Empurrou aquela voz odiosa para baixo ao mesmo tempo em que
Damien erguia a mão para fazer aquela mulher parar.
— Senhora, preciso que se acalme.
— No cal que em calmi! Necessito que alliberis el meu fill! No
va fer res! Ell és innocent[25]!
— Eu não falo catalão. Se a senhora não se acalmar e se
identificar de forma correta, não podemos ajudá-la e meus oficiais
vão carregá-la para fora.
Bufando, jogou a bolsa sobre o ombro e ergueu o queixo com
orgulho.
— Gemma Fuentes Armand. Mãe de Oriol, o garoto inocente
que você prendeu. — Um dedo magro com a unha pintada de azul
mar apontou para Aidan. — Nunca pensei que você fosse um idiota
vingativo, Antoni. El meu fill no té la culpa de res. El teu problema és
amb mi i en Jeff [26].
— Já tive o suficiente por um dia. — Damien balançou a
cabeça e apontou para o corredor ao falar com o oficial atrás de
Gemma. — Leve essa mulher para a sala três. Nós vamos ter uma
conversa.
— Não vou sair daqui até que meu filho seja solto!
— Então é melhor estar preparada para passar a noite —
Damien resmungou. — Vamos logo.
Aidan hesitou por um breve segundo, seus dedos soltando a
blusa de Damien quando este virou para olhá-lo.
— Hoje deve estar sendo uma explosão sobre sua cabeça,
né? Você está bem?
— Vou sobreviver. Acho — murmurou, encolhendo um ombro.
— Eu... preciso entrar naquela sala?
— Não, se você não quiser.
— Não quero. — Aidan balançou a cabeça.
— Então não precisa. — Damien pegou a mão de Aidan,
dando um aperto breve antes de soltá-lo. Cedo demais. — Me
espere aqui fora, ok? Vamos embora para casa juntos. Não se
atreva a sair sem mim.
— Não sonharia com isso.
— Evans! — o rugido pareceu estremecer as janelas do
departamento.
Damien encolheu, olhos arregalados na direção da porta onde
uma Reese Knight estava parada de braços cruzados e parecendo
furiosa.
— Jesus, a cavaleira do juízo final vai me matar — sussurrou.
— Enrole ela por mim, Callaghan.
Dizendo isso, Damien se esquivou de um oficial e correu para
fora como se sua bunda estivesse em chamas. E poderia realmente
estar com o olhar de fogo que Reese tinha quando parou ao lado de
Aidan.
— Seu parceiro ainda vai me dar um AVC, Callaghan!
— Entre na fila — retrucou seco.
— Eu não disse para mantê-lo na coleira? — Reese cruzou os
braços, olhos cerrados. — Aquele idiota deveria estar em casa,
descansando.
Aidan pensava sobre aquilo, constantemente. Naquele
pescoço forte, agora com cicatrizes rosadas, com uma coleira de
couro apertada. Depois do que havia acontecido com Samael,
duvidava muito que Damien aceitasse qualquer coisa envolvendo
seu pescoço.
— Vou me certificar de que ele está seguro, Chefe. Não se
preocupe.
Reese estalou a língua e balançou a cabeça.
— E certifique-se de que ele tire aquele bigode horroroso.
Ela se afastou de Aidan, seus saltos clicando pelo escritório.
Só então ele suspirou, passando os dedos pelos cabelos. Precisava
de uma dose de seu veneno preto ou não poderia sobreviver mais
cinco minutos.

A porta da sala fechou com um clique, Gemma sentando-se na


cadeira com gestos irritados e uma carranca. A mulher parecia
desgastada com o tempo, linhas profundas de preocupação
marcando sua testa, olhos e boca. Olhos castanhos escuros fitaram
Damien ainda na porta e cruzou os braços.
— Onde está Oriol?
Você costumava perguntar assim sobre Aidan, depois que o
expulsou de casa?
Aquela pergunta quase pulou da língua de Damien. Porra, ele
estava tão irritado com aquela mulher, e ele nem mesmo a
conhecia. Mantendo seu rosto sem expressão, sentou na frente de
Gemma e a olhou de forma fria.
— Sou o Inspetor Detetive Evans. Seu filho, Oriol, está sendo
mantido como suspeito de assassinato.
— No! — Gemma bateu os punhos sobre a mesa. — Oriol
nunca faria algo assim!
— Nós nunca sabemos o que as pessoas podem fazer. Mesmo
morando debaixo de nosso teto — Damien comentou sem desviar
os olhos da mulher.
Com um som de repúdio na garganta, Gemma recostou na
cadeira.
— Antoni deve ter te contado sobre o passado.
— Aidan me contou. Sim. Entretanto, não estamos aqui para
falar sobre a senhora. — Ou a porra do seu marido. — Oriol nos
disse que não mora com os pais desde os dezessete. Qual a causa
disso?
— Se está perguntando se algo aconteceu, não perca seu
tempo rondando. Oriol nunca foi tocado, nem mesmo encostei a
mão nele para repreendê-lo. — Gemma ergueu o queixo. — Sei
como cuidar bem de um filho, Inspector.
Os dedos de Damien cerraram sobre a coxa. Aquela mulher
falava de um jeito, como se fosse um grande exemplo de mãe.
— Imagino que sabe — Damien respondeu laconicamente.
— Depois que pegou certa idade, Oriol se revoltou e fugiu de
casa. — Balança as mãos. — Ele pode ser um garoto fora de
controle e boca dura, mas não é mau. É misericordioso. Não tem
como ele ter feito isso, matado alguém.
Não querendo lidar com aquele tipo por muito mais tempo,
decidiu encurtar a conversa.
— Oriol possui alguma namorada?
— Que garoto como ele não teria? — Gemma riu. — Viril, alto.
Oriol tem todas as garotas que ele quer comendo na palma de sua
mão.
Damien tinha certeza que sim.
— A ficha criminal de Oriol é grande. A senhora sabe que ele
já foi preso por porte de drogas?
— O garoto vende, não usa. Que mal há nisso?
Jesus Cristo. A cada frase, Damien se perguntava se a lei o
protegeria por estrangular uma mulher. A sociedade estaria ficando
livre de uma criatura como aquela.
— Venda de drogas é proibida por lei, senhora Fuentes. —
Damien levantou e caminhou para a porta, abrindo-a. — Seu filho já
possui um advogado, mas ainda está detido. Se for provado que é
inocente, nós iremos soltá-lo.
— Isso é perseguição!
— Chame do que quiser — Damien resmungou, dando as
costas.
Descendo novamente para o departamento, encontrou Aidan
encostado em sua mesa, um copo de plástico entre seus dedos nus.
As luvas estavam penduradas no bolso do sobretudo. Se
aproximando devagar, sorriu quando o Corvo inclinou a cabeça para
olhá-lo.
— Foi rápido.
— Não queria falar mais que o necessário. A mulher é
enervante e esgotou minhas energias. — Damien estremeceu e
apontou para o café. — Quantos você já bebeu?
Aidan olhou para o copo, sobrancelhas escuras franzidas.
— Este é o segundo.
— Por que será que eu não acredito em você?
O Corvo grunhiu, fazendo Damien rir. Suas costelas doíam,
sentia-se atropelado por uma manada de bois e precisava urgente
de um bom banho. Soltando um gemido, deixou a cabeça pender
para trás.
— Me sinto no meio de um episódio de Stranger Things. —
Damien suspirou, arqueando as sobrancelhas ao olhar de volta para
Aidan. — Gemma é o Demogorgon[27]!
— Per l’amor de Déu, do que você está falando?
— Você não vê séries? — Damien perguntou, pegando sua
jaqueta grossa da cadeira e caminhando para fora do departamento.
Aidan o seguiu, jogando o copo vazio na lixeira.
— Não tenho paciência para televisão.
— Como você passa seu tempo, então? — Damien estava
repentinamente interessado.
— Em silêncio na maioria das vezes. — Aidan cerrou os olhos
ao sair da sede, o sol baixo lançando raios alaranjados e tingindo o
céu de vermelho, rosa e púrpura. — Gosto de músicas clássicas de
Dark Academy, leio ou faço exercícios enquanto penso. Jogo
sudoku[28] também.
— Porra, você é do tipo intelectual mesmo.
E isso não deveria parecer tão atraente, mas imaginar o Corvo
sentado confortável em seu sofá, cabelos despenteados, um óculos
pendendo em seu nariz enquanto analisa um jogo de números,
deixou o corpo de Damien formigando.
Engolindo em seco e se sentindo desconfortável em suas
calças, Damien destravou o carro.
— Se eu pedisse pra você ler para mim... você faria?
— Por que isso me soa como um pedido sexual?
— Porque, talvez, no fundo, seja um?
A risada rouca de Aidan fez o coração de Damien acelerar.
Sentando atrás do volante, esperou Aidan entrar e fechar a porta.
Olhos escuros observavam Damien com calor.
— Posso fazer isso — respondeu rouco. — Depois que
conversarmos.
— Jesus... — Damien ligou o carro e bateu a seta. — Estou
começando a me odiar por dizer que precisamos ter diálogo no
relacionamento.
Aidan sorriu de lado, parecendo divertido com o sofrimento de
Damien.

Oriol olhava para suas mãos, a perna pulando com ansiedade


e impaciência. Ele não deveria estar preso. E, de todos os lugares
daquela cidade enorme, tinha que ser levado para a sede da TPS,
onde seu irmão mais velho trabalhava.
Merda.
O som de passos ecoou no corredor e Oriol ergueu a cabeça
quando o barulho de chaves tilintando chamou sua atenção. Um
oficial abriu a porta, olhando para os rostos dos três homens presos
com Oriol, então se virou para ele.
— Seu advogado está aqui, Armand.
Levantando, caminhou para fora e foi até a pequena sala no
final. Forest caminhava de um lado ao outro, uma mão na cintura e
outra na boca, roendo o polegar. Aqueles olhos frios o fitaram
quando a porta fechou em suas costas.
— Aqui. Trouxe um sanduíche para você.
— Não estou com fome.
— Você precisa comer. A noite é longa. — Forest pegou a
sacola e colocou na mão de Oriol. — Não preciso de você
desmaiando.
— Já sabem quem é a menina morta? — perguntou,
desviando os olhos para a sacola em mãos.
— Não, mas não vai demorar muito. Damien Evans é como um
cão que não larga o osso até chegar ao tutano. — Forest fez um
ruído na garganta e balançou a mão com descaso. — E você vai
ficar quieto, ouviu bem? Não pense em abrir a boca e falar algo
errado.
— Não tenho o que dizer. Não fui eu que matei ela.
— Continue dizendo isso. — Forest pegou sua pasta da mesa
e exalou. — Coma. Vou pensar em como tirá-lo daqui. Apenas
aguente até amanhã.
Oriol assentiu, os dedos cerrados na sacola. Observou o
advogado sair da sala e mordeu o lábio até sentir o sangue escorrer.
Ele não tinha matado a garota. Afinal, Oriol a amava mais do que a
si mesmo.
Havia começado a nevar de novo. Damien estremeceu ao
colocar a camiseta cinza, mais pela dor do que pelo frio. Sua casa
estava quente com a lareira acesa na sala e o aquecedor
funcionando no quarto, mas ele ainda sentia seus pés gelados.
Rolando os ombros, caminhou para a cozinha e olhou na direção da
sala apenas para encontrar Aidan jogado sobre o sofá com Chips
deitado parcialmente sobre o homem.
Seu cão havia se afeiçoado ao Corvo.
Tinha escurecido lá fora, fazendo Damien acender a luz da
cozinha e isso acabou iluminando parcialmente a sala. A cabeça
escura de Aidan se ergueu, olhando para Damien com sobrancelhas
franzidas.
— Você fez a barba.
— Percebi que prefiro deixar tudo crescer por igual — Damien
mentiu.
O bigode tinha sido apenas uma brincadeira, mas ele percebeu
que estava se afeiçoando àquela taturana sobre sua boca. Ele tirou
antes que fosse tarde demais e acabasse se tornando um hábito.
Pegando duas cervejas da geladeira, voltou para a sala e sentou na
poltrona depois de entregar uma garrafa para Aidan.
O fogo estalava na lareira, o vermelho vivo em uma dança
sinuosa. Damien tinha um fascínio pelas chamas. As pessoas
pensavam que após ter sido queimado por parte das costas e
ombro, Damien teria medo ou mesmo aversão ao fogo. Porém, ele
adorava. Mesmo que, ao se tornar incontrolável, poderia engolir
vilas inteiras em um piscar de olhos.
Desviando os olhos das chamas, observou Aidan. Segurando
a garrafa com uma mão, acariciava atrás da orelha de Chips com a
outra. O fogo refletia nos olhos escuros, manchas vermelhas
bruxuleando nas íris. Os cabelos pretos estavam bagunçados e as
pontas úmidas, desde que Aidan tinha usado o banheiro de visitas
para um banho. Ele recusou uma ducha com Damien.
— Pare de me agredir em pensamento — murmurou com os
lábios contra a boca da garrafa.
— Você não pode dizer que estou fazendo isso.
Mesmo que ele estivesse.
Aidan sorriu de lado ao tomar um longo gole da cerveja antes
de colocá-la de lado. Exalando, sentou-se e empurrou Chips para
sair de cima do seu colo.
— Posso. Você tem aquele vinco entre as sobrancelhas e
olhos apertados. Você só usa essa cara quando está prestes a me
dizer para enfiar meu sarcasmo na bunda. — Aidan riu baixinho.
Damien bufou, cruzando os braços e encostando na poltrona.
Algumas cicatrizes ainda sensíveis o incomodaram, mas não como
antes. Esfregando a bochecha, Damien olhou para Aidan.
— Quando pediu para trabalhar no caso da Tiffany, você já
estava como espião do Stanton?
Aidan baixou os olhos para suas mãos antes de voltar a fitar os
de Damien.
— Não.
— Quando, então?
— Stanton foi a minha porta de entrada. Ele me devia alguns
favores e decidi cobrá-los ao pedir para me colocar no caso de Tiffy.
— Aidan balançou a cabeça. — Stanton nunca dá um ponto sem nó.
Sabia que ao pedir isso, ele cobraria algo em troca em algum
momento.
— Mas você disse que ele devia alguns favores...
— Para Stanton, o que ele deve é sempre menor do que
quando você cobra. — Aidan sorriu com sarcasmo. — Não achei
que tinha algo a perder quando ele me pediu para investigar os
departamentos. Só vi o problema quando estava atolado até os
joelhos na merda.
Damien mordiscou o lábio inferior.
— Você sabia sobre mim antes que eu contasse?
Negando lentamente, Aidan cruzou os braços.
— Não exatamente. Havia alguns relatórios que encontrei nos
arquivos e se tornou uma suspeita que não queria acreditar ser real.
Stanton me escolheu por causa do meu currículo. Antes de você,
antes de Toronto, seis anos atrás eu trabalhava em Quebec.
Investigador. Fechei diversos cartéis e acabei com o tráfico humano
da região. — Aidan engoliu com dificuldade. — Tinha um parceiro,
Louis. Nós... nós tínhamos começado a...
— Vocês tinham um relacionamento — Damien disse, tentando
empurrar o ciúmes para baixo.
Não era momento disso.
— Eu pensava que sim. — Aidan riu com desgosto. — Eu tinha
um grande amigo chamado Colin, a qual contei meu passado. Ele
foi o primeiro a quem me abri depois de tantos anos e me
incentivava, constantemente, a terminar com Louis. Um dia, Colin
me disse que a investigação que estava fazendo, o nome de Louis
havia surgido no meio.
— Droga...
— Louis estava mentindo. Achei que Colin estava com ciúmes
e descartei seus alertas. Até que... — Aidan fechou os olhos com
força e sua voz tremeu. — Comecei a investigar uma linha de
raciocínio. Segui minha intuição, mas não falei com Louis. Não
queria que ele perdesse tempo caso não desse em nada. Minha
investigação se ramificou, se misturando com a de Colin e percebi
que Louis estava desviando informações de tudo.
— Louis estava arruinando a investigação de propósito?
— Ele era meu parceiro, tinha acesso a todas minhas pastas
de casos. Quando percebi, era tarde demais. Louis tinha
participação ativa em tráfico de drogas. Usavam uma madeireira de
fachada que ele era sócio com um nome falso. Eles enviavam as
drogas dentro de madeiras e recebiam o dinheiro misturado nos
sacos de ração para animais de uma fazenda no limite do Estado.
— Jesus Cristo — Damien sussurrou, a mão deslizando pela
bochecha.
— Sim. Comprovado, fizemos a armadilha. Naquele dia, algo
deu errado. — Os olhos de Aidan ficaram vidrados de repente,
ombros caídos. Como se tivesse mergulhado na lembrança. — Eles
tinham metralhadoras e ainda consigo ouvir o som das balas
atingindo carne e concreto. No rádio, ouvi Colin ser atingido e tudo
se tornou um borrão confuso. Minhas balas acabaram e lutei com os
punhos. Era como um animal selvagem lutando para escapar.
Consegui uma faca, abrindo meu caminho por meio de vísceras e
gargantas cortadas.
A cada palavra, Damien percebia que Aidan estava deslizando.
O que esse homem havia passado? Toda a vida lutando,
mergulhado em escuridão e sofrimento. Sendo decepcionado,
enganado, traído.
— Em algum momento, consegui uma arma. Haviam tantos
corpos aos meus pés... Para onde olhava, havia sangue. Pingando.
Ploc. Ploc. Um eco na sala subitamente silenciosa. Tinha sangue
pingando nas pontas dos dedos, escorregando no gatilho da arma
que encontrei e na faca que ainda segurava.
Aidan piscou, olhando para Damien como que acabado de
acordar de um pesadelo.
— Quando encontrei Louis, ele tentou me dissuadir ao apelar
para nosso relacionamento. Lembrei da voz ofegante de Colin e o
sinal mudo de seu rádio quando Louis percebeu que eu não mudaria
de ideia e atirou. O primeiro me atingiu na coxa e caí sobre um
joelho. O segundo foi acima do osso do quadril. — Aidan ergueu a
mão, passando por cima da cicatriz em sua cintura e então para a
clavícula. — Quando se vangloriou de ter sido ele a atirar em Colin,
ergui a arma e apertei o gatilho ao mesmo tempo em que Louis
atirava também.
Então, aquelas cicatrizes carregavam mais peso do que
Damien imaginava. Não foram apenas tiros de uma missão. Aidan
foi alvejado pelo homem que amava.
— Meu tiro não tinha sido fatal e Louis conseguiu fugir. Perdi
muito sangue, a bala do quadril não tinha saída e comprometeu
parte do intestino e um rim. Passei por horas de cirurgia, três
paradas cardíacas. Três dias inconsciente. Quando acordei,
descobri que haviam encontrado o corpo de Louis e Colin não tinha
sobrevivido. Perdi meu melhor amigo naquele dia.
— Eu nem sei o que dizer, Aidan...
O Corvo balançou a cabeça, seus olhos pegando os de
Damien, sérios.
— Foi um golpe duplo. Pedi para sair e me desconectei da
polícia, vindo embora para Toronto em seguida. Não tinha intenção
alguma de voltar a investigar crimes, muito menos a máfia. Quando
descobri sobre você, não queria acreditar que estava acontecendo
tudo de novo. Me apaixonar por alguém que me trairia no final.
— Aidan, eu...
— No. — Ele ergueu um dedo, calando-o. — Foi por causa do
meu passado, da minha insegurança, que fugi. Não queria acreditar
que estava passando por tudo novamente. Entretanto, estava em
conflito. Você não era como Louis. — Aidan suspirou, seus dedos
esfregando a testa. — Quando me contou sua versão da história,
sabia que não poderia ter seu nome relacionado no relatório para
Stanton. Existem policiais corruptos por decisões mesquinhas ou
apenas ganho próprio. Não você. Decidi que me afastar seria o
melhor.
— Eu precisava de você — Damien falou, sua voz grossa com
emoção. — Precisava como nunca. Queria acordar e seu rosto ser a
primeira coisa que veria. Eu queria conforto, Aidan. Culpei você no
começo, deixando seus medos serem maiores do que nós, depois
culpei a mim mesmo por criar expectativas. Depois culpei o mundo
por ser fodido e separar nós dois, quando o mundo nem mesmo tem
culpa. — Damien riu. — Quando as pessoas se amam e querem
ficar juntas, elas dão um jeito. Pra mim, naquele momento, você não
me amava.
— Nada no mundo pode mudar as consequências das minhas
atitudes — Aidan falou, sua voz ficando rouca e o catalão mais
evidente em cada palavra. — Meus medos, minha ansiedade, tudo
isso é um problema a qual preciso aprender a lidar e nunca uma
desculpa. — Cobrindo os olhos, Aidan se curvou até os cotovelos
estarem sobre os joelhos. — Quando eu te vi no seu quarto, quando
vi Samael... Era Jeff estrangulando a mim. Naquele dia, e nos outros
que seguiram, tinha certeza de que a sombra do meu passado tinha
caído sobre você. Minha escuridão está manchando sua alma boa
ao sofrer o mesmo que eu quando tinha dez anos.
— Aidan... — Damien murmurou, saindo da poltrona e ficando
de joelhos na frente do homem encurvado.
— Minha ansiedade me faz assumir o pior de toda e qualquer
situação — Aidan balançou a cabeça, erguendo os olhos para
Damien. — É difícil me manter positivo quando metade da minha
vida é repleta de momentos quebrados e difíceis. E quando vi as
cicatrizes em você, quando seus olhos não se abriram no hospital
por tantos dias... tinha absoluta certeza de que a culpa era minha. E
que, quando você acordasse, iria me odiar por isso.
— Eu não poderia te odiar por algo que não tem controle,
Aidan. As pessoas fazem coisas e nós decidimos se elas nos
afetam ou não.
— Sim, mas... como um homem quebrado poderia cuidar de
outro? — Balançou a cabeça, as pontas dos dedos tocando as
cicatrizes na garganta de Damien. — Só meu travesseiro e as
paredes do quarto sabem todas as noites em que passei em claro,
murmurando: “vai passar...”, quando nunca passou. Ou a voz cruel
em minha cabeça dizendo como sou um fracasso. Como eu poderia
ser um conforto para você quando não consigo nem mesmo ser
para mim?
Damien engoliu, suas mãos segurando o rosto de Aidan mais
perto. Ambos choravam em silêncio, as lágrimas escorrendo e se
misturando quando Damien o puxou para um beijo.
— Nós nos apoiamos, ok? Seremos a muleta um do outro e,
juntos, vamos caminhar devagar. Sem pressa, sem cobranças. Nós
dois, juntando os cacos um do outro. Deus não fez tudo em um só
dia; o que nos faz pensar que podemos?[29]
Aidan gemeu, seus olhos fechando ao envolver os braços no
torso de Damien e o puxá-lo para perto. Seus dedos se agarraram à
camiseta nas costas, fazendo Damien grunhir.
— Me desculpe. Ho sento, ho sento... De tanto me ressentir do
passado e temer o futuro, acabei estragando o presente. Machuquei
você, nós dois, e...
A boca de Damien o calou, engolindo as palavras e todas as
suas dores. Semanas de angústia e tristeza, raiva e solidão sendo
expressadas em um beijo duro e dedos exigentes. Aidan rosnou
contra os lábios de Damien, agarrando a camiseta cinza e a
puxando sobre a cabeça. Os dedos longos de Aidan correram pela
pele desnuda, acariciando com ternura as cicatrizes enquanto o
beijava.
Erguendo-se, tropeçaram pelo caminho até o quarto. Damien
pensou na noite passada, a primeira vez que havia se deitado sobre
sua cama após o abuso, que não conseguiria dormir. De fato, os
pesadelos pareciam piores. Entretanto, Damien parecia mais forte
agora que Aidan estava com ele.
Passaram pela porta quando o último botão da camisa preta
tinha sido desabotoado e Damien empurrou Aidan contra a parede.
Seus peitos encostaram, energia faiscando e fazendo seu coração
acelerar. Sua respiração curta se assemelhava a de Aidan, lutando
para fazer os pulmões trabalharem enquanto as mãos percorriam a
pele um do outro.
O polegar e indicador de Aidan apertaram os mamilos de
Damien, o fazendo gritar e se curvar. Grunhindo, suas mãos
apertando a cintura de Aidan enquanto seu rosto se aninhava na
curva do pescoço. Inspirando o cheiro de canela direto da pele.
— O médico me proibiu de fazer sexo. — Erguendo a cabeça,
suspirou. — Desculpe. Muito machucado por causa... Você sabe.
Aidan o observou com olhos encapuzados, os dedos longos
esfregando sua lateral e se enfiando no cós da calça. Massageando,
apertando a carne, um dedo deslizando pelo topo de sua bunda.
Damien não pode conter o gemido que subiu por sua garganta, a
necessidade e o desejo fazendo os dedos dos pés retorcerem.
— Você pode não estar liberado, mas eu estou.
Piscando, Damien se afastou o suficiente para olhar Aidan.
Caído contra a parede, a camisa aberta revelando o peito
bronzeado com cicatrizes e uma leve penugem descendo pelo
umbigo. As asas da tatuagem do Corvo espreitavam no tecido, se
misturando com as cicatrizes de um corpo construído, a calça aberta
e a cueca branca se destacando contra todo aquele conjunto preto.
Era como olhar o pecado.
E esse pecado olhava para Damien de volta com lábios
entreabertos em um convite para ser beijado. Mordido. Chupado.
Damien agarrou seu próprio pau sob a calça e apertou, seus dentes
afundando no lábio inferior.
— O que você quer dizer com isso?
Aidan sorriu, deixando os joelhos de Damien trêmulos. Um
sorriso devastador que era reservado apenas para ele, para aqueles
momentos íntimos e quentes. Então, Aidan abaixou a calça e a
cueca até o meio das coxas, revelando aquele membro que Damien
tanto ansiava e sentiu falta.
— Estou dizendo... — Aidan suspirou quando Damien passou
o indicador na ponta. — Que posso fazer todo o trabalho sendo o
passivo.
Jesus Cristo!
Fechando os olhos, Damien deu um passo para trás e agarrou
a base do seu pau. Murmurando, apertou os olhos mais forte
quando a imagem de Aidan deitado na cama e sua bunda engolindo
o pau de Damien...
— Porra... Pessoas mortas, uma velha sem sutiã balançando
as tetas...
A risada rouca de Aidan soou alta no quarto. Aquele som
alegre fez Damien sorrir, apesar de estar sofrendo por quase gozar
só com uma imagem. Abriu os olhos quando as mãos de Aidan
seguraram seu rosto, deslizando pelo maxilar e indo para a nuca. As
pontas calejadas criando um atrito contra seu couro cabeludo e
fazendo toda sua pele arrepiar.
— Aidan, não precisa fazer isso se for um problema.
— Nunca é um problema quando se trata de você. — O olhar
escuro perdido e cheio de dor se foi, deixando apenas luxúria e
desejo ardente. Um fogo que poderia consumir a ambos se Damien
jogasse mais gasolina. — É sempre um grande prazer.
Aidan os empurrou devagar até a parte de trás das pernas de
Damien encostarem no colchão e seu corpo caiu sobre a cama,
ofegante. Os ombros largos de Aidan surgiram quando empurrou o
tecido e tirou a camisa. Cada movimento lento, como uma pantera
espreitando para atacar e a presa era Damien.
Aidan enganchou os dedos no cós da calça de Damien e
puxou para baixo, deixando-o apenas com a cueca. Engatinhando
sobre ele, Aidan se inclinou e o beijou, suas mãos o tocando em
cada canto e evitando onde ele mais queria.
— Només vaig entendre què era l'amor quan vas entrar a la
meva vida i li vas donar sentit[30] — Aidan murmurou contra os lábios
de Damien. Descendo, deixou beijos pela garganta e peito. — Amo
sua coragem. Amo sua teimosia. Amo sua lealdade. Amo sua alma
bondosa. Amo sua honestidade e principalmente sua entrega.
Damien arqueou quando Aidan beijou o osso do quadril,
lambendo em seguida.
— Eu... Merda, querido... Amo você também.
Afundando os dedos nos cabelos escuros do Corvo, abriu as
pernas quando aquela boca com lábios carnudos o beijou sobre a
cueca e o mordiscou. Puxando o tecido para baixo, Damien gritou
com a língua quente e molhada passando pela cabeça de seu pau.
— Você parece um pouco desarticulado verbalmente — Aidan
disse, seu sorriso parecendo cruel.
— Sua boca no meu pau. Não precisa de maiores explicações.
Estava difícil respirar. Seu corpo inteiro parecia apertado,
tensionado. Piorou quando Aidan o engoliu, seu queixo batendo nas
bolas pesadas e o nariz aninhado nos pelos aparados da pélvis.
— Jesus misericordioso! — ofegou, sentindo-se no limite.
Seus olhos fecharam, a boca aberta e a respiração forte. Ele
podia sentir batendo contra a garganta de Aidan a cada mergulho,
aquela língua habilidosa o envolvendo e o som de sucção molhada
ecoando no quarto. Damien gemeu e então choramingou quando a
boca o abandonou. Seus olhos abriram quando Aidan o pegou com
cuidado debaixo dos braços e o colocou sentado, as costas
apoiadas na cabeceira.
— Se te machucar, você me diz para parar, cariño.
— Nem se eu estivesse morrendo — murmurou.
Rindo, Aidan levantou da cama e se desfez das calças
enquanto pegava o lubrificante. Voltando, ele molhou os dedos e os
deslizou da ponta até a base do pau de Damien e só aquilo já fez
seus olhos rolarem. Sentando sobre as coxas de Damien, Aidan o
beijou enquanto sua mão se ocupava em se abrir.
Porra, ele precisava sentir isso.
Empurrando a mão de Aidan, Damien encontrou o buraco
apertado e sorriu quando o homem gemeu. Não demorou muito
para o quadril de Aidan passar a empurrar, montando os dedos de
Damien como se a vida dele dependesse daquilo. Os dedos cheios
de cicatrizes apertavam os ombros de Damien, o pau grosso
vazando sobre seu estômago enquanto os dentes mordiam o lábio
inferior.
— Maleït infern, sí... Això és bonic[31]...
Com um rosnado, Damien puxou os dedos e posicionou seu
pau na entrada. A ponta violou o anel de músculos e Aidan se
curvou para pegar sua boca em um beijo desleixado. A cada
centímetro que Damien invadia, mais Aidan gemia. Quando aquela
bunda bonita bateu contra as coxas de Damien, ele precisou de um
momento.
Aquele canal apertado e quente o envolvendo, os sons que
Aidan fazia... A cabeça de Damien bateu contra a cabeceira quando
aquele corpo alto e tonificado inclinou para trás e usou as coxas de
Damien como apoio para começar a pular.
— Porra! Foda-se! — Damien agarrou as bochechas da bunda
de Aidan, batendo de ambos os lados quando ele passou a
cavalgar. Merda, aquilo era quente. — Oh, meu Deus, Aidan...
A cama batia contra a parede, suor cobrindo o corpo de
ambos. O pau de Aidan vazava, molhando a barriga de Damien e o
deixando pegajoso. Em um momento, Aidan apoiou as mãos em
ambos os lados da cabeça de Damien e aqueles olhos escuros
pareciam turvos. A franja escura cobria um deles e Damien
empurrou os cabelos para trás, agarrando a nuca de Aidan e o
puxando para um beijo.
— Vire-se — rosnou contra a boca carnuda.
Levantando, Aidan virou de costas e Damien deslizou a mão
pela coluna e topo da bunda, agarrando os quadris de Aidan e o
puxando para baixo, empalando-o. Viu aquele corpo bronzeado
estremecer, um grito rouco subir pela garganta forte. Quando ele
rebolou para se encaixar melhor, Damien praguejou.
Seus olhos rolaram para trás. Sua espinha curvou, prazer
deslizando por cada terminação nervosa até suas bolas. Ele não
conseguia mais ficar quieto. Damien precisava de mais. Empurrando
o corpo de Aidan pra frente, seus dedos dos pés retorceram com o
grito que o outro deu, seu buraco o apertando e sugando.
— Merda... Oh Déu meu...
Nunca tinha ouvido sons tão bonitos como os que Aidan
estava fazendo.
Quebrados.
Implorando.
Necessitado.
Colocando Aidan de quatro sobre a cama, Damien ficou de pé
sobre o chão e voltou para as estocadas fundas e lentas. Sua mão
agarrou os cabelos pretos em um punho apertado e a outra segurou
o pau quente de Aidan e passou a imitar seus movimentos.
— Cariño... Aniré... Quase lá...
Não precisava de outro aviso. Damien sentiu quando Aidan
veio, pulsando contra sua mão e apertando seu pau, tirando dele o
próprio orgasmo. Estrelas brancas brilharam em sua visão, seu
coração batendo nos ouvidos e pensou que aquele era um belo jeito
de morrer.
Suas pernas falharam, seu corpo desabando sobre o de Aidan
na cama. Suas costelas eram como uma dor que queimava sua
lateral, pulsando. Um braço forte o envolveu, lábios quentes sobre
seus olhos fechados.
— Quero ser o rei da sua história. Eu quero saber quem você
é. Eu quero que seu coração bata por mim. Oh eu, quero que você
cante para mim suavemente. Porque então eu estarei ultrapassando
o escuro. Isso é tudo que o amor já me ensinou. Oh eu, ligue e eu
vou sair correndo. Sem fôlego agora. Você tem esse poder sobre
mim, meu meu[32].
Damien sorriu. Depois de todo aquele tempo, ele sentiu que
conseguiria dormir. Finalmente.
Depois que ele tomasse alguns remédios para dor.
Pops tamborilava os dedos sobre a coxa, seus olhos fixos no
homem de joelhos na frente dela. Ela tinha sido boazinha demais
até aquele momento. Estalando o dedo, abriu a mão para a arma
que foi depositada sobre sua palma e levantou da cadeira com toda
a elegância que conseguiu. Seus saltos afundaram em sujeira, a
barra do vestido branco flutuando a poucos centímetros do chão.
— Sabe... Ainda estou tentando entender o motivo que o levou
a abrir o bico.
Ela deu a volta, engatilhando a arma e sorrindo com prazer ao
ver aquele homem tão grande se encolhendo como uma garotinha
medrosa. Pops apertou a ponta da arma contra a nuca dele, os
cabelos pretos úmidos de suor. As mãos amarradas nas costas se
retorcem, os olhos verdes procurando uma saída. As tatuagens
ondulavam sobre a pele machucada, sangue manchando a tinta de
uma asa.
— Homens que dão com a língua nos dentes, sempre acabam
mortos. Pensei que soubesse disso.
— Por favor... Pops, por favor... Eu tenho uma filha...
— Não se preocupe com ela. Nós, da família D’Angeles,
vamos cuidar muito bem do seu bebê. — Pops se curvou,
enrugando o nariz ao sentir o cheiro de urina. — Você tinha futuro,
mas escolheu jogar pela janela quando contou ao detetive nossos
segredos.
— Por favor... — Ele chorou.
O tiro ecoou naquela sala imunda, sangue e cérebro
espirrando no chão e se misturando com a sujeira. Pops devolveu a
arma para seu capanga, batendo as mãos para tirar a poeira.
— Que ele sirva de exemplo. — Apoiando as mãos na cintura,
virou para encarar o homem que deveria estar demonstrando medo,
mas parecia estar cagando para aquela demonstração. — Kiam?
Olhos de esmeralda furiosos viraram para ela.
— Ele era a porra do Inspetor do Esquadrão de Antidrogas,
Pops. Tem ideia da merda que isso vai dar? Kessler vai ficar furioso.
— Que Newsom vá para o inferno — Pops resmungou. —
Stanton está diminuindo o cerco, mas ele não vai ganhar. Eu tenho
o prefeito na minha mão, porra. Se o promotor não desistir dessa
merda de “vamos acabar com a máfia” vou ser obrigada a explodir
essa cidade.
Kiam balançou a cabeça.
— Você está perdendo o controle, Pops.
— Não, estou tomando-o de volta desde que Stanton começou
essa palhaçada e desestabilizou meu comércio na baía. — Pops
cruzou os braços. — Três fornecedores desistiram e cinco dos meus
informantes na polícia foram presos. Não vou ficar quieta. Stanton
compra meu pessoal, eu devolvo matando os dele.
— O que quer dizer com isso? — Kiam perguntou lentamente.
Pops sorriu, piscando.
— Aguarde. Vou pintar as paredes com sangue de detetives,
Midas.
Ela riu, deixando Kiam para trás e não percebendo como ele
estremeceu. Toronto estava prestes a queimar.
— Não!
Aidan acordou com um sobressalto, não sabendo se era ele
que tinha gritado ou se havia sido no sonho. Esfregando os olhos,
seu coração batendo na garganta, Aidan ofegou quando um punho
se conectou com seu estômago.
— Não! Não!
Per Déu, era Damien. Os punhos voavam, o homem se
debatendo em seu sono. Seu rosto desfigurado pelo ódio, dentes
cerrados em um rosnado enquanto sua mente o mantinha preso em
um pesadelo. Aidan sabia como era se sentir assim. Um grito de
rasgar a alma fez Aidan saltar sobre Damien, segurando seus
braços e o chacoalhando.
— Damien! Cariño, acorde! Sou eu!
— Não! Me solte! Não!
— Amor meu, escolta’m. Sou eu. Aidan! Volte para mim, é
apenas um pesadelo!
Damien soluçou, seus olhos se abrindo perdidos. Aidan
entrelaçou seus dedos aos do outro, deixando sua cabeça pender e
encostar a testa contra a de Damien.
— O que... Eu te acordei?
— Eu já estava acordado. — Aidan mentiu.
— Merda, desculpe. Era um pesadelo...
— Shh. Não se preocupe com isso agora.
Aidan puxou as cobertas de volta, enrolando-os e formando
um casulo. Passando os braços ao redor de Damien, beijou a
têmpora suada. Aidan estava muito familiarizado com o terror
noturno. Os pesadelos constantes do trauma vivido que a mente
insistia em trazer à tona todas as noites. Damien gemeu, afundando
o rosto no peito de Aidan.
— Quando isso vai parar?
Aidan ficou quieto por alguns segundos, exalando em seguida.
— Não sei. Talvez amanhã? Daqui duas semanas? Nunca?
— Como viveu assim todos esses anos? — Damien murmurou
contra a pele de Aidan. — Eu o vi tendo pesadelos uma noite. Você
parecia estar sofrendo e eu não sabia o que fazer.
— Não vivi, Damien. Sobrevivi. Vagando entre presente e
passado, temendo o futuro. — Aidan olhou para a janela, o sol
entrando por entre as cortinas e lançando luz na parede. — Uma
vida miserável.
— Não posso fazer nada pelo seu passado, mas posso ajudar
com o futuro. — Damien ergueu a cabeça, um sorriso sonolento e
ficando sério em seguida. — Você está bem? Sei que já perguntei
ontem, mas...
— Estou ótimo, amor. Volte a dormir. — Beijou a ponta do nariz
de Damien antes do homem voltar a aninhar o rosto no pescoço de
Aidan.
— Me prometa que, quando esse caso acabar, nós vamos sair
de férias pra uma ilha deserta, ficar nus 24h por dia e transar como
selvagens — Damien murmurou.
Isso fez Aidan rir. Foi inevitável.
— Não posso prometer uma ilha deserta, cariño, mas tenho
uma cabana na montanha que pode servir.
Damien cantarolou.
— Serve — disse, bocejando.
Minutos depois, Damien estava dormindo novamente. Seu
ronco baixo vibrava no peito de Aidan, que estava se sentindo
desperto demais para voltar a fechar os olhos. Os minutos
passaram devagar, até que Chips surgiu na porta carregando sua
tigela de forma pontual. Aidan deixou um beijo em Damien, algo que
percebeu estar se tornando um vício, e se desenroscou dos braços
do homem.
Fez uma careta ao sentir a bunda doendo. Faziam anos que
Aidan tinha sido um passivo. Na verdade, Damien era o primeiro
desde que... Bom, desde uma noite bêbada com um idiota da
fraternidade que não sabia o que estava fazendo e Aidan pensou
que havia superado. Aquela ideia idiota acertou um gatilho e fez
Aidan correr. Porém, não poderia falar aquilo em voz alta ou o ego
do seu parceiro poderia sair flutuando como um balão.
Caçando sua cueca, Damien resmungou:
— Não vá...
— Chips está com fome.
— Ele não vai morrer se esperar mais cinco minutos.
Ouvindo isso, Chips latiu com um rosnado no final, sua pata
batendo na tigela e causando um ruído metálico. Aidan se encolheu
enquanto Damien puxava o travesseiro sobre a cabeça.
— Tudo bem! Alimente o cão e volte para cá.
— Nós temos trabalho, esqueceu? — Aidan grunhiu, enfiando
as pernas pela cueca branca.
— Claro. Estava pensando em passar na casa do suspeito
para dar uma olhada antes de ir até a sede da TPS.
— Preciso trocar minhas roupas — resmungou, procurando
por sua calça.
Por que tinha de estar tão frio? O aquecedor não estava
ligado?
— Você deveria ter suas roupas aqui. Seria muito mais prático
— Damien murmurou, o rosto afundando no travesseiro e puxando a
coberta sobre a cabeça.
Aidan parou, suas sobrancelhas arqueando e olhando para o
monte de cobertores.
— O que você quer dizer com isso?
— Suas roupas no meu guarda-roupa. Esse é o meu jeito nada
sutil de chamá-lo para morar comigo.
Aquilo era... inesperado. E doce. E explodiu no peito de Aidan
uma confusão de sentimentos em que alegria se destacava. Assim
como apreensão.
— Você... tem certeza disso?
— Tenho.
— Mesmo?
Damien bufou, tirando a cabeça para fora das cobertas.
— Sim, eu tenho. A mesma certeza de que vou atirar sua
bunda na neve se continuar me importunando pela manhã.
Oh, claro. Aidan esqueceu que Damien não era uma pessoa
matutina. Colocando sua calça, Aidan saiu do quarto antes que
recebesse outra ameaça.
— Seu dono é tão exigente quanto você, Chips. Agora entendo
de onde vem sua personalidade.
Chips bufou. Tal dono, tal cão. Realmente.

Cobrindo o sol dos olhos com a mão, Aidan observou a porta


antiga da casa velha que precisava de uma boa pintura. Ou talvez
ser destruída e construída do zero para se tornar habitável. Como
aquele garoto poderia estar vivendo dessa forma?
Chegou à conclusão de que não tinha bebido café suficiente
para enfrentar aquela tarefa. E ainda nem eram nove da manhã.
Damien chutou um pouco da neve acumulada na calçada, as mãos
apoiadas na cintura estreita enquanto olhava para a casa com
sobrancelhas franzidas.
— Isso é...
— Deplorável — Aidan grunhiu.
— Eu ia dizer pitoresco.
Olhando de forma cética para Damien, Aidan empurrou o
pequeno portão enferrujado para dentro, o rangido de metal
fazendo-o trincar os dentes. Os degraus da frente rangeram com o
peso de Aidan. Olhando pela varanda minúscula, uma cadeira de
balanço precária e um vaso de planta com galhos secos. Cerrando
os olhos, virou para ver Damien de luvas enfiando um clips na
fechadura e girando.
— O que está fazendo?
— Abrindo a porta? — resmungou, a ponta da língua para fora
no canto do lábio enquanto as mãos trabalhavam.
— Não existe um mandado para isso? Oriol é um suspeito.
— Fiz o pedido, mas ainda não saiu. — O som de uma trava
girando soou e Damien levantou, empurrando a porta. — Aí está.
Veja, a porta abriu.
— Você arrombou — Aidan disse, enfiando as mãos nos
bolsos.
— Não, ela já estava aberta quando chegamos. — Balançou a
mão para o lado de dentro. — Não foi forçada e não tem minhas
digitais. Estava aberta.
— Essa sua mania de arrombar as coisas ainda vai te dar um
grande problema. — Aidan pegou as luvas sobressalentes que
Damien estendia para ele e ignorou o sorriso do seu parceiro.
Tirou as luvas de couro e calçou as brancas de látex ao passar
pela porta e entrar na sala. Aidan percebeu como o interior era
diferente do exterior. Móveis limpos e seminovos, uma TV de
plasma enorme, um console de videogame lançado no verão
passado. A cozinha com armários brancos e uma geladeira de duas
portas, um fogão por indução e uma mesa de madeira antiga. Havia
roupas jogadas pelo sofá, assim como migalhas pela mesa, como
toda casa de homens porco e solteiro.
Seguindo pelo corredor o banheiro parecia ser o mais limpo da
casa, assim como o quarto principal. A cama de casal com lençóis
bagunçados, um guarda-roupa branco de portas de correr. Aidan
empurrou alguns cabides, a camisetas largas de rock, outras mais
sérias. Algumas calças dobradas e dois pares de sapatos. Uma
pequena mesa ao lado da cama com um notebook prata sobre ela,
uma prateleira de livros na parede.
Damien olhava os títulos quando Aidan parou ao seu lado.
Puxando a pequena gaveta da mesa, olhou para o interior quase
vazio. Algumas canetas, papeis em branco, uma agenda com
telefones.
Quem ainda mantinha agendas assim?
— Ele tem um ótimo gosto literário — Damien disse, puxando
um livro fino e folheando.
— Diga isso por você — Aidan grunhiu.
Damien sorriu, colocando o livro no lugar. Aidan olhou para a
lombada vermelha com letras dourados e o puxou, abrindo e
revelando que era apenas um livro falso. Dentro, encontrou três
pacotinhos de cocaína.
— O que temos aqui? — Damien murmurou, olhando dentro.
Só aquilo já deixaria Oriol na cadeia por um tempo. Isso se
Forest não conseguisse tirá-lo de lá antes de fecharem o caso.
Entregando os saquinhos para Damien, Aidan devolveu o livro para
a prateleira.
— O que você quer fazer sobre isso? — perguntou,
balançando os pacotes para Aidan, que franziu as sobrancelhas.
— Entregá-lo, claro.
— Hm... — Damien coçou a têmpora. — É que ele é seu meio-
irmão...
Isso era verdade, mas... Aidan pensou desde a tarde de ontem
sobre aquela descoberta. Oriol poderia ter seu sangue sendo filho
da mesma mãe, mas só isso não o fazia ser irmão. Tiffy tinha sido
mais irmã no tempo em que se conheceram do que Oriol. Assim
como Colin. Compartilhar o mesmo sangue os fazia parentes, mas
apenas isso.
Balançando a cabeça, Aidan cruzou os braços.
— Continuo pensando a mesma coisa. Oriol deve pagar pelos
erros dele. Indiferente de quem ele seja.
— Você não pensou assim sobre mim. — Damien apontou.
— Isso nem mesmo se compara — Aidan grunhiu. Saindo do
quarto, falou sobre o ombro. — Vou dar uma olhada nos fundos.
Saindo pela porta da cozinha, Aidan respirou o ar frio. Desde
ontem os problemas haviam caído como uma tempestade sobre sua
cabeça. Suas emoções estavam uma bagunça e sentia que poderia
explodir caso o pai de Oriol também aparecesse. O que Aidan faria
se isso acontecesse?
Não querendo pensar demais em um futuro que não tinha
controle, Aidan foi para a garagem e testou a porta. Ela se abriu
com um empurrão, revelando um carro azul petróleo antigo. O teto
preto, maçanetas cromadas, rodas pretas. Aidan olhou pelos vidros,
encontrando todo tipo de porcaria sobre os bancos. Puxando a
maçaneta, a porta se abriu sem alarme ou resistência.
Maledicció, o garoto não sabia o que era limpeza? Aidan
empurrou um copo de café para o lado, o resto do líquido espirrando
sobre o tapete de tecido. Droga, ele não tinha visto que estava pela
metade. Murmurando imprecações em catalão, Aidan pegou o copo
e puxou o tapete, uma manga de blusa creme surgindo debaixo do
banco da frente.
— Evans! Venha aqui!
Aidan pegou o celular e tirou uma foto antes de puxar a peça e
olhar a mancha de sangue na gola. Parecia muito ser uma blusa
feminina.
— Ei. O que achou? — Damien inclinou a cabeça. — Você
abriu o carro? E aquela coisa toda de arrombar?
— Não estava trancado. — Aidan balançou a cabeça e
levantou, segurando a blusa. — O que acha disso?
Damien olhou a peça e depois para Aidan.
— Isso me parece uma prova, porra.
— Foi o que imaginei. Entregamos para Jack dar uma olhada?
— Sim. Entregamos antes de voltar à sede. — Damien olhou
ao redor, encontrando um saco pardo. — Aqui, coloque aqui dentro.
É melhor do que levar na mão.
Fechando o saco na parte de cima após colocar a blusa
dentro, Aidan fechou o carro e a garagem. Seu telefone tocou
quando ambos saíram da propriedade e foram para o carro. Na tela,
o nome de Reese Knight brilhou.
— Callaghan.
— A identidade da vítima foi descoberta. — A voz da
Superintendente soou grave no viva-voz. — Preciso de você aqui.
— Vamos passar na CFS antes, mas... por que não falar
agora? Quem é a garota?
— Em “vamos” espero que seja apenas você e seu espírito
rabugento, Callaghan. E sobre o nome, não posso falar por telefone.
A situação é realmente séria.
Merda, as coisas só pareciam ficar piores.
— Como quiser, Chefe.
Damien já estava ligando o carro quando o telefone ficou
mudo. Entre a CFS e a sede da TPS, Aidan pegou um copo
extragrande de café forte e puro. As drogas, uma blusa com sangue
e agora um nome que não poderia ser divulgado fora das paredes
da sede. Tudo apontava que, se Oriol não matou a menina, teve
participação. Eles só precisavam provar como.
Saindo do carro, Aidan tomou um longo gole do café e
suspirou. Damien tinha comido metade do seu saco de Skittles
quando subiram os degraus da frente da TPS.
— Você vai ter dor de barriga se comer tudo isso de doce —
Aidan resmungou.
Enfiando um punhado das balas na boca apenas por afronta,
Damien mastigou e falou ao engolir:
— Eu não falo do seu café te dando arritmia, e você não fala
dos meus doces.
Desta vez, Aidan não conseguiu segurar de rolar os olhos.
Enfiando a mão dentro do saco quase vazio, roubou para si algumas
daquelas bolinhas coloridas e recebeu um olhar fulminante do seu
parceiro ao entrarem no departamento e caminharem para suas
mesas. Aidan apoiou o copo perto do teclado enquanto enfiava uma
mão no bolso e inclinava o quadril contra a beirada. Ava girou em
sua cadeira, clicando sua caneta e sorrindo para Damien.
— Hey, Evans. — Virando para Aidan, o brilho feliz de Ava
diminuiu um pouco. — Callaghan.
— Salut, senyora Park. — Cumprimentou inclinando a cabeça
suavemente e cruzando os braços.
Ela fechou os olhos e soltou um grunhido.
— Cristo... Não quero gostar de você só por causa do sotaque.
— Ele é vegetariano e anda de metrô para não poluir mais a
cidade. — Damien apontou, sentando ao lado de Aidan. — Quer
melhor qualidade que essa?
— O homem suporta o Evans. Isso já ganha o Oscar de
paciência para mim — Cam comentou ao se aproximar.
— Ei, Cam. O cabo de vassoura ainda está na sua bunda, pelo
que vejo. — Damien sorriu e balançou a mão na frente do rosto. —
Cara azeda.
Cam mostrou o dedo do meio ao mesmo tempo em que a
porta da Superintendente se abriu e Reese Knight saiu de lá com
passos firmes e uma pasta amarela enrolada na mão. Seus olhos
escuros cerraram ao perceber Damien ao lado de Aidan, seu lábio
se enrolando no canto como se estivesse rosnando. O homem alto e
loiro atrás dela fez Aidan retesar, congelado em sua postura rígida
de braços cruzados.
De todas as malditas pessoas do mundo, Stanton tinha que
enviar justo ele?
— Evans! O que pensa que está fazendo aqui?
— Trabalhando? — perguntou com cinismo ao dar a volta e
parar atrás de seu parceiro, usando-o como escudo.
Exalando baixinho, Aidan balançou sutilmente a cabeça em
negação. Ava já não foi tão sutil ao soltar um gemido e girar na
cadeira, dando as costas para os dois. Cam nem mesmo cobriu o
sorriso arrogante.
— Você. Está. De. Licença. Desapareça daqui antes que eu
quebre suas pernas e o deixe mais seis meses afastado.
— Chefe...
Knight ergueu a mão, calando as palavras de Damien.
— Você não está aqui. E se não está aqui, não posso ouvir sua
voz. — Reese cruzou os braços e se virou para Aidan. Ele entendia
o porquê do seu sobrenome ser Knight. A mulher poderia muito bem
ser um cavaleiro vestido de ferro e cota de malha, empunhando uma
espada afiada. — Callaghan, estou designando um novo parceiro
substituto para você.
— O quê? — Damien exclamou, arfando baixinho.
— Não quero um novo parceiro — Aidan falou, tentando não
ranger os dentes.
Reese deu um passo para o lado, acenando com a pasta
enrolada na direção do homem atrás dela. Homem que Aidan tinha
percebido e escolhido ignorar ou poderia cometer um homicídio.
— Raphael Kennedy, transferido do Antidrogas. Vai trabalhar
com você até a licença médica de Damien acabar. Raphael, este é
Aidan Callaghan.
— Não mesmo! — Damien tornou a exclamar, seus olhos
verdes arregalados.
Entretanto, Reese estava ignorando-o com muita eficiência.
Balançando a mão ao lado da cabeça, como se estivesse
espantando uma mosca indesejada zumbindo em seu ouvido.
— O Corvo. Ouvi falar muito de você. — Raphael passou por
Reese, estendendo a mão na direção de Aidan.
Seu cabelo loiro escuro estava amarrado em um penteado
samurai desleixado, barba por fazer no queixo quadrado e olhos
cinzentos contornados por cílios loiros escuros. Ele sorria
abertamente, uma alegria irradiando em ondas brilhantes como se
fosse o sol. Tão enjoativo quanto Aidan se lembrava.
Não havia mudado nada em todos aqueles anos.
Olhando para a mão estendida e então de volta para o rosto de
Raphael, o Corvo apenas grunhiu e permaneceu com os braços
cruzados.
Rindo baixinho, Raphael recolheu a mão e a enfiou no bolso.
— Cara simpático.
— Você se acostuma — Reese disse.
— Não quero um novo parceiro — Aidan tornou a dizer,
olhando para a Superintendente. — Essa é a terceira e última vez
que falo isso.
Arqueando uma grossa sobrancelha para Reese, Aidan
esperava que ela entendesse. A primeira vez que negou aquela
ideia maluca de um novo parceiro tinha sido feita direto na fonte,
quando Stanton ligou para ele três dias atrás. E, se Aidan fosse
obrigado a aceitar, estaria jogando sua demissão sobre a mesa do
promotor.
Que se danem as consequências.
Damien deu um passo à frente, fazendo com que Reese
olhasse diretamente para ele.
— Aidan não precisa de um novo parceiro sendo que ele tem a
mim.
— Evans, não vou falar novamente. Saia da minha frente. —
Knight avisou.
— Não vou ficar em casa, enlouquecendo! Vou trabalhar e
ocupar a minha mente, não deixando Callaghan sozinho. Se você
quer tanto assim que alguém tenha um novo parceiro, então coloque
com o Cam já que Ava está saindo!
— Damien, seu imbecil — Ava rosnou.
Aquilo fez Damien se encolher levemente e Aidan franziu as
sobrancelhas. Cam olhava sério para Ava enquanto Raphael se
balançava sobre os pés e Reese parecia querer enforcar Damien.
Todos aqueles dias que seu parceiro esteve no hospital, a
delegacia sempre pareceu quieta e sem graça. Eles precisavam do
homem para ter um pouco mais de agitação.
Isso quase fez Aidan rir.
— O que esse idiota está falando, Ava? — Cam questionou.
Ela gemeu, esfregando a testa, enquanto Reese suspirava.
— Eu não sou paga para aguentar esse tipo de coisa.
— Ava? — Cam insistiu.
— Estou saindo do trabalho — disse, encolhendo os ombros.
— O quê? Por quê?
— Estou grávida — Ava sorriu, a mão pousando sobre a
barriga. — Desculpe, Cam. Eu ia te contar.
— Sim? E quando pretendia fazer isso? No último dia? Ou
depois que já tivesse saído? — Cam balançou a cabeça quando ela
encolheu um ombro, sem graça. — Inacreditável, Ava.
— Vocês possuem um grande drama nesse departamento —
Raphael comentou.
— Cara novo, fique quieto. — Reese bateu a pasta no centro
do peito de Raphael e virou na direção de Aidan, ignorando Damien
parado bem na frente dela. — Você vai fazer o que eu mandei ou
estou perdendo meu tempo aqui?
— Perdó, Chefe Knight, mas mantenho minha palavra.
— E eu estou muito feliz com meu parceiro, obrigado. Não
preciso de outro. — Damien balançou a cabeça. — Já me acostumei
com o mau-humor do Corvo.
Aidan arqueou as sobrancelhas.
— Como se aturar suas piadas fosse fácil.
— Você as ama, só não quer admitir — Damien disse,
balançando a mão com descaso.
— Deus misericordioso... — Reese resmungou e falou para
Aidan: — Você sabe a merda que isso vai ser, certo?
— Absolutamente.
— Ótimo. Mudança de planos, Raphael. Seu novo parceiro
será Cam. — A Superintendente balançou a pasta na direção de um
rabugento Cam “Feroz” Riggs. — Seja bem-vindo, pegue seu
assento, aperte os cintos e tenha um ótimo passeio.
— Muito obrigado, Chefe. — Raphael praticamente brilhou ao
dizer isso.
O que fez Aidan piscar, enojado, e Cam grunhiu uma maldição.
— Segunda coisa que me fez sair da minha sala para olhar
para a cara de vocês. Minha sala. Os quatro.
Aquilo era, no mínimo, estranho. Reese virou, deixando-os
para trás, e apenas Raphael a seguiu. Aidan olhou para Damien,
seu parceiro encolhendo os ombros e parecendo tão confuso quanto
ele quando uma caneta passou voando na frente do seu rosto e
atingiu Damien na testa.
— Mas que porra...
— Seu filho da mãe linguarudo! — Ava vociferou ao levantar
da cadeira. Suas bochechas estavam vermelhas de raiva.
— Eu pensei que já tinha contado! Qual é, Ava! Isso foi
semana passada!
Cam bufou.
— Você contou a ele assim que decidiu e não para mim, seu
parceiro?
— Você pisou feio na bola e ainda estou brava, Cam. Muito
brava. — Se virando para Damien, apontou um dedo na direção
dele. — Você me paga por isso.
Ava se virou e saiu, suas botas batendo no chão como se o
piso tivesse culpa de algo. Damien jogou as mãos à frente, palmas
voltadas para o teto e olhou para Aidan de forma incrédula. Cam
cruzou os braços, olhando para Damien.
— Você é um maldito traidor e sou eu que pago pela raiva
dela?
— Não sou um traidor, nunca fui. — Damien encolheu os
ombros. — Mas você é muito estúpido para perceber isso.
— Aqueles relatórios dizem o contrário — Cam rosnou.
Rolando os olhos, Damien tirou a jaqueta grossa e a colocou
nas costas da cadeira.
— Aqueles relatórios não são nada. Você não sabe de nada.
Deveria agradecer por ainda estar vivo — resmungou a última parte
da frase e suspirou.
— Evans!
As sobrancelhas de Aidan arquearam com o grito ecoando na
sala subitamente silenciosa quando Damien se encolheu e olhou
para a porta aberta da sala de Reese.
— Todos estamos atrasados, por que ela chama apenas meu
nome?
— Costume? — Aidan arriscou.
Com ombros caídos, Damien arrastou os pés todo o caminho
até a sala da Superintendente, Aidan e Cam seguindo logo atrás.
Quando a porta se fechou, Reese apoiou a bunda na quina da mesa
e cruzou os braços. Seus olhos sérios analisaram cada um naquela
sala antes de cair sobre Aidan.
— Para que tudo fique claro, estou pouco me importando com
o passado de vocês. Sei sobre Damien, sobre Aidan, sobre
Raphael. Cam é o único detetive limpo nesta sala e espero que
permaneça desse jeito. — Seus olhos passaram por cada um ali
antes de estender a pasta que segurava para Aidan. — O que quero
dizer é: a partir deste momento quero que esqueçam tudo de meio
minuto para trás. O nome da vítima dentro dessa pasta é nossa
prioridade agora e precisa do nosso silêncio até segunda ordem.
Assentindo, Aidan abriu a pasta e mordeu a língua para não
amaldiçoar. Damien já não foi tão comedido.
— Puta que pariu! A vítima é Zoey Valor? A filha do Senador
Wellington Valor?
— Agradeceria se falasse mais baixo, Evans — Reese rosnou.
— Sim. E a família ainda não sabe. Por enquanto, conversei com a
assistente do Senador valor e ela vai se encarregar de reunir a
família na casa. Ela já me advertiu que o Senador vai ser como um
rolo compressor sobre nós, exigindo resultados e a cabeça de quem
matou sua filha. Por isso estou colocando vocês quatro nesse caso.
— Não! — Cam e Damien responderam em uníssono.
Os dedos de Reese apertaram o braço, seus olhos cerrando
de forma ameaçadora. Então, ela abriu um largo sorriso de tubarão
que fez a espinha de Aidan se arrepiar e Damien engoliu em seco.
— Desculpe, mas vocês me ouviram dizer “por favor”? — Seu
rosto ficou sério, o dedo apontando para cada um deles. — Não.
Porque isso não foi um pedido, mas uma ordem. Já tolerei a
palhaçada de minutos atrás, então não testem a minha paciência.
Sou a Superintendente de vocês e estou mandando os quatro para
a casa do Senador para preparar a família para essa notícia. Agora.
Os quatro assentiram, em silêncio. Entretanto, a hostilidade
entre eles era quase palpável. Como eles terminariam aquela
investigação sem matar um ao outro era um grande mistério para
Aidan.
Aquela era uma situação de merda. Não bastasse ser a filha
do Senador, como agora havia mais duas pessoas trabalhando no
caso. E uma delas era Cam. Quão pior poderia ficar?
— Evans, agende com a doutora Goodwin um horário. Quero
um relatório dela o liberando para o trabalho.
Damien gemeu, olhando para Knight.
— Por quê?
— É o protocolo. Depois de anos, deveria saber disso, Evans.
— Reese acenou para a porta. — Agora saia. Se não posso mantê-
lo em casa e muito longe daqui, então exijo um laudo médico.
Resmungando, Damien saiu da sala e bateu a porta. Aidan
tinha seu copo de café de volta, uma carranca o deixando ainda
mais sombrio que o normal. Uma negra sobrancelha arqueou
quando Damien se aproximou dele.
— Por que está fazendo biquinho?
— Reese me pediu um laudo da psicóloga. E eu não faço
biquinho. — Damien inclinou a cabeça para trás, olhando Aidan com
atenção. — Você não parecia muito surpreso quando Knight falou
sobre um novo parceiro.
— Porque eu não estava — respondeu apático.
Os olhos escuros foram para Raphael recolhendo o casaco
grosso de uma mesa não muito longe e colocando sobre o blazer
azul, um sorriso idiota no rosto.
— Certo — Damien falou devagar. — Algo que devo saber?
Aidan exalou lentamente e virou, deixando Damien sozinho.
Pegando sua jaqueta da cadeira, correu atrás do Corvo e praguejou
quando as costelas começaram a doer com o esforço. Chegando no
térreo, apertou a lateral direita com a palma da mão e socou o braço
de Aidan com a outra.
— Isso é por me fazer correr.
— Perdó. — Balançou a cabeça e jogou o copo na lixeira. —
Não poderia falar isso lá dentro. Acontece que Stanton quer agilizar
o caso e pensou que enviando outro investigador seria mais rápido.
Ele mencionou isso para mim alguns dias atrás enquanto você ainda
estava hospitalizado.
— Então, você sabia sobre Raphael.
— Não exatamente. — Aidan exalou. — Stanton não me disse
quem seria. E Raphael... não se chama Raphael.
— Como assim?
— Eu o conheço de Quebec. Ele faz parte da FTE[33] na equipe
de armas especiais e táticas. Sniper. — Aidan olhou para a escada
e murmurou: — Arrogante com o ego do tamanho de um elefante.
— Ei, seus dois idiotas! Nos deixaram para trás! — Cam rugiu,
descendo os degraus até eles.
Damien cruzou os braços, ignorando Cam e seus chiados.
— Isso significa que você o detesta. — Damien assentiu. —
Vocês dois já...
— No! Mai[34]! — Aidan exclamou, negando enfaticamente. —
Não mesmo.
— Do que estamos falando? — Raphael perguntou ao se
aproximar.
As mãos nos bolsos do blazer azul marinho que realçavam
ainda mais a cor dos olhos e a blusa de lã creme com gola alta.
Damien cerrou os olhos na direção do homem.
— Nada da sua conta, novato — Damien resmungou.
Raphael se aproximou de Aidan, batendo o ombro no seu e
falando baixo, mas não baixo o suficiente e Damien acabou
escutando.
— Seu parceiro desta vez é como um cão irritado, Corvo.
Damien Evans, hein? — Raphael assobiou. — Já ouvi falar de você.
Callaghan parece gostar dos traiçoeiros.
— Suficient[35]!
Tudo aconteceu rápido demais. A pasta que Aidan carregava
foi empurrada contra o peito de Cam e o Corvo segurou Raphael
pelos lapelas do casaco e o empurrou até as costas dele baterem
na parede. Algumas pessoas que passavam soltaram exclamações
de surpresa enquanto outros apenas olhavam. Cam arqueou as
sobrancelhas quando Aidan grunhiu, erguendo Raphael. O som de
tecido rasgando soou ao mesmo tempo que Damien dizia:
— Que porra você está fazendo, Aidan?
Ao contrário de todos, Raphael sorria como se não estivesse
sendo enforcado e Aidan não o olhasse com fúria assassina.
— Você continua... sensível, Corvo?
— Calla[36]! Seu egocêntrico, está aqui a mando do Stanton,
não é?
— Acho que isso... não é algo que devemos... falar em público
— Raphael engasgou, rindo.
Isso pareceu deixar Aidan ainda mais irritado. Os dedos do
Corvo apertaram um pouco mais quando Damien segurou no pulso
de Aidan.
— Aidan, solte o Raphael. Vamos.
A voz de Damien parecia tentar ser calma, mas havia uma
pequena ponta de desespero. Os dedos agarraram as costas do
sobretudo de Aidan, puxando suavemente. A contragosto, ele soltou
o casaco de Raphael e deu um passo para trás, afastando-se, e
ajeitando as mangas de seu sobretudo. Damien esfregou as
bochechas, olhos fechados, implorando por paciência.
— Isso não vai dar certo — resmungou, os polegares
apertando os olhos.
Raphael ajeitou o casaco, seu sorriso nunca caindo.
— Você rasgou minha roupa, Corvo. Vou dizer para descontar
do seu salário.
— Ves a l'infern[37]. Você nem mesmo usa esse tipo de roupa.
Seu uniforme é a porcaria de uma camisa xadrez — Aidan
resmungou.
— Certo. Raphael e Cam, vão com outro carro. Nós nos
encontramos na casa do Senador — Damien disse.
— Ainda não fui liberado para pegar meu carro marcado. —
Raphael encolheu os ombros.
— A chave do meu carro compartilhado está com a Ava —
Cam resmungou. — E nós temos de revisar o caso juntos. Não
podemos chegar lá como se fossemos escolta ao invés de detetives
designados para o mesmo crime.
O tique no olho de Damien voltou, seu polegar afundando na
órbita pulsante enquanto pensava em qual momento ele errou.
Talvez fosse coisa da vida passada que estava sendo cobrada só
agora.
— Jesus Cristo, isso é uma grande merda. — Balançou a mão
e saiu caminhando pela calçada, suas botas batendo no chão como
se ele fosse culpado. — Preso com Cam e o Senhor Sorriso.
— Isso é o nome de um urso, não é? — Raphael comentou,
alcançando os passos de Damien.
Damien escolheu ignorar o homem. Apertando o botão do
alarme, as luzes do carro piscaram. Sentando atrás do volante, seus
dentes rangeram quando os dois homens sentaram na parte de trás
e Aidan ocupou o banco do passageiro. O Corvo parecia ainda mais
sombrio. Uma nuvem escura cobria sua cabeça e Damien poderia
ver claramente os raios e trovões. Tocando sutilmente a coxa de seu
parceiro, apertou os músculos tensos antes de ligar o carro e sair da
vaga.
Seriam dez minutos até a casa do Senador em Rosedale Park,
e seriam os minutos mais longos da vida de Damien. Parado no
sinal vermelho, quase mordeu a língua quando Raphael se inclinou
entre os bancos e sua cabeça loira ficou entre Damien e Aidan.
— Então? Qual o caso de vocês?
Por um breve momento, Damien achou que o homem estava
perguntando sobre o relacionamento dele com Aidan. Então,
percebeu que era sobre o caso criminal. A mão enluvada de Aidan
surgiu, cobrindo o rosto de Raphael e o empurrando para trás.
— Sente-se como uma pessoa normal — rosnou.
Cam pigarreou e Damien viu que ele estava com a pasta que
Reese entregou para Aidan. Seus dedos folheavam as fotos,
sobrancelhas franzidas.
— O suspeito está sob custódia?
— Sim. Precisamos comprovar que ele fez ou participou do
assassinato. — Damien acelerou quando o sinal abriu.
— Oriol Armand. — Raphael recitou o nome devagar. —
Abandonou os estudos aos dezesseis anos. Trabalha como
atendente em uma lanchonete no campus da Universidade Ryerson
há dois anos.
— Sai de cima de mim, cara — Cam falou, empurrando
Raphael para o outro lado. — Você não sabe o que significa espaço
pessoal?
— Meu ar, seu ar. A gente economiza oxigênio respirando mais
perto.
Aidan cruzou os braços, carrancudo, e Damien cerrou os
olhos. Aquilo era algo que ele teria falado para seu parceiro, o que o
deixava completamente arrepiado. Decidiu que era melhor se
concentrar em dirigir. Os prédios altos ficaram para trás, se tornando
em uma paisagem de árvores secas e retorcidas. A neve se
acumulava nas calçadas e sobre a terra, cobrindo a grama. As
folhas que ainda resistiam tinham sua cor amarelada e vermelha,
balançando precariamente pelo vento forte. O sol parecia deixá-las
mais vivas naquele cenário tão branco pálido.
A rua da casa do Senador estava limpa e quieta. Quando
Damien estacionou na frente da grande mansão, sabia que não
seria fácil. Principalmente quando a mulher de terninho preto
debaixo de um grande e quente sobretudo cinza os olhava da
varanda.
— Bonita, séria, usando terninho e carregando uma pasta.
Aquela deve ser a assistente — Raphael comentou, abrindo a porta.
— Quer uma medalha, capitão óbvio? — Cam grunhiu, saindo
do outro lado.
Damien suspirou, olhando para Aidan com sofrimento.
— Nós dois éramos insuportáveis assim quando nos
conhecemos?
— Acho que era pior — Aidan respondeu, franzindo as
sobrancelhas. — Você é um Golden com desvio de atenção.
Raphael é como um Pastor Alemão. Ou seja, você é mais
insuportável.
— Não pareceu assim ontem quando meu pau estava na sua
bunda. — Damien sorriu, abrindo sua porta.
— Sou humano. Posso ter um desvio de julgamento de vez em
quando — Aidan comentou secamente.
Isso fez Damien rir. Porra, ele sentia falta de rir com Aidan. O
vento gelado envolveu Damien em um abraço quando pisou na
calçada, seus dentes batendo e as mãos se enfiando nos bolso da
jaqueta. Aidan balançava a cabeça, a lapela do sobretudo erguida
de um lado e cobrindo seu pescoço.
Ele parecia quente.
Nos dois sentidos.
— Vamos acabar logo com isso.
Caminhando pela entrada sinuosa de pedras claras, Damien
subiu os degraus da frente e acenou em cumprimento.
— Inspetor Detetive Evans e meu parceiro Callaghan. Aqueles
são Kennedy e Riggs, detetives designados para ajudar nesse caso.
— Sou Wanda Sauerzapf, assistente do Senador. Ele e a
mulher estão lá dentro e, devo avisar com antecedência, o Senador
Valor está muito impaciente. — Wanda abriu a porta e indicou para
eles passarem. — O irmão mais velho, Royce, está a caminho.
O teto alto da entrada dava a impressão de que a casa era
ainda maior. Móveis caros e vários adornos que Damien imaginou
serem de ouro. Ele e Raphael assobiaram ao mesmo tempo quando
viram o enorme candelabro de cristal na sala de recepção.
— Isso me faz lembrar da Miley se balançando naquela bola —
Raphael disse baixinho.
— Tenho certeza de que esse pendente custa muito mais que
aquela bola de demolição. Cantar “Wrecking Ball” teria ficado muito
mais caro — Damien comentou, olhando para Raphael e os dois
sorriram.
— Por aqui, por favor, senhores. — Wanda os chamou das
portas duplas no final da sala.
Os quatro passaram pela porta, entrando na sala de estar com
seus móveis sérios e paredes de gelo. As cores variam entre cinza,
branco, preto e prata, uma planta em um vaso creme para dar um
pouco mais de cor. Porém, não foi isso que chamou a atenção de
Damien, mas o homem de pé ao lado da grande lareira preta a gás.
O Senador Wellington Valor era um homem robusto. Cabelos
pretos cortados em estilo militar e polvilhados de branco nas
laterais, rugas de riso ao redor dos olhos castanhos claros. O relógio
de ouro no pulso indica quão bem sua conta bancária ia. Ele se
endireitou quando os quatro detetives entraram na sala,
apresentando-se formalmente mais uma vez. Apenas isso fez os
olhos do Senador se tornarem suspeitos.
— O que quatro detetives da TPS estão fazendo na minha
casa?
Damien tomou a frente, seu rosto sério.
— Nós não temos boas notícias, Senador.
— Por favor, não diga que algo aconteceu com meu Royce.
A mulher, Diana Valor, os olhou de sua poltrona. Seu cabelo
castanho cacheado na altura do ombro era idêntico ao da filha. As
mãos unidas sobre o peito, o cordão de pérolas ao redor do pescoço
fazendo Damien franzir o cenho.
Pérolas lembravam a ele as contas do terço de Samael.
Empurrando a lembrança ruim para longe, concentrou-se no
presente.
— Não viemos falar sobre Royce — Aidan disse, sua voz
desprovida de qualquer emoção. — Mas de sua filha, Zoey Valor.
— Ela foi encontrada morta dentro de uma mala na manhã de
ontem. Sinto muito. — Raphael completou.
O grito de horror de Diana ecoou pela sala e seu marido
sentou no braço da poltrona cinza, um braço ao redor de seus
ombros trêmulos. Wellington olhou para os detetives com fúria,
como se eles fossem culpados daquilo.
— Zoey não está morta! Ela está na faculdade, tem apenas
dezenove anos! — Diana chorou, cobrindo o rosto com as mãos.
— Vocês têm certeza do que estão falando? — Wellington
questionou, olhando diretamente para Damien.
— Infelizmente. — Damien segurou o suspiro e deu um passo
para mais perto, sentando-se na ponta do sofá. — Sr. e Sra. Valor,
vou precisar fazer algumas perguntas.
— Oh, meu Deus. — Diana lamentou, o dorso da mão contra o
nariz e os olhos cheios de lágrimas. — Minha menina...
— Sr. e Sra. Valor, quando foi a última vez que viram sua filha?
— Cam perguntou, braços cruzados.
— Ah, três dias atrás. Ela... — Diana balançou a cabeça,
sorrindo para o marido ao aceitar o lenço e limpar as lágrimas das
bochechas. — Zoey estava com uma amiga desde o começo da
semana, estudando para os principais exames.
— Sabem se Zoey tinha algum namorado ciumento ou ex?
Alguém potencialmente perigoso? — Aidan perguntou, olhando
entre Wellington e Diana.
— Não. Zoey não namorava — Wellington disse firme.
— Nossa menina era pura e... ingênua. — Diana fechou os
olhos, lábios comprimidos enquanto mais lágrimas caíam.
— O relacionamento com sua filha era bom, sr. e sra. Valor?
— Não era tão próximo de Zoey como minha esposa, mas...
sim. Éramos próximos como pai e filha. — Wellington exalou.
Sua mão esfregava o ombro da esposa e Damien não sabia se
ele tentava consolá-la ou se isso o fazia se sentir mais calmo.
— Zoey é... era minha menininha. Confidentes, amigas. Meu
Deus — Diana lamentou, seu rosto caindo sobre as mãos, cotovelos
nos joelhos.
— Como era o nome da amiga que Zoey ficaria? — Raphael
perguntou.
O homem tinha um caderno de capa de couro preta, parecido
com o que Damien normalmente carregava e fazia anotações.
— Ah... Eileen Belvedere. Ficaram muito amigas quando Zoey
começou a faculdade.
O som da porta da frente se abrindo chamou a atenção de
todos na sala e viraram para olhar quem entrava pela porta. Dois
homens altos pararam na soleira, observando a cena diante deles.
Um deles era a cópia de Wellington, só que mais jovem. O outro
tinha cabelos castanhos escuros com mechas médias, caindo sobre
as orelhas e na nuca.
Eles olhavam da porta, chocados. Deveria ser algo estranho
de se ver. Tantos detetives na sala, uma mulher chorando e seu
marido furioso.
— Mãe? O que está acontecendo? Wanda me ligou...
— Oh, Royce... — Diana levantou, correndo até o filho e o
abraçando.
Seu choro ecoava pela sala subitamente silenciosa. O rapaz
que havia chegado com Royce olhava apreensivo, seus braços
firmemente cruzados. Damien levantou e parou ao lado de Aidan.
— O que acha?
— A amiga foi uma desculpa — Aidan murmurou.
— Concordo.
Desviando os olhos do rosto sisudo do seu parceiro, encontrou
Raphael os observando. Damien arqueou as sobrancelhas e o outro
sorriu. Royce acompanhou Diana de volta para a poltrona, seus
olhos indo para o pai e então para os detetives.
— O que aconteceu? Eu estava no meio de uma pesquisa com
Marlow quando Wanda me ligou. — Royce apontou para o rapaz
parado atrás do sofá, com as mãos apoiadas no encosto.
Damien deu uma volta pela sala, observando os porta-retratos
na parede e sobre a lareira enquanto Cam contava a Royce sobre a
morte de Zoey. Parando perto da janela, Damien se deparou com
diversos barquinhos de papel em várias cores e tamanhos. Pegando
um vermelho, olhou para o trabalho bem feito quando a voz de
Diana bem ao seu lado o sobressaltou.
— Zoey que os fazia. — Ela sorriu, pegando um barco cor de
rosa. — Quando ficava nervosa, ela dobrava o que encontrava pela
frente. Sempre barcos. Ela tinha um fascínio pelo mar. Dizia que iria
viajar um dia, descobrir novas terras, encontrar monstros marinhos.
O sorriso de Diana era triste ao colocar o barco em seu lugar
novamente. Damien a imitou ao mesmo tempo em que Royce caía
sentado no sofá, com o rosto pálido.
— Como isso é possível?
— Vocês já possuem alguma pista? — Wellington perguntou,
cruzando os braços e olhando para sua esposa voltando para
poltrona.
— Temos um suspeito em custódia — Cam respondeu.
— Em custódia? — Wellington cerrou os olhos.
— Foram encontradas roupas do suspeito com sua filha,
Senador — Raphael comentou, fechando seu caderno e o
guardando no bolso interno do blazer.
— Qual a chance desse suspeito ser o culpado?
O toque de uma mensagem soou na sala, então outra e mais
outra. Diana fungou, pegando seu celular do bolso e se
desculpando. Seus olhos pegaram a tela antes de apagar, sua boca
se abrindo em um “o” mudo.
— Mas que tipo de brincadeira sem graça é essa? — A voz de
Diana aumentou a cada palavra, entregando o telefone para o
marido. — “Estou indo fazer a prova”? “Me deseje sorte”?
— O que é isso, detetives? Que tipo de brincadeira seu
departamento está fazendo? — Wellington estava furioso,
apontando o telefone diante o rosto de Aidan.
— Não há como nosso departamento fazer qualquer tipo de
brincadeira, sr. Valor. — Damien parou ao lado de Aidan, olhando as
mensagens enviadas segundos atrás.
— Não havia um celular com Zoey quando foi encontrada —
Aidan murmurou olhando para Damien em seguida. — O assassino
teria ficado com seu celular?
— Qual seria o sentido de enviar as mensagens? — Damien
franziu as sobrancelhas.
— E se o celular ficou com a amiga? — Cam arriscou, olhando
para Diana. — Seria possível Eileen encobrir Zoey ao ficar com o
telefone?
— Eu... eu não sei. — Diana lambeu os lábios secos,
balançando a cabeça. Os dedos finos brincavam com o colar no
pescoço, fazendo Damien estremecer levemente. — Zoey nunca
mentiu para mim.
Damien desconfiava que Diana não sabia sobre tudo que sua
filha realmente fazia. Aidan olhou a conversa, várias outras
recebidas com datas após sua morte. O que significava que
nenhuma delas foi enviada por Zoey.
— Qual o nome da faculdade onde Zoey estudava?
— Na Universidade Ryerson. Biologia.
Porra! Oriol trabalhava em uma lanchonete naquela
universidade. Coçando a bochecha, Damien olhou para os Valor e
sorriu.
— Muito obrigado pelo seu tempo. Nós vamos continuar
investigando e, caso tenhamos novos acontecimentos, entraremos
em contato.
Se despedindo, os quatro saíram da casa. Damien puxava os
cabelos, pensando, quando Wellington abriu a porta e saiu para o
vento frio. Seus olhos duros passaram de Cam para Raphael, então
Aidan e caíram sobre Damien.
— Eu quero esse filho da puta atrás das grades, me
entenderam? Não vou permitir erros. E, se vocês não forem
capazes de fazer o trabalho, vou ter a garantia de que seus
distintivos estarão arquivados em questão de segundos. Fui claro?
Cam cruzou os braços enquanto Raphael erguia o queixo com
orgulho. Aidan mantinha sua feição desprovida de emoção e
Damien exalou.
— Nós vamos fazer o possível, sr. Valor. Independente da sua
ameaça. Tenha um bom dia.
Damien já tinha problemas demais para adicionar um pai em
luto usando seu cargo para demitir as pessoas. Droga, eles ainda
tinham um longo dia pela frente.

A viagem de ida até a faculdade foi silenciosa. Os quatro


pareciam imersos em suas próprias cabeças para discutir. Aidan
olhava pela janela, sua cabeça tentando entender como montar
aquele quebra-cabeça quando uma mão quente tocou sua coxa e
sua atenção voltou para Damien.
— Ei. Você estava perdido?
— Apenas pensando — murmurou.
— Algo que queira compartilhar?
— Sim, Callaghan, algo que queira dizer? — Raphael
perguntou, enfiando o corpo entre os bancos.
Cels, o que Aidan havia feito de errado no mundo para
merecer aquilo?
— Ei, a conversa está reta. — Damien gesticulou entre ele e
Aidan antes de girar o volante e entrar em uma vaga na
movimentada Dundas St E. — Ninguém chamou você pra conversa.
— Os veteranos são tão doces com os novatos, não é
mesmo?
— Você só não é bem-vindo aqui — Aidan murmurou
empurrando a porta ao mesmo tempo que Damien dizia:
— E ainda mais com um nome falso.
Aidan trincou os dentes com o vento gelado. Cobrindo o sol
dos olhos, observou que nuvens escuras se formavam no horizonte.
Talvez chuva e mais neve poderia acontecer no final da tarde.
Perfecte[38].
Tudo o que Aidan queria: mais frio. Porra.
Raphael saiu do carro e inspirou profundamente antes de
exalar. Seu sorriso calmo virou para Aidan, que se mantinha
carrancudo.
— Você contou a ele.
— “Ele” consegue te ouvir e, sim, Callaghan me contou —
Damien resmungou, os ombros erguidos como que para manter o
vento longe das orelhas e falhando.
Raphael olhou para Damien, avaliando-o. Aidan odiava aquilo.
Odiava seu passado voltando em ondas, arrebentando toda sua
vida como um tsunami.
— O que você sabe tanto?
— Que Stanton te mandou como uma terceira roda, que esse
nome não é verdadeiro, que você era da FTE e um sniper. —
Damien sorriu. — E que Aidan te odeia.
Raphael virou para Aidan com sobrancelhas arqueadas. Cam,
parecendo perdido na conversa, olhava entre os três tentando
entender o que estava acontecendo.
— E ele te contou o porquê de me odiar? — Raphael
perguntou, sorrindo de modo torto.
Aidan se lembrava daquele sorriso. Era bastante semelhante
ao sorriso diabólico que Damien dava quando estava prestes a
aprontar, como arrombar um cofre ou infernizar a vida de Aidan. E o
Corvo não tinha tempo para aquilo agora.
— Além do fato de ser arrogante, Victor? Você deveria
proteger o Colin, e não fez seu trabalho. É por isso que te odeio,
principalmente — rosnou. — Agora, podemos focar naquilo que
realmente importa?
Passando pela calçada como uma nuvem sombria, Aidan os
deixou para trás ao entrar na faculdade. Olhando para o mapa na
entrada, localizou o bloco de biologia e foi para lá, desviando de
alunos apressados. Aidan percebeu Damien ao seu lado, o rosto
sério e olhos preocupados. Aquele não era o momento para discutir
aquilo. Sabia, no fundo de sua mente, que Victor Delyon tinha feito
tudo o que era possível naquela missão. Entretanto, Aidan achava
que poderia ter feito mais.
Não querendo continuar pensando naquilo, subiu os degraus
para o segundo andar, Damien o ultrapassando e indo até um
professor conversando com um grupo de alunos.
— Somos detetives do Esquadrão de Homicídios, TPS. —
Damien ergueu o distintivo e o colocou de volta no bolso. —
Precisamos falar com Eileen... — Damien estalou os dedos e olhou
para Aidan.
— Belvedere. Estudante de Biologia. — Victor completou,
sorrindo.
A vontade de Aidan de socar os dentes do cretino só
aumentava.
— Eileen? Na próxima sala desse corredor. Mas... acho que
ainda estão em prova.
Aidan assentiu, andando logo atrás de Damien.
— Não sinto saudade alguma da faculdade — Cam grunhiu.
— Por que? — Victor perguntou, seu ombro apoiando na
parede quando Damien olhou pela pequena janela na porta.
— Muita expectativa para pouca realidade.
— Você teve um coração partido, não é?
— Cale a boca — Cam resmungou, cruzando os braços.
A porta se abriu, um garoto de óculos e cabelos raspados
olhando para os quatro com apreensão.
— Estão esperando alguém?
— Eileen Belvedere — Damien disse. — Sabe me dizer se
ainda está na sala?
— Ah... — seus olhos passaram pelo corredor até um pequeno
grupo perto do bebedouro. — Ela está ali. Cabelos azuis. Não tem
como errar.
A garota olhava para o celular enquanto os amigos
conversavam e riam ao redor. A ponta de uma mecha azul estava
entre os lábios e Aidan tinha certeza de que ela comia os cabelos
quando ficava nervosa. Seus olhos azuis, que combinavam com o
tom dos cabelos, se ergueram e arregalaram ao ver os quatro
detetives a cercando.
— Eileen? Nós precisamos ter uma séria conversa — Damien
falou, sorrindo com pesar.
— O que? Eu não fiz nada...
— Sou o Inspetor Detetive Evans e este é meu parceiro
Detetive Callaghan. Aqueles são Riggs e Kennedy. Pode nos
acompanhar até um lugar mais calmo?
— O que está acontecendo?
— Nós vamos esclarecer tudo. Apenas nos acompanhe, por
favor. — Victor acrescentou com voz mansa, fazendo a garota se
acalmar.
Como os quatro cavaleiros do apocalipse, escoltaram Eileen
para fora do prédio e sentaram em um banco no pátio do lado de
fora. Alguns olhares curiosos iam para eles, apenas para desviarem
ao ver a carranca de Aidan. Damien sentou ao lado de um lado de
Eileen e Victor do outro.
— Nos foi informado que Zoey Valori ficaria na sua casa para
estudar. Correto? — Damien começou.
— Sim. Ela... Zoey já saiu do exame...
— Nós sabemos que ela não estava com você. — Cam a
cortou. — Quando a viu pela última vez, Eileen?
Ela engoliu em seco, desviando os olhos. Seu indicador
enroscou uma mecha azul e levou à boca, mordendo a ponta.
— Quarta-feira. Dois dias atrás.
— Sabe onde ela poderia estar entre as dez da noite e uma da
manhã de quinta-feira? — Aidan perguntou.
Victor e Damien puxaram, ao mesmo tempo, o caderno de
anotações do bolso. Eles se entreolharam, clicaram a caneta e
cerraram os olhos um para o outro.
Cels, era como ver um espelho.
— Por quê? O que aconteceu com a Zoey? — Eileen mastigou
a mecha com afinco, começando a ficar assustada.
Damien suspirou.
— Ela foi encontrada ontem, dentro de uma mala na lixeira —
Cam respondeu, sem o menor tato.
Nisso, Aidan e Cam tinham em comum. Não havia meias
palavras. Eileen ofegou, cobrindo a boca com as mãos e olhos
arregalados.
— Isso... isso...
— Você está com o telefone dela? — Aidan perguntou.
Eileen assentiu, tirando um aparelho de capinha rosa de dentro
da bola e entregando. Cam pegou uma pequena bolsa plástica e o
estendeu antes que Victor pudesse pegá-lo e fechou a embalagem
com o zíper plástico.
— Foi você que enviou as mensagens desde então? — Cam
perguntou.
— Sim. Zoey... me pediu. Para que ninguém desconfiasse.
— Desconfiar de quê? — Victor perguntou.
— Na quarta-feira, depois do almoço, Zoey me procurou. —
Eileen franziu as sobrancelhas, cruzando os braços. — Minha
campainha está quebrada e ela me ligou dizendo que estava na
porta. Desci para destrancar e nós subimos. Zoey tem... tinha um
namorado secreto e nem mesmo eu sei de quem se trata.
Talvez mãe e filha não fossem tão confidentes assim, Aidan
pensou.
— Namorado? — Damien franziu as sobrancelhas, olhando
para Aidan e então de volta para Eileen. — A sra. Valori disse que
Zoey não namora.
— Bem, mas ela tem. Já faz alguns meses. — Eileen deu de
ombros. — Só sei que é mais velho. Tipo, bem mais velho.
— Você era sua melhor amiga. Como pode não saber de algo
assim? — Cam aponta.
— Às vezes, as pessoas mais próximas a você não te contam
certas coisas. Mesmo que seja seu melhor amigo.
Aidan estremeceu de leve já que aquilo era uma dura verdade.
Damien o olhou rapidamente, mas Aidan conseguiu ver que ainda
havia mágoa naqueles olhos verdes. Pigarreando, continuou:
— Certo. Zoey chegou e...?
— Disse que ficaria dois dias fora e voltaria hoje pela manhã,
sexta-feira. Quando não apareceu, imaginei que tinha mudado de
ideia. — Eileen deu ombros. — Combinamos que eu ficaria com o
telefone e cobrir sua falta com mensagens. Se sua mãe ligasse, eu
diria que ela estava no banho ou dormindo.
A clássica mentira juvenil. Aidan lutou contra a vontade de
revirar os olhos.
— E você enviou as mensagens — Victor disse, sua caneta
trabalhando sobre o caderno.
— Algumas. — Eileen concordou, envergonhada.
— Qual roupa que Zoey usava quando saiu? — Damien
indagou.
A ponta de sua caneta bateu sobre o caderno, esperando.
Victor o imitava e Aidan viu o olho esquerdo de Damien tremer.
Quanto tempo iria demorar para seu parceiro tentar furar um dos
olhos de Victor com aquela caneta? Não muito, se Aidan pudesse
apostar.
Eileen olhou para o céu, parecendo pensar. Seus dedos
tamborilam sobre a bolsa.
— Calça de camurça marrom, botas pretas. Uma blusa creme
de lã e um casaco vermelho. — Abaixou a cabeça, a mão coçando a
nuca.
Cam abriu a pasta, procurando por alguma foto quando Aidan
abriu a galeria do telefone e mostrou para Eileen a imagem que
tinha tirado horas atrás.
— Essa?
— Sim. — Eileen assentiu, mordendo o lábio inferior e seu
queixo tremendo. — Meu Deus, isso é sangue?
— Algo mais? — Victor perguntou gentilmente, tirando a
atenção de Eileen da foto.
— Não. — Balançou a cabeça. — Zoey se vestiu, recebeu uma
mensagem e saiu.
— Vamos encontrar essa mensagem no telefone? — Cam
perguntou, balançando o saco contendo o aparelho.
— Não. Zoey tinha outro telefone que usava apenas para falar
com o namorado.
— Não havia outro telefone com ela. — Aidan pensou alto. —
Nem nas roupas ou na mala.
— Tenho certeza de que ela tinha outro — Eileen disse,
enfática.
— Tudo bem. — Damien consentiu. — O que você fez depois
que Zoey saiu?
Eileen pareceu pensar mais uma vez.
— Fiquei em casa o resto da tarde. Saí com algumas amigas
de noite por volta das sete. Fabi e Aimée. Ficamos juntas em um
bar, “The Royale”, até perto das onze. Voltei pra casa e dormi.
— Então, você não viu Zoey ou falou com ela? — Victor
perguntou apenas para ter certeza.
— Não, senhor. — Eileen negou balançando a cabeça.
Cam pega a foto de Oriol, franze as sobrancelhas e dá uma
rápida olhada em Aidan antes de mostrar para Eileen.
— Conhece esse rapaz?
Ela olha por alguns segundos e balança a cabeça.
— Não.
— Ele trabalha em um dos cafés da Universidade. — Damien
acrescentou, inclinando a cabeça para o lado.
— Não costumo tomar café aqui. Trago minhas próprias
bebidas de casa. — Eileen encolheu um ombro, seus olhos
desviando para os pés. — Não me lembro de tê-lo visto.
— Certo. — Damien assentiu, levantando-se. — Isso é tudo
por enquanto, senhorita Belvedere.
— Obrigado por seu tempo — Victor acrescentou.
— Nós podemos entrar em contato novamente. Não saia da
cidade e mantenha o telefone ligado — Aidan falou.
Os quatro observaram a garota de cabelos azuis se afastar
com passos apressados. O sol brilhava no céu, passando do horário
do almoço, mas Aidan sentia que olhava para o escuro. Tateando ao
redor, não encontrando uma saída.
— Por que eu sinto que estamos entrando em um beco sem
saída? — Damien resmungou.
— Essa garota mentiu sobre não conhecer Oriol. — Victor
cruzou os braços, olhando diretamente para Aidan. — Ela hesitou.
— Sim. — Aidan exalou, sua mão passando pelos cabelos.
A pergunta era: por quê?
Algo dizia para Damien que eles estavam seguindo o caminho
errado. Mesmo que Oriol parecesse culpado, e a maior parte das
provas apontavam diretamente para ele, Damien sentia que faltava
algo. Qual o motivo de Oriol matar Zoey? Eles discutiram? Como
uma garota rica como ela conhecia um cara como aquele garoto?
Ao mesmo tempo que se encaixava, parecia errado na cabeça
de Damien. Ele passou parte da tarde tentando encontrar uma
solução e não encontrando. Cruzando os braços, olhou para a tela
do computador e exalou.
— Cam, você já levou o celular para Herzog e pediu por uma
varredura? — Damien perguntou, girando sua cadeira e olhando de
frente para um rabugento e feroz Riggs.
— Já — resmungou através de dentes cerrados. — E já disse
que o rato está resolvendo um problema interno de invasão de
dados. Ele vai olhar os celulares quando estiver disponível.
— E Jack? Falou com ele sobre alguma pista na mala?
Cabelo, impressão digital... Qualquer coisa.
Cam torceu o rosto com desagrado.
— Já. Não há nada. — Cam fechou a pasta que estava lendo e
se levantou. — Esqueceu de algo mais? Quer que te chame de
chefe também, idiota?
Damien sorriu.
— Não seria ruim.
Isso fez Cam erguer o dedo do meio em resposta. Victor –
Damien tinha de dizer que esse nome combinava mais com o
homem – enganchou o braço no pescoço de Cam.
— Ei, já faz horas que voltamos e só conheço esse andar. Que
tal um tour pela TPS, parceiro?
— Tire suas patas de mim — resmungou, acertando o cotovelo
no estômago de Victor. — Tenho mais o que fazer do que ficar
servindo de guia turístico.
Desviando os olhos dos dois detetives discutindo ao sair do
escritório, Damien viu a tela do seu celular acender quando Aidan
encostou o quadril na quina da mesa. Já tinha perdido a conta de
quantas xícaras de café o Corvo havia tomado.
— Dra. Goodwin? — Aidan murmurou sobre o ombro de
Damien.
Erguendo o rosto, seus narizes encostaram e Damien sorriu.
Era como se o Corvo estivesse empoleirado sobre seu ombro.
— Knight disse que eu deveria falar com a Dra. Goodwin para
ter um laudo médico me liberando. — Damien acenou com o
telefone no ar e levantou. — Recebi uma mensagem dizendo que
ela me espera na sala dela.
Aidan franziu o cenho, uma mão apoiando a base da coluna de
Damien. Apenas aquele toque dizia que Damien não estava
sozinho.
— Como se sente sobre isso? Falar com Goodwin, digo.
— Bem. — Damien encolheu um ombro e sorriu para os olhos
escuros cerrados de Aidan. — De verdade.
Aidan o olhou por mais alguns segundos e suspirou. O toque
suave deslizou das costas para a cintura com um leve aperto final
antes de se afastar e segurar a xícara com ambas as mãos.
— Està bé[39], cariño. Vou olhar alguns arquivos para Stanton
enquanto isso.
Damien franziu as sobrancelhas.
— Você continua mesmo com isso?
— É o meu trabalho.
— É perigoso — Damien sussurrou. — Eles sabem sobre
você. Se continuar revirando, Pops vai mandar matá-lo, Aidan.
— Tenho tudo sob controle — disse com os lábios na borda da
xícara.
— Você é tão teimoso — murmurou. — Depois que estiver em
uma cama de hospital, vou dizer a você o quanto te avisei.
— Anotado — Aidan falou apático.
Entretanto, aqueles olhos escuros demonstravam que sabia
muito bem o quanto Damien estava preocupado e como tinha razão.
Revirando os olhos, Damien acenou em despedida e subiu para o
andar da Dra. Goodwin. Quando chegou na frente da secretária, ele
se sentiu cansado. Suas costelas estavam gritando desde a ida à
faculdade e parecia pior agora. Talvez não tenha sido a melhor ideia
voltar a trabalhar.
Jesus Cristo, que ninguém fosse telepata naquele lugar.
Damien estava apertando a lateral e tentando não fazer uma
careta quando a porta do consultório abriu e a pequena Martine
Goodwin apontou sua cabeça de cabelos escuros curtos e retos.
Seus olhos puxados franziram ao sorrir para Damien.
— Evans, nos encontramos mais uma vez. Vou começar a
pensar que isso pode se tornar um costume.
— Eu espero que não — Damien resmungou.
Entrando na sala, Damien reprimiu o estremecimento ao
perceber que estava realmente se acostumando com aquele lugar.
O cheiro de lavanda parecia mais forte, e Damien descobriu que o
motivo era o incenso aceso sobre a mesa no fundo. A fumaça caía
como uma cascata sobre um lago de cerâmica e ele se viu
perguntando como aquilo era possível.
— O que o trouxe até mim hoje? — Martine perguntou,
ajeitando a saia e sentando confortável em sua poltrona.
Ao contrário dela, Damien sentou-se largado e deixou a
cabeça pender no encosto do estofado. Ele precisava da sua dose
de remédios e havia esquecido em casa.
Droga.
— Deve ter ficado sabendo do pequeno acidente que tive no
meu último caso.
— Fui informada, sim. — A dra. Goodwin pegou seu caderno,
batendo a ponta da caneta sobre a folha. — Como está sua
recuperação, Damien?
— Uma grande merda. Desculpe o palavrão — Damien disse,
sorrindo de lado.
— Não se preocupe — Martine respondeu com um abanar da
mão. — O que está incomodando-o, Damien?
Ah, claro. Martine gostava de falar o nome dele todo final de
frase. E isso o deixava completamente irritado. Talvez devesse
trabalhar sobre isso em outro momento.
Exalando, cruzou os braços e olhou para a doutora com seus
olhos escuros e calmos.
— Knight é o meu problema.
— Entendo. — Goodwin assentiu, anotando em seu caderno.
O que ela tanto anotava ali? “Damien está mentindo mais uma vez”.
Provável. — Como está seu sono?
Péssimo.
— Ótimo. — Damien sorriu.
Martine inspirou e exalou ruidosamente, seus ombros caindo
ao olhar para Damien.
— Pensei que já houvéssemos passado pela parte em que
mente apenas para conseguir um laudo, Damien.
Touché.
Ele esfregou a têmpora, sua mão deslizando para a cicatriz do
braço abaixo da jaqueta.
— O que quer que eu diga?
— A verdade, lógico. Quero, acima de tudo, que seja sincero
nas nossas consultas, Damien. Só assim posso entregar um laudo
correto.
Ele a observou cruzar as mãos sobre as coxas e olhá-lo com
expectativa. Desviando os olhos para a grande janela, viu as nuvens
escuras se aproximando e escondendo o sol do final de tarde.
Aquilo parecia uma analogia sobre como ele realmente se sentia.
— Não está sendo fácil, ok? — Damien murmurou, inspirando.
— Eu fui dopado, agredido e então estuprado. Como se não fosse o
suficiente, aquele filho da puta tentou me matar enforcado. —
Damien tirou os olhos da janela e os fixou na Dra. Goodwin. A
mulher sequer piscou. — Se não fosse meu parceiro, eu teria
morrido.
— E o que está mais difícil de processar? A agressão, o
estupro ou a experiência de quase morte?
— Tudo? — Damien riu, sentando curvado e apoiando os
cotovelos nos joelhos. — Merda. Estou cansado de fingir que está
tudo bem.
— E por que está fingindo, Damien?
— Porque eu preciso ser forte! — Ele exclamou, erguendo os
olhos para a Doutora.
Martine sorriu, apoiando o queixo sobre a palma e o olhando
com tanta calma que, inacreditavelmente, o fez se sentir calmo
também.
— Quem disse a você que precisa ser assim?
— Eu... — Damien piscou, suas palavras desaparecendo.
— Ninguém, certo? — Martine inclinou suavemente a cabeça,
como o Corvo fazia, e seus cabelos caíram sobre o ombro. —
Nenhuma pessoa precisa ser forte o tempo inteiro. Quebrar e pedir
por ajuda também é um sinal de resistência, Damien. Precisa de
coragem para enfrentar a vergonha e pedir por auxílio. Existe
alguém por você, Damien? Família, amigos, amante?
Aidan surgiu em sua mente, seguido por sua mãe, pai e irmã.
Cobrindo os olhos com as mãos, Damien assentiu e falou abafado
contra a palma.
— Sim. Eu tenho.
— Então peça ajuda para eles. Quando se sentir sozinho, ligue
para alguém, converse. Exponha seus sentimentos. — Martine
recostou na poltrona e descruzou as pernas. — Quanto mais se fala
sobre a dor, mais fácil é fazê-la ir embora. Você precisa senti-la para
que, finalmente, ela seja totalmente retirada do seu sistema,
Damien.
Damien bufou uma risada.
— Claro.
— Está tendo pesadelos?
— Todas as noites — resmungou.
— Mesmo sendo um homem adulto e completamente formado
psicologicamente, é normal que um fato traumático deixe sua mente
conturbada. O que vê, exatamente, nesses pesadelos, Damien?
Jesus Cristo, ele teria de reviver aquilo e novo?
Esfregando a bochecha, desviou os olhos para a janela mais
uma vez. As nuvens pareciam piores agora e o vento chicoteava
contra a vidraça.
— Eu... tento fugir de Samael. Em vão. Todas as vezes —
Damien sussurrou. — Eu grito, imploro, mas... ele apenas não se
vai. Às vezes, seu rosto muda para pessoas que amo. Às vezes,
sou eu enforcando quem amo. E em todas as vezes me sinto
impotente sobre parar. Não consigo... parar.
E Damien só queria que Samael desaparecesse de sua
cabeça de uma vez por todas. Morto e enterrado em seu
subconsciente assim como estava em terra. Se tornando pó e
esquecido por todos.
— O sentimento de impotência foi o que estava com você
naquela situação e ela perdura em sua mente durante os pesadelos.
Porém, Damien, a agressão, o estupro e o enforcamento não estava
em seu poder para conseguir parar. Não tinha controle. Agora, na
sua mente, você tem. — A Dra. Goodwin espalmou a mão sobre o
caderno, a caneta entre os dedos. — Entretanto, só vai conseguir se
desfazer disso se continuar trabalhando mentalmente. Pode fazer
sozinho, mas com a minha ajuda será mais rápido.
A questão era: estava disposto daquilo? Damien queria se ver
livre dos pesadelos, virar aquela página da sua vida e focar no
relacionamento com Aidan. Aproveitando cada minuto ao lado do
homem soturno que deixou Damien de joelhos. E, para isso
acontecer, teria de ter mais consultas com a psicóloga.
Ele não gostava da ideia de ter alguém mexendo com sua
cabeça. Cobrindo os olhos com a mão e soltando um grunhido
frustrado, acabou aceitando a proposta.
— Tudo bem, porra. Vamos fazer isso.
O sorriso de Martine não poderia ter sido mais largo.

Uma hora e meia depois, Damien estava sentindo que seu


cérebro tinha derretido e estava escorrendo pelas orelhas. Porém,
sentia-se muito mais leve. Se ele deitasse agora, sabia que iria
dormir de tão esgotado que se sentia. Entrando no Departamento de
Homicídios, olhou ao redor das mesas vazias e encontrou Aidan
saindo da cozinha carregando um copo, que Damien sabia ser de
café, e arqueou as sobrancelhas negras para ele.
— Você parece... atropelado.
— Sinto que a dra. Goodwin passou com um caminhão por
cima de mim e se divertia com isso enquanto fazia — resmungou. —
Aonde estão Victor e Cam?
— Se está perguntando se eles já se mataram, a resposta é
não. Infelizmente — Aidan falou indiferente.
Damien fez um som de desgosto com a garganta.
— Quer falar com Oriol mais uma vez?
Tomando um lento gole do café, Aidan fez uma careta ao
abaixar o copo.
— Não. A não ser que você queira.
— Não vejo motivo. Não temos nada concreto e ele continua
em silêncio. — Damien balançou a cabeça, cruzando os braços. —
Vamos esperar os resultados do telefone e, caso tenha algo de
significativo, podemos partir desse ponto e forçar Oriol a falar.
Olhando para o relógio marcando depois das cinco, Damien
coçou a barriga e virou para Aidan com um sorriso.
— O que acha de jantar?
— Parece bom para mim — disse, inclinando a cabeça para o
lado e indicando a porta com a mão. — Inspetor.
Rindo, Damien seguiu para as escadas e esperou Aidan pegar
o sobretudo de sua cadeira, dobrá-lo sobre o braço e caminhar
calmamente até a porta. Damien o deixou descer na frente com o
único propósito de olhar seu traseiro. Aquela calça jeans preta que
usava abraçava sua bunda e coxas de forma espetacular.
— Porra, podemos pular o almoço e ir para a sobremesa? —
murmurou, olhando para Aidan dos pés à cabeça.
O sorriso torto do Corvo estava ali quando olhou sobre o
ombro, aquele olhar malicioso que Damien sabia que o homem
guardava apenas para ele. Sua espinha arrepiou quando Aidan o
esperou no degrau de baixo e se inclinou, sua boca roçando o
ouvido de Damien. A barba fazia cócegas na pele.
— Não podemos pular as refeições, cariño. Mesmo que pareça
tentador.
O beijo sutil na mandíbula de Damien serviu para deixar o
sangue mais quente, correndo furioso pelas veias e pulsando em
todos os lugares. Principalmente dentro das calças. Engolindo em
seco, Damien puxou a jaqueta e deu um suspiro entrecortado.
E, Jesus misericordioso tenha piedade, mas o Corvo parecia
delicioso. Seu sorriso lascivo estava ali, uma mecha de cabelo preto
caindo sobre o olho esquerdo. Se Damien não corresse agora, ele
jogaria Aidan contra a parede e arrancaria suas roupas com as
unhas e...
— Guarde esse pensamento para mais tarde — Aidan
ronronou, descendo os degraus.
Voltando a si, ajeitou sutilmente suas calças e correu,
alcançando Aidan no andar de baixo e sussurrando apenas para ele
ouvir.
— Como sabia o que eu estava pensando?
— Conheço seu rosto. Lábios entreabertos, olhos
encapuzados e fixos no meu peito. A leve mordida no lábio inferior
foi ainda mais reveladora. — Aidan riu baixinho, colocando o
sobretudo.
Inferno. Damien era mesmo um livro aberto.
— Sou tão fácil assim de ler? — perguntou ao saírem da TPS.
Aidan jogou o copo vazio na lixeira e olhou ternamente para
Damien.
— Para mim, você é. Porque eu sempre estou prestando
atenção em cada mínimo detalhe seu. — Aidan tocou a bochecha
de Damien com as pontas dos dedos enluvados e se afastou, cedo
demais. — E sua cara de pôquer é uma merda. Nunca aposte alto
quando jogar, cariño.
Damien bufou, tirando as chaves do carro e desligando o
alarme.
— Eu sempre ganho. Você que nunca deveria apostar ao jogar
comigo.
— Isso é um desafio?
— Se você está a fim de perder, sim. — Damien encolheu um
ombro, entrando no carro.
Logo, percebeu seu erro. A porta de Aidan fechou e Damien
percebeu que ele havia tirado as luvas. Aqueles dedos longos
passaram pelos cabelos de Damien e agarraram sua nuca,
puxando-o para perto e roubando um beijo. Não um beijo qualquer,
mas um que o fazia querer mais. Fazia um homem saltar sobre o
colo do outro e tomar tudo o que pudesse. Um beijo que fez Damien
gemer baixo e longo e que, quando sua boca finalmente foi solta, o
fez choramingar.
Seu quadril levantou, seu pau confinado dentro da calça
apertada. Porra, ele queria mais. Queria a boca de Aidan sobre a
dele, sobre ele, em todos os lugares. Seu coração batia
absurdamente alto em seus ouvidos quando conseguiu fixar os
olhos no rosto triunfante de Aidan.
— Não me importo de apostar com você e perder porque já
arrisquei o que tinha de mais importante: meus sentimentos. De
recompensa, ganhei seu amor. É o suficiente para mim, cariño.
Aidan beijou o queixo de Damien e se afastou, calçando suas
luvas novamente como se não tivesse acabado de abrir o peito de
Damien e enchido seu coração de sentimentos borbulhantes e
borboletas em sua barriga. Droga, ele estava ficando muito
menininha. Balançando a cabeça, ligou o carro enquanto
resmungava:
— Corvo idiota.
— É assim que retribui minha declaração? — riu.
— Não sou bom com as palavras, tá legal? Sou bom com
ações. Comprar o melhor café do mercado só porque você usa
minha cafeteira de manhã e gosto do som que faz quando o bebe.
Ou encher a geladeira com coisas saudáveis e verdes, só porque
você come. Estar aprendendo catalão para poder conversar com
você na sua língua natal... — Damien parou no semáforo e olhou
para Aidan, apenas para encontrá-lo olhando-o de um jeito
estranho. — O quê?
Aidan cerrou os olhos, seu corpo parecendo ficar maior no
pequeno espaço interno do veículo. A forma com seu peito
levantava e abaixava, como segurou o encosto do banco de
Damien...
Jesus Cristo.
— Você está aprendendo catalão? — sua voz soou baixa e
rouca, arrepiando os pelos do corpo de Damien de um jeito muito
bom.
— Ah... sim? Eu pensei que você gostaria... que talvez seria
legal eu... não sei...
— Dirija. Para. Casa. Agora. — Aidan virou para frente, sua
mão segurando a frente da calça e apertando. — Pedimos comida
no caminho. Aprenent català... Maleït provocador[40].
Damien não perguntou e enfiou o pé no acelerador. Buzinas
soaram, mas ela não estava se importando. No meio do caminho,
seu telefone tocou, o nome de sua irmã aparecendo no visor e o
fazendo resmungar. Apertando o botão, enviou para a caixa postal.
Entretanto, ela ligou de novo. E de novo.
— Acho melhor atender — Aidan murmurou.
Seus olhos escuros pareciam ter uma chama acesa no fundo,
brilhando de forma perversa ao olhar para Damien. Gemendo,
apertou no botão verde ao fazer uma curva na esquina.
— Every, estou ocupado agora.
— Ocupado você vai ficar quando me ouvir — Every rosnou do
outro lado, mal o deixando falar. — Mamãe passou na sua casa
para te verificar e não te encontrou lá, Squirt.
Oh, merda.
Apenas aquilo fez Damien desacelerar.
— Droga — murmurou.
— Sim. Agora ela está furiosa. É melhor vir até aqui e resolver
isso.
— Ev... — Damien olhou com sofrimento para Aidan. Uma
negra sobrancelha se arqueou em uma pergunta muda. — Tem que
ser agora? Não pode ser amanhã?
“Você está falando com Damien? É esse ingrato no telefone?”
O grito de sua mãe dizia o quanto ela estava brava e fez
Damien estremecer.
— Você ouviu? Isso vai piorar até amanhã.
— Estou passando por um túnel... Eu não consigo te ouvir!
— Dez minutos, Damien! Ou papai não vai impedir a mamãe
de ir até a TPS e colocar fogo naquele lugar até te achar!
O telefone foi desligado em seu ouvido e Damien o puxou para
olhar rapidamente o visor se apagando antes de olhar para a
estrada. Com uma careta, se virou para Aidan no banco do
passageiro.
— O que você diz sobre um jantar em família?
Damien sorriu, virando o volante para a próxima entrada e sem
esperar a resposta de Aidan.

Aidan estava se sentindo caindo no buraco do coelho em Alice


no País das Maravilhas. Em um momento eles estavam voando pela
cidade, correndo para chegar em casa o mais rápido possível e ter
suas roupas fora. Para, no minuto seguinte, mudar o caminho e ir
conhecer os pais de Damien.
Oficialmente.
Aquele bairro distante do centro era cheio de casas pequenas
e aconchegantes, com crianças de toucas coloridas correndo pelas
ruas e o cheiro de carne assada pelo ar. Era algo como que saído
de um dos sonhos de Aidan quando criança. O sol havia sido
encoberto completamente pelas nuvens carregadas quando Damien
estacionou na frente de uma casa de dois andares vermelha, com
suas janelas brancas e vasos de flores nos beirais da varanda. Uma
cadeira de balanço se mexia com o vento, dando a impressão de
que alguém havia acabado de se levantar dali.
Dois meninos passaram em suas bicicletas e Damien acenou
para eles quando gritaram seu nome. O pequeno portão branco foi
aberto, Damien liderando o caminho pela calçada de pedra bege
cercada por grama. A porta da frente se abriu e a pequena mulher
que Aidan havia conhecido no hospital saiu enxugando as mãos no
avental. As mangas de sua blusa de lã estavam puxadas na altura
dos cotovelos, seu cabelo com mais fios grisalhos que castanhos
preso em rabo de cavalo baixo com vários fios soltos.
Para Aidan, ela parecia uma mãe calorosa e amável, porém,
agora parecia desesperada. Seus olhos castanhos cerraram, seus
pés marchando na direção de Damien enquanto um dedo balançava
para o filho.
— Você quase me matou do coração, mocinho! Tem ideia de
que quase liguei para a polícia para te encontrarem?
— Mãe, eu sou da polícia.
— E daí? Os policiais também não precisam de ajuda? E você
deveria estar em casa! Por que não está em casa? Você quebrou
duas costelas e... — Seus olhos desviaram de Damien quando
Aidan enfiou as mãos nos bolsos e se balançou sobre os pés.
Annelise piscou uma, duas, três vezes. Pigarreou, alisou o avental e
abriu um sorriso doce ao empurrar Damien para o lado. — O que
nós temos aqui? Aidan, não é?
— Sim, senyora. Nos conhecemos no hospital. Não sei se
recorda...
— É claro que recordo. Nunca poderia esquecer um rosto
como o seu. — Annelise riu, virando para Damien com o rosto sério.
— Por que não disse que estava trazendo-o com você?
— Every não me deu oportunidade — Damien disse,
encolhendo os ombros.
Annelise o olhou de uma forma que dizia claramente que ela
sabia que aquilo era uma mentira. Olhando para Aidan, o sorriso
amável de Annelise estava de volta quando ela o segurou pelo
braço com mãos firmes e o puxou pelo resto do caminho até a porta.
— Vocês vieram jantar, né? Gordon fez costeletas de porco
com molho e...
— Mãe, Aidan é vegetariano — Damien disse, tirando o
casaco e o colocando no gancho.
Ajudando Aidan a tirar o sobretudo, Damien sorriu para ele.
Annelise parou, piscando ao se virar para o filho e então de volta
para Aidan.
— O que isso significa?
— Ele não come carne, mãe — Every falou ao parar na porta
da sala.
Horror torceu a feição de Annelise, fazendo Aidan engolir com
dificuldade.
— E por que não me disseram isso antes? Damien! —
Annelise acertou as costas da mão no braço do filho.
— O quê?!
Annelise bufou, apertando as mãos na cintura e voltando a
olhar para Aidan.
— Você come batata assada, arroz e legumes, querido?
— Sí, eu... senyora Evans, não precisa se preocupar...
— É claro que preciso. Você é meu convidado, pelo amor de
Deus! — Balançou a mão no ar. — Gordon! Coloque mais um prato
na mesa! Temos um convidado!
Aidan coçou a garganta, se sentindo um pouco atordoado.
— Seriamente, vocês não precisam...
— Sim, a gente precisa. Na minha casa, os convidados devem
se sentir à vontade. — Annelise o olhou e então virou para Damien.
— Ainda mais quando é meu filho que o trouxe para cá. Depois de
trinta anos. Graças a Deus — murmurou o final e saiu na direção
que Aidan pensou ser a cozinha.
Damien bateu o ombro no de Aidan, dando aquele sorriso
infantil encrenqueiro. O coração do Corvo, que já batia rápido,
disparou.
— Minha mãe gosta de você.
— Eu... — Aidan passou a mão pelos cabelos, lembrando-se
que ainda estava de luvas. — Sua mãe só está sendo gentil.
Tirando as luvas e as guardando no bolso do sobretudo, Aidan
cruzou os braços quando Every se aproximou deles.
— Não, ela realmente gosta de você. — Every sorriu de braços
cruzados. — E, se ela pudesse, te trocava pelo Squirt.
— Cale a boca, pirralha. — Damien deu um peteleco na orelha
dela.
— Ai! A verdade deveria doer em você, não em mim —
resmungou, esfregando a orelha e olhando para Aidan. — Seja
bem-vindo à casa dos Evans, Aidan. Não se assuste com nossos
modos.
— Somos barulhentos, mas nunca mordemos ninguém.
Aidan desviou os olhos para a porta de trás ao ver o homem
alto se aproximando. Ele lembrava Damien, mas era mais magro e
seus cabelos mais grisalhos. Expressões de riso marcavam seus
olhos verdes, o sorriso igual ao do filho ao estender a mão na
direção do Corvo.
Cels, Aidan parecia tão deslocado naquela casa.
— Bona tarda[41], senyor Evans.
— Me chame de Gordon — disse, pegando a mão de Aidan na
dele e apertando.
— O jantar está na mesa! Aidan, reservei seu lugar — Annelise
disse da porta, acenando para eles.
A sala de jantar era pequena e acoplada à cozinha. A mesa de
madeira antiga tinha o centro ocupado com comida e jarras de suco.
O cheiro das costeletas fez o estômago de Aidan torcer, mas sua
boca salivou ao ver a grande salada de verduras cozidas e um saco
de pão fresco. Annelise puxou a cadeira, indicando que aquele era o
lugar de Aidan.
Aidan não sabia como agradecer. Sentados, ele observou a
família de Damien conversando enquanto se alimentavam. O Corvo
foi incluído em diversos assuntos e quando perguntado sobre sua
infância, Damien os desviou sutilmente para outro assunto ao
colocar Every como centro das atenções. Aidan riu com as histórias
de Damien quando criança, e percebeu que não havia mudado
muito desde então.
Quando não havia costeletas, ou batata assada no prato,
Damien e Gordon se levantaram e recolheram a bagunça. Aidan se
levantou, apenas para Annelise puxá-lo sentado de volta.
— Convidados não limpam.
— Mas...
— Não. Você fique quieto aqui. Tenho um presente para você.
— Annelise sorriu, batendo suavemente sobre a mão de Aidan.
Se eles perceberam as cicatrizes, decidiram não comentar. O
que Aidan era grato. Ele sabia que Damien não havia contado para
a família sua trágica história de infância e adolescência.
Every o olhava do outro lado da mesa com um sorriso largo.
— Você parece tão desconfortável.
Aidan grunhiu, cruzando os dedos sobre a mesa.
— Não gosto de atrapalhar.
— Essa é a última coisa que você faz. Minha mãe está
adorando isso. — Every riu, inclinando na direção de Aidan e
abaixando a voz. — Você é a primeira pessoa que Damien traz para
casa, Aidan. Annelise vai mimá-lo como nunca. Acostume-se.
Piscando, Aidan abriu a boca, apenas para fechá-la
novamente. Ele não sabia o que dizer. Damien se aproximou por
trás da cadeira, suas mãos descendo pelos ombros e braços de
Aidan, prendendo-o contra o encosto. A boca pousou no topo de
sua cabeça em um beijo antes da bochecha de Damien ser
pressionada no mesmo lugar.
— Sim! Esse ano o Natal será maravilhoso! — Annelise
exclamou ao voltar para a sala de jantar e depositou sobre a mesa
alguns pacotes. Pegando o de cima, estendeu para Aidan. —
Espero que sirva, querido. Fiz de olho e memória, mas minha
cabeça já não está boa como antes.
Aidan levantou lentamente, pegando o embrulho verde com a
mão. Engolindo em seco, olhou para o pacote como se fosse uma
bomba prestes a explodir. Damien pressionou a palma na base da
coluna de Aidan e isso pareceu fazer ele respirar novamente.
— Tudo bem?
— Eu... Isso... — Aidan pigarreou, olhando para Damien e
então Annelise. — Sim. Obrigado.
Abrindo o embrulho, Aidan puxou o pano vermelho de lã e o
segurou no alto. O papel verde caiu sobre a cadeira enquanto Aidan
olhava para a blusa com sobrancelhas arqueadas e boca aberta.
— Isso é... — Damien cerrou os olhos.
— Nossas blusas de Natal combinam! — Annelise exclamou,
em polvorosa.
— Jesus Cristo — Damien sussurrou enquanto Every vibrava
alto ao pegar seu embrulho com a mãe.
Entretanto, Aidan ainda olhava a sua sem saber o que dizer.
Ele estava... tão... Seus dedos seguraram a blusa com força quando
sua visão embaçou, seus dentes afundando no lábio para segurar o
queixo de tremer.
Déu meu[42], ele tinha ganhado uma blusa feita apenas para
ele.
— Você odiou? — Damien murmurou em seu ouvido.
Mas Aidan não conseguia tirar os olhos da Rena fofa bordada,
ou das palavras “Feliz Natal dos Evans e Callaghan”.
Aquilo era muito.
Era demais.
Aidan não merecia tanto.
— Ei. Querido, olhe para mim — A voz suave de Damien o
tirou do transe. Olhos verdes ternos o fitaram, uma mão quente em
sua bochecha. — O que está acontecendo?
— Eu... eu nunca ganhei nada assim. Eu... Isso... — Balançou
a cabeça, seus olhos fechando ao segurar a blusa contra o peito.
Abrindo-os novamente, fitou uma Annelise sorrindo amavelmente.
— Eu... sequer faço parte da sua família.
— Você faz parte desta família desde o momento que salvou
meu filho — disse enfaticamente. — Não apenas daquele maluco
que o enforcou, mas da vida solitária que ele levava antes. Não vejo
Damien feliz assim há anos e sei que tudo é por sua causa. Sou
grata por você existir e estar nas nossas vidas a partir de agora.
— Gràcies, senyora. Obrigado.
— Venha cá, garoto. — Annelise moveu as mãos, dando a
volta na mesa.
Mesmo sendo pequena, os braços dela o envolveram e ele se
afundou naquele abraço maternal. Mais do que nunca, Aidan estava
se sentindo amado por uma família, por uma mãe. E ele não
deixaria ninguém tirar isso dele.
A tempestade rugia do lado de fora da janela, as árvores
torcendo com o vento e a chuva desabando sobre o telhado. Porém,
nada parecia tão intenso quanto os dois homens se beijando, suas
mãos tateando um ao outro, sentindo a pele que conseguiram
descobrir e gemendo. Aquela tensão havia sido criada há muito
tempo, o fio se rompendo quando ambos se chocaram a primeira
vez e nada poderia pará-los agora.
— Oh, sí... Això... Més[43]...
Damien sentia o suor escorrendo por suas costas, as calças
abaixadas até o meio das coxas e os joelhos espetando no
assoalho. Ele teria dores mais tarde, mas... Porra, não poderia parar
agora. Não quando Aidan o provocou no carro antes do jantar e,
depois de ver aquele homem sério e alto como uma montanha
reduzido a lágrimas de gratidão e amor, Damien não poderia parar o
sentimento de que precisava cuidar de Aidan.
Ele precisava dar tudo àquele homem. Seu carinho,
compreensão, ternura, seu amor. Assim como precisava do prazer
que apenas conseguia atingir quando tinha Aidan sobre ele, abaixo
dele, ao redor dele. Sua visão embaçou quando Aidan arqueou as
costas, as mãos procurando algo a que agarrar. Jatos de fios
brancos espirraram sobre a barriga e peito, pintando a pele morena
e fazendo Damien gemer rouco com o próprio orgasmo.
Desabando sobre o corpo do outro, fechou os olhos e
suspirou. Eles nem mesmo haviam conseguido chegar ao quarto.
Metade do corpo meio vestido de Aidan estava no corredor, as
pernas nuas longas e torneadas ainda na sala. O coldre de ombro
do Corvo sequer tinha sido desatado, enrolado na manga da camisa
aberta e cavando no estômago de Damien.
— Sua arma está me machucando — murmurou, olhos
fechados.
— Vou sentir dor na coluna por dias. Acho que machuquei o
cotovelo quando me jogou no chão — Aidan resmungou.
Nenhum dos dois se moveu. Damien abriu um sorriso, seus
músculos rígidos de cansaço. Ele precisava apenas se desfazer das
calças e chegar até a cama...
Piscando, Damien sentiu que tinha areia nos olhos. Com um
gemido doloroso, virou de barriga para cima apenas para descobrir
que estava deitado debaixo das cobertas em sua cama. Nu.
Esfregando os olhos, virou o rosto no travesseiro e encontrou Aidan
sentado, as costas nuas apoiadas na cabeceira e segurando uma
pasta amarela. A luz do abajur lançava uma luz tênue amarelada no
quarto quando olhos escuros viraram para ele.
— Bom dia, cariño. Sente-se melhor?
— Huh?
Aidan sorriu, colocando a pasta de lado e virando para olhar
Damien com atenção. Sua mão passou pelos cabelos castanhos, as
pontas dos dedos acariciando o couro cabeludo.
— Eu apaguei?
— Uhum.
— E você me carregou?
— Sí. Aliás, você é bastante pesado, cariño — Aidan
resmungou, franzindo o cenho.
Damien gemeu, fechando os olhos. Enroscando o braço na
cintura de Aidan e afundando o rosto contra o lado esquerdo do
outro, inspirou o cheiro da pele quente. Porra, ele amava o cheiro de
Aidan.
— Esqueci meus remédios...
— Eu vi a receita presa na porta da geladeira e dei sua
dosagem.
— Isso explica a falta de dores terríveis — Damien murmurou
e levantou os olhos para Aidan. — Obrigado.
— Qualquer coisa por você — Aidan murmurou, inclinando e
beijando a testa de Damien. — Volte a dormir mais um pouco.
— Que horas são?
— Quase seis da manhã.
Damien piscou, erguendo-se no cotovelo e olhando para
Aidan.
— Desde que horas está acordado? — Seus olhos cerraram.
— Teve pesadelos?
— Não. Eu apenas não preciso dormir a mesma quantidade
que você e não tenho altas dosagens de remédio circulando no
sangue — Aidan disse, uma sobrancelha se arqueando.
— Você está mentindo para mim?
— Estou realmente sendo sincero. — Aidan pegou a pasta
novamente e a abriu. — Estou apenas revisando algumas coisas
que encontrei. Quanto mais rápido entregar isso a Stanton, mais
rápido me livro dele.
— E o que é isso, exatamente? — Damien perguntou.
Pegando o travesseiro, ajeitou atrás de suas costas e deitou
parcialmente de lado. Suas costelas doeram um pouco com o peso,
mas não como antes. Aidan o olhou ao ouvir o pequeno gemido.
— Ainda com dores?
— Um pouco. Responda minha pergunta.
— Se eu não responder, você não vai ficar sabendo. O que
significa que não estou envolvendo-o — Aidan disse, impassível.
Damien bufou.
— Já estou enfiado nessa porcaria até o pescoço. Se eu te
ajudar, saímos disso mais rápido. Ou prefere ajuda do Victor para
isso?
Aidan rosnou baixinho, seus olhos mirando Damien com fogo.
— Não fiquei louco ainda. Mantenha aquele filho da mãe bem
longe de mim.
— Uau, você realmente o detesta, né?
Exalando longamente, Aidan abaixou a pasta sobre as coxas e
pendeu a cabeça para trás até apoiar a nuca na cabeceira da cama.
Damien observou a forma bonita da garganta, o pomo de Adão
levantando abaixando com o reflexo de engolir. A barba de Aidan
estava crescendo naquela região, pontos pretos polvilhando a pele
bronzeada. Em um ponto ou outro era possível ver um branco.
Seu homem logo teria cabelos grisalhos?
— Victor é... um cara difícil de se lidar. Para mim. — Aidan
começou, olhando o teto. — É ótimo no trabalho. Aprende rápido,
possui fácil comunicação e movimento. Se adapta a mudanças
como um camaleão, adora fazer comentários indiscretos. — Aidan
olhou para Damien. — Meu completo oposto. Acho que isso fez com
que me sentisse receoso perto dele. Victor é expansivo, abraça tudo
e a todos mesmo que não caiba no comprimento de um braço. Ele
também é invasivo, fazendo perguntas pessoais que não quero
responder para quem acabei de conhecer.
— Entendo. — Damien sorriu. — Ele puxou suas penas, hein?
— Ele me irrita.
Isso fez Damien rir ainda mais, principalmente ao imaginar
Victor como um tigre branco batendo no pequeno Corvo e o pássaro
grasnando, suas penas eriçadas.
— Do que está rindo?
— De você... e dele... — Damien ofegou, limpando uma
lágrima do olho. — Jesus, é hilário...
Aidan grunhiu, jogando a pasta no chão e puxando as
cobertas. Damien gritou quando foi puxado, seu fôlego sendo
cortado ao meio quando suas pernas envolveram a cintura de Aidan
e sua boca foi tomada em um beijo. Lento, profundo e que fez
Damien suspirar.
Se apoiando nos cotovelos ao lado da cabeça de Damien,
Aidan o olhou com um sorriso de lado.
— Não é mais tão engraçado?
— Depende. Você precisa me beijar um pouco mais para que
eu me esqueça completamente.
— Ets tan astut[44]... D’acord, amor. Como você desejar —
murmurou.
— Falar catalão também ajuda. — Damien sorriu contra os
lábios de Aidan.
O beijo calmo se tornou ofegante, mãos nervosas tateando um
ao outro, gemidos baixos em toques mais ousados. Damien arqueou
o pescoço e Aidan chupou a pele ao mesmo tempo em que o
telefone tocava. Com um rugido de infelicidade, Damien cobriu os
olhos com o braço quando Aidan engatinhou pela cama e resgatou
o aparelho.
O nome de Herzog brilhou na tela e Aidan praticamente rosnou
ao atender.
— Callaghan.
— Credo, alguém não é feliz pela manhã.
Damien ouviu nitidamente a voz de Herzog do outro lado e
tomou o telefone da mão de Aidan antes que ele mandasse o outro
ir se ferrar.
— Herzog, me dê um ótimo motivo para estar ligando a essa
hora da manhã. E para o telefone de Callaghan.
A linha ficou muda por longos segundos. Quando Herzog falou,
soou lento e bastante confuso.
— Evans?
— O próprio. Agora: motivo, Herzog.
— Tudo bem. Agora eu quero saber o que vocês dois estão
fazendo juntos às seis da manhã de um sábado. Estão na TPS?
Damien apertou a fronte entre o polegar e o indicador.
— Não, você não quer e não, nós estamos na cama. Então
diga logo o porquê ligou ou vou desligar.
Herzog soltou um som apreciativo.
— Callaghan é sério e antipático, mas é quente.
— Herzog — Damien rosnou.
— Ok! Estava com insônia e abri o telefone que Cam e aquele
amigo viking delicioso me trouxeram. Aproveitei e vasculhei também
o do garoto em custódia como suspeito. O relatório ficou pronto e já
enviei no seu e-mail. Existem ligações interessantes nele, algumas
mensagens também. Se eu fosse você, sairia da cama e pediria
outra conversa com seu suspeito. Aliás, obrigado pela borda de
catupiry na minha pizza.
— Não se acostume — murmurou. — Obrigado, Herzog.
— Às ordens.
Damien desligou, jogando o telefone de lado.
— Droga — falou, afundando o rosto no travesseiro.
— Você não se importa que as pessoas da TPS saibam sobre
nós?
Deitando sobre a bochecha, espiou Aidan com um olho.
— Não. Você se importa?
— Não.
— Ótimo, por que já escondi coisas demais na minha vida e
você não vai ser uma delas. — Damien sentou, sorrindo para Aidan.
— Temos tempo para o café da manhã?
Aidan olhou para o relógio e assentiu para Damien.
— Se for rápido...
— Excelente!
Puxando as pernas de Aidan, o Corvo solto um grito surpreso
quando Damien mergulhou sobre ele. Ele havia falado de café da
manhã, mas não disse que seria sobre comida.
Damien tinha um sorriso largo no rosto ao entrar na sede da
TPS enquanto Aidan tinha uma imensa carranca.
— Pensei que transar pela manhã fazia as pessoas mais
felizes — Damien cantarolou ao subir os degraus.
— Faço parte do grupo que só funciona após uma dose forte
de cafeína — resmungou cerrando os olhos.
Não se contentando apenas com a cama, Damien e Aidan não
conseguiram manter as mãos longe um do outro durante o banho. O
que acabou atrasando-os e deixando o Corvo sem seu precioso
café.
Entrando no Departamento, Aidan foi direto para a cozinha
enquanto Damien se ocupava de ligar seu computador. O relógio
marcava sete e quarenta da manhã e não havia tantos detetives por
ali. O horário do expediente começava apenas depois das oito.
Aidan era o único que chegava no horário.
Abrindo o e-mail, viu Aidan se aproximar segurando dois copos
cheios de café e sabia que nenhum era para Damien. Ele riu,
balançando a cabeça quando o Corvo tomou um longo gole e
fechou os olhos. Clicando sobre a mensagem de Herzog, Damien
franziu as sobrancelhas conforme lia o relatório e via as imagens
tiradas em print.
— Puta que pariu.
— O que aconteceu? — Aidan perguntou, jogando um copo
vazio na lixeira.
— Existem algumas coisas a serem explicadas — murmurou,
enviando tudo para a impressora. — Avise um oficial para trazer o
Oriol Armand para interrogatório.
Aidan grunhiu.
— O advogado vai ficar furioso.
— Foda-se, Forest. Com o que temos aqui, ele vai ter de
rebolar para conseguir soltar Oriol.
Reunindo as folhas impressas e colocando dentro de uma
pasta, Damien subiu com Aidan para a sala dois, onde dois guardas
esperavam na porta. Abrindo a porta, Damien viu Oriol erguer os
olhos das mãos com cansaço. Ombros caídos e apático. A bravura
de ontem havia ido embora, assim como a raiva sobre Aidan estar
presente ou não na mesma sala.
Exalando, puxou a cadeira e sentou, abrindo a pasta sobre a
mesa e empurrando a foto sorridente de Zoey para Oriol.
— Zoey Valori? Reconhece? — Damien observou o rosto de
Oriol se torcer, lágrimas enchendo seus olhos. — A mãe dela me
disse que tinha o sonho de viajar pelo mar. Gostava de barcos. Ela
chorou quando contei que sua filhinha havia sido assassinada e
encontrada dentro de uma mala na lixeira.
Oriol balançou a cabeça, seus olhos fechando e empurrando a
foto para longe.
— Não a conheço. Jo no la vaig matar. Jo no vaig fer això[45].
Damien assentiu, arqueando as sobrancelhas.
— Não a conhece. Engraçado. Você trabalha em um café na
mesma faculdade que ela frequenta.
— A Ryerson é grande — Oriol balbuciou. — E-eu trabalho lá
só meio período. E existem cinco blocos entre a cafeteria e a
Biologia.
Aidan apoiou as mãos na mesa, inclinando-se como uma
sombra sobre Oriol.
— Estúpid. Evans nunca disse qual curso Zoey frequentava.
Damien sorriu ao ver Oriol estremecer e afundar a cabeça
entre as mãos.
— Eu não a matei!
— Se não foi você, então por que a blusa dela com sangue
estava no seu carro? — Damien perguntou, cercando Oriol. — E as
roupas que ela estava vestindo? O cartão com seu nome? As
ligações no telefone de Zoey salvas com o seu nome.
— Não sei de nada! Não sei!
— O que está escondendo, Oriol? — Aidan questionou, a voz
baixa e fria. — Tudo se conecta a você. Tudo volta para você. E diz
que não sabe, porra?
Oriol continua balançando a cabeça, lábios selados. Damien
procura entre as folhas impressas e puxa uma delas, batendo na
frente de Oriol com a mão espalmada.
— Aqui. Uma troca de mensagens entre vocês. Marcando para
sair depois da faculdade. Como se atreve a me dizer que não a
conhece?
— Aqui temos uma ligação na noite em que Zoey foi morta,
feita às nove e dezessete da noite. — Aidan apontou para a folha,
seu dedo seguindo a linha do relatório de Herzog. — Durou
cinquenta e sete segundos. Então, no seu celular há uma ligação
em seguida, para um número desconhecido. O mesmo número não
salvo em diversas outras ligações.
— Vinte minutos depois, temos a foto do seu carro nas
câmeras de vigilância enquanto abastecia. — Damien acrescentou,
mostrando a imagem falada.
— O problema começa quando ambos os telefones, o seu e o
número desconhecido, estão no mesmo lugar, ao mesmo tempo, e
seguem o mesmo caminho até perderem o sinal perto da Dundas
St. E. — Aidan olhou para Oriol, seu rosto uma máscara fria e
determinada. — Você também desconhece isso?
— Já sabemos que Zoey tinha um segundo número e o usava
escondido. Apenas esses fatos podem deixar você bem
encrencado, Oriol — Damien falou, recolhendo as fotos. — Por que
não diz de uma vez aonde vocês foram e por que a matou?
— Eu não a matei! — exclamou, batendo as mãos sobre a
mesa. Em seguida, cobriu os olhos enquanto chorava e murmurava:
— Não a matei. Não fui eu.
A porta se abriu e Forest Mclean surgiu por ela. Sua camisa
estava amassada e abotoada errado, seu cabelo espetado de um
lado e bochechas vermelhas. Damien levantou, suas sobrancelhas
arqueadas quando Forest atirou um dedo para ele.
— Isso é um absurdo e vou entrar em contato com superiora
de vocês para uma denúncia!
— Chegou rápido, Forest. — Damien olhou para o pulso e seu
relógio imaginário. — Realmente. Estava acampando perto da TPS?
— Interrogar meu cliente sem minha presença é tentar burlar o
sistema! Nada do que foi dito aqui pode ser usado contra ele!
— Só porque você pensa — Aidan resmungou, cruzando os
braços.
— Mantenha o bico calado, Corvo, ou conto ao Chefe de
Polícia que Oriol é seu irmão e esse caso vai ser retirado das suas
mãos! — Forest piscou, passando a mão na gravata dourada
amarrada errado. — Só não fiz isso ainda porque Oriol pediu.
— Ele pediu? — Aidan perguntou, arqueando uma
sobrancelha.
Entretanto, Oriol continuava chorando, alheio ao que eles
falavam. Damien suspirou, recolhendo a pasta e acenando.
— Tanto faz. Vou enviar as cópias do que conseguimos e você
vai perceber que não há como fugir dessa vez. Seu cliente tem o
rabo preso, Forest. — Damien contornou o advogado e saiu pela
porta com Aidan em seu encalço.
No andar de baixo, Damien praguejou, jogando a pasta sobre
a mesa e enfiando os dedos pelos cabelos.
— Tão perto! E Forest tinha de entrar pela porta como um
idiota.
— Pelo menos ele estava usando as calças — Aidan
comentou secamente.
Isso fez Damien rir. Olhando o relógio na parede, apertou as
mãos na cintura.
— O que acha de fazer uma visita ao Senador mais uma vez?
— Com qual finalidade? — Aidan perguntou, encostando na
quina da mesa.
— Quero dar uma olhada no quarto de Zoey. Pelo que percebi,
ela escondia muitas coisas da mãe. E sempre podemos encontrar
tudo no quarto de uma mulher.
— Isso é um conhecimento básico por ter uma irmã?
— Exatamente. — Concordou, sorrindo.

Oriol andava de um lado para o outro, suas costas doendo


pela tensão que sentia. O esporro que levou de Forest o fez chorar
como uma criança. Não havia mais o que roer em seus dedos, a
pele machucada ao redor do que sobrou das unhas. Por que ele
tinha se enfiado neste problema? Por que ele aceitou aquele maldito
trabalho? Certo, ele precisava da grana se queria viver longe dos
pais, mas...
Nada valia a pena por um pouco de papel.
— Ei. Armand.
Ele parou de andar, olhando para o policial parado na grade. O
homem estendia um saco pardo, balançando sutilmente para Oriol ir
pegar. Aquele rosto era estranho, não se parecia com nenhum dos
policiais que costumavam ficar de plantão. Se aproximando devagar,
pegou o saco e o policial assentiu, puxando o chapéu mais para
baixo e cobrindo os olhos antes de virar e sair.
Oriol segurou o saco perto do peito e foi para o banco
desconfortável que serviu de cama nos últimos dias. Abrindo e
enfiando a mão dentro, tirou um sanduíche embrulhado por um
papel branco. A letra de mão era grosseira e seu recado era muito
claro.
“Continue em silêncio. Isso vai mantê-lo vivo.”
Sentindo o estômago embrulhar, Oriol vomitou dentro do saco.

A casa dos Valor parecia a mesma por fora, mas Aidan sabia
muito bem que por dentro muita coisa havia mudado. Batendo na
madeira da porta escura e pesada, enfiou as mãos nos bolsos e
esperou enquanto Damien olhava pela grande janela fechada,
procurando algum vão. Na rua, um carro esportivo chumbo estava
estacionado, um Audi A6 branco na frente da garagem.
Aidan estava pensando em bater mais uma vez quando a porta
abriu e o rosto cansado e inchado de Diana Valor preencheu o vão.
— Detetives? — Sua mão puxou o roupão fechado na altura
do pescoço.
— Desculpe incomodá-la tão cedo, sra. Valor, mas
gostaríamos de dar uma olhada no quarto de Zoey. — Damien
sorriu. — Se não for abusar, claro.
Diana piscou, olhando de Damien para Aidan e assentiu ao dar
um passo para trás.
— Claro. Sem problemas. Eu não mexi em nada, não... tive
coragem nem mesmo de entrar.
— Mãe? O que está acontecendo? — Royce veio de trás,
olhando para Aidan e então para Damien.
O amigo, Marlow, surgiu como uma sombra logo atrás.
— Oh, os detetives querem ver o quarto de Zoey. Olá, Marlow.
Cedo por aqui?
— Oi, tia Di. Royce e eu temos um trabalho para apresentar
agora cedo.
— Isso é realmente necessário? Ver o quarto de Zoey, digo —
Royce os questionou, cruzando os braços.
— Talvez ela tenha algo guardado, alguma pista. É sempre
bom dar uma olhada nos pertences da vítima — Damien respondeu.
— Se isso vai ajudar, não vejo problema algum. Me sigam, por
favor. — Diana balançou a mão na direção do corredor.
Aidan olhou ao redor, passando pelo corredor com fotos de
família. Havia retratos dos quatro na praia, na Disney, em um rancho
com cavalos. Em várias casas que Aidan havia ido, sempre
encontrava esse corredor com fotos. Sempre causava uma imensa
inveja em Aidan. Como se ele não fosse normal ao não ter algo
parecido.
Empurrando os pensamentos ruins para baixo, se concentrou
no que precisava ser feito agora. Diana abriu uma porta branca de
maçaneta dourada e gesticulou para o lado de dentro antes de dar
as costas e morder o indicador. Ela ainda não estava preparada
para sequer olhar o quarto de sua filha.
As paredes rosas foram a primeira coisa que Aidan percebeu.
A cama permanecia desarrumada, lençóis brancos e edredom rosa
bebê. Livros de biologia aberto sobre a escrivaninha, um notebook
com protetor de tela marcando as horas e um barco no fundo. Uma
prateleira repleta de origamis de barcos coloridos, dentro de
garrafas, artesanais, pintados em quadros.
— O que pretendem achar aqui?
— Qualquer coisa que Zoey deixou para trás — Damien
murmurou.
Haviam roupas espalhadas sobre um banco, bolsas
penduradas em um cabide. Era como entrar em uma zona de
guerra. Aidan virou, percebendo o amigo de Royce no quarto e perto
da penteadeira. Seus dedos passavam pelos perfumes até escolher
um de frasco azul claro e cheirar. Seus olhos fecharam ao exalar, e
então o colocou no lugar mais uma vez.
Damien soltou uma exclamação ao encontrar um baú debaixo
da cama e o colocá-lo sobre o colchão. Royce olhava do outro lado,
curioso. A tampa se abriu e Aidan inclinou para ver diversas fotos
guardadas. Em uma delas era de Zoey com Oriol, seus rostos
colados na bochecha e sorrisos largos. Uma prova concreta de que
eles se conheciam. Revirando um pouco mais, Damien ergueu a
chave de um carro.
— Sua irmã tinha um carro?
— Claro. Ela ganhou do nosso pai quando fez dezesseis
anos.
Levantando, Damien saiu do quarto e Aidan o acompanhou,
encontrando Diana ainda na porta.
— Sra. Valor, o carro de Zoey está na garagem?
— Claro. Ela quase não o usava, já que as amigas sempre
passavam pegá-la.
— Essa chave seria do carro em questão? — Aidan perguntou.
Diana olhou para a chave pendurada nos dedos de Damien e
balançou a cabeça em negativa.
— Não. Nós sempre mantemos as chaves na porta que leva
para os fundos da garagem. E a chave de Zoey não é assim. Essa
não é a marca do seu carro.
— Então, nós temos um segundo carro — Damien disse,
olhando para Aidan. — Agora, onde poderia estar esse veículo?
Eles pensaram por um instante e falaram juntos:
— Na Universidade.
Damien praticamente correu para fora do carro assim que
estacionou. As nuvens pesadas da tempestade de ontem
continuavam no céu, o vento forte carregando folhas e lixo. As
pontas do sobretudo de Aidan batiam e retorciam ao redor das
pernas longas. Damien puxou a gola de seu casaco mais para cima,
as pontas dos seus dedos congelando.
Por que ele nunca se lembrava de pegar as luvas?
Seguindo pela lateral do prédio, eles entraram no
estacionamento coberto. Havia alguns carros, mas apenas um
correspondia a logo marcada na chave. Apertando o botão, Damien
sorriu triunfante quando o alarme soou.
— Acho que temos nosso campeão.
— E ele é amarelo — Aidan resmungou.
Colocando as luvas, puxou a porta do motorista e Damien
olhou para o lado de dentro enquanto Aidan dava a volta e abria a
porta do passageiro. O cheiro de carro novo era forte, assim como o
de bebida alcóolica e cigarro. Damien abanou a mão na frente do
rosto.
— Urgh, que fedor.
— Alguém gostava de cigarros. — Aidan gesticulou para o
chão com caixinhas vazias.
Indo para a porta de trás, Damien encontrou uma caixa com
seis garrafas de vodca lacradas. O que Zoey ia fazer com isso?
Beber? Vender?
— Evans, veja isso.
Damien ergueu os olhos para ver que o porta-luvas estava
aberto, dentro uma caixa de papelão enrolada com fita amarela.
Pegando um canivete, Aidan cortou a fita e abriu a caixa, revelando
diversos pacotes de droga. Damien praguejou, pegando o celular e
tirando fotos.
— Que porra é tudo isso? Ela estava vendendo?
— É muito para ser usado. — Aidan fechou a porta e inspirou.
— Isso é uma quantia de venda.
— A filha do Senador envolvida com tráfico de drogas? —
Damien murmurou, olhando ao redor e se aproximando de Aidan. —
Acha que tem a ver com a Pops?
— Quando existe droga, existe dedo da Pops no meio — Aidan
rosnou. — Será que o Senador... ele estaria...
— Um dos grandes peixes que acoberta a máfia? Não duvido
de nada. — Damien cruzou os braços. — Quando trabalhei para
eles, vi de tudo lá. Pessoas que pensei serem corretas, sendo tão
corruptas quanto aqueles que prendiam. Hipócritas.
E Damien não era muito diferente naquela época. Virando o
rosto para o lado quando algo acontecia, fingindo perder evidências,
burlando o sistema e estragando provas. Inferno, ele tinha tanta
vergonha daquele passado.
Sentindo uma mão em sua nuca, Damien olhou para Aidan e
encontrou olhos escuros preocupados.
— Seja o que for que tenha feito no passado, não importa
mais, d’acord?
— Eu sei, mas isso não faz o passado apagar. Oriol e Gemma
caindo de paraquedas na sua vida é uma grande prova de que o
passado nunca fica no passado.
— A forma com que lidamos com isso no presente é o que é
importante.
— Reese me disse que não vai ser fácil lidar com os
D’Angeles. Eles possuem dinheiro e pessoas de poder do lado
deles.
— Até os reinos mais fortes caíram. A família D’Angeles não
vai ser diferente. — Aidan balançou a cabeça. — Agora, o que
fazemos com isso que descobrimos?
— Oriol deve saber de algo. — Damien enfiou a mão dentro do
bolso e tirou a foto dobrada de Oriol e Zoey juntos. — Ele não pode
negar isso.
— Quando você pegou?
— Eu tenho dedos leves — Damien disse, balançando-os. —
Você deveria saber disso depois de ontem e hoje de manhã.
Aidan cerrou os olhos e abriu a boca, apenas para fechar
quando seu telefone tocou. Damien o viu franzir o cenho ao olhar o
visor e então atendeu, rosnando o sobrenome.
— Callaghan. — Seu rosto perdeu qualquer tipo de expressão
ao falar: — Como conseguiu meu número?
Aquilo havia deixado Damien curioso. Se aproximando, ergueu
as pontas dos pés e colou o ouvido do outro lado. A voz
inconfundível de Victor fez Damien sorrir.
— Não te interessa onde estou. Não, eu enviei os relatórios
direto para Stanton. Foda-se, Victor, não estou trabalhando com
você nisso. Não estou tentando esconder nada. — Aidan suspirou,
seu polegar pressionando entre os olhos. — Não me faça querer
atravessar o telefone para esganá-lo. Mare de puta[46], ok! Espere na
TPS, estamos voltando aí.
Damien piscou quando Aidan começou a praguejar em
catalão. Cruzando os braços, cerrou os olhos.
— Preciso ficar preocupado com você e Victor?
— Não — rosnou.
— Porque... — Damien se balançou sobre os pés, incerto. —
Você sentia essa raiva de mim e olhe só onde acabamos. —
Gesticulou entre eles.
Os ombros de Aidan caíram, sua cabeça balançando ao se
aproximar de Damien e sua mão tocar seu peito com a palma.
— Eu tinha raiva de você porque sabia que se me permitisse
chegar perto demais, ficaria apaixonado. Queria transar com você
até perder os sentidos. Você me provocava e eu queria tirar suas
roupas e fazê-lo ficar quieto com meu pau na sua boca. — Aidan
inclinou a cabeça, seus olhos escuros fitando a boca de Damien
quando a língua passou pela lábio inferior. — Ainda quero. Toda vez
que você abre a boca e me provoca.
— Jesus Cristo, Callaghan — Damien murmurou.
— Já Victor, quero que ele engula os dentes depois de socá-lo.
Ele não me provoca, ele me irrita. Ele respirando é uma provação
divina da minha paciência porque o homem parece feliz em
qualquer tipo de situação. E quando ele demonstra sentimentos é...
assustador. — Aidan exalou, esfregando os cabelos. — Victor mata
e não demonstra sentimentos. É como olhar a porra de uma
máquina, Damien.
Ele entendia. Por mais que Damien visse o quão bem Victor se
enturmou e como seu sorriso estava sempre em seu rosto, viu no
fundo daqueles olhos cinzentos algo apagado. Talvez fosse a alma
do homem. Não querendo mais pensar naquilo, enfiou a mão no
bolso e discou o número da TPS.
— Vamos embora. Vou pedir para uma unidade vir buscar esse
carro como prova.

Aidan podia sentir a pulsação de uma dor de cabeça


chegando. Ele tinha ficado mal-acostumado com o café na casa de
Damien e tomar aquele caldo preto na TPS não estava ajudando.
Saindo do carro, Aidan grunhiu contra o vento gelado, suas botas
escorregando no gelo e fazendo sua barriga esfriar com a sensação
de quase queda.
Puxando as mangas do sobretudo para baixo, caminhou para
os degraus com Damien logo atrás, olhando a tela do celular. Aidan
congelou no lugar ao olhar a frente da sede da TPS e viu aquela
mulher odiosa parada nas portas. Damien colidiu contra suas
costas, resmungando ao dar a volta nele.
— Que porra, Callaghan? — Damien ralhou e seguiu com os
olhos na direção das portas, soltando um grunhido desanimado. —
Merda. Achei que estávamos livres dessa mulher.
— Ela é como a peste. Só desaparece se for erradicada —
disse secamente.
Assim como as baratas, pensou.
Parecendo sentir que era observada, Gemma virou e olhou
diretamente para eles. Cels, ela estava velha. Mais velha do que ele
se lembrava. Depois de tantos anos e tudo o que ele viveu, pensou
que Gemma Fuentes estaria morta por uma overdose, ou
espancada pelo marido. E doeu em Aidan perceber que ele não se
importava se sua própria mãe tivesse morrido e enterrada em um
buraco qualquer ou devorada por cães famintos.
O que isso fazia dele como pessoa?
— Agora, não vá por esse caminho, querido — Damien
murmurou, sua mão segurando a lapela do sobretudo de Aidan e
puxando sutilmente. — Não abra essa porta. Não deixe essa mulher
viciosa ganhar de você mais uma vez.
Aidan inspirou, percebendo que não estava respirando.
Damien estava certo. Aquele garoto indefeso e machucado estava
no passado. Aidan continuava ferido, mas ele sabia lutar suas
batalhas agora. E tinha Damien para ajudá-lo a cuidar dos
machucados depois.
Assentindo, terminou de subir os degraus e parou na frente de
Gemma. Ela sempre foi tão pequena assim? Seus olhos se
conectaram, a raiva dela sendo visível enquanto Aidan era puro
gelo.
— Por que ainda não soltou meu filho?
— Oriol continua sendo suspeito da morte da garota
encontrada na lixeira — Aidan falou monótono. — Se a senhora
estava tão preocupada, onde estava ontem que não veio visitá-lo?
— As pessoas trabalham. Enquanto vocês usam o dinheiro
público para descansar e deixar inocentes presos!
Aidan sentiu os olhos doerem para revirar. A pulsação em sua
cabeça começou e ele sabia que só iria piorar. Enfiando as mãos
nos bolsos, Aidan olhou Gemma de cima.
— Oriol é culpado até que se prove o contrário. Não gaste sua
saliva, senhora. — Aidan contornou a mulher, pronto para entrar na
TPS e ocupar a mente com algo que não fosse seu passado.
Entretanto, Gemma sempre tinha de ter a última palavra.
— Ets idèntic al teu pare, pensant que ets millor que tot i tots. I
mira on ha anat a parar. Enterrat amb la boca plena de formigues[47].
Os dentes de Aidan moeram. Seus lábios ergueram em um
rosnado, mas ele se recusou a olhar para aquela cobra desprezível
e dar a satisfação de vê-lo se contorcer. Engolindo a raiva, olhou
sobre o ombro com uma máscara impassível.
— Não penso que sou melhor que todos, mas tenho absoluta
certeza de que sou melhor que você. Tenha um ótimo dia, senhora.
— Eu terei! Assim que Jeff chegar e exigir que nosso filho saia
daqui livre!
Aquelas palavras fizeram Aidan estremecer, atingindo
diretamente onde Gemma sabia que faria Aidan cambalear. A mão
firme de Damien segurou seu braço enquanto rosnava:
— Acho melhor a senhora engolir a porra do seu veneno ou
reboco sua bunda magra e odiosa para uma cela por desacato a
autoridade.
— Você não se atreveria...
— Me atrevo. Então cale a maldita boca, inferno. — Virando-se
para dentro, empurrou a porta e puxou Aidan com ele.
Quando estavam longe dos olhos de Gemma e de qualquer
outra pessoa, Aidan sentiu seus joelhos falharem e desabou. Sorte
que Damien estava lá para pegá-lo. Sua garganta doeu como se
algo ruim tivesse descido por ela e arranhado por dentro. Seu peito
estava comprimido e não conseguia respirar.
Soltando pequenos gemidos, Aidan se agarrou em Damien
como uma bóia salva-vidas, tremendo dentro daquele abraço
enquanto sentia seu corpo colapsar. Um ataque de pânico nunca te
avisa quando está chegando, mas deixa seu corpo moído e
esgotado quando vai embora. Aidan sentiu gosto de sangue e
percebeu que estava mordendo a língua para não gritar.
— Está tudo bem, querido. Vamos terminar esse caso, vai
acabar tudo bem — Damien murmurava contra seus cabelos, sua
mão subindo e descendo pela espinha de Aidan em uma carícia. —
Vamos sair de férias depois disso. Vamos pra sua cabana, isolados,
e você vai ter que suportar me ver nu o dia inteiro.
A risada de Aidan saiu seca, como o grasnado de um pássaro
machucado.
— Ets... você é terrível.
— Minha mãe costumava me dizer isso com frequência.
Sentindo-se um pouco melhor, Aidan grunhiu ao endireitar a
coluna e cada músculo do seu corpo parecia dolorido. Esfregando
os olhos, limpou as bochechas e olhou para os olhos verdes
preocupados de seu parceiro.
— Desculpe por isso.
— Ei, muletas, lembra? Eu me apoio em você, você se apoia
em mim. — Damien sorriu, segurando o rosto de Aidan e o olhando
com atenção. — Melhor?
— Sí. Sim, melhor.
— Quer que eu fale com Oriol sozinho?
— Não. Eu... — Aidan lambeu os lábios secos e segurou os
braços de Damien nos pulsos. — Posso falar com Oriol a sós?
Damien franziu as sobrancelhas.
— Tem certeza?
— Tenho. — Aidan assentiu uma vez.
— Tudo bem. Vou pedir para um oficial trazê-lo enquanto você
joga uma água no rosto. Aqui, pegue isso. — Damien tirou a foto do
bolso e entregou para Aidan. — Se aquele garoto negar mais uma
vez, esfregue isso na cara dele.
Deixando um beijo em Aidan, Damien o apertou em um abraço
rápido antes de subir os degraus até o andar de cima. Respirando
longo e profundamente, Aidan limpou sua mente das palavras de
Gemma e de qualquer outra coisa que poderia perturbá-lo. Foi ao
banheiro e lavou o rosto, mentalizando todos os momentos que teve
com Damien nas últimas semanas.
Pensou em Tiffany, pensou em Colin. Quando pegou o café na
cozinha e subiu para a sala dois, Aidan estava centrado novamente.
Abrindo a porta, encontrou seu meio-irmão sentado, a cabeça baixa.
Parecia ter emagrecido, seu cabelo preto estava oleoso e suas
bochechas chupadas. Uma barba fina e falhada surgia, polvilhando
maxilar e queixo. Aidan colocou seu copo de café na mesa, puxou a
cadeira e sentou. Cruzou a perna com o tornozelo sobre o joelho e
entrelaçou os dedos.
Durante todo esse processo, Oriol não ergueu os olhos.
— Sua mãe está lá embaixo. Ela já foi visitá-lo?
Oriol balançou a cabeça uma vez.
— Ela parecia desesperada ao vê-lo preso. Vocês possuem
um bom relacionamento?
O garoto soltou uma risada baixa e olhou para Aidan
enviesado.
— Você só quer saber isso por motivos pessoais.
— Não misturo pessoal com profissional — Aidan disse
secamente. — Quando entro pela porta da TPS, sou o Detetive
Callaghan. Se você me ver na rua e fora do horário de trabalho,
serei Aidan. E você não vai querer cruzar o meu caminho.
Aquilo pareceu chamar a atenção de Oriol. Ele ergueu a
cabeça, observando Aidan com atenção.
— Por que você foi embora? — perguntou baixinho.
Os dentes de Aidan morderam, seus olhos desviaram para a
parede espelhada.
— Já disse que...
— Apenas me responda, droga — Oriol murmurou. — Por que
foi embora? Você abandonou a mãe. Nos esqueceu naquele limbo.
Tive de trabalhar para conseguir tirar a mãe e o pai daquele trailer
e...
A mão de Aidan bateu sobre a mesa, assustando Oriol.
— Eu não abandonei — a voz de Aidan soou baixa e grossa,
como um trovão anunciando a tempestade. Seus olhos escuros e
frios olharam para Oriol, despido de qualquer emoção que não fosse
raiva. — Eu fui expulso. Quatro anos sendo molestado, abusado
psicologicamente e então expulso daquele maldito trailer e jogado
na vala, nu. Eu não abandonei. Eu fui abandonado pela mulher que
você chama de mãe e estuprado pelo homem que chama de pai.
Não espere que eu seja gentil com você quando os defende. Não
espere de mim algo como de um irmão porque eu não sou seu
irmão. Não faço parte dessa “família” desde os dez anos.
Entendidos?
Aidan observou Oriol se encolher a cada palavra e então
engolir com dificuldade. Seus olhos pareciam perdidos quando
olhou para Aidan novamente.
— Desculpe. A história que eles me contaram foi...
— Não estamos aqui para discutir isso. — Aidan cortou, seco.
— Me responda. O que fez com Zoey quando a viu na noite em que
foi morta?
— Eu já disse...
— Eu sei o que você disse. Estou perguntando o que está
ocultando. — Aidan tirou a foto e desdobrou, colocando sobre a
mesa e estendendo para Oriol. — Temos isso, então não adianta
negar que não a conhece.
Com os dedos trêmulos, Oriol pegou a foto e a fechou. Seus
olhos encheram de lágrimas e balançou a cabeça mais uma vez.
— Não posso dizer. Se eu falar... eles vão me matar —
sussurrou, devolvendo a foto para Aidan.
— Não, eles não vão. Se você não for o culpado desse
assassinato, mas usado como bode expiratório, podemos protegê-
lo.
— Vocês não podem! — Oriol exclamou, então olhou ao redor
antes de inclinar na direção de Aidan. — Eles estão dentro da
delegacia. Estão em cada maldito canto dessa cidade ordinária!
— A família D’Angeles? É deles que você tem medo?
Oriol assentiu, cruzando os braços.
— Zoey não é a garota boazinha que todos pintam. Ela era...
feroz. — Oriol fechou os olhos. — Doce e alegre, mas tão destemida
e exigente. Eu a amava. E Zoey nunca soube disso. Éramos
melhores amigos. Então, eu nunca poderia... Como poderia... matá-
la? — Oriol fungou, limpando o nariz com o punho.
— Se você realmente a ama, vai querer justiça por ela. Ou vai
ser preso no lugar de outro. — Aidan guardou a foto no bolso e
pegou seu café, pronto para levantar. — Forest pode conseguir tirá-
lo da cadeia, mas Zoey vai permanecer como um assassinato não
resolvido.
— Això ho vaig rebre d'un guàrdia[48] — Oriol murmurou,
estendendo um papel amassado para Aidan e continuou em catalão.
— Nunca o vi no plantão ou me escoltando. É uma prova de que
lugar nenhum é seguro.
Aidan abriu o papel, encontrando as letras tortas, mas
distintas. Era uma ameaça muito clara.
— Se Zoey foi realmente morta pela máfia, ela estava
envolvida com o tráfico de drogas — Aidan murmurou em catalão,
pensativo.
— Não tráfico, mas venda. — Oriol enfiou os dedos pelos
cabelos e apoiou os cotovelos na mesa, as palavras fluindo entre
eles em sua língua natal. — Zoey era a porta de recepção também.
Nós dois. E, se Forest souber que contei isso...
— Ele não vai saber. — Aidan guardou o papel no bolso e
levantou. — Nós temos o carro de Zoey como prova. A quantidade
de drogas encontrada é suficiente para indicar venda. Podemos
usar o rastreador do celular e usamos isso como desculpa para
achar o fornecedor. Eu nunca falei com você.
— La vaig agafar aquella nit, a la cantonada de casa seva,
com sempre vam acordar[49]. — Oriol continuou em catalão, baixo.
— Fomos para a casa de Ramírez, na Dundas St. E, perto do
Regent Park. Zoey... Ela costumava dormir com Ramírez. Depois
que entreguei meu pacote, me jogaram para fora e mandaram sair.
Meia hora depois ela me ligou, chorando, me pedindo para buscá-
la.
— Que horas foi isso?
— Dez da noite? — Oriol esfregou a têmpora, olhos fechados.
— Quando voltei, ela estava na rua. Não tinha nada além da blusa
cobrindo do frio e seu rosto estava... Crist, sua roupa tinha sangue e
ela estava muito machucada. Sempre carrego roupas extras no
carro e dei a ela para que se cobrisse.
— Ela disse o porquê apanhou?
— Não. Zoey ficou calada por todo o caminho. Quando
chegamos na College St. ela pediu para saltar do carro, que ela
voltaria para casa de táxi. Eu disse que seria perigoso, mas ela
insistiu. Deixei meu cartão com ela para acertar a corrida, mas
nunca chegou para mim a mensagem de que o crédito foi usado. —
Oriol balançou a cabeça, apertando os olhos com as mãos. — Eu
estava preocupado porque ela não me respondia. Então... dois
policiais apareceram na minha porta e eu apenas... sabia. Mas eu
não a matei.
— Sabe qual táxi ela pegou?
— Não. Ela saiu caminhando pela calçada ao contrário de mim
e a perdi de vista. — Oriol suspirou. — Ruc, ruc, ruc[50]...
— Não se martirize. Isso já ajuda muito.
A porta se abriu, Forest caminhando pela sala com olhos
furiosos.
— Eu nem mesmo posso trabalhar em paz no meu escritório!
O que vocês querem arrancar do meu cliente?
Aidan olhou para o advogado, falando em inglês novamente.
— Estava apenas querendo saber um pouco mais do meu...
meio-irmão. — Aidan lançou um olhar para Oriol e então para
Forest. — Nada da sua conta, ou para o caso. E, para essa
conversa, não precisava de você.
Aidan se virou, dando as costas para ambos e saindo da sala.
Chacoalhando os ombros, desceu para o Departamento e encontrou
Damien na metade do caminho, se esquivando de Victor.
— Acho melhor manter as mãos para você — Aidan rosnou,
empurrando o copo vazio no peito de Victor.
— Callaghan! Eu estava...
— Nós temos um grande problema aqui. Concentre-se no
modo Delyon, não no Kennedy. — Aidan falou para Victor e viu o
momento em que seus olhos alegres perderam o brilho e o sorriso
parecia congelado. — Ótimo. Oriol me deu algumas informações.
— O quê? — Damien exclamou.
— Não aqui. — Aidan balançou a cabeça. — Delyon, pegue o
Cam e o traga para o carro. Estamos indo visitar um traficante.
— Você só pode estar louco.
Victor deixou o sorriso escorregar, seu rosto ficando sombrio e
aqueles olhos cinzentos se fixaram em Aidan com total
concentração e qualquer falta de empatia.
Ali estava a verdadeira face de Victor Delyon.
— Jesus Cristo — Damien murmurou, dando um passo para
trás.
— Vou explicar no carro. É pior do que poderíamos imaginar.
— Preciso avisar o Stanton?
— Por enquanto não. — Aidan balançou a cabeça. — Seja
rápido.
Victor assentiu e virou, Aidan pegando Damien pelo braço e o
puxando pelas escadas.
— O que, porra, eu acabei de ver? Aquilo foi assustador pra
caralho!
Aidan sabia muito bem disso. A primeira vez que Victor o olhou
daquela forma, Aidan sentiu que dedos invisíveis rastejavam sobre
sua pele. Estremeceu apenas de lembrar. Abrindo a boca para dizer
a Damien o quanto concordava, seu corpo esbarrou em outro.
Pronto para pedir desculpas, sua língua travou ao olhar para o rosto
familiar.
Deus não tinha misericórdia alguma de Aidan.
Erguendo-se em toda sua altura, Aidan escondeu o medo e os
tremores atrás de uma máscara indiferente. Entretanto, Jeff não
escondeu o sorriso malicioso que fez as entranhas de Aidan
retorcerem. O monstro em seus sonhos não chegava perto de vê-lo
novamente. Ele achou, em sua inocência, que as lembranças eram
distorcidas e pioradas, mas nada se comparava ao horror de ver
pessoalmente.
O homem continuava com a mesma expressão maliciosa, mas
seus cabelos estavam ralos e com entradas profundas. Uma papada
tinha se formado abaixo do queixo e também parecia que tinha uma
barriga de cerveja caindo fora do cinto. Sem perceber, Aidan
apertou os dedos ao redor do braço de Damien, puxando-o para
mais perto. Seus lábios pareciam grudados quando Jeff olhou-o dos
pés à cabeça e soltou um assobio baixo.
— Você cresceu, garoto.
Aquela voz...
Cante uma canção para mim, garoto.
Os sons que você faz...
O maxilar de Aidan estava travado. Seus olhos arregalados, o
medo escorregando pelas bordas do controle e ameaçando quebrar
a máscara que Aidan usava. Gemma os olhava a poucos metros de
distância, seu rosto fechado em uma carranca.
Jeff ergueu a mão, como se fosse tocar em Aidan, apenas
para receber um tapa de Damien. O padrasto de Aidan era da
mesma altura que seu parceiro e eles se olhavam no mesmo nível.
— Não chegue perto dele — Damien rosnou.
Agarrando as costas da jaqueta de Damien, Aidan puxou
sutilmente para trás.
— Vamos embora — murmurou.
Ali, naquele momento, era o Aidan de dez anos implorando
para ir embora. Para fugir. Os olhos de Jeff desviaram de Damien,
pegando Aidan e o desafiando a desviar o olhar. Como um bom cão
chutado, Aidan o fez e isso rendeu um riso vindo de Jeff.
— Você cresceu, mas não mudou nada. Continua o mesmo
garoto na coleira. — Jeff tentou contornar Damien, a mão
levantando para tocar em Aidan.
— Eu disse para você não chegar perto dele, filho da puta! —
Damien gritou.
A cena pareceu correr em câmera lenta diante dos olhos de
Aidan. Damien ergueu o punho e o conectou com o maxilar de Jeff
em um soco poderoso. O homem tombou no chão e Damien o
montou, sua mão descendo uma e outra vez enquanto gritava:
— Nunca mais encoste a mão nele! Nunca mais olhe para ele!
Seu idiota desprezível! Eu vou matar você!
— Puta que pariu — Cam disse, levando as mãos à cabeça.
— Aidan! Pegue seu parceiro, Aidan! — Victor gritava,
tentando tirar Damien de cima de um Jeff desacordado.
Saindo do transe, Aidan moveu suas pernas até onde Damien
esperneava nos braços de Victor, tentando chutar o corpo
desmaiado do padrasto de Aidan. Passando o braço ao redor do
seu parceiro, ofegou quando o cotovelo o acertou na barriga.
— Desgraçado! Me solta! Eu vou matar esse filho da puta!
Policiais surgiram pelas portas, cercando-os e verificando
pulso de Jeff. Damien se soltou de Aidan, puxando sua jaqueta no
lugar e bufando. Suas bochechas estavam vermelhas, seus olhos
verdes brilhando com raiva. A única coisa que Aidan conseguiu
pensar no momento foi beijá-lo.
E foi isso que ele fez, ao mesmo tempo em que a voz de
Reese ecoava:
— Que merda está acontecendo aqui?!
Forest tinha seus braços cruzados e apoiado na quina da
mesa pelo quadril. Olhava para Oriol como um entomologista[51]
olharia para uma espécie estranha de inseto. Exalando lentamente,
Forest levantou e deu a volta na sala pequena, olhando para o
espelho e ajeitando seu cabelo e gravata.
— Você disse a ele o que combinamos?
Oriol assentiu, seus lábios franzidos.
— Ótimo. Agora, nós apenas esperamos — Forest disse,
virando-se e pegando sua pasta de couro.
— Como tem certeza de que foi Ramirez?
— Kiam o fez falar. Ele possui alguns métodos bastante...
eficazes quando se trata de lidar com traidores.
E Ramirez merecia uma punição. Depois que descobriram que
o infeliz estava desviando mercadoria, Pops pediu sua cabeça. Com
a visita de Aidan Callaghan e Damien Evans ao covil de Ramirez,
eles iriam atirar nos dois detetives e acabariam finalizando o serviço
e limpando a bagunça que fizeram. Assim, Reaper[52] poderia fazer o
que quisesse com Ramirez e ninguém nunca encontraria o corpo.
Quem eles pensam que são? Investigando, fuçando o lixo
como cães de rua sarnentos... Stanton, aquele enxerido, pensava
que acabaria com a máfia? Os D’Angeles eram enormes! A cada um
cidadão honesto, haviam nove corruptos. Para Forest, a balança
pesava mais de um lado do que do outro.
— Você acha... acha que vão matar o Antoni?
Forest olhou para o garoto, seu rosto limpo denunciando o
quão novo ele era para aquele mundo.
— Claro que vão. Isso vai ser um problema para você?
Oriol negou, tornando a olhar para baixo.
— Não se preocupe. Até o final do dia você vai estar solto. —
Forest sorriu, abrindo a porta. — Te vejo na rua, garoto de ouro.
Não que fosse uma verdade. Forest tinha muito trabalho para
fazer e tinha de reservar um tempo para ver o noticiário às seis. A
cidade pegaria fogo e Forest estaria tomando champanhe e rindo
observando de sua janela.

Damien ainda estava fumegando. Respirar doía pra caralho,


suas costelas gritando pelo esforço, mas ele estava pouco se
fodendo. Ele deveria ter batido mais. Deveria ter deixado a porra da
cara daquele filho de uma puta completamente irreconhecível.
Olhando as juntas das mãos, fez uma careta ao ver sangue e a pele
esfolada.
Imediatamente, Aidan a pegou, passando um de algodão com
um pouco de soro na ferida. Damien chiou, mas Aidan continuou
pressionando. Atrás da mesa, a Superintendente os olhava com
braços cruzados, seu pé batendo no chão de forma rítmica e
irritante.
— Ainda estou tentando entender o que acabou de acontecer
na frente dessa delegacia — Reese disse, olhando para Damien. —
Pode me explicar?
— O cara é um idiota — Damien resmungou.
— Assumo toda a culpa pelo ocorrido, Chefe. — Aidan se
prontificou, apertando o algodão na mão de Damien antes de
enrolar com uma faixa. — O problema era comigo e Damien apenas
o tomou para si.
— Eu prometi a mim mesmo que quando o visse, iria matá-lo.
E você não deixou.
— Porque não quero você preso, droga — Aidan rosnou de
volta.
— Deus misericordioso — Reese grunhiu, seus dedos
afundando nos olhos. — Vocês dois, ao mesmo tempo que são
ótimos detetives, me dão uma puta dor de cabeça!
— Desculpa, Chefe — disseram em uníssono.
— Eu juro que não ligo se vocês fodem no horário vago, mas
vocês não podem trazer a merda emocional para o trabalho!
Damien desviou os olhos, segurando a mão enfaixada contra o
peito.
— Agora eu tenho que limpar a bagunça que vocês fizeram,
me reportar ao Chefe Interino Saunders e convencê-lo de que isso
foi um grande mal-entendido! — Reese os olhos com fúria,
apontando para a porta. — Aquele homem pode abrir uma
ocorrência contra você, Evans, e a corregedoria pode abrir um
inquérito. Você pode ser afastado ou mesmo demitido!
— Quero ver aquele idiota ter coragem de falar qualquer coisa
— Damien zombou. — Existem coisas sobre ele que o colocariam
na cadeia.
Lugar que deveria estar há muito tempo.
Aidan se remexeu no lugar, cruzando os braços.
— Jeff, o homem que Damien bateu, ele é... pai do nosso
suspeito.
— A coisa só piora — Reese rosnou.
— E o suspeito é... meu meio-irmão — Aidan continuou.
— Pare de falar. Eu não quero saber. — A Superintendente
meneou a mão e exalou. — Saiam daqui e vão fazer o trabalho de
vocês. Apenas rezem para qualquer Deus que acredite para que
suas bundas não sejam jogadas na sarjeta!
Damien se encolheu sutilmente, assentindo. Saindo da sala da
Superintendente, o escritório cheio de detetives se calou
subitamente, todos olhando na direção de Damien e Aidan.
— Vocês não têm nada melhor para fazer, não? — Ava
chamou de sua mesa, fazendo os abutres voarem.
Cam estava sentado sobre a mesa, de braços cruzados, e
Victor estava sentado na cadeira de Damien. Seu sorriso estava de
volta, o que Damien agradeceu. O rosto sombrio era realmente
assustador.
A mão de Aidan envolveu sua nuca, puxando-o para perto e
sussurrando em seu ouvido.
— Você é o homem mais incrível que eu poderia ter conhecido
nesse mundo. T’estimo[53], cariño. — Aidan terminou com um beijo
na curva do maxilar de Damien, fazendo-o praticamente ronronar.
— Vocês são doces — Ava disse, batendo os cílios. — Agora,
Evans, conte para nós o motivo da agressão aleatória.
— O cara é um idiota e mereceu. É o suficiente que vocês
precisam saber — resmungou. — Temos a porcaria de um traficante
para visitar agora. Te vejo depois, Ava.
Deixando um beijo no topo da cabeça da amiga, Damien
desceu os degraus devagar. Suas costelas realmente estavam
ruins. Um braço forte envolveu sua cintura e o ajudou a descer o
restante da escada.
— Você deveria descansar. E se suas costelas piorarem? —
Aidan falou, pegando a chave do carro do seu bolso. — Eu dirijo.
— Pensei que não soubesse dirigir.
— Opto pelo serviço de metrô pelo bem da cidade e meu
bolso. Não porque não sei dirigir — Aidan respondeu cinicamente.
— Caso queiram saber, o cara que Damien socou entrou
desacordado na ambulância. Um conhecido no hospital me disse
que teve fraturas no maxilar e nariz, afundamento da face esquerda
e alguns dentes perdidos. — Victor comentou, seu sorriso largo
parecendo um pouco maníaco.
— Ótimo. — Damien ofegou quando Aidan o soltou perto da
porta. O alarme soou e ele sentou no banco do passageiro,
deixando a cabeça pender para trás e fechando os olhos. — Ainda
foi pouco.
— Você é um maníaco, Evans — Cam murmurou ao sentar
atrás.
— Só sei que não quero irritar você, cara. — Victor enfiou sua
cabeça entre os bancos, um polegar para cima. — Você tem a porra
de um punho forte.
Damien riu, gemendo em seguida ao sentir dor.
— Quer passar na farmácia? — Aidan questionou ao ligar o
carro e sair da vaga.
— Não. Eu aguento.
Aidan o olhou enviesado, mas não disse nada. O Corvo
realmente sabia dirigir bem, levando-os pelas ruas movimentadas
da grande Toronto. Victor tornou a se esgueirar entre os bancos
quando Aidan parou no primeiro semáforo.
— Agora, pode me explicar o que estamos indo fazer,
realmente?
Então, Aidan explicou a conversa que teve com Oriol. Damien
franziu as sobrancelhas, pensativo. Por que depois de todos esse
tempo, Oriol apenas decidiu abrir o bico e contar sua versão
daquela noite? Isso se realmente fosse verdade. Declarar fazer
parte do tráfico ou era muita burrice ou confiança que seria solto por
Forest.
Forest...
Damien não confiava naquele advogado arrogante. Ele era
escorregadio e cheio de ideias perigosas. Desde o começo aquele
caso cheirava mal para Damien e ele não conseguia entender o
porquê.
Estacionando na rua paralela à Dundas Street, na Parliament
St., Damien estudou as lojas ao sair do carro. Cam olhou ao redor,
enfiando as mãos nos bolsos.
— Será que o carro vai estar no mesmo lugar quando
voltarmos?
— Ele vai. — Damien assentiu.
Jogando uma moeda para o garoto com não mais de doze
anos, sentado sobre um papelão, acenou na direção do carro.
— Te dou cinquenta pratas quando voltar e ele estiver intacto.
— Como quiser, senhor — O menino respondeu com um
sorriso, mordendo a moeda.
Os quatro viraram a esquina e entraram na rua pouco
movimentada. Não muito longe dali, o prédio de três andares se
erguia, seus tijolos vermelhos e uma pequena loja de carnes no
térreo. Damien empurrou a porta, o cheiro de algo podre o atingiu e
fez seu nariz enrugar. Cam praguejou, cobrindo a boca com a mão.
Aidan e Victor foram os únicos a não esboçar nenhuma reação.
Um homem usando um avental sujo de sangue e manuseando
um cutelo, sorriu para Damien.
— O que os homens precisam hoje?
— Precisamos falar com Ramirez. Ele está? — Aidan
perguntou, tomando a frente.
O homem olhou-os de cima a baixo, a língua limpando os
dentes amarelos da frente.
— Depende. Quem quer falar com ele?
— Diga que Midas nos enviou. Ele vai saber — Damien disse e
sorriu.
O rosto do homem ficou pálido, assentindo rapidamente e
abrindo uma pequena portinha e os deixando entrar. Ele nem
mesmo havia ido perguntar ao chefe.
— Midas, hein? — Victor sussurrou no ouvido de Damien.
— Às vezes, é bom conhecer certas pessoas, Sniper.
— Acho que eu gosto de você.
— Desista, eu já tenho namorado — Damien acenou com o
polegar na direção de Aidan.
O Corvo arreganhou os dentes para Victor em um sorriso
estranho e cruel. Eles subiram em silêncio para o terceiro andar e o
cheiro ali era de cigarro, sexo e drogas. Algo azedo, como cerveja,
permeia o ar. O homem com o cutelo abriu a última porta do
corredor, revelando o que deveria ser Ramirez, com suas calças
abaixadas até o meio da coxa e seu pau enfiado na boca de uma
ruiva.
Ótimo. Essa visão ficaria queimada na retina de Damien até o
dia de sua morte.
Xingando internamente, Damien entrou na sala e Ramirez não
pareceu se importar com a plateia. Um de seus olhos estava roxo e
inchado, uma machucado na boca e um corte no nariz.
— Visitas? — perguntou, tragando o cigarro e soltando a
fumaça.
— O Midas os mandou, chefe.
O quadril de Ramirez parou no meio do movimento. Segurando
os cabelos da ruiva, ele a empurrou para trás e ergueu as calças,
fechando o zíper e olhando para cada um naquela sala com receio.
— Nos deixe a sós, Angus.
Não precisou pedir duas vezes. A porta se fechou, a ruiva
engatinhando para o fundo da sala e se escondendo atrás de uma
poltrona verde horrorosa. Victor deu a volta na sala de um lado,
Cam do outro. Aidan permaneceu atrás de Damien, seus braços
cruzados e olhos ameaçadores.
— Olha, tudo o que eu tinha de falar, já falei. — Tenho a porra
das cicatrizes ainda, inferno. — Ramirez subiu a blusa, mostrando
os cortes nas costas e uma das mãos tinha as unhas do indicador e
anelar faltando. — O que mais a Pops quer de mim?
— Estamos aqui pela Zoey. Bonita, cabelos castanhos
encaracolados, filha do Senador?
— O que aquela vagabunda tem a ver?
— Ela morreu. Depois de se encontrar com você. — Aidan
apontou.
— Eu não tenho nada a ver com isso. Se ela é filha do
Senador e foi assassinada, quem tem que cuidar disso é o pessoal
do August, na Homicídios.
Damien fechou o rosto, seus dedos apertando em um punho e
sentindo os machucados sangrarem novamente. August era um
veterano no Esquadrão de Homicídios, sempre pregando para quem
quisesse ouvir que a corrupção não levava ninguém a lugar algum e
que todos que participavam da máfia deveriam morrer.
Que hipócrita, não?
— Encontramos o carro dela com drogas.
— Então é lá que aquela víbora escondeu? — Ramirez bateu o
punho na mesa. — Ela me devia! Essas drogas deveriam ter sido
entregues na semana passada junto com as bebidas. E ela não fez.
Vadia do caralho.
— E por isso a matou? — Victor perguntou, folheando um livro
da estante precária.
— Eu não a matei! Dei uns tapas depois que ela me chupou e
a joguei pra rua. — Ramirez abanou a mão na direção da porta. —
Mandei alguns dos meus capangas segui-la, para saber se ia para o
lugar onde escondeu a porcaria do pacote, mas os idiotas a
perderam dentro de Rosedale.
Então, Zoey tinha voltado para casa? Eles precisavam verificar
as câmeras em busca do táxi que Zoey entrou e então poderiam
entender melhor para onde a garota tinha ido antes de acabar morta
em uma mala.
— Agradecemos seu tempo, Ramirez. Midas vai ficar sabendo
disso.
— Claro que vai — resmungou, sentando na cadeira.
Saindo do prédio, Damien acenou para o homem do cutelo e
seguiu de volta para o carro.
— Quando acha que ele vai perceber quem nós éramos de
verdade? — Cam questionou, olhando por sobre o ombro.
— Talvez daqui dez minutos? Talvez nunca? — Damien
encolheu os ombros. — Aí está uma pergunta a qual a resposta não
é certa.
— Victor, Cam, peguem um táxi de volta para a TPS e
busquem pelas câmeras algum sinal de Zoey — Aidan disse,
apertando o sinal do alarme do carro intacto.
Damien tirou a nota de cinquenta, entregando ao menino com
um sorriso antes de voltar para o carro e sentar no banco do carona.
Merda, ele precisa deitar um pouco.
— Espere aí. Por que temos de voltar de táxi? — Cam ralhou.
— Porque Damien está com dor e vou levá-lo para casa.
Vocês voltem para a TPS e qualquer novidade me ligam.
Aidan entrou no carro, não deixando os dois darem nenhuma
opinião sobre suas ordens. Ligando o veículo, deu seta e saiu
acelerando pela rua. Damien sorriu, olhando para Aidan.
— Casa, hein?
— Pensei sobre sua proposta — murmurou ao virar a esquina.
— Acho que posso dividir um armário com você.
— Todas as suas roupas pretas estão vindo? — Damien
perguntou, balançando as sobrancelhas.
— Nem todas são pretas — Aidan disse de volta.
— Isso eu quero ver.
Ambos sorriram. Damien recostou no banco, sua mão
segurando a coxa de Aidan enquanto olhava pela janela os prédios
passarem. Não era assim tão ruim andar no banco do passageiro.
Seus olhos pareciam pesados quando Aidan parou na entrada
da garagem. Damien gemeu ao abrir a porta, seu corpo pesado
implorando por uma cama e sono ininterrupto de doze horas. Seus
pés pareciam chumbo quando deu a volta no carro e viu Aidan o
esperando com os braços abertos.
“...alguém em casa para voltar...”
Damien gostava disso. Afundando naquele abraço, inspirou o
cheiro de canela, café e couro. Dentro da casa, Chips latia, pulando
na janela e batendo as patas. Alguém parecia feliz em vê-lo.
— O que acha de alguns sanduíches, um banho quente e um
bom sono? — Aidan perguntou, praticamente carregando Damien
pelos degraus da entrada.
— Isso me soa como céu — resmungou.
Procurando a chave no bolso, Chips continuava pulando na
janela. Seu latido parecia ansioso e ele não olhava para Damien.
Suas orelhas em pé e olhos focados do outro lado da rua. A nuca de
Damien se arrepiou ao virar e olhar ao redor. Tudo, de repente,
parecia quieto demais.
— Aidan, entre.
— O quê...
Seu corpo ficou tenso quando o carro estacionado na esquina
abriu a porta do passageiro, um homem armado apontando a arma
para eles.
— Pro chão! — Damien gritou, puxando sua Glock.
Seu corpo foi empurrado quando os tiros passaram zunindo
seus ouvidos. A janela explodiu, sua porta tremeu e o chão
ricocheteou as balas. Olhando entre os vãos da varanda, Damien
atirou a esmo, xingando quando o som de pneus cantando soou.
Erguendo no cotovelo, ofegou com a adrenalina correndo no
sangue.
Um gemido de dor veio de Aidan, colocando Damien em alerta.
— Aidan! Querido, você se machucou?
Ajudando o homem a sentar, Aidan gritou e agarrou o ombro
esquerdo. Sangue se misturava no pano preto e manchava a luva
de couro e o chão na frente da porta. Chips saltou pela janela,
farejando ao redor.
— Ambulância! Droga, droga, droga...
Damien se atrapalhou com o telefone, discando o número de
emergência.
— Estou bem, cariño. Não é grave.
— Você está sangrando.
— Não estou morrendo. Foi no braço. — Aidan puxou a
respiração com força. — Mas dói como uma mordida de cadela.
Sem ofensas, Chips.
O cão ganiu, sentando e olhando para Aidan com a cabeça
levemente inclinada.
Eles tinham sido alvejados.
Em sua própria casa.
Porra!

Era um fato: Damien odiava os hospitais. Ser cutucado,


analisado e ficar sentado esperando era como um teste de
paciência. E Damien estava sem nenhuma naquele momento.
— Damien!
Ele se encolheu na maca quando sua mãe gritou para todo o
hospital ouvir. Annelise correu até o filho, Gordon logo atrás com
cenho franzido em preocupação.
— Você está bem? O que aconteceu? Onde está Aidan? Por
que ligou para Every e não para mim? — Sua mãe nem mesmo
respirava entre as perguntas.
Suas mãos alisavam os cabelos de Damien, apertavam seu
rosto, ombros e braços, como que para ter certeza de que ele
estava inteiro.
— Mãe! Estou bem! Não foi nada. De verdade.
— Não faz nem mesmo três dias que você recebeu alta e
agora está aqui novamente. — Annelise bufou. — Sinceramente,
Damien! Por que não mora ao lado do hospital?
— Seria bem prático. — Damien sorriu e recebeu um beliscão
de Annelise. — Ai!
— O que eu disse sobre fazer exercícios, Damien?
— Hey, Dr. Schneider. Como está?
O homem o olhou com exaspero, colocando o prontuário
debaixo do braço e tirando os óculos.
— Licença, Damien. Você está de licença.
— Em minha defesa, estava indo para casa almoçar e dormir.
Fui alvejado. Não tenho culpa.
— Claro que não. — Dr. Schneider suspirou. — Você está
bem. Suas costelas estão cicatrizando e os cortes em suas mãos
vão se curar se limpá-los bem. Seu parceiro deve estar terminando
de ser enfaixado agora.
— Foi de raspão? — Damien perguntou, descendo da cama.
— Foi. Nada com que se preocupar. E, Damien, por favor,
fique de repouso. Você parece ter uma tendência a se machucar. —
Dr. Schneider apontou antes de se despedir.
Annelise deu um tapa no braço de Damien.
— Ei! Mãe, por que está me batendo?
— Por ser teimoso. E quase me matar do coração.
— Pensei que, depois de todos esses anos, estava
acostumada, mãe.
— Continue fazendo gracinhas. Continue.
Damien sorriu, abraçando a mãe pelos ombros e beijando sua
cabeça. Seu pai o apertou no ombro, puxando-o para um abraço de
lado. Quando Aidan surgiu no corredor, Annelise soltou um som de
surpresa e correu para o Corvo.
— Você está bem? Precisa de alguma coisa? Sei fazer uma
sopa de legumes maravilhosa, ela é ótima para machucados.
— Mãe, Aidan precisa respirar.
— Tudo bem. — Aidan sorriu de lado, beijando a mão de
Annelise. — Sinto-me honrado com seus cuidados, senyora Evans.
Annelise derreteu, colocando a mão sobre o peito e sorrindo.
Gordon bateu suavemente com o cotovelo no braço do filho.
— Ele está bajulando sua mãe. Corro risco de perdê-la —
sussurrou e, então, falou para Annelise. — Vamos, querida, os
meninos estão bem. Foi apenas um susto.
— Passem para jantar em casa. Vou fazer um especial para
vocês.
Eles saíram do hospital, Annelise falando sobre todos os tipos
de molhos que ela viu na internet para vegetarianos e Damien sorriu
ao ver que Aidan estava completamente concentrado no assunto.
Seu telefone tocou, o nome da TPS no visor.
— Evans.
— Riggs aqui — rosnou do outro lado. — O que diabos
aconteceu com você?
— Fomos alvejados. — Damien coçou a bochecha,
percebendo que Aidan havia se despedido dos pais de Damien e
agora o olhava com uma sobrancelha arqueada. Colocando o
telefone no viva-voz, continuou: — Nada sério. Acho que Ramirez
pode ter descoberto quem éramos mais cedo do que pensamos.
— Porra. — O barulho de conversas era audível pela linha
quando Cam voltou a falar. — Conseguimos uma imagem de Zoey
entrando em um táxi. Victor ligou para a companhia e o cara que
levou nossa garota disse que não aceitava cartão e a deixou na
entrada de Rosedale.
— Que tipo de filho da puta faz isso? — Damien rosnou.
— Um bem sovina — Cam comentou. — É aí que perdemos
Zoey de novo. Na Roxborough Dr.
— Já é alguma coisa. Bom trabalho, Cam.
Cam soltou um grunhido, desligando. Eles tinham o nome de
uma rua. Isso era um ótimo avanço, entretanto, ainda não dizia
quem havia matado Zoey Valor.
O céu estava escuro, as nuvens carregadas de chuva
escondendo a lua no céu. Pelo pequeno buraco na janela, Aidan
podia ver as luzes de Natal piscando nos vizinhos. O vidro de uma
parte havia estourado com o tiro mais cedo e eles chegaram em
casa para descobrir que os vizinhos tinham fechado aquela parte
com madeiras.
Aidan estremeceu com o vento entrando pelas frestas e se
distanciou da janela indo para a lareira acesa. Os papéis do relatório
estavam no chão, uma pilha do outro lado e Aidan estava pensando
seriamente em queimá-los. Não havia menção alguma de August
em lugar algum que ele pesquisou. Enquanto Damien dormia no
quarto, Aidan passou a tarde toda pesquisando.
Olhando para as chamas dançando dentro da lareira, Aidan
sentou no sofá e Chips logo o seguiu, deitando a cabeça sobre a
barriga do novo dono. Aidan coçou atrás da orelha, o cão fechando
os olhos e parecendo sorrir. O som de passos fez Chips erguer a
cabeça e Aidan olhou sobre o encosto do sofá para encontrar
Damien se arrastando para fora do quarto. Sua bochecha tinha um
vergão vermelho, marca do travesseiro, e seus cabelos espetados
de um lado.
Aidan achava adorável.
— Como se sente?
— Como se tivesse passado em um moedor de carne. —
Damien estremeceu ao sentar ao lado de Aidan, se deixando cair no
colo do outro. — O que tem para comer?
— Pedi pizza. Deve estar chegando.
— Hum, isso me soa bem.
— Sua mãe ligou.
Damien gemeu, fazendo Aidan sorrir. Seus dedos passaram
pelos fios castanhos curtos, sentindo a textura. Eles ficaram quietos,
apenas olhando o fogo, até que a campainha soou. Aidan levantou,
indo até a porta e pegando as caixas de pizza, já tendo deixado
pago no aplicativo. Colocando uma sobre o balcão, levou a outra
com ele até o sofá e sentou novamente, abrindo e fazendo o cheiro
de queijo permear o ar.
— Jesus, isso parece delicioso.
O estômago de Damien roncou para enfatizar. Mordendo uma
fatia, o queijo esticou a distância do braço de Damien e Chips tentou
roubar um pedaço no ar.
— Acha que foram os capangas de Ramirez ou a Pops?
Damien pareceu pensar, mastigando.
— Eles teriam tempo de nos seguir?
— Talvez. — Aidan ponderou.
Suspirando, Damien colocou o resto do pedaço de pizza na
caixa e olhou para Aidan seriamente.
— Eu te avisei que isso ia dar merda, não avisei?
— Sim, você me avisou, mas é o nosso trabalho, Damien.
Posso cair na linha de tiro a qualquer momento.
— Não. Você está se pintando de alvo desnecessariamente.
Não posso ficar parado vendo você praticamente pedir para a Pops
matá-lo. Ela já tentou uma vez e vai tentar de novo.
— E não vai conseguir. Veja por tudo o que passei e ainda
estou vivo. — Aidan puxou Damien para deitar sobre seu peito. A
ferida em seu braço latejava um pouco, mas não o suficiente para
incomodá-lo. — Sou o Corvo, cariño. Vai ficar tudo bem.
— Idiota arrogante — resmungou.
Pegando o pedaço novamente, Damien deu uma mordida
enquanto Aidan olhava para a lareira novamente. Sabia que estava
desafiando a morte daquela maneira. No começo, ele não se
importava de sair ferido ou mesmo ser morto. Aidan não tinha
ninguém para voltar ou se importar com sua morte. Agora, ele tinha
Damien.
Toda essa missão maluca de quebrar a máfia valia mesmo a
pena?
Aidan não sabia mais responder.
Seu celular tocou sobre a pilha de relatórios e Aidan inclinou
para ver um número da Superintendente Reese chamando. Damien
limpou o queixo de queijo derretido e falou com a boca cheia.
— Quem é?
— Knight — Aidan murmurou, atendendo. — Callaghan.
— Ótimo, você parece acordado — Reese falou sem nem
mesmo dizer um olá antes. — Preciso dos dois na TPS. Agora.
— Posso saber o motivo? — Aidan perguntou, levantando e
gesticulando para Damien acompanhá-lo.
— Motivo? O Promotor Russo é o motivo. Aquele cretino filho
da mãe deixou na mão de um jornalista um vídeo do Prefeito James
Macker cheirando carreiras de cocaína! E agora ele é noticiário da
TV!
Puta que pariu!
Aidan tropeçou ao tentar enfiar a calça, olhos arregalados
enquanto Damien enfiava a cabeça pela gola da blusa.
Resmungando, sentou na cama e calçou os sapatos enquanto
Aidan tentava abotoar a camisa com uma mão.
— O que ela está falando? — Damien sussurrou a pergunta.
— Como se não bastasse, o nome da filha do Senador Valor
foi citado. — Reese continuou, bufando do outro lado. — Como o
nome de Zoey Valor caiu no jornal, Callaghan? Como uma traficante
de drogas ainda!
— Porra, eu ouvi isso — Damien murmurou.
— Minha sala, vocês dois. Precisamos de um plano de ação.
Reese desligou antes que Aidan conseguisse responder
qualquer coisa. Eles tinham que correr.

Na sala da Superintendente, Aidan se manteve encostado na


parede oposta à da mesa de Reese enquanto Damien estava
sentado na cadeira com Victor ao lado. Cam imita a pose Aidan,
mas ao lado da janela, olhando a rua e os jornalistas polvilhando a
entrada da TPS como formigas de fogo. Na televisão pendurada na
parede, as imagens do jornal das seis passavam de forma repetida
até que Knight desligou o aparelho.
— Como isso foi acontecer? — Reese perguntou, olhando
para Victor e então para Aidan.
— Minha culpa — Victor disse, erguendo a mão e sorrindo. —
Contei ao promotor o que descobrimos nesse caso.
— Seu filho da mãe traiçoeiro — Damien murmurou.
— O quê? Fiz apenas meu trabalho — Victor disse, apoiando
os cotovelos nos joelhos. — Estou aqui em missão pelo promotor,
não obedeço às ordens de vocês.
— A partir do momento que você pisou nesse departamento e
se tornou parte do Esquadrão de Homicídios, você responde a mim
primeiro — Reese rosnou, afundando o polegar no peito. — Por
que, tudo o que acontece, respinga em mim e não no idiota
pomposo do Stanton que usa gravatas de acordo com o humor.
Agora, me contem direito esse caso que estão resolvendo — Reese
pediu, meneando a mão.
Damien intercalou com Cam para contar os detalhes, Victor
deixando uma palavra ou outra. Três pares de olhos fitaram Aidan
na parede, calado, quando foi citado seu parentesco com o
suspeito. Isso não era o que o preocupava mais. A percepção de
que poderia ter sido enganado por Oriol o deixava mais irritado.
Tinha sido feita uma armadilha para ele?
Maleir-te. A maçã realmente não caía longe da árvore.
Parando para pensar sobre a conversa que teve mais cedo
com Oriol, ele despejando informação e indicando Ramirez soava
como algo montado. Como ele não percebeu antes? Cels, às vezes
Aidan podia ser tão estúpido...
— Deus misericordioso, isso é uma bagunça do caralho —
Reese resmungou, apertando os olhos antes de desabar sobre sua
cadeira. — Maldita hora que Stanton decidiu bancar o herói da
cidade. — A assistente do Senador continua me ligando, assim
como o próprio Wellington. O nome de sua filha continua
aparecendo na televisão como um disco quebrado e ele está nos
ameaçando por liberar informação sigilosa. Vocês entendem a
merda que estou atolada por causa de uma missão idiota de
quebrar a máfia?
Victor bufou.
— Não é idiota. O Promotor Russo possui muito material que
pode fazer os D’Angeles caírem como dominó. O prefeito foi apenas
o primeiro e então o esquema de pirâmide vai cair.
— Cristo, vocês realmente acham que ninguém tentou isso
antes? — A Superintendente se inclinou sobre a mesa, olhando
para um naquela sala com fúria. — Sabe quem comandava a máfia
antes da Pops assumir? Anthony D’Angeles, um dos maiores
traficantes atuais. Dizem que ele era o Pablo Escobar da América.
Todos sabiam que ele traficava drogas, armas, escravos... Nunca
ninguém conseguiu ligar Anthony a qualquer um desses crimes.
— Eu estava infiltrado lá dentro por semanas — Victor disse,
cruzando os braços. — Posso garantir que o Promotor Russo possui
muitas imagens que podem colocar a Pops atrás das grades
indefinidamente e nem mesmo Forest poderia tirá-la.
— E você acha que isso resolve tudo? — Reese balançou a
cabeça. — Vocês são adultos, mas não entendem porra nenhuma
de nada. Sempre vai ter outra pessoa para comandar. Se os
D’Angeles caem hoje, alguém levanta em seguida e pega o fio de
onde parou. Existe uma ordem dentro da máfia que é mais eficaz
que as leis do Estado e muitos querem o que a Pops tem. Abram
seus ouvidos e ouçam o que estou dizendo: acabar com a máfia é
como dar murro em ponta de faca. É inútil e só quem tenta acaba se
machucando.
A ferida no braço de Aidan latejou, como que para concordar
com as palavras de Reese Knight. Ele e Damien tiveram uma
demonstração na noite anterior e isso só iria piorar se eles
continuassem com aquela investigação. Vale a pena morrer por algo
que não poderia ser destruído?
A corrupção estava enraizada naquelas terras, no próprio ser
humano. Querer ganhar dinheiro fácil com base nas coisas ilegais,
usufruir de poder acima da dor do outro. Matar ao se sentir
ameaçado. Aidan não queria morrer por uma causa perdida. Não
agora que ele tinha conseguido o que mais queria na vida.
Damien o olhou, parecendo sentir seus pensamentos. Ou
apenas gritando em sua mente as palavras “eu avisei” em letras
garrafais. Reese se levantou, recolhendo algumas folhas de sua
mesa enquanto falava.
— Esse caso é uma merda, mas parece estar sendo
encaminhado. Por hoje, vocês não conseguem fazer mais nada,
mas quero amanhã cedo vocês revistando o bairro de cima a baixo.
Quero que procurem debaixo de cada pedra alguma pista por onde
Zoey possa ter passado. Não deixem escapar nada. — Knight
suspirou, enfiando os papéis dentro da bolsa. — Vou tentar segurar
o apocalipse enquanto isso.
— Vai fazer uma coletiva? — Damien perguntou ao levantar.
— Sim — ela praticamente rosnou. — Vou ter uma reunião
com a assistente do Senador agora. Vão para casa e cheguem cedo
amanhã. Quero o assassino dessa menina preso antes do almoço,
me ouviram?
Eles assentiram, saindo da sala em silêncio. Aidan lançou um
olhar para as costas de Victor, pensando se o homem seguiria com
isso até o fim, mesmo que custasse a vida dele. Passando a mão
sobre a ferida debaixo do casaco, Aidan sabia que ele estava fora
daquele barco furado antes que afundasse e o levasse junto.

A manhã de domingo estava ensolarada, mas ainda fria. A


neblina mal havia se dissipado quando Damien colocou os pés na
Roxborough Drive, estremecendo com o ar gelado entrando pela
gola do casaco. Esfregando as mãos e tentando esquentá-las, olhou
para Aidan parando ao seu lado e colocando as mãos na cintura.
— Eu vou por cima e você por baixo? — Aidan perguntou,
olhos escuros virando para Damien.
Ele não pode segurar o sorriso quando o pensamento
pervertido cruzou sua mente.
— Eu sempre gosto de ir por cima. A visão é melhor.
Uma negra sobrancelha de Aidan se curvou.
— Estamos falando da mesma coisa?
— Obviamente, não — Cam se intrometeu, puxando a touca
preta mais baixo em sua cabeça. Seu hálito condensava na frente
da boca, os braços cruzando e pulando no lugar para tentar se
aquecer. — Porra, está frio.
— Certo, pessoal! Vamos fazer o seguinte: — Damien bateu as
mãos e acenou ao longo da rua. — Victor e Cam seguem por baixo
e procurem por alguma trilha que Zoey pegou. Se ela viu que estava
sendo seguida pelos capangas de Ramirez, ela deve ter pensado
em despistá-los. Aidan e eu vamos pela rua de cima.
— Separando em grupos. Quem ele pensa que é? O Fred? —
Cam resmungou.
— Tenho certeza de que você é o Scooby — Victor apontou,
esfregando o topo da touca de Cam.
— Tire as patas!
— Jesus Cristo, é como ver uma versão nossa, só que pior. —
Damien estremeceu.
Aidan se manteve calado, mas o leve assentir de sua cabeça
indicava que concordava com Damien. Eles subiram a rua e, ao
virar a esquina, um Audi A6 branco desceu a rua Highland Ave.
Damien franziu o cenho ao perceber que era o carro de Royce.
— Você viu isso?
Com um mergulho queixo, Aidan concordou. Com passos
apressados, ambos seguiram pela rua estreita. A calçada estava
cheia de neve, fazendo com que eles caminhassem pelo asfalto. Na
primeira curva, Damien puxou Aidan para trás de uma cerca viva
quando o Audi de Royce entrou em uma das casas. Ao lado, o carro
esportivo chumbo estava estacionado na frente da garagem.
— Essa casa é enorme — Damien murmurou.
— Ela teria os fundos com a Roxborough?
— Só vamos saber se olharmos. — Damien inclinou a cabeça
na direção da casa.
Atravessando a rua, Damien passou ao lado dos carros,
deixando um longo olhar pelo esportivo com detalhes cromados.
Inferno, o garoto tinha gosto por bons carros. Batendo na porta,
Damien cruzou as mãos atrás do corpo.
— O que vamos dizer? — Aidan murmurou.
— Apenas me siga — responde de volta. A porta se abriu com
a governanta e Damien puxou seu espírito galanteador. — Olá,
senhora. Desculpe incomodá-la tão cedo, mas nós precisamos ter
uma palavrinha com seu patrão.
A mulher, que não deveria ter dez anos a mais que eles, ficou
com as bochechas coradas.
— Meu patrão já saiu para o trabalho e sua esposa também.
— E Marlow? — Damien arriscou, lembrando-se do nome. —
Nós vimos que Royce acabou de chegar.
— Oh, sim. O senhor Poirier mais jovem está. Vocês seriam...?
— Inspetor Detetive Evans e este é meu parceiro Detetive
Callaghan. — Damien mostrou o distintivo, piscando para a mulher.
— Ficarei terrivelmente grato se nos deixar entrar, senhorita.
— Oh... — Ela soltou um risinho. — Claro. Por favor.
Ela abriu a porta, deixando ambos passarem. Damien olhava
as paredes nuas pintadas de areia quando Aidan se inclinou sobre
ele.
— Não estava sentindo falta do seu lado conquistador barato.
— Vamos concordar que ele é bastante eficaz — disse,
encolhendo um ombro. — Você deveria tentar um dia.
— Mostrar o distintivo também é eficaz — Aidan retrucou,
seco.
— Podemos tentar do seu jeito na próxima. Você vai ver como
vão nos tratar diferente.
Não que fosse uma verdade absoluta, mas Damien adorava
pisar no calo do Corvo. Eles foram guiados para a sala, os móveis
clássicos preenchendo o cômodo bem iluminado.
— Ele deve estar na cozinha. Eu vou...
— Não se preocupe. Nós podemos encontrá-lo. — Damien
sorriu, pegando a mão da governanta e deixando um beijo no dorso.
— Obrigado pelo seu trabalho, doce.
— Oh... Eu... De nada.
— Sério, Evans — Aidan bufou, exasperado.
Damien segurou o riso quando entraram na cozinha e
encontraram Royce pegando algo da geladeira e Marlow levando
um pedaço de sanduíche à boca. Ambos congelaram no meio do
movimento quando viram Damien e Aidan na porta.
— Bom dia. Vocês poderiam nos dar um pouquinho do seu
tempo? — Damien perguntou, entrando na cozinha com um sorriso.
— De-detetives? — Marlow gaguejou.
Royce tinha o rosto em uma profunda carranca.
— O que estão fazendo aqui?
— Nós estávamos indo até sua casa para termos uma
conversa. — Damien começou, dando a volta pela ilha, observando.
— E o vimos passar pela rua e o seguimos até aqui. Bela casa,
Marlow.
— Obrigado — o garoto resmungou, colocando o sanduíche de
volta no prato.
— Que conversa? Vocês vazaram o nome da minha irmã para
o jornal e ainda querem alguma conversa? — Royce bufou.
— Você era um irmão protetor, Royce?
— Como qualquer irmão mais velho seria — respondeu. —
Aonde quer chegar com isso?
— Você sabia sobre esse lado da sua irmã? Drogas, um carro
extra? — Aidan cutucou, seus braços cruzados.
— Não. Isso era algo que ninguém da família sabia sobre
Zoey.
Claro que eles não sabiam. Damien parou na porta que dava
para o jardim. Uma piscina grande e coberta com uma lona se
destacava no meio do branco. A neve se estendia até os fundos,
grandes árvores secas montando a paisagem. Damien cerrou os
olhos ao ver a cabeça de Victor surgindo por um portão nos fundos.
— Você desconfiava das amizades de Zoey?
— Não.
Damien olhou pelo armário, passando por Marlow que parecia
observá-lo antes de desviar para Aidan que perguntou diretamente a
ele.
— Você, como amigo de Royce, tinha contato com Zoey?
Marlow abriu a boca, mas não disse nada já que Royce latiu
uma risada.
— Marlow amigo de Zoey? Nunca! Eles eram diferentes
demais.
— Diferentes? Em qual sentido? — Aidan cutucou.
Dando a volta na ilha, Damien olhou para a mesa pequena ao
lado. Na fruteira, entre as frutas de plástico, Damien viu o pequeno
barco vermelho. Andando lentamente até lá, pegou um pequeno
saco de dentro do bolso e olhou sobre o ombro. Royce e Marlow
estavam concentrados em Aidan, discutindo sobre preferências que
diferenciavam a escolha de amizade dos irmãos.
Recolhendo o barco, Damien o enfiou no bolso e se virou com
um sorriso largo.
— Bem! Acho que isso é tudo. Muito obrigado por conversar
conosco.
— Isso não vai ajudar em nada — Royce fez uma careta. —
Vocês já têm o culpado em custódia, o que mais vocês querem?
— Oriol não é o culpado, é um bode expiatório. — Aidan
acusou.
— Vocês são detetives inúteis, isso sim. Não vão conseguir
resolver a morte da minha irmã. Meu pai vai caçar seus distintivos.
— Ele pode fazer isso depois que prendermos o assassino de
Zoey. — Damien lançou um olhar para Marlow e depois para Royce,
acenando. — Apreciamos sua opinião, mas meus pontos de
resolução de caso desmentem você. Tenham um bom dia.
Agarrando a manga da jaqueta de couro de Aidan, ele o puxou
para fora da casa. A porta mal havia batido em suas costas e
Damien estava dando a volta no jardim lateral.
— O que estamos fazendo?
— Shh!
Andando abaixo das janelas, Damien foi para os fundos,
tomando o cuidado para não ser visto pela porta de vidro da
cozinha. Seus pés deixavam pegadas sobre a neve, mas Damien
não estava preocupado com isso agora.
— Damien — Aidan sussurrou.
Olhando sobre o ombro, Damien viu Aidan apontando para
uma parte da grade. As pontas eram como lanças e uma delas tinha
sangue seco escorrido. Pegando o celular, tirou uma foto e discou o
número da Superintendente.
— Acho que foi isso que fez o rasgo na parte interna do braço
dela?
— É afiado. Se Zoey escalou, talvez se atrapalhou com as
roupas grandes que usava e desequilibrou. — Aidan passou o pé
sobre a neve, descobrindo a grama morta debaixo. — Marcas de
pés na lama.
— Encontramos — Damien disse tanto para Aidan quanto para
Reese assim que ela atendeu. — Nós o encontramos, Chefe.

— Vocês estão me dizendo que querem pegá-lo com esse


plano?
Reese Knight olhava para seus detetives com olhos cerrados e
então para o pequeno barco vermelho dentro de um saco sobre a
mesa. Aquele era um plano arriscado, esperar que o assassino
mordesse a isca. Entretanto, eles não tinham muito mais. A mala
não tinha impressões, ou mesmo uma única poeira. Zoey não tinha
nada além de provas incriminando outra pessoa. O que eles tinham
a perder?
Tudo, se o assassino não os levasse a sério.
— É claro. Royce está furioso conosco e deve estar neste
exato momento contando ao pai como somos inúteis. Não podemos
continuar perdendo tempo, Chefe. Precisamos agir.
— Tudo bem. Prossiga com o plano, mas se isso falhar, a
culpa é toda sua, Evans.
— Sem problemas, Chefe — Damien bateu continência, saindo
da sala como um furacão.
Ele nem mesmo parecia ter costelas feridas em processo de
cicatrização. Sentando em sua cadeira, pegou o telefone que
vibrava no silencioso sobre a mesa. O nome de Stanton brilhava
com dezessete chamadas perdidas. Exalando, Reese sabia que não
poderia evitá-lo para sempre e atendeu.
— Knight.
— Por que demorou para me atender?
— Porque eu não trabalho para você e tenho mil e uma coisas
para resolver que são prioridades — retrucou. — Você mexeu na
porra do formigueiro e estou tenho de lidar com isso agora.
— Ficou sabendo que o Inspetor do Antidrogas foi encontrado
morto? Kessler renunciou hoje pela manhã.
Sim, ela sabia sobre aquilo. Fechando os olhos, Reese
segurou a vontade de suspirar.
— Você me ligou para fazer fofoca?
— Não. Apenas para dizer que a Pops está prestes a ser
presa.
— Oh, jura? Acho que essa deve ser a quarta vez que a
prendem — Reese disse, sarcástica.
— Você não tem fé, Reese.
— Não, eu tenho couraça blindada e olhos abertos, Stanton. E
vejo de longe que isso é um grande circo armado e o espetáculo
final vai ser sangrento.
Stanton riu do outro lado.
— Então fique para o show.
A linha ficou muda e Reese abaixou o aparelho sobre a mesa.
Ela veria esse show de novo e de novo até que não pudesse mais.
Seus dedos puxaram o pequeno cordão escondido debaixo da
roupa e tirou a chave preta que estava pendurada. Pegando a
pequena caixa escondida debaixo da última gaveta de sua mesa,
destrancou-a e abriu a tampa.
— Nunca vai acabar. Eu sei muito bem disso — murmurou.
A luz pálida da sala brilhou sobre a foto dentro da caixa, onde
uma Reese de doze anos sorria, abraçada com uma garota que
tinha os dentes da frente faltando.
O tempo separava tudo, inclusive as irmãs.

Roendo as unhas, Damien balançava a perna enquanto


esperava. Aidan segurou seu joelho, tentando acalmá-lo. Eles
estavam em um ponto crítico.
— Como estão as coisas, Cam? — Damien falou pelo rádio.
— Os dois estão na casa. Câmbio.
Tudo estava em ordem. Cam e Victor estavam de vigia perto
da casa do Senador Valor, enquanto Damien e Aidan esperavam no
alto de um prédio, com vista limpa do ponto que seria o encontro.
Os policiais disfarçados estavam espalhados pela rua.
— Faça a ligação. Rápido! — Damien gesticulou para o oficial
que segurava o telefone descartável.
Assentindo, iniciou a chamada no viva-voz. Quatro toques
depois, a voz de Diana Valor preencheu a linha.
— Alô?
— Sra. Valor? Eu vi quem matou sua filha. Tenho um vídeo da
pessoa deixando a mala na lixeira. Vou dá-lo a você se me der um
pagamento de dez mil dólares. Em uma hora, vá até o local que ela
foi encontrada com o pagamento e vou deixar um pendrive para
você.
— O quê? Um vídeo?
“Com quem você está falando?” A voz de Wellington era nítida
do outro lado.
— Ele diz que tem um vídeo do assassino de Zoey deixando a
mala! Wel, ele tem um vídeo!
“Isso é apenas trote, Diana! Desligue!”
— Não! Ele disse que se pagarmos, se deixarmos o
pagamento na lixeira onde Zoey foi encontrada, nós teremos o
vídeo, Wel!
“Desligue isso, Diana!”
A linha ficou muda. Aidan cruzou os braços, olhando para seu
parceiro.
— Agora, nós esperamos.

Não precisou de muito. Quarenta minutos depois, um carro


chumbo surgia na esquina. Damien debruçou sobre a beirada do
prédio, apenas para ter a mão de Aidan o puxando para trás e
resmungando sobre ser perigoso cair.
Certo, o medo de altura.
Se ajeitando no lugar, Damien olhou pelo binóculo no momento
em que Marlow Poirier saltou do carro, segurando uma sacola preta.
Seus olhos assustados iam de um lado ao outro antes de abrir a
lixeira e jogar a sacola dentro.
— Nós o pegamos — Damien sussurrou, jogando o binóculo
para o oficial.
Descendo os três andares quase correndo, Damien ofegou ao
chegar no térreo, saindo para a rua a tempo de ver um policial
segurando Marlow e dando voz de prisão.
— Eu não tinha intenção! Eu juro que não! — Marlow gritava,
tentando escapar das mãos do policial. — Ela pediu por isso! Não...
Eu juro!
— Você tem o direito de ficar calado, tudo o que disser será
usado contra você...
— Nós o pegamos, Aidan! Porra! — Damien lançou as mãos
para cima e se virou para Aidan com um sorriso largo. — Férias!
Nós vamos tirar férias!
Porque, porra, eles mereciam muito depois disso.

Na casa dos Poirier, os pais de Marlow olhavam os policiais e


peritos vasculhando a casa, revirando tapetes, deixando marcas de
pó por todo lado.
— Isso é um absurdo — Marcus Poirier resmungou.
Victor olhava de braços cruzados, seus olhos indo a todo
momento para os fundos da casa onde Cam indicava para os
peritos onde haviam as marcas de pegadas e o sangue. Ele não
sabia o motivo de sempre estar desviando os olhos para aquele
homem tão espinhoso. Victor odiava lidar com os azedos. Sempre
preferiu os doces e maleáveis.
A luz ultravioleta brilhou sobre o chão da sala, indicando
grande manchas escuras, resquícios de sangue que não foram
limpos direito. Não precisava da luz, aliás. Havia sido tanto sangue
que o chão tinha uma mancha úmida por baixo do assoalho.
— Encontramos isso, senhor.
Victor virou para ver um perito erguendo um cinzeiro de pedra,
a ponta lascada. Ele cerrou os olhos, enxergando nas fissuras uma
linha vermelha que poderia ser sangue. O possível objeto do crime.
Victor não queria admitir, mas a dupla Evans e Callaghan eram
realmente bons.
— Isso, com certeza, fecha nosso caso — disse, olhando para
o casal no extremo da sala. — Vocês precisam me acompanhar
para interrogatório.
Victor acenou, saindo da sala e indo para a frente da casa. Ele
precisava de um cigarro com urgência. Cam surgiu pela lateral da
casa, olhando para a tela do celular com atenção e parando ao seu
lado.
— Damien disse que Marlow está confessando. Temos as
provas e temos uma confissão. — Cam ergueu os olhos e sorriu.
Merda, aquela era a primeira vez que o homem sorriu e pegou
Victor completamente desprevenido. Porque era doce. Puxando um
maço do bolso, Victor sorriu de volta ao colocar um cigarro na boca
e acendê-lo. Se ele não se cuidasse, poderia acabar gostando do
idiota.
Olhando para o sol, Oriol inspirou o ar gelado e exalou
devagar. Ele estava livre. O verdadeiro culpado tinha sido
encontrado e Oriol respondia em liberdade pelo porte de drogas.
Forest tinha cumprido sua palavra em ajudá-lo a sair. Olhando para
a sede da TPS, com seus tijolos vermelhos e vidros escuros
brilhando, Oriol ficou ainda mais curioso.
“Eu não abandonei... fui expulso.”
Não era essa versão que havia sido contada a ele tantas
vezes. O filho ingrato que saiu de casa para ser um grande detetive
na cidade grande e os deixou vivendo na pobreza. Oriol se ressentia
de Antoni, agora Aidan. Entretanto, a dor nas palavras de seu meio-
irmão fez Oriol duvidar de sua própria mãe.
Aliás, ele já não tinha visto tantas coisas? Sua mãe contava
mentiras a cada mês, quando metade do pagamento desaparecia e
precisava de ajuda. Seu pai, sempre bêbado quando não estava
trabalhando. Oriol enfiou as mãos nos bolsos, descendo os degraus
da TPS e atravessando a rua. Passando perto de uma lanchonete,
viu na pequena televisão o anúncio sobre a prisão do assassino da
filha do Senador. Os rostos de Damien Evans e Aidan Callaghan
estampando a manchete como os detetives que resolveram o caso.
O Corvo e o Traidor da Antidrogas.
— Que seja — resmungou.
Oriol não tinha intenção de ver o irmão mais uma vez. E, se
isso acontecesse, faria questão de ter uma arma entre eles.
Três dias depois do Natal.

Realmente, tirar férias poderia ser bom. Ainda mais quando


estava isolado em uma cabana, sem telefone, enrolados em um
cobertor quente com a madeira estalando na lareira. Pela janela,
Damien só conseguia ver enormes pinheiros balançando com o
vento e acumulando neve sobre as folhas. O cheiro de natureza era
intoxicante e havia sido acordado com os pássaros naquela manhã.
Era perfeito.
E Damien estava prestes a ficar louco.
— Você está parecendo torturado.
Encostando a testa no vidro da janela, Damien gemeu.
— É tudo tão... quieto! — Damien gesticulou para a imensidão
verde e a ponta do lago cristalino aparecendo não muito longe. —
Não existe nada além de ar e nós dois!
Chips latiu de sua cama e Damien gesticulou na direção do
animal.
— E Chips.
— É a natureza. É suposto ser silencioso — Aidan disse,
sentando no sofá largo e macio, batendo suavemente ao seu lado.
Damien se arrastou até ele, montando sobre o colo de Aidan e
enroscando o nariz no pescoço quente. O Corvo xingou ao sentir o
nariz gelado do outro. Rindo, Damien lembrou da promessa vaga de
algum tempo atrás, quando o destino os juntou nessa jornada.
Olhando para a imensidão e todo aquele silêncio ao redor da
cabana, dava a impressão de que eles eram os únicos na Terra.
E, por conseguinte, Aidan era o último homem com quem
Damien estava envolvido.
— Por que está rindo?
— Apenas... Nunca diga nunca, querido. Pode acabar pagando
a língua.
Aidan grunhiu, não entendendo o que Damien poderia estar
falando. Eles tinham fechado aquele caso, recebendo honrarias do
Senador Wellington e as desculpas de Royce por chamá-los de
inúteis. Como Stanton havia dito, Pops havia sido presa por diversas
acusações, várias delas contendo provas. Entretanto, não ficou lá
por muito tempo. Inacreditavelmente, Forest conseguiu que ela
respondesse em liberdade.
Qual a porra do problemas da justiça naquele país?
O Prefeito Macker tinha sido retirado do cargo e seu vice
estava no lugar. Damien decidiu usar sua licença e Aidan entregou
uma carta de desligamento para Stanton. Eles tinham finalizado, o
favor que Aidan devia havia sido devidamente cobrado e pago.
Depois de uma noite de Natal conturbada na casa dos Evans, Aidan
e Damien seguiram viagem para a cabana nos limites de Quebec,
enfiados dentro da montanha.
Enfiando os dedos dentro da blusa de Aidan, Damien beliscou
o pescoço bronzeado com os dentes.
Porra, ele nunca teria o suficiente do seu Corvo.
— Hoje... é meu aniversário.
Erguendo a cabeça, Damien o olhou, sua boca se abrindo.
— Não brinca! E eu nem sequer comprei um presente!
Aidan balançou a cabeça, sorrindo.
— Não preciso de presentes. Tudo o que eu quero, tenho bem
aqui. — Sua mão pousou sobre o peito de Damien, o coração
batendo rápido abaixo de sua palma. — E isso é perfeito.
— Droga. Eu nunca sei o que dizer depois que você fala essas
coisas bonitas — resmungou.
Aidan sorriu, segurando a nuca de Damien, seus dedos
pressionando suavemente para o outro se aproximar. Mordendo o
lábio inferior de Damien, Aidan murmurou contra sua boca.
— Então me beije, cariño.
— Encantat[54].
Porque, obviamente, Damien havia aprendido algumas coisas
em catalão. E, em sua maioria, eram apenas palavras relacionadas
ao sexo. O que mais poderia ser esperado de um homem viciado
em Skittles e que não poderia viver mais sem o doce sabor que
Aidan Callaghan tinha?
Eles tinham passado por muita coisa e, juntos, olhariam para o
futuro sem temer o que poderia acontecer. Afinal, eles tinham um ao
outro agora. Não importa o que acontecesse.
O que foi essa trilogia, hein?
Como diria Damien: Jesus Cristo!
Só posso dizer que não me sinto nem um pouco pronta para
deixar esses dois irem. Me apeguei demais. O que é um grande erro
para todo autor, se apegar aos personagens quando você sabe que
eles terão de ir em algum momento.
É quase como um filho, certo? Você não pode segurá-lo por
muito tempo. Rs’
É o final de uma trilogia. Aqui a gente encerra um ciclo, ou
talvez apenas abrimos um novo? Não sei. Só o tempo dirá.
Obrigada pela paciência até aqui, por acompanhar o progresso
de Damien e Aidan e toda sua fé no meu trabalho. Escrevo com
carinho e espero que tenha tocado seu coração de alguma forma.
Nos vemos em breve! Não se esqueçam de mim até lá.
Um grande abraço, um beijo e um queijo, como diriam meus
conterrâneos.
Com carinho imenso,

[1]
Toronto Police Service.
[2]
Desculpe.
[3]
Edgar Allan Poe.
[4]
Maldito seja.
[5]
Porra.
[6]
The Centre of Forensic Sciences.
[7]
Não me machuca (Sim-sim, sim, ei) Você quer saber como é? (Sim-sim, sim, ei) Você
quer saber. Saber que isso não me machuca? (sim-sim, sim, ei).
[8]
Banda Guns N’ Roses .
[9]
O que?
[10]
Maldição.
[11]
Certo.
[12]
Talvez.
[13]
Garoto estranho.
[14]
Originalmente feita de sarja cáqui, ela tem como detalhe mais marcante seu cós alto e
as cintas, com uma delas passando por dentro da outra e ambas prendendo-se a duas
fivelas laterais, permitindo o ajuste da cintura.
[15]
Para o inferno com a calma! Você, me responde, porra! Qual o nome da sua mãe?
[16]
Quantos anos você tem?
[17]
Dezenove.
[18]
Não fui eu!
[19]
Aquela ordinária... teve a coragem de engravidar daquele filho da puta?
[20]
Depois de anos... Como ela pode ter um filho depois que me expulsou? Depois de tudo
pelo que passei?
[21]
Eu comi do lixo por anos! E aquele garoto sequer tem uma cicatriz!
[22]
Querido, senti tanto sua falta...
[23]
Caramba.
[24]
Eu também te amo.
[25]
Não preciso me acalmar! Preciso que solte meu filho! Ele não fez nada! Ele é inocente!
[26]
Meu filho não tem culpa de nada. Seu problema é comigo e com Jeff.
[27]
São criaturas predadoras originárias do Mundo Invertido.
[28]
É um jogo baseado na colocação lógica de números.
[29]
William Shakespeare.
[30]
Eu só entendi o que era o amor quando você entrou na minha vida e deu sentido a ela .
[31]
Maldito inferno, sim... Isso é bom...
[32]
Power over Me.
[33]
Força Tarefa de Emergência.
[34]
Nunca!
[35]
Basta!
[36]
Cale a boca.
[37]
Vá para o inferno.
[38]
Perfeito.
[39]
Tudo bem.
[40]
Aprendendo catalão... Maldito provocador.
[41]
Boa noite.
[42]
Deus querido.
[43]
Oh, sim... Isso... Mais...
[44]
Você é tão dissimulado... Ok, amor.
[45]
Eu não a matei. Não fiz isso.
[46]
Filho da puta.
[47]
Você é idêntico ao seu pai, achando ser melhor que tudo e todos. E veja só onde ele foi
parar. Enterrado com a boca heia de formigas.
[48]
Recebi isso de um guarda.
[49]
Eu a peguei naquela noite, na esquina de sua casa como sempre combinamos.
[50]
Burro, burro, burro...
[51]
Ele realiza estudos sobre a classificação, distribuição, ciclo de vida, comportamento,
ecologia, fisiologia e dinâmica populacional de insetos.
[52]
Ceifador.
[53]
Eu te amo.
[54]
Com prazer.

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