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UFRN

Sociologia do trabalho
Cesar Sanson

O trabalho em Sennett

O mundo do trabalho está em reviravolta. A evolução das forças produtivas manifesta na


Revolução Tecnológica associada ao ataque aos direitos conquistados pelos trabalhadores
sofrem profundas alterações. A velha ética no mundo do trabalho está sendo substituída por
outra ética.

A ‘velha ética’ do trabalho

Algumas características subjacentes a essa ‘ética do trabalho’, forjada durante


aproximadamente dois séculos, poderiam ser sintetizadas a partir dos seguintes aspectos:

Primeiro, o trabalho é o elemento central que permeia o conjunto das instituições. As pessoas
tentavam provar o seu valor pelo seu trabalho.

Segundo, o não-trabalho configura uma caracterização identitária de constrangimento para


quem não o tem.

Terceiro, a sociedade do trabalho industrial se dá em torno da figura do homem, é a ele que


cabe o provento da família, à mulher é relegada uma posição subalterna – essa compreensão
tem implicações éticas importantes.

Quarto, se estabelece uma relação de classe social. Os trabalhadores têm satisfação de sua
posição social, se reconhecem como operários e estabelecem laços de solidariedade, o que
permite o surgimento dos sindicatos.

Quinto, é comum a identificação perene com um determinado tipo de ofício, de profissão. A


profissão marca o trabalhador, uma vez exercendo determinada atividade, para sempre a
exerce.

Sexto, o trabalho não é intermitente, ele se faz de maneira continuada, segura, e geralmente
em um mesmo local, na mesma fábrica.

Sétimo, em função do tempo – anos – em que convivem juntos em uma mesma planta
industrial, se constroem laços de fidelidade, companheirismo, amizade e lealdade entre os
trabalhadores. A competitividade entre os operários, a disputa por espaço e ascensão
profissional é reduzida.

Oitavo, a recompensa para uma ‘vida de trabalho’ é a aposentadoria. “Na ‘velha ética’ do
trabalho afirma-se o uso autodisciplina do tempo e o valor da satisfação adiada (poupar)”.
Pode-se falar, portanto em uma meta-narrativa da condição social de trabalhador no período
posterior a Revolução Industrial.

Os ‘novos’ valores do novo mundo do trabalho

Com o surgimento da Revolução Informacional vai se desenhando novas relações de trabalho


Essa nova forma ainda não é hegemônica, mas podemos afirmar que aí se encontram os
elementos inovadores que indicam um caminho estruturante do porvir das relações de
trabalho na sociedade.

Anteriormente o trabalho era caracterizado por um processo padronizado, sintetizado no que


se denominou de fordismo, na qual se exigia um trabalhador especializado em sua função e a
produtividade era alavancada pela somatória das performances individuais. Não se exigia,
desse trabalhador, o envolvimento com o processo produtivo e tampouco eram exploradas
suas aptidões intelectuais. Os trabalhadores eram compreendidos apenas como numerários e
a sua relação com a empresa findava com a jornada de trabalho diária.

Hoje, busca-se uma organização social do trabalho flexível. As características presentes neste
novo modelo de organização do trabalho são a desespecialização do trabalhador, o trabalho
integrado, a obsessão pela qualidade e o aumento exponencial da produtividade. O ‘chão de
fábrica’ tornou-se menos assimétrico e mais horizontal.

A novidade maior é a criação de protocolos organizacionais que buscam um envolvimento


integral do trabalhador com o processo produtivo. Agora, já não basta um trabalhador
convencional que cumpra apenas sua jornada de trabalho e ponto final. O que se exige é um
trabalhador que ‘vista a camisa’ da empresa, que a incorpore em sua vida, e a ela dedique o
melhor de suas energias: físicas e intelectuais. Requer-se um trabalhador que se transforme
em um colaborador, que se dispa da sua primariedade de mão-de-obra servil e sinta-se ‘sócio’.

Há uma busca pelo consentimento do trabalhador à lógica da empresa. Essa nova modalidade
de relações de trabalho incorpora aspectos da captura da subjetividade operária, do lúdico e
de uma nova linguagem não apenas verbal, mas inclusive corporal.

Para onde foi essa ética no novo mundo do trabalho?

A percepção que se tem é que sob a perspectiva ética, a Revolução Informacional bagunçou
tudo. A vida do trabalho perdeu sua narrativa linear. Richard Sennett, destaca algumas
características que denotam novos valores subjacentes a nova lógica do trabalho.

A deriva

Um primeiro aspecto, destacado pelo autor, é a ‘deriva’. A nova maneira de organizar o tempo
de trabalho é que se acabou o ‘longo prazo’. No trabalho, a carreira tradicional está
fenecendo. Está se mudando o próprio sentido de trabalho, onde o ‘emprego’ está sendo
substituído por ‘projetos’ e ‘campos de trabalho’. Não há longo prazo “é um princípio que
corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo, pois, esses laços levam tempo para
surgir. Portanto, o esquema de curto prazo das instituições modernas limita amadurecimento
da confiança informal.

As redes institucionais se caracterizam pela ‘força de laços fracos” A questão que surge aqui é:
“Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se
podem manter relações sociais duráveis? As condições da nova economia alimentam, ao
contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego.
O capitalismo de curto prazo corrói o caráter da pessoa humana, sobretudo qualidades de
caráter que ligam os seres humanos uns aos outros”.

O fantasma da inutilidade: São três as forças que configuram a moderna ameaça do fantasma
da inutilidade:
- a oferta global da mão-de-obra;

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- a automação;
- a gestão do envelhecimento;

A oferta global da mão-de-obra: O capitalismo sempre vai em busca de mão-de-obra mais


barata (meia verdade). Nem todos podem incrementar o seu capital humano, poucos podem
fazê-lo e aqui surge a angustia que podem ficar de fora de um mundo inatingível.

Automação: O medo que as máquinas substituam o trabalho humano. As máquinas de que


hoje dispomos são capazes de poupar trabalho em todos os terrenos. Aqui o reino da
inutilidade vai se expandindo cada vez mais.

Envelhecimento: As organizações tendem a tratar os empregados mais velhos como pessoas


acomodadas; lentas, com pouca energia. Aqui também surge o tema da “extinção de
capacitações”. A capacitação não significa um bem durável. O ideário do menosprezo da
experiência. A necessidade de abrir mão, de desistir da posse de uma realidade estabelecida. A
experiência vai perdendo valor. A automação é indiferente à experiência.

A rotina

Um segundo aspecto, destacado por Sennet, é o da ‘rotina’. “A sociedade moderna está em


revolta contra o tempo rotineiro, burocrático. A rotina pode degradar, mas também proteger;
pode decompor o trabalho, mas também compor uma vida’. Hoje, no novo mundo do
trabalho, ganha centralidade a necessidade de indivíduos flexíveis, que estejam sempre a
disposição da lógica do mercado. O tempo racionalizado permitia que os indivíduos
encarassem suas vidas como narrativas – expectativas com o devir. O tempo racionalizado
afetava profundamente a vida subjetiva: firmeza de propósitos, a vida como uma escada.

Desenjaulados

O séc. XX virou três novas páginas: Primeiro – houve nas grandes empresas a mudança do
poder gerencial para o acionário; Segundo - Agora esses investidores dotados de poder
querem resultados a curto prazo e não a longo prazo, trata-se do capital impaciente.
Terceiro – A jaula de ferro enfrenta o desafio da revolução tecnológica – a radical mudança, do
ponto de vista do tempo, inaugura-se a instantaneidade. “Uma grande ironia é que, ao livrar-
se da jaula de ferro, ele serviu apenas para reinstituir traumas sociais e emocionais numa nova
forma institucional”.

A flexibilidade

A flexibilidade, é o outro aspecto destacado pelo sociólogo. Ser flexível, significa aqui se
adaptar a circunstâncias variáveis. “O sistema de poder que se esconde nas modernas formas
de flexibilidade consiste em três elementos: a) Reinvenção descontínua de instituições: em
nome da maior produtividade, a nova engenharia significa fazer mais com menos; b)
Especialização flexível: é por, cada vez mais rápido, produtos variados no mercado, a partir da
demanda do consumidor; c) Concentração do poder sem centralização: é uma maneira de
transmitir a operação de comando numa estrutura que não tem mais a clareza de uma
pirâmide. Uma maneira de se compreender como os três elementos do regime flexível se
juntam está na organização do tempo no local de trabalho – é o chamado ‘flexi-tempo’. A
estrutura de caráter que surge neste complicado regime moderno é a seguinte: as pessoas são
livres, mas é uma liberdade amoral (sem finalidade); possuem uma capacidade de desprender-
se do próprio passado, não ficando paralisados ou apegados a uma determinada forma de
trabalho ou produto”.

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Nas velhas corporações, a produção apenas ocorre através de um conjunto preestabelecido de
atos. Numa organização flexível a seqüência pode ser alterada a vontade – essa nova forma
produtiva altera a organização do trabalho. O que mais cresce é a modalidade de
trabalhadores contratados de curta duração. Em termos sociais o trabalho de curto prazo por
tarefa altera o funcionamento do trabalho em conjunto. A instituição do trabalho em grupo –
autonomia para atingir metas, cumprir as demandas, estimulação da competitividade. O
sistema de trabalho gera estresse e ansiedade entre os trabalhadores, ansiedade e medo. Gera
ainda desigualdade, defasagem salarial, competição, eliminação de camadas intermediárias,
centro x periferia.

Autoridade e controle - Autoridade suscita a obediência voluntária; seus subordinados


acreditam nela. Hoje onde está a autoridade? - o compromisso com a organização,
vivenciando os seus problemas e que possa dar testemunho do esforço dos que estão abaixo?
Crise de legitimidade; Três déficits sociais: A nova realidade do capital gerou: 1 – baixo nível de
lealdade institucional; 2 – diminuição da confiança informal entre os trabalhadores; 3 –
enfraquecimento do conhecimento institucional.

A ilegibilidade

Um quarto aspecto é da ilegibilidade. “Com as novas tecnologias, o trabalho não é mais legível
no sentido de entender o que se faz. Um padeiro disse: ‘em casa faço pão, aqui aperto botões’.
É a realidade expressa por Marx, quando falava de alienação: ‘ação pela qual um indivíduo,
grupo se tornam alheios, estranhos, alienados aos resultados de sua própria atividade’.
Algumas conseqüências deste quadro de trabalho flexível: a) pode-se contratar trabalhadores
com menor salário, pois não são mais esses que possuem as qualificações, mas sim, as
máquinas; b) Diminui-se a dificuldade do trabalho e a atividade dos funcionários se torna
acrítica e indiferente”.

O risco

O ‘risco’ é outra característica do novo mundo do trabalho. “No novo capitalismo tudo se
concentra no momento imediato, onde a experiência cumulada é tida como de pouco valor. O
risco vai se tornar uma necessidade diária, pois a instabilidade das organizações flexíveis
impõe aos trabalhadores a necessidade de correr riscos. Psicologicamente, ‘estar em risco’ é
inerentemente. As pessoas de meia-idade são as que mais sofrem com esse quadro. Como
isso reflete no caráter? É o medo da passagem do tempo. Com o passar dos anos a pessoa se
sente ‘ultrapassada’. E o preconceito social ao ‘mais velho’ reforça o medo interior de perder a
potência. É a lei do: somos o que fazemos”.

O fracasso

Finalmente, destaca, o elemento do ‘fracasso’ como um dos aspectos presentes no novo


mundo do trabalho. Pergunta Sennett, “como se sentem os demitidos”? Segundo a narrativa
do autor, no início, se sentiam vítimas passivas da empresa, num segundo momento culpavam
a economia global, e por último, expressavam o fracasso pessoal com a carreira, de não terem
tomado esta ou aquela decisão no decorrer da carreira.

A moderna ética do trabalho

R. Sennett, destaca ainda que a ‘moderna ética’ do trabalho concentra-se no trabalho de


equipe. Aqui, enfatiza-se a responsabilidade mútua, o tempo flexível, voltado para tarefas

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específicas de curto prazo. O novo papel do líder é facilitar uma solução e fazer a mediação
entre o cliente e a equipe. Neste caso, a pressão dos outros membros da equipe toma o lugar
do chefe, os trabalhadores responsabilizam uns aos outros. Essa ausência de autoridade deixa
livres os que estão no controle para mudar, adaptar, reorganizar, sem justificar-se.

Esse jogo de poder sem autoridade na verdade gera um novo tipo de caráter. Em lugar do
homem motivado, surge o homem irônico. A clássica ética do trabalho de adiar a satisfação e
provar-se pelo trabalho árduo dificilmente pode exigir nossa afeição. Mas tampouco o pode o
trabalho em equipe, com suas ficções e fingimentos de comunidade. Pois, a empresa não é
uma família, ela precisa do seu trabalho e não de você.

A aguda percepção de Sennett é a de que no ‘novo mundo do trabalho’ há uma ‘corrosão do


caráter’, ou seja, a construção identitária que se construiu em torno do trabalho durante quase
dois séculos está se esvaindo. Em seu lugar surge uma ‘ética’ descompromissada com o outro
e com o lugar social.

A competitividade

Há ainda outro elemento chave na percepção da mudança do padrão cultural no mundo do


trabalho. Trata-se da categoria competitividade. A categoria da competitividade foi subtraída
da Revolução Informacional. Na nova ordem internacional produtiva, o que conta é capacidade
de se agregar tecnologias. São elas, que no processo produtivo tornam as empresas
competitivas, pois permitem, entre vários aspectos, extraordinários ganhos de produtividade,
racionalização no processo produtivo e criação de redes interativas em todo o mundo para
ubiqüar seus produtos e produzi-los mais baratos.

A competitividade, uma categoria afeta até então apenas ao mundo dos negócios, vai aos
poucos se tornando também um valor cultural, que vai sendo assimilado pelo conjunto dos
trabalhadores e trabalhadoras. Sendo assim, a norma que rege o mercado de trabalho hoje é a
da competitividade. O importante hoje é ser competitivo. Trata-se superar o outro para se
conquistar o seu espaço. Acompanham o valor da competitividade outros aspectos, como o da
indispensável qualificação. Trata-se do discurso da imprescindibilidade do estudo. Todos são
exortados a adquirirem o máximo de títulos possíveis como se estes fossem o passaporte para
um bom emprego.

Referência bibliográfica:

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. Conseqüências pessoais do trabalho no novo


capitalismo. São Paulo: Ed. Record, 1999.

_______________. A cultura do novo capitalismo. São Paulo - Rio de Janeiro: Record, 2006.

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