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A ESCRITA E A PALAVRA NO MUNDO DA INFÂNCIA: PROPOSTAS

PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL


Maria Cristina Madeira (UFPEL//Grupo CNPQ HISALES
Rita de Cássia Tavares Medeiros (UFPel/FaE/ Grupo CNPQ GEPCIEI

RESUMO: Este trabalho revela produções realizadas por crianças e educadoras numa
escola infantil, considerando o mundo da escrita como um mundo que desvenda a
própria vida, através da palavra dita pela criança. Esse percurso definiu como os temas
geradores foram ao mesmo tempo conteúdo e forma na educação da infância,
evidenciando modos de olhar o mundo. As diferentes contribuições de pesquisadores
sobre a aquisição e o desenvolvimento da escrita em sociedades grafocêntricas
evidenciaram com muita densidade o papel da escrita na vida dos sujeitos. Freire (1987)
nos apoiou ao discernir decodificação de descodificação: quando apenas ensinamos as
combinações silábicas, ou a escrita de palavras convencionais, sem a devida reflexão
sobre o que, como, de onde, com quem e quando as palavras são utilizadas. O sentido
das palavras nos é dado pelo contexto em que foi produzida, se tratando de educação
das crianças a fala delas sobre o seu mundo tem muito a nos dizer. As atividades
pedagógicas foram registradas em painéis com textos das educadoras, com imagens dos
trabalhos desenvolvidos nas classes, nos passeios pela cidade. Os produtos do
letramento se expressaram desde a leitura do jornal, dos livros infantis, dos painéis, de
recados, de propagandas, na produção da documentação da classe que reuniu a relação
entre esses produtos do letramento num corpus mais importante nos Livros da Vida. A
variedade de produtos foi grande, apresentando uma grande dispersão, sugerindo
experiências, atenções e apreensões diferenciadas entre as crianças. As concepções de
Freire sobre a aprendizagem da língua escrita não estavam pautadas exclusivamente no
âmbito linguístico, tinham um cunho antropológico que ultrapassou razões óbvias,
explicitando a palavra como dimensão formadora e transformadora das relações sociais.
Palavras chave: Educação Infantil, Leitura, Escrita e Práticas pedagógicas

A imaginação absorve tudo, o


cognitivo, o expressivo, o
sentimento, a lembrança, as escolhas
que nos pertencem.. Temos que
destruir a imagem simplificada de
um objeto, temos que complicar o
mundo... a imaginação é arte e
ciência, pois multiplica os
significados de um objeto, de um
acontecimento, de uma palavra...
Rabitti

As diferentes contribuições de pesquisadores sobre a aquisição e o


desenvolvimento da escrita em sociedades grafocêntricas evidenciam com muita
densidade o papel da escrita na vida dos sujeitos.(Madeira,2004) Por que, então,
submeteríamos as meninas e meninos do Bairro Dunas, na Escola da Educação Infantil
à informalidade ou eventualidade da escrita. Existem ainda muitas práticas não

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intencionais de trabalho com o conhecimento da escrita, no entanto optamos por inserir
em nosso Projeto Político Pedagógico, e em nosso cotidiano de trabalho os elementos
da escrita e seus códigos de uso como conteúdos e saberes necessários à cidadania.
Freire (1987) nos apóia ao discernir decodificação de des-codificação: quando apenas
ensinamos as combinações silábicas, ou a escrita de palavras convencionais, sem a
devida reflexão sobre o que, como, de onde, com quem e quando as palavras são
utilizadas estamos omitindo das crianças a possibilidade de encontrarem a semântica da
língua, e não apenas a sintaxe. O sentido das palavras nos é dado pelo contexto em que
ela foi produzida e em se tratando de educação das crianças a fala delas sobre o seu
mundo tem muito a nos dizer. A caminho dessa proposta nos colocamos na envergadura
da proposta freireana, a desvendar o mundo das crianças com as crianças.
Nossas atividades pedagógicas passaram a ser registradas em painéis com
textos das educadoras e imagens dos trabalhos desenvolvidos nas classes, desde a
organização da alimentação até os passeios pela cidade. Quando as pessoas visitam
nossa escola aprendem a conhecê-la pela mobilidade presente nos painéis que contam
nossos processos educativos. Assim também acontece em cada classe de trabalho: do
berçário ao maternal é comum e permanente ver as crianças colaborando, interferindo,
cooperando e organizando os livros que se constituem em narrativas dos processos ali
vividos.
Ao final de cada ano a Mostra de Experiências Pedagógicas reúne familiares,
outras escolas, alunos e alunas de universidades e escolas normais, pesquisadores e
colaboradores que acompanham os resultados dos processos desenvolvidos no Projeto
Político Pedagógico da Escola. È um momento riquíssimo de avaliação e auto-avaliação
das experiências e, portanto, de projeção e planejamento dos passos seguintes.
Em consonância com Freire (1987), a educação avança de sua tradição
bancária, apartada da sociedade em que esta inserida, para dialogar com a comunidade
na qual e com a qual produz as práticas pedagógicas cotidianas. Novamente a escrita
ganha destaque, porque são os documentos produzidos ao longo do ano que revelam as
faces das aprendizagens de educadoras, meninas e meninos. Diferentes pesquisas sobre
a relação entre a alfabetização e as classes populares têm mostrado que os alunos são
considerados alfabetizados pela escola, mas, no entanto, não modificam, ou modificam
muito pouco, a sua condição de pertencimento à sociedade letrada. Essa incapacidade
gera nos alunos sentimentos de incompetência e de impotência que reforçam a sua
“desqualificação” social (Moyses, 1985). Na perspectiva apontada, a noção de

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letramento tem se mostrado significativa. Partimos do princípio, como postula Soares
(2003), que os processos de alfabetização e de letramento são distintos, mas
interdependentes e indissociáveis. Na EMEI Paulo Freire os produtos do letramento se
expressam desde a leitura do jornal, dos livros infantis, dos painéis, de recados, de
propagandas e outros, mas se sofisticam, se assim podemos dizer, na produção da
documentação da classe que vai reunir a relação entre esses produtos do letramento num
corpus mais importante no PPP: os Livros da Vida. A variedade de produtos é grande e
apresenta uma grande dispersão, sugerindo experiências, atenções e apreensões
diferenciadas entre as crianças. A leitura de mundo de Freire (1987) pode ser comparada
a essa tendência atual dos processos de aprendizagem da língua escrita que conferem à
multiplicidade de portadores de texto a aprendizagem da variação, do gênero e do uso
da escrita na sociedade. Nem sempre as crianças sabem exatamente o que está escrito,
mas já sabem que tipo de texto é, para que serve, por quem é usado e outros tantos usos
a descobrir.
Para Goulart (2003) São os modos de as crianças verem/lerem/viverem os
discursos orais e escritos que vão dando forma, mostrando como a linguagem escrita
funciona e como produz sentidos. E aí a professora tem um papel fundamental de
provocar o olhar, chamar atenção de detalhes, de sentidos e de formas, sem perder a
paisagem.
Se, de um lado, reconhecemos, como nos provoca Soares (2003), a
necessidade e o desafio de alfabetizar, letrando, de outro, entendemos também a
necessidade letrar, alfabetizando, como nos indica Goulart (2005). Ela ainda afirma que
na educação infantil, aprender a ler e a escrever pode ser uma conseqüência da
ampliação do conhecimento do mundo letrado o que, a nosso ver tem sido cumprido
através do trabalho de documentação das classes Freinet.

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A Construção dos Livros da
Vida

Ilustração 1:Crianças produzindo um livro da vida.


Quando lemos, temos a
latitude do sonho nos fazendo
enxergar o que ainda não
conseguimos fazer, mas
quando atuamos como
professoras temos a longitude
da utopia, nos mostrando os
caminhos percorridos e o
quanto ainda temos que
investir para alcançar nosso
sonho.

Para documentar as realizações das atividades desenvolvidas pelas


crianças dessa escola, foram produzidos livros com as mais variadas temáticas, e
também foram confeccionados livros individuais em que cada um produziu oralmente o
texto da história que mais gostou. O Primeiro Livro da Vida foi uma coletânea de
atividades individuais que retrataram as características físicas e pessoais de cada
criança, o Livro da vida foi realizado ao longo do ano letivo, ao término deste, as
crianças o levaram para casa.
*Como eu sou?(altura, peso, cor dos olhos, pele, cabelo...).
*Eu e minha família...
*Eu e minha escola...
*Eu e a comunidade onde moro
*O que eu gosto (fazer, comer...)

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Estas indagações eram relacionadas a outras, o que foi fazendo com que nosso
projeto fosse tomando forma e tamanho expressivo, além do que imaginávamos. Num
primeiro momento realizamos uma série de atividades, tais como: fichas com o nome
das crianças para cadeiras, porta da sala, móbiles com a letra inicial e o nome de cada
aluno, cartaz de aniversariantes, permitindo e incentivando que cada criança
visualizasse o seu nome e o dos colegas. Para trabalhar o corpo, poderíamos utilizar o
papel pardo e deitarmos os alunos sobre o mesmo, e a partir do contorno, as crianças se
caracterizariam em tamanho natural. Medi-los e pesá-los, pintura dos pés e mãos,
desenhar de acordo com sua visão de criança, sua família,
escola,comunidade,etc.Montagem de murais coletivos,utilização de um caderno
individual,forrado com a inicial do nome;
A partir dessas idéias passamos para a montagem real do Livro da vida:
* “Auto-retrato:Eu sou assim!” (desenho)
* “Estou crescendo...” (fio de linha)
* “O meu peso é...” (pintura)
* “Tenho duas mãozinhas...” (impressão com tinta)
* “Este é meu pé esquerdo...” (impressão com tinta)
* “Este é meu pé direito...” (impressão com tinta)
* “Palavras que iniciam com a letra do meu nome...” (recorte e colagem)
* “Letra do meu nome...” (colagem de bolinha de papel crepom)
* “Este é meu nome” (colagem de erva mate)
* “Minha família” (desenho)
* “Eu e minha escola” (desenho)
* “Meu bairro é assim” (desenho)
* “Esta é a cor que mais gosto...” (lápis de cor)
* “Minha casa” (desenho)
* “Minha casa” (dobradura)
* “Alimentos que mais gosto” (recorte e colagem)
* “Eu e minhas professoras” (desenho)
* “Eu e meus colegas...” (desenho)
* “Criança feliz é...” (pintura)
* “Um passeio pelo bairro Dunas” (desenho)
* “No bairro Dunas tem posto de saúde” (desenho)

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* “No nosso bairro Dunas tem muitas valetas” (desenho e colagem de um sapo com
bolinhas de papel crepom)
* “A bandeira do Brasil tem as cores da natureza” (recorte e colagem)
* “Os peixes vivem na água” (pintura)
* “Na Bandeira Nacional tem azul,que é a cor do céu” (colagem de lua,sol,estrelas)
* “O sol...” (pintura)
* “Dia da árvore” (pintura)
* “Na natureza tem plantas,flores e frutas” (desenho)
* “Na natureza tem muitos animais” (desenho)
* “Um passeio bem legal...” (desenho)
* “O mundo letrado e minha sala de aula” (desenho)
# “Os meios de comunicação” (recorte e colagem)
# “A televisão” (desenho e pintura)
# “Os meios de comunicação que tem na minha casa” (desenho)
# “As crianças e os meios de comunicação” (desenho)
*# “Os meios de transportes” (desenho)
# “Os meios de transportes que eu conheço” (recorte e colagem)
Essa produção documental contribui no desenvolvimento e na socialização
entre os alunos e a participação das demais pessoas que fazem parte direta e/ou
indiretamente de suas vidas. Contribuindo para uma formação equilibrada de seu “eu” e
o mais importante de tudo, levar a criança a perceber as diferenças e particularidades de
cada pessoa, mas ao mesmo tempo, incentivando-a a conhecer a importância de todos e
de tudo na construção de nossa sociedade (Chartier, 1996). Os livros citados foram
confeccionados de forma cooperativa, também inspirados na teoria freinetiana que
estimula as atividades coletivas. (Madeira & Medeiros, 2006; Sampaio, 1994).
Visitamos o Posto de saúde do Bairro Dunas, o livro que resultou do passeio
intitula-se Aprendendo uma lição, esse passeio tinha como objetivo conhecer o bairro
com as crianças, fazendo também com que elas fossem conhecendo a infra-estrutura de
seu bairro. Este tema era diariamente sugerido por uma aluna da turma que apresentava
vários problemas de saúde e freqüentava de forma assídua o referido posto. Os alunos
de forma geral gostavam de brincar de médico, inclusive montamos uma farmácia de
faz-de-conta na sala, para tornar mais real a brincadeira. O livro formato gigante
(medindo aproximadamente60x40) foi ilustrado e “escrito oralmente” pelos alunos,
enquanto a educadora atuava como escriba.

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Um outro livro que é muito citado é o Álbum de Fotos “Um dia na turma do
Pré A” Fotos das crianças demonstrando a rotina das mesmas na escola (crianças
fazendo refeições, sua higiene, hora do descanso, brincando com as professoras,
funcionarias da escola e direção, realizando outras atividades).

De 2004 a 2007 foram produzidos mais de 80 livros temáticos na Escola, os


quais estão sendo catalogados e organizados para pesquisa e futuro acervo da escola. Os
livros retratam desde situações cotidianas como os exemplos que citamos acima, até
discussões de cunho sociológico e antropológico como a inserção do negro na
sociedade, as condições de vida dos indígenas, os direitos das crianças. Também fazem
parte do acervo os livros que relatam projetos articulados entre a escola e outras
instituições: Ópera na Escola (com a Faculdade Artes e Design); e tantos outros temas
que surjam no universo de nossas crianças e de nossa formação aprendida no embate
dessa profissão. O depoimento de uma de nossas professoras revela que o cotidiano das
escolas, no qual o professor efetiva também sua intervenção na sociedade, pode tornar-
se um cotidiano autêntico, criativo:

Gostei imensamente de meu envolvimento com as crianças e senti o


peso da responsabilidade com o outro, um outro único, vários
outros. Sendo professora, aprendi como é importante ter amor pelo
que faço. Compreendi que é necessário estudar sempre, trocar
experiências, aprender com os erros. Percebi que é possível recriar
a escola e transformar a educação e, passei a ter como objetivo uma
interação profunda entre teoria e prática. (ANOTAÇÕES NO
CADERNO DE REUNIÕES- 2005)

As concepções de Freire sobre a aprendizagem da língua escrita não estão


pautadas exclusivamente no âmbito lingüístico, mas têm um cunho antropológico que
ultrapassa razões óbvias, para explicitar a palavra como dimensão formadora da pessoa
humana e transformadora das relações excludentes, sectárias e desprovidas de
dignidade. Nem toda palavra, porque está inserida no universo das crianças, está longe
da opressão, do preconceito, da divisão de classe... mas o modo como concebemos o seu
estudo, a recriação pedagógica da palavra no trabalho cotidiano das educadoras com as
crianças permite a geração de aprendizagens mais humanizadoras, que desmascarem as
formas de dominação as quais estamos sujeitados.

Referências:

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escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
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FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1998.
GOULART, C. M. A. Alfabetização, letramento, linguagens sociais e gêneros
discursivos: a complexidade e a indissociabilidade da tecnologia e do discurso da
escrita. Trabalho apresentado na Mesa-redonda: Letramento e Alfabetização: um
casamento pertinente? Seminário Letramento e alfabetização, 14º COLE – Congresso
de Leitura, Unicamp, Campinas, 2003.
_________________. Linguagens sociais e argumentação: investigando modos de letrar
e ser letrado. Seminário Dialogismo bakhtiniano: interlocuções com a lingüística, a
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MADEIRA, M.C. A leitura e a escrita em uma família de classe popular. In: Rosa,
Cristina Maria & Monteiro, Carolina Reis (orgs.). Revista Alfabetização e Letramento.
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______________ & MEDEIROS, R.C.T. Celestin Freinet no Coração da Sala de
Aula.Forum ULBRA de Formação de Professores. ULBRA-Torres,2006.
MOYSES, S. Alfabetização. Estratégia do código ou confronto da história? Educação e
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SAMPAIO, R.M.W.F.Freinet evolução histórica e atualidades. Editora Scipione. 2º
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SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
______________. Linguagem e Escola uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1997.
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www.freinet.org.br
www.amisdefreinet.org

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