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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia

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Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

23 | 2015
Número 23

Sauer, Boas, Kroeber e a cultura


superorgânica: notas sobre a
relação entre geografia e
antropologia
Sauer, Boas, Kroeber et la culture superorganique: notes sur la relation entre la géographie et l'anthropologie
Sauer, Boas, Kroeber and superorganic culture: notes on the relationship between geography and anthropology

Breno Viotto Pedrosa


https://doi.org/10.4000/confins.9958

Resumos
Português Français English
No presente artigo, pretendemos comparar o pensamento de F. Boas e A. Kroeber, elucidando seu
esquema geral de análise, buscando os elementos geográficos de seu pensamento e destacando
alguns aspectos que serão absorvidos por Carl Sauer em sua geografia cultural. Além disso,
procuramos demonstrar as inter-relações presentes entre o pensamento de Ratzel, os seus
desdobramentos na antropologia historicista de Boas e, finalmente, a construção da ideia de
superorgânico de Kroeber.

Dans cet article, nous comparons la pensée de F. Boas et A. Kroeber, pour démontrer le schème
générale de l’analyse de ce deux auteurs et les caractéristiques géographiques de sa pensée, aussi
bien que les éléments qui seront absorbés par Carl Sauer dans sa géographie culturelle. Nous
essayons de démontrer les relations entre la pensée ratzelienne, sa influence dans l’anthropologie
empiriste de Boas, pour enfin voir la construction de l'idée de superorganique dans la pensée de
Kroeber.

In this article, we compare the thought of F. Boas and A. Kroeber, elucidating its general scheme
of analysis, seeking the geographical features of his thinking and highlighting the elements that
will be absorbed by Carl Sauer in his cultural geography. Furthermore, we tried to demonstrate
the interrelationships between Ratzel’s thought, its influence in the context of Boas empiricist
anthropology and, finally, the construction of the idea of ​superorganic Kroeber.

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Index de mots-clés : Boas, Kroeber, Culture e Superorganique.
Index by keywords: Boas, Kroeber, Culture, Superorganic.
Índice de palavras-chaves: Boas, Kroeber, Cultura e Superorgânico.

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Créditos: ac-nancy-metz.fr/Sitehistarts/docs
1 Na geografia brasileira, a chamada geografia cultural ganhou notoriedade,
principalmente na década de 1990, quando, de um lado, despontava uma onda de
desvalorização da teoria marxista e, de outro, uma curiosidade crescente pela geografia
humanística. Naturalmente, após a difusão dessas novas ideias, nasce o interesse em
conhecer as origens da geografia cultural, contudo, existiu um debate muito limitado
sobre o diálogo profícuo entre geografia e antropologia que se iniciou com o
pensamento de Ratzel e que produziu muitos paralelismos e situações de contato entre
ambas disciplinas. No presente artigo, pretendemos esboçar alguns pontos importantes
para compreender como ocorreu o debate entre geografia e antropologia através do
diálogo entre Alfred Kroeber e Carl Sauer, os quais, influenciados pelo pensamento de
Franz Boas e seu antigo mestre F. Ratzel, acabaram moldando o surgimento da
chamada geografia cultural.
2 Atualmente, a geografia cultural é frequentemente considerada como um ramo da
geografia humana, mas que, no momento de seu surgimento, era um projeto ambicioso
equivalente à geografia humana francesa, do início do século XX, liderada por Paul
Vidal de la Blache. Sauer considera muito importante a materialidade específica de cada
segmento de área ou paisagem, e, inspirado pelo caso alemão, define a geografia
cultural a partir de elementos da antropogeografia de Ratzel, conjuntamente ao projeto
pautado no conceito de paisagem, proposto por Schlüter, e no enfoque na diferenciação
de áreas ao modo de Hettner.
3 Além disso, ao se consultar seu texto célebre A morfologia da paisagem (SAUER,
1963), fica evidente o uso do método morfológico para a análise das formas na
paisagem, bem como a ampla cultura geográfica que Sauer move, recuperando o
próprio Vidal de la Blache e indo até a antiguidade, destacando as semelhanças de seu
projeto disciplinar com o da geografia de Heródoto. Além dessas influências, é preciso
evidenciar uma interpretação de que a geografia de Sauer pode ser vista como uma
espécie de síntese da geografia alemã, no início do século XX, uma vez que ela incorpora
elementos de Schlüter, Hettner e Ratzel – mesmo que, a respeito deste último, ele
privilegie um viés mais antropológico, deixando de lado um legado vinculado ao projeto
político do Estado germânico.
4 Para Sauer, a materialidade é consequência da cultura como uma entidade supra-
orgância, ou seja, independente da sociedade e dos indivíduos que a compõem. Essa
concepção foi adotada da antropologia norte-americana, marcada pelo pensamento
filosófico alemão e pelo próprio pensamento geográfico, que, no caso norte-americano,
teve forte influência de Franz Boas, antigo discípulo de Ratzel. Com base nessa
concepção de cultura, oriunda da antropologia, temos sua famosa frase: “cultura é o
agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado” (SAUER, 1963, p. 343).

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Sauer identifica o fenômeno cultural como um recorte espacial delimitado em
determinado período histórico, tendo ele uma dinâmica clara: uma determinada cultura
surge, se difunde, evolui e padece. Assim como o Estado nacional para Ratzel, a área
cultural, para Sauer, também é vista metaforicamente como um organismo vivo.
5 O objetivo deste artigo é tentar clarificar a intensa ilação estabelecida entre geografia
e antropologia no momento de surgimento da geografia cultural, observando como
alguns aspectos desses debates dos campos do conhecimento se entremearam.
Buscamos enfocar, mais precisamente, os conceitos de área cultural e a cultura como
elemento superorgânico que, apesar de debatidos em meados do século XX, no campo
da geografia, ficaram por um longo tempo sem discussão sobre seus fundamentos
básicos. Ou seja, no tocante à geografia cultural norte-americana ligada a Carl Sauer,
surge uma crítica radical à ideia de cultura supraorgânica somente em 1980, quando é
publicado o contundente artigo de James Duncan (2003, versão traduzida para o
português).
6 Na primeira parte do trabalho, situaremos alguns aspectos das origens da visão de
cultura no pensamento alemão, esclarecendo características desenvolvidas por Ratzel,
Hettner e Schülter. A seguir, veremos as contribuições de algumas concepções de Franz
Boas sobre a antropologia, para finalmente analisar as origens e fundamentos do
superorgânico de Kroeber, sendo este último um antropólogo que manteve longa
proximidade pessoal e profissional com Carl Sauer. Além das fontes de influência em
comum, é justamente Krober quem inspira Sauer a utilizar a ideia de supraorgânico,
por ele elaborada, para a compreensão do fenômeno cultural.
7 A discussão proposta por Kroeber pode ser aparentemente obsoleta se vista com o
olhar de nosso tempo, no entanto, as críticas a sua proposta feitas no âmbito do campo
da antropologia foram pouco incorporadas ou analisadas pela geografia cultural. Daí
ocorre a grande estagnação mencionada acima, que só finda com os apontamentos de
Duncan. O resultado disso é um lapso acerca do debate de cultura que, de um lado, foi
substituído pelas reflexões baseadas na fenomenologia – com o desenvolvimento da
chamada geografia humanística, principalmente sua corrente fenomenológica –, e, de
outro, significou um distanciamento das discussões sobre cultura. Posteriormente, nos
Estados Unidos, alguns geógrafos ligados ao existencialismo, ao marxismo e ao
pensamento gramsciano1 engendram sangue novo ao debate acerca da cultura, em um
período que recobre o último quartel do século XX. Contudo, muitas das questões
levantadas por Kroeber não foram especificamente debatidas na geografia, uma vez que
o foco se manteve, em grande parte, na crítica ao superorgânico. Como buscaremos
demonstrar no final do texto, para alguns autores o supraorgânico ainda está ativo
como uma explicação possível na teoria social, mesmo que ele não utilize mais este
nome explicitamente.

As bases germânicas do debate cultural


8 Seria praticamente impossível compreender o conceito de cultura sem nos
debruçarmos minimamente sobre o pensamento de Johann G. Herder (1744-1803). Ele
é um pensador que influenciou fortemente a criação de um conceito de cultura nas
ciências humanas, além de ter colaborado para o desenvolvimento da hermenêutica
moderna e do romantismo. O seu sistema filosófico tenta se contrapor ao dos
pensadores franceses iluministas do século XVIII, de modo a propor uma teoria do
desenvolvimento histórico, utilizando-se, principalmente, dos aspectos culturais
nacionais. Herder trata os Estados como organismos vivos2, valorizando o caráter
singular de cada cultura, o que faz com que ele se liberte de uma concepção de Cultura
(também chamada de Civilização) rígida e universal, que consistiria em uma espécie de
modelo evolutivo para os valores de todos os povos do mundo (CUCHE, 2002, p. 30-
40). Essa metáfora entre Estado e organismo vivo terá uma vida longa entre os
geógrafos franceses, como explorou Berdoulay (1982), todavia, tal comparação viceja
um valor mais de analogia do que de metáfora.
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9 O desprendimento de um modelo ideal e hegemônico de civilização é uma concepção
corrente na Alemanha do período de Herder e faz parte da estratégia de unificação do
território alemão que, por sua vez, buscava sua unidade na relativa diversidade de
povos, culturas e regiões (SEEMANN, 2005, p. 10), cuja perspectiva não se pauta
apenas em uma única civilização norteadora de todo processo de transformação
política.
10 Herder demarca, com clareza, o entrecruzamento do meio ambiente com o gênero
cultural (ou gênio do povo) em determinadas sociedades. Com base no gênero cultural,
Herder tentou definir a posição de cada povo na cultura como um todo, identificando as
diversas trocas e influências culturais entre diversas populações. Como ressaltou Etges
(2012, p. 35-48), a influência de Herder e seu historicismo foi importante para Carl
Ritter (1779-1859) e para a geração subsequente que polarizou a geografia alemã, a
saber: Alfred Hettner (1859-1941) e sua proposta de geografia como diferenciação de
áreas, Otto Schlüter (1872-1959), que enfocou suas análises na paisagem e, Friedrich
Ratzel (1844-1904), com sua proposta comparativa e darwinista acerca das relações
entre homem e meio. Como destacamos, Carl O. Sauer (1889-1975), nos Estados
Unidos, será um grande conciliador dessas três tradições que se opuseram na
Alemanha.

Figura Carl Sauer

11 Cabe esclarecer que, na virada do século XIX para o XX, o chamado romantismo
alemão, corrente filosófica ligada a Herder, perdeu parcialmente sua força em
detrimento de uma mentalidade modernizadora e pragmática, a qual visava lançar a
Alemanha como grande potência. Nesse período de grande difusão do darwinismo, a
biologia era vista como a ciência que gozava de maior prestígio, o que queria dizer que
quanto mais semelhante à biologia, mais cientificidade determinado campo de
conhecimento teria3. Tal reação se demonstra clara na postura de O. Peschel, que critica
Ritter, vinculando-se ao darwinismo, ao positivismo e introduzindo o ponto de vista
morfológico na geografia. Entretanto, apesar dessas preocupações, Peschel não
abandona o uso do método comparativo elucidado por Ritter, propondo uma
morfologia comparada (OLIVEIRA, 2012, 123-125).
12 Ratzel, uma geração antes de Peschel, se preocupou com a modernização científica da
geografia e se relacionou profundamente com o darwinismo, conservando, porém,
elementos do romantismo alemão, principalmente no final de sua vida, segundo o
estudo de Oliveira (2012, p. 130). Comumente, se pensa que Carl Sauer foi o fundador
da geografia cultural, mas ele próprio diz não estar evidenciando nenhum tema novo,
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pois “Ratzel […] considerava sua Antropogeographie mais que um estímulo e uma
introdução a uma geografia humana que devia fundamentar-se em um estudo da
cultura” (SAUER, 2000, p. 102). Além das premissas lançadas nessa obra, Ratzel ainda
se destaca nos estudos sobre a “mobilidade populacional, [a]s condições de
assentamento humano e [a] difusão da cultura por meio das vias principais de
comunicação” (SAUER, 2000, p. 101).
13 Claramente, Sauer evoca Ratzel para legitimar e dotar o seu projeto de ciência de um
argumento de autoridade. De acordo com Barros (2012), Ratzel foi profundamente
influenciado por uma viagem aos Estados Unidos, onde se interessou pelos processos de
adaptação das populações chinesas ao novo mundo. Uma vez que a geografia estava em
lenta decadência devido ao desgaste do prestígio da obra de Ritter, Ratzel surge no final
do século XIX com a aplicação inovadora do darwinismo como uma metateoria
explicativa da geografia do mundo. O homem para sobreviver deve se adaptar e se
apropriar de seu meio natural e o resultado desse processo é uma alteração profunda da
natureza e do próprio homem, uma vez que a dispersão dos grupos humanos causa a
diferenciação espacial e social, de forma semelhante ao processo de especiação animal,
como colocada por Darwin.
14 Ratzel, no entanto, foi influenciado por Mortiz Wagner, que acabou por admitir a
seleção natural de Darwin, mas não descartou as explicações de Lamark, ou seja, quanto
maior o uso de determinada parte ou característica do organismo, maior o seu
desenvolvimento na espécie em questão. Além disso, a herança adaptativa de usos e
desusos seria transmitida entre as gerações (BARROS, 2012). A partir dessa herança,
surge um viés interpretativo difusionista, ou seja, de que o homem migra e carrega
consigo uma experiência que pode ajudar ou dificultar a relação com o próximo meio
que ele entrará em contato. A difusão explicaria, por exemplo, porque em tão pouco
tempo os Estados Unidos seriam industrializados, uma vez que os migrantes utilizam
das técnicas industriais para sua sobrevivência. Neste ponto, o legado de Ritter se faz
presente, pois Ratzel considera os pontos de interação entre os continentes como
possibilidades de difusão e transformação cultural.
15 No entanto, um só meio geográfico poderia dar origem a múltiplos padrões culturais
e Ratzel, em claro diálogo com a ecologia, se questiona como o meio pode provocar
migrações, influenciar costumes e artefatos culturais, ao mesmo tempo em que a
cultura expressa claramente a delimitação de uma área central (core), a partir da qual a
difusão ocorre (BARROS, 2012).
16 Ratzel não se limitou a fazer análises culturais apenas para sua Antropogeographie,
mas as aplicou ao estudo da geografia política. Ele estava empenhado em uma geografia
para a consolidação do Estado alemão, porque “a Geografia e a Etnologia Alemã
receberam grande estímulo pelo processo de unificação nacional, em 1870” (HOEFLE,
2007, p. 17).
17 Sua proposta não se limita somente à unificação territorial e à eliminação dos traços
feudais arcaicos, pois ele propõe um leque de reflexões e opções para o estabelecimento
de um império alemão, com sua geografia inspirada no darwinismo e na analogia do
estado como um organismo vivo. É importante relembrar que o espaço vital (ou
Lebensraum), surge na sua obra Geografia política. Mesmo que um tanto dissociadas
em alguns momentos, suas análises culturais podem ser analisadas como
complementares à ótica do imperialismo de um país que havia chegado tardiamente na
corrida colonial.
18 Nesse contexto, os povos nômades, as organizações tribais, as ditas sociedades
primitivas, são comparadas a organismos menos complexos que tendem a ser
absorvidos por organismos mais complexos (RATZEL, 1987, 90-125). Uma dicotomia
interessante é a divisão de povos com e sem Estado, e o enfoque na competição como
elemento preponderante da evolução da vida. Tais aspectos serão criticados por
geógrafos anarquistas – E. Reclus, L. Metchnikoff e P. Kropotkin. Portanto, o
conhecimento etnográfico consistiu uma fonte importante de dados para as reflexões de
Ratzel, sendo que as ditas sociedades primitivas reportavam às formas elementares do
Estado:
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A maior parte dos sociólogos estudam o homem como se ele fosse formado no ar,
sem ligações com a terra. O erro desta concepção salta aos olhos,
verdadeiramente, para tudo o que se refere às formas inferiores da sociedade,
porque sua extrema simplicidade os faz relembrar as formas mais elementares do
Estado (RATZEL, 1987, p. 203; tradução nossa).

19 Para este autor, não existe um Estado sem território e sem fronteira, e, justamente
através das formas elementares do Estado, é possível compreender melhor as relações
entre o homem e seu solo (RATZEL, 1987, p. 203). Ratzel utilizava uma espécie de
método comparativo – certamente ecoando Ritter –, contrapondo situações geográficas,
políticas e “morais” dos povos de diversas partes do globo. Sua classificação desses
agrupamentos humanos, bem como as reflexões da Antropogeographie foram de
grande interesse para os antropólogos que “utilizaram amplamente suas análises de
difusão da cultura, [enquanto] os geógrafos ocidentais consideraram Ratzel somente
como ambientalista” ou determinista (SAUER, 2000, p. 102). Destaca-se ainda sua obra
Völkerkunde, que “apresenta ambiciosa etnologia espacializada do mundo, ricamente
documentada e ilustrada” (HOEFLE, 2007, p. 16). Ratzel seria um dos precursores do
difusionismo alemão, propondo “uma extensão espacial do Evolucionismo, uma vez que
tenta explicar como inovações tecnológicas e sociais disseminadas entre povos (...)
aceleram o ritmo da evolução cultural” (HOEFLE, 2007, p. 16). Esse talvez seja um dos
primeiros contatos ou uma das primeiras bifurcações entre a geografia moderna e a
antropologia.
20 Entretanto, se Ratzel adotou aspectos do positivismo e profundamente o darwinismo,
a geração seguinte seria marcada por uma crítica intensa à essa primeira corrente de
pensamento:

As críticas eram direcionadas às universidades, centros do conhecimento que


haviam perdido o idealismo e o humanismo tão característico da cultura alemã,
em detrimento de um conhecimento extremamente materialista e positivista,
pautado por um ensino mecânico e repetitivo, aliado aos objetivos do Estado em
expansão[…]. Esse sentimento de inacabado da academia e da cultura alemã no
fin de siècle vai refletir tanto nas manifestações estéticas e artísticas (naturalismo,
impressionismo, pré-expressionismo e expressionismo), na filosofia e história
(neokantismo, historicismo, Nietzsche) e nos estudos sobre a sociedade urbana e
industrial (OLIVEIRA, 2012, p. 126-27).

21 O resultado desse processo é que posteriormente a Ratzel, encontramos na geografia


alemã pensadores influenciados fortemente pelo neokantismo, que também estavam
interessados em uma sistematização e em uma definição clara do campo disciplinar da
geografia. De um lado, encontramos Hettner, que defende o projeto da geografia como
diferenciação de áreas e, de outro, Schlüter, que defendia a paisagem como objeto da
geografia. Os desdobramentos dessa última definição de geografia tem vida longa na
geografia alemã, apesar das diferentes nuances interpretativas no que diz respeito aos
seus detalhes. Em um texto publicado originalmente em 1950, portanto no pós Segunda
Guerra Mundial, Carl Troll demonstra como as paisagens podem ser organizadas
segundo uma taxinomia própria, em uma nítida comparação com a biologia (TROLL,
1997, p. 2).
22 Como vimos acima, Peschel já havia introduzido a morfologia na análise geográfica,
assim como Schlüter. Contudo, o diferencial será a delimitação rigorosa que Schülter
faz do que geografia deve estudar exatamente, limitando-se aos fenômenos visíveis da
paisagem. Só se devem ser analisados elementos invisíveis, na medida em que estes
expliquem formas materiais da paisagem (SEEMANN, 2004, p. 67-68), um modelo de
análise que foi, em parte, adotado por Sauer4 e, também, um artifício utilizado por
Schlüter, para não se sobrepor a campos amplos de conhecimento, como a economia e a
sociologia. Schlüter não apreciava as formulações de Ratzel e exclui a economia e a
política da geografia, pois elas dificultariam a “adaptação contínua na organização da
superfície terrestre” (SEEMANN, 2004, 68).
23 Aqui é interessante notar um mecanismo da história da disciplina que muito tem nos
intrigado ultimamente: Schlüter, através de Richthofen, se interessa pela geomorfologia

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e vai gradualmente transpondo o método morfológico do estudo da natureza – mais
especificamente, das formas do relevo e de fisionomia das plantas – para o estudo da
sociedade. Mesmo que ele admita que natureza e sociedade são elementos distintos, o
método morfológico se aplica para o estudo das formas naturais e culturais. As origens
genéticas de tais formas têm explicações e causas completamente distintas, entretanto,
sua análise resulta em uma noção de estrutura que sintetiza o objeto analisado.
Ressalta-se que o pensamento de Emmanuel de Martonne faz o mesmo movimento,
transpondo a observação morfológica do relevo para a descrição e a explicação das
formas do tipo de ocupação humana, encobrindo detalhadamente o sítio e seguindo
para sua a situação. O resultado desse caminho explicativo também é uma ideia de
estrutura (PEDROSA, 2013, p. 44-70)5.
24 Tal similitude nos espanta, não só pelo referido fato ter ocorrido em duas escolas
nacionais diferentes, mas, também, por estar presente aí, a possibilidade do início de
um processo de sofisticação dos instrumentos da análise e teorias da geografia. No caso
francês, a concepção de E. de Martonne foi transmitida para A. Cholley, que, por sua
vez, influenciou toda uma geração, que incluía Jean Dresch, Pierre George e Jean
Tricart (PEDROSA, 2013). Cabe relembrar que Lévi-Strauss, por exemplo, declarou em
várias ocasiões que sua concepção de estrutura, que não possuiu uma conotação visível,
foi inspirada pelas estruturas geológicas. Mesmo que tal argumento careça ainda de
maior investigação, evidenciamos que talvez essa seja uma comparação importante
acerca do desenvolvimento do pensamento geográfico e das ciências sociais.
25 Dito isso, a principal disputa de Hettner e Schlüter recaía sobre a definição estrita do
objeto da geografia, abrangendo, também, suas diferentes posições gnosiológicas.
Apesar de ambos os autores serem influenciados pelo neokantismo, Schlüter tinha
clareza que não era possível tratar natureza e cultura como um mesmo tipo de
conhecimento (SEEMAN, 2004). Além disso, Schlüter queria se ater ao visível,
enquanto Hettner via a necessidade explicativa de debater a essência de fenômenos que
se desdobravam para além do visível, seja acerca de fenômenos sociais (espirituais
como eram chamados na época), que não são evidentes simplesmente pela observação,
sejam nas delimitações mais abstratas de recortes regionais (ETGES, 2012, p. 50-55). O
objetivo de Hettner era justamente diferenciar as áreas sem excluir a paisagem, mas
Schlüter continuava limitado à paisagem ao visível e à dimensão fisionômica (ETGES,
2012, p. 52-55).
26 Carl Troll (1997, p. 3), em um célebre balanço do pensamento geográfico alemão, diz
que a paisagem é um “conceito da geografia regional e comparativa” mesmo que nem
sempre sua definição tenha sido clara. Troll (1997, p. 2) ressalta que a paisagem tem
uma dimensão formal ou fisionômica e uma dimensão funcional ou fisiológica, todavia,
até 1950, não era clara a distinção entre área e paisagem. De maneira similar à definição
feita acima por Troll, Sauer tentou conciliar as concepções de área e paisagem de
maneira integrada, mesmo que a morfologia e a observação do visível continuassem a
ter um peso importante em sua obra6. Sua reação contrasta com a postura de Richard
Hartshorne que, consolidando uma interpretação do pensamento de Hettner, exclui
completamente a paisagem, privilegiando a área como força motriz de uma geografia
que tem por definição a diferenciação de áreas da superfície terrestre.
27 Sauer, por sua vez, encara a paisagem através da morfologia, como já dissemos, mas
não se esquiva da contribuição de Hettner para o desenvolvimento de uma geografia
regional, apesar de a cultura ser um fator importante para sua delimitação. Neste
momento, a ideia de áreas culturais como recorte de uma determinada sociedade em
um meio geográfico, o auxilia na edificação de sua geografia cultural, implicando, desta
forma, no aprofudamento do seu diálogo com a antropologia.

A Herança de Franz Boas para a


Geografia
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28 Franz Boas (1858-1942) foi professor de Kroeber e formou-se em geografia, tendo
assistido, na Alemanha, aulas de Ratzel. Por ser judeu, de origem alemã, Boas se
erradica nos Estados Unidos, onde tem sua obra reconhecida pela comunidade
acadêmica, formando muitos discípulos, bem como a escola da História Cultural
(CUCHE, 2002, p. 68). Sendo assim, Boas, intrigado com a influência do meio sobre o
homem, se dedicou ao estudo do determinismo ambiental, e, para isso, viajou até as
comunidades esquimós, onde pôde concluir que o papel dos aspectos ambientais na
vida do homem não é uma variável fácil de ser detectada (CASTRO7, 2004, p. 1-20).
Como nos aponta Cuche (2002, p. 40), Boas parte para campo como geógrafo e retorna
como antropólogo, entretanto, ele nunca esqueceu de sua disciplina de formação, uma
vez que são comuns em suas obras as discussões sobre as formulações de autores da
geografia, como Hettner, Jean Brunhes, Ritter, Guyot, Ratzel e Paul Vidal de la Blache
(CASTRO, 2004, p. 60).

29 O legado de Ratzel penetrou o campo da antropologia e, curiosamente, Sauer relata


ter entrado em contato com este pensador através dos antropólogos formados por Boas
(PARSONS, 1976). Sauer tenta negar o determinismo geográfico das interpretações de
Ratzel, feitas por Ellen Semple, e, para isso, adota o uso das técnicas como fator de
emancipação do meio. Portanto, Boas é um dos responsáveis pela reação ao

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determinismo fatalista, que nos Estados Unidos teve força intelectual significativa
desde os primeiros momentos de institucionalização da geografia. Tal projeto
intelectual vai ser retomado por Sauer a partir da obra de Kroeber, que também oferece
subsídios para uma crítica ao evolucionismo, de modo a fazer oposição projeto
darwinista (HOEFLE, 2007, p. 7 e SEEMANN, 2005, p. 7-8).
30 Um dos princípios gerais da antropologia de Boas é o uso do método histórico para a
antropologia, questionando as grandes leis evolucionistas da sociedade humana e
apontando as limitações do método comparativo, que, segundo ele, era utilizado com
pouco rigor pelos antropólogos de sua época (CASTRO, 2004, p. 33-36).
31 Como aponta Seemann (2005, p. 10), Boas deseja, através do movimento histórico de
cada sociedade, esmiuçar o desenvolvimento particular de cada mudança cultural. Sua
crítica ao método comparativo reside nessa ideia, já que duas sociedades podem ter
uma organização política idêntica, e, contudo, serem formadas de maneiras e em ritmos
totalmente diferentes. Tal ceticismo o encaminha para o uso do método indutivo de
pesquisa e para um empirismo exacerbado, com métodos complexos de coleta de dados
(SEEMANN, 2005, p. 11-13).
32 Boas nos mostra, ainda, que as estruturas psicológicas e a influência do meio
ambiente são importantes variáveis a serem analisadas (CASTRO, 2004, p. 33-35).
Portanto, uma dada cultura é formada pelos fatores psicológicos, pelo meio ambiente e
pela história particular de um grupo humano, que se manifestam através de uma área
cultural que deve ser delimitada com muita cautela e embasamento científico. Seu
método de análise leva em consideração a reação psicológica dos indivíduos, ou seja, a
sua capacidade de absorção ou resistência frente à pressão cultural vivida diariamente,
o que supostamente demonstra seu vínculo com a cultura (CASTRO, 2004, p. 66). Nas
palavras do próprio autor:

O problema psicológico está contido nos resultados das investigações históricas.


Quando esclarecemos a história de uma única cultura e compreendemos os
efeitos do meio e das condições psicológicas que nela se refletem, damos um
passo adiante, pois podemos então investigar o quanto essas ou outras causas
contribuem para o desenvolvimento de outras culturas. Assim, quando
comparamos histórias de desenvolvimento, podemos descobrir leis gerais. Esse
método é muito mais seguro do que o comparativo, tal como ele é usualmente
praticado, porque, em lugar de uma hipótese sobre o modo de desenvolvimento,
a história real forma a base de nossas deduções (CASTRO, 2004, p. 37).

33 Vemos então como Boas influenciou Sauer, pois se pode compreender a ligação entre
a sua geografia histórica e cultural, mesmo que Sauer e sua geografia cultural não
tenham enfatizado de maneira profunda a variável psicológica, cara às formulações de
Boas. Contudo, a abordagem cultural e histórica se complementam, já que a cultura é
apreendida pelo movimento histórico, tornando possível a formulação de leis, não a
partir da comparação das culturas e seus valores, mas levando em consideração seus
desenvolvimentos históricos. A busca pela história confere uma nova dimensão ao
método comparativo, ela direciona o que deve ser comparado, oferecendo uma
ferramenta mais acurada para o resgate do movimento histórico da cultura.
34 Boas incentivou a realização de monografias sobre determinados povos, mas sua
iniciativa não ganhou força, nem produziu um volume substancial de obras. Quanto à
continuidade espacial, nota-se que ela se apresenta de forma relativa, uma vez que é
muito difícil definir com clareza as conexões espaciais entre as culturas. Dessa forma, “o
método histórico atingiu uma base mais sólida ao abandonar o princípio enganoso de
supor conexões onde quer que se encontrem similaridades culturais” (CASTRO, 2004,
p. 41), pois somente a história concreta é capaz de revelar as relações entre as culturas.
Ainda sobre seu método:

os pesquisadores norte-americanos estão sobretudo interessados em fenômenos


dinâmicos da mudança cultural; que tentam elucidar a história da cultura pela
aplicação dos resultados de suas investigações; e que relegam a solução da
questão final – sobre a importância relativa do paralelismo do desenvolvimento
cultural em áreas distantes em oposição à difusão em escala mundial e à

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
estabilidade de traços culturais por longos períodos de tempo – a uma época
futura, em que as condições reais de mudança cultural sejam mais bem
conhecidas (CASTRO, 2004, p. 42).

35 Portanto, o foco da pesquisa está nas trocas e difusões dos traços culturais, levando
em conta as possibilidades de comunicação, de acordo com a continuidade espacial
relativizada. Além disso, o pesquisador parte do pressuposto que cada cultura é algo
dinâmico, que está sempre em um movimento singular, sendo que contatos entre elas
podem causar profundas modificações.
36 Boas também discute o conceito de raça e a possibilidade dos componentes genéticos
determinarem o comportamento de uma sociedade, condicionando o pertencimento e
reprodução de determinada cultura. Contudo, ele desmistifica o conceito de raça, bem
como a possibilidade de existirem povos “puros”, indicando a grande miscigenação
entre os indivíduos no curso da história. O darwinismo, até certa medida, colaborou
muito com esse tipo de problema, induzindo à existência de raças inferiores e
superiores, além de indicar as guerras como momentos de seleção natural. Boas
argumenta, ainda, que o comportamento de uma sociedade inteira não pode ser
condicionada pela genética e que a cultura passada entre gerações influencia muito
mais o comportamento individual do que a herança genética (CASTRO, 2004, p. 60-
82).
37 Devido ao seu apelo empirista em busca da materialidade histórica e cultural, sua
antropologia mantém contato com a arqueologia, uma fonte importante de dados
concretos. Nota-se que o mesmo ocorre com a geografia histórica proposta por Sauer, o
que se torna evidente na sua proposta de trabalho de campo, a qual busca formas
antigas e ruínas na paisagem para a reconstituição de um cenário passado. Boas
enfatiza que é importante buscar relações entre os aspectos estudados no interior de
cada sociedade e que, portanto, não se deve tratar economia, religião e linguagem de
forma separada, sem procurar o fio condutor que liga essas características. Isso, no
entanto, resultou em uma abordagem que frequentemente situou as esferas sociais da
economia e da política dentro da cultura, mais ou menos isolada, de determinados
povos. As informações do quadro social esboçado pelo método boasiano são
complementadas com o conhecimento sobre o quadro físico-natural, que confere uma
explicação mais complexa sobre a vida cultural de cada povo.
38 Ainda sobre o determinismo, Boas está interessado em saber o quanto o ambiente
auxilia ou atrasa o desenvolvimento técnico e mostra que, mesmo em lugares com a
abundância de recursos, são a técnica e a ação do homem os responsáveis pela
exploração da natureza. Melhor dizendo, não basta a presença dos recursos naturais, é
preciso saber usá-los com técnicas adequadas e, ainda, que não haja nenhuma
interdição cultural, uma vez que “as condições ambientais podem estimular as
atividades culturais existentes, mas elas não têm força criativa” (CASTRO, 2004, p. 61).
As culturas são influenciadas, mas não são necessariamente uma resposta direta ao
meio ambiente. A natureza, mesmo que vista em um segundo plano, não deixa de ter
um papel no desenvolvimento da cultura, enquanto “as relações espaciais dão apenas a
oportunidade para o contato; os processos são culturais e não podem ser reduzidos a
termos geográficos” (CASTRO, 2004, p. 62). Observa-se então uma distinção clara entre
geografia e análise da cultura, mesmo que elas se inter-relacionem no mundo empírico.
39 No entanto, as áreas culturais têm um caráter eminentemente geográfico com um
ponto central de difusão, onde a cultura aparece com seu vigor máximo. Em
contraposição, temos as áreas periféricas, onde podemos notar uma mistura de traços
culturais, provenientes de outras áreas culturais (Cuche, 2002, p. 68-69):

o conceito de área cultural ‘funciona’ bem no caso das culturas indígenas da


América do Norte, pois ali áreas culturais e áreas geográficas são mais ou menos
coincidentes. Mas, em muitas outras regiões do mundo, seu caráter operatório é
discutível, pois as fronteiras são bem menos nítidas e as áreas culturais só
podem ser definidas de maneira aproximativa, a partir de um número pouco
significativo de traços comuns. No entanto, empregada de maneira flexível, a
noção não é desprovida de utilidade descritiva (CUCHE, 2002, p. 69).

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
40 Aqui podemos detectar as limitações da área cultural – um problema que também se
aplica à obra de Sauer – face à sociedade moderna. Entretanto, é interessante notar que
a concepção de área cultural é muito similar à teoria das localidades centrais (SPOSITO,
2003, p. 179-181), já que, segundo esta teoria, temos a area core, que hierarquiza o
restante de região econômica. Se compararmos a teoria dos lugares centrais de
Christaller, a teoria de von Thünen, ou algumas interpretações preliminares da
sociologia urbana da Escola de Chicago, poderemos notar que elas se pautam em
modelos abstratos ideais, que encaram o espaço como um elemento dotado de uma
estrutura que organiza fenômenos que perdem intensidade ou mudam de natureza, do
centro para a periferia. O conceito de área cultural não chegou a ser aplicado nas
primeiras pesquisas empíricas de Boas e não conformou realmente uma divisão das
áreas com um amplo resultado cartográfico, por exemplo (SEEMANN, 2005, p. 15).
Dessa maneira, “foram delineadas ‘áreas culturais’, com povos de estilos de vida
semelhantes que são estudados com base na história local” (HOEFLE, 2007, p. 18).
Além disso, seu trabalho é marcado pela:

descrença na descoberta de leis naturais que governam o comportamento


humano, a rejeição de uma unidade psíquica comum para toda a humanidade em
qualquer época e lugar, o foco na individualidade e diversidade dos fenômenos e
não em sua semelhança e universalidade, e a ênfase no desenvolvimento
histórico real (indução) em vez de conjecturas e especulações (dedução)
(SEEMANN, 2005, p. 11-12).

41 Na sua proposta antropológica, existe um distanciamento de uma explicação holística


universalizante, sendo as diversas culturas apreendidas em sua especificidade, como um
elemento único. Da mesma forma, a relação entre indivíduo e cultura deve se
apresentar de maneira bem delineada, uma vez que os próprios indivíduos são os
responsáveis pela difusão e dinâmica da cultura, seja por meio de sua psicologia e visão
de mundo, seja em razão de sua relação com o restante da sociedade e o meio ambiente.
42 No final de sua carreira, Boas defende a conservação e manutenção de todas as
culturas ameaçadas, além do respeito e tolerância com sua diversidade. Da mesma
forma, Carl Sauer adotará uma postura similar, sem que, entretanto, da mesma forma
que Boas, problematize até as últimas consequências o extermínio das populações
indígenas, o caráter imperialista ou o uso político de determinados estudos culturais.
Além disso, Boas fornece todo o aparato para a constituição e perpetuação da
antropologia americana, inspirando a escola da História Cultural, que gerou grandes
pensadores como o próprio A. Kroeber ou o psicólogo e antropólogo Clark Wissler8. A
preocupação maior da escola era dar continuidade à temática da distribuição, contato e,
sobretudo, a configuração das culturas, refinando os conceitos desenvolvidos pelos
etnólogos difusionistas alemães do século XIX.
43 Mesmo com um número significativo de inovações, os autores da escola da História
Cultural foram muito criticados pelos seus pares, já que o conceito de difusão sofreu
distorções em alguns casos, apesar do grande rigor teórico e empírico herdado de Boas9.
Entretanto, como nos indica Cuche (2002, p. 67-70), os boasianos elaboraram o
conceito de modelo cultural, que se refere aos mecanismos utilizados pela cultura para
se adaptar ao meio ambiente.
44 Uma crítica importante indica que Boas acaba por gerar “’uma Psicologia Social
pseudocientífica empobrecida’ como resultado de um empirismo que ‘era tão extremo
que se tornou prejudicial ao progresso da disciplina’” (WAX apud SEEMANN, 2007, p.
7). Outros acusam Boas de não ter empenhado esforços para consolidar uma teoria,
tendo em vista o rico material coletado ao longo de anos de pesquisa (SEEMANN, 2007,
p. 7).
45 Ao manter o foco nas relações entre as culturas, a escola da História Cultural
contribuiu para avanços sobre o esclarecimento das trocas culturais e do processo de
aculturação, o que gerou uma melhor elaboração do conceito de empréstimo cultural.
Uma das conclusões de Boas e de seus discípulos é que tudo depende de quem oferece e
quem recebe os traços culturais específicos (CUCHE, 2002, p. 68-70).

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia

Kroeber e a natureza da Cultura


46 Ao iniciar o debate sobre a cultura, Kroeber faz uma espécie de abstração,
remontando às origens da vida. Sendo assim, considera que o desenvolvimento da vida
humana começa no nível inorgânico, segue para o orgânico e finalmente para o nível
social ou cultural. Kroeber reconhece a cultura como um nível particular, uma ordem ou
uma emergência dos fenômenos naturais:

o nível [cultural] é marcado por uma certa organização distintiva de seus


fenômenos característicos. É de supor que a emergência dos fenômenos da vida,
a partir da anterior existência inorgânica, seja a segregação mais antiga e mais
básica de uma ordem ou nível. Semelhante a emergência não quer dizer que os
processos físicos e químicos sejam suprimidos mas sim que novas organizações
ocorrem no novo nível (KROEBER, 1993, p. 11).

47 Ao passarmos de um nível para outro, mudam as características dos fenômenos,


mesmo que eles estejam inter-relacionados. Sucessivamente, temos o surgimento dos
fenômenos inorgânico, orgânico e social, que criam uma grande interdependência entre
si, sendo o mais complexo chamado de social, supraorgânico, superindividual ou
superorgânico. A inovação de Kroeber consiste no fato de instrumentaliza-lo para isolar
os fatores culturais e identificá-los dentro dos fenômenos sociais – uma divisão
criticada por Boas. Dessa forma, “Tylor definiu a cultura, Boas avaliou com grande
justeza muitas de suas propriedades e influências, mas a tese de um nível cultural
distinto não interessava a nenhum deles” (KROEBER, 1993, p. 13).

Figura Alfred Louis Kroeber

48 De acordo com sua visão da ciência antropológica, a separação analítica da cultura foi
seu grande avanço ou sua ideia original, mas muitos acusaram tal concepção de possuir
um certo misticismo, ou seja, de estar distante de uma formulação científica pouco clara
(KROEBER, 1993, p. 13). A sua maneira característica de tomar a vida, o espírito, a
sociedade e a cultura de forma separadas, como um elevado grau de consciência, levam
a deduzir que tais fenômenos funcionam de forma autônoma. Contudo, o que se busca
na realidade é um modo de análise que resulte na obtenção de dados culturais puros,
identificando-os como algo separado da natureza:

Só por meio de uma abordagem cultural de fato dos fenômenos culturais é


possível indagar algumas das suas propriedades mais fundamentais. Até que
ponto se pode proceder a uma abordagem tão pura sem ter consciência explícita
dela é uma coisa que, provavelmente, varia com fatores pessoais. Não obstante,
parece-me que, se uma pessoa pretende ter uma perspectiva largamente teórica
ou filosófica a propósito da cultura, não pode evitar como ordem distinta de
fenômenos da natureza (KROEBER, 1993, p. 13).

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
49 A tentativa de apreender a cultura em si – ressalta-se que, como Boas e Sauer,
Kroeber também vê na arqueologia a fonte de dados culturais puros e brutos – é
condicionada pelo acúmulo de eventos passados, o que nos releva o peso da história na
compreensão da dinâmica cultural. Ao se subtrair os fatores históricos, se elimina um
componente de maior dimensão no processo de análise, justamente, aquele que permite
uma integração dos fenômenos com a cultura (KROEBER, 1993, p. 10-13).
50 O contexto cultural e histórico se localiza no espaço e no tempo, possuindo uma
sequência, que ocorre de uma forma estritamente acidental. Kroeber, de maneira muito
próxima a seu mestre Franz Boas, não busca na relação com a história uma lógica ou
sentido único, mas o reconhecimento das qualidades e os padrões de organização
particulares. A qualidade cultural pode ser entendida como reconstituição da história,
de forma a permitir uma apreensão do movimento da sociedade.
51 Além disso, Kroeber se posiciona contrário a uma dicotomia drástica entre o método
nomotético e ideográfico, pois as duas abordagens poderiam ser utilizadas para
qualquer fenômeno da sociedade (KROEBER, 1993, p.13). Seu trabalho busca os
padrões qualitativos (ou históricos) da totalidade da cultura, que podem ser alcançados
parcialmente por meio dos aspectos psicológicos ou do ethos de cada grupo (KROEBER,
1993, p. 14). Certamente, os valores morais constituem um ingrediente essencial da
cultura e, mesmo possuindo forte teor de subjetividade, eles podem ser abordados de
forma objetiva. Dessa maneira, é possível fazer associações e correlações, ou seja,
estudos comparativos entre as manifestações dos sistemas de valores possuídos por
diversas culturas. Assim, temas como ideologia ou religião são importantes para essa
proposta, porém o relativismo que permeia o pensamento de Kroeber defende a
comparação dos valores culturais, ressaltando sua eventual similitude, sem que exista
jamais uma hierarquização. Outra premissa importante para o relativismo é de que
qualquer fato cultural deve ser avaliado de acordo com os valores da cultura a qual se
faz parte. Esse é um desejo de investigação nem sempre concretizado, pois existe uma
grande dificuldade de se afastar todo tipo de valor cultural do pesquisador, de maneira
a torná-lo absolutamente neutro.
52 A respeito da totalidade cultural, ou seja, dos todos culturais, o autor nos indica e
critica os trabalhos de sua época:

os todos culturais apresentam uma série de problemas: no que se refere à sua


distinção ou continuidade, por exemplo, ao seu grau de consistência ou
integração interna à sua natureza, e ao que contribui para as descontinuidades e
integração que evidenciam. Os antropólogos adquiriram uma habilidade
considerável na apresentação de todos culturais de dimensão tribal, como
unidades discretas, tal como em seguir a circulação material e de formas entre as
culturas; mas têm-se preocupado pouco com os problemas de segregação
exterior e consciência interna, em particular de civilizações grandes (KROEBER,
1993, p. 16).

53 É interessante notar que para Kroeber, uma cultura entendida como parte do todo
cultural é um dado próprio de determinado grupo e não fruto de uma geração de
indivíduos vivos, mas daqueles que os procederam.
54 De acordo com Kroeber, alguns poucos valores morais possuem uma faceta universal
que alcançam um patamar fixo, pan-humano ou quase absoluto. Temos, então, algumas
ideias que são recorrentes em diversos grupos humanos e que podem ser admitidas
como universais, contudo, nenhuma cultura possui valores perfeitos ou imperfeitos. A
descoberta do valor universal é fruto de longas análises e comparações, e, quanto a
Kroeber, este também utiliza o método comparativo e o relativismo cultural, na
tentativa de forjar um conjunto coerente de valores recorrentes em todas as culturas
(KROEBER, 1993, p. 13-15).
55 Quanto à observação social, temos o uso de outros níveis de análise, o que denota o
desejo de uma teoria social mais ampla. Primeiramente, a sociedade e a cultura são os
dois componentes diferentes que moldam os indivíduos, sendo estes responsáveis pela
formulação da consciência psicológica ou da personalidade, o que evidencia o caráter
indissociável entre sociedade, cultura e psicologia, elementos estes componentes dos

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
níveis de análise social para Kroeber. Sobre isso, registra-se, ainda, que a opção do
autor é tratar cada um dos mencionados elementos de maneira isolada, a fim de se
obter uma melhor eficiência na produção do conhecimento, de modo a suspender
alguns problemas de método:

uma sintetização prematura e em curto-circuito é, desse modo, evitada, por meio


de discriminação que surge associado nos fenômenos e deslindando, do
emaranhado que a actualidade nos apresenta, um nível de factores de cada vez e
vendo até onde é possível segui-los nessa qualidade, antes de os voltar e a
prender numa teia maior de compreensão, juntamente com outros fios
(KROEBER, 1993, p. 17).

56 Assim, verifica-se uma preocupação em se separar os fatores sociais dos individuais,


visando a obtenção de dados estritamente culturais, para, posteriormente, relacioná-los
entre si. Ademais, sociedade, cultura e indivíduo são como “peças” da máquina social
que devem ser desmontadas, compreendidas e depois remontadas pela análise de seu
funcionamento, sempre procurando não ignorar os elementos do quadro natural,
porque apesar destes exercerem influência sobre alguns aspectos, os mesmos nunca
determinam seu comportamento e evolução da cultura (KROEBER, 1993, p. 16-18). A
cultura, como um dos níveis de análise, se apresenta de maneira independente da
sociedade, podendo-se tomar, como exemplo disso, a cultura egípcia: mesmo que os
egípcios da antiguidade não existam mais, os seus valores estéticos ainda estão
impregnadas nas paisagens do entorno do seu sítio original. Sua cultura monumental,
seus escritos, seus ensinamentos e organização social ainda nos suscita curiosidade e
vislumbramento, sendo assim, pode-se dizer, em suma, que apesar do fato da cultura
egípcia estar em uma fase avançada e permanente de decadência, ela ainda é capaz de
se fazer notar. Nesse sentido, a cultura supraorgânica se apresenta como uma espécie de
entidade autônoma capaz de se manifestar independente da sociedade e dos indivíduos
que estiveram ligados a ela, considerando-se que a cultura é uma dimensão da
sociedade que desfruta de uma relativa independência e autonomia.
57 Em busca de uma solução para o confronto entre os conceitos de civilização e cultura,
Kroeber sempre leva em consideração os contextos históricos das relações e das origens
das formações sociais. Para Kroeber, a história é a base de todas as ciências humanas e
funciona como crítica à razão iluminista e ao modelo positivista de ciência.
58 Cabe ressaltar, também, que essas ideias são absorvidas e trabalhadas por Sauer, pois
para ambos os autores a visão de ciência está muito próxima a uma ciência nomotética,
que tenha base histórica e que considere a cultura como uma característica
superorgânica, ao mesmo tempo, não desprezando os estudos idiográficos. Tendo-se em
vista que o superorgânico é utilizado no sentido em que há uma superação das
limitações orgânicas do “animal” homem por meio da técnica, da cultura e da sociedade,
pode-se dizer que o mesmo consiste em um fenômeno que se desenvolve e ultrapassa as
diversas gerações, sendo visto, portanto, com um certo grau de independência dos
indivíduos e do grupo social. Tal conformação, de suma importância, é encarada como
experiência coletiva historicamente acumulada, apesar de sua relativa impessoalidade:
"a visão cultural não é só colectiva, é também, quase inevitavelmente, de longo alcance,
porque a dimensão do tempo lhe acrescenta muita coisa, conferindo, aos fenômenos a
qualidade de dinamismo, fluxo ou crescimento" (KROEBER, 1993, p. 18). Com isso,
podemos constatar não é possível descartar o paralelismo entre essas contribuições e as
reflexões de Ratzel sobre a herança adaptativa.
59 Novamente, a cultura é vista sob esta ótica histórica, isto é, como um organismo que
tem seu nascimento, desenvolvimento e declínio, seguido do surgimento de um novo
padrão. Sobre o determinismo frente ao livre-arbítrio do desenvolvimento humano,
Kroeber conclui que esta é uma questão sem uma resposta científica e que a influência
do meio deve ser observada na realidade, sem que sejam elaboradas abstrações ou
possibilidades que não correspondem ao empírico (KROEBER, 1993, p. 20). Contudo,
Kroeber argumenta que a cultura é a superação do nível orgânico e que todos os
fenômenos culturais “[são] parte de um processo natural e deve ser visto cada vez mais

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
no contexto da natureza” (KROEBER, 1993, p. 21). O autor usa de tal artifício para
superar essa cisão, entre natureza e sociedade, a qual ele considera empiricamente
artificial, já que os níveis de existência são interdependentes.
60 Dentro da antropologia norte-americana se criticou, principalmente, a ênfase dada
aos valores morais que resultam em um retrato estável (ou até mesmo imutável) da
cultura, cenário este que faz com que se esconda a faceta dinâmica da cultura, que se
transforma e reage às novas circunstâncias impostas pelos acontecimentos sociais ou
mesmo pelas mudanças naturais (CLAVAL, 2002, p. 21 e CUCHE, 2002, p. 68, 80-87).
Porém, como vimos anteriormente, Boas e Kroeber buscavam alcançar justamente uma
forma de análise da cultura que não a considerasse como estática.
61 Além disso, a ideia do superorgânico consistiu em um dos principais pontos
debatidos pelos antropólogos e, posteriormente, pelos geógrafos que buscaram novas
alternativas. Nesse aspecto, Cuche pontua a crítica dos antropólogos feitas a Kroeber:

O essencialismo ou substancialismo, que consiste em conceber a cultura como


uma realidade em si – crítica freqüentemente dirigida aos culturalistas – é uma
crítica que se aplica somente a Kroeber, que considerava a cultura como ligada
ao âmbito do ‘super-orgânico’ (...) Kroeber atribuía conseqüentemente à cultura
uma existência própria, independente da ação de indivíduos e fugindo ao seu
controle (CUCHE, 2002, p. 87).

62 Ato contínuo, antes de encerramos, cabe ainda uma provocação. As teorias pós-
mondernas utilizam de modo amplo o relativismo entre cultura e superorgânico, que
pode ser visto por muitos como uma teoria obsoleta, diante da possibilidade de
comparação à ideia foucaultiana de discurso. Sobre isso, nos provoca Marshall Sahlins:

O indivíduo, escreveu White, é desse ponto de vista [da teoria supra-orgânica]


como uma aeronave sem piloto, controlada do solo por ondas de rádio. E, no
entanto, basta substituir ‘cultura’ por ‘discurso’ na seguinte passagem do
atualíssimo Foucault para sermos levados de volta ao obsoleto White […] Ao
ditar, seletivamente, o que pode ser percebido, imaginado ou exprimido, o
‘discurso’ é o novo super-orgânico – sob uma forma ainda mais coativa, como
efeito de um ‘poder’ que está em toda parte, em todas as instituições e relações
cotidianas. (SAHLINS, 2004, p. 82-83).

63 A ideia de discurso para Foucault não está tão distante assim de uma entidade
superorgânica, uma espécie de força mística que comanda os indivíduos. Essas duas
similaridades nos fazem pensar que talvez não seja por acaso que o pós-modernismo ou
o pós-estruturalismo originário na França, muitas vezes com grande enfoque nos
aspectos culturais, tenha sido absorvido com tanta rapidez pela intelectualidade norte-
americana, como demonstrou Cusset (2005).
64 Com o intuito de sintetizar o desenvolvimento até aqui apresentado, segue abaixo um
quadro síntese das ideias sobre cultura, desde Herder até Sauer:

Quadro 1 – Influência dos antropólogos na geografia cultural

Último quartel do
Primeiro quartel do século XX
séc. XIX

Herder Boas Kroeber Sauer

Abandono do História como um


Preocupação com o modo
conceito de elemento Preocupação em isolar
de vida de cada
civilização ou fundamental para o os fatos culturais
sociedade
cultura universal movimento da cultura

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Superorgânico: cultura
Relação homem-meio
Influência do como uma entidade
Foco nas culturas pautada nos impactos e
pensamento essencial e com certa
nacionais adaptações dos modos de
geográfico independência da
vida particulares
sociedade

Abordagem através
Preocupação com História como elemento
de estudos Grande ênfase nas
a unificação central para compreender
monográficos de variáveis históricas
alemã a cultura
cada cultura

Níveis de análise:
aspectos
Níveis de análise: Níveis de análise:
Resgate histórico psicológicos,
sociedade, cultura e paisagem natural e
da cultura antecedentes
psicologia paisagem cultural
históricos e quadro
natural

Cultura como valores


Estado como um Áreas Culturais e morais com pouco Áreas Culturais e
organismo vivo Difusionismo potencial para Difusionismo
modificações

Cultura analisada sob a


Cultura como um
perspectiva das ideias de
elemento não
cada povo, mas
redutível a termos
principalmente a partir de
espaciais
sua vida material

Cultura como agente


transformador da
paisagem

poder-se-ia distinguir duas posturas principais dentre as diversas orientações que


lidam com sistemas de fatos e de representações comumente recobertos pelo
conceito mais abrangente de cultura. De um lado, a problemática kantiana que
encontra seus herdeiros em Cassirer, Sapir, inclusive Durkheim e Lévi-Strauss,
considera a cultura – e por extensão todos os sistemas simbólicos, como a arte, o
mito, a linguagem, etc. – em sua qualidade de instrumento de comunicação e
conhecimento responsável pela forma nodal de consenso, qual seja o acordo
quanto ao significado dos signos e quanto ao significado do mundo. De outro,
tende-se a considerar a cultura e os sistemas simbólicos em geral como um
instrumento de poder, isto é, de legitimação da ordem vigente. Refere-se, neste
caso à tradição marxista e à contribuição de Max Weber que, a despeito desta
aproximação, acham-se separados por outros tantos motivos? (MICELI, 2001, p.
VIII).

65 Nos arriscamos, ainda, a indicar que Boas e Kroeber se situem na primeira tradição
indicada. A marca do kantismo está presente em Boas e Kroeber, bem como a
contraposição ao evolucionismo e um distanciamento da discussão sobre o poder e sua
dinâmica social. Da mesma forma, é possível relacionar a concepção de cultura
supraorgânica com uma concepção de estrutura estruturada, ou seja, a cultura tem uma
organização rígida e estática que pode ser pouco modificada pelos indivíduos que dela
fazem parte, portanto, eles são moldados pelas contingências culturais a que estão
expostos. Na posição oposta à concepção de estrutura estruturada, encontramos a de
estrutura estruturante, noção que legitima o poder do indivíduo em fazer a história e
alterar as contingências herdadas da geração precedente.
66 Independentemente de uma tentativa de classificação, é evidente que Sauer, Boas e
Kroeber trabalham com conceitos e ideias que têm raízes na geografia e no pensamento

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23/01/2024, 18:37 Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação entre geografia e antropologia
romântico alemão: o difusionismo cultural, os todos culturais como sistemas mais ou
menos fechados, a valorização da história, a rejeição ao determinismo, o vitalismo, as
áreas culturais e o papel atribuído à técnica. Isso nos demonstra como a antropologia e
a geografia do final do século XIX e início do XX tem muitos elementos em comum e, de
certa forma, uma sobreposição de seus objetos de estudo. Não é possível negar o fato de
que geógrafos de renome fizeram carreira ou obtiveram um reconhecimento importante
na antropologia: F. Ratzel, F. Boas, Karl A. Wittfogel são exemplos disso. Defendemos o
fato de que recuperar essa rica herança de diálogo interdisciplinar nos permitirá
repensar as tradições geográficas, bem como problemas epistemológicos da geografia
que se fazem presentes contemporaneamente.
67 Assim como a geografia clássica de Vidal de la Blache, a tradição boasiana vê que a
natureza não determina a sociedade mas lhe imprime uma marca, já que as culturas
tradicionais estão intimamente ligadas com o seu meio original. Para essa tradição de
pensamento, a técnica contorna os empecilhos da natureza e a modifica, porém, muitas
vezes a cultura é interpretada como elemento isolado da sociedade. Mesmo que exista
uma imperativa busca pelos antecedentes históricos de determinada sociedade, a
cultura não é vista dentro de seu próprio tempo, ou seja, a obsessão por dados culturais
puros não só isola a cultura da dinâmica social total, como também a priva de sua
situação histórica contemporânea e das contradições em que ela está submetida ao se
aculturar.
68 Talvez, a falta de uma divisão mais significativa de áreas culturais nos EUA tenha se
dado pela ausência de uma divisão estritamente regional das monografias promovidas
por Boas, pois claramente o foco da pesquisa se pauta mais na cultura em si do que no
recorte espacial rígido. Como dissemos acima, a antropologia cultural norte-americana
não problematizou até as últimas consequências o desaparecimento das sociedades
indígenas do continente, apesar da nítida simpatia pelos valores humanos e pelas
culturas estudadas. Muito provavelmente, seria difícil delimitar com rigidez o território
de tais sociedades que estavam em via de desaparecimento ou de aculturação. O
vitalismo cultural pode ser interpretado como uma justificava mais ou menos natural
para culturas que estavam desaparecendo frente à modernidade. Assim, a cultura que
nasce, vive e morre endossa as transformações sociais, apesar da simpatia para com os
autóctones e o relativismo, que pode ser outro elemento de esquiva à reflexão política
do contato cultural entre as sociedades.
69 Mesmo diante de um mundo globalizado, talvez a ideia de área cultural ainda tenha
algum valor na atualidade. Ela poderia ser aplicada para dar concretude aos processos
da geografia cultural. Independentemente dessa possibilidade, podemos observar como
se manifesta na antropologia uma tensão entre a concepção idiográfica e nomotética da
ciência, ilustrada nas diferenças de abordagem de F. Boas e A. Kroeber. Da mesma
forma, o dilema sobre o papel da influência do meio na vida social é uma outra
preocupação similar. Por fim, se dissemos no início do artigo que Sauer sintetiza várias
posturas da geografia alemã, da mesma forma, poderíamos indicar que Kroeber propõe
uma abordagem que usa vários elementos de tradições antropológicas precedentes.
Caberia, no futuro, justamente investigar porque houve um distanciamento entre
antropologia e geografia, se ambos os campos têm raízes em comum e, pelo menos no
caso norte-americanos, tiveram um desenvolvimento tão sinérgico. Será que tal
distanciamento ocorre por razões epistemológicas ou institucionais? Ou ainda por
ambos os motivos?

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Notas
1 Holzer (2008, p. 143) ressalta a tentativa de Cosgrove em ligar a geografia humanística ao
marxismo ou a de Sayer de relacioná-la ao materialismo histórico. Esse primeiro momento da
corrente humanística contrastaria com um segundo mais aberto às múltiplas influências e ao
ecletismo.
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2 Da mesma forma, para Fichte o reunião do todo nas partes de um organismo carateriza uma
condição única e essencial. No organismo, o todo só funciona com as partes em uma totalidade.
Assim, “Fichte caracteriza o estado como organismo porque os indivíduos podem ser pessoas
somente como membros de comunidades políticas justas; fora de tais comunidades os indivíduos
podem viver como animais, mas não como agentes racionais. Esta ideia, que se origina na
verdade em Aristóteles, é outro aspecto central da filosofia política de Fitche que é mais tarde
endossada por Hegel, embora ele acabe rejeitando a teoria de um contrato social mais amplo
dentro do qual Fichte o enquadra” (DUDLEY, p. 148).
3 Talvez essa situação se modifique apenas no pós-guerra com a ascensão do neopositivismo,
quando a física se estabelece como campo científico modelar. O resultado de tal influência na
geografia é nítida com as transformações engendradas pela nova geografia.
4 Schlüter também como Sauer admite que a geografia morfológica do presente funciona como
elemento chave para compreender a geografia histórica do passado (SEEMANN, 2004, p. 72-73).
5 Schlüter teve força de inserção na geografia francesa influenciando, por exemplo, Jean Brunhes.
6 Cabe destacar que Waibel, também influenciado por Schlüter, o critica e começa a trabalhar
com a ideia de formação econômica, porque ela “inclui elementos que não são fisionomicamente
evidentes, ou ainda, a mudança no conceito de paisagem para o espaço econômico, entendido
como sistema socioecológico” (ETGES, 2012, p. 56).
7 Esta referência se trata de textos originais de Franz Boas traduzidos para o português sob a
organização e o prefácio por Castro (2004).
8 É interessante notar que o marxista Karl A. Wittfogel, exilado da Alemanha nazista, se insere no
grupo de Boas e passa a produzir trabalhos de antropologia cultural. Esse processo marca uma
grande aculturação intelectual e uma completa guinada no perfil de sua produção acadêmica.
Depois da revolução comunista da China seu ímpeto anticomunista se torna público e Wittfogel
passa a defender ferreamente a tese que União Soviética e China são sociedades asiáticas e
despóticas com lógicas de funcionamento intrinsecamente ligadas. Obviamente, ele não consegue
explicar a cisão entre Mao e Krushev, na década de 1960 (LINTON, 2011, p. 23-68).
9 A difusão, na geografia, também ganhou muita relevância na época de ascensão da nova
geografia. O pensamento de T. Hägerstrand foi fortemente inspirado em modelos que tentavam
explicar a difusão de inovações tecnológicas no espaço geográfico.

Índice das ilustrações

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Para citar este artigo


Referência eletrónica
Breno Viotto Pedrosa, «Sauer, Boas, Kroeber e a cultura superorgânica: notas sobre a relação
entre geografia e antropologia», Confins [Online], 23 | 2015, posto online no dia 02 março 2015,
consultado o 23 janeiro 2024. URL: http://journals.openedition.org/confins/9958; DOI:
https://doi.org/10.4000/confins.9958

Autor
Breno Viotto Pedrosa
Universidade federal da integração latino-americana, brenoviotto@hotmail.com

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Considerações sobre a Sudesul: formação e modernização territorial [Texto integral]
Considerations about Sudesul: territorial formation and modernization
Réflexions sur la Sudesul: formation et modernisation territoriale
Publicado em Confins, 47 | 2020

Direitos de autor

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