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PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

na/

o universo das princesas FIGURA ARQUETÍPICA DA "PRIN-


CESA", ALTAMENTE DIFUNDIDA
é altamente difundido e PELO IMAGINÁRIO COLETIVO,
comercializado em nossa COM PRESENÇA MARCADA E M
sociedade, e está presente no PRODUÇÕES COMO OS CONTOS
D E FADA E FOLCLORl-, POPULAR,
âmbito escolar, sobretudo entre as É O PROTÓTIPO DO PRINCÍPIO
meninas e educadoras. Mas será FEMININO COMO IMAGEM D E BELEZA, EN-
que as posturas e características CANTO, PERFEIÇÃO, CORDIALIDADE E BOAS
MANEIRAS. Por este motivo, acaba por causar
corporais sugeridas pela figura grande impacto na educação e no desenvolvi-
arquetípica da "princesa" estão de mento de crianças, sobretudo meninas, que a
acordo com os nossos valores e rando-se
utilizam como objeto de identificação, estrutu-
personalidades e valores com base nos
crenças com relação ao espaço ideais coletivos, reforçados constantemente por
das mulheres na sociedade? pais, educadores e sociedade em geral.

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• PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO - PRINCESAS NA ESCOLA

Ao longo de minha trajetôria profissional, diferenciando em corpo masculino e feminino.


em salas de Educação Infantil, pude observar Mas a determinação do corpo passa por ques-
que o universo das princesas é muito presente tões mais amplas e complexas, por construções
entre as meninas. Além de possuírem fantasias culturais e históricas. Segundo Goellner (2010),
e acessórios de princesas, muitos de seus perten- o que o define vai além da sua estrutura biológi-
ces como lancheiras, mochilas, estojos, toalhas, ca, abrange o contexto em que ele está inserido,
roupas e calçados são estampados com essas os significados socioculturais a ele atribuídos e
personagens. Castelos, príncipes e princesas a educação de seus gestos espontâneos. O corpo
também fazem parte de suas produções artísticas é construído também pela linguagem, por tudo
e brincadeiras. Nos momentos de história, há a aquilo o que dele se diz, nomeando-o, classifi-
preferência pelos contos de fadas. cando-o, definindo-o em relação a seus aspectos
Observei também a presença das princesas normais e anormais; e também pelo processo pe-
no discurso das educadoras, ao se referirem às dagógico e educacional, presente na escola e fora
meninas e às suas atitudes. Passei então a refletir dela (filmes, músicas, revistas, livros, imagens,
sobre a relação entre a imagem das princesas e propagandas, mídia, etc).
a construção do corpo feminino no âmbito esco- Michel Foucault em Os Corpos Dóceis (Ed.
lar, baseada nas relações entre o corpo, o géne- Petrópohs) nos traz uma grande contribuição
ro e a cultura, com suas diversas estratégias de com relação ao controle dos corpos na socieda-
controle. de. Segundo o autor, os gestos são construções
culturais historicamente datadas, e há um poder
CORPO E CULTURA sobre o corpo que tenciona docilizá-lo, conhecê-
-lo e controlá-lo em cada detalhe. O corpo dócil é
aquele que pode ser submetido, utilizado, trans-
A questão do corpo é, muitas vezes, trata-
formado e aperfeiçoado, estando preso, em qual-
da do ponto de vista naturaUsta, como se o corpo
quer sociedade, a poderes muito rígidos, que lhe
fosse algo já dado e estabelecido como uniforme
impõem limitações, proibições ou obrigações. A
em suas características biológicas, apenas se

'Ao longo de minha trajetôria profissional, em salas de Educaçõo Infantil, pude observar que o universo
das princesas é muito presente entre as meninas."
esse controle sobre o corpo no interior de uma
sociedade, o autor dá o nome de "biopoder",
englobando todos os métodos que permitem o
controle minucioso das operações corporais, su-
jeitando suas forças e impondo a docilidade e a
utilidade, chamados de disciplinas. Ainda segun-
do Foucault, em distintas épocas da civilização,
o controle do corpo tem o objetivo de colocá-lo
em conformidade com a ideologia vigente, e este
controle está submetido a um regime disciplinar
encontrado em várias instituições, entre elas, a
escola.
A disciplina na escola, na concepção de
Márcia Strazzacappa em A educação e a fábri-
ca de corpos: a dança na escola. Caderno Cedes
(Campinas, vol. 21, n" 53) sempre foi compreen-
dida como um não movimento, em que as crian-
ças educadas e comportadas são aquelas que se
movimentam pouco, e, embora certas medidas
disciplinares mais rígidas não sejam mais prati-
cadas, ainda prevalece o conceito do bom com-
portamento. Então, são sempre criadas e recria-
das pelas escolas outras maneiras de se limitar
o corpo.
Daniela Finco em A educação dos corpos
femininos e masculinos na educação infantil,
Ana Lúcia G. Faria (org), O coletivo infantil em
creches e pré-escolas: falares e saberes (Editora
Cortez) nos traz a questão da educação do corpo
com maior especificidade em relação ao género,
como são educados os corpos masculinos e femi-
ninos na educação infantil. Para ela, a produção
da feminilidade e da masculinidade na escola é
sutil, mas muito eficiente.
De acordo com a autora, o corpo com todos
os seus gestos e formas de expressão bem como
o género são também construções culturais, e há
diferenças na construção do corpo masculino e
do feminino, principalmente em relação às lin-
guagens, comportamentos e brincadeiras. Não
apenas as práticas definem os corpos, mas tam-
bém os discursos, e ambos constituem posturas,
verdades e saberes sobre o masculino e o femini-
no, ou sobre o que é ser menino ou menina.
Ainda na perspectiva da autora, esses as-
pectos, muitas vezes, são reforçados já na Edu-
cação Infantil, e traduzem expectativas dos edu-
cadores em relação a meninos e meninas, às
quais as crianças procuram atender. Isto toma

"De acordo com a autora, o corpo com todos os seus gestos


e formas de expressão bem como o género sõo também
construções culturais, e hà diferenças na construção do
corpo masculino e do feminino, principalmente em rela0o
às linguagens, comportamentos e brincadeiras."
• PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO - PRINCESAS NA ESCOLA

a educação de meninos e meninas muito dife- como: "Você pode ir até o pátio como uma prin-
rente, embora aconteça em um mesmo espaço cesa, para não se machucar!", "Não acredito que
para todos. A diferença está em formas sutis e eu estou vendo uma princesa batendo em outra
aparentemente invisíveis com que os educado- criança!" e "Você colocou o seu ténis sozinha?
res irão interagir com as crianças, imprimindo à Que princesa!".
menina características como delicadeza, organi- Tratar as meninas como princesas, pode
zação, sensibilidade e meiguice, e aos meninos, servir como estratégia de aproximação da rea-
coragem, ousadia, energia, privação da expres- lidade e do interesse delas, além de possuir um
são pela afetividade e virilidade. O espaço que se caráter lúdico e de faz-de-conta, fundamentais
propõe a ser bvre e espontâneo passa a ser tam- na formação das crianças. Não podemos deixar
bém de controle corporal mediado pela questão de lado, porém, que essa referência às princesas,
do género. pode ser um mecanismo de poder. Esse interesse 2
acaba sendo utiUzado no controle de seus corpos,
mRPO FEMININO NA ESCOLA por meio de limitações, proibições e obrigações,
que estão de acordo com as expectativas e exi-
gências com relação a elas, como, por exemplo,
Ao considerarmos que o corpo é construído
evitar acidentes ou respeitar as outras crianças.
culturalmente, por meio dos discursos, a escola
Mém disso, dizemos para as meninas qual é o
tem um papel fundamental na constituição dos
espaço a ser ocupado por elas na escola e, de
corpos femininos. O universo das princesas é
forma mais ampla, qual é o lugar das mulheres
altamente difundido e comercializado em nossa
na sociedade. Será que as posturas e caracterís-
sociedade, e está presente no âmbito escolar, so-
ticas corporais sugeridas pela figura arquetípica
bretudo entre as meninas e educadoras, que cos-
da "princesa" - tais como docilidade, submissão,
tumam tratá-las como princesas e utilizar esse
pouco movimento, passividade, beleza, realiza-
termo constantemente em seus discursos.
ção de atividades domésticas, etc. - estão de acor-
A partir da minha prática profissional, posso
do com os nossos valores e crenças com relação
apresentar alguns exemplos dessa utilização, tais

"O universo das princesas é altamente difundido e comercializado em nossa sociedade, e está presente
no hmbito escolar, sobretudo entre as meninas e educadoras, que costumam tratà-las como princesas e
utilizar esse termo constantemente em seus discursos." \

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ao espaço das mulheres na sociedade?
Sugestão de Atividad^H||HHHIIIH~~
Precisamos refletir também se o interesse
•ATE AS PRINCESAS...-- pelas princesas é commn a todas as meninas, ou
A fim de tentar desconstruir a imagem estereotipada
se as diferenças acabam não sendo manifestadas
das princesas e de ampliar a liberdade dos corpos das
meninas dentro da escola, elaborer u.nia sugestão ae por falta de liberdade. Nesse sentido, toma-se
sequência de atividades. Enfatizo que essa s e q u è n c a relevante oferecer outras possibilidades de ar-
não ira, necessariamente, modificar as concepções in- quétipos às crianças na escola, além da princesa,
fantis sobre o feminino de maneira definitiva, mas po-
de trazer resultados interessantes seguindo a propos- para que possam ser contempladas as diferenças
ta deste trabaliio. se pensada em um contexto global e que haja espaço para outras diversas formas de
de modificação de discursos e praticas profissionais. expressão.
A sequência se inicia com um levantamento dos co-
O nosso discurso exerce forte influência na
nhecimentos prévios das crianças, com relaçào às
características femininas das pnncesas. a parar de construção dos corpos femininos na escola, mol-
questões, tais como: "Como são as princesas'''. O dados a partir de nossas próprias expectativas. É
que elas gostam e não gostam de fazer?" e • O que \ preciso, nesse sentido, tomar um cuidado espe-
elas podem e não podem fazer?".
cial com as formas da enunciação que produzem
Na etapa seguinte é realizada a leitura do livro Are as
princesas soltam pum (BrinqLie-Book ) de llan Bren- diversos efeitos sobre a formação das crianças,
man. que apresenta características "incomuns" das bem como repensar e avaliar a prática de forma
princesas, na tentativa de desconstruir valores que crítica.
permaneceram ao longo do tempo, presentes nos
contos de fada, Por isso, reforço a importância da forma-
ção continuada, que permite pensar e repensar
Apos a leitura, deve ser retomada com as crianças a
desconstrução da figura arquetípica" das princesas as práticas, e fazer as modificações necessárías
que o autor apresenta, estabelecendo uma compara- para que a formação dos alunos seja a melhor
ção entre as informações do livro e as ideias das crian- j possível, por meio da flexibilização dos discursos
ças com relação às pnncesas, que foram levantadas |
na primeira etapa, E uma oponunidade das crianças e das próprías práticas cotidianas, levando-os a
pensarem de forma crítica sobre os valores do univer- contemplar outras possibilidades de lidar com a
so feminino presentes na escola e de forma mais geral sua corporeidade, e, em última instância, da pró-
na sociedade
pría existência e da forma de se colocar no mun-
Por fim. sera proposta uma pesquisa sobre algumas
princesas do mundo, na qual serão estudadas carac- do, afirmando sua individualidade e liberdade.
terísticas físicas, pais de origem, vestimentas, ativida-
des que realiza, alimentação, etc. As crianças poderão Marcela Nascimento
venficar que existem diferenças entre as princesas, e Formada em Pedagogia - Universidade de São Paulo
comparar as princesas "da realidade' com as pnnce- Pós-graduada em Linguagens da Arte - Centro Universitá-
sas "estereotipadas" dos contos de fadas. rio Maria Antónia - USP
E-mail: marcela.nascimento@usp.br

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GRANDES TEMAS DO CONHECIMENTO

PSICOLOGIA
EDUCAÇÃO INFANTIL
FAMÍLIA
É essencial entender e recolocar
a base familiar como experiência
Até onde as crianças podem ir? positiva no universo da educação
Os limites, responsabilidades
e comportamentos devem ser DEPRESSÃO
impostos pelos pais ou não? Uma das questões mais
complexas do mundo adulto
ABUSO E VIOLÊNCIA também está presente no
universo aas crianças
Existe o tapa ustificado, o adolescentes
famoso "tapínha bem dado"?

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