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Bobo da Corte como dimensão política na arte


Cecilia Mori1

A figura do Bobo da Corte, abordado nesse da situação. Ele sabe como escapar das armadilhas
texto como dimensão política na arte (em especial da cultura. (HYDE, 1998, p. 204)
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contemporânea), parte da noção do trickster , por Por fim, para o escritor, o diabo e o trickster não
ser uma alegoria de ideias fugidias e ambíguas que são a mesma coisa apesar de terem sido confun-
promove o atravessamento e o questionamento de didos em vários momentos (como no personagem
conceitos, formas e regras. O trickster, analisado da serpente no livro de Gêneses). Os que os con-
pelo escritor e pesquisador Lewis Hyde (1945-) em fundem assim o fazem porque falham em perceber
Tricksters Makes This World (1998), é alguém cujas a ambivalência do trickster, pois, segundo o autor,
mentiras não apenas contradizem a verdade mas diabo é o agente do mal mas o trickster é amoral,
que ainda faz parte do jogo cujas regras o prece- não imoral. Ele representa a categoria paradoxal da
deram; ele ou ela simplesmente inverte o caso ofe- amoralidade sagrada na qual os julgamentos de vício
recendo o não-A no lugar do A. O problema seria, ou virtude não se aplicam.
para o trickster, inventar uma mentira que cancelasse Quando distinguimos o certo do errado, o sagra-
a oposição para, assim, manter a possibilidade de do do profano, o homem da mulher, a vida da morte,
novos mundos. a luz da escuridão, a verdade da mentira, estamos
O trickster é identificado por Lewis Hyde como fingindo que o trickster não existe. Distinguimos as
uma figura-chave nos contos e nos mitos, bem como coisas, as pessoas, as culturas numa falsa tentativa
na arte. Com a utilização de um grupo de mitos an- de apreensão dos objetos, dos seres, do mundo. E,
tigos, Hyde analisa e valoriza um tipo de inteligência assim, fingimos que as coisas, pessoas e culturas
da ruptura (presente nos tricksters) que, segundo não podem ser ambivalentes (ou até contraditórias)
o autor, é fundamental em toda cultura que deseja até o momento em que o trickster entre em cena
permanecer viva, flexível e aberta a transformações. e elimine toda e qualquer possibilidade de distin-
Assim, a partir de figuras como o Coyote (dos mitos ção. Uma vez não obliterado da cena, o trickster traz
indígenas norte-americanos), Hermes, Mercúrio e para a superfície o que estava escondido, integra o
outros, Hyde identifica uma das principais caracte- obscuro à luz, cria sfumatos. Ele instaura o confuso
rísticas do trickster que é o estar na estrada. Como espaço do entre, ele é “O deus do limite em todas
senhores do espaço intermediário, do entre, os trick- as suas formas” (Idem, p.7).
sters não têm uma habitação própria. A arte, por poder ser pensada o como campo do
Com isso, os Hinos Homéricos são vistos, por artifício e das incertezas, não acredita que a razão
Hyde, como a história de como um forasteiro penetra e sua estrutura lógica de pensamento sejam a única
em um grupo, ou de como pertencentes marginaliza- forma de experimentação possível da realidade. En-
dos alteram a hierarquia que os define. Assim, como tão, a arte pode – e deve – operar de acordo com
um mestre trapaceiro, Hermes tem um método se- um princípio transformador, como o da desterritoria-
gundo o qual um estrangeiro ou um subalterno pode lização e da reterritorialização de Deleuze e Guattari,
entrar num jogo, mudar suas regras e tirar proveito que se faz valer do devir como percursos caluniosos,
o devir da experimentação estética, inserindo, assim,

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a figura do trickster na arte. No entanto, a dimensão do conhecimento e instituições da vida social. Como
política e a do humor não são amplamente aborda- conselheiro das cortes medievais (prioritariamente
das como finalidade, objetivo ou método do trickster. inglesas) e das monarquias absolutistas modernas,
Para tanto, se faz necessário relacioná-lo com outra tem um diferencial em relação aos demais conse-
alegoria, a do personagem histórico e dramático do lheiros do rei: seu método. Por usar de brincadeiras,
Bobo da Corte. piadas e alegorias, aborda assuntos das mais deli-
Segundo a pesquisadora literária e escritora cadas ordens no reino.
Enid Welsford (1892-1981) em The Fool: his social Ele ri de tudo e parece não se preocupar com
and literary history (1935), sempre existiu alguém nada mas fala por metáforas promovendo, com isso,
cuja faculdade particular é de levar a vida de forma relações reflexivas sobre os assuntos quaisquer. De
fácil e que se esquiva das situações embaraçosas, forma sagaz, ele explora sua própria fraqueza ao
deixando perplexas as mentes mais responsáveis. invés de ser explorado por isso. Ao reconhecer, com
Nas cortes européias, esse alguém era comumente sagacidade, abertamente o fracasso em obter uma
o Bobo da Corte. condição de dignidade humana padrão, o Bobo da
Durante o reino de Elizabeth I, a roupa do Bobo Corte se destaca por sua qualidade escorregadia.
era feita a partir de retalhos para que não fosse pos- Dessa forma, seu fracasso é sua maior força.
sível encaixá-lo em nenhuma classe social permitin- Seu maior poder está no fato de não, aparente-
do-lhe, assim, livre trânsito por elas. Uma vez que mente, oferecer nenhum perigo, assim como a arte.
está sempre com os trajes inadequados, o Bobo é Dessa forma, o Bobo da corte é colocado na arte
taxado como estrangeiro e isto é o seu passe dentro para ajudar na reflexão sobre seus modos de ope-
e fora da Corte. A composição de elementos díspa- ração, não se estabelecendo, dessa forma, como
res está tão presente na figura do Bobo da Corte categoria histórica nem estilística. O Bobo, que está
que sua vestimenta era específica e cabia apenas sempre em trânsito, nos ajuda a pensar o proces-
a ele. Se fantasiando com roupas espalhafatosas e so de construção da arte que, como o percurso do
guizos, se faz constantemente de ridículo para toda a Bobo coloca o pensar sobre o que o tempo não
Corte e, por isso, se faz fundamental nos momentos permitiu a consolidação, sobre o que escapa. Essa
de crise política. cortina de fumaça, que se faz visível mas incontro-
Sendo um personagem dramático, “o Bobo nor- lável, é o próprio método errante do Bobo da Corte
malmente se afasta nas cenas principais da peça que faz da arte o terreno de construção de utopias.
buscando não concentrar mas dissolver eventos e O Bobo da Corte, por atuar por diferentes mé-
agir como um intermediário entre o palco e o audi- todos, se configura com diferentes temperamentos:
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tório” (Welsford, 1935). É o personagem que não é o Ilusionista, o Pateta, o Vigarista e o Forasteiro .
protagonista nem mero figurante. Como personagem Esses temperamentos formam a complexidade do
histórico, suas ações não são restritas ao teatro mas Bobo, pois compartilham a qualidade escorregadia
transforma o cotidiano em comédia e em cena. (e indefinível) do trickster. Os bobos são complemen-
A qualidade anfíbia do Bobo da Corte, que se tares e podem ser vários ao mesmo tempo. Assim,
sente em casa no mundo da realidade e no mundo essa tipologia dos Bobos deve ser pensada como
da imaginação, é usada para pensar a prática do uma reflexão sobre modos de operar da arte e dos
artista e suas formas de inserção em outras áreas

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artistas. Como uma coleção e não como categorias lugar de outro alguém, parte do seu golpe é passar
estanques para a História da Arte. despercebido. O elemento surpresa é grande parte
O Bobo Ilusionista, é aquele que distorce ima- de seu sucesso. Tanto é que deveríamos considerar
gens, encripta informações e narrativas, disfarça co- seu processo também como sua obra. O Vigarista
elhos, retira moedas de nossas orelhas, serra mulhe- evita o palco do Ilusionista, ele anda pelas sombras,
res ao meio e desaparece diante dos nossos olhos. por isso cria labirintos nos desertos como forma de
O Ilusionista é aquele que utiliza a ciência e outras aprisionamento. A artista Raquel Nava constrói suas
formas de conhecimento da natureza para criar ilu- armadilhas não só em seu ateliê mas também nos
são e trompe l’oeil. É aquele como o “Toque” (2002), laboratórios de taxidermia da Universidade de Bra-
da artista Janine Antoni, que promove o encontro sília. Entre o real e o ficcional, se questiona a arte
do céu com a terra, que torna o horizonte papável. e a ciência e a vida e a morte. Entre os presuntos,
Como um Bobo Ilusionista, “Toque” nos mostra que os plásticos (tanto da forma quanto da composição
ficar sobre a linha é pertencer aos dois mundos mas química de seus materiais) e os pigmentos, as foto-
é também estar em desequilíbrio. Na obra, os pés grafias de Nava se transformam em pinturas. As me-
de Janine Antoni tocam, num passo de mágica, si- tonímias e as ironias presentes instauram um grande
multaneamente os dois espaços que nunca serão jogo de fantasias do real que nos capturam com sua
um. O Bobo Ilusionista é aquele que golpeia nosso beleza e seu cruel humor.
olhar para vermos o que, de outra forma, não po- Seguindo com humor porém de forma mais ex-
deria ser visto. plícita, o Bobo Pateta é aquele que ri da própria
miséria. O Pateta constrói desconstruindo. O Pateta
cria obras tão instáveis, como nos gravetos do artista
Andy Goldsworthy por exemplo, que seu fracasso
coincide com sua conclusão. É o idiota que aprovei-
ta sua habilidade de entreter e fazer rir para inserir
ideias que não haviam sido cogitadas, como o artista
Paul McCarthy costuma fazer nas suas articulações
entre os mundos fantásticos das citações de Walt
Disney, as imagens icônicas da História da Arte
(como as latas de sopas Campbell’s de Andy Wa-
rhol) e a sociedade estadunidense. Mas suas formas
de inserção e de contato com o público são precisas
e passageiras como as performances Futuristas. O
Pateta sacrifica seu corpo e sua falsa integridade
Figura 1. Janine Antoni, “Toque”, 2002. para atingir seu objetivo.
Por fim, o Bobo da Corte Forasteiro é aquele
O Bobo Vigarista é aquele que, diferentemente que problematiza as linhas. Quando Hyde diz que o
do Ilusionista, não anuncia sua armação. Ele passa trickster habita a estrada, ele não quer dizer apenas
tanto mais tempo desenvolvendo sua trapa que en- que o trickster é um constante viajante mas que,
ganando alguém. Como um vigarista, que ocupa o na condição de viajante ele pertence ao contexto

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de estar fora de contexto. Pois estar em um local é espaços entre as linhas. Sua morada é a cortina da
estar situado. Por isso, dos tipos de Bobo da Corte fumaça que limita sem delimitar.
aqui elencados para pensar a construção artística, o Assim, por permitir métodos errantes e o humor
trickster se aproximaria mais do Bobo Forasteiro por como possibilidade de reflexão sobre a realidade, o
se ocupar dos espaços do entre e por se completar Bobo da Corte nos permite pensar em utopias cons-
no atravessamento deles. Para ele, estar na estrada trutivas na/pela arte não só como táticas subversi-
é estar entre situações e, portanto, não orientado vas na arte como potenciais transformadores para a
nos caminhos que as situações nos orientam. Como vida. Pois, o estar na estrada é marcar presença no
as intervenções do artista britânico Richard Long lugar nenhum. E como espírito da estrada, o Bobo
(1945-) que parecem marcar locais vazios e indicar da Corte atravessa as barreiras. Se todo conjunto
passagens mas que não levam a lugar algum a não tem sua linha para definir o que está dentro e o que
ser à própria passagem. está fora, o Bobo da Corte está sempre sobre a fron-
teira abrindo passagens, garantindo o trânsito. Ele
é o Bobo do mundo de dentro no mundo de fora e
do mundo de fora no mundo de dentro. Da mesma
forma que ele rompe barreiras, ele as cria. Ele é a
potência criativa das artes e o que possibilita sua
percepção como dimensão política na arte.

Referências

CLAIR, Jean. The Great Parade: portrait of the artist


as clown. Ottawa: National Gallery of Canada,
2004.
Figura 2. Richard Long, Uma linha nos Hymalayas, 1975.
CRUZ, Cecilia Mori. Cabine da Mentira: bobeiras em
Com o pequeno deslocamento dos materiais trânsito para a arte contemporânea. 2015. 291f.
encontrados no local, Richard Long acentua sua lo- Tese (Doutorado em Arte Contemporânea) -
calização inexistente. Nas linhas de Long, o caminho Instituto de Artes, Universidade de Brasília.
é a própria armadilha que evidencia a inutilidade de
seu esforço, a não ser para exclusivas e restritas ex- DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs:
perimentações estéticas. Por fim, o Bobo Forasteiro capitalismo e esquizofrenia. Volumes I e III. Rio
é aquele temperamento do bobo que entra em cena de Janeiro: Ed. 34, 1996.
para desterritorializar todos os espaços e, enquanto
passa por eles, se sente em casa. Dessa forma, os GOMBRICH, Ernst Hans. L’Art et l’illusion. Paris:
configura, momentaneamente, como novos territórios Gallimard, 1971.
que novamente se desterritorializam com a escapada
do Forasteiro. O movimento é a sua inércia. As linhas
delimitantes são sua morada. São sua morada os

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Notas
HIGGIE, Jennifer. The Artist’s Joke. Cambridge,
1 Profa. Dra. | Departamento de Artes Visuais -
Massachusetts/London: Whitechapel, 2007. UnB
(Documents of Contemporary Art)
2 O dicionário bilingue Português-Inglês Oxford
traduz a palavra trickster como trapaceiro. No
HYDE, Lewis. Trickster makes this world: mischief, entanto, o personagem que Lewis Hyde analisa
myth and art. New York: Farrar, Straus and em diversos mitos e obras literárias é mais
Giroux, 1998. complexo que um trapaceiro por ter a malícia
de um malandro, a sagacidade de um ilusionista
dentre outras características. Por esse motivo,
JOUANNAIS, Jean-Yves, L’Idiotie: art, vie, politique
a palavra permanece na língua inglesa evitando
– méthode, Paris: Beuax Arts Maganize/Livres,
possíveis traições nas traduções.
2003.
3 Para maior aprofundamento sobre esses
temperamentos do Bobo da Corte, vide minha
ROSSET, Clément. Le Réel: traité de l’idiotie. Paris: tese de doutorado “Cabine da Mentira: bobeiras
Éditions de Minuit, 2011. em trânsito para a arte contemporânea”.

ROVIRA, Daniel. Outlandish, Outsiders and Carnaval


Heroes: a journey through Shakespeare’s world
of fools. (ebook)

SHAKESPEARE, William. As You Like It. 2004 (Folger


Shakespeare Library) (ebook)

WELSFORD, Enid. The Fool: his social and literary


history. New York: Farrar & Rinehart Inc., 1935.

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