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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA MULHER NA SÉRIE ANNE WITH AN “E”: UMA ANÁLISE À LUZ

DA MULTIMODALIDADE E DO MODELO SHOW ME

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar um recorte do resultado de uma pesquisa
desenvolvida para o programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Ensino, pela Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte. Orientados pela Linguística Aplicada (LA), realizamos uma
pesquisa-ação, com características descritivas, com enfoque interpretativista, cuja análise dos
dados se deu qualitativamente. Tais dados foram gerados em uma escola pública do Estado do
Ceará, na sala de aula de língua inglesa. As nossas análises trazem representações sociais da
mulher na série Anne with an “e” à luz da multimodalidade e do modelo Show Me de Jon
Callow discutidas por alunos do ensino médio. Assim, tivemos como locus da pesquisa a sala de
aula, exibimos cenas da série, previamente selecionadas, e aplicamos um roteiro de análise
semiestruturado. Considerando a necessidade de discutirmos os papéis sociais construídos ao
longo da história e as relações de poder que os textos veiculados diariamente representam,
assim como refletimos sobre a necessidade de uma formação leitora que explore os múltiplos
modos dos textos. Os resultados obtidos expuseram as dificuldades dos estudantes de
explorarem uma imagem como um texto, além de evidenciar a importância de estimular o
letramento visual crítico na sala de aula.
Palavras-chave: Multimodalidade. Ensino. Representações Sociais. Anne with an “e”.

SOCIAL REPRESENTATIONS OF WOMEN IN ANNE WITH AN “E”: AN ANALYSIS UNDER THE


MULTIMODALITY AND THE SHOW ME FRAMEWORK

Abstract: This article aims to present an excerpt from the result of a research developed for
the Strictu Sensu Graduate Program in Teaching at the State University of Rio Grande do
Norte.
Guided by Applied Linguistics (AL), we carried out an action research, with descriptive
characteristics and an interpretive focus, whose data analysis was qualitative. Such data were
generated in a public school in the State of Ceará, in the English language classroom. Our
analysis bring social representations of women in the Anne with an “e” series under the
multimodality and on Jon Callow’s Show Me model discussed by students from high school.
Thus, we the classroom was our research locus. We exhibit previously selected scenes from
the series and apply a semi-structured analysis script. Considering the need to discuss the
social roles built throughout history and the power relations that the texts conveyed daily
represent, as well as the need for a reader training that explores the multiple modes of texts,
the results obtained exposed the difficulties of the students to explore an image as a tex as
well as the importance of stimulating critical visual literacy in the classroom.
Keywords: Multimodality. Teaching. Social Representations. Anne with an “e”.

1 INTRODUÇÃO
A dinamicidade da sociedade contemporânea tem afetado a nossa comunicação
significativamente. Nos últimos anos, podemos constatar a transição de um mundo analógico
para o digital, e com ele, novos aparelhos, novos recursos e novas redes sociais. Com essa
mudança, passamos a produzir textos em diferentes formatos explorando, principalmente, o
visual. O visual está presente em todas as nossas produções e atrai o nosso olhar por se
configurar em múltiplos modos como: sons, movimentos, cores, imagens etc., sendo assim,
todas as nossas produções sempre foram multimodais (KRESS, 1996), mas, atualmente, estão
mais intensamente multimodais.
Diante disso, nossa concepção de texto também deve ampliar-se, a fim de abranger as
novas produções que estão surgindo e, para tanto, precisamos refletir sobre o que é a leitura,
para além do modo escrito. Durante muito tempo, a hegemonia do verbal prevaleceu como
única fonte de produção textual e representação de significados. Atualmente, já é possível
perceber que o código escrito é uma das formas de produção de sentidos e não, a única.
Então, “de que forma podemos utilizar esse contexto para o desenvolvimento de um
letramento visual positivo e inclusivo, dotado de atividades menos volúveis e descartáveis e
mais significativas, criativas e construtivas na sala de aula?” (OLIVEIRA, 2006, p. 17).
Portanto, atribuímos à escola e aos professores o dever de oportunizar na sua prática
pedagógica o desenvolvimento de uma leitura multimodal, que possa formar o aluno
criticamente para a sua vida social. Esse ensino pode se dar através das inúmeras ferramentas
que as mídias digitais nos oferecem, como, por exemplo, o recurso semiótico escolhido para a
nossa intervenção: as séries de tv. Cada recurso semiótico apresenta suas limitações e
potencialidades (affordances) de acordo com o que se pretende desenvolver (BEZEMER;
JEWITT, 2009), ficando a cargo do professor atuar como um designer, selecionando e
adequando a ferramenta aos seus objetivos.
Feito esses apontamentos, salientamos que a nossa análise é um recorte de como
recursos semióticos podem ser explorados na sala de aula, já que cada recurso semiótico
apresenta suas limitações e potencialidades (affordances) de acordo com o que se pretende
desenvolver (BEZEMER & JEWITT, 2009). Para esta pesquisa, consideraremos pelo menos dois
modos: o verbal e o visual, com ênfase no tratamento do texto visual, mais especificamente,
das imagens da série Anne with na “e”, no nosso contexto de ensino.

A série Anne with an “e” se baseia em obras literárias que têm classificação
infantojuvenil e é permeada de temáticas que podem ser exploradas na sala de aula. Com o
intuito de estimular o letramento multimodal crítico dos estudantes, focamos nas
representações sociais da mulher contidas nas cenas que selecionamos para a aula de língua
inglesa à luz do letramento multimodal. Nossa pesquisa teve, portanto, enfoque na
multimodalidade, defendida por Kress e van Leeuwen (1996), por acreditarmos que ela pode
contribuir para o contexto social, político e pessoal dos alunos, se inserida na dinâmica escolar.
Tal conceito vai ao encontro da Semiótica Social e da Linguística Aplicada (LA), áreas que
fundamentam e dão respaldo à multimodalidade.
A Semiótica Social, proposta por Hodge e Kress (1988), pode ser resumidamente
conceituada, a partir de duas das suas principais premissas: a de que o signo é sempre situado
em um contexto social e, portanto, é motivado, e a de que o significado não está apenas no
modo escrito/verbal, mas em uma variedade de modos (visual, sonoro, gestual, espacial etc.),
dos quais, aqui, destacaremos o modo visual. A Semiótica Social entende que os signos são
produzidos de acordo com os interesses de seus produtores, desse modo, a forma como dada
composição é orquestrada para convencer e persuadir seus leitores é uma das questões. À
multiplicidade de modos que pode haver em uma dada produção, chamamos de
multimodalidade (DESCARDECI, 2002). Portanto, como adotada aqui, a multimodalidade é uma
abordagem orientada pela Semiótica Social. Nessa perspectiva, imagens, por exemplo, são tão
carregadas de ideologia quanto qualquer texto verbal.
Já a linguagem pensada sob o viés da Linguística Aplicada não é conceituada também
somente como sistema. Muito pelo contrário. É ideológica e está conectada à cultura, à
identidade e à política. Entender como as relações sociais são produzidas, confrontadas e
reorganizadas é interesse da LA. Assim, a Linguística Aplicada tem mudado o foco central,
inicialmente pensado para o ensino de língua e aquisição de segunda língua, para um conceito
mais amplo e crítico da língua na vida social (PENNYCOOK, 2010. O autor cita, como exemplo,
as relações de poder e a luta contra alguns privilégios. Na nossa análise, veremos passagens
nas cenas exibidas, em que a luta das mulheres contra os privilégios dos homens é tema para
reflexão e é colocada para discussão entre os alunos. O trabalho feminista é citado pelo autor
como um exemplo de área evidentemente crítica, embora não se nomeie dessa forma. A sua
proposta de uma LA crítica, segundo o próprio autor, “apresenta uma forma de fazer
linguística aplicada que busca conectá-la a questões de gênero, classe, sexualidade, raça,
cultura, identidade, política, ideologia e discurso1” (PNNYCOOK, 2010, p. 16.3).

1
Tradução nossa para: presents a way of doing applied linguistics that seeks to connect it to questions of
genre, class, sexuality, race, ethnicity, culture, identity, politics, ideology and discourse (PNNYCOOK,
2010, p. 16.3).
Na seção seguinte, os conceitos teóricos utilizados neste trabalho serão melhor
discutidos, começando por considerações a respeito das representações femininas, bem como
definições e propostas pedagógicas que guiaram as nossas análises.

2 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER E A MULTIMODALIDADE: CONSIDERAÇÕES PARA O


ENSINO DE LÍNGUAS

A construção dos papéis sociais da mulher ao longo da história se deu a partir de


padrões comportamentais e estereótipos idealizados pela sociedade patriarcal. Para
analisarmos com efeito as representações sociais da mulher na série Anne with an “e”,
apoiamo-nos nos conceitos de corpo social proposto por Bourdieu (2002). Essas
representações sociais são sustentadas pelo dualismo, ou seja, “a divisão das coisas e das
atividades (sexuais e outras), segundo a oposição entre o masculino e o feminino recebe sua
necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas”
(BORDIEU, 2002). Sob essa ótica, as relações de poder são enfatizadas, “a começar pela divisão
socialmente construída entre os sexos” (BOURDIEU, 2002).
Ainda de acordo com Bourdieu (2002), a ordem social funciona como uma máquina
simbólica que legitima a dominação masculina atribuindo características pré-concebidas aos
gêneros, por exemplo, o uso das cores azul e rosa definidas para menino ou menina,
respectivamente. Não há dúvidas de que a mídia, com todo o seu aparato tecnológico,
contribui para reforçar muitas dessas representações e para veicular textos e significados
enraizados na sociedade. Com essas tecnologias, produções diversas são possibilitadas,
servindo a muitos interesses e requerendo de nós as habilidades para interpretá-las.
Diante das profundas transformações nos processos de comunicação e nas nossas
práticas sociais, as relações de poder são reproduzidas por esses meios das mídias, sendo
necessário, portanto, atentarmos para essa pluralidade de signos denominada
multimodalidade. Considerando-a um traço característico da linguagem, e, muito
notadamente, dos textos midiáticos, nossas concepções de texto e, consequentemente, de
leitura se ampliam significativamente, como veremos na subseção a seguir.

2.1 LEITURA MULTIMODAL: ALGUNS CONCEITOS

O conceito de leitura que adotamos aqui defende que a palavra leitura acarreta
consigo uma gama de sentidos, no entanto, o maior deles é a decodificação do código escrito.
Leitura significa, para a maioria das pessoas, ler palavras. Pensando dessa forma, o processo de
alfabetização cumpre o seu papel, mas devemos nos questionar se ele é suficiente, já que é
preciso interpretar o que lemos, criar sentido, fazer conexões com a nossa realidade e
sociedade, enfim, estamos falando de um processo demasiado subjetivo que, invariavelmente,
a alfabetização não abarca.
Como afirma Freire, a leitura do mundo precede a leitura da palavra (1989, p. 09) ou
seja, antes de entrarmos na escola, onde veremos o conceito de leitura de modo
sistematizado, já produzimos significados na nossa rotina familiar e em outras esferas sociais.
Obviamente, a maioria das pessoas e boa parte dos professores, ainda não veem a leitura sob
essa perspectiva, muito embora, como já mencionado, Freire contestasse essa noção restritiva
da leitura ao código escrito há anos.
Considerando-se, assim, o sentido amplo de leitura proposto por
Paulo Freire, deve-se repensar o posicionamento teórico da escola
sobre leitura e escrita. O aluno (criança, jovem ou adulto) traz para o
ambiente escolar o conhecimento de um mundo que ele já aprendeu
a ler e escrever, a representar (no sentido de Kress & van Leeuwen,
1996), ainda que sem conhecer o código escrito como forma de
representação. Esse conhecimento é complexo em sua estrutura,
sendo perfeitamente válido para suas interações pessoais. Esse
conhecimento não pode ser simplesmente substituído por outro mais
valorizado e aceito por aqueles que lêem e escrevem o mundo
através da escrita (DESCARDECI, 2002, p. 20).

Entre celulares, tablets, computadores, redes sociais e aplicativos, nossas


possibilidades de leitura se ampliaram significativamente, gerando modos comunicacionais
híbridos que nos desafiam no dia a dia e impulsiona um novo olhar sobre a leitura. A
velocidade das informações bem como os seus impactos sociais, exigem de nós novas
habilidades de compreensão textual. Portanto, a multimodalidade é uma abordagem, não uma
teoria, sendo um fator constitutivo da linguagem, ou seja, ela sempre existiu.
De acordo com Kress (1996), não existe texto monomodal. Aqueles que julgamos ser
no qual vemos “apenas uma folha escrita”, por exemplo, apresentam uma escolha de layout
da página, tipo de papel, cor das linhas e etc. Atualmente, temos uma comunicação pautada
na linguagem multimodal o que, naturalmente, implica a multiplicidade de recursos
semióticos. “Sabemos que as pessoas utilizam seus recursos modais disponíveis para fazer
sentido em contextos específicos” (JEWITT, 2008, p. 246).
Como nos reafirma Kress (1996, p. 32), “a comunicação é multimodal: às vezes pela
fala, como um comentário falado, como uma instrução ou pedido, pelo olhar; por meio de
ações - passar um instrumento, estender a mão para pegar um instrumento, pelo toque”
Considerando que essa ideia de comunicação que pode ocorrer de diferentes formas não faz
parte do processo de formação docente, vale destacarmos a importância do laço que devemos
estabelecer entre as pesquisas acadêmicas e as escolas, maiores beneficiadas com os
resultados das pesquisas desenvolvidas.
Entendemos a multimodalidade como múltiplos modos, explicitado pelo termo multi.
Esses modos vêm crescendo numa velocidade ímpar e logo se integraram às nossas práticas
sociais e textuais. Observando a conjuntura vigente, as possibilidades de combinações dos
modos também vêm mudando e se readequando às nossas necessidades de produção de
sentidos, como demonstram os textos impressos, animados, visuais e audiovisuais, dentre
outros. Segundo Silva (2016), numa perspectiva multimodal, imagem, ação e outros se referem
a modos como conjuntos organizados de fontes semióticas para fazer sentido. Para Hemais
(2010), a multimodalidade pode ser definida da seguinte forma:

A multimodalidade é entendida, em termos gerais, como a co-


presença de vários modos de linguagem, sendo que os modos
interagem na construção dos significados da comunicação social. O
que é importante nessa visão de uso de linguagens é que os modos
funcionam em conjunto, sendo que cada modo contribui de acordo
com a sua capacidade de fazer significados (HEMAIS, 2010, p. 01).

Já para Van Leeuwen (2017), a multimodalidade é o estudo de como os significados


podem ser feitos, e de fato são feitos em contextos específicos, com diferentes meios de
expressão ou modos semióticos. A realidade é que, a multimodalidade está presente em tudo
e a sociedade é multimodal por natureza. Sendo assim, todos os dias nossas interações e
produções de texto estão “recheadas” de gêneros multimodais. Esse fato já justifica o exercício
da leitura multimodal na sala de aula.

2.1.2 A LEITURA DE IMAGENS E O MODELO “SHOW ME”: QUESTÕES PARA O ENSINO

Com base em Oliveira (2006), estamos, cada vez mais, percebendo o mundo por meio
de imagens, ícones, símbolos, gráficos e desenhos e a junção dos modos semióticos é o que
acreditamos ser o melhor caminho. O texto visual permeia boa parte das nossas produções
diárias, portanto, ler o visual tornou-se uma necessidade já que “as novas noções de leitura
estão trazendo mudanças no que os leitores são, então novos usos modais e novas mídias
estão tendo efeitos igualmente profundos na escrita e na noção de autor e autoridade”
(KRESS, 2005, p.18-19).
As imagens ganharam um espaço nas nossas relações comunicacionais porque
“produzem e reproduzem relações sociais, comunicam fatos, divulgam eventos, e interagem
com seus leitores com uma força semelhante à de um texto formado por palavras”
(FERNANDES, ALMEIDA, 2011, p. 01). Com o aparato das telas, nossas mensagens são
constituídas em grande parte por símbolos e imagens, devendo o aluno aprender a ler essas
mensagens identificando as intenções na sua composição. Essas mensagens multimodais têm
seu processo de leitura pautado na não linearidade, oferecendo uma leitura de forma mais
ampla e dinâmica para compreensão das informações” (SOUZA, 2020, p. 29).
Nessas novas composições, a linguagem escrita tradicional não é mais a única capaz de
produzir sentidos, tampouco, os letramentos necessários para as práticas sociais dos
indivíduos. O código escrito é uma das formas de texto na era do visual, como assinala Oliveira
(2006). Imagem, vídeo, gifs, ilustrações, emojis, podcast são algumas das muitas possibilidades
que a tecnologia e as mídias digitais nos oferecem. Considerando esse poder do visual, Oliveira
(2006, p.17) atenta para o caráter “voyeurístico” da sociedade. A autora nos diz:

Aliado a tal contexto some-se a característica típica de nossa


sociedade contemporânea, qual seja a do imediatismo lúdico-
hedonista. Cada vez mais sentimos a urgência do olhar como fonte
voyerística de prazer: é preciso digerir imagens rapidamente,
consumir mensagens consubstanciadas em símbolos de
internalização muitas vezes efêmera e de alta volatilidade disponíveis
na TV, na Internet, nos jornais, etc.

Precisamos, também, inserir a prática de ler textos imagéticos na sala de aula,


estimulando crianças e jovens a perceberem as estratégias utilizadas pelos produtores desses
textos, assim como acontece com os textos verbais.
Tomando por base os postulados de Kress e van Leeuwen na Gramática do Design
Visual (1996), o educador australiano desenvolveu uma proposta com três dimensões para
orientar a exploração das imagens e o letramento visual crítico, no ensino para crianças e
jovens. Essas dimensões se configuram em: afetiva, composicional e crítica.
Na dimensão afetiva, somos levados a refletir sobre o potencial sinestésico das
imagens através de “expressões de prazer ao examinar imagens” (CALLOW, 2008). Para Souza
(2020, p. 51), “o visual tem impactos emocionais e afetivos e um efeito imediato” enquanto
para Silva (2016, p. 84), “ninguém passa por uma imagem livre de qualquer que seja a
sensação: compaixão, tristeza, recordações boas ou ruins, paixão, encantamento, cidadania,
revolta, curiosidade, conhecimento cultural [...].
Na dimensão composicional, os elementos que constituem a imagem são considerados
e analisados conforme aspectos culturais, estruturais e semióticos através “do uso de uma
metalinguagem específica” (CALLOW, 2008). De acordo com Callow (2008), conceitos como
ações, símbolos, comprimento da foto, ângulos, olhar, cor, layout, saliência, linhas e vetores
refletem um conhecimento metalinguístico sobre textos visuais.
Na dimensão crítica, reconhece-se a importância de trazer à tona a crítica social de
imagens (SILVA, 2016). Para Callow (2008) “a avaliação de entendimentos sóciocríticos variará
dependendo do texto e da situação de aprendizagem”. As imagens são construtos simbólicos
que podem transmitir mensagens dos mais variados níveis.
Com essas noções introdutórias, abordaremos na seção a seguir, a nossa análise
multimodal explorando os elementos que compõem as cenas que selecionamos e comunicam
a representação social da mulher no contexto histórico da série com base no modelo Show Me
de Jon Calow (2008). Algumas questões serão colocadas em prática, com base nesse modelo,
no sentido de contemplarmos as três dimensões descritas.

3 ANNE WITH NA “E” NA SALA DE AULA: UMA ANÁLISE MULTIMODAL COM BASE NO
MODELO “SHOW ME” DE JON CALLOW

A presente pesquisa, orientada pela LA, trata-se de pesquisa-ação. Além disso,


também se caracteriza como sendo descritiva, com dados analisados a partir de uma
abordagem qualitativa. Tais dados foram gerados em uma escola pública do Estado do Ceará,
na sala de aula de língua inglesa, em uma turma do ensino médio. Como instrumentos de
pesquisa, utilizamos a observação e a gravação de aulas, como também um roteiro de análise
com as nossas anotações escritas.
Para a execução da nossa análise, nos ancoramos no modelo do educador australiano
Jon Callow (2008) Show Me: Principles for Assessing Students’ Visual Literacy. Sob a ótica de
Callow (2008), faz-se necessário ter uma linguagem para falar sobre a linguagem
(metalinguagem) e também para dar o devido espaço que as imagens devem ocupar na
construção de sentidos.
Para a nossa pesquisa-ação, escolhemos a série Anne with an “e”, por ser uma série
adequada à faixa etária e produzida recentemente.
Figura 1 – Pôster de divulgação da série
Fonte: https://br.pinterest.com

Anne with an “e” é uma produção canadense, exibida originalmente pelo canal CBC
Television e pela plataforma de streming Netflix, entrando no seu catálogo em 2017. O enredo
é baseado nas obras de literatura infantojuvenil Anne de Green Gables, cuja publicação original
data de 1908 e foram escritas pela autora canadense Lucy Maud Montgomery. Portanto, trata-
se de um roteiro adaptado constituído de três temporadas e vinte e sete episódios no total
dirigido por Moira Walley-Beckett. Além disso, o tema explorado na série estava de acordo
com os nossos interesses, a saber, as representações da mulher na sociedade. Embora seja
uma produção de época, não podemos negar que muitas das representações levantadas pela
série se perpetuam em várias parte do mundo.
Para a exibição da cena utilizamos notebook, caixa de som e datashow. A intervenção
foi realizada durante uma aula de Língua Inglesa numa turma de segundo ano do ensino médio
de uma escola regular do estado do Ceará. Inicialmente, contextualizamos a série e a cena que
seria exibida posteriormente para a turma.
No primeiro episódio, Anne chega na fazenda Green Gables por uma falha de
comunicação visto que, o casal de irmãos Marila e Matthew Cuthbert queriam adotar um
menino para ajudar nos serviços da fazenda. Esse episódio gira em torno desse desencontro e
de como a protagonista Anne confronta os papeis sociais, apesar da pouca idade. Depois do
conflito instaurado, o casal de irmãos decide, com receio, adotar a garota e, a partir de então,
vemos uma família não convencional criar laços e promover reflexões sensíveis sobre diversos
temas.

Figura 2 - cena da 1ª temporada de Anne with an “e”

Fonte: https://br.pinterest.com, 25 min e 24 s.

Dando sequência, a pesquisadora entregou o roteiro de análise semiestruturado que


continha perguntas subjetivas baseadas no Modelo Show Me de Callow e contemplavam as
três dimensões: afetiva, composicional e crítica. Como dito anteriormente, as nossas análises
se fundamentaram na observação da aula, que foi gravada, e nas respostas dos roteiros de
análise. Em seguida, exibimos a cena e observamos as primeiras reações no que tange a
dimensão afetiva e fomos fazendo as nossas anotações.
Na cena exibida, logo após a descoberta do engano sobre a adoção e o momento de
desespero que consome a protagonista, Marila explica para Anne que uma menina não serviria
ao casal de irmãos, pois, segundo Marila, uma menina não conseguiria ajudar nos serviços
braçais da fazenda de Green Gables. Em seguida, Anne discorda, para o espanto da senhora
Cuthbert, como demonstra a imagem acima. Durante a exibição, a pesquisadora ressaltou a
importância do visual:
PESQUISADORA: É importante dizer que na cena tudo é texto, todos
os elementos podem ser interpretados e querem passar uma ideia ou
mensagem, tá bom?! Então, vocês olhem tudo ao redor da cena,
roupas, posturas, expressões faciais, ok?!

Depois que os alunos assistiram à cena, a professora/pesquisadora suscitou a


pergunta: Como a mulher é representada nas cenas exibidas? Uma das respostas obtidas foi “A
mulher é representada pelas ideias padronizasas da sociedade (Aluno do Ensino Médio -
AEM).” A partir dessa resposta, questionamos os alunos quais ideias padrão seriam essas e
selecionamos as mais significativas:

PESQUISADORA: Gente, e quais são essas ideias padrão que alguns


de vocês citaram?
AEM1: Como inferior ao homem, devendo fazer “coisas de mulher”
como cozinhar, cuidar da casa e dos filhos enquanto o homem era
responsável pelo sustento da família.
AEM2: Que a mulher não tem importância na sociedade, que ela não
consegue fazer as mesmas coisas que os homens, tendo uma posição
submissa.
AEM3: Que não pode fazer nada além de fazer as coisas de casa.
Como ela era mulher tinha que ficar na cozinha e jamais poder fazer
as mesmas coisas que os meninos.
AEM4: Em um nível abaixo que o homem.

As palavras destacadas nos chamam a atenção para a compreensão dos estudantes em


relação à posição social da mulher nas cenas exibidas. Notamos que as palavras usadas pelos
estudantes denotam uma interpretação coerente com a cena, destacando a situação de
inferioridade, em que a mulher é vista e colocada, pelo menos pela personagem Marila. Ao
perguntarmos como a mulher era representada nas cenas, intencionávamos analisar o olhar
dos alunos e as suas percepções de comportamento, uma vez que poderia haver espanto ou
indiferença com a cena de acordo com a educação machista que nos é repassada. Nessa
educação patriarcal, cabe a mulher um papel específico: o de submissão e fragilidade.
Observemos as seguintes palavras e expressões destacadas: inferior, não tem
importância, não consegue, não pode fazer, jamais poder fazer e abaixo. Todas essas
palavras denotam o senso de superioridade que a sociedade patriarcal prega. Como podemos
perceber, a palavra “não” se repete em algumas respostas e entendemos que, essa negativa
presente na maioria das respostas carrega consigo séculos de repressão e privação dos direitos
femininos.
Na dimensão afetiva, observamos como os alunos se conectaram com as cenas
trabalhadas através das respostas dadas no roteiro de análise e pelas expressões faciais e
gestuais dos estudantes, que foram devidamente registradas durante a intervenção. Ao serem
questionados se conheciam a série, dois estudantes afirmaram que sim, expressando terem
gostado da produção canadense. Para os demais, a série era totalmente nova.

PESQUISADORA: O que mais chamou a sua atenção nas cenas


exibidas?
AEM1: O machismo nas duas cenas e a forma com que Anne lidava
com ele, com seus pensamentos futuristas já naquela época.
AEM2: Ela tentando passar confiança para Marila para ela e o irmão
adotarem ela.
A força e a coragem de Anne.
AEM3: O empoderamento de Anne, as ideias dela que é muito à
frente do seu tempo.

Destacamos as palavras machismo e empoderamento nas respostas acima, por se


tratarem de opostos complementares. A estudante que cita o termo machismo, logo em
seguida, aponta para o pensamento futurista de Anne, corroborando o que entendemos hoje
por empoderamento feminino. Ao mesmo tempo, a palavra futurista se alinha à expressão
usada em outra resposta “à frente do seu tempo”. Sendo o machismo um sistema que
alimenta a dominação masculina e os privilégios de um gênero em detrimento de outro, toda
mulher que se impõe ao status quo desse sistema é vista de maneira negativa e com
parcialidade.
Esse reconhecimento da subversão feminina, e, por conseguinte, o empoderamento
de Anne, pode ser identificado através das palavras força, coragem, futurista e à frente do seu
tempo, bem como pelo comportamento de Anne em confrontar Marila sobre os serviços da
fazenda. Esses fatores demonstram o quanto a personagem tem consciência da condição
feminina na sociedade do século XIX. Por ser uma menina com oito anos de idade
questionando uma mulher adulta, os estudantes interpretaram “tentando passar confiança”,
nesse caso, a jovem órfã sabia que tinha argumentos convincentes para o diálogo com Marila.
No que se refere à dimensão composicional, “o uso de metalinguagem específica é
fundamental para essa dimensão (CALLOW, 2008, p. 618).” A partir da cena exibida, toda a
composição delas deviam ser analisada sob a ótica multimodal, visto que, na cena, estamos
lidando com diferentes modos semióticos que englobam as expressões faciais, os olhares, as
roupas, os gestos, os movimentos, as posturas, ângulos das cenas, iluminação, entre outros.
Verificamos que algumas percepções dos estudantes se repetiram nas respostas e as
apresentamos a seguir:
PESQUISADORA: Como os personagens se posicionam nas cenas?
(postura corporal, olhar e gestos)
AEM1: A menina está sempre dialogando de cabeça erguida
querendo defender a opinião dela.
AEM2: A mulher mais velha tem atitudes ríspidas, principalmente o
olhar.
AEM3: A Anne se posiciona firme e confiante e Marila se posiciona
um pouco desconfortável.
AEM4: Anne está com uma postura bem firme e com um olhar bem
confiante.
AEM5: Na primeira cena Anne tem uma postura e um olhar
confiante, corajoso e forte.

Observamos que as palavras firmes e confiante se repetem fazendo referência à


postura da personagem Anne. De acordo com a metafunção interativa da GDV, a perspectiva
da imagem se configura como uma dimensão interativa, expressa através dos ângulos. Na cena
abaixo, o ângulo da câmera mostra Marila, mais alta, demonstrando posição de superioridade
e Anne, menor, demonstrando uma certa desvantagem na situação, no entanto, sua cabeça se

mantém erguida de modo que, o seu olhar foca em Marila. Ambas as personagens se olham
numa representação bidirecional, onde, os participantes podem ser metas e atores, de acordo
com a GDV.

Figura 03 – Ângulo de confronto


Fonte: 1ª temporada, 1º episódio, 25min e 42s
Os elementos visuais que levaram os estudantes a mencionarem as palavras firme e
confiante foram: o olhar fixo de Anne para Marila; sua postura ereta e segura enquanto
conversava; e o movimento que ela faz de seguir Marila pela cozinha, defendendo os seus
argumentos e tentando convencê-la de que, uma menina teria a mesma utilidade que um
menino, sem distinção alguma.
Para essa interpretação acontecer, os alunos fizeram a leitura das cenas, ou seja, as
cenas configuram-se como textos visuais, portanto, passíveis de interpretação através do
conjunto de signos e os seus significados dentro do contexto da série, exemplificando o que
Halliday (2004), afirmou de que, texto se refere a qualquer instância que faça sentido. Embora,
os alunos ainda não compreendam as cenas como texto, eles são capazes de analisarem alguns
dos aspectos constitutivos desse texto visual.
Com relação à postura das duas personagens, nos chamou a atenção o termo cabeça
erguida para demonstrar o quanto Anne estava segura na cena, enquanto Marila, se
apresentava numa posição desconfortável expressa por seu olhar e por seu movimento de não
prosseguir com a conversa. Acreditamos que esse desconforto e espanto é exposto pela
expressão facial da personagem que olha Anne com surpresa. Para Silva (2016, p. 85), essa
dimensão “reconhece o papel crucial de entender como os elementos e signos trabalham para
criar sentido na estrutura de uma imagem, bem como o impacto de situações sociais
específicas e o contexto cultural mais amplo”.
Partindo para a dimensão crítica, as imagens são construtos simbólicos que podem
transmitir mensagens nos mais variados níveis e a partir delas, relações de poder são
afirmadas, rejeitadas ou propagadas. Segundo Callow (2008), “a avaliação de entendimentos
sóciocríticos variará dependendo do texto e da situação de aprendizagem”. Embora cada
aspecto da visualização seja importante, para Anstey e Bull (2000), a crítica ideológica talvez
seja a mais desafiadora para estudantes e professores.
A compreensão da visualidade envolve também o processo de recepção do texto bem
como, as experiências do leitor e sua visão de mundo que, inextricavelmente, irão moldar os
sentidos criados através da visualidade. Nessa dimensão, reside o olhar atento que reconhece
ou tenta reconhecer o que está tanto explícito quanto implícito.
Isto posto, perguntamos aos estudantes se eles observaram inclusão ou exclusão de
algum grupo nas cenas trabalhadas de modo a identificar se os mesmos, foram capazes de
associar as ações representadas por Anne como enfrentamento a exclusão das mulheres na
sociedade da época. As respostas obtidas nos fornecem um parâmetro bem instigante.
PESQUISADORA: Há inclusão ou exclusão de algum grupo nas cenas?
Qual grupo?
AEM1: Exclusão das mulheres por acharem que não podem fazer o
trabalho de um homem.
AEM2: Exclusão de mulheres em trabalhos com visões machistas da
sociedade e padrões estabelecidos também pela sociedade para
mulheres.
AEM3: Sim, as meninas não podem fazer as mesmas coisas que os
meninos então ela era afastada nisso.

AEM4: A exclusão do grupo feminino em diversas cenas e atitudes


da época.
Sim, pois ela quer fazer coisas masculinas, mas a sociedade não deixa
ou acha que é errado.
AEM5: Anne é excluída por ser menina já que na época o
pensamento era bastante machista, onde a mulher seria inferior ao
homem e deveria fazer “coisas de mulher” como ficar na cozinha e
limpar a casa.
AEM6: Não. A Anne quer ser igual um homem, porque nós somos os
melhores.

Destacamos alguns pontos em negrito que correspondem a tópicos pertinentes para


a discussão, por exemplo, como constituem-se as tarefas de mulher e as tarefas de homem? O
AEM6 evidencia em sua resposta que a exclusão do grupo feminino é justificável, uma vez que,
a protagonista “queria ser igual um homem”. Na sequência, perguntamos ao aluno o porquê
ele achar isso e o mesmo respondeu:

AEM6: Porque ela quer fazer serviço pesado, coisas de homem.


PESQUISADORA: O fato de Anne querer ajudar na fazenda não
significa que ela quer ser um homem, no sentido de mudar o gênero,
lembrem o que ela falou que preferia ficar nos serviços da fazenda do
que ficar presa na cozinha, ou seja, era uma escolha dela.

A partir dessa colocação, foi enfatizado que a sociedade se estrutura no binarismo


de gênero determinando quais são as tarefas de mulher e as tarefas de homem. Então, os
papéis sociais são pré-determinados independendo da subjetividade do indivíduo que,
naturalmente, pode não se identificar com esses papéis que lhe são arbitrariamente
atribuídos. Bourdieu (1998) diz:

O trabalho de construção simbólica não se reduz a uma operação


estritamente performativa de nominação que oriente e estruture
representações, a começar pelas representações do corpo (o que
ainda não é nada); ele se completa e se realiza em uma
transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros),
isto é, em um trabalho e por um trabalho de construção prática, que
impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do corpo,
sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do
factível tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero – e em
particular todas as virtualidades biologicamente inscritas no
“perverso polimorfo” que, se dermos crédito a Freud, toda criança é
para produzir este artefato social que é um homem viril e uma
mulher feminina (BOURDIEU, 198, p. 17).

Essa definição de características constitui-se numa opressão social uma vez que,
aqueles indivíduos que não se adequam a elas, são invariavelmente, excluídos. Podemos
entender que os estudantes interpretaram que houve exclusão das mulheres nas duas
primeiras cenas trabalhadas, vide o próprio termo “exclusão” repetido nas respostas
transcritas acima. De acordo com Callow (2018), todos os textos fazem parte de contextos
globais, locais e sociais em constante mudança, portanto, a ideia que os alunos têm sobre o
papel social da mulher também sofre variações.
A cena levanta essa questão dentro de um contexto do século XIX, no qual, Marila
afirma que Anne não “serve” para o casal de irmãos e às suas necessidades. Marila reproduz os
ideais da sociedade patriarcal da época e que se assemelham, em alguns níveis, aos da
sociedade atual do século XXI. Anne, por sua vez, rejeita e confronta essas ideias ao se
equiparar com o sexo oposto quando diz “meninas podem fazer tudo que garotos fazem, e
mais!” trazendo à tona uma discussão necessária sobre a desigualdade de gêneros.
Segundo Bourdieu (2002), a força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato
de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação
inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção
social naturalizada. A definição de capacidades, sejam elas físicas ou cognitivas, a partir do
gênero, configura-se numa dominação masculina, tendo em vista que, os homens já nascem
com “vantagens” em relação ao sexo feminino.
Alguns termos usados pelos alunos evidenciam a construção social dos gêneros e, por
conseguinte, as tarefas atribuídas a cada um como, por exemplo, os termos: “trabalho de um
homem, coisas masculinas e coisas de mulher”. Propomos as seguintes reflexões: o que eles
compreendiam por trabalho de um homem e o que seriam coisas de mulher? Se os alunos
usaram essas expressões, provavelmente, elas fazem parte do contexto social deles e são
reproduzidas no ambiente familiar ou em suas outras esferas sociais de convívio.
PESQUISADORA: O que vocês entendem por trabalho de homem e
coisas de mulher?
AEM1: Os homens devem trabalhar na fazenda e as mulheres ficar na
cozinha.
AEM2: As mulheres devem cozinhar e limpar a casa e homens
trabalham no serviço pesado.

Salientamos que esses termos não foram citados nas cenas, sendo expressões de
conhecimento prévio do aluno. Para o questionamento do que seriam “coisas de mulher” o
AEM2 respondeu “cozinhar e limpar a casa”, assim, consideramos importante essa fala que
demonstra como os papéis de gênero são reproduzidos na nossa educação e cultura.
É importante levantarmos a discussão sobre o porquê de o gênero feminino ser
atribuído a determinadas tarefas e partes da casa, independentemente de sua escolha. A
justificativa a atribuição do gênero é tão arraigada culturalmente que, muitas vezes, as
próprias mulheres não se questionam sobre o assunto, apenas obedecem e cumprem o seu
papel. Até porque o próprio fato de questionar algo não é um comportamento aceitável na
cultura patriarcal.
O efeito contrário também se dá na educação masculina. Para os homens, a virilidade
deve ser expressa na força física e, portanto, seu papel é usá-la nos serviços pesados como
mencionou o AEM1. Essa característica por si só generaliza também o sexo oposto e podemos
observar essa construção nos discursos cotidianos. Aqueles homens que não seguem o padrão
de comportamento pregado pela sociedade patriarcal também serão discriminados.
Assim sendo, acreditamos que esses alunos também foram educados para seguirem
papéis sociais determinados e nesse processo, não tiveram a oportunidade de refletirem sobre
a questão de gênero, o que a nossa intervenção oportunizou. Também destacamos o exercício
de leitura do texto visual, dos movimentos, da cena como um todo e de sua composição de
significados. Tais textos também mediam discussões importantes em sala de aula e nos
ajudam na importante tarefa de aproximar os discentes da sua função como cidadão. Na
escola, nós formamos a sociedade, ou seja, também deve partir de nós, enquanto indivíduos
vivendo em coletividade, a transformação desses padrões danosos. Eles se manifestam nos
mais diversos textos e nas diferentes formas de interação. Os alunos e as alunas precisam ser
estimulados a perceberem e a visualizarem tais significados.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão acerca da representação social da mulher tem muitos ângulos pelos
quais podemos refletir. No nosso caso, trouxemos um recorte baseado na série Anne with an
“e”, para fomentarmos as reflexões sobre a desigualdade de gênero. Nossa proposta de
análise exemplificou como é necessário ampliarmos o nosso conceito de texto e leitura à luz da
Semiótica Social e da Multimodalidade objetivando uma leitura crítica.
Nossos resultados explicitaram que, no que tange às dimensões afetiva,
composicional e crítica nas cenas trabalhadas, ficou evidente o engajamento afetivo dos
discentes durante a nossa intervenção expressa pela unanimidade da participação,
preenchimento do roteiro de análise e pela identificação com as cenas. Constatamos que essa
dimensão foi a mais explícita nos nossos resultados. As dimensões, composicional e crítica
foram identificadas, ainda que de forma sutil e com o estímulo da professora – pesquisadora,
através dos modos semióticos: olhar, postura, discurso, vestimentas, movimentos, expressões
faciais e entonação da voz. Entretanto, destacamos como positiva a produção de sentidos
realizada pelos discentes referentes às dimensões afetiva, composicional e crítica.
Uma leitura crítica que forneça aos indivíduos condições de enxergar a realidade e
as suas possibilidades de mudanças induz uma participação efetiva na sociedade e uma
condição de autoconsciência enquanto cidadão. Consideramos que a série Anne with an “e”
tem grande potencial enquanto ferramenta pedagógica para trabalhar temas de
aprofundamento social, principalmente, com o público adolescente uma vez que, estes, em
sua maioria, já são adeptos das produções audiovisuais. Constatamos que a ampliação da
concepção de texto é o primeiro passo para que a abordagem multimodal seja implementada
na rotina da sala de aula. A compreensão de textos multimodais acaba por ser necessária
dentro da prática pedagógica, portanto, o olhar dos alunos pode e deve ser treinado para as
novas composições textuais que estão surgindo
Desta forma, entendemos que são necessárias mais discussões que provoquem
esse tipo de questionamento acerca da representação social da mulher no contexto
contemporâneo para que possamos construir uma sociedade com equidade de gênero e com
leitores multimodais capazes de inferir, identificar ou associar quaisquer relações de poder
implícita ou explícita nos textos a nossa volta.

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