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Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia
23 | 2015
Número 23
Resumos
Português Français English
No presente artigo, pretendemos comparar o pensamento de F. Boas e A. Kroeber, elucidando seu
esquema geral de análise, buscando os elementos geográficos de seu pensamento e destacando
alguns aspectos que serão absorvidos por Carl Sauer em sua geografia cultural. Além disso,
procuramos demonstrar as inter-relações presentes entre o pensamento de Ratzel, os seus
desdobramentos na antropologia historicista de Boas e, finalmente, a construção da ideia de
superorgânico de Kroeber.
Dans cet article, nous comparons la pensée de F. Boas et A. Kroeber, pour démontrer le schème
générale de l’analyse de ce deux auteurs et les caractéristiques géographiques de sa pensée, aussi
bien que les éléments qui seront absorbés par Carl Sauer dans sa géographie culturelle. Nous
essayons de démontrer les relations entre la pensée ratzelienne, sa influence dans l’anthropologie
empiriste de Boas, pour enfin voir la construction de l'idée de superorganique dans la pensée de
Kroeber.
In this article, we compare the thought of F. Boas and A. Kroeber, elucidating its general scheme
of analysis, seeking the geographical features of his thinking and highlighting the elements that
will be absorbed by Carl Sauer in his cultural geography. Furthermore, we tried to demonstrate
the interrelationships between Ratzel’s thought, its influence in the context of Boas empiricist
anthropology and, finally, the construction of the idea of superorganic Kroeber.
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
Index de mots-clés : Boas, Kroeber, Culture e Superorganique.
Index by keywords: Boas, Kroeber, Culture, Superorganic.
Índice de palavras-chaves: Boas, Kroeber, Cultura e Superorgânico.
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Créditos: ac-nancy-metz.fr/Sitehistarts/docs
1 Na geografia brasileira, a chamada geografia cultural ganhou notoriedade,
principalmente na década de 1990, quando, de um lado, despontava uma onda de
desvalorização da teoria marxista e, de outro, uma curiosidade crescente pela geografia
humanística. Naturalmente, após a difusão dessas novas ideias, nasce o interesse em
conhecer as origens da geografia cultural, contudo, existiu um debate muito limitado
sobre o diálogo profícuo entre geografia e antropologia que se iniciou com o
pensamento de Ratzel e que produziu muitos paralelismos e situações de contato entre
ambas disciplinas. No presente artigo, pretendemos esboçar alguns pontos importantes
para compreender como ocorreu o debate entre geografia e antropologia através do
diálogo entre Alfred Kroeber e Carl Sauer, os quais, influenciados pelo pensamento de
Franz Boas e seu antigo mestre F. Ratzel, acabaram moldando o surgimento da
chamada geografia cultural.
2 Atualmente, a geografia cultural é frequentemente considerada como um ramo da
geografia humana, mas que, no momento de seu surgimento, era um projeto ambicioso
equivalente à geografia humana francesa, do início do século XX, liderada por Paul
Vidal de la Blache. Sauer considera muito importante a materialidade específica de cada
segmento de área ou paisagem, e, inspirado pelo caso alemão, define a geografia
cultural a partir de elementos da antropogeografia de Ratzel, conjuntamente ao projeto
pautado no conceito de paisagem, proposto por Schlüter, e no enfoque na diferenciação
de áreas ao modo de Hettner.
3 Além disso, ao se consultar seu texto célebre A morfologia da paisagem (SAUER,
1963), fica evidente o uso do método morfológico para a análise das formas na
paisagem, bem como a ampla cultura geográfica que Sauer move, recuperando o
próprio Vidal de la Blache e indo até a antiguidade, destacando as semelhanças de seu
projeto disciplinar com o da geografia de Heródoto. Além dessas influências, é preciso
evidenciar uma interpretação de que a geografia de Sauer pode ser vista como uma
espécie de síntese da geografia alemã, no início do século XX, uma vez que ela incorpora
elementos de Schlüter, Hettner e Ratzel – mesmo que, a respeito deste último, ele
privilegie um viés mais antropológico, deixando de lado um legado vinculado ao projeto
político do Estado germânico.
4 Para Sauer, a materialidade é consequência da cultura como uma entidade supra-
orgância, ou seja, independente da sociedade e dos indivíduos que a compõem. Essa
concepção foi adotada da antropologia norte-americana, marcada pelo pensamento
filosófico alemão e pelo próprio pensamento geográfico, que, no caso norte-americano,
teve forte influência de Franz Boas, antigo discípulo de Ratzel. Com base nessa
concepção de cultura, oriunda da antropologia, temos sua famosa frase: “cultura é o
agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado” (SAUER, 1963, p. 343).
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Sauer identifica o fenômeno cultural como um recorte espacial delimitado em
determinado período histórico, tendo ele uma dinâmica clara: uma determinada cultura
surge, se difunde, evolui e padece. Assim como o Estado nacional para Ratzel, a área
cultural, para Sauer, também é vista metaforicamente como um organismo vivo.
5 O objetivo deste artigo é tentar clarificar a intensa ilação estabelecida entre geografia
e antropologia no momento de surgimento da geografia cultural, observando como
alguns aspectos desses debates dos campos do conhecimento se entremearam.
Buscamos enfocar, mais precisamente, os conceitos de área cultural e a cultura como
elemento superorgânico que, apesar de debatidos em meados do século XX, no campo
da geografia, ficaram por um longo tempo sem discussão sobre seus fundamentos
básicos. Ou seja, no tocante à geografia cultural norte-americana ligada a Carl Sauer,
surge uma crítica radical à ideia de cultura supraorgânica somente em 1980, quando é
publicado o contundente artigo de James Duncan (2003, versão traduzida para o
português).
6 Na primeira parte do trabalho, situaremos alguns aspectos das origens da visão de
cultura no pensamento alemão, esclarecendo características desenvolvidas por Ratzel,
Hettner e Schülter. A seguir, veremos as contribuições de algumas concepções de Franz
Boas sobre a antropologia, para finalmente analisar as origens e fundamentos do
superorgânico de Kroeber, sendo este último um antropólogo que manteve longa
proximidade pessoal e profissional com Carl Sauer. Além das fontes de influência em
comum, é justamente Krober quem inspira Sauer a utilizar a ideia de supraorgânico,
por ele elaborada, para a compreensão do fenômeno cultural.
7 A discussão proposta por Kroeber pode ser aparentemente obsoleta se vista com o
olhar de nosso tempo, no entanto, as críticas a sua proposta feitas no âmbito do campo
da antropologia foram pouco incorporadas ou analisadas pela geografia cultural. Daí
ocorre a grande estagnação mencionada acima, que só finda com os apontamentos de
Duncan. O resultado disso é um lapso acerca do debate de cultura que, de um lado, foi
substituído pelas reflexões baseadas na fenomenologia – com o desenvolvimento da
chamada geografia humanística, principalmente sua corrente fenomenológica –, e, de
outro, significou um distanciamento das discussões sobre cultura. Posteriormente, nos
Estados Unidos, alguns geógrafos ligados ao existencialismo, ao marxismo e ao
pensamento gramsciano1 engendram sangue novo ao debate acerca da cultura, em um
período que recobre o último quartel do século XX. Contudo, muitas das questões
levantadas por Kroeber não foram especificamente debatidas na geografia, uma vez que
o foco se manteve, em grande parte, na crítica ao superorgânico. Como buscaremos
demonstrar no final do texto, para alguns autores o supraorgânico ainda está ativo
como uma explicação possível na teoria social, mesmo que ele não utilize mais este
nome explicitamente.
11 Cabe esclarecer que, na virada do século XIX para o XX, o chamado romantismo
alemão, corrente filosófica ligada a Herder, perdeu parcialmente sua força em
detrimento de uma mentalidade modernizadora e pragmática, a qual visava lançar a
Alemanha como grande potência. Nesse período de grande difusão do darwinismo, a
biologia era vista como a ciência que gozava de maior prestígio, o que queria dizer que
quanto mais semelhante à biologia, mais cientificidade determinado campo de
conhecimento teria3. Tal reação se demonstra clara na postura de O. Peschel, que critica
Ritter, vinculando-se ao darwinismo, ao positivismo e introduzindo o ponto de vista
morfológico na geografia. Entretanto, apesar dessas preocupações, Peschel não
abandona o uso do método comparativo elucidado por Ritter, propondo uma
morfologia comparada (OLIVEIRA, 2012, 123-125).
12 Ratzel, uma geração antes de Peschel, se preocupou com a modernização científica da
geografia e se relacionou profundamente com o darwinismo, conservando, porém,
elementos do romantismo alemão, principalmente no final de sua vida, segundo o
estudo de Oliveira (2012, p. 130). Comumente, se pensa que Carl Sauer foi o fundador
da geografia cultural, mas ele próprio diz não estar evidenciando nenhum tema novo,
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pois “Ratzel […] considerava sua Antropogeographie mais que um estímulo e uma
introdução a uma geografia humana que devia fundamentar-se em um estudo da
cultura” (SAUER, 2000, p. 102). Além das premissas lançadas nessa obra, Ratzel ainda
se destaca nos estudos sobre a “mobilidade populacional, [a]s condições de
assentamento humano e [a] difusão da cultura por meio das vias principais de
comunicação” (SAUER, 2000, p. 101).
13 Claramente, Sauer evoca Ratzel para legitimar e dotar o seu projeto de ciência de um
argumento de autoridade. De acordo com Barros (2012), Ratzel foi profundamente
influenciado por uma viagem aos Estados Unidos, onde se interessou pelos processos de
adaptação das populações chinesas ao novo mundo. Uma vez que a geografia estava em
lenta decadência devido ao desgaste do prestígio da obra de Ritter, Ratzel surge no final
do século XIX com a aplicação inovadora do darwinismo como uma metateoria
explicativa da geografia do mundo. O homem para sobreviver deve se adaptar e se
apropriar de seu meio natural e o resultado desse processo é uma alteração profunda da
natureza e do próprio homem, uma vez que a dispersão dos grupos humanos causa a
diferenciação espacial e social, de forma semelhante ao processo de especiação animal,
como colocada por Darwin.
14 Ratzel, no entanto, foi influenciado por Mortiz Wagner, que acabou por admitir a
seleção natural de Darwin, mas não descartou as explicações de Lamark, ou seja, quanto
maior o uso de determinada parte ou característica do organismo, maior o seu
desenvolvimento na espécie em questão. Além disso, a herança adaptativa de usos e
desusos seria transmitida entre as gerações (BARROS, 2012). A partir dessa herança,
surge um viés interpretativo difusionista, ou seja, de que o homem migra e carrega
consigo uma experiência que pode ajudar ou dificultar a relação com o próximo meio
que ele entrará em contato. A difusão explicaria, por exemplo, porque em tão pouco
tempo os Estados Unidos seriam industrializados, uma vez que os migrantes utilizam
das técnicas industriais para sua sobrevivência. Neste ponto, o legado de Ritter se faz
presente, pois Ratzel considera os pontos de interação entre os continentes como
possibilidades de difusão e transformação cultural.
15 No entanto, um só meio geográfico poderia dar origem a múltiplos padrões culturais
e Ratzel, em claro diálogo com a ecologia, se questiona como o meio pode provocar
migrações, influenciar costumes e artefatos culturais, ao mesmo tempo em que a
cultura expressa claramente a delimitação de uma área central (core), a partir da qual a
difusão ocorre (BARROS, 2012).
16 Ratzel não se limitou a fazer análises culturais apenas para sua Antropogeographie,
mas as aplicou ao estudo da geografia política. Ele estava empenhado em uma geografia
para a consolidação do Estado alemão, porque “a Geografia e a Etnologia Alemã
receberam grande estímulo pelo processo de unificação nacional, em 1870” (HOEFLE,
2007, p. 17).
17 Sua proposta não se limita somente à unificação territorial e à eliminação dos traços
feudais arcaicos, pois ele propõe um leque de reflexões e opções para o estabelecimento
de um império alemão, com sua geografia inspirada no darwinismo e na analogia do
estado como um organismo vivo. É importante relembrar que o espaço vital (ou
Lebensraum), surge na sua obra Geografia política. Mesmo que um tanto dissociadas
em alguns momentos, suas análises culturais podem ser analisadas como
complementares à ótica do imperialismo de um país que havia chegado tardiamente na
corrida colonial.
18 Nesse contexto, os povos nômades, as organizações tribais, as ditas sociedades
primitivas, são comparadas a organismos menos complexos que tendem a ser
absorvidos por organismos mais complexos (RATZEL, 1987, 90-125). Uma dicotomia
interessante é a divisão de povos com e sem Estado, e o enfoque na competição como
elemento preponderante da evolução da vida. Tais aspectos serão criticados por
geógrafos anarquistas – E. Reclus, L. Metchnikoff e P. Kropotkin. Portanto, o
conhecimento etnográfico consistiu uma fonte importante de dados para as reflexões de
Ratzel, sendo que as ditas sociedades primitivas reportavam às formas elementares do
Estado:
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A maior parte dos sociólogos estudam o homem como se ele fosse formado no ar,
sem ligações com a terra. O erro desta concepção salta aos olhos,
verdadeiramente, para tudo o que se refere às formas inferiores da sociedade,
porque sua extrema simplicidade os faz relembrar as formas mais elementares do
Estado (RATZEL, 1987, p. 203; tradução nossa).
19 Para este autor, não existe um Estado sem território e sem fronteira, e, justamente
através das formas elementares do Estado, é possível compreender melhor as relações
entre o homem e seu solo (RATZEL, 1987, p. 203). Ratzel utilizava uma espécie de
método comparativo – certamente ecoando Ritter –, contrapondo situações geográficas,
políticas e “morais” dos povos de diversas partes do globo. Sua classificação desses
agrupamentos humanos, bem como as reflexões da Antropogeographie foram de
grande interesse para os antropólogos que “utilizaram amplamente suas análises de
difusão da cultura, [enquanto] os geógrafos ocidentais consideraram Ratzel somente
como ambientalista” ou determinista (SAUER, 2000, p. 102). Destaca-se ainda sua obra
Völkerkunde, que “apresenta ambiciosa etnologia espacializada do mundo, ricamente
documentada e ilustrada” (HOEFLE, 2007, p. 16). Ratzel seria um dos precursores do
difusionismo alemão, propondo “uma extensão espacial do Evolucionismo, uma vez que
tenta explicar como inovações tecnológicas e sociais disseminadas entre povos (...)
aceleram o ritmo da evolução cultural” (HOEFLE, 2007, p. 16). Esse talvez seja um dos
primeiros contatos ou uma das primeiras bifurcações entre a geografia moderna e a
antropologia.
20 Entretanto, se Ratzel adotou aspectos do positivismo e profundamente o darwinismo,
a geração seguinte seria marcada por uma crítica intensa à essa primeira corrente de
pensamento:
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e vai gradualmente transpondo o método morfológico do estudo da natureza – mais
especificamente, das formas do relevo e de fisionomia das plantas – para o estudo da
sociedade. Mesmo que ele admita que natureza e sociedade são elementos distintos, o
método morfológico se aplica para o estudo das formas naturais e culturais. As origens
genéticas de tais formas têm explicações e causas completamente distintas, entretanto,
sua análise resulta em uma noção de estrutura que sintetiza o objeto analisado.
Ressalta-se que o pensamento de Emmanuel de Martonne faz o mesmo movimento,
transpondo a observação morfológica do relevo para a descrição e a explicação das
formas do tipo de ocupação humana, encobrindo detalhadamente o sítio e seguindo
para sua a situação. O resultado desse caminho explicativo também é uma ideia de
estrutura (PEDROSA, 2013, p. 44-70)5.
24 Tal similitude nos espanta, não só pelo referido fato ter ocorrido em duas escolas
nacionais diferentes, mas, também, por estar presente aí, a possibilidade do início de
um processo de sofisticação dos instrumentos da análise e teorias da geografia. No caso
francês, a concepção de E. de Martonne foi transmitida para A. Cholley, que, por sua
vez, influenciou toda uma geração, que incluía Jean Dresch, Pierre George e Jean
Tricart (PEDROSA, 2013). Cabe relembrar que Lévi-Strauss, por exemplo, declarou em
várias ocasiões que sua concepção de estrutura, que não possuiu uma conotação visível,
foi inspirada pelas estruturas geológicas. Mesmo que tal argumento careça ainda de
maior investigação, evidenciamos que talvez essa seja uma comparação importante
acerca do desenvolvimento do pensamento geográfico e das ciências sociais.
25 Dito isso, a principal disputa de Hettner e Schlüter recaía sobre a definição estrita do
objeto da geografia, abrangendo, também, suas diferentes posições gnosiológicas.
Apesar de ambos os autores serem influenciados pelo neokantismo, Schlüter tinha
clareza que não era possível tratar natureza e cultura como um mesmo tipo de
conhecimento (SEEMAN, 2004). Além disso, Schlüter queria se ater ao visível,
enquanto Hettner via a necessidade explicativa de debater a essência de fenômenos que
se desdobravam para além do visível, seja acerca de fenômenos sociais (espirituais
como eram chamados na época), que não são evidentes simplesmente pela observação,
sejam nas delimitações mais abstratas de recortes regionais (ETGES, 2012, p. 50-55). O
objetivo de Hettner era justamente diferenciar as áreas sem excluir a paisagem, mas
Schlüter continuava limitado à paisagem ao visível e à dimensão fisionômica (ETGES,
2012, p. 52-55).
26 Carl Troll (1997, p. 3), em um célebre balanço do pensamento geográfico alemão, diz
que a paisagem é um “conceito da geografia regional e comparativa” mesmo que nem
sempre sua definição tenha sido clara. Troll (1997, p. 2) ressalta que a paisagem tem
uma dimensão formal ou fisionômica e uma dimensão funcional ou fisiológica, todavia,
até 1950, não era clara a distinção entre área e paisagem. De maneira similar à definição
feita acima por Troll, Sauer tentou conciliar as concepções de área e paisagem de
maneira integrada, mesmo que a morfologia e a observação do visível continuassem a
ter um peso importante em sua obra6. Sua reação contrasta com a postura de Richard
Hartshorne que, consolidando uma interpretação do pensamento de Hettner, exclui
completamente a paisagem, privilegiando a área como força motriz de uma geografia
que tem por definição a diferenciação de áreas da superfície terrestre.
27 Sauer, por sua vez, encara a paisagem através da morfologia, como já dissemos, mas
não se esquiva da contribuição de Hettner para o desenvolvimento de uma geografia
regional, apesar de a cultura ser um fator importante para sua delimitação. Neste
momento, a ideia de áreas culturais como recorte de uma determinada sociedade em
um meio geográfico, o auxilia na edificação de sua geografia cultural, implicando, desta
forma, no aprofudamento do seu diálogo com a antropologia.
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determinismo fatalista, que nos Estados Unidos teve força intelectual significativa
desde os primeiros momentos de institucionalização da geografia. Tal projeto
intelectual vai ser retomado por Sauer a partir da obra de Kroeber, que também oferece
subsídios para uma crítica ao evolucionismo, de modo a fazer oposição projeto
darwinista (HOEFLE, 2007, p. 7 e SEEMANN, 2005, p. 7-8).
30 Um dos princípios gerais da antropologia de Boas é o uso do método histórico para a
antropologia, questionando as grandes leis evolucionistas da sociedade humana e
apontando as limitações do método comparativo, que, segundo ele, era utilizado com
pouco rigor pelos antropólogos de sua época (CASTRO, 2004, p. 33-36).
31 Como aponta Seemann (2005, p. 10), Boas deseja, através do movimento histórico de
cada sociedade, esmiuçar o desenvolvimento particular de cada mudança cultural. Sua
crítica ao método comparativo reside nessa ideia, já que duas sociedades podem ter
uma organização política idêntica, e, contudo, serem formadas de maneiras e em ritmos
totalmente diferentes. Tal ceticismo o encaminha para o uso do método indutivo de
pesquisa e para um empirismo exacerbado, com métodos complexos de coleta de dados
(SEEMANN, 2005, p. 11-13).
32 Boas nos mostra, ainda, que as estruturas psicológicas e a influência do meio
ambiente são importantes variáveis a serem analisadas (CASTRO, 2004, p. 33-35).
Portanto, uma dada cultura é formada pelos fatores psicológicos, pelo meio ambiente e
pela história particular de um grupo humano, que se manifestam através de uma área
cultural que deve ser delimitada com muita cautela e embasamento científico. Seu
método de análise leva em consideração a reação psicológica dos indivíduos, ou seja, a
sua capacidade de absorção ou resistência frente à pressão cultural vivida diariamente,
o que supostamente demonstra seu vínculo com a cultura (CASTRO, 2004, p. 66). Nas
palavras do próprio autor:
33 Vemos então como Boas influenciou Sauer, pois se pode compreender a ligação entre
a sua geografia histórica e cultural, mesmo que Sauer e sua geografia cultural não
tenham enfatizado de maneira profunda a variável psicológica, cara às formulações de
Boas. Contudo, a abordagem cultural e histórica se complementam, já que a cultura é
apreendida pelo movimento histórico, tornando possível a formulação de leis, não a
partir da comparação das culturas e seus valores, mas levando em consideração seus
desenvolvimentos históricos. A busca pela história confere uma nova dimensão ao
método comparativo, ela direciona o que deve ser comparado, oferecendo uma
ferramenta mais acurada para o resgate do movimento histórico da cultura.
34 Boas incentivou a realização de monografias sobre determinados povos, mas sua
iniciativa não ganhou força, nem produziu um volume substancial de obras. Quanto à
continuidade espacial, nota-se que ela se apresenta de forma relativa, uma vez que é
muito difícil definir com clareza as conexões espaciais entre as culturas. Dessa forma, “o
método histórico atingiu uma base mais sólida ao abandonar o princípio enganoso de
supor conexões onde quer que se encontrem similaridades culturais” (CASTRO, 2004,
p. 41), pois somente a história concreta é capaz de revelar as relações entre as culturas.
Ainda sobre seu método:
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estabilidade de traços culturais por longos períodos de tempo – a uma época
futura, em que as condições reais de mudança cultural sejam mais bem
conhecidas (CASTRO, 2004, p. 42).
35 Portanto, o foco da pesquisa está nas trocas e difusões dos traços culturais, levando
em conta as possibilidades de comunicação, de acordo com a continuidade espacial
relativizada. Além disso, o pesquisador parte do pressuposto que cada cultura é algo
dinâmico, que está sempre em um movimento singular, sendo que contatos entre elas
podem causar profundas modificações.
36 Boas também discute o conceito de raça e a possibilidade dos componentes genéticos
determinarem o comportamento de uma sociedade, condicionando o pertencimento e
reprodução de determinada cultura. Contudo, ele desmistifica o conceito de raça, bem
como a possibilidade de existirem povos “puros”, indicando a grande miscigenação
entre os indivíduos no curso da história. O darwinismo, até certa medida, colaborou
muito com esse tipo de problema, induzindo à existência de raças inferiores e
superiores, além de indicar as guerras como momentos de seleção natural. Boas
argumenta, ainda, que o comportamento de uma sociedade inteira não pode ser
condicionada pela genética e que a cultura passada entre gerações influencia muito
mais o comportamento individual do que a herança genética (CASTRO, 2004, p. 60-
82).
37 Devido ao seu apelo empirista em busca da materialidade histórica e cultural, sua
antropologia mantém contato com a arqueologia, uma fonte importante de dados
concretos. Nota-se que o mesmo ocorre com a geografia histórica proposta por Sauer, o
que se torna evidente na sua proposta de trabalho de campo, a qual busca formas
antigas e ruínas na paisagem para a reconstituição de um cenário passado. Boas
enfatiza que é importante buscar relações entre os aspectos estudados no interior de
cada sociedade e que, portanto, não se deve tratar economia, religião e linguagem de
forma separada, sem procurar o fio condutor que liga essas características. Isso, no
entanto, resultou em uma abordagem que frequentemente situou as esferas sociais da
economia e da política dentro da cultura, mais ou menos isolada, de determinados
povos. As informações do quadro social esboçado pelo método boasiano são
complementadas com o conhecimento sobre o quadro físico-natural, que confere uma
explicação mais complexa sobre a vida cultural de cada povo.
38 Ainda sobre o determinismo, Boas está interessado em saber o quanto o ambiente
auxilia ou atrasa o desenvolvimento técnico e mostra que, mesmo em lugares com a
abundância de recursos, são a técnica e a ação do homem os responsáveis pela
exploração da natureza. Melhor dizendo, não basta a presença dos recursos naturais, é
preciso saber usá-los com técnicas adequadas e, ainda, que não haja nenhuma
interdição cultural, uma vez que “as condições ambientais podem estimular as
atividades culturais existentes, mas elas não têm força criativa” (CASTRO, 2004, p. 61).
As culturas são influenciadas, mas não são necessariamente uma resposta direta ao
meio ambiente. A natureza, mesmo que vista em um segundo plano, não deixa de ter
um papel no desenvolvimento da cultura, enquanto “as relações espaciais dão apenas a
oportunidade para o contato; os processos são culturais e não podem ser reduzidos a
termos geográficos” (CASTRO, 2004, p. 62). Observa-se então uma distinção clara entre
geografia e análise da cultura, mesmo que elas se inter-relacionem no mundo empírico.
39 No entanto, as áreas culturais têm um caráter eminentemente geográfico com um
ponto central de difusão, onde a cultura aparece com seu vigor máximo. Em
contraposição, temos as áreas periféricas, onde podemos notar uma mistura de traços
culturais, provenientes de outras áreas culturais (Cuche, 2002, p. 68-69):
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
40 Aqui podemos detectar as limitações da área cultural – um problema que também se
aplica à obra de Sauer – face à sociedade moderna. Entretanto, é interessante notar que
a concepção de área cultural é muito similar à teoria das localidades centrais (SPOSITO,
2003, p. 179-181), já que, segundo esta teoria, temos a area core, que hierarquiza o
restante de região econômica. Se compararmos a teoria dos lugares centrais de
Christaller, a teoria de von Thünen, ou algumas interpretações preliminares da
sociologia urbana da Escola de Chicago, poderemos notar que elas se pautam em
modelos abstratos ideais, que encaram o espaço como um elemento dotado de uma
estrutura que organiza fenômenos que perdem intensidade ou mudam de natureza, do
centro para a periferia. O conceito de área cultural não chegou a ser aplicado nas
primeiras pesquisas empíricas de Boas e não conformou realmente uma divisão das
áreas com um amplo resultado cartográfico, por exemplo (SEEMANN, 2005, p. 15).
Dessa maneira, “foram delineadas ‘áreas culturais’, com povos de estilos de vida
semelhantes que são estudados com base na história local” (HOEFLE, 2007, p. 18).
Além disso, seu trabalho é marcado pela:
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48 De acordo com sua visão da ciência antropológica, a separação analítica da cultura foi
seu grande avanço ou sua ideia original, mas muitos acusaram tal concepção de possuir
um certo misticismo, ou seja, de estar distante de uma formulação científica pouco clara
(KROEBER, 1993, p. 13). A sua maneira característica de tomar a vida, o espírito, a
sociedade e a cultura de forma separadas, como um elevado grau de consciência, levam
a deduzir que tais fenômenos funcionam de forma autônoma. Contudo, o que se busca
na realidade é um modo de análise que resulte na obtenção de dados culturais puros,
identificando-os como algo separado da natureza:
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
49 A tentativa de apreender a cultura em si – ressalta-se que, como Boas e Sauer,
Kroeber também vê na arqueologia a fonte de dados culturais puros e brutos – é
condicionada pelo acúmulo de eventos passados, o que nos releva o peso da história na
compreensão da dinâmica cultural. Ao se subtrair os fatores históricos, se elimina um
componente de maior dimensão no processo de análise, justamente, aquele que permite
uma integração dos fenômenos com a cultura (KROEBER, 1993, p. 10-13).
50 O contexto cultural e histórico se localiza no espaço e no tempo, possuindo uma
sequência, que ocorre de uma forma estritamente acidental. Kroeber, de maneira muito
próxima a seu mestre Franz Boas, não busca na relação com a história uma lógica ou
sentido único, mas o reconhecimento das qualidades e os padrões de organização
particulares. A qualidade cultural pode ser entendida como reconstituição da história,
de forma a permitir uma apreensão do movimento da sociedade.
51 Além disso, Kroeber se posiciona contrário a uma dicotomia drástica entre o método
nomotético e ideográfico, pois as duas abordagens poderiam ser utilizadas para
qualquer fenômeno da sociedade (KROEBER, 1993, p.13). Seu trabalho busca os
padrões qualitativos (ou históricos) da totalidade da cultura, que podem ser alcançados
parcialmente por meio dos aspectos psicológicos ou do ethos de cada grupo (KROEBER,
1993, p. 14). Certamente, os valores morais constituem um ingrediente essencial da
cultura e, mesmo possuindo forte teor de subjetividade, eles podem ser abordados de
forma objetiva. Dessa maneira, é possível fazer associações e correlações, ou seja,
estudos comparativos entre as manifestações dos sistemas de valores possuídos por
diversas culturas. Assim, temas como ideologia ou religião são importantes para essa
proposta, porém o relativismo que permeia o pensamento de Kroeber defende a
comparação dos valores culturais, ressaltando sua eventual similitude, sem que exista
jamais uma hierarquização. Outra premissa importante para o relativismo é de que
qualquer fato cultural deve ser avaliado de acordo com os valores da cultura a qual se
faz parte. Esse é um desejo de investigação nem sempre concretizado, pois existe uma
grande dificuldade de se afastar todo tipo de valor cultural do pesquisador, de maneira
a torná-lo absolutamente neutro.
52 A respeito da totalidade cultural, ou seja, dos todos culturais, o autor nos indica e
critica os trabalhos de sua época:
53 É interessante notar que para Kroeber, uma cultura entendida como parte do todo
cultural é um dado próprio de determinado grupo e não fruto de uma geração de
indivíduos vivos, mas daqueles que os procederam.
54 De acordo com Kroeber, alguns poucos valores morais possuem uma faceta universal
que alcançam um patamar fixo, pan-humano ou quase absoluto. Temos, então, algumas
ideias que são recorrentes em diversos grupos humanos e que podem ser admitidas
como universais, contudo, nenhuma cultura possui valores perfeitos ou imperfeitos. A
descoberta do valor universal é fruto de longas análises e comparações, e, quanto a
Kroeber, este também utiliza o método comparativo e o relativismo cultural, na
tentativa de forjar um conjunto coerente de valores recorrentes em todas as culturas
(KROEBER, 1993, p. 13-15).
55 Quanto à observação social, temos o uso de outros níveis de análise, o que denota o
desejo de uma teoria social mais ampla. Primeiramente, a sociedade e a cultura são os
dois componentes diferentes que moldam os indivíduos, sendo estes responsáveis pela
formulação da consciência psicológica ou da personalidade, o que evidencia o caráter
indissociável entre sociedade, cultura e psicologia, elementos estes componentes dos
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
níveis de análise social para Kroeber. Sobre isso, registra-se, ainda, que a opção do
autor é tratar cada um dos mencionados elementos de maneira isolada, a fim de se
obter uma melhor eficiência na produção do conhecimento, de modo a suspender
alguns problemas de método:
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
no contexto da natureza” (KROEBER, 1993, p. 21). O autor usa de tal artifício para
superar essa cisão, entre natureza e sociedade, a qual ele considera empiricamente
artificial, já que os níveis de existência são interdependentes.
60 Dentro da antropologia norte-americana se criticou, principalmente, a ênfase dada
aos valores morais que resultam em um retrato estável (ou até mesmo imutável) da
cultura, cenário este que faz com que se esconda a faceta dinâmica da cultura, que se
transforma e reage às novas circunstâncias impostas pelos acontecimentos sociais ou
mesmo pelas mudanças naturais (CLAVAL, 2002, p. 21 e CUCHE, 2002, p. 68, 80-87).
Porém, como vimos anteriormente, Boas e Kroeber buscavam alcançar justamente uma
forma de análise da cultura que não a considerasse como estática.
61 Além disso, a ideia do superorgânico consistiu em um dos principais pontos
debatidos pelos antropólogos e, posteriormente, pelos geógrafos que buscaram novas
alternativas. Nesse aspecto, Cuche pontua a crítica dos antropólogos feitas a Kroeber:
62 Ato contínuo, antes de encerramos, cabe ainda uma provocação. As teorias pós-
mondernas utilizam de modo amplo o relativismo entre cultura e superorgânico, que
pode ser visto por muitos como uma teoria obsoleta, diante da possibilidade de
comparação à ideia foucaultiana de discurso. Sobre isso, nos provoca Marshall Sahlins:
63 A ideia de discurso para Foucault não está tão distante assim de uma entidade
superorgânica, uma espécie de força mística que comanda os indivíduos. Essas duas
similaridades nos fazem pensar que talvez não seja por acaso que o pós-modernismo ou
o pós-estruturalismo originário na França, muitas vezes com grande enfoque nos
aspectos culturais, tenha sido absorvido com tanta rapidez pela intelectualidade norte-
americana, como demonstrou Cusset (2005).
64 Com o intuito de sintetizar o desenvolvimento até aqui apresentado, segue abaixo um
quadro síntese das ideias sobre cultura, desde Herder até Sauer:
Último quartel do
Primeiro quartel do século XX
séc. XIX
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
Superorgânico: cultura
Relação homem-meio
Influência do como uma entidade
Foco nas culturas pautada nos impactos e
pensamento essencial e com certa
nacionais adaptações dos modos de
geográfico independência da
vida particulares
sociedade
Abordagem através
Preocupação com História como elemento
de estudos Grande ênfase nas
a unificação central para compreender
monográficos de variáveis históricas
alemã a cultura
cada cultura
Níveis de análise:
aspectos
Níveis de análise: Níveis de análise:
Resgate histórico psicológicos,
sociedade, cultura e paisagem natural e
da cultura antecedentes
psicologia paisagem cultural
históricos e quadro
natural
65 Nos arriscamos, ainda, a indicar que Boas e Kroeber se situem na primeira tradição
indicada. A marca do kantismo está presente em Boas e Kroeber, bem como a
contraposição ao evolucionismo e um distanciamento da discussão sobre o poder e sua
dinâmica social. Da mesma forma, é possível relacionar a concepção de cultura
supraorgânica com uma concepção de estrutura estruturada, ou seja, a cultura tem uma
organização rígida e estática que pode ser pouco modificada pelos indivíduos que dela
fazem parte, portanto, eles são moldados pelas contingências culturais a que estão
expostos. Na posição oposta à concepção de estrutura estruturada, encontramos a de
estrutura estruturante, noção que legitima o poder do indivíduo em fazer a história e
alterar as contingências herdadas da geração precedente.
66 Independentemente de uma tentativa de classificação, é evidente que Sauer, Boas e
Kroeber trabalham com conceitos e ideias que têm raízes na geografia e no pensamento
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
romântico alemão: o difusionismo cultural, os todos culturais como sistemas mais ou
menos fechados, a valorização da história, a rejeição ao determinismo, o vitalismo, as
áreas culturais e o papel atribuído à técnica. Isso nos demonstra como a antropologia e
a geografia do final do século XIX e início do XX tem muitos elementos em comum e, de
certa forma, uma sobreposição de seus objetos de estudo. Não é possível negar o fato de
que geógrafos de renome fizeram carreira ou obtiveram um reconhecimento importante
na antropologia: F. Ratzel, F. Boas, Karl A. Wittfogel são exemplos disso. Defendemos o
fato de que recuperar essa rica herança de diálogo interdisciplinar nos permitirá
repensar as tradições geográficas, bem como problemas epistemológicos da geografia
que se fazem presentes contemporaneamente.
67 Assim como a geografia clássica de Vidal de la Blache, a tradição boasiana vê que a
natureza não determina a sociedade mas lhe imprime uma marca, já que as culturas
tradicionais estão intimamente ligadas com o seu meio original. Para essa tradição de
pensamento, a técnica contorna os empecilhos da natureza e a modifica, porém, muitas
vezes a cultura é interpretada como elemento isolado da sociedade. Mesmo que exista
uma imperativa busca pelos antecedentes históricos de determinada sociedade, a
cultura não é vista dentro de seu próprio tempo, ou seja, a obsessão por dados culturais
puros não só isola a cultura da dinâmica social total, como também a priva de sua
situação histórica contemporânea e das contradições em que ela está submetida ao se
aculturar.
68 Talvez, a falta de uma divisão mais significativa de áreas culturais nos EUA tenha se
dado pela ausência de uma divisão estritamente regional das monografias promovidas
por Boas, pois claramente o foco da pesquisa se pauta mais na cultura em si do que no
recorte espacial rígido. Como dissemos acima, a antropologia cultural norte-americana
não problematizou até as últimas consequências o desaparecimento das sociedades
indígenas do continente, apesar da nítida simpatia pelos valores humanos e pelas
culturas estudadas. Muito provavelmente, seria difícil delimitar com rigidez o território
de tais sociedades que estavam em via de desaparecimento ou de aculturação. O
vitalismo cultural pode ser interpretado como uma justificava mais ou menos natural
para culturas que estavam desaparecendo frente à modernidade. Assim, a cultura que
nasce, vive e morre endossa as transformações sociais, apesar da simpatia para com os
autóctones e o relativismo, que pode ser outro elemento de esquiva à reflexão política
do contato cultural entre as sociedades.
69 Mesmo diante de um mundo globalizado, talvez a ideia de área cultural ainda tenha
algum valor na atualidade. Ela poderia ser aplicada para dar concretude aos processos
da geografia cultural. Independentemente dessa possibilidade, podemos observar como
se manifesta na antropologia uma tensão entre a concepção idiográfica e nomotética da
ciência, ilustrada nas diferenças de abordagem de F. Boas e A. Kroeber. Da mesma
forma, o dilema sobre o papel da influência do meio na vida social é uma outra
preocupação similar. Por fim, se dissemos no início do artigo que Sauer sintetiza várias
posturas da geografia alemã, da mesma forma, poderíamos indicar que Kroeber propõe
uma abordagem que usa vários elementos de tradições antropológicas precedentes.
Caberia, no futuro, justamente investigar porque houve um distanciamento entre
antropologia e geografia, se ambos os campos têm raízes em comum e, pelo menos no
caso norte-americanos, tiveram um desenvolvimento tão sinérgico. Será que tal
distanciamento ocorre por razões epistemológicas ou institucionais? Ou ainda por
ambos os motivos?
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Notas
1 Holzer (2008, p. 143) ressalta a tentativa de Cosgrove em ligar a geografia humanística ao
marxismo ou a de Sayer de relacioná-la ao materialismo histórico. Esse primeiro momento da
corrente humanística contrastaria com um segundo mais aberto às múltiplas influências e ao
ecletismo.
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
2 Da mesma forma, para Fichte o reunião do todo nas partes de um organismo carateriza uma
condição única e essencial. No organismo, o todo só funciona com as partes em uma totalidade.
Assim, “Fichte caracteriza o estado como organismo porque os indivíduos podem ser pessoas
somente como membros de comunidades políticas justas; fora de tais comunidades os indivíduos
podem viver como animais, mas não como agentes racionais. Esta ideia, que se origina na
verdade em Aristóteles, é outro aspecto central da filosofia política de Fitche que é mais tarde
endossada por Hegel, embora ele acabe rejeitando a teoria de um contrato social mais amplo
dentro do qual Fichte o enquadra” (DUDLEY, p. 148).
3 Talvez essa situação se modifique apenas no pós-guerra com a ascensão do neopositivismo,
quando a física se estabelece como campo científico modelar. O resultado de tal influência na
geografia é nítida com as transformações engendradas pela nova geografia.
4 Schlüter também como Sauer admite que a geografia morfológica do presente funciona como
elemento chave para compreender a geografia histórica do passado (SEEMANN, 2004, p. 72-73).
5 Schlüter teve força de inserção na geografia francesa influenciando, por exemplo, Jean Brunhes.
6 Cabe destacar que Waibel, também influenciado por Schlüter, o critica e começa a trabalhar
com a ideia de formação econômica, porque ela “inclui elementos que não são fisionomicamente
evidentes, ou ainda, a mudança no conceito de paisagem para o espaço econômico, entendido
como sistema socioecológico” (ETGES, 2012, p. 56).
7 Esta referência se trata de textos originais de Franz Boas traduzidos para o português sob a
organização e o prefácio por Castro (2004).
8 É interessante notar que o marxista Karl A. Wittfogel, exilado da Alemanha nazista, se insere no
grupo de Boas e passa a produzir trabalhos de antropologia cultural. Esse processo marca uma
grande aculturação intelectual e uma completa guinada no perfil de sua produção acadêmica.
Depois da revolução comunista da China seu ímpeto anticomunista se torna público e Wittfogel
passa a defender ferreamente a tese que União Soviética e China são sociedades asiáticas e
despóticas com lógicas de funcionamento intrinsecamente ligadas. Obviamente, ele não consegue
explicar a cisão entre Mao e Krushev, na década de 1960 (LINTON, 2011, p. 23-68).
9 A difusão, na geografia, também ganhou muita relevância na época de ascensão da nova
geografia. O pensamento de T. Hägerstrand foi fortemente inspirado em modelos que tentavam
explicar a difusão de inovações tecnológicas no espaço geográfico.
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Autor
Breno Viotto Pedrosa
Universidade federal da integração latino-americana, brenoviotto@hotmail.com
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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
Considerações sobre a Sudesul: formação e modernização territorial [Texto integral]
Considerations about Sudesul: territorial formation and modernization
Réflexions sur la Sudesul: formation et modernisation territoriale
Publicado em Confins, 47 | 2020
Direitos de autor
Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC-SA 4.0. Outros elementos (ilustrações,
anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
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