Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vol. 3 - Pensamento & Realidade - Entre o Alvorecer Antigo e o Crepúsculo Moderno
Vol. 3 - Pensamento & Realidade - Entre o Alvorecer Antigo e o Crepúsculo Moderno
Comitê Científico
Organizadores
André Correia
Ray Renan
Wesley Rennyer
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia/imagem de Capa: Ruins at Sunset, Hermann David Salomon Corrodi
Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3 [recurso eletrônico] / André Correia;
Ray Renan; Wesley Rennyer (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
328 p.
ISBN - 978-65-5917-403-4
DOI - 10.22350/9786559174034
CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário
Apresentação 9
Ray Renan
Wesley Rennyer
1 13
Pensando o princípio no fundamento / The Principle in the Foundation
Emmanuel Carneiro Leão
2 29
Parmênides, o Pensamento e o Destino da Filosofia
Ray Renan Silva Santos
3 76
“Sensação e saber não são o mesmo” (Platão, Teeteto 186e)
José Trindade Santos
4 102
Διάνοια: essência e égide do homem
Wesley Rennyer M. R. Porto
5 137
A especificidade da filosofia ocidental europeia diante da filosofia oriental ou
africana
Marco Aurélio Werle
6 157
Hegel e Heráclito: a Justiça do Uno
André Felipe Gonçalves Correia
7 212
Caráter e destino: a psicologia moral de Aristóteles
Francisco Moraes
8 236
Furores Antigos: sobre o conceito de furor na Grécia, entre delírio divino e demência
Monalisa Carrilho
9 262
Pensamentos ao vento
Felipe Ramos Gall
10 285
Hegel on Imitation, Art and Natural Form: Ancient and Modern Questions
Allen Speight
11 304
O marxismo literário de Benjamin: entre a dialética e a imagem
Ulisses Razzante Vaccari
Apresentação
Ray Renan
Wesley Rennyer
1
PLATO. Theaetetus-Sophist. Translated by H. N. Fowler. London: Harvard University Press, 1921, pp. 378-80.
Ray Renan; Wesley Rennyer | 11
2
HEIDEGGER, Martin. Gelassenheit. Stuttgart: Neske, 1982, p. 45.
12 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
1 Doutor pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Professor titular emérito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor titular da Universidade Gama Filho.
14 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Πασῶν μὲν οὖν κοινὸν τῶν ἀρχῶν τὸ πρῶτον εἶναι ὅθεν ἢ ἔστιν ἢ
γίγνεται ἢ γιγνώσκεται.3
“It is common, then, to all principles to be the first thing from which
something either is or comes into being or becomes known.”
In this sentence, principle (ἀρχή) stands for reality itself. This means
that it encompasses essence, existence, and the truth of everything that is
and is not. Therefore, it seems reasonable to assume that there must be
something providing cohesion to all modes of being and all ways in which
they relate to each other. Paying close attention to the sentence, it is not
difficult to grasp that the κοινόν (to which the πρῶτον ὅθεν refers) – “the
first thing from which” something real takes place – means: from its early
realization to what it ultimately is as it is.
In sum, Aristotle’s major contribution in the above-mentioned
passage concerns what provides cohesion to all modes of being, all ways
of becoming, and all means of knowing. This can lead to questions such
as: what grants the ontological community its communion of principles,
1
PhD at the Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Emeritus Professor at the Federal University of Rio de Janeiro and
Full Professor at Gama Filho University.
2
Associate Professor of Ancient Philosophy at the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN).
3
Aristotle, Metaphysics V 1013a17-19.
22 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
light of other truths to be seen and perceived. As the logic is the proper art
of illumination, functions of truth illuminate in as much as they are
confronted and in so far as they are confronted, they are illuminated.
The principle of sufficient reason claims to be the luminous truth that
reveals the light of reason in all things. Since “nothing is without a reason”,
everything necessarily has its reason to be. Nonetheless, this is rather a
dictatorship of reason. What kind of dictatorship is this? This dictatorship
of reason consists of exclusion and exclusivity. It builds a world based
upon a system of accountability. Explanations must be evident, sufficient,
coherent, and consistent – only then they can be considered true and real.
Everything that is and is not, everything that is done or is not done, relies
upon reason. In addition, it must be accountable and have an explanation.
And they cannot be just contending and arguing. They must include
operating and transforming the world into devices and tools, artifacts and
products, commodities of satisfaction and numbness. “It is under siege;
everything is under siege!”. This is the principle of sufficient reason. It
does not simply state the regency and domain of reason, but places reason
as the rule of everything.
Therefore, to rationalize is to give dimension, in the sense of reducing
everything to a single dimension – the dimension of reason. In short, this
is what happens with the globalization of the planet. It imposes the part
upon the whole, turning partiality into totality. Globalization is not an
actual reunion, though the abolition of differences. It is the fragmentation
of a generalized uniformity. For this reason, it is sterile, however powerful.
That is why Leibniz called the principle of sufficient reason principium
grande et nobilissimum (“a great and the noblest of principles”).
By seeking a rational foundation for everything, universal
rationalization ended up transferring the ultimate foundation to reason of
and in the subject of history. With this transferring, the world underwent
Emmanuel Carneiro Leão | 25
And then, the rays of the sun flood his eyes with light!
God, if You exist for real, show me a miracle!
And then, a child is born in the middle of the night!
God, if You do exist, bend the haughtiness of human pride!
And then, love kindles a fire in human’s heart, which, ever-growing,
fills his whole soul!
God, if You in truth exist, put an end to the rottenness of the world!
And then, the fleur-de-lis rises from the swamp!
God, if You in fact exist, take away the pain from the human heart!
And then, in the depths of all suffering the primal cry of life is heard!
God, if You concretely exist, erase the violence of history, and send
away hunger and diseases from the world!
And then, hope in the other of everyone nourishes with faith the scent
exhaled from the very bowels of Evil!
God, if You exist, truly release human from death!
And then, from the bosom of death itself the immortality of life is
born!
2
Introdução
1
Professor Substituto de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutor em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). E-mail: ray-renan@hotmail.com
30 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
2
Metph., Θ.9, 1051a-31-33.
3
Todos os versos de Parmênides citados ao longo deste texto foram traduzidos por mim e revisados pelo Prof. Me.
Diógenes Marques Frazão de Souza do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFPB, a quem agradeço
imensamente por isso. Para as traduções, sigo a edição da obra Die Fragmente der Vorsokratiker, estabelecida por
Hermann Diels e Walther Kranz (1951).
Ray Renan Silva Santos | 31
Ele é, então, conduzido para dentro (ἐς) desse caminho, isto é, “do mui
famoso caminho da divindade” (ὁδὸν πολύφηµον δαίµονος). Justamente
esse caminho, dádiva da esfera celeste e divina, é o que vem a tornar o
homem um mortal sapiente (εἰδώς φώς), de modo tal que aí já se
evidenciam três elementos fundamentais: o divino, o mortal e o caminho
a se seguir. Para trilhar tal caminho, que é um caminho divino, o homem
precisa corresponder a uma convocação, pois não o fará de maneira
totalmente passiva; antes, a partir de um ânimo, de um ímpeto próprio, o
qual, de outra parte, não provém de seus desígnios, mas revela o elemento
divino como aquilo que o convoca a percorrer um caminho não humano.
Por conseguinte, nem o caminho em questão corresponde aos caminhos
trilhados habitualmente pela maioria dos mortais, nem o homem que se
volta para esse caminho vive tal como esses mortais. Trata-se de um
encontro com o divino e de um desencontro com os homens, por meio do
qual se dá um resgate da essência humana que há não apenas em um
homem individual, mas que corresponde a todos os homens. O caminho
que torna o homem sapiente é, portanto, o caminho que traz à luz a
essência do homem. E justamente essa essência já é o próprio caminho do
qual o homem constantemente se desvia, por não lhe ser acessível como
os demais caminhos.
Os três elementos fundamentais de que falamos – o divino, o mortal
e o caminho a se seguir – nos possibilitam pensar, mediante a legitimidade
do primeiro elemento em relação aos outros dois, que o que está em
questão é o caminho e o homem, de modo a antecipar o ἔπος que mais
adiante será proferido pela deusa receptora do jovem:
4
Esta opção de tradução de B1.29, onde “verdade bem circular” corresponde a “Ἀληθείης εὐκυκλέος”, deverá ser lida
em conformidade com B5, em que o comum (ξυνός) é referido como o elemento de onde se inicia e para o qual se
retorna; e, ainda, em consonância com B8.43, em que o ser é identificado com uma esfera “bem circular” (εὐκύκλου).
Em questão está o caminho da verdade, o qual, sendo circular, é tanto o que acena já no primeiro ânimo (θυμός – B1)
de condução do jovem para o caminho, quanto o que encaminha à investigação em seu percurso de persuasão-
obediência (δίζησις; πειθώ – B2), bem como o que reencaminha para o elemento comum (ξυνός) a partir do qual se
partiu, no qual se permaneceu e para o qual se deve retornar: Ἀλήθεια. Muito se discutiu, no decorrer da história,
acerca do verso em questão (B1.29), pois a tradição nos fornece pelo menos três opções de adjetivo para “Ἀληθείης”:
εὐφεγγέος, εὐπειθέος e εὐκυκλέος, sendo a primeira mencionada por Proclo (In Tim. I.345.15-16), a segunda por Sexto
Empírico (AM, VII.111) e a terceira por Simplício (De Caelo, 557.26). A despeito das divergências quanto à escolha dos
adjetivos, a interpretação que aqui estabelecemos – segundo a qual a verdade se manifesta de maneira circular,
estando tanto no início, no meio como no fim do percurso de investigação – não precisa estar necessariamente
vinculada ao uso do adjetivo “εὐκυκλέος”. Supondo, portanto, que o adjetivo em discussão não estava no texto original
de Parmênides, isto não excluiria o fato de que a verdade, porque princípio condutor de todo pensar, faz-se presente
em toda trilha de modo essencialmente circular, visto ser aquilo para o que o pensamento se direciona, em que ele
permanece e para o que ele retorna em sua dinâmica de realização. De qualquer forma, para uma análise apurada
dos problemas concernentes à tradução de B1.29, cf. FRANK, B. B. Bene rotunda et globosa ueritas: Epítetos de la
verdad en Parménides DK28 B1.29. Brasília: Archai 26, e02602, 2019, pp. 1-25.
Ray Renan Silva Santos | 33
5
Cf. SANTORO, Fernando. O Poema de Parmênides. Da Natureza. Edição do texto grego e tradução de Fernando
Santoro. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2009, pp. 90-92.
6
Isto se deixa ver pelo uso das partículas ἠμὲν… ἠδὲ: por um lado... por outro; tanto... quanto...: ἠµέν Ἀληθείης
εὐκυκλέος ἀτρεµὲς ἦτορ // ἠδὲ βροτῶν δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής (B 1.29-30).
34 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
7
Por isto dirá Aristóteles, referindo-se à percepção sensível, que ela “é comum a todos e, por ser fácil, não é sabedoria”
(Metph., A. 2, 982a10). Quer-se, com isso, chamar a atenção para o caráter dificultoso, penoso, ou ainda, específico e
exclusivo do pensamento.
8
Para uma melhor compreensão dessas divindades e do contexto em que elas e outras aparecem no Poema de
Parmênides, cf. SANTORO, F. Os Nomes dos Deuses. In: Parmênides II. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1, nº 2, 2007.
36 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
9
Trata-se da supremacia do pensamento e do saber em relação ao seu contrário, por isso dirá Platão no Fédon 97d:
“Só o que importa ao homem considerar, tanto em relação a si mesmo como a tudo o mais, é o modo melhor e mais
perfeito. Desse jeito, ficaria necessariamente conhecendo o pior, por serem ambos objeto do mesmo conhecimento”;
e também n’A República 409d-e: “Efectivamente, o vício não poderá jamais conhecer-se a si e à virtude, ao passo que
com o tempo, a virtude, se as qualidades naturais forem aperfeiçoadas pela educação, atingirá o conhecimento
científico de si mesma e do vício. Tal será o sábio, em meu entender, mas não o perverso”.
10
Por isso nos dirá Empédocles em seu fr. B24: “De cume a cume, não caminhar apenas por um único caminho do
ensinamento” (DIELS, Hermann. Empedokles. In: Die Fragmente der Vorsokratiker. Griechisch und Deutsch. Berlin:
Weidmannsche Buchhandlung, 1960, p. 322); ou ainda, Demócrito, referindo-se ao sábio (D111): “Para o homem
sábio todas as terras são trilháveis; pois a pátria de uma alma boa é o universo em seu todo” (TAYLOR, C. C. W. The
Atomists: Leucippus and Demokritus. Fragments. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 36).
Ray Renan Silva Santos | 37
11
O pensamento, para dar-se conta de que percorre a trilha verdadeira, precisa pensar a si mesmo como tal. Constitui,
pois, o caminho da verdade e o mortal que por este caminho trilha o saber essencial que sabe de si, precisamente
porque necessita de “tudo aprender” (B1.28): a trilha verdadeira pela qual percorre e a falsa trilha. Nesta direção,
convém verificar as seguintes palavras de Hegel em sua Ciência da Lógica: “Os Eleatas, em primeiro lugar,
especialmente Parmênides, anunciaram o pensamento simples do ser puro como o Absoluto e como a verdade única,
e, nos fragmentos que dele restaram, ele anunciou, com o entusiasmo do pensar que pela primeira vez apreende-se
a si em sua abstração absoluta: apenas o ser é, e o nada não é de modo algum” [Den einfachen Gedanken des reinen
Seins haben die Eleaten zuerst, vorzüglich Parmenides als das Absolute und als einzige Wahrheit, und, in den
übergebliebenen Fragmenten von ihm, mit der reinen Begeisterung des Denkens, das zum ersten Male sich in seiner
absoluten Abstraktion erfaßt, ausgesprochen: nur das Sein ist, und das Nichts ist gar nicht] (HEGEL, G. W. F.
Wissenschaft der Logik. Felix Meiner Verlag: Hamburg, 2008, pp. 105-06).
38 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Em questão está agora o caminho “que é”, o qual deve ser percorrido
com persuasão e obediência (πειθώ)15, pois ele persegue a verdade
(Ἀλήθεια). A persuasão deve ser compreendida mediante a escuta ao μῦθος
12
No verso a seguir isto fica claro se tomarmos por referência o fato de que a deusa enuncia os caminhos com vistas
à “investigação” (δίζησις), o que denota a dimensão dos caminhos voltada para o exercício do pensamento. Um
elemento assaz pertinente ao qual devemos nos ater é quanto à própria especificidade inovadora da “mitologia” do
Poema: trata-se de uma escrita mito-poética que é ao mesmo tempo filosófica, conforme nos chama a atenção José
Trindade Santos: “Na tradição poética, Parmênides começa por recorrer aos deuses para garantir a autenticidade da
sua mensagem. Todavia, inova, em relação aos poetas, por apresentar um argumento reflexivo, autenticamente
filosófico, que explora uma evidência, característica de todas as mensagens que, a um tempo, instituem (dizem que
há) e constituem (dizendo como é) o saber” (SANTOS, José Trindade. Interpretação do Poema de Parmênides. In:
Parmênides. Da Natureza. Tradução, notas e comentários de José Trindade Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2013,
p. 59).
13
Embora o λόγος não apareça nomeadamente nesses primeiros fragmentos de Parmênides, tendo em vista a sua
aparição noutros fragmentos (B7.5, B8.50), fica claro que não podemos pensá-lo de modo isolado no Poema, o que
nos leva a concebê-lo a partir de uma unidade que perpassa o seu todo.
14
Semelhantemente ao fr. B1 de Heráclito, o qual nomeia aquilo a que se deve dar ouvidos de “λόγος”, ao passo que
os versos de B2 de Parmênides não nomeiam, embora devamos compreender que o λόγος também está em questão
(conforme será constatado mais adiante: B7.5, B8.50).
15
Observe-se o sentido em questão de “obediência” e sua relação com a dimensão divina, já que Πειθώ é a deusa da
Persuasão no mundo grego. O verbo “πείθομαι” significa “obedecer”, “ser persuadido”.
40 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
16
Note-se que o texto grego não inclui um “predicado” nos supostos “sujeitos” de “é” e de “não é”: os únicos caminhos
de investigação que há para pensar são, respectivamente, ἔστιν (é) e οὐκ ἔστιν (não é). Essa ausência de predicado
levou alguns intérpretes a deduzir que “é” e “não é” referem-se a um sentido existencial, isto é, “o que existe” e “o
que não existe”. Todavia, como ressalta José Trindade Santos, “não só os problemas que esta opção levanta são
Ray Renan Silva Santos | 41
que a deusa vem a enunciar, indica o caminho que o jovem deve trilhar e
acena para as vias de investigação que o levam a pensar17. É na, a partir da
e pela verdade que todo o Poema precisa ser compreendido. É sob essa
ótica que devemos pensar o que há para ser pensado: os únicos caminhos
de investigação – “um, visto que é, e que não é não-ser” [...] “o outro, visto
imensos, como a identificação de ‘o que é’ (ou ‘o ser’) com a realidade, a par da correlativa identificação de ‘o que
não é’ com ‘nada’ (ou algo inexistente), é inconsistente com a argumentação desenvolvida em B2-B3, B6- B7, B8.1-
49” (SANTOS, José Trindade. A leitura de “é/não é” a partir de Parmênides, B2. Dissertatio (UFPel), v. 36, pp. 11-31,
2012, p. 17). Note-se, porém, que o verbo ser, no grego, possui pelo menos três acepções: existencial, predicativa e
veritativa, conforme nos esclarece Barnes: “Em seu uso completo, ‘einai’ possui às vezes um sentido existencial: ‘ho
theos esti’ é a forma grega para ‘Deus existe’; ‘ouk esti kentauros’ significa ‘centauro não existe’. Em seu uso
incompleto, ‘einai’ serve frequentemente como uma cópula, e o uso é chamado predicativo: ‘Sôkratês esti sophos’ é
a forma grega para ‘Sócrates é sábio’; ‘hoi leontes ouk eisin hêmeroi’ significa ‘leões não são domésticos’ [...]
Aristóteles distingue o que tem sido chamado de uso ‘veritativo’ de ‘esti’; ‘X esti’, neste uso, é completo, e ‘esti’
significa ‘...é o caso’ ou ‘...é verdade’. Se Sócrates afirma que sapateiros são bons em fazer sapatos, seu interlocutor
pode responder ‘Esti tauta’, ‘Estas coisas são’ ou ‘É verdade’” [In its complete use, ‘einai’ sometimes has an existential
sense ‘ho theos esti’ is the Greek for ‘god exists’; ‘ouk esti kentauros’ means ‘Centaurs do not exist’. In its incomplete
use, ‘einai’ often serves as a copula, and the use is called predicative: ‘Sôkratês esti sophos’ is Greek for ‘Socrates is
wise’; ‘hoi leontes ouk eisin hêmeroi’ means ‘Lions are not tame’ [...] Aristotle distinguishes what has been called a
‘veridical’ use of ‘esti’; ‘X esti’, in this use, is complete, and ‘esti’ means ‘…is the case’ or ‘…is true’. If Socrates asserts
that cobblers are good at making shoes, his interlocutor may reply ‘Esti tauta’, ‘Those things are’ or ‘That’s true’]
(BARNES, Jonathan. Parmenides and the Objects of Inquiry. In: The Presocratic Philosophers. London and New York:
Routledge & Kegan Paul Ltd, 1982, p. 126). As três interpretações em questão – existencial, predicativa e veritativa –
se configuram, a meu ver, como insuficientes para uma interpretação apropriada do Poema de Parmênides. José
Trindade Santos já havia percebido isso e propôs uma interpretação a que chamou de “antepredicativa”, a qual se
expressa pelo seguinte: “Não ligando «que é/que não é» a qualquer sujeito ou objecto implícitos, encaro os caminhos
como ‘nomes’: «é», como «o [nome] «que é»»; «não é», como «o [nome] «que não é»», o «não-nome». Lido
antepredicativamente, o argumento não precisa de supor que estes nomes são atribuídos a algo, apenas que, se «é»
é um ‘nome’, «não é» terá de ser um ‘não-nome’, como B8.17-18a confirma, ao justificar a rejeição da via «não
verdadeira» por ser «impensável/incognoscível e sem-nome» (anônymon)” (SANTOS, José Trindade. Parménides e
a antepredicatividade. Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 32 (2015) 9-33, p. 20). Em
relação a essa leitura, que certamente concebo como um “avanço” em relação às demais, ela ainda se mostra como
insuficiente (como toda interpretação) e, por esta razão, faz-se necessário atentar para o que se segue: de fato, “ἔστιν”
(é) e “οὐκ ἔστιν” (não é) não devem fazer referência a qualquer sujeito ou objeto dentro do contexto de B2. Ao
tomarmos por referência “é” (ἔστιν) em relação com ser (εἶναι) e não é (οὐκ ἔστιν) em relação com não-ser (µὴ εἶναι),
estes últimos não podem ser compreendidos como meros “sujeitos” aos quais corresponderiam predicados capazes
de defini-los. Por isso, tão só e simplesmente, pode-se dizer: o ser é, o não-ser não é – formulação cuja compreensão
não pode ser alcançada quando remetida ao âmbito sensível. De tal modo que, se deduzirmos de “é” a formulação “o
ser é”, uma vez que “o ser” não diz respeito ao âmbito sensível, a radicalidade de sua essência estaria em ele
simplesmente “ser”, não lhe cabendo quaisquer atributos e predicados do vir a ser. Os “predicados” que doravante
lhes são atribuídos (B8) no âmbito inteligível, diferentemente daqueles que coincidem com o âmbito sensível, não
possuem “referência” cronotópica e, por isso, não são necessariamente predicados em sentido ordinário, mas dizem
o mesmo que simplesmente ser. O ser é, portanto, “irreferenciável”, concebido de um ponto de vista mais originário
– razão pela qual proponho que o verso de B3, lido em consonância com B2, se valha de uma leitura antepositivo-
unitária, expressão que faz referência à perspectiva da anteposição de união, em que pensar e ser são o mesmo
porque, antes de se consumarem em sua plenitude, já precisavam ser em sua possibilidade originária (conforme
veremos ao longo do texto).
17
O enfoque em questão de B2, tomando por parâmetro o que há para “pensar”, não é unicamente epistemológico,
como defendem alguns; é, consoante a isso, ontológico – pois antecipa a identidade entre pensar e ser que será
exposta em B3, B6.1 e B8.34. Trata-se, portanto, de uma perspectiva ontoepistemológica (vide nota 39, para uma
melhor compreensão).
42 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
18
A inesgotabilidade do mistério da verdade deve também ser pensada sob o ponto de vista dos limites da natureza
mortal do homem. Porque mortal, o homem é constituído de polos “contrapostos” e “complementares”: saber e
ignorância, prazer e dor, memória e esquecimento etc., de maneira que nunca está pleno de um só polo. Esta ressalva
é pertinente porque a inesgotabilidade em discussão precisa ser pensada 1. A partir da verdade em si mesma e 2. Na
relação com os limites cognitivos humanos de sua apreensão. A verdade é mistério que se mostra e se retrai,
simultaneamente; por isso a todo saber da verdade advém um não-saber, e é este o sentido das palavras de
Ray Renan Silva Santos | 43
Demócrito: “Em realidade, nós nada sabemos, pois a verdade vige no abismo” (op. Cit., p. 8). Esse abismo (βυθός)
em que a verdade vigora é, pois, o mistério que nos permite pensá-la em sua totalidade luminosa e obscura. Neste
sentido, convém recordarmos a origem da palavra “ἀλήθεια”, que é constituída de “ἀ’, com sentido privado e de
negação + λήθη (esquecimento). A ἀλήθεια, literalmente, seria a negação do esquecimento. Portanto, só pode vir à
presença a partir da negação de um polo da natureza humana com vistas à intensificação de outro: a memória. Tal
memória, em sentido filosófico, coincide com um constante exercício do pensamento que pensa a essência e a
totalidade do real. Essa relação entre esquecimento, memória e verdade vem a ser desdobrada, com muito mais
propriedade e clareza, a partir da concepção de ἀνάμνησις (reminiscência) de Platão, para quem aprender e conhecer
coincide com recordar a verdade esquecida quando do nascimento das nossas almas. Cf., nesta direção, Fedro 246b-
250c, República 621a-b e Fédon 75c-e. Também de maneira assaz pertinente, Heidegger nos chama a atenção para a
tradução de “ἀλήθεια” pelo termo alemão “Unverborgenheit” (desencobrimento), salientando que o que está
esquecido encontra-se encoberto, de modo que a negação e privação (ἀ-) do esquecimento (λήθη) configura um
resgate e, portanto, um e des-encobrimento (Un-verborgenheit, ἀ-λήθεια) (HEIDEGGER, 1992, p. 14 et seq.). Chama-
nos, ainda, a atenção para a própria origem de “λήθη”, que aponta para “λαθ”, em cuja raiz está “encobrir”
(Verbergen) (Ibid., p. 30). Cf. HEIDEGGER, Martin. Parmenides. Gesamtausgabe. II. Abteilung: Vorlesungen 1923-
1944. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1992.
19
O caminho que é, portanto, configura-se como único caminho que conduz ao pensamento de si mesmo (na
identidade com o ser) e do outro (na diferença com o não-ser).
44 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
20
Para um aprofundamento deste tema, cf. GALGANO, Nicola Stefano. Os Limites da palavra: Parmênides e o
indizível. É: Revista Ética e Filosofia Política, v. II, nº XIX, 2016, pp. 4-24.
Ray Renan Silva Santos | 45
1) De identidade;
2) De não-contradição;
3) De terceiro excluído;
Em que:
1) “um, visto que é, e que não é não-ser” exprime A=A, ou ainda, que o que é,
isto é, a verdade (A) é idêntica a si mesma e não pode não ser nem ser algo
que não ela própria;
21
“Pensa”, contudo, apenas enquanto negação da afirmação da via que é, e não como aquilo que há para propriamente
ser pensado, já que só se pode pensar unicamente o que é (essa identidade entre “pensar” e ser” será evidenciada em
B3, fragmento que ainda iremos interpretar mais adiante).
22
Na direção desta interpretação, diz Emmanuel Carneiro Leão: “Neste percurso, porém, se dá sempre também um
outro e mesmo caminho: o caminho de e para não ser. Assim, em Parmênides o caminho de ser para ser é o caminho
de não ser para não ser. Trata-se de caminho que não pode, mas também não carece seguir” (LEÃO, Emmanuel
Carneiro. O homem no Poema de Parmênides. In: Parmênides I. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1, nº 1, 2007, p. 31)
23
Assinala Hermann Diels: “Há apenas um caminho que conduz para a meta, o caminho da verdade; todos os outros
são descaminhos” [Es gibt nur einen Weg, der zum Ziele führt, der Weg der Wahrheit, alle andern sind Irrwege]
(DIELS, Hermann. Parmenides Lehrgedicht. Griechish und Deutsch. Berlin: Verlag von Georg Reimer, 1897, p. 48).
46 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
24
Para uma melhor compreensão do “método” em questão, cf. CASERTANO, G. Parmenide il método la scienza
l’esperienza. Napoli: Editore Guida, 1978 (II ediz. 1989).
25
Cf., numa direção semelhante, UNTERSTEINER, Mario. Parmenide. Testimonianze e Frammenti. Firenze: La Nuova
Italia Editrice, 1979, p. LX.
Ray Renan Silva Santos | 47
26
Ocorre de haver toda uma discussão em torno do “ser” nas linhas e entrelinhas do Poema de Parmênides. A
principal dificuldade se deve ao fato de que no Poema nunca aparece “o ser”, “τὸ εἶναι” – infinitivo substantivado.
Assim, em B2.3, com a indicação do caminho que é (ἔστιν), temos que ele não é não ser (µὴ εἶναι), ao passo que, em
B2.5, o caminho que não é (οὐκ ἔστιν) tem, por necessidade (χρεών), de não ser (µὴ εἶναι). Deduz-se, a partir disto,
que, por um lado, temos não-ser para (o) que não é e, por outro, ser para (o) que é, embora os versos em questão
não evidenciem os “sujeitos de “é” e “não é”. Contudo, em B2.7, apesar de o verbo “εἶναι” não aparecer no infinitivo
substantivado, nos deparamos com a sua ocorrência no particípio substantivado: “τό µὴ ἐὸν”, que pode aqui ser
traduzido por “o não-ser” (ou: “o que não é, “o não ente”), em contraste com “τό ἐὸν” (B6.1, B8.3, B8.35), traduzido
por “o ser”. Essa dificuldade perdura, na medida em que o verso de B3 não substantiva os verbos pensar (νοεῖν) e ser
(εἶναι). Convém, dessa forma, verificarmos as diversas formas do verbo “εἶναι” que aparecem ao longo do Poema.
Utilizar-nos-emos, para tanto, da seguinte passagem de José Trindade Santos: “A que formas do verbo einai recorre
a deusa ao longo do poema para se referir ao ser? A três: ao particípio substantivado to eon (2.7, 6.1, 8.3, 8.35 passim);
a formas verbais, do indicativo do presente estin (2.3, 2.5 passim), e do futuro (estai: 8.36); e ao infinitivo einai (2.
3, 3 passim). A segunda não põe problemas: traduz-se simplesmente por ‘é’ e por ‘será’. A terceira põe poucos: é
simplesmente traduzida por “ser”. Mas a primeira, nas diversas línguas em que o poema foi traduzido, tem sido
vertida por diferentes formas, equivalentes, em português, a: ‘o ser’, ‘o que é’, ‘o ente’, ‘o essente’; no plural, ‘as coisas
que são’ (ta eonta: 7.1)” (SANTOS, 2013, p. 68).
Ray Renan Silva Santos | 49
27
Na esteira de Plotino: “... mas sendo dois, é essa unidade conjuntamente inteligência e o que é, tanto pensando
quanto sendo pensada, a inteligência pelo pensar, e o que é pelo que é pensado. Pois não viria a ser o pensar, não
havendo diferença e identidade. (V.1.4).
50 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
anteposição de união28 entre pensar e ser, a qual evidencia uma esfera mais
originária. É o mesmo pensar e ser: pois sempre que o pensar desabrocha,
o ser está a ele unido; sempre que o ser se manifesta, só pode fazê-lo
porque o pensar está a ele unido. Mas o pensar, na vida dos homens, este
pensar essencial que mostra o princípio por meio do qual há o pensar,
revela-se como “separado” do ser, e somente quando de sua
correspondência com o ser é que ocorre essa consumação da união de
ambos. Contudo, é necessário aqui pensar aquela anteposição de união,
sem a qual ser e pensar, sendo o mesmo na esfera da possibilidade
originária, jamais poderiam se consumar como unidade pensável e dizível.
A unidade entre pensar e ser já é em sua possibilidade de consumação, isto
é, enquanto aquela condição a partir da qual o pensar, provindo do ser,
brota como pensar que se constitui como o pensamento que se refere ao
ser de que proveio. Essa possibilidade, por sua vez, por ser do âmbito
originário, não quer dizer, aqui, algo que seja contrário à realidade; trata-
se, antes, da própria possibilidade em sua realidade, bem como da
realidade em sua possibilidade. Neste sentido, pensar e ser, em sua
possibilidade originária, a qual exprime uma anteposição de união, já é o
próprio ato possível, o qual é sempre um ato real.29
“... pois o mesmo é pensar e ser”. Em geral, nos utilizamos da
conjunção aditiva “e” para unir algo que por vezes está separado. No caso
em questão – a saber, de pensar e ser – esta conjunção exprime uma
anteposição de união. Contudo, essa anteposição, que é uma antecipação,
28
Com a palavra “anteposição”, queremos entender a esfera da possibilidade originária. Para tanto, a palavra em
questão faz referência ao seu étimo: é composta pela preposição latina “ante”, no sentido de “antes” + o substantivo
“positiō”, no sentido de posição. A palavra “positiō”, por sua vez, vem do verbo “pōnere”, no sentido de “pôr”. Assim,
a anteposição (ante-positiō) indica o que está posto previamente, isto é, como possibilidade – daí a anteposição de
união apontar para a união originária de pensar e ser como possibilidade que precisa ser consumada. Ademais, ela
deve fazer referência a uma dimensão não cronotópica, a qual está anteposta a qualquer posição espaço-temporal.
29
Cf., nesta direção, o Livro Θ, capítulo 8 da Metafísica de Aristóteles (1049b35-1050a1), em que se fala da
anterioridade do ato (ἐνέργεια) em relação à potência (δύναμις). Ou ainda, Plotino, I, 4, [46] 10, em que se fala da
anterioridade do ato (ἐνέργεια) em relação à apreensão (ἀντίληψις).
Ray Renan Silva Santos | 51
30
Nesta direção, dirá Plotino: “Ligava-se também Parmênides antes a essa opinião, enquanto conduzia ao mesmo o
que é e pensar, e punha o que é não nos sensíveis, dizendo: ‘pois é o mesmo pensar e ser’” (V.1.8).
31
A dificuldade de apreensão do conteúdo em questão parece residir na própria natureza da unidade entre pensar e
ser, a qual constantemente tende a ser confundida com o âmbito sensível que nos fornece referências físico-visíveis
para uma determinada apreensão. Faz-se necessário, contudo, pensar o que está em questão – a mesmidade essencial
entre pensar e ser – sem as devidas referências físico-visíveis, a fim de que nos conduzamos a uma unidade originária
que é condição inteligível e possibilitadora de toda e qualquer articulação e, portanto, de toda e qualquer predicação.
Tal âmbito inteligível, para o qual o pensamento se volta, exprime a anteposição de união de ser e pensar enquanto
possibilidade originária, a qual só pode ser propriamente pensada à medida que ocorre uma apreensão da esfera do
ser, que é essencialmente imutável, conforme nos indica B8.19-21.
32
Conforme nos atesta B8.34, sobre o qual ainda iremos discorrer.
52 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
33
Esta linha de interpretação está em conformidade com a de Sexto Empírico, que, ao interpretar os versos de B1,
atribui ao caminho da divindade justamente aquele da “investigação/teoria que está de acordo com a razão filosófica”
(κατά τον φιλόσοφον λόγον θεωρίαν), enfatizando, assim, o fato de que a razão (λόγος), para Parmênides, se expressa
na forma de um “condutor divino” (προπομπού δαίμονος) (Sexto Empírico, AM, I, 112, p. 61).
34
Com isto, o que está em discussão é [a] que o pensar não se reduz a uma faculdade correspondente ao domínio da
interioridade subjetiva do homem, mas [b] deve corresponder a um acontecimento originário de separação e união
com o ser. Dirá Heidegger, de modo acertado, que não se pode reduzir “νοεῖν” a interpretações da Biologia, da
Psicologia ou da Teoria do Conhecimento sobre o que significa “pensar”; ressalta, ainda (traduzindo “νοεῖν” por
“Vernehmung”): “A apreensão e o que a sentença de Parmênides diz dela, não é uma faculdade do homem já
determinado” [Vernehmung und das, was der Satz des Parmenides von ihr sagt, ist nicht ein Vermogen des sonst
schon bestimmten Menschen] (HEIDEGGER, Martin. Einführung in die Metaphysik. Max Niemeyer Verlag:
Tübingen, 1953, p. 108).
Ray Renan Silva Santos | 53
35
B4.2; B8.32.
54 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
36
O conhecimento filosófico é, portanto, a unidade que reúne a multiplicidade de passado, presente e futuro. Esse
caráter fundamental do conhecimento implica a sua transcendência em relação ao tempo, visto que para se referir a
todos os tempos, faz-se necessário que, de algum modo, ele não esteja em tempo algum. Somente pode abarcar a
amplitude da dimensão temporal um elemento que seja atemporal. Precisamente esse elemento atemporal coincide
com “o mesmo”. O mesmo, aqui, não apenas identifica pensar e ser, mas também se refere àquilo que é sempre de
tal e qual modo e não pode deixar de ser. Essa definição do conhecimento filosófico é articulada de maneira lapidar
por Platão no diálogo Laques 198d: “... quando há ciência ou conhecimento [ἐπιστήμη] de alguma coisa, não se trata
de um conhecimento dos fatos que passaram, para saber como se passaram, nem de outro do que acontece, para
saber como acontece, nem de outro, ainda, sobre a melhor maneira por que poderá vir a realizar-se o que ainda não
se tornou realidade, porém do que é o mesmo [ἀλλ᾽ ἡ αὐτή]” (PLATÃO. Laques-Eutífron. Tradução de Carlos Alberto
Nunes. Belém: ed.ufpa, 2015, p. 91). Tradução modificada.
Ray Renan Silva Santos | 55
37
Veja-se o parentesco entre as expressões “δόξας”, em “opiniões dos mortais” (βροτῶν δόξας – B1.30) e “as coisas
que parecem” (τὰ δοκοῦντα – B1.31). O substantivo “δόξα” (opinião, crença) deriva do verbo “δοκέω” (opinar, imaginar,
supor etc.); por sua vez, “δοκοῦντα” é o particípio ativo feminino de δοκέω. Essa ressalva é importante porque nem
sempre a tradução de “βροτῶν δόξας” por “opiniões/crenças dos mortais” faz ver o parentesco entre
“opiniões/crenças” e “as coisas que parecem”. Daí Cornford ter traduzido “βροτῶν δόξας” por “o que parece aos
mortais” (“what seems to mortals”), “pois”, explica ele, “‘opiniões’ ou ‘crenças’ é uma interpretação muito limitada.
‘O que parece aos mortais’ (τά δοκοΰντα, I, 31) inclui (a) o que parece real ou aparece para os sentidos; (b) o que
parece verdade, o que todos os homens, confundidos pelos sentidos, acreditam e os dogmas pensados pelos poetas
sobre a mesma base; e (c) o que pareceu certo aos homens (νενόμισται), a decisão que eles ‘estabeleceram’ de
reconhecer as aparências e as crenças fundadas sobre elas na instituição convencional da linguagem” [“because
‘opinions’ or ‘beliefs’ is too narrow a rendering. ‘What seems to mortals’ (τά δοκοΰντα, I, 31) includes (a) what seems
real or appears to the senses; (b) what seems true, what all men, misled by the senses, beliebe and the dogmas taught
by philosophers and poets on the same basis; and (c) what has seemed right to men (νενόμισται), the decision they
have ‘laid down’ to recognise appearances and the beliefs founded on them in the conventional institution of
language”] (CORNFORD, F. M. Plato and Parmenides. Parmenides’ Way of Truth and Plato’s Parmenides. London:
Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1939, pp. 32-33).
56 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
38
A metáfora em questão está no seguinte: como só há um caminho verdadeiro – o caminho que é –, impõe-se para
o homem possuir “uma só cabeça” para “um só caminho”. De outra maneira, sendo duas cabeças (δίκρανος), uma
confundir-se-á com outra e outra com uma.
39
Este raciocínio é retomado, desenvolvido e aprofundado por Platão mediante uma concepção ontoepistemológica
n’A República, Livro V, 477c-478d, em que o ser está para o conhecimento (γνῶσις), assim como o não-ser está para
a ignorância (ἄγνοια) e as aparências estão para a opinião (δόξα). A opinião, assim, configura uma posição
intermediária (μεταξύ) entre o conhecimento e a ignorância, entre o ser e o não-ser.
40
Trata-se de uma via que se abre para logo se fechar, pois parte de uma não compreensão das vias positiva e
negativa: “E eis que subitamente uma terceira via se abre, para logo se fechar. Aquela em que ‘vagueiam os mortais’,
que ainda não aprenderam a respeitar a oposição do ser ao não-ser e por isso os confundem. O argumento da deusa
regressa à eliminação da via negativa e às consequências dela decorrentes” (SANTOS, 2013, p. 75).
58 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
para a via do não-ser (que não é) e para a via do aparecer, que ora aparenta
ser, ora aparenta não-ser. Por isso a advertência de B1.31-32:
41
Em última instância, o aprendizado do todo, no qual está em questão o saber radical do ser, do não-ser e do
aparecer, implica uma indissociação da natureza racional da natureza sensível, isto é, do pensamento que capta o ser
dos sentidos que captam o aparecer. Trata-se de um ponto de todo relevante para uma compreensão não simplista
e dicotômica do pensamento parmenidiano. Na experiência fundamental que se dá no caminho da verdade, o homem,
porque é mortal, não pode se apartar da dinâmica de ser, de não-ser e de aparecer no seio do vir a ser. Aqui é, pois,
onde o homem se releva homem dos homens e vem a se tornar sapiente, pois consegue, sem deixar de ser homem,
transcender os homens aos quais só é dada a experiência sensível, e não a experiência de pensar o sensível no sensível.
É o que nos mostra B16.1-4: “Ὡς γὰρ ἕκαστος ἔχει κρᾶσιν µελέων πολυπλάγκτων, // τὼς νόος ἀνθρώποισι παρίσταται· τὸ
γὰρ αὐτό // ἔστιν ὅπερ φρονέει µελέων φύσις ἀνθρώποισιν // καὶ πᾶσιν καὶ παντί· τὸ γὰρ πλέον ἐστὶ νόηµα [Pois como cada
um possui uma mistura de membros multierrantes, // assim o pensamento se aproxima dos homens; pois o mesmo
// é o que a natureza dos membros pensa nos homens // tanto em todos quanto em tudo; pois o que há de maior é
o pensamento]”. Neste sentido, dirá Casertano, interpretando o fragmento em questão: “Ao ligar estreitamente o
pensamento e o pensado à natureza das partes constituintes do corpo, se é que para cada homem resulta uma unidade
incindível de corpo e pensamento, esta é uma prova ulterior da impossibilidade de se separar e contrapor, em
Parmênides, racionalidade e sensibilidade. Existe uma estreita relação entre os mélea, as partes constituintes de cada
homem, e o seu noos, seu intelecto. O sentido dessa relação é que é sempre a physis meleon, isto é, a configuração
particular que assume em cada homem a síntese entre as suas partes constitutivas, que determina o seu pensamento”
(CASERTANO, G. A cidade, o verdadeiro e o falso em Parmênides. Kriterion, Belo Horizonte, nº 116, dez/2007, pp.
307-327, p. 312). Veja-se, ainda, o que nos diz Vlastos, ao interpretar o mesmo fragmento (B16): “Quando Parmênides
fala da estrutura do pensamento no fragmento 16 como ‘muito errante’, ele a relaciona inequivocamente à mente
Ray Renan Silva Santos | 59
pensar (τὸ λέγειν τε νοεῖν) convergem para que o ser (τ΄ ἐὸν) seja, isto é,
configuram uma unidade que abarca tudo o que é, tudo o que não é e tudo
o que aparece, mas partindo sempre do ser. O que, porém, essa unidade
quer nos dizer e levar a pensar?
A investigação poética de Parmênides, consolidada mediante o μῦθος
que a deusa enuncia, agora ganha vigor em associação ao λόγος, expresso
no “dizer” (λέγειν). Este λόγος, conquanto não apareça ainda
nomeadamente nas passagens, é o fio condutor de toda a investigação, de
sorte que em B6 ele é evidenciado por meio da expressão “τὸ λέγειν”. Agora
não se trata apenas de pensar (νοεῖν), que é o mesmo (τὸ αὐτὸ) que ser
(εἶναι). Necessário (Χρὴ) é, pois, que o dizer, o pensar e o ser sejam o
mesmo. O pensar, à medida que corresponde ao ser, só pode pensar o ser,
mas o dizer é o pensar todo pleno e consumado, o qual mostra, por meio
da palavra, o pensado no pensar que se realizou como pensamento. Trata-
se de uma experiência reunidora do homem com a sua essência, do pensar
com o ser, do dizer com o pensar e o ser. Assim, τὸ λέγειν não é tão só e
simplesmente o dizer em um sentido mais imediato que possamos
conceber42; τὸ λέγειν é toda a força de realização do real no homem,
‘errante’ dos que ‘nada sabem’. ‘Errante’ é o melhor que a sensopercepção pode produzir, pois nela o nosso
pensamento não é nosso para comandar; eles ‘vêm até nós’ través do corpo, registrando passivamente sua relação
de mudança da escuridão para a luz. Mas há outra dimensão do pensamento na qual a mente tem o poder de
iniciativa; ela pode recordar, julgar, raciocinar” [When Parmenides speaks of the thinking frame in fragment 16 as
‘much-wandering,’ he links it unmistakably with ‘wandering’ mind of the ‘know nothings.’ ‘Wandering’ is the best
[69] sense-perception can produce, for in it our thought are not ours to command; they ‘come to us’ through the
body, passively recording its changing ratio of darkness to light. But there is another dimension of thought in which
the mind has the power of initiative; it can recollect, judge, and reason] (VLASTOS, Gregory. Parmenides‘s Theory
of Knowledge. In: Studies in Greek Philosophy. Vol. 1: The Presocratics. New Jersey: Princeton University Press, 1996,
p. 156).
42
Convém, neste ponto, uma atenção às palavras de Emmanuel Carneiro Leão sobre o verbo λέγειν: “O reunir de
λέγ- não amontoa simplesmente unidades a esmo. Colhe e escolhe para acolher e recolher, diferenciando por
parâmetros, selecionando por princípio de ordem [...] Na raiz de todo é e/ou não é age a força de λέγ-ειν, a força de
produzir tensões e integrar conflitos [...] Como princípio de ondem e força de organização do real em sua realização,
λέγ-ειν remete sempre para o ‘casamento de ser e linguagem’, onde mora o homem, no mais elevado grau de sua
explosão na poética das criações humanas. Por isso a vigência poética de λέγ-ειν revoluciona não apenas a fala e o
discurso mas também o ouvido e a escuta. Nas peripécias da criação ouvir é escutar a ação de λέγ-ειν, seguindo o
advento da sua força de reunião e poder de recolhimento no curso da história” (LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia
Grega – Uma Introdução. Teresópolis: Daimon Editora Ltda, 2010, pp. 32-34).
60 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
43
Tamanha é, portanto, a radicalidade da unidade em questão de B6.1 – ser, pensar e dizer –, que Charles Kahn diz
o seguinte: “Há somente duas possibilidades; portanto, λέγειν e νοεῖν devem ser Ser ou nada de todo” [There are only
two possibilities; hence λέγειν and νοεῖν must be Being or nothing at all] (KAHN, Charles. Some disputed questions
in the interpretation of Parmenides. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1, nº 2, 2007, pp. 33-45, p. 38).
44
O λόγος, neste sentido, considerado como “força de evidenciação e desencobrimento”, encontra respaldo no fr. B93
de Heráclito, mediante o uso de “λέγειν” como o elemento sem o qual não há luminosidade e visibilidade, em contraste
com “κρύπτω”, que é o ocultar e esconder: “O senhor, de quem é o oráculo, aquele em Delfos, não diz [λέγει] nem
oculta [κρύπτει], porém assinala” (HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, estudo e comentários de
Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus Editora, 2012, p. 159).
Ray Renan Silva Santos | 61
45
Não é o propósito deste texto discorrer e aprofundar sobre o fato de que é a partir de Platão e Aristóteles que a
Filosofia se instaura em seu modo genuíno e decisivo na história do Ocidente. Portanto, os elementos filosóficos de
Parmênides para os quais o texto chama a atenção, conquanto precisem sempre ser retomados pela Filosofia, ainda
não exprimem a sua plenitude, o seu conceito e o seu modus faciendi que ocorrerá sobretudo a partir de Platão e
Aristóteles, sendo válido dizer que o que aquele inaugura, estes últimos levam a cabo e realizam em sua forma plena.
Por isso é que em Parmênides as coisas estão insinuadas, mas não propriamente evidenciadas ou conceituadas
filosoficamente.
46
Poder-se-ia supor, com isto, que o empreendimento de Parmênides se dá na direção de contrapor “realidades”
(uma que é e uma que aparenta ser), mas essa leitura parece facilitar e até mesmo superficializar a complexidade de
seu pensamento. Ao considerarmos, por exemplo, que a “correção” da realidade fenomênica só é possível mediante
e a partir do parâmetro da realidade essencial, encontramos aqui uma outra via de interpretação, a qual não
simplesmente contrapõe, mas re-úne por meio de uma diferenciação. Nessa direção, diz Casertano: “Não nos
deparamos, pois, com uma contraposição entre uma realidade e uma não realidade, entre um ‘ser’ metafisicamente
entendido e um ‘aparecer’ que vem condenado, mas sim com uma distinção entre o discurso que se deve fazer sobre
a realidade como um todo e o que se deve fazer sobre a realidade como multiplicidade dos fenômenos” [Siamo di
fronte, quindi, non a una contrapposizione tra una realtà e una non realtà, tra un ‘essere’ metafisicamente inteso eun
‘apparire’ che viene condannato, bensì a una distinzione tra il discorso che si deve fare sulla realtà come uno-tuto e
quello che si deve fare sulla realtà come molteplicità di fenomini] (CASERTANO, Giovanni. I Presocratici. Roma:
Carocci editore, 2009, p. 86).
62 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
47
Confirmada, doravante, em B8.15, como veremos.
48
E isto, em última instância, significa: se todas as coisas são atravessadas pelas aparências, o ser também o é; logo,
deve-se também poder buscar o ser no próprio seio do aparecer.
Ray Renan Silva Santos | 63
49
Quer isto significar o seguinte: que as opiniões dos mortais, vinculadas incialmente às aparências, não são
“descartadas” na constituição do saber; antes, porque podem ou não ser verdadeiras (dado o seu caráter oscilante),
auxiliam o próprio exame a que se propõe o saber, semelhantemente ao caso das aparências, que devem auxiliar o
pensar e o saber que apreendem o ser.
64 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
50
Embora também possamos remeter ao ser como essencialmente impensável e indizível, porquanto mistério
sempre a se descobrir e a se pensar e dizer. Quando concebemos o ser somente como pensável e dizível, adentramos
uma perspectiva unilateral e, com isso, não o apreendemos em sua essência. O fato de o ser se nos apresentar como
pensável e dizível advém justamente de a sua natureza, originariamente, ser impensável e indizível. É a necessidade
de pensar e dizer o impensável e o indizível que nos possibilita consumar o pensamento e a linguagem. Quando,
porém, Parmênides se refere ao não-ser como impensável e indizível, o que está em pauta é a absoluta negação do
ser. Como o ser é o que há para pensar e dizer no âmbito cognitivo do saber e da verdade, o não-ser é precisamente
a negação do ser e, portanto, do saber e da verdade.
Ray Renan Silva Santos | 65
51
Também, neste sentido, Heráclito no fr. B103: “O comum: princípio e fim na circunferência do círculo”
(HERÁCLITO, op. cit., 131).
52
Leio B8.34 com o verbo “εἶναι” implícito. Tal leitura se pauta em B3, na identificação entre pensar e ser, e em B6.1,
na identificação entre o dizer, o pensar e o ser, além da própria continuação do verso em questão (B8.34), em que se
explica que, sem o ser, não é possível encontrar o pensar. Sendo assim, B8.34-36 está retomando a identidade entre
pensar e ser. Prefiro esta leitura a traduzir οὕνεκεν (por que) subentendendo um pronome demonstrativo: “aquilo
por que” ou “aquilo por causa de que”.
66 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
53
Ou, na linguagem de Plotino (V, 6, [24] 6): “Pois é preciso a essência primeiramente dita não ser sobra do ser, mas
ter pleno o ser. E é pleno o ser quando [ele] tomar a forma de pensar e viver. Ao mesmo tempo portanto é o pensar,
o viver e o ser no que é. Portanto se há o que é, também inteligência, se há inteligência, há também o que é, e o
pensar é ao mesmo tempo com o ser”.
Ray Renan Silva Santos | 67
54
Por isto dirá Aristóteles: “A faculdade perceptiva e a faculdade científica da alma são, em potência, os seus objectos,
isto é: a última, o cientificamente cognoscível; a primeira, o sensível” (De An., III.8, 431b28-29). Na mesma direção,
dirá Plotino, focando o âmbito tão somente do pensamento e aprofundando a identidade em questão: “Portanto um
só será todas as coisas: inteligência, ato de pensar, o inteligível. Se então o ato de pensar de si é o inteligível, e o
inteligível é a mesma [inteligência], portanto esta pensará a si mesma” (V, 3, [49] 5.).
55
Conforme expressão do Oráculo de Delfos incorporada no pensamento socrático-platônico: “Conhece-te a ti mesmo
e conhecerás o Cosmos e os deuses”.
68 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
56
Prefiro aqui não traduzir a palavra λόγος, por compreender a sua amplitude e multisignificância.
57
Neste sentido, dirá Reale, referindo-se ao λόγος parmenidiano, que “é o lógos, de fato, e apenas o lógos que afirma
o ser e nega o não-ser” [è il logos, infatti, e solo il logos che afferma l'essere e nega il non-essere] (REALE, Giovanni.
Storia della Filosofia Antica. I. Dalle Origini a Socrate. Quinta edizione. Milano: Vita e Pensiero, 1987, p. 126).
Ray Renan Silva Santos | 69
***
58
Cf. O Sofista 243a-b.
59
Cf. Teeteto 183e.
60
HEGEL, op. cit., p. 115.
61
HEIDEGGER, 1953, p. 111.
62
Veja-se, ainda, essa necessidade exposta no fr. B35: “É bem necessário [χρὴ εὖ] investigar muitas coisas para os
homens serem amantes da sabedoria” (HERÁCLITO, op. cit., p. 161).
Ray Renan Silva Santos | 71
vigorosamente. Porque todas as leis humanas são alimentadas por uma lei
una, a divina; pois exerce seu domínio tão longe quanto se consente, e basta e
envolve a todas as outras (B114)63.
63
HERÁCLITO, ibid., p. 155.
64
A República VI 484b.
65
A República VI 486a-b.
66
Metph., A. 2, 982a.
72 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Volume II. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e
comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. 2ª edição. São Paulo:
Edições Loyola, 2005.
______. Sobre a alma. Tradução de Ana Maria Lóio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2010.
BARNES, Jonathan. Parmenides and the Objects of Inquiry. In: The Presocratic
Philosophers. London and New York: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1982.
DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker. Griechisch und Deutsch. Berlin:
Weidmannsche Buchhandlung, 1960.
______. Parmenides Lehrgedicht. Griechish und Deutsch. Berlin: Verlag von Georg Reimer,
1897.
______. Da natureza. Tradução de José Trindade Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
74 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
______. O Sofista. Tradução de Henrique Murachco, Juvino Maia Junior e José Trindade
Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011c.
______. Teeteto. Tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Prefácio de José
Trindade Santos. Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
PLOTINO. Primeira Enéada. Tradução, introdução e notas de José Rodrigues Seabra Filho
e Juvino Alves Maia Junior. Belo Horizonte: Edições Nova Acrópole, 2014.
______. Quinta Enéada. Tradução, introdução e notas de José Rodrigues Seabra Filho e
Juvino Alves Maia Junior. Belo Horizonte: Edições Nova Acrópole, 2018.
REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica. I. Dalle Origini a Socrate. Quinta edizione.
Milano: Vita e Pensiero, 1987.
SANTORO, F. Os Nomes dos Deuses. In: Parmênides II. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1,
nº 2, 2007, pp. 83-90.
SEXTUS EMPIRICUS. Against the Logicians. Vol. II. Translated by R. G. Bury. London:
Harvard University Press, 1967.
1
Professor visitante de Filosofia na Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: jtrin@gmail.com
José Trindade Santos | 77
2
Criticando M. Burnyeat (1979, 69-111), G. Fine (1996, 105-106; 1994, 138-141) rejeita a atribuição do “relativismo” a
Protágoras, caracterizando a concepção do sofista como “infalibilista”. As duas concepções diferem, porque a
primeira é uma tese epistemológica, que nega haver verdades absolutas, enquanto a segunda, além de admitir
verdades (como será o caso da tese de Protágoras), tem implicações ontológicas, por exemplo, ao defender que cada
um capta a realidade tal como a percebe (Teeteto 156a-157c, 167a-c, 182a-b).
3
Com o termo, os dois interlocutores tanto se referem à “competência” (dynamis: 184e6) cognitiva que recorre a
esses órgãos (a que chamamos ‘sentidos’) para “sentir” (no corpo) e “perceber” (dentro e fora dele) “as [coisas]
sentidas e percebidas” (aisthêta), como ao produto desse exercício: as “sensopercepções” (de algo: Rep. V 477d1-2;
Cooper 1970, 130). Esta abrangência, para nós, ambiguidade, se mantém ao longo do argumento, como veremos,
condicionando as interpretações de que é objeto.
78 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
4
Ver a identificação com os Cirenaicos (Zilioli 2013, 165-185), acima referida.
5
Outras “competências” são propostas na República V: o “saber” (epistêmê) e a “opinião” (doxa), não sendo a
“sensopercepção” apontada como competência, embora o diálogo faça referência e recorra amiúde a “ver e ouvir”.
Ao longo deste argumento veremos como a competência perceptiva acaba por se contextualizar na competência
cognitiva chamada “opinião” (doxa), sem nunca se confundir com ela.
José Trindade Santos | 79
6
O uso do dual é importante porque só ele pode assegurar que a expressão “acerca de ambas” (peri autoin) se refere,
conjuntamente às “coisas percebidas” pelas duas sensopercepções referidas. Não é, porém, assim, quando, em vez
do dual, é usado o genitivo plural (peri autôn: “acerca delas”).
7
“Salgado” é a tradução habitual do termo. Mas, como essa tradução não sugere algo comum à percepção conjunta
de uma cor e de um som, seguindo C. Kahn (2009, 98-99), defendemos que com esse exemplo Sócrates pretenderá
apenas excluir a possibilidade de usar qualquer outra sensopercepção para captar o comum a várias.
80 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
E Teeteto responde:
8
Aproveitando a crítica de Cooper (1970, 135-138) à tradução de 185c-d, reproduzimos a sua versão: “Acerca delas
[as coisas percebidas], dizes que são e não são, semelhantes e dessemelhantes, as mesmas e outras, uma e mais. E
perguntas através de que [competência], das do corpo, percebemos com a alma se são pares, ímpares e outros
[números] que a eles se seguem”.
9
Sempre que um pronome é usado, o intérprete fica na dúvida sobre aquilo a que se refere. É devido a essa
ambiguidade que a expressão “acerca dessas” (peri autôn) tanto pode ter como antecedente “a unidade e outro
número”, como o que foi dito antes, a saber: “a entidade, o não-ser, etc.”. Neste caso, “essas” seriam “o que é comum
a todas as “percepções”, na pergunta de Sócrates, entendendo as expressões elencadas por Teeteto como “predicados
ligados a um sujeito”. Nesse sentido, a pergunta não se dirigiria à “entidade, semelhança/dessemelhança,
mesmo/outro, etc.”, mas inquiriria: “se [as percepções] são ou não são, semelhantes ou não, etc.” (Cooper 1970, 135-
138, 140, n. 22). O A. argumenta a partir do paralelo das referências às sensopercepções (peri autoin, peri autôn).
82 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
10
Com as expressões — ‘to t’epi pasi’, ‘to epi toutois’ (ambas no dativo plural neutro: 185c) —, defendemos estar ele
a falar do que é comum a todas as “coisas” captadas por cada uma das sensopercepções, e não a “todas as percepções”
(dynameis: substantivo feminino).
José Trindade Santos | 83
saber, o saber não pode estar nas experiências do corpo que convergem na
alma, mas nos raciocínios efetuados sobre elas. Pois, pelo caminho do
raciocínio (syllogismôi), é possível atingir a entidade e a verdade;
enquanto, pelo outro não é (186c-d).
Consequentemente, se a sensopercepção “não participa da captação
da entidade e da verdade”, também “não participa da captação do ser”,
logo, também da “do saber” (186e). E, com esta conclusão, é atingida a
refutação da primeira resposta dada por Teeteto à pergunta: “o que é o
saber?11”
*
O argumento fica por aqui, porque era esse o objetivo a que visava,
no diálogo. Contudo, o mínimo que dele pode se dizer é que foi bem mais
longe do que o requerido pela refutação da primeira definição de Teeteto12.
Deixando a conclusão como adquirida, lembremos as principais teses que
estabeleceu:
11
Teeteto começa a ser refutado quando aceita a redução dos órgãos [dos sentidos] a “instrumentos através dos quais
as coisas são percebidas” (184c). Pois, como esta posição não pode ser aceita pelo sensismo de Protágoras (até então
aceito pelo jovem), a refutação de Teeteto é operada através do exercício da maiêutica, pelo qual Sócrates o leva a
aceitar a reformulação das “sensopercepções” (Lott, 2012, 124-138).
12
É oportuno notar que o argumento refuta não apenas a definição de Teeteto e o infalibilismo de Protágoras, mas
também atinge a noção de ‘sensação’ e a continuidade desta com a ‘opinião’, na República 523-525 (Cooper 1999,
359, n. 7) ou no Fedro 249b-c.
86 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
que permitem à alma avaliar o que sente através [das competências] do corpo,
a saber: “as coisas comuns (ta koina) a todas as [coisas] percebidas” (185c-e);
4. algumas destas a alma investiga em si e por si; outras a própria alma
examina através das competências do corpo (185e);
5. entre as primeiras, se encontra a entidade, “que acompanha todas as coisas”,
a semelhança e dessemelhança, o mesmo e outro, o belo e o feio, o bom e o
mau [das/nas coisas percebidas ] (186a); entre as segundas, as “experiências”
que homens e animais percebem pelo corpo e “convergem na alma” (186b-c);
6. nestes últimos casos, a alma examina “o que é”, relacionando as percepções
umas com as outras, com vista a avaliar as experiências que teve antes e tem
agora, comparando-as com aquelas que vai ter, no futuro (186a-b); ou seja,
antecipando cada percepção e a sua natureza, mediante a revisão e
comparação com aquelas que já experimentou;
7. [Por exemplo] É através do tato que [a alma] percebe a dureza do duro e a
moleza do mole; mas é a própria alma que distingue “aquilo” (ho) que ambas
são, a oposição de uma à outra e o ser dessa oposição, quando as revisa e
compara (186b);
8. Devemos então distinguir as experiências que “através do corpo atingem a
alma” dos raciocínios que as avaliam (analogismata) — o que é cada uma e o
bem (ou o mal) que trazem —; pois, é com dificuldade, muito tempo e educação
que, ao longo da vida, alguns homens conseguem levar a bom porto essa tarefa
(186c).
13
A saber, “aquilo que [uma coisa] é”, o seu “ser”, a sua ‘essência’ — expressa pela nominalização da cópula — e,
resultando dela, o fato de “existir” — a sua ‘existência’ —, além de alguns casos veriditivos (Kahn 2014, 66-68; 1981,
175). Enquanto as duas primeiras facilmente se associam à versão clássica da teoria das Formas, a terceira remete
para a “objetividade, o modo como são as coisas no mundo” (Kanayama 1987, 62).
José Trindade Santos | 87
Dissemos que a “entidade” se refere a cada coisa que é (aquilo que ela
é) e, portanto, que existe14. Acrescentamos agora que essa é a questão a
partir da qual todas as outras podem vir a ser propostas. Pois, é pelo
pensamento que a alma, primeiro através das sensopercepções, vai
captando imagens fugazes (156a-157c) pelas quais ganha consciência
daquilo que recebe através delas, de modo a depois ser capaz de as unificar
(“convergir”: synteinei - 184d4) na entidade cujo ‘conceito’ definiu (“a
unidade compreendida a partir de muitas sensopercepções”: Fedro 249b-
c). É a partir dela que cada um se achará apto a refletir sobre as relações
que esta mantém com outras naturezas15 — semelhantes ou
dessemelhantes dela —, se tornando apto a emitir “opiniões” (juízos) sobre
as “experiências” vividas16.
II
14
Se pressupõe que qualquer coisa que é (o que é), e nessa medida tem uma identidade que lhe é própria, não pode
deixar de existir (Sofista 256e). É possível apontar a origem desta concepção à exegese do fragmento 2, de
Parménides. Ao contrário de “isto [que é] não é” (to mê eon), que não pode ser reconhecido (oute an gnoiês) pelo
pensar (B2.7) por não ter uma identidade própria, “isto que é” (to eon), na medida em que é reconhecido, se
pressupõe que existe.
15
É a compreensão da relevância das diferenças que separam estes níveis da cognição que justifica insistência de
Sócrates na separação e distinção das tarefas que a alma leva a cabo, ora a partir das sensopercepções (o duro e o
mole), ora em si e por si própria (a dureza e a moleza — as respectivas entidades —, a oposição, entre elas e em si).
16
Pois, a avaliação das experiências requer a aquisição de padrões objetivos (Taylor, 2011, 184-185).
17
O debate com Teeteto sobre a sensação começa precisamente com uma discussão sobre um “vento”,
hipoteticamente percebido como “frio” por um percipiente, mas não por outro. Adiante, a natureza do processo
perceptivo será examinada de diversas perspectivas (156a-157c), ensejando uma análise sensista e relativista das
sensopercepções que suporta a “infalibilidade” que lhes é conferida (152c5).
88 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
18
Não sendo claro se ‘to koinon’, ‘ta koina’, se aplicam a qualquer “sensível” mediante a manifestação da ousia de
algo, pode haver dúvidas sobre o modo pelo qual são captados “conceitos” relativos a uma única percepção. O tópico
não é esclarecido pelo texto. Mas as consequências que dele derivam são necessárias para entender o argumento,
como veremos (ver nota seguinte).
19
Embora o argumento não se refira explicitamente à possibilidade de a alma emitir um juízo perceptual, por
exemplo, relativamente à identificação de uma cor, ou à caracterização de um som, específicos, não restam dúvidas
de que essa tarefa, adiante indicada (186b-c), caberá exclusivamente a ela e não às sensopercepções (Kahn
1981=2009, 103, n. 40).
José Trindade Santos | 89
III
Uma das questões que mais tem contribuído para a falta de consenso
sobre o Teeteto é sem dúvida a da ausência da menção a Formas
inteligíveis, dificilmente justificável numa obra dedicada à investigação
sobre o saber. O debate sobre a presença, ou não, das Formas no Teeteto
se alarga à comunidade dos investigadores de Platão, a partir da publicação
do estudo de G. Ryle sobre o Parménides (1939), aprofundado no texto de
uma conferência do filósofo diante de uma selecta audiência, realizada em
1951 (reconstituída e publicada em 199020).
A argumentação de Ryle é muito crítica da interpretação favorável à
presença das Formas, proposta e largamente difundida numa obra
clássica, ainda hoje lida, que inclui as traduções, analisadas e comentadas
do Teeteto e do Sofista, da autoria de F. M. Cornford (1935).
O ataque de Ryle a essa leitura tradicional do diálogo, insinuando
haver no Teeteto indícios do abandono da teoria das Formas, por Platão
(1990, 44-46), deu origem à publicação de estudos de diversos AA.,
defendendo pontos de vista opostos. Entre os apoiantes de Ryle, contam-
se R. Robinson (195021) e J. Cooper (1970=1999), ao qual já fizemos e
continuaremos a fazer referência, pelo fato de ser crítico da tradução e
interpretação do argumento aqui estudado, propostas por Cornford.
184e-185e revisitado
20
O texto é precedido por uma pormenorizada explicação, que dá conta das circunstâncias em ocorreu a conferência
e justifica o interesse despertado na assistência por um escrito, que há anos circularia entre especialistas de Platão
(1990, 22-23). O tópico nele focado é a chamada “teoria do sonho” (Teeteto 201d-206b), que o A. interpreta como
uma antecipação do “atomismo lógico”.
21
O A. denuncia o argumento recorrente, usado por Cornford, em Plato’s Theory of Knowledge, de que “a ausência
de Formas no diálogo constitui uma estratégia deliberada com vista a mostrar que não podemos passar sem elas”.
Confirma depois esse ponto de vista acusando Cornford de associar o Teeteto às “doutrinas do Mênon, Fédon,
Banquete e República” (Robinson 1950, 6-11). Passa por fim ao debate da questão do erro, no Teeteto (Ibid. 19-30).
90 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
22
Referimo-nos à reformulação da ‘negativa ’como ‘alteridade’ — 257b-c —, à teoria predicativa do enunciado e à
exemplificação de “o que é um enunciado falso” (261-264).
José Trindade Santos | 93
23
A “cor” percebida pelo ‘sentido” é discriminada pela alma: “um certo vermelho” ou qualquer outro tom da gama
de cores que a alma já recebeu noutras percepções.
24
A “entidade” (ousia), o fato de algo ser, não é captada pela percepção, mas pelo ‘pensamento’: 185a-b. É e existe
“no tempo”, passando por “muitas experiências” (186c), com a designação que suporta a sua identidade, partícipe
94 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
na entidade que engloba o que a ela é comum, imperceptível pelos sentidos, porém, acessível pela reflexão e fixado
no nome que lhe é atribuído: a Forma (Rep. X 596a). É deste modo que a alma passa, do “duro” à “dureza” — tal
como do “mole” à “moleza” (inicialmente captadas através do tato) —, e de ambas à “contrariedade”, em si.
José Trindade Santos | 95
Conclusão
25
Ao sofista são atribuídas duas teses encadeadas: 1. havendo continuidade entre “sentir” e “opinar” (152c-168c); 2.
todas as opiniões são verdadeiras (170a-179d). O Efésio é julgado a partir das posições assumidas por discípulos seus
extremados, defensores de um “fluxismo catastófico”, impeditivo da estabilidade exigida pelo saber (179e-183b).
26
Contestamos a leitura do argumento por Cooper: “… o uso independente da mente é exclusivamente ilustrado pela
aplicação de conceitos aos objetos de mais de um sentido” … o que sugere que “o uso independente não inclui juízos
que aplicam a conceitos próprios dos objetos de um único sentido” (131). Não só a ambiguidade de ‘aisthêseis’—
admitida por Cooper (129) — não permite a distinguir ‘objetos’ e ‘sentidos’, como a discriminação das
sensopercepções não caracteriza de forma inequívoca um uso “independente” da alma. Se esta crítica for aceita, a
avaliação de L. Brown — “[Cooper] concede à [percepção] alguma capacidade cognitiva: a aptidão a identificar os
seus objetos próprios” (1993, 216) — aponta a tese que não deve ser aceita.
José Trindade Santos | 97
rejeitada, nem por isso dela decorre a irrelevância a das Formas, e muito
menos o abandono da teoria por Platão27.
O mesmo se passa com a crítica de J. Cooper à tradução e
interpretação de 184-186 por Cornford. Se, por um lado, a sua leitura do
argumento é muito mais generosa; por outro, a tese capital em que se
apoia a sua argumentação — de que as aisthêseis identificam os “objetos”
cognitivos independentemente da alma — é hoje peremptoriamente
rejeitada por diversos comentadores do diálogo (Fine 2017, 71, 72, n. 18;
Kahn 2014, 65; Kanayama 1987, 42, 48, n. 35, et al).
Ao mostrar que as sensopercepções se limitam a habilitar a alma a
fixar e usar conceitos e juízos, com vista à gestão da experiência individual
(186c) e, desejavelmente, à captação do mundo exterior, se tal progressão
for aceita, este argumento do Teeteto inverte a perspectiva pela qual o
Fédon, a República ou o Fedro abordam a cognição. A objeção de 186b2-3
mostra a trajetória seguida pela alma, se elevando das percepções aos
conceitos e daí às Formas, apontando a via a seguir para chegar à unidade
da consciência (186a7-b1, c2-4) e daí à tentativa de exploração da realidade
objetiva (186b-d; Kahn 2014, 66-68). Não mostra, porém, como esse
projeto será possível.
Deixando indefinido o âmbito dos “cálculos comparativos”
(analogismata), antes de tudo, a sensopercepção (aisthêsis) propriamente
dita é distinta da capacidade judicativa (“examinar”, “considerar”, etc.).
Esta será depois articulada com a razão (dianoia, logismos), apoiada na
linguagem, para poder chegar ao ser e daí à realidade objetiva. A conclusão
do argumento é clara: só pela via do “cálculo raciocinado” (syllogismôi)
27
Defendemos a interpretação “otimista” da teoria da reminiscência (Mênon 81c-86c; Fédon 72e-77a) segundo a qual
todos os homens terão acesso gradual ao Saber (Bostock, 1986, 69-70), apesar de poucos serem capazes de se
aproximar dele (Timeu 51e). Por exemplo, ao longo do argumento sobre os koina, Teeteto é ensinado a distinguir
diversos sentidos de aisthanomai: passando da concepção defendida por Protágoras (associando ‘perceber’ a ‘opinar’)
à abordagem restrita das “sensopercepções” e daí à extensão à ‘compreensão’ e ao ‘saber’ (186a-e).
98 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Referências
ARISTÓTELES. Sobre a alma. Tradução de Ana Maria Lóio. INCM. Lisboa 2010.
BROWN, L. Understanding the Theaetetus. Oxford Studies in Ancient Philosophy 11, 1993,
199-224.
28
As acutilantes críticas de Aristóteles a Platão relativamente à ‘imaginação’ (Da III.3, 428a25-428b9; Platão, Sph.
264b), são dirigidas num tom quase sarcástico; o que levará o intérprete a imaginar que o Estagirita terá submetido
a teoria do enunciado predicativo a um profundo escrutínio.
100 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
______. “Conflicting Appearances”. In: Proceedings of the British Academy 65, 1979, 69-11.
COOPER, J. M. “Plato on Sense Perception and Knowledge”. In: Phronesis 15, n. 2, 123-146
(=1999. In: Plato I, G. Fine (ed.). Oxford University Press, Oxford, 1970, 355-376).
FINE, G. (2017). “Plato on Grades of Perception: Theaetetus 184-186 and the Phaedo”. In:
Oxford Studies in Ancient Philosophy 53, 1934, 65-110.
______. “Conflicting Appearances: Theaetetus 153d-154b”. In: Form and Argument in Late
Plato. Oxford University Press, Oxford, 1996, 105-134.
______. “Protagorean Relativisms”. In: Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy, 10,
1994, 211–43.
KAHN, C. H. Plato and the post-Socratic Dialogue. Cambridge University Press. Cambridge,
2014.
______. “Some Philosophical Uses of ‘To Be’ in Plato”. In: Essays on Being. Oxford
University Press, Oxford, 2009=1981, 95-106.
LEE, M.-K. “The Theaetetus”. In: The Oxford Handbook of Plato. Fine, G. (ed.). Oxford
University Press, Oxford, 2011, 411-436.
PLATÓN, Teeteto. Introducción, traducción y notas de Marcelo Boeri. Losada. Buenos Aires,
2006.
ROBINSON, R. Forms and Error in Plato’s Theaetetus. Philosophical Review 59, 1950, 3-
30.
RYLE, G. “Logical Atomism in Plato’s Theaetetus”. In: Phronesis 35, 21-46, 1990.
——— . “Plato’s Parmenides. In Mind” 48, 129-151. (1965. In Studies in Plato’s Metaphysics.
Allen, R. (ed.). Routledge and Kegan Paul. London, 97-147), 1939.
TAYLOR, C. C. W. “Plato’ Epistemology”. In: The Oxford Handbook of Plato. Fine, G. (ed.).
Oxford University Press, Oxford, 2011, 165-190.
ZILIOLI, U. “The Wooden Horse: the Cyrenaics in the Theaetetus”. In: The Platonic Art of
Philosophy, Boys-Stones, G., El Murr, D., Gill, C. (eds). Cambridge University Press,
Cambridge, 2013, 167-185.
4
1
Doutorando em Filosofia pelo PPGFIL-UFRN e Graduando em Letras Clássicas pela UFPB. Endereço de correio
eletrônico: wesley.rennyer@hotmail.com
2
PLATO, Theaetetus, 189e. Aproveitamos para advertir o leitor de que todas as traduções para o português dos
trechos em grego e latim são de nossa autoria.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 103
3
“Le dialogue intérieur ne fait pas appel à la division de l'âme en parties. Une âme qui dialogue avec elle-même ne se
divise pas, elle se dédouble et rest même qu'elle-même lors de l’alternance entre questions et réponses” (DIXSAUT,
Platon. Paris: Vrin, 2003, p. 35).
104 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
4
HOMERO, Ilíada, XXII, v. 98.
5
Cf. LIDDELL-SCOTT. A Greek-English Lexicon. New York: Oxford University Press, 1996.
1996, p. 810.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 105
6
HOMERO, Ilíada, XXII, v. 122.
7
PLATO, The Sophist, 263e.
106 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
8
ARISTOTLE, De anima, 428b1.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 107
9
DA SILVA, Vicente F. “Transcendência do Mundo” In: Obras Completas. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 132, vol.
III.
108 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
10
“Se não é verdadeiro, é muito bem pensado” (BRUNO, Giordano. De gl’eroici furori. Milano: Mandadori, 2000, p.
170).
11
ARISTOTLE, De Anima, 427b14-15.
12
Ibid., 431a16-17.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 109
13
LUCANO. Guerra Civil. João Pessoa: Ideia, 2018, v. 135.
14
Assim escreve o filósofo de Clermont-Ferrand: “L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est
un roseau pensant” (PASCAL. Pensées. Paris: Librairie Delagrave, 1918, p. 10).
110 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
15
“[...] je ne puis concevoir l’homme sans pensée” (PASCAL, op. cit., p. 9).
Wesley Rennyer M. R. Porto | 111
16
A justificação lógica da definição “homem é lógos”, que se dá em razão da identidade do lógos como o pensamento,
e à qual fazemos aqui referência, pode ser esquematizada da seguinte maneira: “se todo homem é pensamento” {Ɐx
(Hx → Px)}, e “se todo pensamento é lógos” {Ɐx (Px → Lx)}, então, por transitividade da implicação, “todo homem
é lógos” {Ɐx (Hx → Lx)}. Trata-se de uma das formas perfeitas do silogismo aristotélico.
17
FLUSSER. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2004, p. 34.
18
“λέγω: le sens originel est ‘rassebler, cueillir, choisir’” (CHANTRAINE. Dictionnaire Étymologique de la Langue
Grecque. Paris: Klincksieck, 1999, p. 625).
19
Cf. Chantraine, op. cit., p. 625.
20
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 62.
112 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
21
ARISTOTLE, Politics, 1253a10.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 113
22
Na esteira de Platão, Aristóteles subscreve nos Tópicos (V, 133a20) que o homem era “um animal capaz de
conhecimento” (τὸ ζῴον ἐπιστήμης δεκτικὸν).
23
SEXTUS EMPIRICUS, PH, II, 26.
24
POLYBIUS, The Histories, VI, 6, 4.
25
TOMMASO D’AQUINO, La Somma Teologica, I, q. 85, a. 3.
114 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
26
“[...] ist der Mensch Vernunftwesen (animal rationale), so ist er es nur, sofern seine ganze Menschheit
Vernunftmenschheit ist – latent auf Vernunft ausgerichtet oder offen ausgerichtet auf die zu sich selbst gekommene,
für sich selbst offernbar gewordene und nunmehr in Wesensnotwendigkeit das menschheitliche Werden bewusst
leitende Entelechie” (HUSSERL, Edmund. “Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie”. In: Gesammelte Werke (Band VI). Hrsg. von Walter Biemel. Haag: Martius Nijhoff, 1976, p. 13).
Agradeço a André Correia (UFRJ) pelo auxílio com a tradução deste trecho em alemão.
27
ARISTOTLE, De Anima, 429b25.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 115
28
Ibidem, 430a.
116 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
29
ARISTOTLE, Politics, 1253a15.
30
Cabe assinalar que a circunstância de elaboração deste texto são os terríveis dias do mês de março e abril de 2021,
período da chamada segunda onda da Covid-19 no Brasil, na qual diariamente milhares de pessoas perderam suas
vidas para tão nefasta doença.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 117
relembrar quão frágil e efêmera é a nossa condição, lição que há muito nos
ensinou Homero, ao comparar o viver humano ao fenecer das folhas:
31
HOMERO, Ilíada, VI, vv. 146-149.
32
HOFMANNSTHAL. As palavras não são deste mundo. Tradução de Flávio Quintale. Belo Horizonte: Editora Âyiné,
2017, p. 55.
118 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
33
DK2B1.
120 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
34
EPICTETUS, Encheiridion, 8.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 121
35
PLATO, Protagoras, 345d.
36
ADRADOS. Líricos griegos: elegíacos y yambógrafos. Barcelona: Alma Mater, 1956.
122 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
37
Como brilhantemente escreveu Ortega y Gasset: “O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro dos seus erros, a
longa experiência vital decantada gota a gota em milênios / El verdadero tesoro del hombre es el tesoro de sus errores,
la larga experiencia vital decantada gota a gota em milenios” (ORTEGA Y GASSET. La Rebelión de las Masas.
Barcelona: Editorial Planeta, 1993, p. 35).
38
CICERO, De Oratore, II, 36.
124 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
39
THUCYDIDES, History of the Peloponnesian War, II, XLVII, 3.
40
Ibid., II, XLVII, 4.
41
THUCYDIDES, History of the Peloponnesian War, II, XLIX, 6.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 125
42
Ibid., II, L.
43
PLUTARCH, Plutarch’s Live: Pericles, XXXVI, 1.
44
Ibid., XXXVIII, 1.
126 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
[...] alteri censent [...] cum causae antecesserint non sit in nostra potestate ut
aliter illa eveniant, illas fato fieri, quae autem in nostra patestate sint, ab his
fatum abesse...
Wesley Rennyer M. R. Porto | 127
[...] outros pensam [...], quando as causas tenham antecedido, não esteja em
nosso poder, que por um meio ou por outro aconteçam diversamente, elas
serem produzidas pelo destino; quanto àquelas, no entanto, que estejam em
nosso poder, o destino afasta-se delas...45
45
CICERO, De Fato, XIX, 45.
128 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
46
TOMMASO D’AQUINO, La Somma Teologica, I, q. 86, a. 3.
47
THUCYDIDES, History of the Peloponnesian War, II, LIII, 3.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 129
[...] afirmavam que eram remédios eficazes, para tamanho mal, o beber em
abundância, o gozar intensamente, o ir cantando de um lado para outro, o
divertir-se por todas as formas, o satisfazer o apetite fosse lá do que fosse, e o
rir e o zombar do que acontecesse, ou pudesse acontecer. Como diziam, assim
130 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
faziam, da maneira que se lhes tornasse possível, de dia e de noite. Ora iam a
uma taverna, ora a outra; bebiam sem modos e sem comedimento. E mais
ainda o faziam na casa dos outros, obrigando-os a ouvir o que eles tivessem
vontade ou gosto de dizer. E podiam fazer isto sem maiores cuidados, porque
cada qual – quase como se não tivesse mais de viver – já havia deixado ao
abandono as suas coisas, assim como havia deixado ao abandono a própria
pessoa.48
48
BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Tradução de Raul de Polillo. Nova Fronteira, 2018, p. 32.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 131
luto que desola49. À vista disso, talvez não nos pareçam tão severos os
conselhos de Sêneca, que em suas Epistulae ad Lucilium escreve: “Lança
fora todos [os vícios] que laceram o teu coração; se não puderes de
nenhuma forma os extrair, deves arrancar, junto com eles, teu próprio
coração. Expulsa precipuamente os prazeres e considera-os
odiosíssimos...” (Proice quaecumque cor tuum laniant, quae si aliter
extrahi nequirent, cor ipsum cum illis revellendum erat. Voluptates
praecipue exturba et invisissimas habe...)50.
Se virmos a razão como princípio do homem, isto é, como instância
a partir da qual o homem torna-se o que é e como potência por meio da
qual ele se autodetermina enquanto homem, então a usurpação dos
prazeres sobre a liderança das escolhas humanas só poderá resultar,
queira-se ou não, na negação do estatuto ontológico do homem e na
desagregação dos fundamentos da sua liberdade. Quando Sêneca
considera os prazeres odiosos, em sentido superlativo (invisissimas), ele o
faz justamente porque eleger os prazeres imoderados como guia da vida
desumaniza o ser humano, iguala-o às bestas, conspurca sua alma e
depaupera seu espírito.
Na vida filosófica, para a qual afastamento e solidão são imperativos
– posto que o deserto é o adubo das belas ideias –, a escalada da primazia
dos prazeres é inversamente proporcional à elevação do horizonte de
contemplação da alma, que jamais pode prescindir de ocupar-se
conspicuamente com as coisas do espírito. Platão, que como nenhum outro
filósofo percebeu tal problema, admoestou a todos dizendo:
[...] ἡ τοῦ ὡς ἀληθῶς φιλοσόφου ψυχὴ οὕτως ἀπέχεται τῶν ἡδονῶν τε καὶ
ἐπιθυμιῶν καὶ λυπῶν καὶ φόβων, καθ’ ὅσον δύναται, λογιζομέμη ὅτι, ἐπειδάν τις
49
Isso, é claro, quando o resultado não é a morte de quem sacrificou a prudência no altar da fruição desmedida e
inconsequente dos prazeres.
50
SENECA, Epistulae Morales, LI, 13.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 133
σφόδρα ἡσθῇ ἢ φοβηθῇ ἢ λυπηθῇ ἢ ἐπιθυμήσῃ, οὐδὲν τοσοῦτον κακὸν ἔπαθεν ἀπ’
αὐτῶν ὧν ἄν τις οἰηθείη [...] ἀλλ’ ὃ πάντων μέγιστόν τε κακὸν καὶ ἔσχατόν ἐστι,
τοῦτο πάσχει καὶ οὐ λογίζεται ἀυτό.
[...] a alma do verdadeiro filósofo, portanto, abstém-se dos prazeres, dos
desejos, das aflições e dos temores, tanto quanto é possível, dando-se conta
que: sempre que alguém desfrute dos prazeres, tema, aflija-se ou deseje em
excesso, ele não sofre nenhum tão vasto mal dentre os quais alguém poderia
presumir [...] mas o maior de todos e o mais extremo mal que existe, isso ele
sofre e não se dá conta.51
51
PLATO, Phaedo, 83b-c.
52
PLATO, Phaedo, 83c.
134 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Referências
53
HOMERO, Ilíada, VII, vv. 487-488.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 135
EPICTETUS. The discourses as reported by Arrian, The manual, and Fragments. Translated
by W. A. Oldfather. London: Harvard University Press, vol. II, 1952.
LEÃO, E. C. Filosofia Grega – Uma introdução. Rio de Janeiro: Daimon Editora, 2010.
HOFMANNSTHAL, Hugo von. As palavras não são deste mundo. Tradução de Flávio
Quintale. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017.
HUSSERL, Edmund. “Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie”. In: Gesammelte Werke (Band VI). Hrsg. von Walter Biemel.
Haag: Martius Nijhoff, 1976.
LIDDELL, H. G.; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. New York: Oxford University
Press, 1996.
136 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
LUCANO. Guerra Civil. Tradução de Hermes O. D. Vieira. João Pessoa: Ideia, 2018.
ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Masas. Barcelona: Editorial Planeta, 1993.
PASCAL. Pensées. Édité par Ernest Havet. Paris: Librairie Delagrave, 1918.
PLATO. Euthyphro, Apology, Crito, Phaedo, Phaedrus. Translated by Harold North Fowler.
London: Harvard University Press, 2005.
1
Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP. E-mail: mawerle@usp.br
138 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
2
GADAMER, H. G. “Das Problem der Geschichte in der neueren deutschen Philosophie”. In: Gesammelte Werke 2:
Hermeneutik II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1986, pp. 34-35.
3
HEGEL, G. W. F. “Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie” [vol. 18]. In: Werke [in 20 Bänden], Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1986, p. 30.
140 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
como for, o termo “sistema” não pode ser banalizado e ser aplicado a
qualquer estrutura de pensamento, apenas pelo fato de que é mais ou
menos coerente. Não é isso que faz uma filosofia ser um sistema.
No mundo grego, já antes de Platão, com Heráclito e Parmênides, ou
mesmo com o primeiro pensador de todos, Tales de Mileto, a aurora do
pensamento se pôs na chave de uma interrogação que, por sua própria
natureza, colocou em movimento algo como uma tradição. Os fragmentos
aparentemente simples de Tales: “tudo é água” e o “tudo é um” [en kai
panta] de Heráclito já nos remetem a uma espécie de contraposição
interna, de uma interrogação, de um “espanto” [thaumázein] que requer
e solicita um desdobramento, uma busca ordenada por um elo de ligação
entre o todo e as partes, ou seja, um movimento de pensamento focado na
questão mesma, enquanto um puro pensar.
Mais claramente, porém, essa dinâmica se apresenta em Platão, que
é propriamente o pai da filosofia. No fundo, toda a filosofia ocidental é, em
sua raiz, platônica, e nunca deixamos de ser platônicos. Em Platão, a
prática pensante do estabelecimento da filosofia como ideia, nas perguntas
sobre o belo, o bem e o verdadeiro: “o que é isto, o belo?”, “o que é isto, o
bem?” e “o que é isto, o verdadeiro?” incorpora necessariamente um
processo dialético ou dialógico, que lida constantemente com a relação
entre a consciência e a consciência de si. Como já ressaltou muito bem
Heidegger, em Que é isto – a filosofia?, no gesto platônico estão atuando
duas coisas: o was e o wie. “Não apenas aquilo que está em questão, a
filosofia, é em sua proveniência grego, mas também o modo como nós
perguntamos; o modo como nós ainda hoje perguntamos é grego.
Perguntamos: o que é isto ...? isso soa em grego: ti estin. A pergunta sobre
o que algo é, permanece, contudo, ambígua”4 Uma coisa é dizer que isto
4
HEIDEGGER, M. Was ist das – die Philosophie?. Stutttgart: Klett-Cotta, 2008, 12. Ed, pp. 8-9.
Marco Aurélio Werle | 143
5
Remeto ao clássico estudo de SCHUHL, P-M. Platon et l’art de son temps (arts plastiques). Paris: PUF, 1952, que
abordei em meu artigo “Platão e as vanguardas artísticas do século XX”. In: Artefilosofia, vol. 6, n. 10, 2011
(https://periodicos.ufop.br/raf/article/view/614). Schuhl aponta para algumas relações que Platão tinha com
princípios artísticos egípcios.
144 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
6
HEGEL, op. cit., pp. 62-64.
146 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
e mesmo uma certa sensibilidade, que de início não se coloca para quem
começa a estudar filosofia e um filósofo. O estudante ou pesquisador é
forçado a simplesmente aceitar determinado filósofo como uma
autoridade, sem saber porque o está fazendo. Mas, isso ocorre também em
outras áreas de saber, nas ciências em geral, quando se lida com uma
teoria da chamada ciência básica. Há que lidar com um aprendizado e
confiar no que é transmitido por quem já realizou boa parte do percurso
de investigação, além do simples fato de que há uma tradição que está
acima de todos nós. No fundo, ninguém é capaz de realizar de modo pleno,
mesmo com muitos anos de estudo, uma apreensão do todo de uma
tradição a partir de um filósofo ou de um grupo deles. A tradição
simplesmente está acima de nós, mortais, inseridos numa finitude,
localizados numa época. Aprender o todo por uma época seria nada mais
nada menos do que se tornar um novo filósofo...
Certamente não se exclui a possibilidade de, a partir do estudo atento
de uma única filosofia, se conseguir dar, parcialmente, conta do todo da
tradição e fazer jus ao conceito pleno de filosofia. Ou, mesmo que não se
dê conta, há que manter isso como um ideal a ser cultivado. Isso pode
acontecer especialmente quando o filósofo em questão é um desses pilares
fundamentais da história da filosofia. Mas, então, a abordagem desse único
filósofo tem de ser feita na medida em que ele dialoga com o todo,
principalmente com o que o antecedeu, mas, também, com o que o
sucedeu, a partir do que o influenciou e a partir do legado e herança que
deixou. Ambas as direções interessam: o passado e o futuro, desde o
presente.
No entanto, se, de um lado, considerei até aqui a dinâmica da filosofia
ocidental europeia anterior ao século XIX e concluí que não cabe
propriamente considerar pensamentos orientais ou africanos como sendo
filosofia em sentido estrito e rigoroso, é preciso, por outro lado, reconhecer
Marco Aurélio Werle | 151
7
Cf. especialmente o primeiro capítulo da primeira parte de CASSIRER, E. Philosophie der symbolischen Formen [vol
1]. Darmstadt: Primus, 1997, pp. 55-90.
152 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Referências
CASSIRER, E. Philosophie der symbolischen Formen [vol 1]. Darmstadt: Primus, 1997.
GADAMER, H. G. “Das Problem der Geschichte in der neueren deutschen Philosophie”. In:
Gesammelte Werke 2: Hermeneutik II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1986.
HEGEL, G. W. F. “Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie”. In: Werke [in 20
Bänden]. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.
HEIDEGGER, M. Was ist das – die Philosophie?. Stutttgart: Klett-Cotta, 12. Ed., 2008.
SCHUHL, P-M. Platon et l’art de son temps (arts plastiques). Paris: PUF, 1952.
1
O presente texto é resultado dos estudos de minha tese de doutorado. Ele é uma versão ampliada de um artigo de
minha autoria intitulado “Hegel e o λόγος heraclítico” (CORREIA, André F. G. In: Revista Aufklärung, vol. 8, nº 3,
2021, no prelo). O acréscimo substancial, além de significativos ajustes e supressões, acabaram por redirecioná-lo
em seu sentido e propósito, donde a necessidade de alteração do título.
2
Doutorando em filosofia pela UFRJ. Bolsista CNPq. Contato: felgorreia@hotmail.com
158 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
3
HEGEL, G. F. W. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie I (Werke, Band 18). Suhrkamp Verlag: Frankfurt
am Main, 1986, p. 320.
4
Cf. HEIDEGGER, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental. Lógica: a doutrina heraclítica do lógos. Trad.
Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Relume Dumará, 2002, p. 124. Obs.: As referências aos fragmentos
de Heráclito seguirão a numeração padrão Diels-Kranz (DK).
André Felipe Gonçalves Correia | 159
5
Com efeito, é o que escreve Burnet, em 1892, acerca da dificuldade que permeia a letra de Heráclito: “Alguns desses
fragmentos estão longe de ser claros e é provável que o significado de boa parte deles nunca seja recuperado. Assim,
voltamo-nos para os doxógrafos à procura de indícios, mas, infelizmente, no caso de Heráclito eles são menos
instrutivos do que nos outros” (BURNET, John. A aurora da filosofia grega. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 158).
6
HEGEL, op. cit., pp. 324-25.
7
Id., Introdução à história da filosofia. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 109. Daqui em
diante, faremos referência a esta obra mediante datação das lições.
160 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
8
Id., Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, 5ª edição, Petrópolis: RJ, Vozes: Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008, p. 35.
9
Id., op. cit., p. 93. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
10
Id., ibid., p. 103.
11
Id., ibid., p. 104.
André Felipe Gonçalves Correia | 161
12
Id., ibid., p. 94. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
13
Escreve Hegel, na Fenomenologia: “Assim o mundo supra-sensível, que é o mundo invertido, tem, ao mesmo
tempo, o outro mundo ultrapassado, e dentro de si mesmo: é para si o invertido, isto é, o invertido de si mesmo; é
ele mesmo e seu oposto numa unidade. Só assim ele é a diferença como interior, ou como diferença em si mesmo, ou
como infinitude” (Id., op. cit., p. 128). Toda extrusão, que em sua imediatidade se mostra finita, já é, in concreto, sua
inversão, ou seja, intrusão que se expõe, portanto, interioridade viva, infinita, eterna mediação consigo. Cf.
KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. Trad. José Miranda Justo, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009. Obra cujo mote
central é a acusação de pseudomovimento da Ideia hegeliana.
14
Id., op. cit., p. 106. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
15
HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários Alexandre Costa. São Paulo:
Odysseus Editora, 2012, p. 111. Utilizaremos preponderantemente esta tradução, salvo em algumas ocasiões, as quais
serão devidamente referidas.
16
Cf. o texto de minha autoria intitulado Hölderlin e a grande palavra de Heráclito (CORREIA, André F. G. In: Revista
Trágica, vol. 13, nº 2, 2020, pp. 11-42).
162 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
17
Nas lições de 1825/26: “Sistema tornou-se, na nossa época, uma palavra de reprovação porque se lhe associa a
noção de que ele se atém a um princípio unilateral. Mas o significado genuíno do sistema é totalidade, e ele só é
verdadeiro enquanto tal totalidade, a qual começa no mais simples e, mediante o desdobramento, se faz sempre mais
concreta” (HEGEL, op. cit., p.111). É o que diz o étimo grego σύστημα (“reunião”, “conjunção”).
18
Conforme escreve Cesarino: “No hay dos mundos; el ente es uno, y un más allá del ente no existe [...] La doctrina
hegeliana se caracteriza por el modo como el Uno se concilia con lo múltiple, como el universal se concilia con el
particular. En la conciliación, estos «pares» no desaparecen, antes su contrario es conservado en el movimiento
dialéctico” (CESARINO, Heleno. “Hegel y la locura infinita de la finitude”. In: Cuadernos Salmantinos de Filosofía, Nº
22, 1995, pp. 213-14).
19
Cf. EMPIRICUS, Sextus. Work in four volumes. Against the Logicians. Translated by R. G. Bury. Cambridge:
Harvard University Press, vol. II, 1967, p. 72.
20
HERÁCLITO, op. cit., p. 109.
André Felipe Gonçalves Correia | 163
21
Id., ibid., p. 141.
22
HEGEL, G. F. W. Enciclopédia das ciências filosóficas. Trad. Paulo Menezes, com colaboração de José Machado. São
Paulo: Loyola, 1995, p. 369.
164 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
23
Id., op. cit., p. 30.
André Felipe Gonçalves Correia | 165
24
Vale acentuar aqui a pertinência do vocábulo “existência” para traduzir Dasein. O étimo latino exsistere, composto
pelo prefixo ex- (“ir para fora”, “sair”) e pelo verbo sistere (“tomar posição”), implica o mesmo que o composto do
advérbio da (“aí”, “em uma determinada posição”) e do verbo sein (“ser”). Ambos comportam o sentido de emersão
e aparição.
25
Hegel se utiliza dos verbos entwickeln (desenvolver) e entfalten (desdobrar) no mesmo sentido, dado que wickeln
significa “enrolar”, “embrulhar”, de sorte que entwickeln, “desenrolar”, “desembrulhar”, etc. Importante aqui é ater-
se à literalidade do termo “des-envolvimento”.
26
HEGEL, op. cit., p. 99. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
27
Leia-se “experiência” aqui no sentido do verbo erfahren. Trata-se, inclusive, da escolha de Hölderlin para traduzir
o verbo grego μανθάνω, na tradução que fizera da respectiva ode pindárica. Verbo cuja força semântica, além dos
sentidos de “experimentar”, “experienciar” e “vivenciar”, reúne também os de “aprender”, “apreender” e
“compreender”. Em pauta está uma saga de formação. Cf. o texto de minha autoria intitulado Gênese e Formação: o
arcaico sob os vieses helênico e germano-romântico (CORREIA, André F. G. In: Homem & Natureza: entre o alvorecer
antigo e o crepúsculo moderno. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020, pp. 176-77).
28
HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: Os pensadores originários. Edição bilíngue com tradução de Emmanuel Carneiro
Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 87.
166 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
29
Conforme escreve este último, em De Mysteriis (195.10-196.1): “Nós devemos ter em mente que o universo é um
único ser vivo. As partes dentro dele têm lugares distintos, mas se pressionam umas para as outras devido à sua
natureza una. A força de coesão no universo e a causa da sua junção fazem com que as partes se fundam umas com
as outras” (JÂMBLICO, De Mysteriis. Dillon, J., Clarke, E.C. e Hershbell, J. [ed. trad. e introd.]. Leiden: Brill, 2003, p.
221). Para uma leitura sinóptica, porém apurada, do vínculo em pauta, cf. GANDILLAC, Maurice. “Hegel et le
néoplatonisme”. In: Hegel et la pensée grecque. Org. Jacques D’hondt, Paris: PUF, 1974, pp. 121-131. Obs.: Há uma
tradução para o português em Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03, nº. 02, 2012.
30
HEGEL, op. cit., pp. 103-04. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
André Felipe Gonçalves Correia | 167
pensar, o qual, por seu turno, nada tem a ver com uma atividade aleatória,
uma vez que o pensamento, enquanto proveniência e meta do pensar, já
guarda em si todo o a se pensar, logo, também toda a produção real, a qual
só se despoja da alienação na medida em que o retorno assume a figura do
saber de si enquanto totalidade. O pensamento que se libera no pensar é,
dessarte, expressão da necessidade. Esta, em sua abstração, já tende a
liberar-se, porquanto já pressupõe a mediação da liberdade, assim como
esta, a mediação da necessidade. O pensamento concreto é, por
conseguinte, a produção efetiva de sua tendência na e pela liberdade de sua
atividade. É forçoso, pois, reconhecer na livre formação do Espírito a
repercussão da suma necessidade, a saber, a do tornar-se o que é. A tônica
especulativa aqui parece ser das mais severas, mas só para o
entendimento. É o que profere Hegel nas lições do semestre de inverno de
1823/24: “Temos de dizer que o Espírito é livre na sua necessidade”31. E
mais à frente:
Sem dúvida, é com maior dificuldade que nos aproximamos desta unidade, e
desta unidade não quer acercar-se o entendimento; mas deve aspirar a ela e
consegui-la. É sempre mais fácil dizer que a necessidade exclui a liberdade et
vice versa do que insistir no concreto. 32
31
Id., ibid., p. 109.
32
Id., ibid.
33
HERÁCLITO, op. cit., p. 83. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
168 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
34
Id., op. cit., p. 115.
35
O que já implica a dimensão privilegiada do homem, como pensante, assim como a dos demais entes. Isso levou
Charles Kahn, embora não sob enfoque hegeliano, a interpretar o fragmento sob a perspectiva de um
“pampsiquismo” (KAHN, Charles. A arte e o pensamento de Heráclito. São Paulo: Paulus, 2009, p. 160).
36
O termo ἁρμονίη (grafia jônica) advém do verbo ἁρμόζω (“compor”, “ajuntar”). A divergência, portanto, já está
pressuposta em sua própria definição, dado que só se compõe ou se ajunta sob o suposto da dispersão. Um bom
emprego de seu sentido encontra-se na Teogonia (v. 937), de Hesíodo, em que Harmonia aparece como prole de Ares
e Afrodite.
André Felipe Gonçalves Correia | 169
37
Na introdução da Ciência da Lógica, Hegel contrapõe a sua lógica especulativa (da qual atua a razão) à lógica formal
(da qual atua o entendimento). Ao contrário dessa, aquela reúne as determinações cindidas e supostamente
subsistentes por si mesmas no mesmo passo em que também resguarda a vitalidade da diferença, de sorte que supera
e guarda a formalidade da lógica tradicional (pautada no “princípio de não-contradição”). Em jogo está o estatuto da
lógica em seu sentido originário: o grego λόγος – oriundo do verbo λέγω, étimo cujo sentido primeiro significa
“reunir”, “recolher”, sob um determinado critério ou unidade de sentido, e não como um amontoado a esmo, donde
também a acepção de “concentrar”, isto é, de centro comungado. É o que consta no fr. B50, conservado por Hipólito,
em acepção propriamente filosófica: “Não de mim, mas do λόγος tendo ouvido, é sábio homologar: tudo é um”
(HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: Pré-socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Nova Cultura,
1999, p. 93). O λόγος é com-um. A contrariedade de “tudo e um” (ἓν καὶ πᾶν) diz, em última e primeiríssima instância,
a totalidade una e a unidade total, as quais, não tomadas in abstracto, encerram o conteúdo vivo do Espírito, in
concreto. Por conseguinte, toda determinidade formal ou transcendental, de per si, resume-se a má abstração, isto é,
a formalizações vazias e unilaterais, sem conteúdo efetivo; acerca das quais, escreve Hegel: “Na medida em que elas
se separam como determinações firmes e não são mantidas juntas em unidade orgânica, elas são formas mortas e o
espírito não habita nelas, espírito o qual é sua unidade concreta, que vive. Mas, com isso, elas estão desprovidas do
conteúdo sólido – de uma matéria que fosse nela mesma um conteúdo. O conteúdo que falta nas formas lógicas não
é outro senão uma base e uma concreção firmes dessas determinações abstratas; e costuma-se procurar uma tal
essência substancial para elas fora delas”; e completa, agora em relação à sua lógica especulativa: “A própria razão
lógica, porém, é o substancial ou o real, que mantêm unidas em si todas as determinações abstratas e que é a unidade
sólida, absolutamente concreta delas” (HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica 1. A Doutrina do Ser. Trad. Christian G.
Iber, Marloren L. Miranda e Federico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2016, pp. 50-51).
170 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
38
Id., op. cit., p. 100. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
39
HERÁCLITO, op. cit., p. 85. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
40
Atente-se aqui ao étimo latino speculum, donde provém “o especulativo” (das Spekulative) de Hegel, assim como
o vocábulo “espelho”, em português.
André Felipe Gonçalves Correia | 171
41
HEGEL, op. cit., p. 40.
42
Id., ibid., pp. 27-28. Conforme escreve Christian Iber, professor da Universidade Livre de Berlin e tradutor da
Ciência da Lógica no Brasil: “A lógica formal comete, para Hegel, uma traição ao logos, à ‘razão do que é’, como Hegel
diz com Heráclito, porque ela o esquece como aquilo que permeia todas as determinações do pensamento. A lógica
dialética é assim, por um lado, uma alternativa à lógica formal, por outro, ela a integra em si. Essa dupla posição
frente à lógica formal resulta da pressuposição de Hegel segundo a qual todos os conceitos determinados são
determinações do único conceito no singular. Esse conceito no singular é o equivalente hegeliano ao conceito
tradicional do logos que tudo perpassa. Todos os conceitos determinados no seu desenvolvimento devem ser
pensados como autodeterminação do conceito. A Lógica de Hegel é uma metafísica do conceito racional” (IBER,
Christian. “O que Hegel propriamente quer com sua Ciência da Lógica? Uma pequena introdução à Lógica de Hegel”.
In: Leituras da Lógica de Hegel. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017, pp. 88-89).
172 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Certamente é preciso conceder que o conceito como tal ainda não é completo,
mas tem de se elevar à ideia, a qual somente é a unidade do conceito e da
realidade, como, a seguir, tem de resultar através da natureza do próprio
conceito. Pois a realidade que ele se dá não pode ser acolhida como algo
externo, mas tem de ser derivada a partir dele mesmo.43
43
HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica 3. A Doutrina do Conceito. Trad. Christian G. Iber e Federico Orsini. Petrópolis,
RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2018, p. 48.
44
Id., op. cit., p. 92.
45
Cf. CAVALCANTE, Márcia de Sá. “Pelos caminhos do coração”. In: HÖLDERLIN, F. Reflexões. Trad. Márcia de Sá
Cavalcante e Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 13.
46
HERÁCLITO, op. cit., p. 95.
André Felipe Gonçalves Correia | 173
47
Id., ibid., p. 123.
48
O ciceão é uma espécie de mingau, mencionado já na Ilíada (XI, v. 638 ss.).
49
Cf. o comentário de Charles Kahn (KAHN, op. cit., pp. 298-300).
50
HEGEL, op. cit., p. 94. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
51
Escreve Aristóteles, na Metafísica (1051a3): “O ato é anterior à potência e a todo princípio de mudança”
(ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Giovani Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 425). Prioridade tal que de
modo algum dispensa a potência. A nível de ilustração, tomemos o exemplo do germe, no campo da botânica, repetido
174 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
insistentemente por Hegel em suas lições. Nele, a árvore já se encontra pronta, não obstante inexistente. Trata-se de
uma possibilidade real em tendência efetiva. No caso do homem, tal como veremos adiante, ato é pensamento, e,
enquanto efetivação, pensamento que se apercebe como tal, ou seja, ser-para-si (Fürsichsein) efetivo. Os diversos
estratos de existência em geral são suprassumidos no próprio pensar, cuja repercussão patenteia-se na produção
histórica da humanidade. Assim, escreve Aristóteles mais à frente (1051a-31-33), tomando como exemplo a
geometria, em que mesmo a evidência dos teoremas é necessitária de atualização: “O pensamento é ato. E do ato
deriva a potência, e é por isso que os homens conhecem as coisas fazendo-as” (Id., ibid., p. 427). Todo pensar já é
fazer e todo fazer já é pensar, em dinâmica circular.
52
HEGEL, op. cit., p. 107. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
53
Id., ibid.
54
Do grego πόλεμος (“guerra”, “combate”, “luta”).
André Felipe Gonçalves Correia | 175
55
HERÁCLITO, op. cit., p. 91.
56
Conforme a transmissão de Simplício, em sua Física (24, 13), e enumerado posteriormente por Diels como o fr.
B1: “Princípio dos seres... ele disse que (era) o ilimitado [ἄπειρον]... Pois donde a geração é para os seres, é para onde
também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça [δίκην] e deferência uns aos
outros pela injustiça [ἀδικίας], segundo a ordenação do tempo [χρόνου]” (ANAXIMANDRO. “Fragmentos”. In: Pré-
socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1999, p. 50).
57
“A primeira ἀδικία, lesão sem reparo”, conforme anota Schüler em sua interpretação do fr. B1 de Anaximandro,
“foi romper a unidade, introduzir limites no todo sem fendas, suscitar a determinação (πέρας)” (SCHÜLER, Donaldo.
Origens do discurso democrático. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 27). Atente-se, contudo, para o caráter propriamente
filosófico dessa punição. A “ἀδικία primeira”, originariamente, não remete à alçada do gerado, mas, ao contrário, à
articulação arcaica da e com a própria justiça do ἄπειρον. Trata-se, portanto, de uma cisão originária e irreparável no
seio mesmo da unidade. A ênfase de Anaximandro parece recair, entretanto, no agravamento subsequente dessa
tensão, isto é, no âmbito da geração e da efetividade. Aqui, no elemento da sucessão historial (que o fr. B1 nomeia de
“ordenação do tempo”, “cronologia”), a pureza da unidade dá mostras de sua dissolução de modo acentuado, ao que
176 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
responde com a dissolução de sua dissolução, de maneira a asseverar a prioridade lógica em relação ao proceder
cronológico, fadado à retratação goela de Κρόνος abaixo, como narra a Teogonia hesiódica (vv. 459-60). É o que
observa Schüler mais à frente: “A prioridade lógica do ἄπειρον não nos obriga a pensar em prioridade cronológica”
(Id., ibid., p. 35); ou seja, aquilo que cabe às peripécias historiais diz apenas o tardio e evanescente. Essa tônica
epigonal do proceder ôntico não é de modo algum desconsiderada por Heráclito, todavia, tampouco lhe é furtada
uma concatenação mais radical, capaz de lhe conferir um legítimo estatuto de justiça ontológica. A prerrogativa, em
última e primeira instância, não reside unicamente na “prioridade lógica do ἄπειρον”, e tampouco naquilo que poderia
ser compreendido como sua inversão, ou seja, uma “prioridade cronológica”. A radical dissolução assinala, em
verdade, uma concatenação absoluta de toda e qualquer distinção e contraposição categorial ou principial, o que não
implica a isenção de discrições e de delimitações, senão enquanto empreendimento meramente unilateral. O fr. B23
de Heráclito evidencia justamente aquilo que não coube à ênfase de Anaximandro: “Ao nome da justiça [δίκης] não
ligariam, se tais coisas não existissem” (HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu
(dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 45). Essas “coisas” das quais dependem o referencial e o próprio
aparecimento da justiça – de acordo com o contexto donde o fragmento foi retirado, a saber, a obra Stromata (IV,
10), de Clemente de Alexandria – dizem respeito aos atos de injustiça, sem os quais os atos de justiça não seriam
reivindicados pelos homens. Note-se que – para além da significação jurídico-moral de tais atos – é apenas pelo apelo
do negativo que o sentido total de justiça aparece. A força do negativo, em sua efetividade, cumpre o acabamento de
liame da unidade e assim o faz como o lugar de gênese do Uno. É o que revela a forma verbal ᾔδεσαν (“ligariam”, na
tradução de Schüler), a qual pode advir de οἶδα (“conhecer”) ou de δέω (“ligar”). Desta feita, só na medida em que
os homens (no fragmento sob a forma do pronome oculto “eles”) atentam e atendem a tal liame originário é que
homologam, isto é, que dizem o mesmo que diz o λόγος – vitalidade reunidora de todas oposições e anteposições.
58
Como sublinha Charles Kahn: “É natural suspeitar de uma alusão velada às palavras de Anaximandro na
justaposição entre Conflito e Justiça que encontramos aqui [i.e., no fr. B80]” (KAHN, op. cit., p. 319).
59
É o que também observa Burnet: “A identidade que Heráclito explica como a que consiste na diferença é,
justamente, a da substância primordial, em todas as suas manifestações. Essa identidade já tinha sido percebida pelos
milésios, mas eles encontraram um obstáculo na diferença. Anaximandro tratara o conflito entre os contrários como
uma ‘injustiça’. O que o próprio Heráclito procurou mostrar foi, inversamente, que essa era a justiça suprema”
(BURNET, op. cit., p. 160).
60
HEGEL, op. cit., p. 44.
André Felipe Gonçalves Correia | 177
61
HERÁCLITO, op. cit., p. 83. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
62
Atente-se ainda às palavras de Lebrun: “Hegel não elogia Heráclito por haver trazido a primeiro plano o conflito e
a cisão, mas por ter vislumbrado que o conflito é o avesso de uma totalização em descanso, de uma harmonia
imperialmente desenvolvida. O heraclitismo, se assim quisermos, torna-se pois um pacifismo irônico. Não é a luta
em si mesma que é justiça, porém a justiça que vem à luz através da luta” (LEBRUN, Gerard. O avesso da dialética.
Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia da Letras, 1988, p. 102).
63
Em questão está a suprassunção do sentido platônico de εἶδος e ἰδέα, tal como tratado no início do texto. Sentido
tal que não comporta a concreção de forma e conteúdo, ou seja, de essência e aparência; ao menos em suas últimas
consequências. A verdadeira existência do Espírito, enquanto experiência que faz sobre si mesma, se despoja dessa
cisão, e isso na medida em que sua exposição coincide com o saber de si, ou seja, como autêntica ciência. “Aqui”,
escreve Hegel na Fenomenologia, “a aparência se torna igual à essência” (HEGEL, op. cit., p. 82).
178 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
64
Id., op. cit., p. 98.
65
Id., op. cit., p. 40.
66
Donde τροπαί (“inversões”), do fr. B31.
André Felipe Gonçalves Correia | 179
67
HERÁCLITO, op. cit., p. 41.
68
Não confundir com Gewissen, cujo prefixo ge- implica precisamente o sentido do “coletivo” e do “comum”, porém,
conforme o emprego do vocábulo, sob acepção moral; ao passo que o prefixo be- atrela-se mais a um sentido
epistemológico, tal como denota o adjetivo bewusst.
180 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
69
HEGEL, op. cit., p. 132.
André Felipe Gonçalves Correia | 181
70
Id., ibid., p. 135.
182 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
71
Tal como escreve Hyppolite, acerca da noção de Bildung: “A elevação do eu singular até o eu da humanidade, é, na
sua significação mais profunda, o que Hegel denomina ‘cultura’ (Bildung). Mas essa cultura não é somente aquela do
indivíduo, e não interessa apenas a ele; além disso, é um momento essencial do Todo, do Absoluto”, desse modo,
continua, “quando a consciência progride de experiência em experiência, e assim estende seu horizonte, o indivíduo
se eleva à humanidade, mas ao mesmo tempo a humanidade se torna consciente de si mesma” (HYPPOLITE, Jean.
Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Trad. Sílvio Rosa Filho; prefácio de Bento Prado Jr. 2ª ed.
São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 58).
72
HEGEL, op. cit., p. 169. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
73
Id., ibid.
André Felipe Gonçalves Correia | 183
74
Conforme escreve Lima Vaz: “O caminho descrito pela Fenomenologia acompanha os passos da formação do
indivíduo para a ciência, ou, se quisermos, do homem ocidental para a Filosofia” (VAZ, H. C. de Lima. “Senhor e
Escravo: uma parábola da filosofia ocidental”. In: Revista Síntese, v. 8, n. 21, 1981, p. 16).
75
HEGEL, op. cit., p. 320.
184 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
76
Id, op. cit., p. 117.
André Felipe Gonçalves Correia | 185
77
Id, op. cit., p. 27.
78
HERÁCLITO, op. cit., p. 119.
186 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
79
Cf. nota 51.
80
HEGEL, op. cit., p. 102. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
81
Id., ibid., p. 109.
André Felipe Gonçalves Correia | 187
que em si tudo contém, voltada para si, livre. Esse nível do Eu, todavia, em
si mesmo se evade de um confinamento solipsista, porquanto visa-se a si
como uma singularidade de todo determinada – logo, sob uma trama de
relações e ligamentos –, em que nada de particular é enunciado por si só.
Assim, cada um dos outros também é um “Eu”. Conforme a Enciclopédia
das ciências filosóficas (§24): “O Eu é o puro ser-para-si, em que toda
particularidade está negada e suprassumida”82. O Eu é o pensar enquanto
ser pensante. Nele, à medida que se subtrai toda particularidade, também
se envolve e se conserva tudo. Cada homem é este receptáculo universal,
em tudo que faz ou deixa de fazer, porque sempre pensante. A tendência
do livre é aperceber-se como cada vez mais livre, isto é, como cada vez
mais universal; assim, o Eu em si mesmo já implica o reconhecimento de
um outro Eu, ou seja, de um Nós, o qual, decerto, assume outro nível de
determinação, porém enquanto ampliação e reunião, dinâmica. A
comunhão dos homens diz respeito a uma consequência necessária do
pensar, em que o cuidado de si, enquanto meramente singular, é diluído
em face de seu concrescimento coletivo, cultural. É o que consta na seção
VI da Fenomenologia: “A exigência dessa dissolução só pode dirigir-se ao
espírito mesmo da cultura, para que de sua confusão retorne a si como
espírito e atinja uma consciência ainda mais alta”83.
O que há de “mais alto” nesse concrescimento é o autoconhecer-se do
Espírito, que na experiência por excelência da consciência-de-si assume a
forma do saber filosófico, o qual, a um tempo, diz a verdade da Ideia que
se sabe a si mesma e o conhecimento consciente de si do cognoscível na
esfera humana. Com efeito, a comunhão dos homens é uma tendência
crescente da própria liberdade do Espírito, da qual a filosofia é o
testemunho na esfera do puro pensar. O filósofo, embora encetado e
82
Id., op. cit., p. 79.
83
Id., op. cit., p. 362.
188 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
84
Id., op. cit., loc. cit.
85
Conforme escreve Charles Taylor: “O homem, portanto, opõe-se inevitavelmente a si mesmo. Ele é um animal
racional, o que significa um ser vivo e pensante, e só pode ser pensante porque é um ser vivo. Contudo, as exigências
do pensamento colocam-no em oposição à vida, ao que há nele de espontâneo e natural, de modo que ele é levado a
dividir-se, a criar uma distinção e a discordar no interior de si mesmo, onde originalmente havia uma unidade”
(TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 33).
86
É o que acentua Lima Vaz: “Em outras palavras, será necessário que a verdade do mundo das coisas e da vida
animal passe para a verdade do mundo humano, ou a verdade da natureza passe para a verdade da história” (VAZ,
op. cit., pp. 16-17).
87
De acordo com as preleções de filosofia da arte: “Pode-se desde já afirmar que o belo artístico está acima da
natureza. Pois a beleza artística é a beleza nascida e renascida do espírito e, quanto mais o espírito e suas produções
estão colocadas acima da natureza e seus fenômenos, tanto mais o belo artístico está acima da beleza da natureza”
(HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001, p. 28).
88
HERÁCLITO, op. cit., p. 107.
André Felipe Gonçalves Correia | 189
escolas, mas que também aponta para algo mais decisivo, sobretudo por
aludir a um dos ditames do Oráculo de Delfos, que virá a ecoar mais à
frente em Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás todo o universo
e os deuses”. É de se notar, em primeiro lugar, que o verbo δίζημαι
(“buscar”) está sob a forma do aoristo indicativo passivo, o qual
comumente é vertido para as formas pretéritas, todavia, trata-se ainda do
aoristo, cujo aspecto verbal é o da ação pura, sem determinação quanto à
duração, donde o indicativo presente da tradução. Assim, aquele que busca
a si, haverá de conservar-se na busca. O desconcerto se dá no paradoxo,
pois buscar a si só se afigura como possível se de si o homem já estiver
ausente, alterado, algo que convocar-lhe-ia a ir ao encontro de si
ininterruptamente. Mas ir ao encontro já é também encontrar-se, pois já
sempre no e desde o buscado, em si. Não se trata, portanto, nem de mera
falta nem de mera repleção; ou, conforme o fr. B66, transmitido por
Hipólito, precisamente de ambos: “carência e saciedade”89. Em segundo
lugar, na medida em que o fragmento de Heráclito faz referência ao
Oráculo de Delfos90, além, é claro, de não se tratar de um enunciado
moderno, faz-se necessário considerar o que se segue à expressão γνῶθι
σεαυτόν, a saber, “o conhecimento do universo e dos deuses”.
Para a experiência grega, o universo diz respeito ao μακρόκοσμος, ao
passo que o homem, ao μικρόκοσμος. Ambas as instâncias, entretanto, têm
nos deuses seu patrocínio vital, de gênese, aprendizagem e manutenção.
Os deuses perpassam toda a operatividade do mundo natural e do mundo
espiritual, por conseguinte, também aquilo que diz respeito ao orgânico e
ao político. Mas os deuses, ao menos desde o cânone homérico, se
apresentam preponderantemente sob aspecto humano, ou seja, mediante
o ponto de encontro e relação entre mortais e imortais. Sob tal liame está
89
Id., ibid., p. 81.
90
Menções diretas ao entorno délfico aparecem ainda nos frs. B92 e B93.
190 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
91
HERÁCLITO, op. cit., p. 70.
92
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 29.
93
PÍNDARO. Epinícios e Fragmentos. Trad. Roosevelt Rocha. Curitiba: Kotter Editorial, 2018, p. 270.
94
Tal como observa Snell, o câmbio entre deuses e homens se dá sobretudo na esfera privilegiada do espírito, e não
nas demais virtualidades de ambos, em que ao mortal não cabe competir: “Quando Heráclito assinala as
reciprocidades cambiais entre deuses e homens, em pauta está a atividade do conhecimento” (SNELL, Bruno. Die
Entdeckung des Geistes: Studien zur Entstehung des europäischen Denkens bei den Griechen. Vandenhoeck &
Ruprecht Verlag, Göttingen, 2011, p. 91). Para um grego, uma competição entre deuses e homens está fora de questão.
A proveniência comum não tem que ver com dissolução das delimitações e competências específicas. Tal como
assevera Píndaro no verso seguinte da mesma Ode Nemeia: “E a partir de uma só mãe [ματρὸς] respiramos todos.
Mas nos separa todo um distinto poder [δύναμις]” (PÍNDARO, op. cit., loc. cit.). Não obstante a distinção, comungam
da mesma concatenação de origem, donde a possibilidade de igual homologação. Note-se, ademais, aquilo que parece
ser um contraponto especulativo do referencial paterno no fr. B53, a saber, a hyponoia da mãe, que assume na ode
pindárica o mesmo jaez de gênese e geração consaguínea.
André Felipe Gonçalves Correia | 191
95
HEGEL, G. F. W. Enciclopédia das ciências filosóficas (vol. 3, A filosofia do espírito). Trad. Paulo Menezes, com
colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995, p. 7.
96
HERÁCLITO, op. cit., p. 117.
192 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
particular, conforme tratado no fr. B2. E isso tanto mais quando se trata
da concreção universal em que o λόγος desperta para si, isto é, na filosofia
como disciplina do conceito, do pensamento que a si próprio se apreende.
A temperança, ou o “bem-pensar”, que o grego chamava de σωφροσύνη,
solicita do homem o atendimento ao que lhe compete. Tende-se a entender
com isso que o seu lugar é aquele do meramente finito, tal como se lê, p.
ex., na lírica arcaica, cujas γνῶμαι (“máximas sapienciais”), atinentes à
medida no humano, têm por escolta, de um lado, trenos abundantes e, de
outro, satisfações comensais, como é o caso da mélica de Alceu e de Safo.
Mas o homem não é apenas o finito. Nele, o elemento especulativo se lhe
apresenta como apto a ser “agarrado” (gegriffen). A mais rudimentar
operatividade no âmbito da cultura já dá mostras de sua capacidade
reunidora, uma vez que possibilita-lhe, enquanto homem singular,
alavancar-se sobre si mesmo, lograr, por conseguinte, um alcance de
poder impossível a toda e qualquer envergadura meramente particular.
Tal entorno, contudo, já é desdobramento do conhecimento de si, o qual
não precisa estar posto em sua suma luminosidade para repercutir.
Destarte, tanto quanto a vigília, também a dormência do homem nunca é
completa. É o que diz Heráclito no fr. B75, conservado por Marco Aurélio:
“Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas que vêm a ser
no cosmo”97. Leia-se κόσμος aqui como abarcando a disposição total da
vitalidade do real, logo, nem como μακρόκοσμος nem como μικρόκοσμος
isolados, porém suprassumidos enquanto composição universal, de vez
que o que “nasce e vem a ser” (γίγνεται) no κόσμος é o próprio κόσμος, o
qual nada tem a ver com uma ordem morta ou estática. “O cosmo, o
mesmo para todos”, tal como consta no fr. B30 – registrado por Clemente
de Alexandria –, “sempre [ἀεὶ] foi, é e será fogo sempre vivo”98. Trata-se,
97
Id., ibid., p. 87. Cf. também o fr. B89.
98
Id., ibid., p. 61.
André Felipe Gonçalves Correia | 193
99
Id., ibid., p. 39. Não adentraremos aqui na longa polêmica concernente à pontuação do fragmento, iniciada com
Aristóteles (Retórica, 1.407b). Sugerimos, todavia, a solução proposta por Gadamer, que toma o impasse aristotélico
como um pseudo problema, passível de ser colocado como questão apenas por um leitor e não por um ouvinte, tal
como demandaria o texto e a época de Heráclito. É sabido que Platão, a despeito do apreço que nutria por Aristóteles,
o chamava, não sem certa ironia, de “o leitor” (ὁ ἀναγνώστης). Cf. GADAMER, Hans-Georg. “Heraklit-Studien”. In:
Der Anfang des Wissens. Reclam Verlag, Stuttgart, 2012, p. 55.
100
É o que também escreve Snell: “O único princípio vivente que atravessa o mundo é de natureza tautocronicamente
intelectual e vital”, de maneira que tal atravessamento abarca a si desde dentro de si, como homem, pois, conclui, “o
λόγος fala a partir do indivíduo” (SNELL, op. cit., p. 133).
101
DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker (Band 2). Berlim: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1959,
p. 64.
194 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
102
Cf. Ética a Nicômaco (1099a25) e Ética a Eudemo (1214a).
103
DIELS, op. cit., loc. cit.
104
Cf. SAFO. Fragmentos completos. Edição bilíngue; tradução, introdução e notas de Guilherme Gontijo Flores. São
Paulo: Editora 34, 2017, pp. 58-59.
105
HERÁCLITO, op. cit., p. 113.
André Felipe Gonçalves Correia | 195
dos apetites, o que não implica a anulação desses, mas sim a indicação de
seu devido lugar. Conforme escreve Hegel na Enciclopédia das ciências
filosóficas (§24):
106
HEGEL, op. cit., p. 79.
107
Id., op. cit., p. 156.
108
Id., ibid., p. 144.
196 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
109
Id., op. cit., p. 141.
André Felipe Gonçalves Correia | 197
110
A liberdade do indivíduo pressupõe, ironicamente, a desigualdade e a pluralidade, pois livre é aquele que obedece,
ou seja, aquele que ouve o λόγος, do qual, necessariamente, sempre parte. O reconhecimento do outro como um igual
é o que retira o homem tanto da diferença quanto da indiferença, pois cumpre um retorno a si a partir do com-um
da e na própria consciência-de-si. Conforme escreve Bourgeois: “Os outros também me são iguais; pois os outros são
universais da mesma forma que eu. Sou livre apenas na medida em que afirmo a liberdade dos outros e sou
reconhecido como livre pelos outros. A liberdade real pressupõe numerosos seres livres. A liberdade só é uma
liberdade efetiva, existente, no seio de uma pluralidade de homens” (BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político
de Hegel. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 102). É o que, ademais, diz Hegel na Fenomenologia (IV): “Eu, que
é Nós, Nós que é Eu” (HEGEL, op. cit., p. 142).
111
Id., op. cit., p. 211.
198 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
112
Id., op. cit., p. 203.
113
HERÁCLITO, op. cit., p. 67.
114
Cf. fr. B104.
115
Cf. LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora
Universitária de Brasília, 2008, IX6, p. 252.
André Felipe Gonçalves Correia | 199
116
Cf. FOGEL, Gilvan. “Que é Europa, Ocidente?”. In: Sobre homem e história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019, p. 95
e ss.
117
HERÁCLITO, op. cit., p. 62.
118
Do grego: “Pai dos homens e dos deuses”. Designação verificada em inúmeras passagens da Ilíada (I, v.544, IV,
v.68, etc.) e da Odisseia (XII, v.445), assim como em Trabalhos e Dias (v. 59) e na Teogonia (vv. 47, 457, etc.).
200 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
119
Veja-se o que é dito por Kirk, Raven e Schofield: “Heráclito seguiu os passos de Xenófanes ao ridicularizar o
antropomorfismo e a idolatria da religião olímpica contemporânea. Todavia”, continuam, “ele não repudiou
totalmente a ideia de divindade, ou mesmo algumas descrições convencionais dessa divindade” (KIRK, RAVEN e
SCHOFIELD. Os filósofos Pré-socráticos. Trad. Carlos Alberto Louro. 7ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa:
2010, pp. 217-18). A referência em pauta é o fr. B5, que censura as preces dirigidas a imagens e estátuas, uma vez
que inadequadas ao devido reconhecimento do divino. O que Heráclito repreende, na verdade, é o culto tradicional,
de feição meramente sensualista. Para um estudo do vínculo entre Heráclito e Xenófanes, cf. o artigo de minha
autoria intitulado Heráclito e a ontoteologia eleata: um estudo de ordem hegeliana (CORREIA, André F. G. In: Revista
Húmus, vol. 11, nº 32, 2021, pp. 95-120).
120
HOMERO. Hinos Homéricos. Tradução, notas e estudo/Edvanda Bonavina da Rosa [et al.]. São Paulo: Editora
UNESP, 2010, p. 526.
121
Cf. KAHN, op. cit., pp. 424-25.
122
Escreve Platão: “Com muito acerto foi denominado o deus dessa maneira, por ser através dele (διά) que todos os
seres alcançam a vida (ζῆν)” (PLATÃO. Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: UFPA, 1973, p. 136). A
André Felipe Gonçalves Correia | 201
preposição διά (“através”) e o infinitivo ζῆν (“viver”) acentuam os dois modos de nomear Zeus, tal como consta um
pouco antes, em 396a: “Uns lhe chamam Ζῆνα, e outros, Δία” (Id., ibid.).
123
HEGEL, G. W. F. Glauben und Wissen (Werke, Band 2). Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 1986, p. 289.
124
Id., ibid.
202 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
125
Id., op. cit., p. 389.
126
Conforme escreve Santos: “Entre o credo ut intelligam e o intelligo ut credam, a segunda alternativa tem a
vantagem de dar tempo à paciência do conceito para fundamentar as convicções” (SANTOS, José Henrique. O
trabalho do negativo. Ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Loyola, 2007, p. 15).
127
Cf. frs. A23 e B74.
128
Para uma tradução direta do grego da seção DK22A (referências biográficas e bibliográficas, síntese de doutrina,
etc.), cf. a versão de Eudoro de Sousa, publicada em 1954 pela Revista Brasileira de Filosofia, cuja reedição pode ser
encontrada nos Anais de filosofia clássica, vol. XI, nº 21, 2017.
129
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classic Companhia das Letras, 2013, p. 523.
130
Id., Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 390.
André Felipe Gonçalves Correia | 203
131
HERÁCLITO, op. cit., p. 107.
132
HOMERO, op. cit., p. 179. Trad. Frederico Lourenço.
133
PÍNDARO, op. cit., p. 128.
204 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
134
Para uma continuidade da relação entre poesia e pensamento arcaicos sob as figurações de Homero e Heráclito,
tendo por mote o nascimento da filosofia, cf. o artigo de minha autoria intitulado Pensamento e Sacrifício:
considerações a partir de Hegel e de Heráclito (CORREIA, André F. G. In: Cadernos Zygmunt Bauman, vol. 11, nº 26,
2021, pp. 27-54).
135
Caracterizada pela expressão dos sentimentos individuais em detrimento do culto na poesia, o que desencadeou
diversas modalidades seculares de caráter circunstancial, sobretudo no segmento dos hinos, conforme observa
Jaeger, em que “era cada vez mais frívola a ‘musa que ganha dinheiro’” (JAEGER, Werner. Paideia: A formação do
homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 254).
136
Bruno Snell, John Burnet, Werner Jaeger e Charles Kahn, referenciados ao longo de nosso percurso, são alguns
dos estudiosos que sustentam o paralelo entre Píndaro e Heráclito, o qual se lhes parece mais eficaz do que as
anotações modernas à interpretação de ambos. Cf. o texto de minha autoria intitulado Píndaro e Heráclito – acerca
de μῦθος e λόγος (CORREIA, André F. G. In: Cadernos Zygmunt Bauman, vol. 10, nº 24, 2020, pp. 250-268).
André Felipe Gonçalves Correia | 205
137
HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Religion I (Werke, Band 16). Suhrkamp Verlag: Frankfurt
am Main, 1986, p. 69.
138
Id., op. cit., p. 545.
139
Id., op. cit., p. 13.
206 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Referências
140
Kahn o chama de “super-Zeus” (KAHN, op. cit., p. 437).
141
Como bem resumem as palavras de Heidegger: “Desde o tempo de Platão, e sobretudo a partir da metafísica do
Idealismo Alemão, chama-se de dialético o pensamento das oposições em sua unidade elevada” (HEIDEGGER, op.
cit., p. 48).
142
HEGEL, op. cit., p. 319.
André Felipe Gonçalves Correia | 207
ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Giovani Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político de Hegel. Trad. Paulo Neves da Silva. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.
BURNET, John. A aurora da filosofia grega. Trad. Vera Ribeiro; trad. citações em grego e
latim Henrique Cairus, Agatha Bacelar, Tatiana Oliveira Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.
______. “Hegel e o λόγος heraclítico”. In: Revista Aufklärung, vol. 8, nº 3, 2021, no prelo.
______. “Hölderlin e a grande palavra de Heráclito”. In: Revista Trágica, vol. 13, nº 2, 2020,
pp. 11-42.
______. “Píndaro e Heráclito – acerca de μῦθος e λόγος”. In: Cadernos Zygmunt Bauman,
vol. 10, nº 24, 2020, pp. 250-268.
CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4.ed. revista pela
nova ortografia. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010.
FOGEL, Gilvan. “Que é Europa, Ocidente?”. In: Sobre homem e história. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2019, pp. 95-130.
GADAMER, Hans-Georg. “Heraklit-Studien”. In: Der Anfang des Wissens. Reclam Verlag,
Stuttgart, 2012.
HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica 1. A Doutrina do Ser. Trad. Christian G. Iber, Marloren
L. Miranda e Federico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2016.
______. Cursos de Estética I. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001.
______. Enciclopédia das ciências filosóficas (vol. 1, A ciência da lógica). Trad. Paulo
Menezes, com colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995.
______. Enciclopédia das ciências filosóficas (vol. 3, A filosofia do espírito). Trad. Paulo
Menezes, com colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995.
______. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, 5ª edição, Petrópolis: RJ, Vozes:
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008.
André Felipe Gonçalves Correia | 209
______. Introdução à história da filosofia. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012.
______. Werke in 20 Bänden. Eva Modenhauer, Karl Markus Michel (Orgs.), Frankfurt am
Main: Suhrkamp Verlag, 1986.
______. “Fragmentos”. In: Pré-socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo:
Editora Nova Cultura – Coleção Os Pensadores, 1999.
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 2006.
HOMERO. Hinos Homéricos. Tradução, notas e estudo/Edvanda Bonavina da Rosa [et al.];
edição e organização Wilson Alves Ribeiro Jr. – São Paulo: Editora UNESP, 2010.
______. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classic Companhia das
Letras, 2013.
______. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
IBER, Christian. “O que Hegel propriamente quer com sua Ciência da Lógica? Uma
pequena introdução à Lógica de Hegel”. In: Leituras da Lógica de Hegel. Porto Alegre,
RS: Editora Fi, 2017, pp. 77-100.
210 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
JÂMBLICO. De Mysteriis. Dillon, J., Clarke, E.C. e Hershbell, J. [ed. trad. e introd.]. Leiden:
Brill, 2003
KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. Trad. José Miranda Justo, Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2009.
KAHN, Charles. A arte e o pensamento de Heráclito. Trad. Élcio de Gusmão. São Paulo:
Paulus, 2009.
LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury.
Brasília: Editora Universitária de Brasília, 2008.
LASSALLE, Ferdinand. Die Philosophie Herakleitos des Dunklen von Ephesos - 2 Bände in
1 Band. Hildesheim: Georg Olms Verlag, 2013.
LEBRUN, Gerard. O avesso da dialética. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
Companhia da Letras, 1988.
PÍNDARO. Epinícios e Fragmentos. Trad. Roosevelt Rocha. Curitiba: Kotter Editorial, 2018.
PLATÃO. Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: UFPA, 1973.
SNELL, Bruno. Die Entdeckung des Geistes: Studien zur Entstehung des europäischen
Denkens bei den Griechen. Vandenhoeck & Ruprecht Verlag, Göttingen, 2011.
SOUSA, Eudoro de. “Fontes da História da Filosofia Antiga”. In: Revista Brasileira de
Filosofia. São Paulo, 4, 1/2, l954, pp. 90-l23/290-323.
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Loyola,
2005.
______. “Senhor e Escravo: Uma parábola da filosofia ocidental”. In: Revista Síntese, v. 8,
n. 21, 1981, pp. 07-29.
7
Francisco Moraes 1
1
Professor associado de filosofia na UFRRJ e membro do Programa de Pós-graduação em filosofia da UFRJ (PPGF) e
do Programa de Pós-graduação em filosofia da UFRRJ (PPGFIL). E-mail: fjdmoraes@gmail.com
2
“Como a presente disciplina não visa ao conhecimento, como as outras visam (pois inquirimos não para saber o
que é a virtude, mas para tornar-nos bons, dado que, de outro modo, em nada seria útil), é necessário investigar o
que concerne às ações, como devemos praticá-las, pois são elas que determinam também que as disposições sejam
de certa qualidade, como dissemos.” Ética a Nicômaco, II, 2, 1103 b 25-31.
Francisco Moraes | 213
3
As opiniões reputadas, recolhidas e comentadas por Aristóteles no livro I da Ética a Nicômaco, correspondem a
modos de vida reconhecíveis: a vida contemplativa (βίος θεορητικός), a vida política (βίος πολιτικός) e a vida aprazível
(βίος απολαυστικός). EN, I, 5, 1195 b 16-19. O primeiro modo de vida identifica a felicidade, como bem final, com a
inteligência (νοῦς), o segundo com a honra (τιμή) e o terceiro com o prazer (ἡδονή). EN, I, 7, 1097 b 1-6.
4
De anima, 402 b 4-5.
214 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
desejo: “pois onde existe sensação, existe dor e prazer; e, onde eles
existem, necessariamente também existe desejo”5. Semelhante imbricação
não é encontrada na Ética a Nicômaco, sendo antes relevada a parte
desejante da alma numa relação estrutural de escuta e de virtual
obediência à razão6; 2. A ênfase no ser separado do intelecto, o qual
Aristóteles nomeia “um outro gênero de alma” (ψυχῆς γένος ἕτερον), que
pode ser separado assim como o eterno é separado do corruptível7. Em sua
psicologia moral, Aristóteles considera praticamente inseparáveis desejo e
intelecto. Aqui, trata-se da alma humana na perspectiva de seu exercício
característico, a escolha deliberada: “a escolha deliberada (προαίρεσις) é
um intelecto desejante (ὀρεκτικὸς νοῦς) ou um desejo pensante (ὄρεξις
διανοητική), e este princípio é um homem”8.
Em sua psicologia moral, Aristóteles menciona, grosso modo, duas
partes da alma: uma parte é não racional (ἄλογον) enquanto a outra é
dotada de razão (λόγον ἔχον)9. Outras duas subdivisões são introduzidas.
Numa delas, a parte não racional é dividida em parte vegetativa (τὸ
φυτικόν), responsável por movimentos naturais que escapam, em larga
medida, ao nosso poder de decisão (alimentação, crescimento, sono) e a
apetitiva ou desiderativa (τὸ επιθυμητικόν καὶ ὅλως ὀρεκτικόν), que se
mostra capaz de ouvir a razão. Em outra divisão, a própria parte racional
aparece cindida em razão aconselhadora ou reta razão e razão matemática.
A psicologia moral de Aristóteles reside toda ela na relação entre a parte
desiderativa e a parte aconselhadora da alma, entre razão e desejo. Não
existe aqui, como em Platão, uma parte intermediária (a parte colérica)
que auxiliaria a razão na tarefa de controlar a parte concupiscente da alma,
5
De anima, 413 b 23-25.
6
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 b 29-35.
7
De anima, 423 b 25-28.
8
Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139 b 5-7.
9
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 a 14- 1103 a 10.
Francisco Moraes | 215
a maior parte das pessoas não vê o conhecimento como uma força, muito
menos como uma força diretora ou dominante; elas pensam que um homem
pode muitas vezes possuir conhecimento, sendo, contudo, governado por
outra coisa: às vezes pela ira, outras vezes pelo prazer ou pela dor; às vezes
pelo amor, muito frequentemente pelo medo. Elas realmente pintam o
conhecimento como um escravo de tudo isso.12
10
República, IV, 442 a.
11
República, IV, 439 e – 440 a.
12
Protágoras, 352 b-c.
216 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
13
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 b 14-16.
14
Ética a Nicômaco, IV, 9, 1128 b 10.
15
ZINGANO, M. (org.). Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2010.
16
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 b 28.
Francisco Moraes | 217
vicioso, por seu turno, será aquele que, assim como o virtuoso, não sofre
o conflito entre as partes da alma e que escolhe por deliberação, sendo
inclusive capaz de conter seus desejos imediatos em prol de outros desejos,
embora não seja correto dizer que o conflito entre as partes da alma
resultou nele superado. Simplesmente a razão, como razão aconselhadora,
que recomenda ou interdita certas ações em si mesmas, deixou de se fazer
ouvir. O vicioso não possui sentimentos fortes que o comprometam,
decididamente, com o todo social. No entanto, é forçoso reconhecer que
tanto o vicioso quanto o virtuoso possuem desenvoltura na ação, não
sentem remorsos e costumam alcançar o que desejam.
Aristóteles afirma que o as virtudes morais se originam do hábito17 e
que sinal disso é o próprio nome, pois a palavra ἔθος (hábito) difere
ligeiramente de ἦθος (caráter, morada habitual). Mas a palavra hábito
pode se prestar a mal-entendidos. Hábito remete a habitar, a ganhar
habitação, ganhar residência. Ao contrário do que afirma Tomás de
Aquino, não existem “hábitos das virtudes”, como se as virtudes fossem
algo que pudéssemos colocar em prática18! As virtudes e os vícios são
disposições adquiridas (ἕξεις). Ninguém nasce virtuoso ou vicioso,
ninguém se torna virtuoso ou vicioso por natureza (φύσει) ou indo de
encontro à natureza (παρὰ φύσιν). A prática reiterada é que nos torna
virtuosos ou viciosos. Ao habituarmo-nos, ganhamos certa tendência,
certa afeição, para agir sempre de determinada maneira. “Quem tem um
caráter”, diz Nietzsche, “tem também sua experiência típica, que sempre
retorna”19. A disposição adquirida, seja ela virtude ou vício, não deixa de
ser uma segunda natureza. Já nossa compreensão usual de hábito remete
a condicionamento e a algum tipo de automatismo. Quem está habituado
17
Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 17-18.
18
AQUINO, Tomás. As virtudes morais – Questões disputadas sobre a virtude. Campinas, SP: Ecclesiae, 2012, p. 25.
19
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, “Máximas e interlúdios”, 70.
218 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
20
De Fato, XXVII-XXIX, apud introdução de Marco Zingano à sua tradução da Ética Nicomachea I 13- III 8 (São Paulo,
Odysseus, 2008), p. 27-28.
21
Ética a Nicômaco, II, 3, 1105 a 32-35.
22
Ética a Nicômaco, II, 4, 1106 a 2-3.
Francisco Moraes | 219
23
Ética a Nicômaco, III, 4, 1111 b 27-30.
24
Ética a Nicômaco, III, 4, 1112 a 3.
220 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Mas por que, segundo Aristóteles, não deliberamos sobre os fins? Por
que os fins que buscamos alcançar não se oferecem como objeto de
deliberação? Não seremos capazes de entender esse postulado do
pensamento ético aristotélico enquanto associarmos, como fazemos
usualmente, os fins aos resultados alcançados por intermédio da ação. São,
de fato, coisas bem distintas. Os fins, tais como Aristóteles os concebe, são
princípios orientadores das nossas ações, que nos possibilitam acessar
meios adequados e rejeitar meios inadequados em si mesmos. Os fins, e
somente eles, nos qualificam como agentes, pois abrem o espaço para
25
Ética a Nicômaco, III, 4, 1112 a 9-12.
Francisco Moraes | 221
Caráter e destino
26
Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 a 32-33.
27
Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139 b 4.
222 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
28
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2017, p.97.
Francisco Moraes | 223
29
Aristóteles admite que os homens são mesmo louvados por suportarem algo ignóbil ou penoso em troca de efeitos
grandiosos e belos, mas, ao mesmo tempo, afirma ser “típico de uma pessoa inferior suportar o que há de mais torpe
em função de algo nada ou medianamente belo”. Semelhante apreciação não exclui a possibilidade do perdão,
“quando alguém faz o que não deve fazer por tais coisas que excedem à natureza humana e que ninguém suportaria”.
Em todo caso, para o Estagirita, “a algumas coisas presumivelmente não há como sermos compelidos, mas se deve
antes morrer sofrendo as dores mais atrozes”. Cf. Ética a Nicômaco, III, 1, 1110 a 19-29
30
Ética a Nicômaco, I, 10, 1101 a 6-9.
224 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
31
Ética a Nicômaco, I, 10, 1101 a 4-5.
32
DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Trad. Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta, 2002, p.183.
33
Ética a Nicômaco, X, 7, 1177 b 36.
Francisco Moraes | 225
prazer inerente. Fica claro que a felicidade para Aristóteles não se baseia
no projeto de assujeitar a realidade externa e colocá-la a nosso serviço, por
meio do controle tecnológico, mas antes na maior independência possível
das condições exteriores conquistada em uma maneira de viver sustentada
no caráter e na ação. Seria um erro, no entanto, considerar que a aposta
na felicidade da atividade contemplativa signifique, em Aristóteles, o
desprezo pelos bens materiais e o insulamento do sábio, numa espécie de
“cidadela interior”, à maneira estoica. A felicidade é um bem humano e
como tal só frutifica sob certas condições materiais, no seio da pólis. Não
podemos assegurar a paz e a prosperidade, pois isso significaria nos
emaranharmos na teia do destino, mas podemos, sem dúvida, aprender a
suportar bem as adversidades e a nos empenharmos em ações que tenham
seu fim em si mesmas. A atividade contemplativa, a atividade de
imortalizar, desdobra e consuma a possibilidade de existência
autossuficiente aberta pelo caráter no exercício das virtudes morais.
34
Política, V, 1, 1301 a 29-39.
35
Injustiça, segundo Aristóteles, não é apenas tratar desigualmente aqueles que são iguais, mas também tratar
igualmente os que são desiguais. Cf. Ética a Nicômaco, V, 5, 1131 a 20-27.
226 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
36
Política, I, 1, 1252 b 30-31,
37
Política, I, 1, 1253 a 32-37.
Francisco Moraes | 227
38
Em grego, concórdia significa, literalmente, ter o mesmo pensamento. Cf. Ética a Nicômaco, IX, 6, 1167 a 22.
228 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
39
Aristóteles concordaria em larga medida com a determinação do conceito do político, feita por Carl Schmitt: “A
guerra não é, absolutamente, fim e objetivo, sequer conteúdo da política, porém é o pressuposto sempre presente
como possibilidade real, a determinar o agir e o pensar humanos de modo peculiar, efetuando assim um
comportamento especificamente político.” Cf. SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Alvaro L.M. Valls.
Petrópolis< RJ: Vozes, 1992, p. 60.
40
Política, IV, 9, 1295 b 5-6.
41
Política, IV, 9, 1295 b 5-9.
42
Política, IV, 9,1295 b 12-14
43
Política, IV, 9, 1295 b 14-16.
Francisco Moraes | 229
44
Política, IV, 9, 1295 b 22-24.
45
Política, IV, 9, 1295 b 25.
46
Ética a Nicômaco, I, 7, 1098 16-18.
47
Ética a Nicômaco, V, 1, 1129 26-30.
48
É exatamente este o sentido de equidade na célebre obra de John Rawls Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta
e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
230 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
49
Ética a Nicômaco, V, 3 1129 b 15.
50
Ética a Nicômaco, V, 15, 1138 a 28-31.
51
Ética a Nicômaco, V, 12, 1137 a 22-25.
Francisco Moraes | 231
acostamento. Ser motorista é agir desse modo. Não pelo fato de que dirigir
pelo acostamento seja ilegal e que, agindo assim, ele poderia ser multado,
mas por respeito a si mesmo e ao bem comum. Seria vergonhoso e
intolerável buscar para si a vantagem que ocasiona o prejuízo de todos, e
assim também o próprio aviltamento. Esse comportamento nada tem a
ver com simplesmente não causar prejuízo ao outro e assim evitar ser
prejudicado também.
Aristóteles afirma que “os que se distinguem pela virtude não
produzem stásis”(οἱ κατ’ ἀρετὴν διαφέροντες οὐ ποιοῦσι στάσιν)52. Sendo
a stásis, na visão aristotélica, provocada pela ambição desmedida (ὕβρις),
que acirra o sentimento de ser vítima de injustiça, tornando desprezível a
preocupação com o bem comum, facilmente o equânime pode ser
compreendido como alguém destituído de ambição, o que levanta a
questão acerca de quem estaria sendo mais injusto: quem, contrariamente
ao mérito, distribui mais ou quem recebe. Acaso quem assim procede não
estaria sendo injusto para consigo mesmo? Aristóteles responde a essa
indagação numa bela passagem, que gostaria de citar:
Se, pois, se dá a primeira alternativa, a saber, é quem distribui, mas não quem
recebe mais, que comete injustiça, e se alguém distribui mais a outrem do que
a si, com conhecimento e voluntariamente, esta pessoa comete injustiça contra
si própria – o que precisamente parecem fazer os homens moderados; com
efeito, o homem equânime é de natureza a tomar menos. Ou tampouco isto é
simples? Com efeito, o homem equânime tem ganância, porventura, de um
outro bem, a saber: da honra ou do belo propriamente dito.53
52
Política, V, 3, 1304 b 4-5.
53
Ética a Nicômaco, V, 12, 1136 b 16- 22. Trad. Marco Zingano.
54
Ética a Nicômaco, V, 14, 1138 a 2.
232 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Conclusão
55
Ética a Nicômaco, IX, 8, 1169 a 32- 1169 b 2.
56
Ética a Nicômaco, VIII, 1, 1155 a 5-6.
Francisco Moraes | 233
como se ele imaginasse que mais importante do que uma vida saudável
fosse a contratação de um caríssimo plano de saúde! Neste caso, o plano
de saúde representa o bem aparente como o propriamente extraviante.
Não o plano de saúde em si mesmo, é claro, mas o plano de saúde como o
garantidor de uma vida saudável. Nestas condições, sustentar que a justiça
enquanto equidade corresponderia a uma melhor distribuição dos planos
de saúde equivale a absolutizar o bem aparente. A stásis, na perspectiva
aristotélica, surge precisamente desse desvio original. Mas se os homens
que se distinguem pela virtude, os felizes, não produzem stásis, é claro que
se trata de uma minoria absoluta incapaz de evitar a sua eclosão.
Consequência disso é que Aristóteles não possui nenhum antídoto para a
stásis. No entanto, passar por semelhante experiência, por mais terrível
que ela seja, pode propiciar uma recordação do que em si mesmo é o mais
desejável e que está ao alcance dos homens, a despeito das desigualdades
e das penúrias persistentes: a concórdia política, a possibilidade de formar
vínculos duradouros e de erigir instituições, a possibilidade de
compartilhar ativamente um mundo comum, a celebração da boa vida, da
vida dedicada às belas ações. Mas para isso é preciso que alguns pelo
menos saibam em que consiste a boa vida e que ela realmente vale a pena.
Referências
AQUINO, Tomás. As Virtudes Morais- Questões disputadas sobre a Virtude. Trad. Paulo
Faintanin e Bernardo Veiga. Campinas, SP: Ecclesiae, 2012.
ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea I 13- III 8. Tratado da virtude moral. Trad. Marco
Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008.
__________. Ethica Nicomachea V 1-15: Tratado da justiça. Trad. Marco Zingano. São
Paulo: Odysseus, 2017.
__________. The Nicomachean Ethics. Translation by H. Rackham. London: Harvard
University Press, 1999.
234 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
_________. De anima. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Ed. 34, 2006.
_________. On the soul, Parva Naturalia, On Breath. Translation by W.S. Hett. London:
Harvard University Press, 1999.
_________. Política. Trad. Antônio Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa:
Vega, 1998.
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampff e Ernani Chaves.
São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2017.
BODÉÜS, R. “La justice, état de choses et état d’âme” in DESTRÉE, P. (org.). Aristote:
Bonheur et vertus. Paris: PUF, 2003.
DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Trad. Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta,
2002.
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_________. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão. Trad. Marcos Sinésio e Francisco
José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020.
PLATÃO. A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: EDUFPA, 2000.
Francisco Moraes | 235
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Alvaro L.M. Valls. Petrópolis< RJ: Vozes, 1992.
8
Monalisa Carrilho 1
O homem em presença de seu motor, de seu motor sem freios. Tomado numa
rede de forças cegas, nos rushs incessantes de algo fluido, condensado
sobrecarregado, próximo de seu pensamento, quase semelhante a seu
pensamento, veículo sacolejando seu pensamento, tornando-o ineficiente,
devolvendo-o irrisório e, dilacerando e adulterando-o selvagemente, sem ligar
para o “eu”, sem percebê-lo, se desentravando selvagemente em todos os
sentidos.2
1
Professora do Departamento de Filosofia da UFRN. Contato: carrilhomonalisa@uol.com.br
2
MICHAUX, Henri. Connaissance par les gouffres, Paris :Gallimard, 1988(1967), pp. 236-237.
Monalisa Carrilho | 237
3
Cf. por ex. PANOFSKY, SAXL e KLIBANSKY. Saturne et la mélancolie. Paris: Gallimard, 1989, p. 31sq (Saturn and
Melancholy, 1964).
4
Melancolia em grego é, literalmente, bile negra.
238 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
5
FESTUGIÈRE, André. “La philosophie de l’amour de Marsile Ficin et son influence sur la littérature française au
XVIe siècle” in Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1922, p. 415.
6
Num surto de melancolia, Demócrito ria de tudo o que levou os abderitanos a chamar Hipócrates para tratá-lo. A
tradição associa Demócrito ao riso e Heráclito ao choro ou o pessimismo diante do mundo.
Monalisa Carrilho | 239
Ele, Plutão, não consente em estar em relação com os homens em posse de seu
corpo mas, ao contrário, a se colocar em relação com eles somente no dia em
que sua alma estiver pura de todos os males e desejos que se referem ao corpo:
você não pensa que isso é de um filósofo? E quem pensou bem que ele só reterá
os homens pelo desejo da virtude ao contrário de se eles estão no tem um
corpo os transportes e a demência nem o seu pai Cronos os legando com os
vínculos onde o encadeiam a lenda seria capaz de ajudar a retê-los.7
7
Crátilo, 403e-404a.
240 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
8
Fédon, 81c.
9
Fédon,83d.
Monalisa Carrilho | 241
10
Timeu, 70a.
11
Todo ser humano tende para o mundo inteligível: “Nunca alcançará a forma humana uma alma que nunca tenha
visto a verdade” (Fedro, 249b).
12
Fedro, 248a-b.
242 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
mania de origem divina não pode ser considerada uma doença... Ela
deveria não ter relação com o corpo, lugar de manchas, mas, sem o corpo,
como falar de delírio divino? Mesmo assim, não se confundir o furor divino
(theia mania) com a simples mania, quer dizer, a loucura.
O termo mania, no sentido de delírio divino, quase não se encontra
fora do Fedro13, onde há abundância de referências à mania positiva e
divina – e essa disparidade nos faz refletir. Nos periódicos filológicos
como o Lustrum, a Année Philologique, ou ainda nas bibliografias
específicas sobre Platão, é surpreendente a escassez de textos tratando
do problema da theia mania. Se esse tema suscitou trabalhos, muitos
deles brilhantes, dos historiadores da religião grega, ele inspirou pouco
os filósofos, exceção feita, é claro, ao tema do amor, cuja bibliografia vem
aumentando incrivelmente ano a ano. Mas o amor não é o único furor e
nem todo amor é furioso...
Esse silêncio coloca uma questão: o Platão dos furores não seria um
Platão subversivo em seu próprio sistema? Ou ainda, será que aquilo que
se convencionou chamar de sistema platônico dá realmente conta de todo
o pensamento platônico?
Voltando ao Fedro, vejamos as três passagens onde Platão acentua o
caráter positivo do furor divino:
1) 244a: Se, com efeito, é sem exceção que o delírio é um mal, poderíamos falar
assim, mas é um fato que dos bens que nos cabem, os maiores são aqueles que
nos vêm através de um delírio que recebemos seguramente por um dom divino;
2) 244 b, c, d: O que certamente merece ser testemunhado é que aqueles que na
antiguidade instituíram os nomes não consideravam a mania, o delírio, como
uma coisa ruim nem tampouco uma razão de opróbrio [...] Então, o delírio,
segundo o testemunho da antiguidade, é uma coisa mais bela que o bom senso,
13
Somente uma vez, no Banquete (218b), quando se trata do delírio filosófico e uma outra vez nas Leis (VIII, 839a)
ao fazer uma aproximação entre amor e delírio. Mas a ideia de furor divino, se não nos limitarmos à expressão theia
mania, encontra- se muitas vezes em outros diálogos, particularmente no Ion e no Timeu.
Monalisa Carrilho | 243
pois o delírio que vem de um Deus é mais belo do que um bom senso – cuja
origem é humana;
3) 265a: Mas, na verdade, há duas espécies de delírio, uma que é o resultado de
doenças humanas, a outra que consiste numa ruptura entre a essência divina e
os costumes e as regras.
14
É o argumento usado por Thomas SZASZ em sua crítica da psiquiatria contemporânea (O mito da doença mental,
Paris: Payot, 1975, p. 271)
15
Crença geral ou caldo cultural de cada época.
244 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Ora, o delírio divino nós dividimos em quatro seções que dependem de quatro
divindades, atribuindo a inspiração divinatória a Apolo, a inspiração mística a
Dioniso, a inspiração poética às musas e enfim a quarta a Afrodite e a Amor.16
16
Fedro, 265b.
Monalisa Carrilho | 245
Apolo e a adivinhação
Apolo e sua irmã gêmea Ártemis /Diana são frutos dos amores de
Zeus com Leto. Após muitas tribulações causadas pela ciumenta Hera, Leto
consegue enfim ir parir em Delos, ilha que se torna um local sagrado, onde,
desde então, ninguém mais terá o direito de nascer nem de morrer. No dia
de seu nascimento, cisnes sagrados deram sete vezes a volta na Ilha.
Depois disso, Zeus entregou à divindade, ao mesmo tempo que sua lira,
uma carruagem puxada por esses brancos pássaros18. É nessa carruagem
sagrada que ele vai até os Hiperbóreos antes de ir a Delfos, onde mata o
malvado dragão Píton, tomando posse do oráculo de Têmis e consagrando
ali o tripé, um dos principais símbolos do Deus, e sobre o qual a Pítia19,
sentada, faz adivinhações. Plutarco define belamente o poder de Apolo
como faculdade de ver:
17
Cf. a “matriz” do Timeu.
18
Cf. CHEVALIER et GHEERBRANT. Dictionnaire des Symboles, p. 333.
19
A Pítia é considerada às vezes um personagem dionisíaco por causa do estado de transe em que fica quando o deus
vem falar através de sua boca. Sobre a aproximação Pítia/Bacante, ver DELCOURT, Marie. L’oracle de Delphes, Paris:
Payot, 1981, p. 47.
20
PLUTARCO. De def. or. 433 DE.
246 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
21
APULEIO. De la doctrine de Platon em Œuvres complètes, Paris: Garnier, 1873, p. 170.
22
Id., ibid.
23
O adjetivo baccheuousin é muitas vezes utilizado para significar o arrebatamento sem ter nenhuma relação direta
com Dioniso (por ex. Platão o utiliza no Banquete para o delírio filosófico, ou Eurípides, nas Troianas, descreve
Cassandra tomada pelo delírio de Apolo nesses termos: “Apollon eksebaccheuen phrenas” (v. 408).
24
DAVREUX. La légende de la prophétesse Cassandre d’après les textes et les monuments, Bibliothèque de la Faculté
de Liège, Fasc. XCIV, 1942, p. 46.
25
Cf. EURIPIDE. Bacch., vv.299 sq : “le délire bacchique étant divinatoire...”, trad. H. Grégoire, Paris: Belles
Lettres,1973; cf. aussi Hécube, v. 1245 (cette dernière référence est de NIETZSCHE dans Le service divin des Grecs,
Paris : L’Herne, 1992, p. 152
Monalisa Carrilho | 247
26
NIETZSCHE. op.cit., p. 152.
27
DELATTE, A. Les conceptions de l’enthousiasme chez les philosophes présocratiques, Paris: Les Belles Lettres, 1934,
p. 6.
28
“Si ce n’était pas pour Dionysos qu’ils mènent le cortège et chantent l’hymne phallique, ils commettraient le plus
grand sacrilège. Celui qui régit les Enfers et Dionysos sont un même dieu, qui les frappe de délire et pour qui ils
célèbrent la fête des Vendanges” (frag. 18, DIELS-KRANZ, trad. BATTISTINI, Paris: Gallimard, 1968).
29
HERÁCLITO. Frag. 106, ed. cit., p.44 : “La sibylle, qui, de sa bouche délirante clame les mots sans lumière, sans
parure ou parfum, traverse par sa voix des millénaires, sous la vertu du dieu qui l’anime” (cf. PLUTARCO. De Pyth.
or., 6, 397 A).
248 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
30
Encontramos esta diferenciação também como ideia central do De Divinatione de Cícero: há dois meios de
adivinhar, pela técnica ou naturalmente (De div., I, VI, 10). No primeiro grupo ficam todas as práticas divinatórias
baseadas na observação na conjectura e no raciocínio, como astrologia, as predições dos aruspícios, os intérpretes
dos prodígios e dos raios, etc. A adivinhação natural por sua vez é possível pelo sono ou pelo furor.
Monalisa Carrilho | 249
melhor adivinhação seja, sem dúvida, aquela que nos vem por um deus.
Além disso, se reconhecemos Platão como o autor das Definições, vemos,
ali, uma clara distinção entre adivinhação e arte divinatória, a primeira
sendo “a ciência que consiste em fazer conhecer a ação antecipadamente
sem demonstração”, enquanto a arte divinatória “é o conhecimento
teórico do que é e do que será para um ser vivo mortal”31.
Também no Banquete, a adivinhação de corrida do amor - do homem
habitado por esse daimon - é subtendida ser melhor que aquela de corrida
da arte)32. O apelo à tradição quer salvaguardar ou recuperar verdades
esquecidas ou perdidas. Assim, insistindo sobre o fato de que os antigos
consideravam o delírio como uma “boa coisa”, Platão quer sem dúvida
modificar a opinião comum segundo a qual todo o delírio é negativo.
É preciso então estar fora de si para compreender. A sophrosyne deve
ceder seu lugar à theia mania. O bom senso é, portanto, incompatível com
a divindade:
31
Platão, Definições, 414b in Œuvres Complètes, Paris:Gallimard, 1950.
32
“Enfim, aquele que é sabedor nesse assunto é um homem demoníaco enquanto aquele que é sabedor em qualquer
outro domínio em relação seja uma ciência especial seja uma profissão manual é somente um Artesão”. (Banquete,
203a).
33
Fedro, 244b.
250 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
vinda dos deuses. Mas uma passagem do Timeu vem complicar e tornar
ambígua esta posição:
É assim que, querendo endireitar o lado fraco em nós e para que pudesse
aflorar alguma verdade, os deuses instalaram nele o órgão da adivinhação.
Uma prova suficiente de que foi por causa da enfermidade da razão humana
que Deus presenteou com a adivinhação é que nenhum homem em seu bom
senso atingiu uma adivinhação inspirada e verídica, mas é necessário que a
atividade de seu julgamento esteja entravada pelo sono ou pela doença ou
desviado por alguma espécie de entusiasmo.34
34
Timeu, 51e.
Monalisa Carrilho | 251
pela divindade ou pela doença ou ainda pelo sono, para que possa
funcionar. No caso do sono, Platão remete igualmente à intervenção
divina: “as palavras pronunciadas no sonho ou na vigília pelo poder
divinatório que enche de entusiasmo”35.
Tentemos entender em que contexto Platão introduz o órgão da
adivinhação. Seguindo sua tripartição da alma em apetitiva
[concupiscível], irascível e hegemônica, cada parte mora numa parte do
corpo, respectivamente, no fígado, no timo e no cérebro. O órgão da
adivinhação fica no fígado (Timeu, 71e). A explicação é genial: nesta alma
concupiscível, não podendo nunca ouvir a razão, já que é por imagens e
fantasias que ela se deixa impressionar, os deuses colocaram diante dela o
fígado, órgão denso, liso e brilhante, para que pudesse servir de espelho
aos pensamentos que vêm da inteligência. Ele é, portanto, intermediário
entre o intelecto e a alma apetitiva. O intelecto utiliza as duas qualidades
do fígado, o amargo e o doce, para provocar sensações ora positivas ora
negativas. É desta maneira que
35
Timeu, 72e.
36
Ibid., 71a.
252 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
ela pode compreender. Será que nós não estaríamos aqui diante da
fórmula hermética “o que está embaixo é como que está em cima”? Pode-
se dizer que o intelecto divino abre parênteses: o que está em cima só se
comunica com a parte menos nobre da alma, aquela que não sofre o
entrave da razão. Quantos mistérios na barriga! Não é um acaso se o
budismo zen considera o hara (ventre, em japonês) como centro vital do
homem. Havia também, na Grécia, os engastrimithoi, faladores de barriga,
a não confundir com os ventríloquos. É daí que sairia, ao que parece, a voz
rouca dos possuídos37.
Como no furor dionisíaco, a questão da posição correta se coloca para
o adivinho e pode ser considerado de duas maneiras: a primeira se refere
a uma técnica que o adivinho tem que dominar para entrar em estado de
transe. Esta técnica coloca em cena o papel das emoções nos transportes e
sua relação com a imaginação:
37
DODDS. Os gregos e o irracional, pp.78-79. PLUT. DE DEF OR. 9, 414 E.
38
PLUTARCO. De def. Or., 438b.
Monalisa Carrilho | 253
da Razão, anuncia o futuro, quando nossas almas não estão perturbadas pelos
sentidos.39
Ou bem é uma força divina preocupada conosco que nos envia advertências
pela via do sonho, ou bem são os intérpretes que, devido a uma harmonia, ou
a uma união natural chamada sympatheia, conseguem saber o que nos sonhos
se aplica tal ou tal acontecimento.40
39
Cf. CALCIDIUS (Diels A20).
40
CÍICERO. De divinatione, LX 124.
41
CÍCERO. De div., II, LIX, 122.
Monalisa Carrilho | 255
Vejamos o trecho:
Eu não saberia dizer de onde vem a palavra grega mania; todavia, nós
possuímos distinções melhores que a dos gregos. Com efeito, essa loucura
(insânia) que, estando ligada à falta de juízo é muito frequente, nós a
separamos do furor. Os gregos queriam fazer a mesma coisa, mas suas
palavras não têm força. O que nós chamamos furor, eles chamam melancolia,
como se a alma fosse agitada somente pela bile negra e não, como tantas vezes,
por um acesso mais grave de cólera, de medo ou de dor.42
Nessa passagem, Cícero opera uma curiosa inversão: não cabe mais
ao furor de traduzir o termo grego, mas aos gregos de encontrarem um
termo que corresponda ao furor latino! Porque nem a mania nem a
melancolia bastam. No início do De divinatione, Cícero retoma o problema
nestes termos: os gregos fizeram derivar a adivinhação (mantikê) da
42
CÍCERO. Tusculanas 3, 5.
256 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Aristóteles pensava que aqueles também que deliram sob o efeito de uma falta
de saúde e que chamamos melancólicos, têm na sua alma uma faculdade de
pressentimento e de adivinhação.44
43
PIGEAUD, Jackie. La maladie de l’âme, Paris: Les Belles Lettres, 1989, p. 259.
44
De div., I, XXXVIII, 82.
45
Id., 1, XXXI, ed. cit. p. 66. A tradução da edição Budé que nós utilizamos acrescenta profético ao que Cícero chama
simplesmente furor, cujo sentido profético está implícito segundo o que ele havia escrito antes. A edição inglesa da
Loeb Clássical Library mantém somente furor (frenzy) e acrescenta “ou inspiração” (inspiration), provavelmente
para estar de acordo com esta outra passagem onde encontramos uma definição do furor: “Este arrebatamento [ele
está falando aqui da inspiração poética] também mostra que há nas almas uma força divina. Demócrito afirma que
sem furor (furore) não há grande poeta, e Platão é da mesma opinião (ele chama esse movimento furor (furore),
desde que seja experimentado como é mostrado no Fedro (De div,, XXXVII, 80).
258 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Referências
ARISTIDES, Aelius. Discours Sacrés. Trad. et int. de Festugière, Paris: Macula, 1986.
________. De la divination. Trad. Gérard Freyburger et John Scheid, Paris: Belles Lettres,
1992.
________. Tusculanes [2 vol.]. Éd. et trad. J. Humbert, Paris: Belles Lettres, 1968.
DELATTE. Les conceptions de l’enthousiasme chez les philosophes grecs. Paris : Les Belles
Lettres, 1934.
KLIBANSKI, PANOFSKY, SAXL. Saturne et la Mélancolie. Paris: Gallimard, 1989, pp. 31 sq.
MICHAUX, Henri. Connaissance par les gouffres. Paris: Gallimard, 1988, pp. 236-237.
Monalisa Carrilho | 261
PLATÃO. Oeuvres Complètes [2 vol.]. Trad. Léon Robin, Paris: Gallimard, 1950.
___. Phèdre. Texte et trad. Paul Vicaire, Paris: Belles Lettres, 1985.
___. Timée. Texte et trad. Albert Rivaud, Paris: Belles Lettres, 1970.
Pensamentos ao vento
Fernando Pessoa
1
Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Contato: felipegall@outlook.com
2
Cf. BUARQUE, Luisa. “Mas, cidadãos de Atenas, Platão, aqui presente...”.
3
Cf. XENOFONTE, Memorabilia, 4.3.2.
Felipe Ramos Gall | 263
E os ventos eles mesmos não são visíveis, e no entanto seus feitos são para nós
evidentes, e nos apercebemos de suas aproximações. Ademais, a alma do
homem, que, mais do que qualquer outra coisa dos seres humanos, participa
do divino, evidentemente reina em nós, mas ela mesma não é visível.4
4
“καὶ ἄνεμοι αὐτοὶ μὲν οὐχ ὁρῶνται, ἃ δὲ ποιοῦσι φανερὰ ἡμῖν ἐστι, καὶ προσιόντων αὐτῶν αἰσθανόμεθα. ἀλλὰ μὴν καὶ
ἀνθρώπου γε ψυχή, ἥ, εἴπερ τι καὶ ἄλλο τῶν ἀνθρωπίνων, τοῦ θείου μετέχει, ὅτι μὲν βασιλεύει ἐν ἡμῖν, φανερόν, ὁρᾶται δὲ οὐδ᾽
αὐτή.” (XENOFONTE, Memorabilia, 4.3.14. Tradução minha).
264 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
arrebatamento que nos leva e eleva para além das aparências em direção
às ideias, desestabilizando tudo o que parecia ser óbvio, certo e seguro. É
precisamente nesse sentido que Hannah Arendt também se utiliza da
metáfora do vento para refletir sobre o pensamento: ele tira tudo do lugar,
e por isso é perigoso.
Essa perigosa inutilidade do pensamento não passou despercebida
pela sensibilidade cômica de Aristófanes. Em Nuvens, a mais célebre de
suas comédias, Sócrates é representado como o diretor de um “instituto
de pensamento” (φροντιστήριον), que professava o culto às nuvens,
divindades padroeiras dos vagabundos. É de uma aguda perspicácia da
parte de Aristófanes a escolha das nuvens como sendo aquilo que
representa o divino para os pensadores: em primeiro lugar, elas estão no
céu, o que faz delas objetos de contemplação elevados; elas mudam de
forma ao sabor dos ventos, representando o devir e sua mutabilidade
relativista, capaz de pôr em questão os valores; ademais, cultuar as nuvens
também simboliza um materialismo naturalista, que, oferecendo
explicações científicas para os fenômenos, “desencantam o mundo”, o que
acarreta um ateísmo em relação aos deuses olímpicos – o próprio Zeus na
peça é substituído pelo turbilhão (δῖνος), que também evoca algo caótico,
mutável, destrutivo, vazio. A ideia cômica da peça é que só quem não
trabalha, quem é preguiçoso e tem tempo de sobra, pode se dedicar a ficar
contemplando coisas tão efêmeras como as nuvens, ação sumamente
inútil. Contudo, nessa inutilidade reside um grande perigo, o de questionar
e não tomar como algo dado os valores tradicionais, capaz de subverter e
corromper os jovens. Não por acaso, o Sócrates da comédia representa
precisamente as acusações sofridas pelo Sócrates real, que o condenaram
à morte.
Curiosamente, quando o protagonista da peça, interessado em
estudar no φροντιστήριον, ouve lá de um discípulo de Sócrates as façanhas
Felipe Ramos Gall | 265
5
“τί δῆτ᾽ ἐκεῖνον τὸν Θαλῆν θαυμάζομεν;” (ARISTÓFANES, Nuvens, v. 180. Tradução minha).
6
Cf. ARISTÓFANES, Nuvens, vv. 223-234.
266 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Tal como, quando Tales observava os astros, Teodoro, e olhava para cima, caiu
num poço. Conta-se que uma elegante e graciosa serva trácia disse uma piada
a propósito, visto, na ânsia de conhecer as coisas do céu, deixar escapar o que
tinha à frente, debaixo dos pés. Esta zombaria serve para todos os que se
dedicam à filosofia.7
7
“ὥσπερ καὶ Θαλῆν ἀστρονομοῦντα, ὦ Θεόδωρε, καὶ ἄνω βλέποντα, πεσόντα εἰς φρέαρ, Θρᾷττά τις ἐμμελὴς καὶ χαρίεσσα
θεραπαινὶς ἀποσκῶψαι λέγεται ὡς τὰ μὲν ἐν οὐρανῷ προθυμοῖτο εἰδέναι, τὰ δ᾽ ἔμπροσθεν αὐτοῦ καὶ παρὰ πόδας λανθάνοι
αὐτόν. ταὐτὸν δὲ ἀρκεῖ σκῶμμα ἐπὶ πάντας ὅσοι ἐν φιλοσοφίᾳ διάγουσι.” (PLATÃO, Teeteto, 174a-b1. Tradução de Adriana
Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, com modificações).
8
Cf. BRANDÃO, Jacyntho. O Filósofo e o Comediante.
Felipe Ramos Gall | 267
9
Cf. PLATÃO, República, VI, 486a3.
10
Cf. PLATÃO, República, VI, 487b-d.
11
Para uma análise pormenorizada dessa questão, cf. BUARQUE, Luisa. Filósofos perversos e inúteis: o desafio de
Adimanto e a comédia aristofânica.
12
Cf. PLATÃO, República, VI, 487d10.
13
Chama a atenção que, nesse contexto (488e s.), Sócrates caracteriza o ἀληθής κυβερνητικός, o verdadeiro piloto da
Nau-Estado, i.e., o filósofo, como um μετεωροσκόπος, “observador de astros”, um ἀδολέσχης, “tagarela”, e um
ἄχρηστος, “inútil”, precisamente as características do seu alter ego representado em Nuvens, numa clara alusão à
crítica da peça.
268 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
14
“Ἀστρολόγος ἐξιὼν ἑκάστοτε ἑσπέρας ἔθος εἶχε τοὺς ἀστέρας ἐπισκοπῆσαι. Καὶ δή ποτε περιιὼν εἰς τὸ προάστειον καὶ τὸν
νοῦν ὅλον ἔχον πρὸς τὸν οὐρανὸν ἔλαθε καταπεσὼν εἰς φρέαρ. Ὀδυρομένου δὲ αὐτοῦ καὶ βοῶντος, παριών τις, ὡς ἤκουσε τῶν
στενάγμων, προσελθὼν καὶ μαθὼν τὰ συμβεβηκότα, ἔφη πρὸς αὐτον· ̔ Ὦ οὗτος, σύ τὰ ἐν οὐρανῷ βλέπειν πειρώμενος τὰ ἐπὶ τῆς
γῆς οὐχ ὁρᾷς;ʼ Τούτῳ τῷ λόγῳ χρήσαιτο ἄν τις ἐπʼ ἑκείνων τῶν ἀνθρώπων οἳ παραδόξως ἀλαζονεύονται, μηδὲ τὰ κοινὰ τοῖς
ἀνθρώποις ἐπιτελεῖν δυνάμενοι.” (ESOPO, Fábulas, C65/P40. Tradução de André Malta).
Felipe Ramos Gall | 269
15
Cf. ARISTÓTELES, Política, I, 1259a5-21.
16
“ὄνους σύρματ' ἂν ἑλέσθαι μᾶλλον ἢ χρυσόν” (HERÁCLITO, Fragmento IX).
270 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Por essa razão as pessoas dizem que Anaxágoras e Tales e outros deste gênero
são sábios, mas não prudentes, quando se aperceberam de que estes
desconheciam o que era bom para eles próprios; e, embora dissessem que
aqueles sabiam coisas extraordinárias, espantosas, difíceis de aprender e
divinas, por outro lado, de nada lhes servia saberem de tudo isso. Na verdade,
não procuraram saber qual era o bem para o humano.19
17
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, I, 1100a10-11. A citação de Sólon encontra-se em HERÓDOTO, Histórias, I, 30-
33.
18
Para Aristóteles, falar das virtudes éticas implica, necessariamente, falar de caráter. E caráter, segundo ele, é
intrínseco ao hábito, tal como podemos ler numa passagem preciosa e muito pouco citada da Ética a Eudemo
(1220a38-1220b1, tradução minha): “É evidente, portanto, que a virtude ética está relacionada aos prazeres e às
dores. E, dado que o caráter (ἦθος), como o próprio nome sinaliza, é um aumento do hábito (ἔθους)...” Ou seja, assim
como o “eta”, o “é longo”, é um aumento do “épsilon”, o “e breve”, também o caráter, ἦθος com “η”, seria um aumento
do hábito, ἔθος com “ε”. Por conseguinte, o caráter nada mais é que um hábito alongado.
19
“διὸ Ἀναξαγόραν καὶ Θαλῆν καὶ τοὺς τοιούτους σοφοὺς μὲν φρονίμους δ' οὔ φασιν εἶναι, ὅταν ἴδωσιν ἀγνοοῦντας τὰ
συμφέροντα ἑαυτοῖς, καὶ περιττὰ μὲν καὶ θαυμαστὰ καὶ χαλεπὰ καὶ δαιμόνια εἰδέναι αὐτούς φασιν, ἄχρηστα δ', ὅτι οὐ τὰ
ἀνθρώπινα ἀγαθὰ ζητοῦσιν.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VI, 1141b4-8. Tradução de António de Castro Caeiro,
modificada).
272 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
20
“ἔοικε δὲ καὶ Ἀναξαγόρας οὐ πλούσιον οὐδὲ δυνάστην ὑπολαβεῖν τὸν εὐδαίμονα, εἰπὼν ὅτι οὐκ ἂν θαυμάσειεν εἴ τις ἄτοπος
φανείη τοῖς πολλοῖς· οὗτοι γὰρ κρίνουσι τοῖς ἐκτός, τούτων αἰσθανόμενοι μόνον”. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X,
1179a13-16).
21
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 984b15-18.
Felipe Ramos Gall | 273
22
Cf. ARISTÓTELES, Analíticos posteriores, II, 94a21.
23
“τό τε οὗ ἕνεκα ὡς τέλος καὶ ὁ λόγος τῆς οὐσίας” (Cf. ARISTÓTELES, Geração dos animais, 715a5).
274 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
24
Afinado com essa ideia, Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Ausência, belamente diz: “Por muito tempo
achei que a ausência é falta./E lastimava, ignorante, a falta./Hoje não a lastimo./Não há falta na ausência./A ausência
é um estar em mim”.
25
Cf. ARISTÓTELES, Partes dos animais, III, 669a13-22.
Felipe Ramos Gall | 275
Ora, se o pensar é como o perceber, ele seria ou um certo modo de ser afetado
pelo pensável ou alguma outra coisa desse tipo. É preciso então que esta parte
da alma seja impassível, e que seja capaz de receber a forma e seja em potência
tal qual, mas não o próprio objeto; e que, assim como o perceptivo está para
os objetos perceptíveis, do mesmo modo o pensamento está para os pensáveis.
Há necessidade então, já que ele pensa tudo, de que seja sem mistura – como
diz Anaxágoras –, a fim de que domine, isto é, a fim de que tome
conhecimento: pois a interferência de algo alheio impede e atrapalha. De modo
que dele tampouco há outra natureza, senão esta: que é capaz. Logo, o assim
chamado pensamento da alma (e chamo de pensamento isto pelo qual a alma
pensa de modo discursivo e concebe) não é em atividade nenhum dos seres
antes de pensar. Por isso, é razoável que tampouco ele seja misturado ao corpo,
do contrário se tornaria alguma qualidade – ou frio ou quente – e haveria um
órgão, tal como há para a parte perceptiva, mas efetivamente não há nenhum
órgão.26
26
“εἰ δή ἐστι τὸ νοεῖν ὥσπερ τὸ αἰσθάνεσθαι, ἢ πάσχειν τι ἂν εἴη ὑπὸ τοῦ νοητοῦ ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον. ἀπαθὲς ἄρα δεῖ εἶναι,
δεκτικὸν δὲ τοῦ εἴδους καὶ δυνάμει τοιοῦτον ἀλλὰ μὴ τοῦτο, καὶ ὁμοίως ἔχειν, ὥσπερ τὸ αἰσθητικὸν πρὸς τὰ αἰσθητά, οὕτω τὸν
νοῦν πρὸς τὰ νοητά. ἀνάγκη ἄρα, ἐπεὶ πάντα νοεῖ, ἀμιγῆ εἶναι, ὥσπερ φησὶν Ἀναξαγόρας, ἵνα κρατῇ, τοῦτο δ' ἐστὶν ἵνα γνωρίζῃ
(παρεμφαινόμενον γὰρ κωλύει τὸ ἀλλότριον καὶ ἀντιφράττει)· ὥστε μηδ' αὐτοῦ εἶναι φύσιν μηδεμίαν ἀλλ' ἢ ταύτην, ὅτι δυνατός.
ὁ ἄρα καλούμενος τῆς ψυχῆς νοῦς (λέγω δὲ νοῦν ᾧ διανοεῖται καὶ ὑπολαμβάνει ἡ ψυχή) οὐθέν ἐστιν ἐνεργείᾳ τῶν ὄντων πρὶν
νοεῖν· διὸ οὐδὲ μεμῖχθαι εὔλογον αὐτὸν τῷ σώματι· ποιός τις γὰρ ἂν γίγνοιτο, ἢ ψυχρὸς ἢ θερμός, κἂν ὄργανόν τι εἴη, ὥσπερ τῷ
αἰσθητικῷ· νῦν δ' οὐθὲν ἔστιν.” (ARISTÓTELES, De anima, III, 429a13-27. Tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis,
modificada).
276 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
Ainda assim, Aristóteles não vê outra solução para falar do νοῦς a não
ser compará-lo, metaforicamente, a um instrumento:
27
“ὅτι δυνάμει πώς ἐστι τὰ νοητὰ ὁ νοῦς, ἀλλ' ἐντελεχείᾳ οὐδέν, πρὶν ἂν νοῇ· δυνάμει δ' οὕτως ὥσπερ ἐν γραμματείῳ ᾧ μηθὲν
ἐνυπάρχει ἐντελεχείᾳ γεγραμμένον· ὅπερ συμβαίνει ἐπὶ τοῦ νοῦ. καὶ αὐτὸς δὲ νοητός ἐστιν ὥσπερ τὰ νοητά. ἐπὶ μὲν γὰρ τῶν
ἄνευ ὕλης τὸ αὐτό ἐστι τὸ νοοῦν καὶ τὸ νοούμενον.” (ARISTÓTELES, De anima, III, 429b30-430a4. Tradução de Maria
Cecília Gomes dos Reis, modficada. Grifo meu).
Felipe Ramos Gall | 277
28
Do mesmo modo que, para o camponês se aquecer no inverno, é necessário que faça uma fogueira, e, para fazer a
fogueira, é necessário cortar lenha, e para tal é necessário um machado afiado, e, para ser afiado e funcionar bem, é
necessário que seja de ferro ou bronze, também a alma vai manifestando e produzindo seus instrumentos conforme
a necessidade. E é por causa disso que Aristóteles assevera que, assim como o machado, também o corpo é
instrumento. (“Τοῦτο δ' ἐστὶν ὥσπερ ἐξ ὑποθέσεως· ὥσπερ γὰρ ἐπεὶ δεῖ σχίζειν τῷ πελέκει, ἀνάγκη σκληρὸν εἶναι, εἰ δὲ
σκληρόν, χαλκοῦν ἢ σιδηροῦν, οὕτως καὶ ἐπεὶ τὸ σῶμα ὄργανον”. ARISTÓTELES, Partes dos animais, I, 642a9-11).
Organismo, órgão, ὄργανον, diz, literalmente, “instrumento”. Cada órgão é um instrumento da alma para realizar
suas aptidões, suas funções, suas necessidades. Logo, conforme a compreensão aristotélica, não é por haver o órgão
que há a função, mas justamente o contrário: é por haver a função, a aptidão, que há o órgão.
29
“ὁ δὲ λόγος ἡμῖν καὶ ὁ νοῦς τῆς φύσεως τέλος” (ARISTÓTELES, Política, VII, 1334b15. Tradução minha).
278 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
assevera Aristóteles. Quer dizer: nossa natureza, nossa essência, tem como
necessidade última desenvolver a linguagem, e, por meio desta, o
pensamento. Esse é o nosso fim, nosso propósito, tal como decretado pela
natureza, segundo Aristóteles. Seremos perfeitamente humanos se
concretizarmos esse fim.
Retomando, então, o νοῦς seria como que um sentido puramente
espiritual, capaz de ver o invisível, tocar o intangível, ouvir o inaudível e
assim por diante. Tal como ocorre com o ar, estamos a todo momento
permeados pelo pensamento, embora só o notemos quando ele se move e
nos toca, como uma brisa de vento. Ar é vida, já que a própria vida é
considerada um sopro. O ar está presente na etimologia, logo, na raiz, da
alma30. Respirar é trazer o exterior para dentro de nós, e lançar algo do
nosso interior para fora; a vida começa propriamente com o recém-
nascido inflando seus pulmões pela primeira vez, e termina quando
soltamos o último alento. O ar é o nosso primeiro e último contato com o
mundo.
Pensamento é vento, e por isso alguns filósofos denominavam o
espírito de πνεῦμα. Mesmo a linguagem se materializa na voz, que são
golpes de ar. Ademais, as disposições de ânimo nos afetam como se fossem
uma atmosfera em que nos encontramos subitamente jogados, forçados
assim a respirar daquele ar, que muitas vezes pode nos oprimir e esmagar
– e a angústia é um aperto na garganta, que nos tira o fôlego. Mesmo o
contato com o divino, o entusiasmo, é compreendido como uma
inspiração, e por isso um arrebatamento, um ser tocado e tomado
30
Inclusive, nosso termo “animal” vem do termo latino anima, que significa sopro, e é como se verteu para o latim,
com precisão, o termo grego ψυχή. Literalmente, então, animal é o “animado”, o que possui alma, o que é insuflado
pelo sopro de vida. Anima é também cognato de animus, ânimo, termo que, apesar de expressar aquilo que os gregos
chamavam de θυμός, que, em certo sentido, é a sede das paixões, curiosamente não advém dele: animus vem, na
verdade, do grego ἄνεμος, que significa vendaval ou uma forte brisa. Se a anima é um sopro, o animus é a sua
turbulência, uma procela, quando o sopro revoltado se transforma num vento de tempestade, uma tormenta de
paixões.
Felipe Ramos Gall | 279
31
“Τοιοῦτο δ' ἐστὶ τὸ τῶν ἀνθρώπων γένος· ἢ γὰρ μόνον μετέχει τοῦ θείου” (Cf. ARISTÓTELES, Partes dos animais, II,
656a7-8).
32
Num raro arroubo poético de Aristóteles, ele, justificando a importância do estudo das partes dos animais, admite
que a contemplação dos astros eternos é mais nobre e divina do que os estudos daquilo que vem a ser e perece.
Contudo, nossos sentidos são muito limitados para se investigar propriamente esses entes celestes, e então temos
muito mais sucesso estudando os entes que nos são mais próximos. Ou seja, a investigação dos viventes é mais
instigante e mais precisa, e tal exequibilidade concede valor a essa tarefa. Ainda assim, Aristóteles dirá que a alegria
que obtemos contemplando as coisas celestes, ainda que nosso saber sobre elas seja escasso, ainda é maior do que a
alegria advinda do estudo mais acertado de outras coisas, do mesmo modo que um vislumbre fugaz do amado causa-
nos mais alegria do que a visão acurada de uma outra coisa qualquer. Cf. ARISTÓTELES, Partes dos animais, I,
644b23-35.
280 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
33
“κινεῖ δὲ ὧδε τὸ ὀρεκτὸν καὶ τὸ νοητόν· κινεῖ οὐ κινούμενα.” (ARISTÓTELES, Metafísica, Λ, 1072a26).
34
ARISTÓTELES, Metafísica, Λ, 1072b3.
Felipe Ramos Gall | 281
35
“ἐκ τοιαύτης ἄρα ἀρχῆς ἤρτηται ὁ οὐρανὸς καὶ ἡ φύσις. διαγωγὴ δ' ἐστὶν οἵα ἡ ἀρίστη μικρὸν χρόνον ἡμῖν (οὕτω γὰρ ἀεὶ
ἐκεῖνο· ἡμῖν μὲν γὰρ ἀδύνατον), ἐπεὶ καὶ ἡδονὴ ἡ ἐνέργεια τούτου (καὶ διὰ τοῦτο ἐγρήγορσις αἴσθησις νόησις ἥδιστον, ἐλπίδες
δὲ καὶ μνῆμαι διὰ ταῦτα). ἡ δὲ νόησις ἡ καθ' αὑτὴν τοῦ καθ' αὑτὸ ἀρίστου, καὶ ἡ μάλιστα τοῦ μάλιστα. αὑτὸν δὲ νοεῖ ὁ νοῦς
κατὰ μετάληψιν τοῦ νοητοῦ· νοητὸς γὰρ γίγνεται θιγγάνων καὶ νοῶν, ὥστε ταὐτὸν νοῦς καὶ νοητόν. τὸ γὰρ δεκτικὸν τοῦ νοητοῦ
καὶ τῆς οὐσίας νοῦς, ἐνεργεῖ δὲ ἔχων, ὥστ' ἐκείνου μᾶλλον τοῦτο ὃ δοκεῖ ὁ νοῦς θεῖον ἔχειν, καὶ ἡ θεωρία τὸ ἥδιστον καὶ ἄριστον.
εἰ οὖν οὕτως εὖ ἔχει, ὡς ἡμεῖς ποτέ, ὁ θεὸς ἀεί, θαυμαστόν· εἰ δὲ μᾶλλον, ἔτι θαυμασιώτερον. ἔχει δὲ ὧδε. καὶ ζωὴ δέ γε ὑπάρχει·
ἡ γὰρ νοῦ ἐνέργεια ζωή, ἐκεῖνος δὲ ἡ ἐνέργεια· ἐνέργεια δὲ ἡ καθ' αὑτὴν ἐκείνου ζωὴ ἀρίστη καὶ ἀΐδιος. φαμὲν δὴ τὸν θεὸν εἶναι
282 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
ζῷον ἀΐδιον ἄριστον, ὥστε ζωὴ καὶ αἰὼν συνεχὴς καὶ ἀΐδιος ὑπάρχει τῷ θεῷ· τοῦτο γὰρ ὁ θεός.” (ARISTÓTELES, Metafísica,
Λ, 1072b13-30).
36
Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X, 1178a-1179a.
Felipe Ramos Gall | 283
Referências
______. Clouds. Wasps. Peace. Trad. Jeffrey Henderson. Cambridge: Harvard University
Press, 1998.
______. De anima. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Ed. 34, 2012.
______. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017.
______. On the Soul. Parva Naturalia. On Breath. Trad. W. S. Hett. Cambridge: Harvard
University Press, 1957.
______. Posterior Analytics. Topica. Trad. Hugh Tredennick and E. S. Forster. Cambridge:
Harvard University Press, 1960.
284 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
BRANDÃO, Jacyntho. O Filósofo e o Comediante. A palo seco, vol. 1, nº. 5 (2013), pp. 7-22.
______. “Mas, cidadãos de Atenas, Platão, aqui presente...” Platão tragicômico. O que nos
faz pensar, vol. 34 (2014), pp. 109-124.
ESOPO. Fábulas. Trad. André Malta. São Paulo: Ed. 34, 2017.
HERODOTUS. Histories. 4 vols. Trad. A.D. Godley. Cambridge: Harvard University Press,
1969.
PLATÃO. Filebo. Trad. Fernando Muniz. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola,
2012.
______. República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 13ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2013.
______. Republic. 2 vols. Trad. Paul Shorey. Cambridge: Harvard University Press, 1937.
______. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. 3ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2010.
______. Theaetetus. Sophist. Trad. Harold Fowler. Cambridge: Harvard University Press,
1921.
Allen Speight 1
1
Associate Professor of Philosophy at Boston University.
2
Most of Hegel’s interpreters have of course taken his “official” position to be highly critical of the notion of artistic
imitation, but, as Stephen Houlgate notes, Arthur C. Danto for one claimed to link Hegel more intimately to “the
renaissance paradigm of mimesis as the ideal” (DANTO. The Abuse of Beauty. Chicago: Open Court, 2003, p. 44);
and Houlgate, “Hegel, Danto and the ‘end of art,’” in: The Impact of Idealism: The Legacy of Post-Kantian German
Thought, general editors Nicholas Boyle and Liz Disley, volume III: Aesthetics and Literature, volume editors
Christoph Jamme and Ian Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 265.
286 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
mimesis in a broader sense. This paper will argue that Hegel’s ultimate
position on the topic of artistic imitation is not only the result of the
eighteenth century critique of the supposed ancient tradition but that it
also draws directly on a more positive valence to the notion of mimesis
that Hegel found first in Aristotle himself and then among contemporaries
such as Goethe and the Romantics. Following a review of the use and
critique of artistic imitation in eighteenth century aesthetics (Section I),
the paper turns to Hegel’s critical discussion of the principle of imitation
(Section II) and then to the Aristotelian and Romantic ways he might be
said to reappropriate mimesis in his aesthetics (Section III).
3
TODOROV. Theories of the Symbol. Trans. Catherine Porter. Ithaca: Cornell University Press, 1982, p. 112.
Allen Speight | 287
Why not say rather that art must represent beauty, and leave nature
entirely aside?”4. This criticism is echoed in Schelling, who came to insist
that “what art creates in its perfection is the principle and norm for the
judgment of natural beauty”5, and in Novalis, who likewise began to speak
of the “tyranny of the principle of imitation”6. In summarizing this
developing critique, the scholar Wladyslaw Folkierski claimed that “All in
all… everyone in the eighteenth century has something critical to say about
the principle of imitation”7 and a number of studies have charted in detail
the development of this critique8.
Yet, as Stephen Halliwell has argued, picking up on a line of thought
he finds in Lovejoy, the principle of imitation is anything but univocal
across this period – in fact, “[t]he undoubtedly widespread romantic
renunciation of mimesis, or equally of ‘the imitation of nature,’ qua
supposed concern with the mere surface plausibility and verisimilitude of
artistic images, became caught up in crosscurrents of aesthetic and critical
argument that cannot ultimately be resolved into a clear-cut pro and
contra dichotomy”9. In Halliwell’s view, “at least some forms of
romanticism and its aftermath mark a renegotiated or redefined
mimeticism, rather than a clean break with the traditions of mimetic
thought”10. Halliwell’s longer argument is that a careful reading of the
4
SCHLEGEL. A Course of Lectures on Dramatic Art and Literature. Trans. J. Black, London, 1904, p. 85.
5
SCHELLING. System of Transcendental Idealism. Trans. Peter Heath. Charlottesville, VA: University of Virginia
Press, 1993, p. 227.
6
NOVALIS. Oeuvres completes. Ed. A. Guerne. Paris, 1975, II. vii. 288.
7
FOLKIERSKI, Wladyslaw. Entre le classicisme et le romantisme: Etude Sur L'esthetique Et Les Estheticiens Du Xviiie
Siecle. Paris-Krakow: Academie Polonaise des Sciences et des Lettres, 1925, p. 117.
8
Cf. also, among others, A. Tumarkin, “Die Überwindung der Mimesislehre in der Kunsttheorie des XVIII. Jhdts,” in:
Festgabe für S. Singer. Tübingen, 1930; W. Preisendanz, “Zur Poetik der deutschen Romantik. I. Die Abkehr vom
Grundsatz der Naturnachahmung,” in: H. Steffen, ed., Die deutsche Romantik. Göttingen, 1967, pp. 54-74; and
Herbert Dieckmann, “Die Wandlung des Nachahmungsbegriffes in der französischen Ästhetik des XVIII. Jhdts,” in:
H. Jauss, ed., Nachahmung und Illusion, 2d ed. Munich, 1969, pp. 28-59.
9
HALLIWELL, Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems, p. 360.
10
HALLIWELL, op. cit., p. 365.
288 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
11
HALLIWELL, op. cit., p. 352.
12
TODOROV, Theories of the Symbol, c. 6.
Allen Speight | 289
If in this matter we cast a glance at what is commonly thought, one of the most
prevalent ideas which may occur to us is… the principle of the imitation of
nature. According to this view, imitation, as a facility in copying natural forms
just as they are, in a way that corresponds to them completely, is supposed to
constitute the essential end and aim of art, and the success of this portrayal in
correspondence with nature is supposed to afford complete satisfaction.13
13
HEGEL. Aesthetics: Lectures on Fine Art. Trans. T. M. Knox. Oxford: Clarendon Press, 1975, I: 41-42. a) das Prinzip
von der Nachahmung der Natur. Dieser Ansicht nach soll die Nachahmung als die Geschicklichkeit, Naturgestalten,
wie sie vorhanden sind, auf eine ganz entsprechende Weise nachzubilden, den wesentlichen Zweck der Kunst
ausmachen, und das Gelingen dieser der Natur entsprechenden Darstellung soll die volle Befriedigung geben (LFA
XIII.64).
14
HEGEL, op. cit., I: 42 (LFA XIII.65).
290 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
The grapes painted by Zeuxis have from antiquity onward been styled a
triumph of art and also of the principle of the imitation of nature, because
living doves are supposed to have pecked at them. To this ancient example
we could add the modern one of Büttner’s monkey which ate away a painting
of a cockchafer in Rösel’s Insektbelustigungen [Amusements of Insects] and
was pardoned by its master because it had proved the excellence of the
pictures in this book, although it had thus destroyed the most beautiful copy
of this expensive work.17
Hegel’s examples here are interesting: both were familiar from the
discussion of imitation in art in Hegel’s time, not least because they also
come up in Goethe’s remarkable discussion of artistic imitation in a brief
1798 dialogue, Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der Kunstwerke:
Ein Gespräch (“On the Truth and Probability of Artistic Works: A
Conversation”), that he published in his new journal Die Propyläen.
Goethe presents in this dialogue a discussion about imitation that is staged
between a spectator and an “advocate of the artist’s” in a German
15
BRUCE, James. Travels to Discover the Source of the Nile. London: 1813, vol. 6, pp. 526-27.
16
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Arts, I: 42.
17
HEGEL, op. cit., I: 42-3 (LFA XIII.66).
Allen Speight | 291
18
The whole dialogue is exceptionally rich and raises a number of other questions relevant for considering the
relation between ancient and modern modes of considering mimesis: Halliwell, for example, uses it as a frame for
his larger discussion of the mimetic tradition (see Halliwell, “Mimesis and the History of Aesthetics,” Introduction,
The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems, pp. 1-6).
19
“das Kunstwahre und das Naturwahre völlig verschieden sei, und daß der Künstler keinesweges streben sollte,
noch dürfe, daß sein Werk eigentlich als ein Naturwerk erscheine” (Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der
Kunstwerke: Ein Gespräch. In Essays on Art).
20
Despite the clear parallels, there are some interesting slight differences: Goethe’s “advocate” speaks of sparrows
(Sperlinge), for example, while Hegel mentions doves (Tauben).
21
Weil es mit Ihrer bessern Natur übereinstimmt, weil es übernatürlich, aber nicht außernatürlich ist. Ein
vollkommenes Kunstwerk ist ein Werk des menschlichen Geistes, und in diesem Sinne auch ein Werk der Natur.
Aber indem die zerstreuten Gegenstände in eins gefaßt, und selbst die gemeinsten in ihrer Bedeutung und Würde
aufgenommen werden, so ist es über die Natur (Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der Kunstwerke: Ein
Gespräch. In Essays on Art).
292 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
have deceived even doves and monkeys, we should just precisely censure
those who think of exalting a work of art by predicating so miserable an
effect as this as its highest and supreme quality”: “by mere imitation [bei
blosser Nachahmung], art cannot stand in competition with nature, and if
it tries, it looks like a worm trying to crawl after an elephant”22. Hegel’s
final use of a simile of animal behavior to complete the discussion of these
examples of imitation rooted in animal perception shows that he seems to
have taken to heart Goethe’s emphasis on the work of art’s unity as
something that can only come from its being a work of human artistry –
something that will be emphasized, as well, in his treatment of the final
example of this section.
3) Hegel’s final point concerning imitation in this introductory
section turns on another striking example, this one taken from Kant’s
Critique of the Power of Judgment: that of the imitated sound of the
nightingale’s call23. Hegel’s critique here of Kant’s example of our response
to the “artificial nightingale” has often been discussed as an instance of his
supposed antithetical stance with respect to beauty in nature, but these
discussions do not always notice the emphasis that Hegel places on the
relation between “free natural production” on the one hand and what he
calls the “free faculty (power) of production in human beings” on the other
hand: in this example, he claims, we recognize
[…] nothing but a trick, neither the free production of nature, nor a work of
art, since from the free productive power of the human being we expect
something quite different from such music which interests us only when, as
in the case with the nightingale’s warbling, it gushes forth purposeless from
the bird’s own life, like the voice of human feeling.24
22
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Arts, p. 43.
23
KANT, Critique of the Power of Judgment, #42.
24
“Wir erkennen darin dann nichts als ein Kunststück, weder die freie Produktion der Natur noch ein Kunstwerk,
denn von der freien Produktionskraft des Menschen erwarten wir noch ganz anderes als eine solche Musik, die uns
Allen Speight | 293
There is much to notice in this passage, but for our purposes, Hegel’s
contrast between the “free production of nature” (die freie Produktion der
Natur) – something that has a unity in its own right – and the greater “free
productive power of the human being” (die freie Produktionskraft des
Menschen) seems to further amplify his point from the Goethean examples
– stressing both the separation of art and nature but suggesting ways in
which the open “purposelessness” of a natural voice might nonetheless
connect to the felt unity experienced by spectators of works created by the
productive power of the human spirit.
Following this initial critical discussion of imitation, Hegel’s further
mentions of the term Nachahmung across the Aesthetics lectures – among
other places, in the sections on the role of nature and natural beauty, in
the section on beautiful individuality at the beginning of the “Ideal of
Beauty” and in specific discussions across the various genres – share a
number of features. For one thing, as we have seen in the initial passages
of the Introduction, Hegel’s mentions of imitation often come reliably
attached to an adjective like “mere” (blosse) or “so-called” (sogenannte),
thus highlighting a certain distance from the principle and frequently a
contrast with a more living and dynamic relation between nature and art.
nur interessiert, wenn sie, wie beim Schlage der Nachtigall, absichtslos, dem Ton menschlicher Empfindung ähnlich,
aus eigentümlicher Lebendigkeit hervorbricht. Überhaupt kann diese Freude über die Geschicklichkeit im
Nachahmen nur immer beschränkt sein, und es steht dem Menschen besser an, Freude an dem zu haben, was er aus
sich selber hervorbringt” (HEGEL, Aesthetics:Lectures on Fine Arts, p. 43).
294 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
25
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, I:162 (italics mine).
26
HEGEL, op. cit., 1:164.
27
HEGEL, op. cit., I:163.
Allen Speight | 295
For the objects of contemplation, art requires not only an external given
material – (under which are also included subjective images and ideas), but –
for the expression of spiritual truth [Gehalt] – must use the given forms of
nature with a significance which art must divine [ahnen] and possess
[innebehalten] (cf. #411). Of all such forms the human is the highest and the
true, beause only in it can the spirit have its corporeity and thus its visible
expression. This disposes of [es erledigt sich] the principle of the imitation of
nature in art; a point on which it is impossible to come to an understanding
while a distinction is left thus abstract – in other words, so long as the natural
is only taken in its externality, not as the ‘characteristic’ meaningful nature-
form which is significant of spirit [als den Geist bedeutende, charakteristische,
sinnvolle Naturform genommen wird].29
28
On the importance of the section as a whole, see my “Art as a Mode of Absolute Spirit: Hegel’s Encyclopedia
Philosophy of Art”, Hegel’s Philosophy of Spirit: A Critical Guide, ed. Marina Bykova. Cambridge: Cambridge
University Press, 2019, pp. 225-242.
29
Die Kunst bedarf zu den von ihr zu produzierenden Anschauungen nicht nur eines äußerlichen gegebenen
Materials, worunter auch die subjektiven Bilder und Vorstellungen gehören, sondern für den Ausdruck des geistigen
Gehalts auch der gegebenen Naturformen nach deren Bedeutung, welche die Kunst ahnen und innehaben muß (vgl.
§ 411). Unter den Gestaltungen ist die menschliche die höchste und wahrhafte, weil nur in ihr der Geist seine
Leiblichkeit und hiermit anschaubaren Ausdruck haben kann.
Es erledigt sich hierdurch das Prinzip der Nachahmung der Natur in der Kunst, über welche keine Verständigung
mit einem ebenso abstrakten Gegensatze möglich ist, solange das Natürliche nur in seiner Äußerlichkeit, nicht als
den Geist bedeutende, charakteristische, sinnvolle Naturform genommen wird.
296 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
30
BUNGAY, Stephen. Beauty and Truth: A Study of Hegel's Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 1984, p. 40.
31
PETERS, Julia. Hegel on Beauty. New York: Routledge, 2015, p. 49.
32
Goethe also had important criticisms of Hirt’s notion too: he was disappointed to see that Hirt thought there wasn’t
much difference between natural and artistic beauty, and Goethe thought Hirt focused too much attention to the side
of aesthetic reception rather than the side of artistic production (see Werner Busch, “Das Charakteristische”, in
Schafaff, Jörn; Schallenberg, Nina; Vogt, Tobias (Hrsgg.): KunstBegriffe der Gegenwart: von Allegorie bis Zip, Köln
2013, S. 25-32 (Kunstwissenschaftliche Bibliothek; 50).
Allen Speight | 297
33
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 17. Sehen wir näher zu, was in diesem Ausspruche liegt, so haben wir
darin wiederum zweierlei: den Inhalt, die Sache, und die Art und Weise der Darstellung.
34
HEGEL, op. cit., p. 19. Der höchste Grundsatz der Alten war das Bedeutende, das höchste Resultat aber einer
glücklichen Behandlung das Schöne.
298 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
[…] the spirit and the soul shine through the human eye, through a man’s face,
flesh, skin, through his whole figure, and here the meaning is always
something wider than what shows itself in the immediate appearance. It is in
this way that the work of art is to be significant and not appear exhausted by
these lines, curves, surfaces, carvings, hollowings in the stone, these colors,
notes, word sounds, or whatever other material is used; on the contrary, it
should disclose an inner life, feeling, soul, a content and spirit, which is just
what we call the significance [die Bedeutung] of a work of art.35
35
HEGEL. Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 20.
36
Goethe, interview with J. F. Falk, June 14, 1809; in: Goethes Gespräche. Ed. F. von Biedermann, vol. II, Leipzig:
1909-11, pp.40-1.
Allen Speight | 299
[…] art makes every one of its productions into a thousand-eyed Argus,
whereby the inner soul and spirit is seen at every point. And it is not only the
bodily form, the look of the eyes, the countenance and posture, but also actions
and events, speech and tones of voice, and the series of their course through
all conditions of appearance that art has everywhere to make into an eye, in
which the free soul is revealed in its inner infinity.38
37
See the useful discussion of this point in Hadot, The Veil of Isis, p. 254.
38
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 153.
39
HEGEL, op. cit., p. 173.
300 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
capture in the painting they are trying to recreate40. Even some of Hegel’s
much-discussed examples of the artistic representation of explicitly bodily
human form are often shaped by conventional/artificial differences such
as clothing styles41.
As Hegel describes what he calls the “reconveyance” of external
existence into the realm of the spirit that occurs in art42, he thus seems to
draw on Goethe’s insistence that the “truth of nature” and the “truth of
art” are different – as well as the consequent claim that the role of
imitation cannot be construed along the lines of a conventional
understanding of Vorbild/Nachbild. Accepting these points, however, does
not mean that the notion of art as mimetic has disappeared. In a discussion
that seems – much like his discussion of Zeuxis’ cherries and other
imitations taken to be real – to hark back to Goethe’s claims in his dialogue
on “Truth and Probability in Art”, Hegel gives this analysis of why a
product of artistic making might appear as natural even if it is in fact the
result of distinctive artistic effort:
The artistic presentation must appear here as natural, yet it is not the natural
there as such but that [artistic] making, precisely the extinction of the
40
“So, for example, in our own time, what has become the fashion, namely what are called tableaux vivants imitate
famous masterpieces deliberately and agreeably, and the accessories, costume, etc., they reproduce accurately; but
often enough we see ordinary faces substituted for the spiritual expression of the subjects and this produces an
inappropriate effect. Rapahel’s Madonnas, on the other hand, show us forms of expression, cheeks, eyes, nose,
mouth, which, as forms, are appropriate to the radiance, joy, piety, and also the humility of a mother’s love. Of course
someone might wish to maintain that all women are capable of this feeling, but not every cast of countenance affords
a satisfactory and complete expression of this depth of soul” (HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 156).
41
Cf. Hegel’s comparison of ancient drapery and modern cut-to-order clothing: “[T]he cut of our clothes today is
inartistic and prosaic in comparison with the more ideal drapery of the ancients. Both sorts of clothing have in
common the purpose of covering the body. But the clothing portrayed in the art of antiquity is a more or less
explicitly formless surface and is perhaps only determined by the fact that it needs a fastening onto the body, to the
shoulder, for example. In other respects, the drapery remains plastic and simply hangs down freely in accordance
with its own immanent weight or is settled by the position of the body or the pose and movement of the limbs… In
our modern dress, on the other hand, the whole of the material is fashioned once for all, cut and sewn to fit the shape
of the limbs, so that the dress’s freedom to fall exists no longer, or hardly at all. After all, the character of the folds
is determined by the stitching and, in general, the cut and fall of the garment is produced technically and
mechanically by the tailor… (HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, pp. 165-6).
42
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 156.
Allen Speight | 301
sensuous material and external conditions, which is the poetic and the ideal in
a formal sense. We delight in a manifestation which must appear as if nature
had produced it, while without natural means it has been produced by the
spirit; works of art enchant us, not because they are so natural, but because
they have been made so natural.43
If Hegel does follow Goethe in this regard, he also sees a view of the
larger role of making and mimesis that goes beyond a sense of mere
imitation: art exalts nature in a sense, Hegel says, because it “fixes and
makes ends in themselves” natural content to which our attention might
otherwise not have been directed44.
References
BRUCE, James. Travels to Discover the Source of the Nile, 3d edition. London: 1813.
BUNGAY, Stephen. Beauty and Truth: A Study of Hegel's Aesthetics. Oxford: Oxford
University Press, 1984.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der Kunstwerke:
Ein Gespräch. In Essays on Art. Trans. Samuel Gray Ward. New York: James Miller,
1892.
43
HEGEL, op. cit., p. 164 (italics mine).
44
“What in nature slips past, art ties down to permanence: a quickly vanishing smile, a sudden roguish expression
in the mouth, a glance, a fleeting ray of light, as well as spiritual traits in human life, incidents and events that come
and go, are there and are then forgotten—anything and everything art wrests from momentary existence…” (HEGEL,
Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 163).
302 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
HADOT, Pierre. The Veil of Isis: An Essay on the History of the Idea of Nature. Trans.
Michael Chase. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006.
HALLIWELL, Stephen. The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems.
Princeton: Princeton University Press, 2002.
______. Philosophy of Mind. Translated by William Wallace and A.V. Miller. Oxford:
Clarendon Press, 1971.
HOULGATE, Stephen. “Hegel, Danto and the ‘End of Art”. In: The Impact of Idealism: The
Legacy of Post-Kantian German Thought, general editors Nicholas Boyle and Liz
Disley; volume III: Aesthetics and Literature, volume editors Christoph Jamme and
Ian Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
KANT, Immanuel. Critique of the Power of Judgment. Ed., Paul Guyer/; Trans., Eric
Matthews. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
PIPPIN, Robert B. After the Beautiful: Hegel and the Philosophy of Pictorial Modernism.
Chicago: University of Chicago Press, 2014.
PREISENDANZ, W. “Zur Poetik der deutschen Romantik. I. Die Abkehr vom Grundsatz der
Naturnachahmung”. In: H. Steffen, ed., Die deutsche Romantik. Göttingen, 1967, 54-
74.
Allen Speight | 303
SPEIGHT, Allen. “Art as a Mode of Absolute Spirit: Hegel’s Encyclopedia Philosophy of Art”.
In: Hegel’s Philosophy of Spirit: A Critical Guide, ed. Marina Bykova. Cambridge:
Cambridge University Press, 2019; 225-242.
TODOROV, Tzvetan. Theories of the Symbol. Trans. Catherine Porter. Ithaca: Cornell
University Press, 1982.
TUMARKIN, A. “Die Überwindung der Mimesislehre in der Kunsttheorie des XVIII. Jhdts”.
In: Festgabe für S. Singer. Tübingen, 1930.
11
1
O presente texto originou-se da pesquisa realizada na Universidade Humboldt, em Berlim, fomentada com uma
bolsa do programa Print-Capes.
2
Professor no departamento de Filosofia da UFSC e pesquisador CNPq.
3
Carta de 22 de dezembro de 1924. In: Benjamin, W. Briefe I. Herausgegeben und mit Anmerkungen versehen von
Gershorn Scholem und Theodor W. Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1978, p. 368.
Ulisses Razzante Vaccari | 305
Benjamin fala de sua visita à amiga em Riga no final de 1926: “Andei duas
horas, solitário, pelas ruas. Nunca mais tornei a vê-las assim. De cada
portal de casa lançava-se um jato de chamas, cada pedra de esquina
espalhava centelhas e cada bonde vinha chegando como o corpo de
bombeiros”4.
Lacis, porém, não foi a única razão do desvio político do pensamento
de Benjamin. Também a amizade com Brecht, que ele conheceu em maio
de 1929, influenciou na reviravolta materialista de Benjamin. Comentando
esse primeiro encontro de 1929, escreve Erdmut Wizisla:
4
Benjamin, W. Rua de mão única. In: Obras Escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Brasiliense, 2009, p. 34.
5
WIZISLA, E. Benjamin und Brecht. Die Geschichte einer Freundschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2019,
p. 18.
306 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
6
BENJAMIN, op. cit., p. 9.
Ulisses Razzante Vaccari | 307
7
BENJAMIN, op. cit., p. 28.
8
Id., op. cit. “A crise do romance: sobre Berlin Alexanderplatz, de Döblin”. In: Obras Escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 55.
308 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
9
Id., op. cit., p. 30.
10
ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 176.
Ulisses Razzante Vaccari | 309
11
BENJAMIN, W. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. In: O anjo da história. Trad. João Barrento. São Paulo:
Editora Autêntica, 2012, p. 125.
12
Id., ibid., p. 146.
13
Id., “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os Pensadores. Trad. José Lino Grünnewald. São
Paulo: Editora Abril, 1975, p. 11.
310 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
14
Id., op. cit., p. 127.
Ulisses Razzante Vaccari | 311
15
Id., Passagens (vol. I). Trad. Irene Aron. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018, p. 54.
312 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
16
TIEDEMANN, R. “Introdução à edição alemã” [das Passagens] (1982). In: BENJAMIN, op. cit.., p. 30.
17
Id., ibid., pp. 30-31.
Ulisses Razzante Vaccari | 313
18
BENJAMIN, op. cit., vol. II, p. 665 (K 2, 5).
19
Cf. COHEN, MargareT. Profane Illumination. Walter Benjamin and the Paris of surrealist revolution. Berkeley, Los
Angeles, London: University of California Press, 1993, pp. 1-16.
314 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
20
Cf. BENJAMIN, W. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras Escolhidas III. Trad. José Carlos Martins Barbosa
e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, pp. 103-110.
21
BENJAMIN, W. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. In: Obras Escolhidas I. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 23.
22
Id., ibid., p. 25.
Ulisses Razzante Vaccari | 315
Ao encarar esses objetos do século XIX não como objetos mortos, mas
como objetos que, a despeito de sua inutilidade, permanecem vivos, nos
sonhos do presente, os surrealistas visaram libertá-los das formas
calcificadas que assumiram, aproveitando sua energia contida para a
revolução. Nessa sua tarefa, porém, “nem sempre o surrealismo esteve à
altura dessa iluminação profana, e à sua própria altura”, pois faltou ao
movimento como um todo, para que se transformasse de fato em um
movimento político-revolucionário, a conquista de um ponto fixo,
necessário para a interpretação desses sonhos, isto é, examiná-los do
ponto de vista da vigília. Para que o intento surrealista se transformasse
em um movimento político-revolucionário, não bastava apenas submeter
a consciência à embriaguez do sonho, mas também organizar os elementos
provenientes dele por meio de um trabalho consciente. Assim, escreve
Benjamin, não há dúvida que, “em todos os seus livros e iniciativas, a
proposta surrealista tende ao mesmo fim: mobilizar para a revolução as
energias da embriaguez”. Mas “a isso se acrescenta uma concepção estreita
e não-dialética da essência da embriaguez. [...] Toda investigação séria dos
dons e fenômenos ocultos, surrealistas e fantasmagóricos, precisa ter um
pressuposto dialético que o espírito romântico não pode aceitar”23.
Essa dialética entre o sonho e a vigília, ausente no surrealismo, será
desenvolvida por Benjamin na obra das Passagens, cujo método mesmo é
definido como dialético, nesse sentido específico de, por um lado, imergir
no universo onírico do século XIX – “para compreender as passagens a
fundo, nós as imergimos na camada mais profunda do sonho”24 – e, por
outro, despertar dele visando sua interpretação:
23
Id., ibid., pp. 32-3.
24
Id., op. cit., vol. I, p.349 (H 1a, 5).
316 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época
seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de
uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu
depósito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a
utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções
duradouras até as modas passageiras26.
25
Id., ibid., vol. II, p. 660 (K 1, 3).
26
Id., ibid., vol. I, pp. 55-6.
Ulisses Razzante Vaccari | 317
27
As teses Sobre o conceito de história, de Benjamin, foram citadas a partir da tradução de Jeanne Marie Gagnebin e
Marcos Lutz Müller, tal como citadas em: LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre
o conceito de história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 130 [Tese XVII].
28
Cf. BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. Trad. Tomaz Tadeu. São Paulo: Autêntica, 2010, p. 35.
29
Cf. BENJAMIN, Sobre o conceito de história, ed. cit., p. 119 [tese XIV].
318 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
30
BENJAMIN, op. cit., p. 128 [tese XVI].
31
Id., op. cit., vol. III, p. 1369 (Ao, 4).
32
Id., ibid., p. 1378 (Do, 1).
Ulisses Razzante Vaccari | 319
33
Id., ibid., p. 706 (M 2, 4).
34
ARENDT, op. cit., p. 176.
320 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
35
BENJAMIN, op. cit., vol. I, p.412 (J 5, 1).
36
BAUDELAIRE, op. cit., p. 35.
Ulisses Razzante Vaccari | 321
37
BENJAMIN, op. cit., vol. I, p. 84.
38
BAUDELAIRE, op. cit., p. 36.
322 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
O que é tão difícil de entender em Benjamin é que, sem ser poeta, ele pensava
poeticamente e, por conseguinte, estava fadado a considerar a metáfora como
o maior dom da linguagem. A ‘transferência’ linguística nos permite dar forma
material ao invisível [...] e assim torná-lo capaz de ser experimentado. Não lhe
era problema entender a teoria da superestrutura como a doutrina final do
pensamento metafórico — exatamente porque, sem muito trabalho e evitando
todas as ‘mediações’, ele relacionava diretamente a superestrutura com a
chamada infraestrutura ‘material’, que para ele significava a totalidade dos
dados sensorialmente experimentados. Estava evidentemente fascinado por
aquilo mesmo que os outros rotulavam de pensamento ‘marxista vulgar’ ou
‘não dialético’40.
39
Cf. o fragmento Go, 17 das Passagens Parisienses. In: BENJAMIN, op. cit., vol. III, p. 1395.
40
ARENDT, op. cit., pp. 179-180.
Ulisses Razzante Vaccari | 323
41
Cf. a carta de Scholem de 30 de março de 1931. In: SCHOLEM, G. Walter Benjamin – Geschichte einer Freundschaft.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2016, pp. 283-87.
42
ADORNO, T. W. Correspondência 1928-1940. São Paulo: Editora da Unesp, 2012, pp. 402-3.
324 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
43
Id., Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 21.
44
Id., ibid., p. 22.
Ulisses Razzante Vaccari | 325
45
Id., iibid., p. 25.
326 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
46
Cf. MOSÈS, S. L´ange de l´histoire. Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil, 1992, pp. 9-14.
47
BENJAMIN, Sobre alguns temas em Baudelaire, ed. cit., pp. 133-4.
48
Id., op. cit., p. 87 [tese IX].
Ulisses Razzante Vaccari | 327
Referências
______. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2009.
ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
49
Id., “A tarefa do tradutor”. In: Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampf Lages e Ernani Chaves. São
Paulo: Editora 34, 2011, p. 117.
328 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3
BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. Trad. Tomaz Tadeu. São Paulo: Autêntica,
2010.
______. “A crise do romance: sobre Berlin Alexanderplatz, de Döblin”. In: Obras Escolhidas
I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2009.
______. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. In: O anjo da história. Trad. João
Barrento. São Paulo: Editora Autêntica, 2012.
______. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os Pensadores. Trad.
de José Lino Grünnewald. São Paulo: Editora Abril, 1975.
______. Passagens. Trad. Irene Aron. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
______. “Rua de mão única”. In: Obras Escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.
São Paulo: Brasiliense, 2009.
______. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras Escolhidas III. Trad. José Carlos
Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 2000.
______. “A tarefa do tradutor”. In: Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampf
Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2011.
COHEN, M. Profane Illumination. Walter Benjamin and the Paris of surrealist revolution.
Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1993.
LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
WIZISLA, E. Benjamin und Brecht. Die Geschichte einer Freundschaft. Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 2019.
A Editora Fi é especializada na editoração, publicação e divulgação de pesquisa
acadêmica/científica das humanidades, sob acesso aberto, produzida em
parceria das mais diversas instituições de ensino superior no Brasil. Conheça
nosso catálogo e siga as páginas oficiais nas principais redes sociais para
acompanhar novos lançamentos e eventos.
www.editorafi.org
contato@editorafi.org