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LIVRO - DO DESENVOLVIMENTO POSITIVO AO MODELO DE RESPONSABILIDADE PESSOAL E

SOCIAL ATRAVÉS DO DESPORTO: ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA

FADEUP, CIFI2D, 2016

ENTREVISTA A DON HELLISON -

COMO DEFINE O DESENVOLVIMENTO POSITIVO DOS JOVENS?

Estou preocupado com o facto de tudo se tornar muito prescritivo. As pessoas acham que, se
não houver melhorias, se não atingimos os ‘5 Cs’ 1 preconizados no desenvolvimento positivo,
não estamos a promover o ‘desenvolvimento positivo dos jovens’. O desenvolvimento positivo
dos jovens centra-se na criança como um todo. Não é só o desenvolvimento físico, não é só
jogar, é melhorar várias componentes do desenvolvimento, conjugando o desenvolvimento
psicológico, social, etc. As competências motoras podem trabalhar-se, mas, no contexto do
desenvolvimento positivo dos jovens, não se pode dizer que se está a fazer algo se não estiver
relacionado com a sua vida, com a sua melhoria pessoal. Para mim, isso é desenvolvimento
positivo.

Eu sei que se podem fazer vários tipos de trabalho em que tudo isto encaixa. Temos muitos
programas, todos válidos, porque todos tentam promover mais do que apenas a atividade
física. Há muitos programas para a juventude negligenciada, programas de desenvolvimento
físico, cujos objetivos não são apenas desportivos. Infelizmente, do meu ponto de vista, a
maior parte dos programas desenvolvidos no desporto são aquilo a que chamo programas com
‘acrescentos’. Por exemplo, se no fim de um treino de futebol há um momento em que se fala
de relações pais-filhos, ou outra coisa qualquer, estamos a conversar com os jovens sobre
outros aspetos da sua vida, mas tudo o que diz respeito ao desporto fica na mesma... O que
têm que fazer enquanto equipa e enquanto jogadores não muda... só lhes é ‘acrescentado’
algo. Eu sinto mais consistência quando as aprendizagens são integradas e não acrescentadas.
Eles aprendem o que têm a aprender com a atividade física e depois tem que se fazer a
transferência. Eu penso que é possível e alguns programas fazem-no. E é isso que faz a
diferença. O que acontece frequentemente é que falamos muito de educação da
personalidade e não fazemos essa educação. Tem que haver alguma evidência de que o que
estamos a fazer está a resultar.

QUAL É DISTINÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO POSITIVO DOS JOVENS E EDUCAÇÃO?

Nalguns contextos, educação significa saber ler, escrever e contar: literacia e números. É algo
que não deve faltar a nenhuma criança, embora muitas fiquem aquém. Mas não tem muito a
ver com a vida das crianças... Um investigador dizia: “A única coisa que as classificações
escolares mostram são as classificações escolares”. Segundo ele, havia evidências que as
competências escolares não cognitivas, como saber cumprimentar as pessoas, estão muito
relacionadas com o sucesso futuro, por exemplo, do ponto de vista económico. As
classificações escolares não avaliam tudo o que pode ser importante para o cidadão. São
precisos muitos anos de escolaridade não apenas para ter boas classificações, mas também
para adquirir competências não escolares.

COMO É QUE SE DEU O PROCESSO DE CRIAÇÃO E DO MODELO DA RESPONSABILIDADE


PESSOAL E SOCIAL?

O contexto em que tudo começou foi diferente do contexto atual. Eu não era um grande
estudante e foi com dificuldade que entrei na universidade. Os meus pais trabalhavam muito e
não tinham estudos superiores, mas pensavam que eu devia frequentar a universidade. E eu
fui... Então percebi que teria que aproveitar aquela oportunidade. Trabalhei arduamente e
concluí o curso. No entanto, não encontrava nada que me interessasse verdadeiramente. Um
dia, um colega disse-me que, se quisesse trabalhar em ensino devia fazer um mestrado. Assim,
fiquei na faculdade e fiz o mestrado. Com uma licenciatura em história e um mestrado em
sociologia, não me sentia satisfeito com nenhuma das formações. Por isso, explorei outras
áreas... Fui investigador privado, investigador do FBI e oficial da marinha. Nessa altura era
prática, nos bairros de periferia, os juízes darem, aos jovens delinquentes, a opção de irem
para a marinha em vez de serem presos. Fui encarregado de trabalhar com esses jovens e
adorei! Tinha 24 ou 25 anos, idade em que normalmente as pessoas já tinham filhos e, embora
casado, eu nem pensava nisso... O trabalho que fazia era muito físico, tudo era feito através da
atividade física e percebi que era aquilo que queria fazer: trabalhar com estes jovens usando a
atividade física!

Como só tinha o mestrado, pensei em fazer o doutoramento em educação física, adquirindo


assim habilitação para o tipo de trabalho que queria fazer. Disseram-me que poderia entrar no
doutoramento que queria porque tinha o certificado de ensino mas, ainda assim, teria que
obter um certificado específico em ensino de educação física. Tive que estudar todas as
disciplinas necessárias ao ensino da educação física básica e só depois pude obter o meu
doutoramento. Fiz tudo isto a pensar no trabalho com jovens marginais, acreditando que a
educação física me ensinaria a lidar com eles, mas logo percebi que, no contexto da educação
física, também não se sabia como trabalhar com este tipo de estudantes... Ainda não havia
interesse nesse tipo de trabalho... Todos queriam ser treinadores e ninguém estava
verdadeiramente interessado em ajudar miúdos vindos de meios desfavorecidos.

Entretanto, tive uma oferta de trabalho da universidade e fiquei a lecionar uma série de
disciplinas específicas do curso de educação física. Um dia, um estudante de mestrado disse-
me: “Soube que gosta de trabalhar com jovens. Venha conhecer a minha escola. Eu tenho uma
turma com 50 estudantes, mas só 25 vêm às aulas. Não vão continuar a estudar, têm 16 anos,
e só querem concluir a escolaridade obrigatória”. E eu lá fui...

Nos EUA, os professores não têm muita autoridade e aquela turma era muito difícil. Todas a s
estratégias que eu propunha eram aborrecidas para eles. Eu era simpático, propunha
atividades que achava que lhes agradavam – boxe, pesos e halteres – mas nada funcionava.
Trabalhei com eles durante um ano e encontrava-me numa encruzilhada: ou me dedicava a
lecionar na faculdade ou ficava e tentava entender como trabalhar com eles. Não tinha ajuda,
não tinha um orientador, tentava apenas pôr as coisas a funcionar... Lidava com pessoas boas,
bem intencionadas, mas ninguém estava interessado naquele tipo de trabalho... E eu não era
professor de educação física, nem de sociologia, nem de desporto... Por isso, dediquei-me a
este trabalho de responsabilidade. Perguntava-me: o que é que posso dar a estes miúdos?
Dinheiro? Não posso dar-lhes isso... Eles precisavam de orientação e não tinham quem lha
desse. Necessitavam de ajuda e não a iam obter em casa ou na polícia, que só aparecia se
houvesse problemas. Então comecei a pensar ensinar-lhes a responsabilizarem-se por si
próprios, de modo a progredirem a nível pessoal. Além disso, como a relação entre eles não
era boa, pensei também ajudá-los a serem responsáveis pela maneira como lidavam com as
outras pessoas. E foi por assim que comecei.

Na primeira vez que tentei organizar os níveis de responsabilidade, eram tantos que nem me
conseguia recordar de todos. Lembro-me que uma vez um estudante estava a tentar ensinar a
outro os níveis de responsabilidade e ele disse: “Isso não faz nenhum sentido!”. E o primeiro
respondeu: “Eu sei, mas é isto que ele quer!”. E apontou para mim. Percebi que não era aquele
o melhor caminho. Todo o caminho foi montado assim: com avanços e recuos. Houve
momentos mesmo difíceis. Finalmente, após três anos, tudo começou a funcionar melhor.

QUE TIPO DE ERROS COMETEU?

Penso que, neste trabalho, tem que se estar em sintonia com os miúdos, mas temos que ter
algo para fazer com eles. Eles são muito rebeldes: jogam basquetebol, saltam num trampolim
e é isso que querem fazer... Não querem conversa! É muito difícil para nós, mas eles não
querem saber disso para nada! Os níveis não lhes interessam. Desde muito cedo que sentem
que estão perdidos para o sistema! Eu tinha entre 30 e 40 estudantes, todos com problemas
disciplinares, porque quando disse que queria trabalhar com jovens difíceis da escola, foi o
delírio: os professores de educação física enviaram-me todos os estudantes complicados que
tinham, os que ninguém queria. Eu aprendi da maneira mais difícil...

Escrevi um livro chamado Beyond balls and bats: Alienated (and other) youth in the gym
(HELLISON, 1978), publicado em 1978, e que se refere ao período de 1975 da minha história
com estes miúdos. Este livro tenta ir além das ‘bolas e bastões’ e quem o ler verá a minha
primeira conceptualização da responsabilidade e vai ter vontade de rir! Os primeiros capítulos
são sobre teorias e os restantes estão cheios de histórias sobre o que se deve fazer e o que
não se deve fazer... Foi uma primeira experiência muito forte e eu avaliava-a todos os dias,
mesmo sem saber muito bem como o fazer. Fazia entrevistas, testes físicos… Mas o mais
importante é que me avaliei a mim mesmo e não me dei mais do que um C.

Durante todo o 1º período: setembro, outubro, novembro e metade de dezembro. Apenas a


meio de janeiro um miúdo disse, pela primeira vez, algo que mudou tudo. Nessa altura, eu
estava a falar com eles e pedi-lhes que fizessem um esforço de autocontrolo ou de
participação minimamente ativa, durante cinco dias seguidos, para podermos avançar no
modelo, e um deles disse: “Ouçam o homem!” Foi como um tiro! Foi o primeiro miúdo a fazer
isso... foi preciso setembro, outubro, dezembro, as férias de Natal e metade de janeiro para
isso acontecer… Depois disso, eles começaram a mudar. Estávamos em 1975 e eu tinha
começado este trabalho em 1970; demorei muito a chegar ali... Foi uma tarefa
verdadeiramente dura, pelo menos para mim. Para alguém mais forte seria provavelmente
mais fácil, mas para mim foram tempos difíceis e foi muito duro manter-me com eles e
continuar, sabendo que seria muito difícil.

Se lerem o que fui escrevendo sobre responsabilidade verão o meu próprio desenvolvimento;
vê-se a evolução naquilo que vou mostrando nessas publicações. As coisas não se alteram
completamente, mas mudam, porque eu mudo à medida que vou estando com estes miúdos.
A experiência mais valiosa que tive com jovens foi uma experiência ‘acidental’. Eu tinha entre
50 – 60 anos e trabalhava em escolas secundárias. Um sujeito contactou-me – tinha uma
escola secundária ‘alternativa’, escola para estudantes problemáticos que tinham sido
expulsos de outras escolas ou saído da prisão – e disse-me: “Tenho conhecimento do seu
trabalho no desenvolvimento de responsabilidade e queria fazer isso. Ajuda-me?”. “Claro!” –
disse eu. Então apareci lá na escola. Era uma escola pequena, com 35 estudantes, quatro ou
cinco professores e turmas de mais ou menos 12 a 15 estudantes. Os miúdos corriam
desorganizadamente por todo o lado durante a aula e eu percebi logo porquê... É que a pessoa
que me contactou não tinha nenhuma ideia de como trabalhar com eles. Então eu disse-lhe
que trabalhava com eles durante seis semanas (fazia um bloco/ módulo de trabalho). E foi aí
que vi como os estudantes evoluíam verdadeiramente em responsabilidade, apenas por um
motivo: a turma era mais pequena! Estes estudantes eram muito complicados mas sabiam que
aquela era a sua última oportunidade. Consegui construir relações de amizade com eles. Eu
via-os como pessoas!

ACREDITA QUE ELES ATRIBUÍAM ALGUM SIGNIFICADO AO FACTO DE PERTENCEREM AO


PROGRAMA?

Eu penso que mesmo para se ir à lavandaria é preciso ter motivação! Aqueles estudantes eram
do secundário, tinham atitudes de estudantes mais velhos e éramos amigos. Mas não era
sempre assim. Também assumiam atitudes diferentes, em diferentes situações. No corredor,
por exemplo, caminhavam à ‘gingão’... Eu via-os passar sem que eles se apercebessem e se me
viam disfarçavam e caminhavam direito. Nunca lhes fiz nenhum reparo sobre essa atitude,
essa forma de caminhar, mas eles sabiam o que era correto. Os jovens sabem o que é correto,
só não o fazem!

COM QUE TIPO DE JOVENS TRABALHA, APENAS JOVENS COM PROBLEMAS?

Sim, inclusivamente com jovens a cumprirem penas de prisão. É este tipo de trabalho que me
interessa, com situações muitas vezes desesperadas, principalmente com miúdos mais velhos,
que chegam com 16, 17, 18 anos... É complicado... Se trabalharmos com eles durante seis
meses já podemos ver algumas diferenças, mas quanto mais tempo tivermos mais hipóteses se
tem de adquirir uma posição de liderança e de confiança junto deles e de os fortalecer.

ACOMPANHA OS JOVENS DURANTE MUITO TEMPO?

Começamos com eles aos 10 anos até aos 15. Depois disso, se quiserem ainda podem ficar
connosco, voluntariamente.

PENSA QUE ESTE PROGRAMA PODE TER RESULTADOS EM CINCO OU SEIS SEMANAS?

Apenas como introdução. Eu trabalho com a formação de professores e treinadores e faço um


trabalho de acompanhamento (follow-up). Se alguém quer trabalhar assim [a curto-prazo],
digo-lhe: “Quando eu trabalho com professores, se o fizer uma só vez, não vai resultar. Alguns
ficam com uma ideia do que se pode fazer, não mais do que isso.”. E com os miúdos passa-se o
mesmo: eles têm que experimentar, exercitar, e quanto mais melhor. Se estiver com eles
tempo suficiente, acontece uma coisa interessante: começam a defender o programa da forma
como o fazemos. Se, por exemplo, nos esquecemos da avaliação – levantando o polegar – eles
próprios lembram que não o fizemos. Eu costumo dizer que temos que ‘ultrapassar o prazo’
com estes miúdos. Por outro lado, acho que não devemos estar com eles tempo demais.
Pergunto-me sempre até onde posso ir com eles... Sei o que é o meu ideal e sei qual é a
realidade, o ponto onde comecei... Há dias em que olho e digo: “Será que hoje poderei
avançar, ou não posso ir mais longe?”; ou: “Talvez não hoje!”; ou: “Este é um bom momento
para ir mais além!”. Para mim, é um processo de tentativa-e-erro. Há pessoas que usam o
método como uma fórmula rígida e alguns professores querem fazer dele uma receita,
apoderar-se da fórmula, se possível em metade do tempo e o resto não interessa... Quando
percebo isso [nas sessões de formação com professores] digo logo: “Faltam dois minutos para
acabar.”. E eles ficam verdadeiramente aliviados, porque já estavam aborrecidos... É como os
estudantes: quando começam a olhar à volta, eu sei que posso continuar a falar mas eles já
não estão a ouvir, a aprender...

CONSIDERA IMPORTANTE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NESTE MODELO?

Na minha opinião, esta abordagem, para além de toda a ciência, de todos os dados, de todas
as evidências, assenta em valores: as pessoas têm que avaliar os seus ideais. Por exemplo, se
perguntarmos a alguns treinadores se é importante ajudar os miúdos nas suas vidas pessoais,
eles dirão que não é fundamental e que não vão mudar a sua maneira de pensar, faça-se o que
se fizer. Isso não me preocupa. Quem quer vir comigo vem. O que eu gosto de fazer não é fácil.
Quando vou a uma instituição, começo por fazer uma pequena introdução; depois, gosto de
saber quem se interessou e já trabalhou com este tipo de população; finalmente, pergunto-
lhes: “Querem trabalhar assim?”. Em caso afirmativo, eu volto e apoio-os, converso com eles,
tentando entender o que está a funcionar bem e o que está mal, de maneira a corrigirem as
coisas. Isto é o que eu penso que podemos fazer na formação dos professores. Talvez Portugal
tenha um melhor sistema de formação, não sei, mas na maior parte dos casos o que se faz é
uma formação ‘relâmpago’: temos duas-três horas de formação, pagam-nos e saímos com a
ideia de que talvez duas daquelas pessoas tenham ‘apanhado’ alguma coisa. As únicas pessoas
que eu sinto que aprendem alguma coisa são aquelas que dizem: “Eu sempre quis fazer algo
assim mas nunca pensei que fosse possível. Não sabia que alguém fazia isto!”.
O QUE É MAIS IMPORTANTE PARA O SUCESSO DE UM PROGRAMA DESTE GÉNERO: O
PROFESSOR E O RELACIONAMENTO QUE ESTABELECE COM AS CRIANÇAS E OS JOVENS OU A
EXISTÊNCIA DE UM MODELO, UMA ESTRUTURA, NA QUAL BASEIA A SUA INTERVENÇÃO?

Sempre a pessoa! Se temos a pessoa certa, talvez a metodologia ajude. Especialmente se


temos determinados objetivos. Há muitas atividades a trabalhar com diferentes objetivos, mas
não atingiremos nenhum se não soubermos qual é o mais importante e é aí que a orientação
metodológica aparece. No entanto, se a pessoa que aplica o programa não se relaciona bem
com os atletas ou estudantes, tudo será mais difícil. A única exceção é quando o modelo é
implementado num clube desportivo muito popular, pois aí o treinador está em grande
vantagem. Pode ser violento ou mau, mas o prestígio é ele estar no clube! Temos que ter em
atenção que, quando se procura alguém para trabalhar neste modelo, estamos a trabalhar
com pessoas. Como é que se fala de como é que elas são? De como pensam? De como fazem
as coisas? Quando se trata de uma metodologia é mais fácil, pois podemos analisar e dizer se
nos agrada ou não...

RECOMENDA AOS PROFESSORES COM QUEM TRABALHA QUE SE AUTOAVALIEM?

No livro Teaching Personal and Social Responsibility (HELLISON, 2011) há uma lista de
verificação com perguntas para saber se os professores estão abertos a este tipo de
abordagem. Quando lhes peço para responderem, digo-lhes que não é obrigatório, que não
são avaliados por isso; essa lista serve apenas para lhes mostrar se o tipo de trabalho que
fazemos se lhes adapta ou não. Esse livro tem ainda um capítulo no qual apresento uma série
de competências relacionais importantes no trabalho com os miúdos e em que explico cada
uma delas. Quando trabalho com estudantes universitários ou professores proponho que eles
se avaliem a partir desses parâmetros. É interessante que, em relação a uma dessas
competências, o compromisso, os estudantes universitários não vão longe... Eles não lhe dão
valor, vão pela vida fora sem lidarem com isso! Eu digo-lhes: “Se não conseguem entusiasmar-
se verdadeiramente por este trabalho, procurem outra coisa. Eu não estou a falar do método
mas de trabalhar com crianças. Se não se conseguem comprometer a ajudar crianças, devem
procurar outra coisa para fazer...”. Temos muitos que ficam e trabalham connosco... Não
precisamos dos que não estão motivados. Precisamos apenas dos que são bons, dos que têm
muita qualidade, que se comprometem e que se preocupam com os miúdos.

UMA VEZ DISSE QUE NÃO QUERIA FALAR DE CIÊNCIA OU DE INVESTIGAÇÃO…

Sim… O que eu queria dizer é que não me considero um cientista. Muito embora tivéssemos
publicado algumas coisas, o nosso interesse era perceber como é que tudo isto funcionava.
Depende também do que é que definimos como ciência, porque há, por exemplo, certas
palavras ou termos que nos tornam muito académicos, mas se não os usarmos ficamos ‘fora
de jogo’. E aí, ‘ciência’, ‘dados’, ou ‘teoria’ soam muito bem, enquanto ‘trabalho suado com
miúdos’ não soa muito prioritário. É preciso encontrar um equilíbrio, mas isso não é um
problema para mim. Tenho bons amigos que são cientistas e não tenho nenhum problema
com isso; eu é que não me vejo a mim mesmo como tal. As coisas que partilhei com as outras
pessoas resultaram das reflexões que fui fazendo ao longo da minha carreira. As histórias que
fui contando foram sobre o que tinha sucesso e sobre o que não tinha, procurando sendo para
ajudar os outros a iniciarem o seu trabalho com os jovens e a perceberem como é que eles
agem… Muitas das histórias que conto são as histórias dos meus falhanços. Depois de se ler o
que escrevi tem-se uma ideia da minha abordagem e, de alguma forma, também dos
pequenos êxitos que vou tendo e que vejo naquilo que os miúdos dizem e fazem.

ACHA QUE É SUFICIENTE O QUE OS JOVENS DIZEM E FAZEM PARA AVALIAR O SEU
TRABALHO? É SUFICIENTE ‘SENTIR’ QUE O PROGRAMA ESTÁ A FUNCIONAR?

Trata-se de intuição... A intuição é uma outra maneira de avaliar. Eu procuro os professores,


principalmente nos programas extraescolares e pergunto aos diretores de turma, por exemplo:
“Como é que vai este miúdo? Tem faltado?”. E faço o mesmo aos estudantes. Um deles, uma
vez disse-me: “Tenho tido menos suspensões!”. E isto foi dito com ar de triunfo! Por isso, há
uma série de maneiras de medir e avaliar, mas o que me interessa é descobrir como trabalhar,
como levar isto avante. Uma vez, na universidade, na defesa de uma dissertação, a estudante
falava de desenvolvimento da responsabilidade e de uma série de dados que recolhera. Eram
dados, dados e mais dados! Com esses dados, ela mostrou que nenhum estudante tinha
aprendido nada sobre responsabilidade. Dos professores presentes, nenhum disse nada, mas
nenhum tinha gostado do trabalho... Então porquê tantos dados?! Para mim, o importante é
questionar o que estou a fazer diariamente, refletir, escrever e pensar o que é que vou fazer
amanhã e no seguinte, e verificar a consistência do meu trabalho. O importante é ver que
resultados obtenho nas aulas, os resultados do processo. Por exemplo, para mim é suficiente
eu ter miúdos que refletem quando lhes proponho que se avaliem: “O que fizeste hoje?
Correu-te bem? Achas que estás a trabalhar nisso?” Eu vi o que eles fizeram, não há
necessidade de me dizerem que foi maravilhoso! Acredito que, se fizer este trabalho com eles
durante um ano ou dois, viverão melhor as suas vidas, refletindo sobre si e o seu
comportamento; saberão olhar para si e fazer uma autocrítica. É difícil porque que eles só
sabem criticar os outros... é a sua autodefesa, pois vêm de um mundo muito duro.
PENSA QUE APENAS CRIANÇAS E JOVENS COM PROBLEMAS PRECISAM DESTE GÉNERO DE
PROGRAMAS? NÃO SERÁ IMPORTANTE IMPLEMENTAR VALORES E RESPONSABILIDADE EM
TODOS OS JOVENS?

Quando trabalhamos com classes sociais mais favorecidas muito raramente se tem resultados.
Nós começamos por baixo, com jovens que fazem connosco um certo percurso. Puxamos por
eles e eles podem progredir até à liderança juvenil e por aí fora. A razão porque falo sempre
destes é porque esta é a minha experiência, foi o que escolhi fazer. Conhecem a Glória
Balague? É uma amiga que trabalhou comigo... A essência do meu trabalho é com jovens
negligenciados; a dela é trabalhar com desporto. Eu quero pegar nestes miúdos e envolvê-los e
a atividade física é um contexto muito bom para conseguir isso. Não importa se é em contexto
de desporto ou de educação física. Procuro a melhor forma de aplicar o programa a estes
miúdos, de modo a que conquistem algo. Esta é a minha forma de trabalhar, sou eu...

Quando comecei, tive algum treino académico de como trabalhar nesta área, mas nunca me
serviu de muito. Tive ótimos professores, mas não me foram muito úteis... Por isso, comecei a
montar este esquema... Depois houve outras pessoas que me ajudaram: professores,
estudantes… O que eu quero dizer é que, se se quer ser popular, ou importante, ou subir no
sistema académico, não façam o que eu fiz. As pessoas perguntam: “A que área é que
pertence?”; e eu respondo: “A nenhuma!”. “Então, como é que nos pode ser útil?”. Ou seja,
ninguém sabe lidar com isto, porque nós criamos um sistema, mas é um sistema pessoal, é um
sistema de estrutura social. Quando surgiu a sociologia do desporto enquanto disciplina
académica, disseram-me: “Agora é possível estudar este assunto do ponto de vista
académico!”. E eu disse: “Eu já pus isso de lado. Já deixei de lado a sociologia, a história, para
me dedicar ao trabalho aplicado. E vocês vêm falar-me de pôr de lado a parte prática? Não me
importo de ser considerado uma relíquia ou que estou ultrapassado… Vou continuar assim…

NÃO ESTAREMOS A FALAR DE UMA ÁREA MULTIDISCIPLINAR?

Sim. Eu continuo a tentar construir algo, a trabalhar com os miúdos, a trabalhar com os
estudantes, a orientar e a tentar pôr a funcionar caminhos novos. A zona norte de Chicago é
onde está o dinheiro, é a zona mais rica de todas. Uma vez pediram-me para ir lá falar de
agressividade juvenil. Eu disse-lhes que eles não tinham jovens agressivos, mas eles diziam que
sim. Eu estava disponível e fui. O ambiente era muito agradável, todos estavam muito bem
vestidos… Mas quando se trabalha nas zonas pobres da cidade não se tem nada disso… É um
contexto muito especial, trabalha-se sob tensão e é disso que eu gosto, é o que eu sei fazer, é
a minha paixão.
Eu já escrevi muitos livros. Comecei por fazer algumas apresentações científicas e um dia
alguém me convidou para escrever um livro. Este primeiro livro foi publicado em 1973,
chamava-se Humanistic physical education: A behavioural perspective (HELLISON, 1973) e já
refletia a minha imagem antes de começar verdadeiramente o meu trabalho: eu já sabia que
queria humanizar a educação física, queria que o centro do meu trabalho fosse o ser humano e
não o desporto ou a condição física. Mais tarde, fui fazendo o que fiz de forma a sobreviver. Os
estudantes universitários também querem sobreviver. E fazem muito bem, porque não há
muito espaço para eles no sistema. Eles têm que encontrar o seu próprio lugar... Eu digo-lhes
para se tentarem manter íntegros e para não se venderem ao sistema, a não ser que isso faça
mais sentido do que o motivo que os trouxe até mim... Recordo que vieram ter comigo porque
queriam trabalhar com miúdos e digo-lhes: “Vão para a universidade, estudem desporto ou
psicologia; estudem para serem professores ou outra coisa qualquer... Mas, quando chegarem
aqui, comecem por construir o vosso próprio programa!”. Isso exige coragem…

ELES SÃO MUITO DIFERENTES UNS DOS OUTROS?

Eles são diferentes uns dos outros... Eu digo-lhes para aproveitarem de mim o que puderem
mas para irem em direções diferentes. Tive um estudante que fez quase exatamente o que eu
fiz e era excelente, mas outros têm sido excelentes noutras vertentes. Há um que trabalhou
comigo há oito anos, muito próximo e que também começou com este trabalho. Trabalhava
com comunidades muito pobres e um dia perguntou-lhes “De que é que vocês precisam?”; e
eles disseram “Não temos padarias”. Era uma zona muito difícil e ninguém queria investir.
Então, ele procurou saber como podia construir na zona, conhecer as pressões políticas e é
isso que ele está a fazer atualmente! Agora tem muito dinheiro e é conhecido nacionalmente.
Eu fico contentíssimo por saber o que ele está a fazer! Mas é ele, não eu!

CONSIDERA DIFÍCIL CONSEGUIR QUE OS JOVENS TRANSFIRAM O QUE APRENDEM NAS


SESSÕES DO PROGRAMA PARA AS SUAS VIDAS?

De tudo, é o mais difícil, pois não se pode passar todo o tempo a falar disso, e, na verdade, não
é algo que possamos ser nós a fazer. O Tom [Martinek] tem algumas ideias a respeito disto,
estudou e avaliou como fazer a transferência na aula. A minha convicção é que o que eles
fazem no ginásio poderiam fazer cá fora, mas eles próprios dizem que é muito difícil porque
não têm apoio, não há clima, não há envolvimento. Tem a ver com as suas relações, com as
suas amizades... No entanto, acredito que, ao fim de algum tempo, quando entram no ginásio,
eles próprios têm expectativas de não serem agredidos ou de terem oportunidade para serem
mais responsáveis… Vão adquirindo estas expectativas que depois não veem nas salas de aula,
no parque de jogos, ou mesmo em casa. E sabem que é diferente. Mas quando estamos no
‘tempo de reflexão’ [no final de cada sessão], eu pergunto: “Como te portaste hoje? Como
esteve o teu temperamento? E as ‘bocas’; controlaste as ‘bocas’?”. E eles vão dizendo: “Sim…”,
“Mais ou menos…”, “Ainda não…”. E vamos avançando assim até que eles ganhem uma certa
autonomia. Depois, vou perguntando se algum atingiu algum objetivo pessoal ou desportivo a
que se tenha proposto de início. De seguida, avançamos para a liderança… Finalmente,
chegamos à parte que diz respeito ao que se passa fora do ginásio. Aí pergunto: “Desde a
última vez que nos vimos, querem dar algum exemplo de algo que tenham aprendido aqui e
que tenham feito lá fora, em qualquer lado?”. Às vezes não conseguem dizer nada porque essa
transferência é difícil para eles e então eu começo de uma forma mais simples: “Como foi o
teu autocontrolo nas aulas desde que te vi a última vez?”. E eles lá vão dizendo, mas
normalmente avaliam-se pior nas outras aulas do que dentro do ginásio. “Claro...” – dizem eles
– “Nas aulas é mais difícil, aqui é mais divertido; lá fora há muita gente a deitar-nos abaixo.”.

Eu estou sempre a tentar que eles vejam a ligação. Isso é o mais importante. Quando falamos
de transferência, uma das coisas que dizem é que não veem onde está a ligação, o que é que
uma coisa tem a ver com a outra. Isso acontece-nos muito quando falamos de desporto, de
como eles aprendem muitas coisas, como a moralidade, que depois fica só no campo. Passa -se
o mesmo em relação a coisas menos boas, como ‘fazer batota’: o facto de fazerem batota no
desporto não quer dizer que obrigatoriamente façam batota fora do ginásio... Mas quando
aprendem qualquer coisa verdadeiramente boa, como a cooperação em equipa, nós queremos
que a transfiram e que a usem na vida. Para isso, descobrimos maneiras simples. No meu caso,
que trabalho com os jovens nos seus tempos livres, posso falar com eles e perguntar-lhes
como está a ir a escola?... Ou pergunto-lhes como estão na equipa do bairro?…

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