Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar um recorte do resultado de uma pesquisa desenvolvida
para o programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Ensino pela Universidade Estadual do
Rio Grande do Norte, Campus Pau dos Ferros. Apresentaremos as nossas análises das
representações sociais da mulher na série Anne with an “e” à luz da multimodalidade e do
modelo Show Me de Jon Callow. Tendo como locus da pesquisa a sala de aula, exibimos
cenas da série, previamente selecionadas, e aplicamos um roteiro de análise semiestruturado.
Considerando a necessidade de discutirmos os papéis sociais construídos ao longo da história
e as relações de poder que os textos veiculados diariamente representam assim como, na
necessidade de uma formação leitora que explore os múltiplos modos dos textos, os resultados
obtidos, expuseram as dificuldades dos estudantes de explorarem uma imagem como um texto
bem como, a importância de estimular o letramento visual crítico na sala de aula.
ABSTRACT
This article aims to present an excerpt from the result of a research developed for the Strictu
Sensu Graduate Program in Teaching at the State University of Rio Grande do Norte, Campus
Pau dos Ferros. We will present our analyzes of the social representations of women in the
Anne with an “e” series in the light of multimodality and Jon Callow’s Show Me model.
Having the classroom as the research locus, we exhibit previously selected scenes from the
series and apply a semi-structured analysis script. Considering the need to discuss the social
roles built throughout history and the power relations that the texts conveyed daily represent,
as well as the need for a reader training that explores the multiple modes of texts, the results
obtained, exposed the difficulties of the students to explore an image as a text as well as the
importance of stimulating critical visual literacy in the classroom.
1
Mestra pelo programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE) da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN). Pau dos Ferros/ RN, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7618-771. E-mail:
fernanda.sousa2@prof.ce.gov.br
2
3
1 INTRODUÇÃO
A dinamicidade da sociedade contemporânea tem afetado a nossa comunicação
significativamente. Nos últimos anos, podemos constatar a transição de um mundo analógico
para o digital, e com ele, novos aparelhos, novos recursos e novas redes sociais. Com essa
mudança, passamos a produzir textos em diferentes formatos explorando, principalmente, o
visual. O visual está presente em todas as nossas produções e atrai o nosso olhar por se
configurar em múltiplos modos como: sons, movimentos, cores, imagens e etc, sendo assim,
todas as nossas produções sempre foram multimodais (KRESS, 1996), mas, atualmente, estão
mais evidentes.
Diante disso, nossa concepção de texto também deve se ampliar a fim de abranger as
novas produções que estão surgindo e, para tanto, precisamos refletir sobre o que é a leitura
para além do modo escrito. Durante muito tempo, a hegemonia do verbal prevaleceu como
única fonte de produção textual e representação de significados. Atualmente, já é possível
perceber que o código escrito é uma das formas de produção de sentidos e não, a única. Então,
“de que forma podemos utilizar esse contexto para o desenvolvimento de um letramento
visual positivo e inclusivo, dotado de atividades menos volúveis e descartáveis e mais
significativas, criativas e construtivas na sala de aula?” (OLIVEIRA, 2006, p. 17).
Portanto, atribuímos à escola e aos professores o dever de oportunizar na sua prática
pedagógica o desenvolvimento de uma leitura multimodal, que possa formar o aluno
criticamente para a sua vida social. Esse ensino pode se dar através das inúmeras ferramentas
que as mídias digitais nos oferecem, como por exemplo, o recurso semiótico escolhido para a
nossa intervenção: as séries de tv. Cada recurso semiótico apresenta suas limitações e
potencialidades (affordances) de acordo com o que se pretende desenvolver (BEZEMER;
JEWITT, 2009), ficando a cargo do professor, atuar como um designer, selecionando e
adequando a ferramenta aos seus objetivos.
A série Anne with an “e” se baseia em obras literárias que têm classificação infanto-
juvenil e é permeada de temáticas que podem ser exploradas na sala de aula. Com o intuito de
estimular o letramento multimodal crítico dos estudantes, focamos nas representações sociais
da mulher contidas nas cenas que selecionamos para a aula de língua inglesa à luz do
letramento multimodal. Nossa pesquisa teve, portanto, enfoque na multimodalidade,
defendida por Kress e van Leeuwen (1996), por acreditarmos que ela pode contribuir para o
contexto social, político e pessoal dos alunos, se inserida na dinâmica escolar.
A construção dos papéis sociais da mulher ao longo da história se deu a partir de
padrões comportamentais e estereótipos idealizados pela sociedade patriarcal. Para
4
analisarmos com efeito as representações sociais da mulher na série Anne with an “e”,
apoiamo-nos nos conceito de corpo social proposto por Bourdieu (2002). Essas
representações sociais são sustentadas pelo dualismo, ou seja, “a divisão das coisas e das
atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino recebe sua
necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas”
(BORDIEU, 2002). Sob essa ótica, as relações de poder são enfatizadas, “a começar pela
divisão socialmente construída entre os sexos” (BOURDIEU, 2002).
Ainda de acordo com Bourdieu (2002), a ordem social funciona como uma máquina
simbólica que legitima a dominação masculina atribuindo características pré-concebidas aos
gêneros, por exemplo, o uso das cores azul e rosa definidas para menino ou menina,
respectivamente. Feito esses apontamentos, salientamos que a nossa análise é um recorte de
como um recurso semiótico pode ser explorado, já que, cada recurso semiótico apresenta suas
limitações e potencialidades (affordances) de acordo com o que se pretende desenvolver
(BEZEMER & JEWITT, 2009).
Diante das profundas transformações nos processos de comunicação e nas nossas
práticas sociais, essas relações de poder são reproduzidas por meio das mídias, sendo
necessário, portanto, atentarmos para essa pluralidade de signos denominada
multimodalidade. Considerando-a um traço característico da linguagem, e muito notadamente,
dos textos midiáticos, nossas concepções de texto e, consequentemente, de leitura se ampliam
significativamente.
A palavra leitura acarreta consigo uma gama de sentidos, no entanto, o maior
deles é a decodificação do código escrito. Leitura significa, para a maioria das pessoas, ler
palavras. Pensando dessa forma, o processo de alfabetização cumpre o seu papel, mas
devemos nos questionar se ele é suficiente, já que, é preciso interpretar o que lemos, criar
sentido, fazer conexões com a nossa realidade e sociedade, enfim, estamos falando de um
processo demasiado subjetivo que, invariavelmente, a alfabetização não abarca.
Como afirma Freire, a leitura do mundo precede a leitura da palavra (1989, p. 09) ou
seja, antes de entrarmos na escola onde veremos o conceito de leitura de modo sistematizado,
nós já produzimos significados na nossa rotina familiar e em outras esferas sociais.
Obviamente, a maioria das pessoas e boa parte dos professores, ainda não veem a leitura sob
essa perspectiva, muito embora, como já mencionado, Freire contestasse essa noção restritiva
da leitura ao código escrito há anos.
5
Considerando-se, assim, o sentido amplo de leitura proposto por Paulo Freire, deve-
se repensar o posicionamento teórico da escola sobre leitura e escrita. O aluno
(criança, jovem ou adulto) traz para o ambiente escolar o conhecimento de um
mundo que ele já aprendeu a ler e escrever, a representar (no sentido de Kress &
van Leeuwen, 1996), ainda que sem conhecer o código escrito como forma de
representação. Esse conhecimento é complexo em sua estrutura, sendo perfeitamente
válido para suas interações pessoais. Esse conhecimento não pode ser simplesmente
substituído por outro mais valorizado e aceito por aqueles que lêem e escrevem o
mundo através da escrita (DESCARDECI, 2002, p. 20)
Fonte: https://br.pinterest.com
Tomando por base os postulados de Kress e van Leeuwen na Gramática do
Design Visual, o educador australiano desenvolveu uma proposta com três dimensões para
orientar a exploração das imagens e o letramento visual crítico, essas dimensões se
configuram em: afetiva, composicional e crítica.
8
A série Anne with an “e” é uma produção canadense, exibida originalmente pelo canal
CBC Television e pela plataforma de streming Netflix, entrando no seu catálogo em 2017. O
enredo é baseado nas obras de literatura infantojuvenil Anne de Green Gables, cuja
publicação original data de 1908 e foram escritas pela autora canadense Lucy Maud
Montgomery. Portanto, trata-se de um roteiro adaptado constituído de três temporadas e vinte
e sete episódios no total dirigido por Moira Walley-Beckett.
Para a exibição da cena utilizamos notebook, caixa de som e datashow. A intervenção
foi realizada durante uma aula de Língua Inglesa numa turma de segundo ano do ensino
médio de uma escola regular do estado do Ceará. Inicialmente, contextualizamos a série e a
cena que seria exibida posteriormente para a turma.
No primeiro episódio, Anne chega na fazenda Green Gables por uma falha de comunicação
visto que, o casal de irmãos Marila e Matthew Cuthbert queriam adotar um menino para
ajudar nos serviços da fazenda. Esse episódio gira em torno desse desencontro e de como a
protagonista Anne confronta os papeis sociais, apesar da pouca idade. Depois do conflito
instaurado, o casal de irmãos decide, com receio, adotar a garota e, a partir de então, vemos
uma família não convencional criar laços e promover reflexões sensíveis sobre diversos
temas.
Figura 2 - cena da 1ª temporada de Anne with an “e”
9
PESQUISADORA: Gente, e quais são essas ideias padrão que alguns de vocês
citaram?
AEM1: Como inferior ao homem, devendo fazer “coisas de mulher” como
cozinhar, cuidar da casa e dos filhos enquanto o homem era responsável pelo
sustento da família.
AEM2: Que a mulher não tem importância na sociedade, que ela não consegue
fazer as mesmas coisas que os homens, tendo uma posição submissa.
AEM3: Que não pode fazer nada além de fazer as coisas de casa.
Como ela era mulher tinha que ficar na cozinha e jamais poder fazer as mesmas
coisas que os meninos.
AEM4: Em um nível abaixo que o homem.
perguntarmos como a mulher era representada nas cenas, intencionávamos analisar o olhar
dos alunos e as suas percepções de comportamento, uma vez que, poderia haver espanto ou
indiferença com a cena de acordo com a educação machista que nos é repassada. Nessa
educação patriarcal, cabe a mulher um papel específico: o de submissão e fragilidade.
Observemos as seguintes palavras e expressões destacadas: inferior, não tem
importância, não consegue, não pode fazer, jamais poder fazer e abaixo. Todas essas
palavras denotam o senso de superioridade que a sociedade patriarcal prega. Como podemos
perceber, a palavra “não” se repete em algumas respostas e entendemos que, essa negativa
presente na maioria das respostas carrega consigo séculos de repressão e privação dos direitos
femininos.
Na dimensão afetiva, observamos como os alunos se conectaram com as cenas
trabalhadas através das respostas dadas no roteiro de análise e pelas expressões faciais e
gestuais dos estudantes que foram, devidamente registradas durante a intervenção. Ao serem
questionados se conheciam a série, dois estudantes afirmaram que sim, expressando terem
gostado da produção canadense. Para os demais, a série era totalmente nova.
naturalmente, pode não se identificar com esses papéis que lhe são arbitrariamente atribuídos.
Bourdieu (1998) diz:
O trabalho de construção simbólica não se reduz a uma operação estritamente
performativa de nominação que oriente e estruture representações, a começar pelas
representações do corpo (o que ainda não é nada); ele se completa e se realiza em
uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um
trabalho e por um trabalho de construção prática, que impõe uma definição
diferencial dos usos legítimos do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do
universo do pensável e do factível tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero – e
em particular todas as virtualidades biologicamente inscritas no “perverso
polimorfo” que, se dermos crédito a Freud, toda criança é para produzir este artefato
social que é um homem viril e uma mulher feminina (BOURDIEU, 198, p. 17).
Essa definição de características constitui-se numa opressão social uma vez que,
aqueles indivíduos que não se adequam a elas, são invariavelmente, excluídos. Podemos
entender que, os estudantes interpretaram que houve exclusão das mulheres nas duas
primeiras cenas trabalhadas, vide o próprio termo “exclusão” repetido nas respostas
transcritas acima. De acordo com Callow (2018), todos os textos fazem parte de contextos
globais, locais e sociais em constante mudança, portanto, a ideia que os alunos têm sobre o
papel social da mulher também sofre variações.
A cena levanta essa questão dentro de um contexto do século XIX, no qual, Marila
afirma que Anne não “serve” para o casal de irmãos e às suas necessidades. Marila reproduz
os ideais da sociedade patriarcal da época e que se assemelham, em alguns níveis, aos da
sociedade atual do século XXI. Anne, por sua vez, rejeita e confronta essas ideias ao se
equiparar com o sexo oposto quando diz “meninas podem fazer tudo que garotos fazem, e
mais!” trazendo à tona uma discussão necessária sobre a desigualdade de gêneros.
Segundo Bourdieu (2002), a força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato
de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação
inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção
social naturalizada. A definição de capacidades, sejam elas físicas ou cognitivas, a partir do
gênero, configura-se numa dominação masculina, tendo em vista que, os homens já nascem
com “vantagens” em relação ao sexo feminino.
Alguns termos usados pelos alunos evidenciam a construção social dos gêneros e, por
conseguinte, as tarefas atribuídas a cada um como, por exemplo, os termos: “trabalho de um
homem, coisas masculinas e coisas de mulher”. Propomos as seguintes reflexões: o que eles
compreendiam por trabalho de um homem e o que seriam coisas de mulher. Se os alunos
usaram essas expressões, provavelmente, elas fazem parte do contexto social deles e são
reproduzidas no ambiente familiar ou em suas outras esferas sociais de convívio.
15
Salientamos que, esses termos não foram citados nas cenas, sendo expressões de
conhecimento prévio do aluno. Para o questionamento do que seriam “coisas de mulher” o
AEM2 respondeu “cozinhar e limpar a casa”, assim, consideramos importante essa fala que
demonstra como os papéis de gênero são reproduzidos na nossa educação e cultura.
É importante levantarmos a discussão sobre o porquê de o gênero feminino ser
atribuído a determinadas tarefas e partes da casa, independentemente, de sua escolha. A
justificativa a atribuição do gênero é tão arraigada culturalmente que, muitas vezes, as
próprias mulheres não se questionam sobre o assunto, apenas obedecem e cumprem o seu
papel. Até porque o próprio fato de questionar algo, não é um comportamento aceitável na
cultura patriarcal.
O efeito contrário também se dá na educação masculina. Para os homens, a virilidade
deve ser expressa na força física e, portanto, seu papel é usá-la nos serviços pesados como
mencionou o AEM1. Essa característica por si só, generaliza também o sexo oposto e
podemos observar essa construção nos discursos cotidianos. Aqueles homens que não seguem
o padrão de comportamento pregado pela sociedade patriarcal também serão discriminados.
Assim sendo, acreditamos que esses alunos também foram educados para seguirem
papéis sociais determinados e nesse processo, não tiveram a oportunidade de refletirem sobre
a questão de gênero, o que a nossa intervenção oportunizou. Também destacamos que, nas
discussões em sala de aula é importante aproximar os discentes da sua função como cidadão e
que, nós formamos a sociedade, ou seja, também deve partir de nós, enquanto indivíduos
vivendo em coletividade, a transformação desses padrões danosos.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BEZEMER, J.; JEWITT, C. Social semiotics. In: Östman J-O et al. (Ed.) Handbook of
Pragmatics. Amsterdam: Benjamins Publishing Company, 2009.
CALLOW, J. Show Me: Principles for Assessing Students’ Visual Literacy. The Reading
Teacher. International Reading association. ISSN: 0034-0561. 2008, p. 616-626
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23. ed. São
Paulo: Autores Associados, 1989. 49 p.