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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p.

255-276, 2012 255

LEITURA E EDUCAÇÃO – REPRESENTAÇÕES DA


INCLUSÃO SOCIAL NA OBRA DE
MAURÍCIO DE SOUSA

Lucinea Aparecida de Rezende


Luciana Begatini Ramos Silvério

RESUMO:
As HQs contribuem para que os professores trabalhem
a leitura de forma atraente e despertem o interesse dos
alunos pela leitura, bem como formar um cidadão aber-
to às questões da inclusão social? Este artigo destaca a
importância da leitura e uma forma de trabalhá-la por
meio de Histórias em Quadrinhos.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Histórias em Quadri-


nhos; Inclusão Social.

O
objetivo deste trabalho consiste em analisar a contribuição possível
das Histórias em Quadrinhos (HQs) como ferramenta eficaz no
ensino da leitura e formação do leitor cidadão no contexto escolar.
Evidenciamos a trajetória profissional e a obra de Maurício de Sousa e
analisamos cinco personagens portadores de necessidades especiais. Espera-
mos, com este estudo, contribuir com o trabalho de educadores e pesquisas
que tratam da leitura, particularmente no segmento das HQs.

1- Linguagem e leitura - múltiplas interfaces

O ser humano faz uso da linguagem desde seu nascimento por meio de
gestos, gemidos, risadas, balbucios, na tentativa de interagir com o universo
que acaba de acolhê-lo. Linguagem, pois, é tudo aquilo que, portador de
elemento significativo, proporciona ao ser humano a interação, a codificação
e a comunicação com o mundo que o cerca, resultando no desenvolvimento
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
256 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

e no funcionamento da sociedade. De acordo com Santaella (1994)1:

[...] quando dizemos linguagem, queremos nos referir a uma


gama incrivelmente intrincada de formas sociais de comunica-
ção e de significação que inclui a linguagem verbal articulada,
mas absorve também, inclusive, a linguagem dos surdos-mu-
dos, o sistema codificado da moda, da culinária e tantos outros.
Enfim: todos os sistemas de produção de sentidos aos quais o
desenvolvimento dos meios de reprodução de linguagem pro-
piciam hoje uma enorme difusão (SANTAELLA, 1994, p. 02).

Há diversas linguagens, as quais podem ser classificadas em verbais e não


verbais. Na linguagem verbal há o uso da língua oral ou escrita. Nesse contex-
to, a Linguística é a ciência que estuda a linguagem verbal manifestada pelas
línguas humanas. A Semiótica, por sua vez, é a ciência que pesquisa todos os
tipos de linguagem não verbal, a qual faz uso de signos como pinturas, cores,
gestos, sons, quadrinhos, jogos, números, luzes, cheiros, gráficos, fotografias,
desenhos e outros.
Quanto à linguagem contida nas imagens, ela não é novidade do mundo
moderno. Presentes em tempos pré-históricos, os desenhos nas cavernas são
prova viva de que os homens contavam histórias e realizavam leituras por meio
das imagens desenhadas, mesmo sem ainda existir a escrita.
Rezende (2007, p. 06)2 explicita que podemos fazer múltiplas leituras,
pois esse processo está intimamente ligado à existência do ser humano: “[...]
lemos palavras, imagens, palavras-imagens, lemos música, “lemos” o som
[...]”. Deparamo-nos com imagens permeadas de significação e que possuem
o poder de provocar ações de envolvimento, em um contínuo processo inte-
rativo. Em face disso, essas imagens possibilitam muitas leituras que, por sua
vez, dependem de nosso conhecimento de mundo e da busca incessante por
novas informações.
Cada pessoa possui diferentes formas de ver uma mesma imagem, e, con-
sequentemente, de interagir com ela. Portanto, toda imagem é polissêmica,
1
SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 02.
2
REZENDE, Lucinea Aparecida de. Leitura e Visão de Mundo: Peças de um Quebra-cabeça.
Londrina: Eduel, 2007. p. 06.
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uma vez que proporciona muitas leituras, que enriquecem a cultura humana,
de acordo com a maneira de ler, de pensar, de se comunicar, de interagir com
tudo e com todos.
A leitura está presente na vida do ser humano, constituindo-se em um
contínuo processo de compreensão e interpretação do mundo à sua volta. Até
mesmo de maneira irrefletida e despercebida ela se realiza, pois se dá de múl-
tiplas formas e a todo momento. É possível ler as luzes, os sons, os desenhos,
os gestos, as placas, as palavras, os textos e tudo o mais que traga informação,
entretenimento, conhecimento, aprendizagem em uma busca incessante do
ser humano com vistas a conhecer, perceber, interagir, descobrir o sentido e o
significado das coisas.
Enriquecido com reflexões, opiniões e críticas, o ato de ler é realizado por
estudantes e por todos aqueles que dele necessitam em suas vivências diárias,
desde atividades simples e comuns. O mundo é representado por leituras pelas
quais podemos nos orientar, pois elas são sempre possuidoras de informações.
Nesse segmento, os nossos saberes contribuem significativamente para a
compreensão. Quanto mais lemos, mais somos capazes de exercer essa habili-
dade qualitativamente, utilizando o conhecimento prévio que nos constitui.
Sobre este aspecto vale ressaltar a afirmação de Kleiman (2004)3:

[...] é um processo que se caracteriza pela utilização de conhe-


cimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o
conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a
interação de diversos níveis de conhecimento como o conhe-
cimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo,
que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque
utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que inte-
ragem entre si, a leitura é considerada um processo interativo.
Pode-se dizer com segurança que sem o engajamento do co-
nhecimento prévio do leitor não haverá compreensão (KLEI-
MAN, 2004, p. 13).

3
KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 9. ed. Campinas: Pontes,
2004. p. 13.
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
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Cada vez que lemos um texto, podemos realizar novas releituras, tal a
informatividade com que nos deparamos a cada leitura. Nessa diversidade
de leituras disponíveis, temos as HQs, obras que se oferecem à diversão e
importantes informações. Elas apresentam temas variados e de grande valor
para educadores preocupados em relação à importância da leitura. Esse ma-
terial pode ser trabalhado em sala de aula de forma atraente, na tentativa de
se despertar o interesse dos alunos, bem como chamar a atenção a respeito de
assuntos educativos.

2- A importância da leitura por meio das histórias em quadrinhos

As HQs são um meio de comunicação em que estão presentes a lingua-


gem verbal nos balões e nas legendas e a linguagem não verbal por meio de
uma sequência de desenhos e demais símbolos utilizados pelo autor. Essa arte
sequencial, como é conhecida, reporta a leituras pelas quais podemos dar mo-
vimento aos desenhos com o uso da imaginação e da criatividade.
Nessas histórias, há a combinação entre o visual, as falas, as onoma-
topeias e os variados tipos de balão, como o balão cochicho, o balão fala, o
balão pensamento, o balão grito e outros. Esses recursos, características das
HQs, possibilitam a aproximação da oralidade, contribuindo na interação do
leitor com as histórias. Tal fato nos remete ao pensamento de Bakhtin (2000,
p. 311)4: “A emoção, o juízo de valor, a expressão são coisas alheias à palavra
dentro da língua, e só nascem graças ao processo de sua utilização ativa no
enunciado concreto”. Nesse contexto, os enredos das HQs são enriquecidos
com elementos que explicitam a emoção, bem como a expressão dos persona-
gens em todas as suas histórias. As narrativas e as imagens se complementam,
possibilitando sua interpretação e, assim, o leitor pode edificar a história jun-
tamente com o autor de forma ativa e dinâmica.
Pela linguagem visual presente nas HQs, podemos projetar ideias e a nos-
sa compreensão acerca das histórias. Sobre este aspecto vale ressaltar a afirma-
ção de Feijó (1997, p. 14)5: “[...] é uma atividade de percepção e decodificação
de símbolos, integrando diversas informações para captar uma mensagem”.

4
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 311.
5
FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de história. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997. p. 14.
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Para o leitor, principalmente do mundo moderno, em que o excesso de


atividades cotidianas restringe o tempo para a leitura, o texto que faz uso de
imagens proporciona um valioso atrativo, um convite, pois elas não apenas
ilustram, mas possuem significação e auxiliam na interpretação. Muitas pes-
soas que não leem assiduamente múltiplos textos leem as HQs por diversão
e, em face disso, acabam se envolvendo e interagindo com as diversas leituras
que podemos encontrar em todas elas. Podem, assim, vir a ser leitores assídu-
os, inclusive de outros tipos de texto.
Importante lembrar que um dos objetivos da escola é despertar o interesse
dos alunos pelo processo de ler. Para isso, é fundamental, ao educador, buscar
meios diferenciados que tragam estímulo e apresentar leituras atraentes em que
o ato de ler venha a se tornar uma atividade contínua por toda a vida do leitor,
recorrendo aos diversos tipos de gênero. Conforme Rezende (2009, p. 126)6, as
Histórias em Quadrinhos são “[...] obras ricas em simbologia – podem ser vistas
como objeto de lazer, estudo e investigação. A maneira como as palavras, ima-
gens e as formas são trabalhadas apresenta um convite à interação autor-leitor”.
Conforme Vergueiro (2007)7, muitos livros didáticos de variadas disci-
plinas utilizam as HQs para trabalharem assuntos educativos em sala de aula.
A Lei de Diretrizes e Bases e os Parâmetros Curriculares Nacionais solicitam
que elas sejam utilizadas pelos professores de Língua Portuguesa. Em muitos
países, os órgãos oficiais de educação também implantaram nos currículos
escolares as Histórias em Quadrinhos.
Vergueiro (2007)8 , enfatiza a importância do uso das HQs nas escolas:

i.) Os estudantes querem ler os quadrinhos; ii.) Palavras e ima-


gens, juntos, ensinam de forma mais eficiente; iii.) Existe um
alto nível de informação nos quadrinhos; iv.) As possibilidades
de comunicação são enriquecidas pela familiaridade com as
histórias em quadrinhos; v.) Os quadrinhos auxiliam no desen-

6
REZENDE, Lucinea Aparecida de. Leitura e Formação de Leitores: Vivências Teórico-Práti-
cas. Londrina: Eduel, 2009. p. 126.
7
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Ângela; VERGUEIRO,
Waldomiro. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto,
2007. p. 21.
8
Ibidem, p. 21-25.
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
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volvimento do hábito de leitura; vi.) Os quadrinhos enriquecem o


vocabulário dos estudantes; vii.) O caráter elíptico da linguagem
quadrinística obriga o leitor a pensar e imaginar; viii.) Os qua-
drinhos têm um caráter globalizador; ix.) Os quadrinhos po-
dem ser utilizados em qualquer nível escolar e com qualquer
tema (VERGUEIRO, 2007, p. 21-25).

Essas, dentre outras vantagens, apontam para o valor da leitura por meio
das HQs no contexto escolar, pois elas não são apenas produtos humorísticos,
destinados somente à diversão dos leitores, mas são obras que trazem conteú-
dos informativos e que propiciam difusão cultural das sociedades.

3- O progresso das histórias em quadrinhos

Os desenhos produzidos nas cavernas já comunicavam mensagens, re-


gistrando acontecimentos da história dos povos antigos. Conforme Vergueiro
(2007, p. 08)9, as HQs possuem valor desde tempos remotos, pois “[...] vão
ao encontro das necessidades do ser humano, na medida em que utilizam
fartamente um elemento de comunicação que esteve presente na história da
humanidade, desde os primórdios: a imagem gráfica”.
Segundo o autor, as primeiras Histórias em Quadrinhos tinham como
temas brincadeiras, travessuras infantis e atitudes engraçadas vivenciadas por
famílias. Muitos jornais gostavam de publicar essas histórias, pois assim con-
seguiam maiores vendas, conquistando cada vez mais adeptos a esse tipo de
leitura e sucesso para o público de todas as idades (VERGUEIRO, 2007)10.
Ele destaca também que a evolução da indústria tipográfica e os jornais
foram relevantes para o surgimento das HQs. Nesse âmbito, foi nos Estados
Unidos, no final do século XIX, que essas obras começaram a despontar. Ini-
cialmente, elas eram publicadas em jornais norte-americanos aos domingos.
Com a aceitação do público, passaram a ser publicadas diariamente, abordan-
do assuntos cômicos e contribuindo para a difusão dos princípios culturais e
valores daquele país (VERGUEIRO, 2007)11.
9
Ibidem, p. 08.
10
Ibidem, p. 10.
11
Ibidem, p. 10.
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No final da década de 1920, os textos eram trabalhados sob uma pers-


pectiva naturalista, na representação de pessoas e objetos. Nessa mesma época,
houve o aparecimento dos super-heróis e as HQs se tornaram ainda mais po-
pulares. Por meio de uma tendência realista, no período da Segunda Grande
Guerra, elas apresentaram temas que tratavam de terror e medo, e o sucesso
aumentou enormemente. Mas, embora cada vez mais apreciadas, muitas pes-
soas ainda tinham preconceito em relação a elas, principalmente após o perí-
odo da Segunda Guerra e início da Guerra Fria.
Nessa fase, as HQs foram bastante criticadas por várias pessoas, que
afirmavam serem leituras permeadas de pontos negativos, devido ao suspense
trabalhado em suas histórias durante as guerras. Isso acontecia principalmente
pela sociedade letrada que considerava esse tipo de obra vazia de significados
e sem informações relevantes ao conhecimento e aprendizado da população.
Nas escolas, pais e professores não acreditavam que essas histórias ti-
vessem conteúdos educativos, mesmo com a grande popularidade que elas
alcançavam. Com isso, algumas instituições escolares consideravam a leitura
das HQs vazia de cultura e prejudicial, não abrindo espaço para a leitura
de bons livros. Sobre esse aspecto vale ressaltar o que escreveu Vergueiro
(2007)12:

Essa inegável popularidade dos quadrinhos, no entanto, talvez


tenha sido também responsável por uma espécie de “descon-
fiança” quanto aos efeitos que elas poderiam provocar em seus
leitores. Por representarem um meio de comunicação de vasto
consumo e com conteúdo, até os dias de hoje, majoritariamen-
te direcionado às crianças e jovens, as HQs cedo se tornaram
objeto de restrição, condenadas por muitos pais e professores
no mundo inteiro. De uma maneira geral, os adultos tinham
dificuldade para acreditar que, por possuírem objetivos essen-
cialmente comerciais, os quadrinhos pudessem também con-
tribuir para o aprimoramento cultural e moral de seus jovens
leitores (VERGUEIRO, 2007, p. 08). 

12
Ibidem, p. 08.
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
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Aos poucos, os autores conquistaram seu espaço dentro do mundo da


arte e o preconceito foi substituído pela valorização e consciência da impor-
tância transmitida nos conteúdos informativos contidos nessas histórias.
No Brasil, um grupo de editores brasileiros produziu um código, que
deveria ser respeitado para que as HQs pudessem ser publicadas e lidas.
Vergueiro (2007)13 explicita que as determinações eram várias. Elas deve-
riam propagar somente assuntos educativos e considerados benéficos para a
sociedade; proporcionar diversão; valorizar a presença dos pais e professores;
respeitar as crenças religiosas e as etnias; apresentar as autoridades e as famí-
lias de forma harmoniosa; não usar cenas de nudez nem palavras obscenas;
preferir a linguagem formal e evitar o uso das gírias; não mencionar as defi-
ciências físicas das pessoas; não tratar de temas de terror nem de violência;
o bem deveria sempre triunfar sobre o mal. Essas e outras determinações
deveriam ser respeitadas e seriam passíveis de punição aqueles que assim não
o fizessem.
Somente nas últimas décadas do século XX, as HQs passaram a ser vistas
sob outro ângulo, em que foram reconhecidos temas importantes em suas his-
tórias. Essa atribuição de importância às HQs teve início na Europa e depois
se espalhou por outras partes do mundo. Percebeu-se, enfim, que as críticas em
relação a elas não passavam de um enganoso preconceito e que elas poderiam
ser um tipo de leitura atrativa, inclusive para serem trabalhadas nas escolas.
Na realidade, havia histórias que apresentavam datas históricas, biografias de
santos da igreja católica, personagens literários e muitos assuntos importantes,
que os críticos pareciam não valorizar.
Ao contrário do que os críticos pensavam, produzir HQs não é uma arte
simples e fácil, e como todo trabalho, exige pesquisa. Nos dias atuais, elas são
objeto de estudo de muitas pessoas apaixonadas por esse tipo de leitura que,
além de prazerosa, possui imensa relevância educativa. Nesse contexto, temos
como exemplo, os professores e escritores Moacy Cirne e Waldomiro Verguei-
ro, os quais escreveram várias obras que trouxeram grande contribuição para o
estudo e a importância do gênero HQs.

13
Ibidem, p. 14-16.
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4- A trajetória profissional de Maurício de Sousa

No Brasil, há vários quadrinistas talentosos, dentre eles Maurício de Sou-


sa, escritor que conquistou o Brasil e o mundo com seus personagens. O autor
trabalhava como repórter policial, e, enquanto sonhava se tornar um desenhista
profissional, produzia cartazes e desenhos ilustrativos para rádios e jornais.
Encontrou muitos obstáculos no início de sua carreira, dentre eles a super-
valorização das obras americanas. Maurício tinha consciência das dificuldades
no reconhecimento de seu trabalho, principalmente ao apresentar as riquezas da
cultura brasileira com todas as suas particularidades e valores, utilizando-se das
HQs como instrumento dessa propagação. Ao mesmo tempo, desejava mostrar
seu talento e também as obras literárias de grande qualidade existentes no Brasil.
Em face disso, o autor trabalhava em suas histórias com temas universais, que
não trouxessem apenas costumes brasileiros. Cirne (1973)14 explicita esta questão:

No interior desta problemática situa-se o porquê da universa-


lidade de Maurício de Sousa, inclusive os reflexos de sua luta
pela lógica do consumo. A luta do desenhista, em sendo uma
luta pela lógica do consumo, antes precisa se voltar contra o
aparelho ideológico (CIRNE, 1973, p. 64).

O autor despertou o gosto pela leitura das HQs não somente nas crian-
ças, mas também nas pessoas das demais faixas etárias. De forma talentosa,
Maurício é um autor que tem demonstrado, claramente, seu interesse e en-
volvimento com a sociedade, seus costumes, ideologias, gostos, produzindo
arte de acordo com o cotidiano das pessoas. Retrata os encantos e desencantos
existentes na vida do ser humano. Os personagens são baseados em indivíduos
comuns, com qualidades, defeitos, problemas, dificuldades.
As histórias chegam até o leitor mostrando a realidade das pessoas de maneira
criativa e surpreendente. As crianças apresentadas em suas obras possuem caracte-
rísticas humanas. Elas são nascidas e criadas em uma família, brincam, brigam, di-
vertem-se, festejam datas comemorativas, estudam, passeiam, fazem novos amigos
e aceitam em seu convívio aqueles que muitas vezes são considerados diferentes.

14
CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 64.
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
264 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

Seus temas apresentam grande pluralidade educativa no processo de en-


sino e aprendizagem da leitura, desenvolvimento de valores, conhecimentos
culturais, representações do modo de viver, entre outros.
Dentre os conteúdos apresentados nas HQs de Maurício de Sousa, os
personagens portadores de necessidades especiais, presentes em várias de suas
obras, sugerem a inclusão social. Nessas histórias, as crianças participantes
do enredo são acolhedoras e aceitam a interação com amigos portadores de
limitações físicas de forma natural, tal como deve acontecer na sociedade, a
começar pelo contexto escolar, no qual a criança precisa de plena interação
para o seu desenvolvimento.
Essa aceitação proporciona a todos – pais, alunos, professores e demais
membros da escola e da sociedade – a boa receptividade das pessoas portadoras
de deficiência que, como tem mostrado Maurício, são comuns em nossa vida.
Em suma, o gênero HQs é fundamental para o trabalho educativo da leitura,
pois, além de divertido, trata da própria representação da escola, espaço em
que, como na sociedade em geral, nem sempre os portadores de necessidades
especiais são recebidos amigavelmente.

5- Caracterização dos personagens considerados neste estudo

Nesta pesquisa serão focalizadas doze revistas utilizadas para a caracteri-


zação dos personagens. São as seguintes:

Revista 221 (SOUSA, 2004)15: “Dorinha, a nova amiguinha”.


É a revista que lançou Dorinha, e a capa apresenta a perso-
nagem juntamente com seu cão labrador e a amiga Mônica.
Além da imagem da personagem, a revista é intitulada tam-
bém “Dorinha, a nova amiguinha”. Nesta revista há ainda ou-
tras histórias com outros personagens.

15
SOUSA, Maurício de. Dorinha, a nova amiguinha. São Paulo: Globo, 2004. (Turma da Môni-
ca, n. 221). Esta revista foi adquirida pelas pesquisadoras por meio de contato com a Institui-
ção Maurício de Sousa. Por este motivo, não é possível o conhecimento das páginas da história
“Dorinha, a nova amiguinha” na HQ, pois foi enviada a história e a capa da revista.
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Revista 5 (SOUSA, 2007a)16: “Magali – Aniversário da


Magali”. A história relatada na caracterização de Dorinha
está no final da revista e é intitulada “Dudu e Dorinha
em os outros sentidos”. Por meio dessa história, Dorinha
mostrou ao seu amigo que consegue realizar muitas ati-
vidades (atravessar a rua, por exemplo) utilizando-se de
outros sentidos. Há várias histórias com Magali come-
morando seu aniversário, Penadinho com sua namorada,
Tina e seu importante telefonema e outras.

Revista 35 (SOUSA, 2009a)17: Turma da Mônica – Es-


pantando a tristeza e realizando desejos! Nesta revista
Dorinha descobre as frutas, legumes e hortaliças que sua
mãe lhe mostra por meio de seu paladar, tato e olfato.
Nesta HQ há uma longa história de Chico Bento. Em
seguida aparece a de Bidu (primeiro personagem criado
por Maurício de Sousa), além das histórias de Cascão,
Papa Capim, Do Contra e outras.

Revista 26, (SOUSA, 2009b)18: Mônica – Moniquinha


paz e amor. Encontramos Dorinha realizando leituras
por meio de seus sentidos e também a história que mos-
tra o personagem Luca mudando seu corte de cabelo para
outro bastante moderno. A HQ traz Mônica tentando
controlar sua impaciência e mau humor; Chico Bento
auxiliando o primo Zé Lelé que caiu em um buraco e a
Turma do Penadinho ajudando o amigo Cranicola.

16
SOUSA, Maurício de. Aniversário da Magali. São Paulo: Panini Comics, 2007a. (Turma da
Mônica, n. 5). p. 46-65 (história “Dudu e Dorinha em os outros sentidos”).
17
SOUSA, Maurício de. Espantando a tristeza e realizando desejos! São Paulo: Panini Comic,
2009a. (Turma da Mônica, n. 35). p. 37-39 (história “Dorinha em cheiro de quê?”).
18
SOUSA, Maurício de. Moniquinha paz e amor. São Paulo: Panini Comics, 2009b. (Turma
da Mônica, n. 26). p. 43-49; 75-81 (histórias “Dorinha em Meu mundo” e “Mônica e Ma-
gali em o Luca mudou”).
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
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Revista 4 (SOUSA, 2007b)19: Mônica – Não percam a


menina gorila! Apresenta a história em que Luca e Mô-
nica se paqueram, enquanto Cascão e Cebolinha tentam
conquistar Mônica, que aparece com um novo visual.
Destaque para o surgimento do personagem Humberto
entre as crianças da turma, quando elas estão brincando
e fazendo uma campanha pela paz. Temos também uma
longa história em que Mônica se transforma em um go-
rila, dentre outras.

Revista 3 (SOUSA, 2007c)20: Mônica – Aniversário da


escola. Humberto, como personagem principal, pratica
boas ações. Logo no início da revista acontece uma festa
de aniversário da Mônica na escola onde ela estuda, jun-
tamente com seus amigos. Encontramos ainda outras
histórias como a de Tina, Chico Bento, Bidu. No final
da revista, há a história do personagem Anjinho, com
personagens como Adão e Eva no paraíso.

Revista 42 (SOUSA, 1997)21: Almanaque do Ceboli-


nha. Humberto encontra um amigo, que se comunican-
do como ele, por meio de sinais e os dois se tornam
amigos. Encontramos ainda histórias diversificadas do
Bidu, Penadinho, Astronauta, Cebolão, Piteco, Horá-
cio, Chico Bento e várias do Cebolinha.

19
SOUSA, Maurício de. Não percam a menina gorila. São Paulo: Panini, Comics, 2007b.
(Turma da Mônica, n. 4). p. 54-55; 73-81 (histórias “Turma da Mônica” e “Mônica em
Moniquinha Frufru”).
20
SOUSA, Maurício de. Aniversário da escola. São Paulo: Panini Comics, 2007c. (Turma da
Mônica, n. 3). p. 23-25 (história “Humberto em boas ações”).
21
SOUSA, Maurício de. Almanaque do Cebolinha. São Paulo: Globo, 1997. (Turma da Môni-
ca, n. 42). p. 60-63 (história “Ninguém entende o Humberto”).
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Revista 239 (SOUSA, 2006)22: Mônica – Que fim le-


vou o Sansão? Interessante notar que no decorrer da
história há uma página com o alfabeto dos surdos, em
que se explica como cada letra deve ser expressa. Esse
fato, juntamente com as informações obtidas pelo Ins-
tituto Maurício de Sousa, esclareceu que Humberto é
surdo-mudo.

Revista 15 (SOUSA, 2008)23: Mônica – o aniversário


da Mônica. O personagem Luca, assim como os outros
personagens da Turma da Mônica, foi convidado para
uma festa. No decorrer da HQ vemos Humberto e Luca
participando de outra história.

Revista 11 (SOUSA, 2007d)24: Cascão – Um vilão de


penetra! Essa HQ apresenta o quanto Luca se diverte
com sua moderna cadeira de rodas, pois possui várias
funções, além de transportá-lo para os lugares a que ele
deseja ir, proporcionando diversão para Luca e seus ami-
gos. Há várias histórias com o personagem Cascão, uma
com Rolo e no final a de Cascão e Luca.

22
SOUSA, Maurício de. Que fim levou o Sansão? São Paulo: Globo, 2006. (Turma da Môncia,
n. 239). p. 35-42 (história “Humberto em aprendendo a falar com as mãos!”).
23
SOUSA, Maurício de. O Aniversário da Mônica. São Paulo: Panini Comics, 2008. (Turma
da Mônica, n. 15). p. 3-15; 16-28 (histórias “Um par para a Mônica” e “Um par-pai na
festa”).
24
SOUSA, Maurício de. Um vilão de penetra! São Paulo: Panini Comics, 2007d. (Turma da
Mônica, n. 11). p. 57-65 (história “Cascão e Luca em foi o Franjinha quem inventou”).
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
268 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

Revista (SOUSA, 2009c)25: Turma da Mônica em Viva


as diferenças! Essa revista não foi colocada à venda, mas
a Instituição Maurício de Sousa a enviou gratuitamente
após contato telefônico. Toda a HQ apresenta a história
de Tati, a gravidez de sua mãe, seu nascimento, sua fa-
mília e posteriormente Tati na escola com as crianças da
turma e a professora.

Revista (SOUSA, 2007e)26: Turma da Mônica – Um


amiguinho diferente. Essa HQ também foi enviada às
pesquisadoras pela Instituição Maurício de Sousa. Toda
a revista apresenta o personagem André com as crianças
da turma. Logo na capa da revista, André é mostrado
sério, andando de bicicleta com Cebolinha e Cascão que
segura o amigo aparentemente assustado. No decorrer
da história, André é visto constantemente com seu jeito
isolado, característica dos autistas.

Na caracterização dos personagens selecionados para este estudo, são fo-


cadas suas narrativas, imagens e atitudes físicas (comportamento entre eles
com as demais crianças da turma, vestimentas, expressões faciais e corporais,
ambientes dos quais participam em cada história analisada). Os personagens,
portadores de necessidades especias, são: Dorinha, Humberto, Luca, Tati e
André.

Dorinha: deficiente visual que não se intimida com seu problema e age natu-
ralmente. Na apresentação de Dorinha, o autor mostra o quanto ela é alegre,
dinâmica, possuidora de muitas habilidades e que pode não enxergar com

25
SOUSA, Maurício de. Viva as diferenças! São Paulo: Instituto Metasocial e Mantecorp, 2009c.
(Turma da Mônica). p. 3-10; 11-18 (histórias “Cada ser é único” e “A nova coleguinha”).
26
SOUSA, Maurício de. Um amiguinho diferente. São Paulo: Maurício de Sousa, 2007e. (Tur-
ma da Mônica). Esta revista foi adquirida pelas pesquisadoras por meio de contato com a
Instituição Maurício de Sousa. Por este motivo, não é possível o conhecimento das páginas
da história “Um amiguinho difererente” na HQ, pois foi enviada a história e a capa da revista.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 255-276, 2012 269

os olhos, mas enxerga com o coração, com os ouvidos, com o tato, com o
paladar, com a alma. Ela não surge na história de maneira triste, sentindo-se
diferente das outras crianças. Pelo contrário, foi apresentada com diversão,
mostrando que é cheia de contentamento, brincando com os amigos da turma
e deixando-os surpresos por seus talentos.
Em sua apresentação na revista 221 (SOUSA, 2004), na história intitu-
lada “Dorinha, a nova amiguinha”, a personagem aparece e as crianças estão
usando venda nos olhos, pois estão brincando de cabra-cega, tentando se en-
contrar umas as outras. É nesse momento que chega Dorinha, vestida elegan-
temente, de óculos escuros, corte de cabelo moderno, sorridente, alegre e com
seu amigo Radar, um cão guia labrador.
A admiração da beleza e simpatia da personagem é bastante notória nos
rostos de Mônica, Magali, Cascão, Cebolinha e Marina. Como demonstração
de carinho e amizade, tocam no cabelo da amiguinha e acariciam seu cão.
Em momento algum as crianças notaram a deficiência visual de Dorinha.
Ela entra na brincadeira e também usa a venda nos olhos. Com a audição e o
olfato encontra os amigos escondidos – no caso do Cascão devido a sua tão
conhecida sujeira e repúdio à água, pois tem um cheiro característico que o
torna facilmente reconhecível. Dorinha, portanto, brinca normalmente com
seus novos amiguinhos.
É possível verificar que Dorinha não precisaria vendar seus olhos, mas a
escolha dessa brincadeira feita por Maurício para apresentar a personagem traz
a percepção de que Dorinha também quer se incluir em seu meio social. Para
isso, o autor a coloca como igual, participando da brincadeira de cabra-cega
com as crianças. Se ele a tivesse colocado na brincadeira sem a venda, não ha-
veria a percepção de que ela deve ser vista como uma criança como outra, nem
diferente, nem excluída. Maurício apresentou o diferente de maneira igual.
Na edição 5 (SOUSA, 2007a), na história “Dudu e Dorinha em os ou-
tros sentidos”, nas páginas 46 e 47, Dorinha, atravessa a rua com a ajuda de
sua bengala, e, próximo a ela, aparece Dudu, visivelmente assustado. Dudu
tenta salvá-la de um carro que, na verdade, estava parado à espera da passa-
gem de Dorinha sobre a faixa de pedestres. Verifica-se que ela atravessa a rua
naturalmente como toda pessoa pode fazer, mas Dudu quase sai atropelado,
pois não esperou o momento oportuno para atravessar. Ele simplesmente saiu
correndo disparadamente em busca da amiga.
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
270 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

Em outra revista, a 35 (SOUSA, 2009a), na história “Dorinha em cheiro


de quê?”, a personagem mostra seus talentosos paladar e tato ao descobrir com
total desembaraço as frutas, legumes e hortaliças que sua mãe lhe apresenta.
Na revista 26 (SOUSA, 2009b), na história “Dorinha em Meu mundo”,
em todas as páginas (43-50) as imagens mostram a personagem caminhando
alegremente com sua bengala, sentindo o perfume das flores, tocando em ob-
jetos que deseja descobrir, percebendo o chamado de seus amigos e o latido de
seu cão, comunicando-se e interagindo com o seu ambiente. Neste aspecto,
Rezende (2007)27 explicita que podemos ler e interagir de múltiplas maneiras.
A criação da personagem Dorinha foi baseada em Dorina Nowill28, cria-
dora da instituição que faz tratamento de pessoas cegas – Fundação Dorina
Nowill para Cegos. A inclusão de Dorinha nos traz a conscientização da im-
portância da sociedade em aceitar o cego como uma pessoa normal, come-
çando pela mente infantil, no contexto familiar e escolar. O autor explicita
a interação que Dorinha realiza por meio de outras leituras, utilizando-se de
seus sentidos e interagindo com tudo o que está ao seu redor.
Considerando a condição dos deficientes visuais, percebemos que estes
se deparam ainda com muitos obstáculos. No contexto escolar, por exemplo,
há poucos materiais e professores preparados para trabalharem com essas pes-
soas. No mercado profissional, nem toda empresa contrata pessoas portadoras
de necessidades especiais, embora a lei assegure que determinado número de
vagas seja reservado a elas.
Cabe lembrar que os deficientes visuais podem desenvolver muito bem
seus demais sentidos, sendo, portanto, tão capazes quanto os que enxergam,
e podem atuar no meio profissional, acadêmico, nos relacionamentos entre
amigos e serem tão felizes quanto as demais pessoas.
Humberto: Não fala, apenas murmura (hum, hum) e se comunica por
meio de sinais. Nas revistas iniciais em que aparece o personagem Humber-
to, este era apresentado como uma criança que tinha dificuldade na fala.
No decorrer das publicações, passou a ser apresentado nas histórias como
surdo-mudo29.
27
Ibidem, p. 06.
28
SOUZA, Maurício de. Produções. Disponível em: http://www.monica.com.br/mural/dori-
nha.htm Acesso: 20 jun. 2010.
29
Informações obtidas junto à Instituição Maurício de Sousa.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 255-276, 2012 271

Nos quadrinhos, Humberto é visto em várias histórias, ora como per-


sonagem principal, ora como participante. Em algumas delas, ele aparece até
mesmo em uma única cena, podendo-se perceber que, mesmo em sua quie-
tude, está sempre presente na turma, como na revista 4 (SOUSA, 2007b), na
história intitulada “Turma da Mônica”.
Na edição 3 (SOUSA, 2007c), na história “Humberto em boas ações”,
o personagem aparece como um amigo solidário ajudando algumas crianças.
Ele sobe em uma árvore para pegar uma pipa enroscada nos galhos e folhas,
ao ver um garotinho chorando pela perda do brinquedo. Nas demais cenas,
Humberto ajuda um cãozinho com algumas latinhas amarradas por uma linha
em seu rabo e compra sorvete para um menino que estava chorando porque
derrubou no chão aquele que estava chupando. Para finalizar suas boas ações,
Cebolinha rouba da cabeça de Humberto uma auréola que estava simbolizan-
do sua bondade e solidariedade.
Na revista 42 (SOUSA, 1997), na história “Ninguém entende o Hum-
berto”, o personagem brinca com a turma, que tenta compreender o que ele
está desejando transmitir. Nenhuma criança o exclui nem zomba de sua di-
ficuldade de falar, mas Humberto acaba ficando impaciente, demonstrando
inquietação em suas expressões faciais. Para finalizar, encontra um colega que
também tem dificuldade na fala e os dois se unem utilizando suas próprias
linguagens para se comunicarem: hum! hum!
Em outra revista, 239 (SOUSA, 2006), na história intitulada “Humber-
to em aprendendo a falar com as mãos”, o personagem lê um livro de sinais e
o deixa cair no chão. Quando as crianças vão pegá-lo para devolver ao amigo,
descobrem o alfabeto dos surdos, se interessam em aprendê-lo e assim acon-
teceu uma melhor comunicação e interação com Humberto. Os amigos do
personagem foram ao encontro de sua dificuldade, de seu mundo, em vez de
excluí-lo do grupo.
Essa história chama a atenção, porque há a percepção da inclusão por
aqueles que não possuem deficiências e buscam a interação com os portadores
de alguma deficiência ou dificuldade, como é o caso de Humberto.
Com o personagem Humberto, Maurício mostra as crianças partici-
pantes das histórias brincando com um portador de necessidades especiais de
forma descontraída e alegre. As crianças precisam estar conscientes de que há
encantos e desencantos em nossa vida diária. E, mesmo com algumas diferen-
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
272 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

ças em relação à maioria, essas pessoas também podem ser felizes e desenvolver
muitas habilidades.
Luca: um garoto que anda em cadeira de rodas e é apaixonado por es-
portes, especialmente o basquete. Para Luca, os obstáculos enfrentados pelos
cadeirantes, como corredores e portas estreitas, escadas, banheiros apertados,
rampas, ônibus inacessíveis, buracos nas ruas e calçadas, parecem não inco-
modar tanto.
Bonito e querido por seus amiguinhos, Luca é um dos personagens
portadores de necessidades especiais. Maurício demonstra que pessoas com
dificuldades podem não apenas participar do convívio social, mas também
interagir plenamente, quando a sociedade está disposta a acolher e propiciar
meios adequados para essa inclusão.
Na edição 15 (SOUSA, 2008), nas histórias intituladas “Um par para
a Mônica” e “Um par-pai na festa”, Luca é convidado para uma festa. Ele
participa como todos os outros convidados, divertindo-se com sua cadeira de
rodas. Em outra revista, 4 (SOUSA, 2007b), na história “Mônica em Moni-
quinha Frufru”, Mônica aparece na história enamorada por Luca, o qual está
sempre vestido de forma elegante.
Em mais uma revista, a 26 (SOUSA, 2009b), na história “Mônica e Ma-
gali em o Luca mudou”, ele é apresentado como um garoto que gosta de cuidar
de seu visual indo ao cabeleireiro e aparecendo com um novo corte de cabelo.
Percebemos a respeito do personagem Luca que a cadeira de rodas não é
um empecilho para suas atividades diárias, pois ele faz dela um meio de trans-
porte divertido. Isso é perceptível na revista 11 (SOUSA, 2007d), na história
“Cascão e Luca em foi o Franjinha quem inventou”. A cadeira tem vários
botões, cada um representando uma função. Luca usa essas funções, como no
momento em que algumas garotas correm atrás dele, já que é cobiçado pelo
seu belo visual. Ele ativa um botão em que aparece uma mola debaixo de sua
cadeira de rodas e consegue escapar das meninas.
Em outra cena, Luca aciona um botão que faz a cadeira se transformar
em um carrinho para protegê-lo da água de uma grande mangueira usada
pelos meninos para dar um banho em Cascão que está próximo a ele. Na
mesma história, Luca aciona um botão e liga um aparelho que perfura a
terra para escapar de um cão bravo. O personagem entra em um buraco e
foge do animal.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 255-276, 2012 273

Na vida real não existem cadeiras de rodas como a do Luca. Mas as cenas
mostram que a cadeira de rodas não precisa ser vista como algo triste e terrível
na vida das pessoas e esse personagem é um exemplo disso. Mesmo cadeirante,
ele interage com a turminha e faz de seu meio de transporte um objeto útil
para sua locomoção e ao mesmo tempo para sua diversão. Maurício apresenta
a cadeira de rodas como um objeto a ser usado por aqueles que dela necessi-
tam com uma aceitabilidade agradável e não como um fardo a ser carregado
insuportavelmente.
Em todas as revistas do personagem Luca, Maurício o apresentou sor-
ridente, simpático, amigo de todos e participante das brincadeiras da turma,
que, por sua vez, interage com o amiguinho plenamente.
Tati: portadora de Síndrome de Down, ela é inspirada em Tathiana
Piancastelli, de Campinas30. O Instituto Maurício de Sousa, juntamente com
o Instituto Metasocial e apoio da Mantecorp, lançaram a revista com essa
personagem para comemorar o Dia Internacional da Síndrome de Down, du-
rante um simpósio realizado em 2009.
A revista da Turma da Mônica, intitulada “Turma da Mônica em Viva as
Diferenças!”, (SOUSA, 2009c), foi distribuída gratuitamente para associações
e consultórios que tratam de pessoas portadoras dessa síndrome. Nessa revista
há duas histórias. Na primeira, “Cada ser é único”, vemos a gravidez da mãe de
Tati. Durante todas as cenas são mostrados vários pais e mães gestantes, pas-
sando a ideia de que todo bebê é ansiosamente desejado e a alegria da espera
do nascimento de seus filhos.
Na segunda história, “A nova coleguinha”, Tati é apresentada à turma
na escola. Vemos as crianças na sala de aula com os olhinhos voltados para
a nova amiga, apresentando o desejo de conhecê-la. Nas próximas cenas, as
crianças dirigem-se a Tati que está sempre com um sorriso nos lábios, ao lado
da professora. No decorrer da história, visualizamos a nova aluna estudando
como os demais.
Nas páginas seguintes, percebemos que Tati possui um coelho igual ao
da Mônica, o qual é sempre escondido por Cascão. Tati recupera seu brin-
quedo facilmente. Ao final, as crianças vão embora da escola, todos felizes e
interagindo entre si.

30
Informações obtidas junto à Instituição Maurício de Sousa.
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
274 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

A personagem Tati foi apresentada pelo autor no contexto escolar, no


qual as crianças a receberam singelamente.
André: o personagem é autista. Foi lançado por Maurício de Sousa para
trabalhar a apresentação de crianças que possuem esse transtorno psiconeuro-
lógico. As revistas que contêm esse personagem não foram colocadas à venda
e foram produzidas pela Associação de Amigos do Autista (AMA) e pelo Insti-
tuto Maurício de Sousa, com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Hu-
manos e do Governo Federal. Distribuídas gratuitamente às AMAs, mostram
em suas propagandas o personagem André. Sem fins lucrativos, conforme já
explicitado, a revista selecionada para este trabalho é intitulada “Turma da
Mônica – Um amiguinho diferente”.
Na capa da revista da Turma da Mônica (SOUSA, 2007e), André é visto
bastante sério e com aparência de assustado. Ele está com sua irmã Lucila,
Magali, Mônica, Cascão e Cebolinha. No início da história a qual recebe o
mesmo título da capa, Lucila apresenta André às amigas, e é perceptível a falta
de atenção desse personagem. A leitura das imagens mostra que ele nem se-
quer fixa o olhar nas garotinhas, na verdade uma das características das pessoas
que possuem esse transtorno global. Em outra cena, é mostrada a expressão
facial de indignação e irritação de Magali. Ela vai apertar a mão de André para
cumprimentá-lo e ele não lhe dá atenção nem corresponde ao cumprimento.
No decorrer da história, Magali movimenta seus braços em uma atitude de
incompreensão do que estava acontecendo com o garoto, olhando fixamente para
ele. Enquanto isso, Lucila percebe o espanto das amigas e as atitudes do irmão.
Finalmente, Lucila mostra o irmãozinho às amigas em uma atitude de explicação.
Nessa história, Maurício mostra alguns comportamentos do persona-
gem, comuns em pessoas autistas. Magali se assusta ao ver um bichinho sobre
uma pedra e apresenta uma expressão de grito, enquanto André se mostra
indiferente tanto ao animal quanto também ao susto da garota. Em seguida,
enquanto Magali estava pulando corda, com sorriso nos lábios – como aconte-
ce enquanto as crianças estão brincando e se divertindo, tomadas pela euforia
que envolve suas brincadeiras – o amiguinho estava sentado sobre uma pedra
e nem sequer olhava para a amiga, absorto em sua solidão.
Na cena ao lado, André aparece brincando com carrinhos enfileirados,
expressando outra característica do autismo, o de repetir gestos sequenciais.
Nas páginas seguintes, quando os personagens Cebolinha e Cascão chegam,
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 255-276, 2012 275

também demonstram incompreensão em seus rostos. Da mesma forma como


aconteceu com Magali e Mônica, André não deu atenção a eles.
As crianças não demonstraram sentimento de exclusão em relação ao
novo amigo, mesmo que esse tenha jeito sério e isolado. Continuaram brin-
cando todas próximas a André e, ao mesmo tempo, respeitando suas diferentes
atitudes. Em nenhuma cena as crianças se ausentaram de sua presença. Maurí-
cio mostrou de maneira natural mais uma inclusão de um personagem.

Considerações finais

Sem pretender utilizar a literatura como pretexto, procuramos eviden-


ciar neste trabalho as obras do autor Maurício de Sousa no universo das HQs,
que apresenta o diferente em condições normais de aceitação. Paralelamente,
pensamos ser um dos desafios dos educadores apresentarem aos estudantes
meios acessíveis à instrução e ao conhecimento, bem como auxiliar na pre-
paração de pessoas envolvidas com a sociedade; pessoas aptas a realizarem
mudanças necessárias ao bem estar da população, em uma contínua busca de
novas aprendizagens em que a leitura esteja sempre presente como ferramenta
indispensável desse processo.
Imprescindível ao ser humano, a leitura, quando trabalhada de forma
prazerosa, possibilita aos alunos o acesso a assuntos importantes, como é o
caso da inclusão social, tratada neste trabalho. Ela oportuniza a construção de
conhecimentos e amplia a visão de mundo, para que o aluno possa se tornar
um cidadão crítico e reflexivo, capacitado a discernir o que vê e ouve, inter-
vindo em seu meio de maneira a contribuir socialmente.
É a leitura que abre as portas para o entendimento, a interpretação e
a compreensão do mundo. Sem ela, a criatividade, criticidade e imaginação
não avançam significativamente. Além disso, ler possibilita maior facilidade
para dialogar, analisar, refletir, argumentar, escrever. Vemos que quem não lê,
além de ter mais dificuldade para escrever, interpretar, argumentar, tampouco
consegue analisar a coerência dos valores mostrados pela sociedade como um
todo. Muitas vezes aceita informações sem saber se posicionar, simplesmente
porque alguém ou a mídia disse. A leitura, portanto, possibilita ao estudante e
a todo ser humano desenvolver muito mais sua inteligibilidade e sua capacida-
de de ser social. Também proporciona o desejo de progredir, caminhar, liber-
Rezende, Lucinea Aparecida de; Silvério, Luciana Begatini Ramos.
276 Leitura e educação – representações da inclusão social na obra de maurício de sousa

tar-se de conceitos equivocados. Ela pode contribuir para despertar o interesse


quanto ao progresso individual e social e auxilia a compreender o cotidiano.
No estudo voltado às revistas de Maurício de Sousa, vemos que o autor
apresentou crianças portadoras de necessidades especiais e situações de plena
integração delas em seu meio, levando-nos a identificar a pluralidade de con-
teúdos educativos. A partir da utilização das HQs como material pedagógico,
a leitura pode auxiliar os alunos a interagirem no encantamento e na constru-
ção de conhecimentos que envolvem o ato de ler. Trabalhar a leitura em sala de
aula utilizando-se dessas histórias pode representar o encantamento da beleza
de imagens e informação caminhando lado a lado.
Vale ressaltar que os textos contidos nas HQs são curtos, despertando
no leitor em formação ânimo para leitura. Outro ponto positivo para os alu-
nos que possuem dificuldade em ler é que os textos são escritos geralmente
com letras maiúsculas, recurso que facilita esse processo. Esses textos também
se constituem materiais preciosos, por trazerem questões culturais, regionais,
folclóricas, históricas e sociais. Portanto, a leitura por meio das Histórias em
Quadrinhos pode constituir situação valiosa, que pode ser utilizada pelos pro-
fessores para motivar os alunos e despertar neles a prática da leitura, aliando-se
prazer de ler e formação cidadã.

READING AND EDUCATION – REPRESENTATIONS OF THE


SOCIAL INCLUSION AT MAURÍCIO DE SOUSA’S WORK

ABSTRACT
The Comic Strip contribute for the teachers work the
reading of attractive way and arouse the interest of the
students by the reading, as to prepare an open-minded
citizen for the questions about social inclusion? This
article emphasizes the reading importance and a way
work it through Comic Strip.

KEY WORDS: Reading; Comic Strip; Social Inclusion.

Recebido em: 25/09/11


Aprovado em: 25/05/12

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