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UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CENTRO DE DIREITO DO CONSUMO

A PESSOA JURÍDICA COMO CONSUMIDOR À LUZ DA LEGISLAÇÃO


BRASILEIRA E A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA COLETIVA COMO TAL À
LUZ DA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

Sicy Rusalka Góes de Melo

Novembro/2022
RESUMO

A relação de consumo, tanto para a legislação brasileira quanto para a legislação


portuguesa, é composta por três elementos fundamentais: consumidor, fornecedor e
produto/serviço. Dentro dessa relação, é sabido que não se pode considerar que
consumidores e fornecedores estão no mesmo patamar de conhecimento e
capacidade quando iniciam uma determinada contratação. Mas quem é o consumidor
afinal? O presente trabalho tem por finalidade o estudo dos conceitos de consumidor
adotados no Brasil e em Portugal e o ponto de divergência entre eles: a consideração
da pessoa jurídica/coletiva como consumidor para um país e a sua não consideração
para o outro. Para isso, foram objeto de análise a legislação dos dois países,
doutrinas, artigos científicos, assim como a jurisprudência, a fim de que se possa
chegar a uma conclusão sobre qual sistema em sede direito comparado, oferece maior
proteção ao consumidor.

PALAVRAS-CHAVE

Relação de consumo; consumidor; legislação brasileira; legislação portuguesa; pessoa


jurídica/coletiva.
ABSTRACT

The consumer relationship, both for the Brazilian and the Portuguese legislation, is
composed of three fundamental elements: consumer, supplier and product/service.
Within this relationship, it is well known that one cannot consider that consumers and
suppliers are on the same level of knowledge and ability when they start a given
contract. But who is the consumer after all? This paper aims to study the concepts of
consumer adopted in Brazil and Portugal and the point of divergence between them:
the consideration of the legal entity / collective as a consumer in one country and not in
the other. For this, the legislation of both countries, doctrines, scientific articles, as well
as case law were analyzed in order to reach a conclusion on which system, in
comparative law, offers greater protection to consumers.

KEYWORDS

Consumer relationship; consumer; Brazilian law; Portuguese law; legal entity/collective


entity.
SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO

1.1. ASPECTOS HISTÓRICOS ACERCA DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL E


PORTUGAL

2. RELAÇÕES DE CONSUMO DE ACORDO COM A NORMA DOS DOIS PAÍSES

3. CONSUMIDOR SEGUNDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

4. CONSUMIDOR SEGUNDO A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

5. CONCLUSÃO

6. REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO

O equilíbrio material é princípio basilar nas relações de consumo, seja na legislação


brasileira quanto na legislação portuguesa.

A vulnerabilidade do consumidor é existente, por princípio, perante o fornecedor de


produtos e serviços. No sistema capitalista, o fornecedor impõe sua vontade no
mercado de consumo, fazendo com que os consumidores se sujeitem a contratar de
acordo com as regras estabelecidas.

O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é a principal razão da existência


e do desdobramento dos direitos nas normas específicas no Brasil e em Portugal.
Normas estas, preponderantemente protecionistas, ou seja, se o consumidor é a parte
vulnerável faz-se necessário trazer isonomia na sua relação com o fornecedor.

O principal ponto é entender quem é o sujeito vulnerável a ser protegido. Segundo


Antônio Benjamin1, desenvolver o conceito de consumidor é analisar o sujeito da
relação jurídica de consumo tutelada pelo Direito do Consumidor.

Nesse diapasão o presente trabalho trará uma breve narrativa acerca dos aspectos
históricos da evolução sobre o direito do consumidor no Brasil e em Portugal.

Depois, traçaremos os critérios para identificação de uma relação de consumo com o


intuito de serem fixadas bases comuns dos dois ordenamentos em análise para a sua
efetiva proteção.

Em um terceiro momento, é feita análise do conceito de consumidor em sede de


direito comparado, com enfoque na existência e não existência da proteção da pessoa
jurídica/coletiva na relação de consumo. Expondo de forma sintética, a relevância do
assunto, tendo em vista a crescente expansão das relações consumeristas no mundo
inteiro.

Por fim, emitimos conclusão acerca dos conceitos de consumidor e aplicabilidade


prática do protecionismo consumerista aos dois sujeitos: consumidor brasileiro e o
consumidor português.

A orientação do trabalho será sustentada na revisão da legislação, com referências da


jurisprudência e da doutrina dos países.

1
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e, Disponível em
http://www.danielwh.com/downloads/O%20conceito%20juridico%20de%20consumidor%20-
%20Herman%20Benjamin.pdf, acesso 27/11/2022.
ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL E
PORTUGAL

A existência de lei de proteção ao consumidor pressupõe um entendimento da


sociedade a que nós pertencemos. A sociedade que baseia a norma consumerista tem
uma origem na sociedade capitalista contemporânea.

A compreensão do atual sistema de proteção do consumidor, depende de uma análise


breve acerca dos fundamentos históricos da defesa do consumidor em Brasil e
Portugal.

No Brasil, antes mesmo de ser incluída na Carta Constitucional de 1988, a defesa do


consumidor esteve presente em leis esparsas, como por exemplo o decreto-lei 869 de
1938, o qual trata de crimes contra a economia popular, o decreto-lei 22.626 de 1943 -
Lei de Usura (ainda em vigor), a Lei Delegada 4 de 1962 que positivou a intervenção
estatal no domínio econômico para que fosse assegurada a livre distribuição de
produtos de primeira necessidade à população como um todo

O marco mais significativo deste período foi a Lei nº 7.347/85, conhecida como Lei da
Ação Civil Pública, com vistas à proteção dos interesses difusos da sociedade. No
mesmo ano, criou-se o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor.

A regularização das relações de consumo veio com o Código de Defesa do


Consumidor foi editado em 11 de setembro de 1990.

Apesar de ser conhecida como pioneira em diversos aspectos, a legislação brasileira é


atrasada no que tange à proteção ao consumidor.

O Brasil passou praticamente todo o século XX aplicando o Código Civil de 1916 às


relações de consumo. Norma essa que entrou em vigor em 1917, e é fundada do
direito civil europeu do século anterior.

Importante ressaltarmos que a aplicabilidade norma civilista às relações consumo, se


mostrou equivocada uma vez que ao direito civil pressupõe-se uma série de condições
para contratar que não vigem para relações de consumo conhecidas atualmente.

Contudo, mesmo que vindo em momento posterior, o CDC acabou por ter resultados
altamente positivos, porque o legislador trouxe para o sistema legislativo brasileiro o
conteúdo mais moderno na proteção do consumidor.
Já Portugal, possui desde o início dos anos 80 diplomas regentes das relações de
consumo como por exemplo a Lei n.º 29/81, de 22 de agosto e o Decreto-Lei nº 446/85
de 25 de outubro de 1985.

A adesão de Portugal à União Europeia e seus tratados trouxe adaptações às normas


internas que vieram sob a influência das políticas oriundas do Parlamento e do
Conselho Europeu, uma vez que a proteção dos interesses econômicos dos
consumidores é um compromisso da União Europeia2.

Dentro dessas adaptações, ocorreu a segunda revisão da Constituição da República


de Portugal em 1989, trazendo no seu artigo 60, o princípio da defesa do consumidor
na perspectiva econômica.

O Art. 60º da Constituição da República Portuguesa elenca os direitos dos


consumidores em termos de defesa da sua qualidade de vida, em relação à boa
qualidade dos bens e serviços, ao seu preço competitivo e equilibrado, à proteção da
saúde, à segurança, à eliminação do prejuízo e à própria formação e informação.

Todavia, devemos dar importância ao destaque constitucional conferido ao


consumidor a partir do texto originário de 1976 que, em seu art. 81°, alínea m), tratou
do tema da proteção do consumidor como integrante dos princípios da organização
econômica.

Em semelhança ao cenário brasileiro, o Código Civil português (datado de 1966)


também teve aplicação às relações de consumo. E da mesma maneira, não deveria
ter o sido quando não trouxe o consumidor como ator principal. Contudo, este dispôs
de normativas significativas que resguardaram interessantes do consumidor como o
princípio da boa-fé em sentido objetivo, a proibição do abuso do direito e dos negócios
usurários; a possibilidade de revisão do contrato no caso de alteração anormal das
circunstâncias, entre outras.

Em absoluta harmonia com a Constituição da República, a Lei nº 24/96, de 31 de


Julho, (Lei de Defesa do Consumidor- LDC), consagra os direitos dos consumidores
em Portugal e estabelece o regime jurídico aplicável à defesa dos consumidores.

Com o intuito de agrupar as espaçadas normas e diretivas, foi entregue em 15 de


março de 2006, o anteprojeto do Código do Consumidor.

2
art. 169, n.º 1, do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia
Enfim, a história do direito do consumo nos dois países está em constante mudança.
Certamente, a cada nova necessidade corresponderá à assunção de novas leis,
políticas e diretrizes.
RELAÇÕES DE CONSUMO DE ACORDO COM AS NORMAS DOS DOIS PAÍSES

O gregarismo existente no homem o induz a estar em constante contato com seus


demais, participando e interagindo em relações sociais.

Algumas dessas relações recaem sobre uma norma. Com isso, é atribuído o status
jurídico a essas situações, nascendo assim a relação jurídica.

Para a existência de uma relação jurídica devemos considerar a presença dos


seguintes elementos:

a) Elementos subjetivos: o credor, o devedor e o consensualismo que deve existir


entre eles como uma convergência de vontades para que o acordo seja
pactuado sem vícios e sem prejuízo de igualdade entre os sujeitos envolvidos;

b) Elementos objetivos: o negócio celebrado entre as partes, como um


instrumento para a concretização e formalização do vínculo jurídico, e o bem,
seja móvel, imóvel, corpóreo ou incorpóreo, objeto mediato da relação jurídica.

Ocorre que nem toda relação jurídica é uma relação de consumo. As relações de
consumo, assim como a relação jurídica civil, surgem através de um negócio jurídico
compreendido entre duas ou mais pessoas, geradas através de princípios contratuais
básicos. A diferença surge no vínculo jurídico, ou o pressuposto lógico do negócio
jurídico, que deve ser celebrado de acordo com as normas consumeristas.

A ordem jurídica brasileira e a portuguesa estipulam conceitualmente critérios


aparentemente distintos para a identificação de uma relação de consumo. Entretanto,
podemos constatar a presença dos mesmos fundamentos de proteção do consumidor
e o entendimento doutrinário e jurisprudencial caminhando em sentidos parelhos, no
que tange à ampliação do âmbito de incidência nas normas consumeristas para uma
proteção mais efetiva do consumidor.

A Lei nº 8.078/1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), que


trata das relações de consumo no mercado brasileiro, protege as relações de consumo
para que não haja desigualdade entre as partes.

O CDC não traz expressamente o conceito de relação de consumo, mas refere-se aos
seus elementos subjetivos e objetivos, o que possibilita o delineamento deste tipo de
relação jurídica. Quais sejam:
a) Elementos subjetivos: o consumidor e o fornecedor;

b) Elementos objetivos: o produto ou o serviço.

Então, para que uma relação jurídica, independentemente da espécie contratual


pactuada pelas partes, seja caracterizada como uma relação de consumo é
necessário a presença dos elementos subjetivos e de pelo menos um dos elementos
objetivos mencionados acima.

A falta de qualquer um desses requisitos descaracteriza a relação jurídica de


consumo, afastando-a, portanto, do âmbito de aplicação do Código de Defesa do
Consumidor.

Para a doutrina, relação de consumo é a aquela na qual existe um consumidor, um


fornecedor e um produto/serviço que ligue um ao outro.

Maria A. Zanardo Donato3 conceitua a relação de consumo como “a relação que


o direito do consumidor estabelece entre o consumidor e o fornecedor, conferindo ao
primeiro um poder e ao segundo um vínculo correspondente, tendo como objeto um
produto ou serviço”.

A conceituação de serviço de consumo está intrinsecamente ligada ao conceito de


fornecedor. E, como o CDC incluiu nesta hipótese as pessoas jurídicas de direito
público, é possível afirmar que os serviços públicos também podem ser objeto de
relação de consumo.

Para a norma brasileira, uma relação jurídica só pode ser caracterizada como uma
relação de consumo, se houver a presença dos elementos subjetivos e de pelo menos
um dos elementos objetivos mencionados acima. A falta de qualquer um desses
requisitos descaracteriza a relação jurídica de consumo, afastando-a, portanto, do
âmbito de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

A norma portuguesa, tal qual a brasileira, entende que a proteção do consumidor e a


atribuição de direitos específicos dependem da existência de uma relação de
consumo, seja através da celebração de um contrato ou mediante uma situação
destinada a promover o fornecimento de bens ou serviços ou a transmissão de
direitos entre uma pessoa particular e um profissional.

3
DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1993.
O ordenamento português, para identificar uma relação jurídica de consumo, conceitua
os sujeitos, informa quais os bens podem ser objeto de tal relação, bem como quais os
contratos dão ensejo à sua constituição. Uma vez ausentes, a relação jurídica não
pode ser considerada como de consumo.
CONSUMIDOR SEGUNDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No ordenamento brasileiro, a tutela do consumidor pode ser observada na


Constituição Federal, nos Arts. 5º, inciso XXXII (“O Estado promoverá, na forma da lei,
a defesa do consumidor”), 150, § 5º (esclarecimento aos consumidores acerca dos
impostos que incidam sobre produtos e serviços), 170, inciso V (elenca como
princípios gerais da atividade econômica a defesa do consumidor), 175, inc. II ( direitos
do usuário quando houver prestação de serviços públicos).

A tarefa de se formular o conceito de consumidor torna-se importante na medida em


que o âmbito de aplicação do CDC será por ele delimitado. Como o sujeito consumidor
é um elemento essencial na composição da estrutura da relação jurídica de consumo,
a sua conceituação, e a posterior interpretação de tal conceito deve ser feita de modo
a não restringir nem ampliar demasiadamente a proteção que o CDC tem por fim
conferir ao consumidor.

O caput do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor brasileiro traz:

Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire


ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de


pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas
relações de consumo.

A partir da literalidade do artigo, afirmamos que no âmbito jurídico brasileiro a pessoa


jurídica pode obter a tutela do direito consumerista, desde que seja a destinatária final
do produto ou serviço. Contudo, a referida literalidade não ameniza os problemas
práticos que podem surgir quanto à consideração da pessoa jurídica como
consumidor. A controvérsia paira sobre o alcance do termo “destinatário final”, o qual
se encontra positivado no Código, sendo requisito essencial para configuração da
relação de consumo. Para tal, devemos analisar outras questões.

Ao considerarmos individualmente o conceito de consumidor, dado pela redação do


artigo segundo, perceberemos a existência de três elementos essenciais na sua
definição:

a) Elemento subjetivo: Poderá ser considerado consumidor tanto a pessoa física


quanto a pessoa jurídica, independente da nacionalidade;
b) Elemento objetivo: O consumidor é aquele que adquire ou utiliza um produto ou
serviço;

c) Elemento teleológico: É necessário que a aquisição do produto ou utilização do


serviço seja na qualidade de destinatário final;

Conforme preceitua o Art. 2º do CDC, não é imprescindível que a pessoa tenha


comprado o produto ou pago pelo serviço, pois mesmo aqueles que apenas se
utilizam deles, não os tendo adquirido junto ao fornecedor, também são considerados
consumidores.

Assim, é consumidor tanto aquele que adquire o produto ou serviço para uso próprio
como o que apenas se utiliza deles como destinatário final.

Há duas correntes doutrinárias a respeito da interpretação e extensão conferida à


expressão destinatário final: teoria finalista e teoria maximalista.

Os finalistas adotam uma posição interpretativa com relação ao destinatário final,


baseada fundamentalmente na classificação dos bens. Na teoria finalista o consumo
intermediário fica excluído da proteção do CDC. Ou seja, ao adquirir o bem, o ciclo
econômico é encerrado. O produto não deve retornar para as cadeias de produção e
distribuição. Ou seja, se a aquisição do bem for para complementar um negócio e
sustentar a atividade, o sujeito ativo não pode ser enquadrado no conceito de
consumidor.

Entretanto, tal teoria vem sendo mitigada. Para que pessoas jurídicas pudessem se
enquadrar como consumidor nos termos da teoria finalista, seria necessário que
houvesse a prova de sua vulnerabilidade já que a concepção mais restritiva visa
tutelar o consumidor que não detém os meios de produção.

Ao contrário dos finalistas, os maximalistas entendem que a aplicação do Código de


Defesa do Consumidor deveria ser a mais ampla possível, de forma a incluir como
destinatários finais, pessoas físicas e jurídicas que adquirem produto ou utilizam
serviço, independentemente de eventual destinação econômica ou emprego de tais
recursos em atividades produtivas.

A ideia se dá no sentido de que o CDC não protegeria apenas o consumidor não


profissional, mas regularia todas as relações de compra e venda dentro de toda a
sociedade.
Para a teoria maximalista, consumidor é uma pessoa física ou jurídica que adquire o
produto ou contrata o serviço, independente de razão de seu uso, ou seja, ainda que
seja meio para a produção final de outro bem ou prestação de outro serviço, o
adquirente será consumidor por ser destinatário de fato do bem ou serviço.

Assim, o comerciante ou profissional serão enquadrados como consumidores se


adquirirem ou contratarem para uso não profissional, que não tenha ligação com sua
produção. Quando o produto é retirado de mercado não pode haver qualquer tipo de
lucro sobre ele.

Independente da teoria adotada, é inafastável a ideia de que o bem a ser protegido é a


vulnerabilidade do consumidor.

O CDC não adota exclusivamente o conceito de consumidor trazido no Art. 2º. Ao


analisarmos os demais dispositivos, é possível obter mais três conceitos em que uma
determinada pessoa poderá ser considerada consumidora e gozar da tutela
protecionista oferecida pelo CDC. Os referidos conceitos são mais amplos, tendo em
vista que foram formulados por equiparação. Senão vejamos:

a) No parágrafo único do Art. 2º - a lei diz que também são consumidores “a


coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas
relações de consumo”;
b) No Art. 17 - torna consumidoras todas as vítimas do evento (denominado
também pela doutrina norte-americana de consumidor bystander);
c) No Art. 29 - são consumidoras todas as pessoas, determináveis ou não, as
quais estejam expostas às práticas comerciais previstas no capítulo V do CDC.

A proteção dos interesses dos consumidores por meio da tutela de direitos coletivos,
pode ser observada também no Art. 814.

Portanto, para saber se a pessoa jurídica pode ser classificada como consumidora, é
importante verificar se a compra foi feita para benefício do seu patrimônio, ou seja, se
não foi um insumo para posterior manufatura de outro produto ou se foi destinada à
futura revenda ou serviços, de forma que ela seja destinatária final dos produtos ou
serviços.

O CDC não regula situações nas quais, apesar de se poder identificar um “destinatário
final”, o produto ou serviço é entregue com a finalidade específica de servir de “bem de

4
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo
individualmente, ou a título coletivo.
produção” para outro produto ou serviço e via de regra não está colocado no mercado
de consumo como bem de consumo, mas como de produção; o consumidor comum
não o adquire. Por via de exceção, contudo, haverá caso em que a aquisição do
produto ou serviço típico de produção será feita pelo consumidor, e nessa relação
incidirão as regras das relações de consumo.

Rizzatto Nunes entende que “para ser consumidora, ela (pessoa jurídica) somente
poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe
servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de
consumo”5.

Já para a doutrinadora Claudia Lima Marques “a extensão do campo de aplicação do


CDC aos empresários, em casos de incidência das normas materiais dos capítulos V e
VI, pode ser considerada quase um novo privilégio, determinado por razões de política
legislativa e tendo em vista a realidade brasileira de pouca organização da sociedade
civil e de passividade dos consumidores-finais. Se a jurisprudência atual ainda tende a
considerar este novo “privilégio” como positivo, duas tendências contrárias a este
“maximalismo” se avizinham: na Europa unificada, defende-se a superação da visão
atual do consumidor como mero agente econômico e a imposição de uma visão mais
social do consumidor, consumidor como pessoa, como sujeito de direitos do século
XXI”6

Devemos nos atentar que também é possível a aplicação do CDC nas situações em
que a parte (seja ela pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a
destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade.

A 26ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a


empresa Telefônica Brasil a indenizar uma empresa, que contratou serviços de
internet, por lesão de cunho patrimonial a título de lucros cessantes7.

O Superior Tribunal de Justiça, a princípio, adotou a teoria finalista. Entretanto tem


suavizado e abrangido a aplicação das normas consumeristas quando envolvem
contratos entre empresas, aplicando uma terceira teoria - teoria finalista mitigada- a
fim de permitir que uma empresa, que, em princípio, não seria considerada

5 NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor, pág. 80/81.


6
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, pág. 297.
7 TJSP, Ac. 2020.0000822567, Rel. Des. Vianna Cotrim, 26ª Câmara de Direito Privado, DJE 08/10/2020)
consumidora, possa ser considerada como tal desde que apresente vulnerabilidade
técnica, econômica ou jurídica8.

E com o entendimento do STJ, os tribunais locais vem aplicando a teoria nos seus
julgados:

Tribunal de Justiça do Estado da Bahia PODER JUDICIÁRIO


TERCEIRA TURMA RECURSAL - PROJUDI PADRE
CASIMIRO QUIROGA, LT. RIO DAS PEDRAS, QD 01,
SALVADOR - BA ssa-turmasrecursais@tjba.jus.br - Tel.: 71
3372-7460 PROCESSO Nº 0161188-86.2020.8.05.0001
SUSCITANTE: JUÍZO DA 1ª VSJE DE CAUSAS COMUNS
(MATUTINO) SUSCITADO (A): JUÍZO DA 2ª VSJE DO
CONSUMIDOR (VESPERTINO) EMENTA CONFLITO
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA.
CONTRATAÇÃO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS
POR EMPRESA. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
SUSCITADO PELO JUÍZO DE CAUSAS COMUNS.
VULNERABILIDADE DA EMPRESA AUTORA EM RELAÇÃO

8
CONSUMIDOR. DEFINIÇÃO. ALCANCE. TEORIA FINALISTA. REGRA. MITIGAÇÃO. FINALISMO
APROFUNDADO. CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. VULNERABILIDADE.1. A jurisprudência do STJ
se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra,
ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera
destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física
ou jurídica. 2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim
entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o
custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado
consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou
serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. 3. A jurisprudência do STJ, tomando por
base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma
aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem
denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a
pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora,
por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política
nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima
toda a proteção conferida ao consumidor. 4. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três
modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou
serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus
reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até
mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais
recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o
produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). 5. A despeito da
identificação in abstracto dessas espécies de vulnerabilidade, a casuística poderá apresentar novas
formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo. Numa relação
interempresarial, para além das hipóteses de vulnerabilidade já consagradas pela doutrina e pela
jurisprudência, a relação de dependência de uma das partes frente à outra pode, conforme o caso,
caracterizar uma vulnerabilidade legitimadora da aplicação da Lei nº 8.078/90, mitigando os rigores da
teoria finalista e autorizando a equiparação da pessoa jurídica compradora à condição de consumidora. 6.
Hipótese em que revendedora de veículos reclama indenização por danos materiais derivados de defeito
em suas linhas telefônicas, tornando inócuo o investimento em anúncios publicitários, dada a
impossibilidade de atender ligações de potenciais clientes. A contratação do serviço de telefonia não
caracteriza relação de consumo tutelável pelo CDC, pois o referido serviço compõe a cadeia produtiva da
empresa, sendo essencial à consecução do seu negócio.Também não se verifica nenhuma
vulnerabilidade apta a equipar a empresa à condição de consumidora frente à prestadora do serviço de
telefonia. Ainda assim, mediante aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ, fica
mantida a condenação imposta a título de danos materiais, à luz dos arts. 186 e 927 do CC/02 e tendo em
vista a conclusão das instâncias ordinárias quanto à existência de culpa da fornecedora pelo defeito
apresentado nas linhas telefônicas e a relação direta deste defeito com os prejuízos suportados pela
revendedora de veículos.7. Recurso especial a que se nega provimento.(REsp 1195642/RJ, Rel. Ministra
NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 21/11/2012)
DA EMPRESA DE TRANSPORTES. RELAÇÃO DE
CONSUMO. APLICAÇÃO DA TEORIA FINALISTA
MITIGADA. ENTENDIMENTO DO STJ. PROCEDÊNCIA DO
CONFLITO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR. VOTO Dispensado o
relatório e com fundamentação concisa, nos termos do art. 46
da Lei nº 9.099/95. Com a devida vênia, assiste razão ao
Juízo suscitante do presente conflito negativo de
competência. Alega a empresa Autora que, "no dia 26 de
agosto de 2020, comprou alguns produtos (telas, teclados
etc.) na loja G2W, no valor de R$ 15.099,45 (quinze mil e
noventa e nove reais e quarenta e cinco centavos), NF
961.227, e que contratou a ré (BRASPRESS) para transportá-
los até a sua sede", o que não ocorreu dentro prazo acertado.
Aduziu que a NOTEBOOK BAHIA é uma microempresa (ME)
que utilizou-se dos serviços prestados pela reclamada, que é
uma grande empresa de transportes, de âmbito nacional,
apenas para promover a entrega de mercadorias prontas para
comercialização (não se trata de insumos). Pois bem.
Constata-se dos autos a vulnerabilidade econômica, técnica e
jurídica da parte autora em relação a BRASPRESS. Ademais,
verifica-se que o serviço contratado é considerado essencial.
Como é cediço, o Superior Tribunal de Justiça superou a
discussão acerca do alcance da expressão ¿destinatário
final¿, constante do art. 2º do Código de Defesa do
Consumidor. Assim, restou consolidada a teoria finalista
mitigada ou aprofundada, segundo a qual se admite
conceituar como consumidor até mesmo a pessoa jurídica,
desde que efetivamente demonstrada a sua vulnerabilidade
no caso concreto, consoante se verifica nos seguintes
julgados: Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito
de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação.
Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade.
Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta
inadequada. Característica, quantidade e composição do
produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência.
Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos.
Renovação do compromisso. Vício oculto. - A relação jurídica
qualificada por ser "de consumo" não se caracteriza pela
presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas
pela presença de uma parte vulnerável de um lado
(consumidor), e de um fornecedor, de outro. - Mesmo nas
relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese
concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-
jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC
na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério
finalista para interpretação do conceito de consumidor, a
jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade
de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério
subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a
aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e
consumidores-empresários em que fique evidenciada a
relação de consumo. - São equiparáveis a consumidor todas
as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas
comerciais abusivas. - Não se conhece de matéria levantada
em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide
(inovação recursal). Recurso especial não conhecido. (STJ -
REsp: 476428 SC 2002/0145624-5, Relator: Ministra NANCY
ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/04/2005, T3 - TERCEIRA
TURMA, Data de Publicação: DJ 09.05.2005 p. 390RSTJ vol.
193 p. 336) (grifamos) PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONCESSÃO DE EFEITO
SUSPENSIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO.
AGRAVO. DEFICIENTE FORMAÇÃO DO INSTRUMENTO.
AUSÊNCIA DE PEÇA ESSENCIAL. NÃO CONHECIMENTO.
RELAÇÃO DE CONSUMO. CARACTERIZAÇÃO.
DESTINAÇÃO FINAL FÁTICA E ECONÔMICA DO
PRODUTO OU SERVIÇO. ATIVIDADE EMPRESARIAL.
MITIGAÇÃO DA REGRA. VULNERABILIDADE DA PESSOA
JURÍDICA. PRESUNÇÃO RELATIVA. (...) - A jurisprudência
consolidada pela 2ª Seção deste STJ entende que, a rigor, a
efetiva incidência do CDC a uma relação de consumo está
pautada na existência de destinação final fática e econômica
do produto ou serviço, isto é, exige-se total desvinculação
entre o destino do produto ou serviço consumido e qualquer
atividade produtiva desempenhada pelo utente ou adquirente.
Entretanto, o próprio STJ tem admitido o temperamento desta
regra, com fulcro no art. 4º, I, do CDC, fazendo a lei
consumerista incidir sobre situações em que, apesar do
produto ou serviço ser adquirido no curso do desenvolvimento
de uma atividade empresarial, haja vulnerabilidade de uma
parte frente à outra. - Uma interpretação sistemática e
teleológica do CDC aponta para a existência de uma
vulnerabilidade presumida do consumidor, inclusive pessoas
jurídicas, visto que a imposição de limites à presunção de
vulnerabilidade implicaria restrição excessiva, incompatível
com o próprio espírito de facilitação da defesa do consumidor
e do reconhecimento de sua hipossuficiência, circunstância
que não se coaduna com o princípio constitucional de defesa
do consumidor, previsto nos arts. 5º, XXXII, e 170, V, da CF.
Em suma, prevalece a regra geral de que a caracterização da
condição de consumidor exige destinação final fática e
econômica do bem ou serviço, mas a presunção de
vulnerabilidade do consumidor dá margem à incidência
excepcional do CDC às atividades empresariais, que só serão
privadas da proteção da lei consumerista quando
comprovada, pelo fornecedor, a não vulnerabilidade do
consumidor pessoa jurídica. - Ao encampar a pessoa jurídica
no conceito de consumidor, a intenção do legislador foi
conferir proteção à empresa nas hipóteses em que,
participando de uma relação jurídica na qualidade de
consumidora, sua condição ordinária de fornecedora não lhe
proporcione uma posição de igualdade frente à parte
contrária. Em outras palavras, a pessoa jurídica deve contar
com o mesmo grau de vulnerabilidade que qualquer pessoa
comum se encontraria ao celebrar aquele negócio, de sorte a
manter o desequilíbrio da relação de consumo. A ¿paridade
de armas¿ entre a empresa-fornecedora e a empresa-
consumidora afasta a presunção de fragilidade desta. Tal
consideração se mostra de extrema relevância, pois uma
mesma pessoa jurídica, enquanto consumidora, pode se
mostrar vulnerável em determinadas relações de consumo e
em outras não. Recurso provido. (STJ - RMS: 27512 BA
2008/0157919-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data
de Julgamento: 20/08/2009, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de
Publicação: DJe 23/09/2009) AGRAVO REGIMENTAL .
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSUMIDOR. RELAÇÃO
DE CONSUMO. CARACTERIZAÇÃO. DESTINAÇÃO FINAL
FÁTICA E ECONÔMICA DO PRODUTO OU SERVIÇO.
ATIVIDADE EMPRESARIAL. MITIGAÇÃO DA REGRA.
VULNERABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA. PRESUNÇÃO
RELATIVA. 1. O consumidor intermediário, ou seja, aquele
que adquiriu o produto ou o serviço para utilizá-lo em sua
atividade empresarial, poderá ser beneficiado com a
aplicação do CDC quando demonstrada sua vulnerabilidade
técnica, jurídica ou econômica frente à outra parte. 2. Agravo
regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no Ag:
1316667 RO 2010/0105201-5, Relator: Ministro VASCO
DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO
TJ/RS), Data de Julgamento: 15/02/2011, T3 - TERCEIRA
TURMA, Data de Publicação: DJe 11/03/2011) Por fim, restou
claro que a ação foi ajuizada pela parte Autora, parte
vulnerável e última destinatária dos serviços de transporte
contratado perante a Ré, não restando dúvidas que ao caso
concreto se aplica o Código de Defesa do Consumidor. Em
vista de tais razões, com a devida vênia, voto no sentido de
JULGAR PROCEDENTE O CONFLITO DE COMPETÊNCIA
SUSCITADO, para declarar a competência absoluta do Juízo
da 2ª VSJE DO CONSUMIDOR (VESPERTINO), para o qual
devem ser encaminhados os autos para prosseguimento do
feito. À Secretaria, para os fins devidos. É como voto. Sala
das Sessões, em de de 2021. TÂMARA LIBÓRIO DIAS
TEIXEIRA DE FREITAS SILVA Juíza Relatora/Presidente
ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos acima
indicados. Realizado o julgamento, a Terceira Turma Recursal
do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, decidiu, à
unanimidade, JULGAR PROCEDENTE O CONFLITO DE
COMPETÊNCIA SUSCITADO, para declarar a competência
absoluta do Juízo da 2ª VSJE DO CONSUMIDOR
(VESPERTINO), nos termos do voto da relatora. Sala das
Sessões, em de de 2021. TÂMARA LIBÓRIO DIAS TEIXEIRA
DE FREITAS SILVA Juíza Relatora/Presidente Documento
Assinado Eletronicamente(TJ-BA - RI:
01611888620208050001, Relator: TAMARA LIBORIO DIAS
TEIXEIRA DE FREITAS SILVA, TERCEIRA TURMA
RECURSAL, Data de Publicação: 28/09/2021)

Desta forma, essa vulnerabilidade por parte do profissional ou pessoa jurídica é


excepcional para a sua consideração como consumidora e necessita de prova do
quanto alegado. Caso não se vislumbre a vulnerabilidade da empresa adquirente
perante a fornecedora não será aplicável o CDC. Se tratando de uma relação
simplesmente comercial estabelecida entre as empresas.
CONCEITO DE CONSUMIDOR SEGUNDO A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

O conceito de consumidor não está definido no texto constitucional português. Vindo a


ser definido inicialmente na Lei 29/81, de 22 de Agosto.

Hoje, a conceituação central de consumidor está presente no Art. 2º, nº 1 da


LDC: "Todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos
quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com
carácter profissional uma atividade econômica que vise à obtenção de benefícios".

Da mesma forma, como feito pela norma brasileira, observamos que os critérios
delimitativos são importantes para a construção do conceito de consumidor.

Em uma análise do conceito estabelecido na norma, é possível se extrair quatro


elementos presentes na conceituação:

a) Elemento subjetivo: todo aquele;


b) Elemento objetivo: bens, serviços e direitos;
c) Elemento teleológico: destinados a uso não profissional;
d) Elemento relacional: pessoa que exerça com carácter profissional uma
atividade económica que vise a obtenção de benefícios.

Verifiquemos de forma suscinta os mencionados elementos.

O elemento subjetivo indica o enquadramento da pessoa coletiva como consumidor, já


que é abrangente. Contudo, este elemento colide diretamente com o elemento
teleológico, que expressamente determinada que a destinação não pode ser
profissional.

Assim como o elemento o subjetivo, o elemento objetivo possui uma abrangência


alargada uma vez que compreende relações contratuais e não contratuais9.

Quanto o elemento teleológico, importante ressaltar que ele não é similar ao conceito
destinatário final de forma ampla trazido pela legislação brasileira. Esse elemento está
mais próximo ao entendimento da teoria finalista, que como já mencionado, o
consumo intermediário fica excluído da proteção consumerista.

O elemento relacional dita que a outra parte deve ser uma pessoa que exerça com
caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.

9
CARVALHO, Jorge Morais, https://www.fd.uc.pt/cdc/pdfs/rev_14_completo.pdf, pág. 194;
Logo, não está enquadrado na relação jurídica de consumo, um contrato firmado entre
duas pessoas singulares.

A extensão do conceito de consumidor para a pessoa coletiva também pode ser


observada no Anteprojecto de Código do Consumidor10, especificamente no art. 11º,
que dita “As pessoas colectivas só beneficiam do regime que este diploma reserva ao
consumidor se provarem que não dispõem nem devem dispor de competência
específica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo
com a equidade”

Importante nos atermos ao fato de que a conceituação de consumidor varia de acordo


com lei que regula. A exemplo disto, Carlos Filipe Costa11 cita que o conceito de
consumidor trazido no DL n.º 156/2005, de 15 de Setembro, é divergente do conceito
ditado pela LDC.

A doutrina diverge na aplicabilidade da proteção do consumo a pessoa coletiva.


Fernando Oliveira12 entende que não há razões que justifiquem a proteção destinada
ao consumidor não ser estendida ao médico que adquire para o seu consultório um
computador, dada a sua falta de competência específica para enfrentar ou solucionar
problemas que tais bens podem gerar.

No âmbito jurisprudencial, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014,


de 20/3/2014 não uniformizou o conceito de consumidor13. Por isso, em algumas
decisões judiciais, adotando-se uma noção ampla de consumidor, admite-se que este
possa ser uma pessoa coletiva. Mas a posição predominante é no sentido da
inadmissibilidade de ostentar a pessoa coletiva a situação jurídica de consumidor14

O Tribunal da Relação de Lisboa15, no que tange ao regime de compra e venda de


bens de consumo, entendeu que excecionalmente se pode estender a proteção das
normas de consumo a determinadas entidades que exerçam de forma profissional
uma certa atividade económica, visando obtenção de benefícios. Defende a
possibilidade da consideração da pessoa coletiva como consumidor desde que não se
encontre em pé de igualdade com o outro contraente, não tenha em vista dar um fim

10 Disponível em http://www.oa.pt/upl/%7B074a0e26-88f3-4958-b06b-a07ecb04a19d%7D.pdf
11 COSTA, Carlos Filipe, Quem pode escrever no livro de reclamações?
https://novaconsumerlab.novalaw.unl.pt/quem-pode-escrever-no-livro-de-reclamacoes/
12 OLIVEIRA, Fernando Baptista de (2009), O conceito de consumidor: perspectivas nacional e

comunitária, Coimbra, Almedina, pág. 70.


13 STJ de 3/10/2017. Processo 212/11.1T2AVR-B.P1.S1
14 Ac. do S.T.J. de 16/06/2016, proc. 2188/14, Ac de 05/07/2016, proc. 1129/11, que seguem
interpretação iminentemente literal de consumidor. Em sentido contrário, Ac. do TRP de 11/09/2018, Proc.
4643/2008, Ac do TRG de 30/05/2019, proc. 1012/15.5T8VRL-BD.G1.
15 Ac. Rel. Lisboa de 18/6/2013. Processo 2154/12.4TBALM-A.L1-7
profissional aos bens ou serviços adquiridos, atue fora do âmbito da sua atividade, não
dispondo, assim, de conhecimentos técnicos, pelo facto da utilização do bem adquirido
se encontrar fora do domínio da sua especialidade, de modo a que se mostre em
relação ao bem que adquiriu, numa situação de desconhecimento como um
consumidor.

Esse julgado traz algumas similaridades com o entendimento jurisprudencial brasileiro,


mas diverge principalmente quando restringe o consumo com finalidade não
profissional.

Conclui-se então que a pessoa coletiva poderá ser considerada consumidora nas
seguintes situações:

1. A Lei que regule o instituto em questão não a exclua do seu âmbito de


aplicação;
2. A pessoa coletiva se encontre numa posição de desvantagem relativamente a
outra parte contratual em termos de informação e conhecimento técnico -
situação de desconhecimento equivalente à de um consumidor pessoa
singular;
3. Atue fora do âmbito da sua atividade e não tenha em vista dar um fim
profissional aos bens ou serviços adquiridos pelo facto desses bens ou
serviços se encontrarem fora do domínio da sua especialidade.

A Lei de Defesa do Consumidor excluiu a pessoa coletiva da proteção consumerista,


entretanto sua inclusão ou exclusão de pessoas coletivas na categoria de consumidor
dependerá da Lei que regule determinado instituto em concreto.
CONCLUSÃO

Depreende-se do presente estudo que o conceito de consumidor para a legislação


brasileira e para a portuguesa passou a se moldar conforme a realidade das relações
jurídicas de consumo.

Nenhuma das duas normas definiu estritamente os limites para o conceito de


consumidor. E por isso, a doutrina e a jurisprudência dos dois países passaram a
transformar este conceito acompanhando a evolução das relações sociais.

Não há dúvidas que a denominada “falta de competência específica” está


estreitamente relacionada com a fraqueza perante a oura parte. Um profissional que
adquire o bem, ante a falta de competência, se mostra em concreto, tão leigo como
qualquer consumidor no conceito legislativo português, ou seja, a pessoa singular.

Comparada à legislação portuguesa, entendemos que o ordenamento jurídico


brasileiro é mais amplo na defesa dos interesses do consumidor, mesmo com a
existência de condições, quando estende o seu conceito de consumidor para as
pessoas jurídicas/pessoas coletivas.

Concluímos que o conceito de consumidor estrito ditado pela legislação portuguesa


poderia ter sido ampliado ante a vulnerabilidade que a parte contratante possui,
independentemente de ser pessoa singular ou coletiva, possui perante o fornecedor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Anteprojeto do Código do Consumidor, 2006. Disponível em


https://www.fd.uc.pt/cdc/pdfs/rev_13_completo.pdf

CARVALHO, Jorge Morais, https://www.fd.uc.pt/cdc/pdfs/rev_14_completo.pdf .

COSTA, Carlos Filipe, Quem pode escrever no livro de reclamações?


https://novaconsumerlab.novalaw.unl.pt/quem-pode-escrever-no-livro-de-reclamacoes/

Lei n.º 24/96, de 31 de Julho. Estabelece o regime legal aplicável à defesa dos
consumidores. Disponível em
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=726&tabela=leis . Acesso
em 22/11/2022.

LEI nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e


dá outras providências. Disponível em
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm . Acesso em 28/11/2002.

OLIVEIRA, Fernando Baptista de. O conceito de consumidor: perspectivas nacional e


comunitária, Coimbra, Almedina, 2009.

OLIVEIRA, Júlio Moraes. Direito do Consumidor Contemporâneo. 1ª Edição,


D’Plácido, 2019.

PAIVA, Clarissa Teixeira. O que caracteriza uma relação de consumo. Revista Jus
Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4401, 20 jul. 2015. Disponível
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Professores Doutores António Menezes Cordeiro, Pedro Pais de Vasconcelos e Paula


Costa e Silva, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascenção,
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RIZATTO, Nunes. Curso de Direito do Consumidor. 12. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018.

SALES, Fernando Augusto de Vita Borges de. Manual de Direito do Consumidor.


Editora Mizuno, 2019.

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