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Apontamentos HT I | AULA DE 18 Jan.

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Commedia Dell’ Arte

Nascida em meados do século XVI em Pádua, Itália, a Commedia Dell’Arte foi uma vertente
popular do teatro renascentista. Desenvolveu-se posteriormente em França na segunda
metade desse século e veio a alcançar um enorme reconhecimento e popularidade por
toda a Europa, até ao século XVIII. Tornou-se um género teatral antinaturalista que
persegue o principal propósito de instalar a boa disposição numa sala de espetáculos.

A Commedia Dell’ Arte descende dos festejos carnavalescos medievais, em honra de Baco -
o deus do vinho, da arte dos mimos romanos, dos cómicos solitários e dos bobos da Idade
Média, incorporando ainda vários elementos da comédia clássica, tanto no que diz respeito
à tipologia das personagens como no que se refere à construção das intrigas das peças. A
comédia atelana concorre igualmente para a sua tradição.

Como seria de esperar as características deste género, definidas pelas primeiras


companhias de Comédia Dell’ Arte italianas, sofreram alterações, pelas mãos de vários
dramaturgos, atores e encenadores, por toda a Europa e por quase três séculos. As
adaptações necessárias aos diferentes tipos de plateias e costumes e épocas, mantiveram
no entanto inalteráveis o profissionalismo, o humor e a capacidade de interação e convívio
com públicos muito heterogéneos.

Como primeiro registo de companhia de Comédia Dell’ Arte, temos o exemplo da formação
da “Fraternal Companhia em Pádua, dos irmãos Andreini” em 1545.

Encontram-se dessa época registos do trabalho de pelo menos oito atores que se
preocuparam em se organizar nesta companhia, para juntos trabalharem e em equipa
criarem, com tarefas diferenciadas, mas com o objetivo comum da representação da
comédia.

Outro nome considerado como um dos percursores da Comédia Dell’ Arte é Angelo Beolco
(1502-1542), autor dos primeiros registos de comédia com nítidas personagens tipificadas.

Estas primeiras companhias eram pequenas e itinerantes, apresentavam os seus


espetáculos em variados locais, em pequenos palcos improvisados e também nas ruas e
praças públicas. A principal característica que diferencia a Comédia Dell’ Arte do
amadorismo predominante no teatro popular da altura, é precisamente o seu
profissionalismo, mas também as capacidades dos seus atores para explorar a acrobacia, o
canto e a dança e para representarem com base em personagens tipificados. Constituía-se
assim a Comédia Dell’ Arte como um exemplo de uma atividade profissional baseada em
performances de demonstração da arte.

Breve Contextualização Histórica


No século XVI, a Itália atravessava uma grande crise económica e social, repleta de pobreza
e de falta de estrutura organizacional. Assim, quando estes primeiros grupos ou
companhias se formam e se deslocam pela península itálica, fazem-no no meio do
desemprego, da pobreza, da decadência de variadas atividades económicas e na grande
instabilidade social provocada pela invasão pela França e pela Espanha. O que une estes
novos grupos é a enorme vontade de representar num mundo marcado pela luta constante
pela sobrevivência. Estas pequenas companhias profissionais assim criadas, permitiam não
só que os artistas se tornassem profissionais, como também acolhiam jovens e estudantes
que, não tendo outra forma de sustento, acabavam por as integrar desenvolvendo
primeiros trabalhos auxiliares como o de tradutores. Posteriormente, muitos deles,
acabavam também por representar. Desta forma, a Comédia Dell’ Arte acabou por ser o
resultado do “encontro” de pessoas diversas, com funções distintas, que crescendo em
conjunto puderam, direta ou indiretamente, viver da arte da representação.
A crise económica vivida em Itália resultou na decadência de diversas estruturas relevantes,
no entanto, como em todas as crises, acabou por originar mudanças positivas, como por
exemplo a constituição de novas categorias profissionais, ou até, na representação, factos
notáveis como o da chegada das mulheres ao palco, ou por outras palavras, o
aparecimento das atrizes.
Estas novas pequenas companhias, feitas de gente muito diversa, obrigavam os seus
elementos a adaptações permanentes às diferenças e nelas imperava uma forte capacidade
de trabalho em equipa, necessária à produção de apresentações harmoniosas. O seu
trabalho podia ser exposto em palcos improvisados nas ruas mas também nos teatros das
cortes a convite de elementos da nobreza. Algumas das melhores companhias teatrais
deste tempo ficaram célebres por passarem das ruas para os palácios das classes mais altas,
como foi o caso das companhias Gelosi, Confidenti e Fedeli.

No tempo da improvisação, muitos atores acabavam por representar a mesma personagem


inúmeras vezes ao longo das suas vidas, com pequenos cambiantes, acabando a
confundirem a sua própria vida com a das suas personagens. Muitos dos atores cómicos
nestas companhias, começaram então a escrever comédias inteiras a partir das suas
experiências de vida e juntando características das variadas personagens que antes
interpretavam espontaneamente em improvisação. Podemos dizer assim que a dramaturgia
destes atores de Comédia Dell’ Arte nasce da sua própria arte de representar.

A capacidade de escrever novas comédias floresceu assim e por volta do ano de 1580
muitos destes textos já eram publicados em livros. Estas estruturas em texto inspiravam a
preparação das suas performances. Frequentemente as histórias giravam em torno de
amores e desamores complicados, e de amores vividos com a forte oposição de alguém
próximo e poderoso.
Estes “guiões” eram normalmente afixados nos bastidores do palco e continham a
indicação das personagens que participavam em cada cena, e o tipo de situações que
aconteciam em cada uma. A partir daí, tudo o resto era por conta dos atores, com base no
seu improviso. O diretor/encenador destas companhias, que geralmente também era ator,
apresentava previamente estes guiões aos restantes elementos do grupo e assim se
preparavam para a encenação das suas apresentações. Estas pequenas companhias
geralmente tinham entre oito a doze atores que se estruturavam normalmente em torno
das personagens-tipo próprias da Comédia Dell’ Arte.

Principais características
- uso de máscaras (resgata a origem da meia-máscara na Grécia Antiga para explicar a sua
função. Lembremos que na Antiga Grécia, o formato da boca e o interior das máscaras era
construído de modo a funcionar como um megafone e, assim, facilitar a projeção vocal,
pois era preciso chegar milhares de espetadores. A meia máscara da commédia dell´arte
tem uma maior mobilidade expressiva e deixa livre a boca, permitindo assim uma
respiração mais cómoda e uma boa fonação (o que concorre para uma boa projeção de
voz)

- personagens tipo

As Máscaras e as Personagens
As máscaras utilizadas na Comédia Dell’ Arte eram diferentes das utilizadas no
teatro grego, pois não demonstravam qualquer tipo de emoção. Um dos
objetivos de usar este tipo de máscaras era permitir que o público
reconhecesse a personagem presente, deste o primeiro contacto visual. Estas
máscaras, que só preenchiam uma parte do rosto dos atores, deixavam a boca
e o queixo a descoberto. O uso de máscaras com estas características, permitia
destacar o movimento do corpo das personagens, através do qual se
demonstravam as emoções.
Cada personagem tipo, com traços de personalidade individualizados e bem
definidos, possuía uma máscara específica, que o público identificava de
imediato.
As personagens tipo, que são figuras grotescas da sociedade mercantil do
século XVI. As personagens da comédia italiana navegam permanentemente
entre dois polos contraditórios. Arlequim é, ao mesmo tempo, ingênuo e
malicioso, o Capitão é forte e medroso, o Doutor sabe tudo e não conhece
nada, Pantalone é, ao mesmo tempo, chefe da empresa, senhor de si e
totalmente louco no amor.
Os atores falavam dialetos diversos.
Havia três categorias distintas de personagens-tipo: os velhos, os servos e os
apaixonados.

Na categoria dos velhos, podemos identificar as seguintes personagens:


- Pantalone: Um velho rico, autoritário e avarento;
- Dottore: Era também um velho rico, amigo de Pantalone, que tinha uma
postura intelectual.
- Pulcinella: velho corcunda, também conhecido por Punch.
- Capitano: Capitão da guerra, mentiroso e preguiçoso. Era cobarde no que
dizia respeito às batalhas e ao amor;

Na categoria dos criados podemos encontrar as seguintes personagens:


- Arlecchino: Uma das personagens mais famosas da Comédia Dell’ Arte, era
um servo atrapalhado, ágil e malandro;
- Colombina: Uma criada graciosa, inteligente, ágil e habilidosa. Namorada de
Arlequim.
- Brighella: Servo fiel que trabalha para Pantalone, cantor, ágil e cínico.
- Pedrollino: Servo fiel e honesto.

A categoria dos apaixonados conta com as seguintes personagens:


- Orazio: Rapaz apaixonado, atraente e vaidoso, completamente movido pela
paixão.
- Isabella: Rapariga apaixonada, vaidosa e com um alto poder de sedução que
se apaixona com facilidade.

- improvisações chamadas de lazzi. O espetáculo não era, no entanto, totalmente


improvisado. Havia uma sequência definida, chamada de canovaccio, no decorrer do qual
os personagens incluíam os seus lazzi próprios. O cannovacio está baseado nas relações
entre servos e patrões.

- a prática da interpretação transmitia-se de pai para filho.

- os espetáculos são construídos em torno de jogos sobre as “grandes trapaças da natureza


humana”: fazer acreditar, iludir, enganar…

As Caraterísticas da Comédia Dell’ Arte


Foi ao longo de todos estes séculos que a Comédia Dell’ Arte se apropriou das
características que conhecemos hoje em dia. A utilização do humor, muitas vezes em forma
de gozo das pessoas da nobreza, era apreciado pelo povo, gerando gargalhadas ao longo
de todo o espetáculo. O recurso à improvisação, ao humor, à ironia, às danças, músicas e
acrobacias era o método utilizado no cumprimento de um objetivo principal: entreter a
população.
O recurso à mímica e as máscaras era utilizado, de forma inteligente, para ultrapassar um
obstáculo: na Itália pós-renascentista havia uma grande quantidade de dialetos. Foi, assim,
encontrada uma forma quase universal de comunicar com um público que nem sempre
dominava um idioma comum.
Como já foi referido anteriormente, as peças giravam em torno de encontros amorosos e
dos problemas que advinham das vidas das personagens que, geralmente, acabavam por
criar obstáculos à relação amorosa. Na maioria das vezes, os espetáculos tinham lugar nas
ruas, em palcos improvisados e ocasionalmente na corte, quando surgiam convites da
nobreza.
As companhias de teatro não tinham grandes recursos financeiros e os atores acabavam
por se adaptar às condições existentes. Por este motivo, os atores da Comédia Dell’ Arte
ficaram conhecidos como grandes profissionais que, mesmo nas piores condições,
conseguiam realizar os seus espetáculos, deixando sempre os espectadores com boa
disposição. Com esta forma de viver a arte, elevavam a teatralidade ao seu expoente
máximo.

O Sentido do texto da Comédia Dell’ Arte


Pode dizer-se que o texto escrito na Comédia Dell’ Arte apresentava características
singulares por ser reduzido ou quase inexistente. O espetáculo vivia, essencialmente, do
improviso dos atores. Era um texto aberto à introdução de textos clássicos, aos quais se
acrescentava o humor. Também eram utilizadas notícias da atualidade da época, que
podiam acrescentar conteúdo pertinentes e facilmente assimilados pelos espectadores.
A Comédia Dell’ Arte usava expressões verbais proibidas. A linguagem popular era
frequente e caracterizava-se por palavras extensas e complexas. Como não se escreviam as
falas das personagens, o texto “não dito” era improvisado pelos atores, em cena,
juntamente com as ações das personagens.
Como já foi referido, os guiões continham apenas algumas indicações relativas à sequência
dos acontecimentos, possibilitando aos atores uma grande liberdade artística.
Proveniente desta liberdade, era criado um ambiente de grande interação e contacto com o
público, que acabava por induzir bem-estar e à vontade na assistência. A improvisação era
essencial pois permitia que os atores se adaptassem a diferentes tipos de público. Havia um
reportório de situações de que os atores faziam uso, nos momentos certos, durante as suas
performances, dando a impressão de que tudo estava a ser improvisado. Estas
“improvisações” nasciam muitas vezes de situações vividas pelo povo italiano, de modo a
que o público facilmente se identificasse com os espetáculos.
Os encontros amorosos eram o tema mais abordado nestas peças, onde personagens,
inicialmente tidas como sérias, iam gradualmente revelando, um lado cada vez mais
cómico. Apesar de se recorrer ao improviso, era essencial o cumprimento das poucas
designações presentes nos guiões, para que os atores tivessem, no mínimo, indicações de
entradas e saídas de cena.
Contrastando com a estrutura da comédia clássica, que dividia as peças em cinco atos, as
peças de Comédia Dell’ Arte eram constituídas apenas por três atos. A partir de então, e até
ao século XVIII, tornou-se mais usual utilizar, em peças de comédia, esta nova estrutura. No
primeiro ato eram desvendadas as inconstâncias da vida das personagens e no segundo
ato era apresentado o climax das aventuras anteriormente reveladas. No terceiro ato
apareciam, muitas vezes, mais obstáculos à cena, terminando sempre com um final feliz
onde as inúmeras peripécias eram finalmente resolvidas.

A Commedia Dell’ Arte nos dias de hoje


O modelo da Commedia Dell’ Arte na dramaturgia e na encenação, continua a ser
operacional nos dias de hoje. Esta vertente do teatro acabou por servir de inspiração a
outros tipos de arte e entretenimento como o cinema, o circo e também a televisão.
A Commedia Dell’ Arte ajudou a comprovar a possibilidade de criação de espetáculos a
partir de improvisações e as suas personagens são relembradas até hoje.
Mais dos que isso, são ainda reproduzidas através de diferentes modalidades artísticas, o
que mostra que este género do teatro, criado há seis séculos, continua a ter influência na
atualidade.
A Commedia Dell’ Arte criou o conceito de representar a comédia pela comédia, numa
ótica de pura diversão, sem preocupação com a crítica ou o bom gosto. É, muitas vezes,
neste género teatral que o teatro popular ou, mais recentemente, o circo com os seus
clowns, se inspiram, mantendo uma estética que facilmente se reconhece.
Cada personagem possui um objetivo bem claro. Os enamorados só possuem olhos um
para o outro. Dentre os patrões, Pantalone representa os mercadores, tendo como
obsessões dinheiro e sexo. Tartaglia é o estereótipo do funcionário público velho que
deseja se casar com uma jovem. Dottore faz referência aos intelectuais, tendo como
principais características os longos discursos e o apetite voraz. Capitano retrata o poder
militar, sendo caracterizado como estrangeiro conquistador e viajante de terras longínquas.
O chamado Zanni é quem dará origem a todos os servos.
Arlecchino é o mais conhecido. Está sempre com fome e, apesar de preguiçoso, é ágil e
trapalhão. Brighella é o brigão e mentiroso, que tenta fazer os outros trabalharem para ele.
Outros personagens que foram criados posteriormente são a Pascuela, que representa a
sabedoria ancestral e lembra uma bruxa, e Aragonda, uma servente que usa a beleza para
conseguir vantagens pessoais.

Formação e treino do ator


Na primeira fase da commedia dell´arte, os atores já desenvolviam técnicas corporais e
vocais específicas para captar a atenção do público na rua. Há uma codificação do corpo
que permite reconhecer facilmente cada personagem, as quais foram usadas ao longo da
história da commedia dell´arte e ainda são usadas como ponto de partida por grupos
contemporâneos
Para Buldrini e Cianfagna (2014), a voz é um elemento essencial para a criação do
personagem. O processo de descoberta da voz adequada, contudo, está estritamente
ligado à pesquisa corporal. Como citado anteriormente, determinadas posturas terão como
consequência a colocação da voz em diferentes caixas de ressonância corporal. Um
exercício utilizado por Buldrini e Cianfagna (2014) para iniciar essa construção corporal
explora o caminhar do personagem segundo a codificação de cada um.
Os atores devem caminhar pelo espaço sendo “puxados” por uma determinada parte do
corpo – peito (Capitano), quadril (Pantalone), barriga (Dottore) e glúteos (Aragonda). Esse
caminhar deve ser sempre em linha reta e triangulando quando for necessário mudar a
direção. O ator gira primeiro só a cabeça para a nova direção que pretende ir, volta a
cabeça para o público, indicando assim que irá para aquela direção, e só então, volta a
cabeça para essa nova direção seguida da virada do corpo a partir da parte que está sendo
trabalhada para iniciar a caminhada.
Para manter a atenção do público, outro ponto de grande ênfase na pesquisa prática deve
ser na expansão corporal dos atores. Por ter surgido no espaço da rua, a commedia
dell´arte exige um nível energético muito elevado dos seus atores e uma atenção
redobrada aos acontecimentos externos ao espetáculo, os quais podem dar margem para
improvisações cômicas. Para alcançá-lo, devem ser feitos exercícios aeróbicos intensivos.
Brincadeiras infantis são excelentes opções para esse fim, tais como pular corda em grupo,
jogar peteca, cabra-cega, polícia e ladrão. Além de ajudarem no preparo físico do ator,
esses exercícios elevam a energia corporal, aumentam o nível de atenção externa e
concentração, elementos que são imprescindíveis para manter um espetáculo de commedia
dell´arte até o fim. Vale ressaltar, no entanto, que é preciso ser intensivo porém leve. O
caminhar dos atores precisa ser amortecido pelos joelhos. O pisar deve ser leve, evitando
assim barulho no assoalho, pois muitas cenas são de correria entre os personagens. A falta
desse controle, pode levar a uma cena suja e a desperdício de energia.

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