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Pensamento & Realidade

Comitê Científico

Prof. Dr. Gilvan Fogel


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof. Dr. Plínio Junqueira Smith


Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Prof.ª Dr.ª Ivana Costa


Universidade de Buenos Aires (UBA)

Prof. Dr. Jelson Oliveira


Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)

Prof. Dr. Francisco José Dias de Moraes


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Prof. Dr. Robson Costa Cordeiro


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Prof. Dr. André Martins


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof.ª Dr.ª Gisele Amaral dos Santos


Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Prof. Dr. Narbal de Marsillac Fontes


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Prof.ª Dr.ª Marisa Divenosa


Universidade de Buenos Aires (UBA)
Pensamento & Realidade

Entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno


Volume 3

Organizadores
André Correia
Ray Renan
Wesley Rennyer
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia/imagem de Capa: Ruins at Sunset, Hermann David Salomon Corrodi

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


CORREIA, André; RENAN, Ray; RENNYER, Wesley (Orgs.)

Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3 [recurso eletrônico] / André Correia;
Ray Renan; Wesley Rennyer (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

328 p.

ISBN - 978-65-5917-403-4
DOI - 10.22350/9786559174034

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Pensamento; 2. Realidade; 3. Metafísica; 4. Epistemologia; 5. Coleção; I. Título.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário

Apresentação 9
Ray Renan
Wesley Rennyer

1 13
Pensando o princípio no fundamento / The Principle in the Foundation
Emmanuel Carneiro Leão

2 29
Parmênides, o Pensamento e o Destino da Filosofia
Ray Renan Silva Santos

3 76
“Sensação e saber não são o mesmo” (Platão, Teeteto 186e)
José Trindade Santos

4 102
Διάνοια: essência e égide do homem
Wesley Rennyer M. R. Porto

5 137
A especificidade da filosofia ocidental europeia diante da filosofia oriental ou
africana
Marco Aurélio Werle

6 157
Hegel e Heráclito: a Justiça do Uno
André Felipe Gonçalves Correia
7 212
Caráter e destino: a psicologia moral de Aristóteles
Francisco Moraes

8 236
Furores Antigos: sobre o conceito de furor na Grécia, entre delírio divino e demência
Monalisa Carrilho

9 262
Pensamentos ao vento
Felipe Ramos Gall

10 285
Hegel on Imitation, Art and Natural Form: Ancient and Modern Questions
Allen Speight

11 304
O marxismo literário de Benjamin: entre a dialética e a imagem
Ulisses Razzante Vaccari
Apresentação

Ray Renan
Wesley Rennyer

O livro que ora se apresenta ao leitor é uma realização do


pensamento. É fruto de ideias que brotam na alma humana e, depois de
lapidadas, ganham forma, estruturam-se, atendem às exigências do tempo
para então tornarem-se texto, isto é, solidificação do pensamento que
serve de estímulo ao pensar. A organização deste projeto foi empreendida
pelo Grupo de Filosofia Greco-Germânica (GFGG), composto pelo Dr. Ray
Renan (PUCPR) e os doutorandos André Correia (UFRJ) e Wesley Rennyer
(UFRN), que na esteira das publicações anteriores, tem a honra de colocar
à disposição do público interessado em textos filosóficos a terceira edição
da coletânea Entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno, cujo título
apresenta-se sob o binômio Pensamento & Realidade – compreendido em
sua dinâmica de cisão e união. Nesta edição, além dos textos dos próprios
organizadores, contamos com a ilustre participação do filósofo Emmanuel
Carneiro Leão, que aqui nos apresenta uma reflexão inédita, também
vertida para o inglês pela prof. Dr.ª Gisele Amaral (UFRN). Ademais,
colaboram conosco o Dr. Felipe Gall (PUC-Rio) e os profs. Drs. José
Trindade Santos (UFC), Marco Aurélio Werle (USP), Francisco Moraes
(UFRRJ), Allan Speight (Boston University), Ulisses Vaccari (UFSC) e
Monalisa Carrilho (UFRN).
Evocar os termos “pensamento” e “realidade”, no âmbito da filosofia,
é abrir um amplo leque de possibilidades de investigação, de modos de
expressão e de conteúdos a serem elencados e perquiridos. Os caminhos
que se ramificam a partir do ensejo dos termos-chave deste livro guiam o
10 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

intelecto ao encontro do diverso no mesmo, isto é, guiam-no às esferas


mais díspares do real, mas que por se constituírem como partes do todo,
do real enquanto unidade, perfazem uma única e mesma singularidade. O
que aqui é dito há de se evidenciar no itinerário que, neste volume, cada
autor percorreu, visto que o ponto de partida, as bases teóricas, o
repertório lexical, a estrutura formal do raciocínio e o objetivo final de cada
texto são manifestamente distintos, embora todos estejam perpassados
pela (e submetidos à) lógica do pensar que pensa o que é. Aqui se revela
um traço da relação sui generis entre pensamento e realidade, que consiste
em o pensamento dirigir-se ao real a fim de compreendê-lo, de vê-lo
enquanto ambiência do que foi, do que é e do que há de ser, buscando
enxergá-lo tanto em suas tênues silhuetas, minúcias ocultas e vestígios
semivisíveis, quanto em seus contornos mais vibrantes, generalidades
mais manifestas e compostos mais evidentes. O que Platão escreve sobre
os “amigos das ideias” (τοὺς τῶν εἰδῶν φίλους), em O Sofista 248a, ilustra
bem a tendência do pensamento aqui aludida, na medida em que é “pela
alma, através do pensamento, que comungamos com o ser real” (διὰ
λογισμοῦ δὲ ψυχῇ [κοινωνείν] πρὸς τὴν ὄντως οὐσίαν)1, ou seja, somente
pelo pensamento – que desponta na alma humana como δύναμις
privilegiada do saber – que podemos ascender e aspirar integrarmo-nos à
dimensão ontoveritativa do real, cujo brilho encontra-se ciclicamente
eclipsado pelas sombras efêmeras do erro, da falsidade e das ilusões
humanas. Por isso, imergir no oceano do pensar – nolens, volens – torna-
se uma forma de romper com as cadeias daquilo que nos prende à sedução
das obviedades, do que está sempre ao alcance das mãos e dos enganos
tangíveis; com efeito, se essa experiência de reflexão não nos faculta a
apreensão do que é em sua totalidade ou essência, certamente há de nos

1
PLATO. Theaetetus-Sophist. Translated by H. N. Fowler. London: Harvard University Press, 1921, pp. 378-80.
Ray Renan; Wesley Rennyer | 11

conferir, em razão da grandeza do universo que o pensamento contempla,


uma união com aquilo que há de mais próprio no homem.
Esse proprium do homem, isto é, aquilo que o diferencia dos demais
viventes e o caracteriza enquanto tal, é precisamente o pensamento; mas
o pensamento, para se consumar como o que precisa ser, não pode fazê-lo
senão remetendo às próprias possibilidades do pensar e, portanto, à sua
origem. Tal origem, por sua vez, é aquilo que o grego entende por ἀρχή, e
ela exprime o princípio de onde todas as coisas provêm, por meio do qual
se manifestam e para o qual retornam em sua dinâmica de eclosão e
realização. Cumpre à Filosofia, e somente à Filosofia, a tarefa de pensar a
ἀρχή que nos evidencia a realidade como tal e, à medida que ela consuma
essa tarefa, o próprio pensamento se realiza em uma unidade com o
princípio de que provém. Aqui reside um paradoxo da finitude humana,
pois embora o pensamento seja o que há de mais próprio no homem, não
lhe é dado o “domínio” sobre esse acontecimento, precisamente porque,
enquanto acontecimento originário, o pensamento provém da origem de
todas as origens. Assim, pelo fato de o pensamento provir da origem das
origens, compreendê-lo exige do homem a tarefa de resgatar o que lhe está
mais próximo e, paradoxalmente, mais distante. Tal é o sentido das
palavras de Heidegger em seu texto intitulado Serenidade: “O pensar seria,
pois, o chegar-à-proximidade do distante” (Das Denken wäre dann das In-
die-Nähe-kommen zum Fernen)2. Isso que está distante, de que
precisamos nos aproximar, é a origem, de modo que pensar não é senão
pensar a origem. Trata-se da genuína unidade entre ἀρχή e ἄνθρωπος –
sendo este o único vivente para o qual aquela se faz ver como o que é e
precisa ser –, mas que só se manifesta mediante o vigor do pensamento
que articula a origem de todas as coisas enquanto origem do próprio

2
HEIDEGGER, Martin. Gelassenheit. Stuttgart: Neske, 1982, p. 45.
12 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

homem numa diferenciação essencial em relação aos demais viventes.


Múltiplos são os modos de articulação do conteúdo em questão, e isso se
deve ao seu caráter ilimitado, próprio à ἀρχή, que é, nos diversos períodos
da Filosofia, sempre a mesma, mas pensada e dita de acordo com as suas
diferenciações no pensamento. Essas diferenciações do pensamento que
articula a realidade e da realidade donde provém o pensamento vêm à luz
mediante os textos apresentados no presente volume.
1

Pensando o princípio no fundamento

Emmanuel Carneiro Leão 1

No final do primeiro capítulo do livro Delta, o quinto livro de sua


Metafísica, Aristóteles nos fala da coesão de todo princípio, com as
seguintes palavras:

Πασῶν μὲν οὖν κοινὸν τῶν ἀρχῶν


τὸ πρῶτον εἶναι ὅθεν ἢ ἔστιν
ἢ γίγνεται ἢ γιγνώσκεται.
“Comum, portanto, a todos os princípios (é) ser o primeiro,
donde tanto se é (o que se é), como se vem a ser (o que se vem a ser),
como se conhece, (o que se conhece).”

É neste sentido que ἀρχή, princípio, é a própria realidade na essência,


é a própria realidade na existência, é a própria realidade na verdade de
tudo que é e não é, de tudo que está e não está sendo. Um elã de partilha
e difusão recolhe à solidez de uma coesão ontológica todos os modos de
ser, todas as maneiras de dar-se e relacionar-se, de qualquer princípio. É
o κοινόν, o sentido do πρῶτον ὅθεν, “o primeiro a partir do qual”, “o
primeiro donde” provém e acontece um real na originariedade de sua
realização.

1 Doutor pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Professor titular emérito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor titular da Universidade Gama Filho.
14 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

A questão essencial, que, neste primeiro capítulo do Delta, Aristóteles


nos entrega ao pensamento e nos confia à reflexão, diz respeito e concerne
à coesão nos modos de ser, de vir a ser e conhecer. O que confere
comunhão ontológica aos usos de Linguagem, o que rende comunidade
ontológica aos modos de exercer-se do princípio? Qual será a vigência da
comunhão e donde provém o vigor da comunidade que o princípio traz
consigo, na pluralidade de seus muitos adventos Históricos? Qual é o verbo
que a realidade conjuga, ao tornar-se princípio de tudo? Será fazer e
produzir ou será agir e criar ou ainda fundar e destinar, ou conviver na
existência? Qual será mesmo o verbo que a realidade conjuga nas
realizações do real? E o que é um verbo? Todos os verbos não serão outros
tantos níveis, outras tantas dimensões, outros tantos processos pelos quais
a realidade encaminha a totalidade do real e o universo das realizações
numa variedade infinda de caminhos?
Neste caso, ἀρχή seria sempre em qualquer caminho uma explosão
de possibilidades em busca de realização. E o princípio da realidade não
teria nem o peso das repetições nem a gravidade da evolução, não disporia
nem do poder da eficiência nem do domínio da causalidade. Seria apenas
e somente, mas sempre, inauguração originária. Instalaria cada vez a
primeira vez. O princípio já não seria nem uno nem múltiplo, mas a leveza
da diferenciação das diferenças. Seria, então, a partir do nada que
principiaria tanto a posição do real quanto a imposição da necessidade. No
exercício do princípio, quebrar-se-ia a regra consagrada de que ex nihilo
nihil fit, “do nada não se faz nada” e instalar-se-ia uma experiência
misteriosa, a experiência alvissareira de que ex nihilo omnia fiunt, “é do
nada que se faz tudo”!
Assim, o que, ao longo das épocas de evolução da metafísica, se
chamou de primeiros princípios, a saber, os princípios de identidade, de
não contradição, do terceiro excluído, o princípio da razão determinante
Emmanuel Carneiro Leão | 15

ou suficiente, o princípio da causalidade, todos, primeiros princípios da


existência, da essência e da verdade das coisas, já seriam derivados, por se
fundarem na ἀρχή da realidade. Por não ter princípio, mas ser o princípio
de tudo, a realidade é o princípio por excelência, o princípio κατ’ ἐξοχήν, o
princípio de todos os princípios, a principialidade, que torna e faz ser
princípio todo e qualquer princípio. O princípio dos princípios seria, pois,
o abismo da realidade, que daria, prestaria e renderia fundo a todo
fundamento. Por ser fundo sem ter fundamento, a realidade não está sub
ordenada nem subordinada a nenhum princípio, pois, a rigor, nem existe
nem pode existir. Nestes termos, o fundo de todo fundamento é não ter
fundamento e consiste em equilibrar-se sobre um abismo sem fundo, o
abismo do nada.
A partir da idade moderna, a construção do mundo na ciência, na
técnica e na filosofia foi se afastando progressivamente do Nada criativo
da realidade. Todo esforço se concentra em superar um nada somente
negativo, oriundo da simples negação do real. Todo nada é ausência de
alguma coisa e o nada, a ausência de todas as coisas. O princípio da
realidade se reduz todo ao princípio da razão. Leibniz o formulou nas
seguintes palavras: nihil est sine ratione, “nada é sem razão” e Hegel o
consagrou na dialética entre real e racional: was vernünftig ist, ist
wirklich, und was wirklich ist, ist vernünftig, “tudo que é racional é real e
tudo que é real é racional”.
Toda verdade é um espetáculo de luz e som que a realidade nos
proporciona nas realizações do real. Neste espetáculo se constitui e
organiza uma diferença de nível, de vigência e de acesso entre as verdades.
Umas verdades são luminosas. Têm luz própria. São verdades, fontes de
luz, que geram em si mesmas a luz de seu brilho. É tão intensa sua
luminosidade que dispensam intermediários. Elas se bastam a si mesmas.
Para serem vistas e apreendidas, não necessitam de outra luz. Impõem-se
16 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

à percepção autocraticamente com o fulgor de seu próprio poder de fogo.


São verdades evidentes por si mesmas.
Diferentes são as verdades iluminadas. Não têm luz própria. São
verdades-efeito que brilham com a luz das outras. Para serem vistas e
percebidas, requerem iluminação. E a lógica é a arte da iluminação. As
funções de verdade dão um espetáculo de claridade por acareação. Ao
serem acareadas, as verdades se iluminam.
O princípio da razão é uma verdade luminosa que evidencia a luz da
razão em todas as coisas, pois nada é sem razão, tudo tem necessariamente
sua razão. É a ditadura da razão. Mas que ditadura é esta? A ditadura da
razão é exclusão e exclusividade. Consiste em construir o mundo num
sistema de prestação de contas. Suas explicações são evidentes e
suficientes, coerentes e consistentes para poderem ser verdadeiras e reais.
Tudo, que é ou deixa de ser, tudo, que se faz ou se deixa de fazer, tem
fundamento na razão. Prestar conta e dar explicação não se reduz apenas
a arguir e argumentar. Inclui também operar e transformar o mundo em
dispositivos e ferramentas, em artefatos e produtos, em mercadorias de
satisfação e entorpecimento. Então “está dominado, está tudo dominado”!
É que o princípio da razão não diz apenas a regência e o domínio da razão.
Diz muito mais do que isto. Diz sobretudo a razão como regra e domínio
de tudo.
Racionalizar é sempre unidimensionalizar, no sentido de reduzir
tudo a uma única dimensão, a dimensão da razão, tal como acontece com
a globalização do planeta, que impõe a parte ao todo, transformando uma
parcialidade em totalidade. Globalização não é reunião, mas abolição das
diferenças: é a fragmentação de uma uniformidade generalizada e por isso
mesmo estéril, mas poderosa. Por isso Leibniz chamou o princípio da
razão principium grande et nobilissimum, “princípio poderoso e da
máxima importância”.
Emmanuel Carneiro Leão | 17

A racionalização universal, com buscar fundamento racional para


tudo, terminou por transferir para a razão do e no sujeito da História o
último fundamento. Com esta transferência, o mundo sofreu um processo
de contínua dessacralização. O homem moderno entrou num movimento
de perda radical. Foi perdendo tudo o mais e ficando somente com a razão.
Por isso hoje em dia não estamos apenas em fim e começo de milênio.
Estamos em fim e começo de História. E na avalanche desta passagem
vivemos a ordem da desordem. A ética, como tal, a ética, como ética, e não
apenas as normas, mas a própria possibilidade de se criar e impor normas,
perdeu todo sentido e desapareceu o vigor de sua força de convencimento.
Assim, já não é possível não se sentir o terror, já não se pode evitar a
violência nem deixar de recorrer à guerra. É o perfil do homem pós-
moderno virtualizado e enredado por tantas redes. Nietzsche o apresentou
na figura do “homem louco”, der tolle Mensch!
No último quartel do século 19, no ano de 1882, Nietzsche publicou
os quatro livros da Froeliche Wissenschaft, Gaia Ciência. O aforismo 125
do terceiro livro traz o título: Der tolle Mensch, “O homem louco”. Neste
aforismo, Nietzsche denuncia não apenas a morte de Deus, mas o
assassinato de Deus. A morte de Deus não foi uma morte natural. Deus
morreu de morte violenta. Wir haben ihn getoetet – ihr und ich. Wir alle
sind seine Moerder, “Nós o matamos – vocês e eu. Todos nós somos os
seus assassinos”!
Quatro anos depois, em 1886, Nietzsche acrescentou aos quatro livros
de A Gaia Ciência, de 1882, um quinto livro com o título: Wir Furchtlosen,
“Nós, destemidos”. O primeiro aforismo do novo livro começa com a
pergunta: Was es mit unserer Heiterkeit auf sich hat?, “O que está havendo
com a inocência de nossa jovialidade?”. O texto responde, dizendo: Das
grosste neuere Ereignis – dass Gott tot ist, dass der Glaube an den
christlichen Gott unglaubwuerdig ist, beginnt bereits seine ersten Schatten
18 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ueber Europa zu werfen, “O maior dos acontecimentos mais recentes – que


Deus está morto, que a fé no Deus cristão se tornou indigna de fé – já
começa a projetar sobre a Europa suas primeiras sombras”!
Hoje em dia, as sombras da morte violenta de Deus já cobriram com
o estado de violência a história humana em todo o planeta. Todos são ao
mesmo tempo autores e vítimas. Não há inocentes. Só há culpados. O
estado de violência atingiu todos e cada um. Todos nós, sem exceção
alguma, somos, de alguma maneira, terroristas e vítimas do terrorismo.
Não somente o homem-bomba, a mulher-bomba, a criança-bomba são
terroristas. O tanque-bomba também, o avião-bomba também, o foguete-
bomba também o são. A morte violenta de Deus levou consigo a
humanidade do homem em todos os homens. E não se trata de um ato
singular de indivíduo. É uma condição histórica que absorve todos os
indivíduos e atinge a própria fonte geradora de todo valor.
Nesta atropelada, não apenas a religião foi junto. A ética também, a
política também, a dignidade e liberdade também, nenhuma grandeza
histórica escapou ao arrastão desta avalanche. Os atos terroristas provêm
e se alimentam do estado de terror. Não se pode pensar em ética. As fontes
da criação se esgotaram e todos os espaços da convivência já estão
ocupados pelo controle racionalizado de autômatos finitos.
Está escrito nos salmos 14 e 53, segundo a versão latina da Vulgata
de São Jerônimo: Dicit insipiens in corde suo: non est Deus, “diz o
insipiente consigo mesmo no íntimo de seu coração: Deus não existe”!
Davi considerava o homem sem Deus um insipiens, um insipiente,
um idiota. Hoje em dia, na regência racional do princípio da razão, como
fundamento de tudo, o homem sem Deus não se acha insipiens, um idiota.
Ao contrário, considera-se um sapiens, no sentido em que sábio e
sabedoria são sinônimos de cientista e ciência, hoje considerados o rei e o
reino da racionalidade.
Emmanuel Carneiro Leão | 19

Este homem sem Deus, no entanto, não deve ser identificado


simplesmente com todos e cada um dos indivíduos que hoje vivem na
terra. O homem sem Deus de hoje é sobretudo a consciência histórica da
subjetividade racional que, com empáfia e presunção dos estreitos,
constitui a mentalidade ideológica dos comportamentos anônimos
vigentes em instituições e processos culturais. São padrões coletivos
impessoais de ação e reação que não inscrevem Deus em suas estruturas
nem na índole de suas decisões, embora, muitas vezes, seus agenciadores
professem Deus tradicionalmente em gestos e palavras. O homem sem
Deus vive na vida de todos nós um paradoxo vivo, um paradoxo “inscrito
na carne com letras de sangue” na apresentação lapidar do Kafka da
Colônia Penal.
O homem sem Deus se levanta com o sol e, no segredo de seu coração,
dirige para Deus uma série de apóstrofes cegas, mas cegas de uma cegueira
radical. A cegueira radical não se constata com a visão dos olhos. A
cegueira radical só se per-cebe com o pensamento, pensando o abismo
sem fundo da realidade. Pois a cegueira radical não impede de ver. Ao
contrário, possibilita ver qualquer coisa, por já ter reduzido tudo a
determinados padrões de visão. Cega para o nada criativo da realidade, a
cegueira radical só não vê as profundezas sem fundo do homem, do
mundo, da vida. E com esta cegueira misteriosa, o homem sem Deus dirige
para Deus uma série de apóstrofes. Com algumas delas, queria colocar em
discussão estes pensamentos acanhados, ingênuos, sobre o princípio do
fundamento; o homem sem Deus arremete contra Deus suas invectivas:

Deus, onde estás que não respondes?


Se Tu existes realmente, fala comigo!
E eis que um sabiá começa a cantar!
Deus, se Tu existes verdadeiramente, deixa-me ver-te!
20 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

E eis que o relâmpago atravessa uma nuvem!


Deus, se Tu de fato existes, faz algum barulho!
E eis que o trovão rompe o silêncio do céu!
Deus, se Tu deveras existes, deixa-me sentir Tua presença!
E eis que os raios do sol inundam-lhe os olhos de luz!
Deus, se Tu existes na real mostra-me um milagre!
E eis que uma criança nasce no meio da noite!
Deus, se Tu existes de mesmo, dobra a prepotência do orgulho
humano!
E eis que o amor acende um fogo no coração do homem, que,
crescendo sempre, toma conta de toda a sua alma!
Deus, se Tu existes de verdade acaba com a podridão do mundo!
E eis que a flor de lis sobe de um pântano!
Deus, se Tu de fato existes, tira a dor do coração humano!
E eis que, no fundo de todo sofrimento, se escuta o grito primal da
vida!
Deus, se Tu concretamente existes, apaga a violência da história e
afasta a fome e as doenças do mundo!
E eis que a esperança no outro de todos alimenta de fé o perfume que
exala das próprias entranhas do mal!
Deus, se Tu existes realmente livra o homem da morte!
E eis que do seio da própria morte nasce a imortalidade da vida!
The Principle in the Foundation

Emmanuel Carneiro Leão 1


English version by Gisele Amaral 2

In Metaphysics’ Book V, Aristotle approaches the matter of cohesion


of all principles by stating that,

Πασῶν μὲν οὖν κοινὸν τῶν ἀρχῶν τὸ πρῶτον εἶναι ὅθεν ἢ ἔστιν ἢ
γίγνεται ἢ γιγνώσκεται.3
“It is common, then, to all principles to be the first thing from which
something either is or comes into being or becomes known.”

In this sentence, principle (ἀρχή) stands for reality itself. This means
that it encompasses essence, existence, and the truth of everything that is
and is not. Therefore, it seems reasonable to assume that there must be
something providing cohesion to all modes of being and all ways in which
they relate to each other. Paying close attention to the sentence, it is not
difficult to grasp that the κοινόν (to which the πρῶτον ὅθεν refers) – “the
first thing from which” something real takes place – means: from its early
realization to what it ultimately is as it is.
In sum, Aristotle’s major contribution in the above-mentioned
passage concerns what provides cohesion to all modes of being, all ways
of becoming, and all means of knowing. This can lead to questions such
as: what grants the ontological community its communion of principles,

1
PhD at the Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Emeritus Professor at the Federal University of Rio de Janeiro and
Full Professor at Gama Filho University.
2
Associate Professor of Ancient Philosophy at the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN).
3
Aristotle, Metaphysics V 1013a17-19.
22 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

considering Language and its uses? What sustains such communion?


Taking into account the plurality and manifold historical events, where
does the vitality of the ontological community come from? Which verb
reality conjugates when embodying the principle of everything? Does this
have to do with making and producing? Acting and creating? Establishing
and being destined? Cohabiting with existence? What verb reality
conjugates when real is realized? What is a verb after all? Would not all
verbs be nothing but other levels, other dimensions, or one of many
processes through which reality drives the totality of real and its
realizations towards an endless variety of paths?
However, it does not matter what path one follows. Ἀρχή is always
going to be an explosion of possibilities in search of the ultimate
realization. Otherwise, it would have neither the burden of repetitions, nor
the gravity of evolution – neither the power of efficiency, nor ownership
of causality. The principle of reality would be just an original inauguration
that always, once and only, “install things”. The principle of reality would
not be neither one nor multiple, but the weightlessness differentiation of
differences. Both the place of real and the imposition of necessity would
come from nothingness. Ergo, the enshrined rule, ex nihilo nihil fit
(“nothing comes from nothingness”) would collapse and make room for a
mysterious and auspicious experience, namely, ex nihilo omnia fiunt
(“everything comes from nothingness”)!
Thus, what was once called “the first principles” – throughout the
history of metaphysics – namely, principles of identity, non-contradiction,
excluded middle, sufficient reason, causality, and all the other principles
of the existence, essence and truth of all things would be derivatives
because they would come from the ἀρχή of reality. Being the principle of
everything, though having no principle itself, ἀρχή is the principle par
excellence (κατ’ ἐξοχήν), “the principle of all principles”, or the
Emmanuel Carneiro Leão | 23

“principleness of all principles”. The principle of principles would be, then,


the abyss of reality that provides ground for all foundations. Being a
groundless foundation, reality cannot be sub-ordained or subordinated to
any principle because, in fact, it neither exists nor can exist. In these terms,
the foundation of all foundations cannot have foundation. Rather, it must
consist of balancing itself over the foundationless abyss – the abyss of
nothingness.
From Modernity onwards, science took over both technology and
philosophy. It progressively pushed the creativeness of nothingness away
from reality. Efforts of science went towards overcoming a negative
nothingness, derived from the mere negation of real. In this sense, as
nothing is the absence of something, nothingness is the absence of all
things. That is how the principle of reality was reduced to the principle of
sufficient reason. Leibniz formulated that by stating that nihil est sine
ratione (“nothing is without a reason”). Hegel acknowledged it when
unraveling the dialectics between real and rational, was vernünftig ist, das
ist wirklich; und was wirklich ist, das ist vernünftig (“everything that is
rational is real and everything that is real is rational”).
However, every truth is a spectacle of light and sound provided by
reality in the realizations of the real. In this spectacle, truths are
constituted and organized by differences in level, validity, and access.
Some truths are bright themselves. They have their own light – a light that
generates the light of their own lightness. Its luminosity is so intense that
there is no need for intermediaries. They are self-sufficient truths. They
do not need other lights to be seen and apprehended. They impose
themselves on perception with a blaze of their own firepower. They are
self-evident truths.
The enlightened truths are different though. They do not have their
own light. They depend upon the effect of other truths. They require the
24 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

light of other truths to be seen and perceived. As the logic is the proper art
of illumination, functions of truth illuminate in as much as they are
confronted and in so far as they are confronted, they are illuminated.
The principle of sufficient reason claims to be the luminous truth that
reveals the light of reason in all things. Since “nothing is without a reason”,
everything necessarily has its reason to be. Nonetheless, this is rather a
dictatorship of reason. What kind of dictatorship is this? This dictatorship
of reason consists of exclusion and exclusivity. It builds a world based
upon a system of accountability. Explanations must be evident, sufficient,
coherent, and consistent – only then they can be considered true and real.
Everything that is and is not, everything that is done or is not done, relies
upon reason. In addition, it must be accountable and have an explanation.
And they cannot be just contending and arguing. They must include
operating and transforming the world into devices and tools, artifacts and
products, commodities of satisfaction and numbness. “It is under siege;
everything is under siege!”. This is the principle of sufficient reason. It
does not simply state the regency and domain of reason, but places reason
as the rule of everything.
Therefore, to rationalize is to give dimension, in the sense of reducing
everything to a single dimension – the dimension of reason. In short, this
is what happens with the globalization of the planet. It imposes the part
upon the whole, turning partiality into totality. Globalization is not an
actual reunion, though the abolition of differences. It is the fragmentation
of a generalized uniformity. For this reason, it is sterile, however powerful.
That is why Leibniz called the principle of sufficient reason principium
grande et nobilissimum (“a great and the noblest of principles”).
By seeking a rational foundation for everything, universal
rationalization ended up transferring the ultimate foundation to reason of
and in the subject of history. With this transferring, the world underwent
Emmanuel Carneiro Leão | 25

a process of continuous dissacralization. Modern human beings set foot


into a movement of radical loss – loss of everything else but reason.
Nowadays, we are not only at the end and beginning of the millennium.
We are at the end and beginning of history as well. We live the order of
disorder in the avalanche of this historical breakthrough. Ethics as such –
ethics as ethics, and not only the norms, but the very possibility of creating
and imposing norms—lost all meaning. The strength of its persuasiveness
was vanished. Therefore, it is no longer possible not to feel the terror. It is
no longer possible to avoid violence. It is no longer possible not to resort
to war. This is the profile of the virtualized postmodern networked human
beings. This resembles what Nietzsche illustrated with der tolle Mensch
(“the madman”)!
In 1882, Nietzshce published the first four books of his Fröliche
Wissenschaft (The Gay Science). Der tolle Mensch (“The Madman”) is the
title of the aphorism 125 of the third book. In this aphorism, Nietzsche
denounces not only the death of God, but also the murder of God.
According to Nietzsche, God’s death was not a natural death. Rather, God
died violently. Wir haben ihn getoetet – ihr und ich. Wir alle sind seine
Moerder (“We have killed him – you and I. All of us are his murderers”)!
In 1886, Nietzsche added a fifth book to The Gay Science entitled Wir
Furchtlosen (“We, the fearless ones”). The first aphorism of this new book
begins with the following question: Was es mit unserer Heiterkeit auf sich
hat? (“What is happening with the innocence of our cheerfulness?”). He
answers by saying: Das grosste neuere Ereignis – dass Gott tot ist, dass
der Glaube an den christlichen Gott unglaubwuerdig ist, beginnt bereits
seine ersten Schatten ueber Europa zu werfen (“The greatest new
happening – that God is dead, that the belief in the Christian God has
become incredible, is already beginning to throw its first shadow over
Europe”)!
26 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Currently, the shadow of God’s violent death covered human history


worldwide with violence. We are all both authors and casualties at the
same time. There are no innocents, only guilty parts. Violence hits
everyone. To a certain extent, all of us – without exceptions – are somehow
terrorists and victims of terrorism. Terrorists are not only the male suicide
bomber, the female suicide bomber, the child suicide bomber, but also the
bomber tank, the bomber plane, the bomber rocket. The violent death of
God has taken away the humanity of human beings. And it is not a singular
act of an individual, but a historical condition that engulfs all individuals
and reaches the very source from which everything valuable comes from.
Alongside religion, this trampling also caught ethics, politics, dignity,
and freedom. No historical greatness could get away from the drag of this
avalanche. The state of terror entails and nurtures terrorist acts. It is not
possible to think about ethics anymore. The sources of creation are
exhausted, and all spaces of coexistence are occupied by the rationalized
control of those finite machines.
According to the Latin version of St. Jerome’s Vulgate, it is written in
Psalms 14 and 53, Dicit insipiens in corde suo: non est Deus (“The fool says
himself in the bottom of his heart: God does not exist”)!
David thought the human without God as an insipiens – a fool, an
idiot. Currently, under the regency of the principle of sufficient reason as
the foundation of everything, this human without God does not find
himself insipiens. On the contrary, he considers himself a sapiens – in the
sense that the wise and his wisdom became synonymous of the scientist
and his science, or the king and his rationality’s kingdom.
However, this godless human should not simply be identified with
each and every individual living on earth today. The godless human of
nowadays consists of the historical consciousness of rational subjectivity,
which, with the arrogance and presumption of the narrow-minded,
Emmanuel Carneiro Leão | 27

endows an ideological mentality of anonymous behaviors. After all, this is


effective in what concerns to entities and cultural processes – impersonal
collective patterns of action and reaction that do not inscribe God in their
structures or in the character of their decisions. Still, their mediators often
profess God in gestures and words. This human being without God ends
up experiencing something like the Kafka’s Penal Colony paradox,
“engraved in the flash with letters of blood.”
The godless human being rises with the sun and addresses in the
secret of his heart a series of blind apostrophes to God. But he suffers from
a radical blindness that cannot be seen with the sight of the eyes. Radical
blindness can only be seen through thought, by thinking about the
bottomless chasm of reality. Radical blindness does not prevent from
seeing; on the contrary, it makes possible to see anything, because it has
already reduced everything to certain patterns of vision. What radical
blindness cannot see is the creative nothingness of reality – the bottomless
depths of humanity, world, and life. From this mysterious blindness, the
godless human being addresses a series of apostrophes to God. This is how
I bring into discussion these perhaps slightly naïve thoughts on the
principle of foundation; of how the godless human being hurls his
invectives against God:

God, where are you that you don’t answer?


If You really exist, speak to me!
And then, a thrush begins to sing!
God, if You truthfully exist, let me see You!
And then, lightning flashes through a cloud!
God, if You in fact exist, make some noise!
And then, the thunderbolt breaks the silence of the sky!
God, if You indeed exist, let me feel Your presence!
28 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

And then, the rays of the sun flood his eyes with light!
God, if You exist for real, show me a miracle!
And then, a child is born in the middle of the night!
God, if You do exist, bend the haughtiness of human pride!
And then, love kindles a fire in human’s heart, which, ever-growing,
fills his whole soul!
God, if You in truth exist, put an end to the rottenness of the world!
And then, the fleur-de-lis rises from the swamp!
God, if You in fact exist, take away the pain from the human heart!
And then, in the depths of all suffering the primal cry of life is heard!
God, if You concretely exist, erase the violence of history, and send
away hunger and diseases from the world!
And then, hope in the other of everyone nourishes with faith the scent
exhaled from the very bowels of Evil!
God, if You exist, truly release human from death!
And then, from the bosom of death itself the immortality of life is
born!
2

Parmênides, o Pensamento e o Destino da Filosofia

Ray Renan Silva Santos 1

Introdução

Nossa tarefa aqui consiste em trilhar um caminho de pensamento


que nos conduza a uma investigação do Poema filosófico de Parmênides.
O pensamento é, assim, o nosso tema e o elemento a partir do qual o tema
se desenvolve. Na utilização dos fragmentos, alguns recortes serão feitos
para que possamos nos deter com afinco no pensamento que nos é
revelado por meio do Poema. Partimos, sobretudo, de uma compreensão
circular, em que as partes (os fragmentos) integram um todo e a ele estão
interligadas, mas como não nos é possível nem é nosso propósito analisar,
neste exíguo espaço, todas as partes, propomo-nos a pensar o que há de
totalmente essencial naquilo que podemos extrair das partes. Adentrando
o elemento essencialmente filosófico inaugurado por Parmênides em seu
Poema, o texto desemboca em uma compreensão segundo a qual este
elemento é (e precisa ser) sempre retomado como aquilo que caracteriza
o modo de se fazer Filosofia, compreendida como ciência primeira. Refere-
se este elemento ao que no texto é designado por anteposição de união –
expressão que evoca a unidade primordial de pensar e ser como aquilo que
caracteriza propriamente o pensamento filosófico. Tamanho é, então, o
legado de Parmênides, a tal ponto de o seu pensamento ser sempre
retomado quando queremos pensar filosoficamente, que isto nos causa, de

1
Professor Substituto de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutor em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). E-mail: ray-renan@hotmail.com
30 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

antemão, um espanto, o qual nos coloca a pensar sobre o quão mais


essencial é, em verdade, o pensamento do que o pensador, conquanto este
seja o porta-voz daquele. Com efeito, para remetermos a este pensamento
essencial de que Parmênides é porta-voz, não podemos fazê-lo senão
pensando. Tal é o que nos mostra Aristóteles, ao nos ensinar que o
exercício do pensamento só pode se dar no próprio ato de pensar: “... o
pensamento é ato. E do ato deriva a potência, e é por isso que os homens
conhecem as coisas fazendo-as”2. É a partir do exercício deste
ensinamento, pois, que o presente texto se desenvolve.

Prenúncio do caminho da verdade (B1.1-5) e o aprendizado fundamental do


todo (B1.24-32)

Principiemos o nosso percurso de pensamento pela leitura dos


primeiros versos de B1:

Ἵπποι ταί µε φέρουσιν, ὅσον τ΄ ἐπἱ θυµὸς ἱκάνοι,


πέµπον, ἐπεί µ΄ ἐς ὁδὸν βῆσαν πολύφηµον ἄγουσαι
δαίµονος, ἣ κατὰ πάντ΄ ἄστη φέρει εἰδότα φῶτα·
τῇ φερόµην· τῇ γάρ µε πολύφραστοι φέρον ἵπποι
ἅρµα τιταίνουσαι, κοῦραι δ΄ ὁδὸν ἡγεµόνευον.
As éguas me conduzem tanto quanto o ânimo me capacite,
guiaram-me, quando andaram, para dentro do mui famoso caminho da
divindade, que conduz o mortal sapiente através de todas as cidadelas;
para lá eu era conduzido, pois para lá as éguas multisagazes me levavam
puxando a carruagem, enquanto as jovens mostravam o caminho (B1.1-5)3.

O Poema principia com as éguas a conduzir o jovem por um caminho.


Mas à medida que as éguas o conduzem, sua própria força, vida, ânimo
(θυμός) o impele à trilha, a qual lhe é concedida pela divindade (δαίμων).

2
Metph., Θ.9, 1051a-31-33.
3
Todos os versos de Parmênides citados ao longo deste texto foram traduzidos por mim e revisados pelo Prof. Me.
Diógenes Marques Frazão de Souza do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFPB, a quem agradeço
imensamente por isso. Para as traduções, sigo a edição da obra Die Fragmente der Vorsokratiker, estabelecida por
Hermann Diels e Walther Kranz (1951).
Ray Renan Silva Santos | 31

Ele é, então, conduzido para dentro (ἐς) desse caminho, isto é, “do mui
famoso caminho da divindade” (ὁδὸν πολύφηµον δαίµονος). Justamente
esse caminho, dádiva da esfera celeste e divina, é o que vem a tornar o
homem um mortal sapiente (εἰδώς φώς), de modo tal que aí já se
evidenciam três elementos fundamentais: o divino, o mortal e o caminho
a se seguir. Para trilhar tal caminho, que é um caminho divino, o homem
precisa corresponder a uma convocação, pois não o fará de maneira
totalmente passiva; antes, a partir de um ânimo, de um ímpeto próprio, o
qual, de outra parte, não provém de seus desígnios, mas revela o elemento
divino como aquilo que o convoca a percorrer um caminho não humano.
Por conseguinte, nem o caminho em questão corresponde aos caminhos
trilhados habitualmente pela maioria dos mortais, nem o homem que se
volta para esse caminho vive tal como esses mortais. Trata-se de um
encontro com o divino e de um desencontro com os homens, por meio do
qual se dá um resgate da essência humana que há não apenas em um
homem individual, mas que corresponde a todos os homens. O caminho
que torna o homem sapiente é, portanto, o caminho que traz à luz a
essência do homem. E justamente essa essência já é o próprio caminho do
qual o homem constantemente se desvia, por não lhe ser acessível como
os demais caminhos.
Os três elementos fundamentais de que falamos – o divino, o mortal
e o caminho a se seguir – nos possibilitam pensar, mediante a legitimidade
do primeiro elemento em relação aos outros dois, que o que está em
questão é o caminho e o homem, de modo a antecipar o ἔπος que mais
adiante será proferido pela deusa receptora do jovem:

ὦ κοῦρ΄ ἀθανάτοισι συνάορος ἡνιόχοισιν,


ἵπποις ταί σε φέρουσιν ἱκάνων ἡµέτερον δῶ,
χαῖρ΄, ἐπεὶ οὔτι σε µοῖρα κακὴ προὔπεµπε νέεσθαι
τήνδ΄ ὁδόν – ἦ γὰρ ἀπ΄ ἀνθρώπων ἐκτὸς πάτου ἐστίν –,
ἀλλὰ θέµις τε δίκη τε. Χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι
32 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ἠµέν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεµὲς ἦτορ


ἠδὲ βροτῶν δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής.
Ἀλλ΄ ἔµπης καὶ ταῦτα µαθήσεαι, ὡς τὰ δοκοῦντα
χρῆν δοκίµως εἶναι διὰ παντὸς πάντα περῶντα.
Ó jovem, tu que estás unido a cocheiros imortais
que te levam com as éguas, e que chegas à nossa morada,
viva! Porque de modo algum um mau destino te enviou a trilhares
por este caminho – pois ele está fora do trilho que vem dos homens –,
mas θέµις e δίκη. Necessitas tudo aprender:
tanto o coração firme da verdade bem circular4
quanto as opiniões dos mortais, nas quais não há confiança genuína.
Mas, de igual modo, isto aprenderás: como as coisas que parecem
precisam aparentemente ser, passando todas através de tudo (B1.24-32)

O jovem havia relatado, já em B1.1, o fato de estar sendo transportado


pelas éguas, mas agora, em B1.25, a deusa confirma e legitima tal
ocorrência, a fim de enfatizar a convergência e a unidade entre o ânimo do
jovem e a força destinadora divina. A própria deusa, então, corrobora o
bom destino (μοῖρα) que conduziu o jovem por esse caminho, o qual é
apresentado sob os auspícios de θέμις e δίκη, indicando o Direito enquanto
lei natural e a Justiça enquanto o equilíbrio entre a lei natural e as ações
humanas, de modo a trazer à tona um princípio que deve guiar a conduta,

4
Esta opção de tradução de B1.29, onde “verdade bem circular” corresponde a “Ἀληθείης εὐκυκλέος”, deverá ser lida
em conformidade com B5, em que o comum (ξυνός) é referido como o elemento de onde se inicia e para o qual se
retorna; e, ainda, em consonância com B8.43, em que o ser é identificado com uma esfera “bem circular” (εὐκύκλου).
Em questão está o caminho da verdade, o qual, sendo circular, é tanto o que acena já no primeiro ânimo (θυμός – B1)
de condução do jovem para o caminho, quanto o que encaminha à investigação em seu percurso de persuasão-
obediência (δίζησις; πειθώ – B2), bem como o que reencaminha para o elemento comum (ξυνός) a partir do qual se
partiu, no qual se permaneceu e para o qual se deve retornar: Ἀλήθεια. Muito se discutiu, no decorrer da história,
acerca do verso em questão (B1.29), pois a tradição nos fornece pelo menos três opções de adjetivo para “Ἀληθείης”:
εὐφεγγέος, εὐπειθέος e εὐκυκλέος, sendo a primeira mencionada por Proclo (In Tim. I.345.15-16), a segunda por Sexto
Empírico (AM, VII.111) e a terceira por Simplício (De Caelo, 557.26). A despeito das divergências quanto à escolha dos
adjetivos, a interpretação que aqui estabelecemos – segundo a qual a verdade se manifesta de maneira circular,
estando tanto no início, no meio como no fim do percurso de investigação – não precisa estar necessariamente
vinculada ao uso do adjetivo “εὐκυκλέος”. Supondo, portanto, que o adjetivo em discussão não estava no texto original
de Parmênides, isto não excluiria o fato de que a verdade, porque princípio condutor de todo pensar, faz-se presente
em toda trilha de modo essencialmente circular, visto ser aquilo para o que o pensamento se direciona, em que ele
permanece e para o que ele retorna em sua dinâmica de realização. De qualquer forma, para uma análise apurada
dos problemas concernentes à tradução de B1.29, cf. FRANK, B. B. Bene rotunda et globosa ueritas: Epítetos de la
verdad en Parménides DK28 B1.29. Brasília: Archai 26, e02602, 2019, pp. 1-25.
Ray Renan Silva Santos | 33

e mesmo a moralidade do jovem5. Em seguida, o ensinamento


fundamental é prenunciado: “Necessitas tudo aprender”. O caminho em
que o jovem se encontra o encaminha para um aprendizado e uma
experiência distinta e apartada da vida comum dos mortais, por isso é dito
que o caminho está “fora do trilho que vem dos homens”. Observe-se o
uso no grego da preposição ἀπ΄, que indica precisamente origem e
proveniência; no caso em questão, trata-se da origem do caminho, que está
fora (ἐκτὸς) do trilho (πάτου) que vem dos homens (ἀπ΄ ἀνθρώπων); com
isto, subentende-se que tal caminho provém (ἀπ΄) do âmbito divino.
Assim, é apenas estando fora, à parte do caminho que vem dos homens,
que o homem vem a se realizar como tal e, assim, também poderá estar à
altura de “tudo aprender” (πάντα πυθέσθαι). Mas em que consiste tudo
aprender? Pode realmente o homem tudo aprender?
A referência ao aprendizado de tudo implica tudo quanto é possível
ao homem. Sendo assim, o caminho trilhado indica tudo quanto o homem
pode aprender dentro dos limites que lhe são próprios. Tal ensinamento é
de duplo amparo, pois também indica tudo quanto o homem não pode
aprender. Ora, tudo o que pode ser aprendido pelo homem é também tudo
o que pode ser mostrado e trazido à presença no e como parte do real. É o
real em sua totalidade que aí vem a ser evidenciado mediante o
aprendizado de todas as coisas que podem ser aprendidas. Essa totalidade
é mais bem compreendida com o auxílio dos próprios versos (B1.29-30),
que dizem a que se refere “tudo”, em um sentido antitético6:

tanto o coração firme da verdade bem circular


quanto as opiniões dos mortais, nas quais não há confiança genuína.

5
Cf. SANTORO, Fernando. O Poema de Parmênides. Da Natureza. Edição do texto grego e tradução de Fernando
Santoro. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2009, pp. 90-92.
6
Isto se deixa ver pelo uso das partículas ἠμὲν… ἠδὲ: por um lado... por outro; tanto... quanto...: ἠµέν Ἀληθείης
εὐκυκλέος ἀτρεµὲς ἦτορ // ἠδὲ βροτῶν δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής (B 1.29-30).
34 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

De um lado, a verdade converge para o saber, força infalível e vigor


de iluminação; de outro, as opiniões coincidem com o alvoroço sempre
falível das percepções humanas. Na e a partir da verdade o homem se sabe
como tal e no caminho que está a percorrer. Na e a partir das opiniões, o
homem desconhece a si mesmo, ao caminho que trilha e ao caminho que
deixa de trilhar. De um lado, temos a verdade, que é o critério e o
parâmetro “externo” ao homem a partir do qual ele pode se guiar para
dar-se conta de que tal caminho é correto; de outro, temos as opiniões, que
são um critério e um parâmetro “interno” ao próprio homem a partir do
qual ele só tem a si próprio, e isso não lhe fornece um saber sobre se o
caminho é ou não correto.
A conclusão de B1 se dá ainda por meio de uma advertência,
evidenciando o caminho que o jovem está a trilhar como aquele por meio
do qual “tudo” vem a ser aprendido, inclusive o caminho “oposto”:

Mas, de igual modo, isto aprenderás: como as coisas que parecem


precisam aparentemente ser, passando todas através de tudo.

As coisas que parecem (τὰ δοκοῦντα) precisam (χρῆν) aparentemente


(δοκίµως) ser (εἶναι), embora não possam realmente ser, pois o que está
em questão é o âmbito das aparências, que constantemente se alteram. As
aparências, em seu aparecer (isto é, em seu parecer ser), evidenciam o vir
a ser, mas o fazem de um modo tal que aparentam ser algo diverso do vir
a ser. É que as aparências, as coisas que parecem ser, encobrem-se a si
mesmas em seu aparecer, ao mesmo tempo que encobrem o ser de seu vir
a ser – por isso sua realização consiste em que, “através de tudo” (διὰ
παντὸς), elas (as coisas que parecem) seguem “passando todas” (πάντα
περῶντα). Tal encobrimento caracteriza a verdade em sua essência, sem a
qual não seria possível às aparências aparentemente ser. Ora, esse modo
Ray Renan Silva Santos | 35

de aparentemente ser sem, no entanto, ser, mostra que o ser há e é, e é a


partir disso que se pode articular toda e qualquer atividade humana, seja
o saber, seja o opinar.
O saber, de um lado, o qual exprime a via do pensar, designa a
excelência, a maior virtude humana; o opinar, de outro, o qual exprime a
via tão só do percepcionar, diz respeito ao âmbito ordinário no qual os
homens já sempre se encontram. Os mortais que se voltam unicamente
para o âmbito da percepção e da opinião se ludibriam com as aparências
por estas se lhes mostrarem como o que há de mais fácil, mais imediato e,
assim, como o que mais apraz aos órgãos dos sentidos7. Vivem, então, a
vida dos prazeres, dos desejos e dos anseios do corpo, e esquecem do
elemento que lhes é mais próprio e que os diferencia radicalmente dos
demais viventes: o pensamento.
Os mortais, contudo, que enveredam pela outra via – “fora do trilho
que vem dos homens” –, não estão a satisfazer aos próprios desejos e
anseios, já que a via em questão advém de um inexorável destino (μοῖρα),
o qual é uma força maior e unitária: θέμις τε δίκη τε, isto é, ambas as deusas
que exprimem a ordem e a justiça em sua plenitude cósmica, a qual recai
sobre a vida dos mortais8. O fato de tal caminho ser diverso do caminho
comum dos mortais exprime a sua proveniência, que não se sustenta nos
próprios mortais, mas adquire autenticidade e legitimidade na deusa
enunciadora da verdade e do saber. Com isso, o Poema traz à luz o
elemento imortal e divino presente na vida dos mortais, que, desavisados
e ignorantes do princípio que deve lhes guiar, lançam-se no mundo das
aparências e não apreendem a realidade das aparências, a qual só pode se

7
Por isto dirá Aristóteles, referindo-se à percepção sensível, que ela “é comum a todos e, por ser fácil, não é sabedoria”
(Metph., A. 2, 982a10). Quer-se, com isso, chamar a atenção para o caráter dificultoso, penoso, ou ainda, específico e
exclusivo do pensamento.
8
Para uma melhor compreensão dessas divindades e do contexto em que elas e outras aparecem no Poema de
Parmênides, cf. SANTORO, F. Os Nomes dos Deuses. In: Parmênides II. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1, nº 2, 2007.
36 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

fazer visível por meio do pensar. Está em questão, assim, o conhecimento


de si e da realidade das coisas em seu todo. Daí lermos em B1.28:
“Necessitas tudo aprender”. O conhecimento de “tudo” implica a própria
constituição mortal e efêmera em uma unidade com o que é imortal e
eterno, bem como as “opiniões dos mortais” e, em contraste com isso, a
“verdade bem circular”. Abarca-se, aqui, o todo de tudo, porquanto são
evidenciadas realidade e aparência.
Aprender e saber tudo, ademais, marca e demarca um caminho que
é por excelência filosófico, pois, em tal percurso, pensa-se a totalidade de
todas as coisas, isto é, a essência universal a partir da qual todas as partes
se constituem. Percorrendo, portanto, a via essencial, o homem conhecerá
necessariamente a via aparencial (da qual ele não pode escapar), mas o
contrário não sucede9. Por isso ele se difere dos demais mortais, os quais
permanecem apenas nas aparências, única fonte à qual eles recorrem
quando opinam e falam sobre as coisas. Porque o filósofo é também
mortal, precisa percorrer o caminho das aparências, mas a partir do
caminho da verdade, e não o contrário. A experiência e o aprendizado de
“tudo” implicam o saber tanto do que seja a essência quanto do que seja a
aparência10. O saber, portanto, que é a via do pensamento, é o fundamento
de seu modo de ser e é o que o “retira” da vida ordinária dos mortais, que
estão sempre entregues às opiniões insipientes.

9
Trata-se da supremacia do pensamento e do saber em relação ao seu contrário, por isso dirá Platão no Fédon 97d:
“Só o que importa ao homem considerar, tanto em relação a si mesmo como a tudo o mais, é o modo melhor e mais
perfeito. Desse jeito, ficaria necessariamente conhecendo o pior, por serem ambos objeto do mesmo conhecimento”;
e também n’A República 409d-e: “Efectivamente, o vício não poderá jamais conhecer-se a si e à virtude, ao passo que
com o tempo, a virtude, se as qualidades naturais forem aperfeiçoadas pela educação, atingirá o conhecimento
científico de si mesma e do vício. Tal será o sábio, em meu entender, mas não o perverso”.
10
Por isso nos dirá Empédocles em seu fr. B24: “De cume a cume, não caminhar apenas por um único caminho do
ensinamento” (DIELS, Hermann. Empedokles. In: Die Fragmente der Vorsokratiker. Griechisch und Deutsch. Berlin:
Weidmannsche Buchhandlung, 1960, p. 322); ou ainda, Demócrito, referindo-se ao sábio (D111): “Para o homem
sábio todas as terras são trilháveis; pois a pátria de uma alma boa é o universo em seu todo” (TAYLOR, C. C. W. The
Atomists: Leucippus and Demokritus. Fragments. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 36).
Ray Renan Silva Santos | 37

Frente a esse conhecimento, isto é, do que sejam a aparência e a


realidade, o homem vem a saber-se de si à medida que remete esse saber
à sua origem. Nisso consiste o aprendizado e a experiência de tudo, já que
a origem em questão mostra os limites e as possibilidades da finitude
humana – limites porque fazem ver a relação e a unidade com a esfera
ilimitada e eterna; possibilidades porque mostram tais limites em seu
modo de transcendência por via do saber que lhe é próprio.

Μῦθος, Ἀλήθεια e os únicos caminhos de investigação para pensar (B2)

Com o arremate de B1 concernente à narrativa do jovem acerca do


caminho trilhado, bem como o início do discurso da deusa acerca da
legitimidade de tal caminho atrelado a uma advertência para a
consumação do aprendizado, ressoa B2, agora com um apelo e uma
convocação para o pensamento que pensa a si mesmo11 em seu caminho
de investigação e em sua dinâmica de eclosão:

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω, κόµισαι δὲ σὺ µῦθον ἀκούσας,


αἵπερ ὁδοὶ µοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι·
ἡ µὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι µὴ εἶναι,
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος – Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ –,
ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι µὴ εἶναι,
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔµµεν ἀταρπόν·
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε µὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν –
οὔτε φράσαις·
Vamos! Eu te direi – e tu, tendo escutado, guarda a palavra –
quais são os únicos caminhos de investigação que há para pensar:

11
O pensamento, para dar-se conta de que percorre a trilha verdadeira, precisa pensar a si mesmo como tal. Constitui,
pois, o caminho da verdade e o mortal que por este caminho trilha o saber essencial que sabe de si, precisamente
porque necessita de “tudo aprender” (B1.28): a trilha verdadeira pela qual percorre e a falsa trilha. Nesta direção,
convém verificar as seguintes palavras de Hegel em sua Ciência da Lógica: “Os Eleatas, em primeiro lugar,
especialmente Parmênides, anunciaram o pensamento simples do ser puro como o Absoluto e como a verdade única,
e, nos fragmentos que dele restaram, ele anunciou, com o entusiasmo do pensar que pela primeira vez apreende-se
a si em sua abstração absoluta: apenas o ser é, e o nada não é de modo algum” [Den einfachen Gedanken des reinen
Seins haben die Eleaten zuerst, vorzüglich Parmenides als das Absolute und als einzige Wahrheit, und, in den
übergebliebenen Fragmenten von ihm, mit der reinen Begeisterung des Denkens, das zum ersten Male sich in seiner
absoluten Abstraktion erfaßt, ausgesprochen: nur das Sein ist, und das Nichts ist gar nicht] (HEGEL, G. W. F.
Wissenschaft der Logik. Felix Meiner Verlag: Hamburg, 2008, pp. 105-06).
38 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

um, visto que é, e que não é não-ser,


é caminho da Persuasão – pois persegue a verdade –,
o outro, visto que não é, e que necessariamente é não-ser,
este realmente te digo ser atalho de todo desconhecido,
pois não poderias conhecer o não-ser – pois não é possível,
nem poderias mostrá-lo (B2.1-8).

A indicação para o caminho do aprendizado, acerca do qual se falou


em B1, é agora intensificada: deve-se tudo aprender somente à medida que
se pode escutar (ἀκούω) a palavra (μῦθος). O verbo para “escutar” – ἀκούω
–, exprime escutar já no sentido, também, de aprender e compreender.
Para que isso possa se dar, faz-se necessário se ater ao μῦθος que vem a
ser enunciado. A palavra, aqui, não designa apenas um fonema ou um
grafema; diz, antes, o elemento que vem a mostrar os caminhos de que a
deusa fala. Há ainda um detalhe sobre o verbo ἀκούω da passagem em
pauta, pois ele está na forma do particípio aoristo ἀκούσας, o que marca a
ideia de anterioridade em relação ao verbo principal da oração (κόµισαι).
Tal ressalva é pertinente porque o que se quer com isso é precisamente
evocar a atenção para a escuta, que é a condição sem a qual não se dá a
compreensão da palavra escutada. É somente após escutar (ἀκούω) que se
pode guardar (κομίζω) a palavra (μῦθος). Em sentido originário, a palavra
é o elemento sem o qual o mundo não se deixa ver; é, pois, a força
reluzente e condutora da vida dos mortais. Em toda e qualquer ação da
vida dos mortais, a palavra já sempre se lhes antecipou como aquilo que,
atrelado à ação, é também dela parte constitutiva. À vista disso, porque
uma ação não pode jamais se evidenciar nos pormenores de sua totalidade
e concretude, também a palavra que a acompanha não apenas revela, mas
também oculta a sua realização. Assim, o aprendizado a que o Poema se
refere, o qual se dá por meio de uma escuta ao μῦθος, não diz respeito a
Ray Renan Silva Santos | 39

um percurso que, uma vez trilhado, vem a ser de todo aprendido12. É


preciso, então, ater-se àquilo que o μῦθος diz e não diz, que revela e oculta,
escutando tanto o ressoar quanto o silenciar de sua manifestação. Essa
atenção, por sua vez, que consiste em um exercício de escuta ao μῦθος,
pressupõe, simultaneamente, uma escuta ao λόγος13 – força de reunião e
compreensão do todo no pensamento14. Como pensamento, o λόγος é o
elemento a partir do qual o μῦθος se evidencia como tal. O μῦθος para o
qual a deusa chama a atenção indica “os únicos caminhos de investigação”
(ὁδοὶ μοῦναι διζήσιος) que se apresentam para “pensar” (νοῆσαι), o que
aprofunda a compreensão de unidade entre μῦθος e λόγος, de vez que o
que está em questão é o âmbito do pensamento e da razão. Tal é a
indicação do caminho genuíno:

um, visto que é, e que não é não-ser,


é caminho da Persuasão – pois persegue a verdade

Em questão está agora o caminho “que é”, o qual deve ser percorrido
com persuasão e obediência (πειθώ)15, pois ele persegue a verdade
(Ἀλήθεια). A persuasão deve ser compreendida mediante a escuta ao μῦθος

12
No verso a seguir isto fica claro se tomarmos por referência o fato de que a deusa enuncia os caminhos com vistas
à “investigação” (δίζησις), o que denota a dimensão dos caminhos voltada para o exercício do pensamento. Um
elemento assaz pertinente ao qual devemos nos ater é quanto à própria especificidade inovadora da “mitologia” do
Poema: trata-se de uma escrita mito-poética que é ao mesmo tempo filosófica, conforme nos chama a atenção José
Trindade Santos: “Na tradição poética, Parmênides começa por recorrer aos deuses para garantir a autenticidade da
sua mensagem. Todavia, inova, em relação aos poetas, por apresentar um argumento reflexivo, autenticamente
filosófico, que explora uma evidência, característica de todas as mensagens que, a um tempo, instituem (dizem que
há) e constituem (dizendo como é) o saber” (SANTOS, José Trindade. Interpretação do Poema de Parmênides. In:
Parmênides. Da Natureza. Tradução, notas e comentários de José Trindade Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2013,
p. 59).
13
Embora o λόγος não apareça nomeadamente nesses primeiros fragmentos de Parmênides, tendo em vista a sua
aparição noutros fragmentos (B7.5, B8.50), fica claro que não podemos pensá-lo de modo isolado no Poema, o que
nos leva a concebê-lo a partir de uma unidade que perpassa o seu todo.
14
Semelhantemente ao fr. B1 de Heráclito, o qual nomeia aquilo a que se deve dar ouvidos de “λόγος”, ao passo que
os versos de B2 de Parmênides não nomeiam, embora devamos compreender que o λόγος também está em questão
(conforme será constatado mais adiante: B7.5, B8.50).
15
Observe-se o sentido em questão de “obediência” e sua relação com a dimensão divina, já que Πειθώ é a deusa da
Persuasão no mundo grego. O verbo “πείθομαι” significa “obedecer”, “ser persuadido”.
40 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

e ao λόγος do μῦθος: impõe-se escutar (ἀκούω) a palavra (μῦθος), para só


então seguir com obediência e persuasão (πειθώ) e em conformidade com
o λόγος – nisto consiste o aprendizado que, sendo cada vez mais descoberto
e intensificado, direciona e encaminha o jovem por este caminho –
retomemos – “fora do trilho que vem dos homens”. Não faz parte do trilho
comum dos homens a investigação (δίζησις) de seus próprios percursos.
De uma maneira geral, eles simplesmente percorrem, mas não investigam
o seu percorrer e, portanto, não sabem por onde percorrem nem qual é o
caminho percorrido. O caminho “que é” requer “persuasão”, e os homens
em geral também não se atêm àquilo de que precisariam se persuadir para
reconhecer o que é como o que é e, por isso, vivem em uma desobediência
a si mesmos e ao princípio que deveria lhes conduzir.
Necessário é, pois, obedecer e deixar-se persuadir, para que haja uma
aproximação da verdade. O caminho que é se identifica com a persuasão,
antes de tudo, porque conduz à verdade à medida que a verdade conduz e
persuade o homem para si mesma. Há que se deixar conduzir pela
verdade, obedecendo-a, a fim de que o caminho trilhado venha a ser
legitimado e, assim, o homem venha a propriamente saber a trilha
percorrida por meio do λόγος que lhe é próprio. Apartado dessa
obediência, o homem achar-se-á perdido e sem rumo, pois terá as suas
próprias opiniões como critério e como amparo para viver. Viverá nas
aparências e tomá-las-á por aquilo que tem de ser, sem dar-se conta que
elas apenas aparentemente são.
O caminho que é precisa ser, pois coincide com a verdade, e a verdade
não pode não ser, de maneira que é a verdade que determina que o
caminho é e que tem de ser16. É a verdade, portanto, que possibilita o μῦθος

16
Note-se que o texto grego não inclui um “predicado” nos supostos “sujeitos” de “é” e de “não é”: os únicos caminhos
de investigação que há para pensar são, respectivamente, ἔστιν (é) e οὐκ ἔστιν (não é). Essa ausência de predicado
levou alguns intérpretes a deduzir que “é” e “não é” referem-se a um sentido existencial, isto é, “o que existe” e “o
que não existe”. Todavia, como ressalta José Trindade Santos, “não só os problemas que esta opção levanta são
Ray Renan Silva Santos | 41

que a deusa vem a enunciar, indica o caminho que o jovem deve trilhar e
acena para as vias de investigação que o levam a pensar17. É na, a partir da
e pela verdade que todo o Poema precisa ser compreendido. É sob essa
ótica que devemos pensar o que há para ser pensado: os únicos caminhos
de investigação – “um, visto que é, e que não é não-ser” [...] “o outro, visto

imensos, como a identificação de ‘o que é’ (ou ‘o ser’) com a realidade, a par da correlativa identificação de ‘o que
não é’ com ‘nada’ (ou algo inexistente), é inconsistente com a argumentação desenvolvida em B2-B3, B6- B7, B8.1-
49” (SANTOS, José Trindade. A leitura de “é/não é” a partir de Parmênides, B2. Dissertatio (UFPel), v. 36, pp. 11-31,
2012, p. 17). Note-se, porém, que o verbo ser, no grego, possui pelo menos três acepções: existencial, predicativa e
veritativa, conforme nos esclarece Barnes: “Em seu uso completo, ‘einai’ possui às vezes um sentido existencial: ‘ho
theos esti’ é a forma grega para ‘Deus existe’; ‘ouk esti kentauros’ significa ‘centauro não existe’. Em seu uso
incompleto, ‘einai’ serve frequentemente como uma cópula, e o uso é chamado predicativo: ‘Sôkratês esti sophos’ é
a forma grega para ‘Sócrates é sábio’; ‘hoi leontes ouk eisin hêmeroi’ significa ‘leões não são domésticos’ [...]
Aristóteles distingue o que tem sido chamado de uso ‘veritativo’ de ‘esti’; ‘X esti’, neste uso, é completo, e ‘esti’
significa ‘...é o caso’ ou ‘...é verdade’. Se Sócrates afirma que sapateiros são bons em fazer sapatos, seu interlocutor
pode responder ‘Esti tauta’, ‘Estas coisas são’ ou ‘É verdade’” [In its complete use, ‘einai’ sometimes has an existential
sense ‘ho theos esti’ is the Greek for ‘god exists’; ‘ouk esti kentauros’ means ‘Centaurs do not exist’. In its incomplete
use, ‘einai’ often serves as a copula, and the use is called predicative: ‘Sôkratês esti sophos’ is Greek for ‘Socrates is
wise’; ‘hoi leontes ouk eisin hêmeroi’ means ‘Lions are not tame’ [...] Aristotle distinguishes what has been called a
‘veridical’ use of ‘esti’; ‘X esti’, in this use, is complete, and ‘esti’ means ‘…is the case’ or ‘…is true’. If Socrates asserts
that cobblers are good at making shoes, his interlocutor may reply ‘Esti tauta’, ‘Those things are’ or ‘That’s true’]
(BARNES, Jonathan. Parmenides and the Objects of Inquiry. In: The Presocratic Philosophers. London and New York:
Routledge & Kegan Paul Ltd, 1982, p. 126). As três interpretações em questão – existencial, predicativa e veritativa –
se configuram, a meu ver, como insuficientes para uma interpretação apropriada do Poema de Parmênides. José
Trindade Santos já havia percebido isso e propôs uma interpretação a que chamou de “antepredicativa”, a qual se
expressa pelo seguinte: “Não ligando «que é/que não é» a qualquer sujeito ou objecto implícitos, encaro os caminhos
como ‘nomes’: «é», como «o [nome] «que é»»; «não é», como «o [nome] «que não é»», o «não-nome». Lido
antepredicativamente, o argumento não precisa de supor que estes nomes são atribuídos a algo, apenas que, se «é»
é um ‘nome’, «não é» terá de ser um ‘não-nome’, como B8.17-18a confirma, ao justificar a rejeição da via «não
verdadeira» por ser «impensável/incognoscível e sem-nome» (anônymon)” (SANTOS, José Trindade. Parménides e
a antepredicatividade. Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 32 (2015) 9-33, p. 20). Em
relação a essa leitura, que certamente concebo como um “avanço” em relação às demais, ela ainda se mostra como
insuficiente (como toda interpretação) e, por esta razão, faz-se necessário atentar para o que se segue: de fato, “ἔστιν”
(é) e “οὐκ ἔστιν” (não é) não devem fazer referência a qualquer sujeito ou objeto dentro do contexto de B2. Ao
tomarmos por referência “é” (ἔστιν) em relação com ser (εἶναι) e não é (οὐκ ἔστιν) em relação com não-ser (µὴ εἶναι),
estes últimos não podem ser compreendidos como meros “sujeitos” aos quais corresponderiam predicados capazes
de defini-los. Por isso, tão só e simplesmente, pode-se dizer: o ser é, o não-ser não é – formulação cuja compreensão
não pode ser alcançada quando remetida ao âmbito sensível. De tal modo que, se deduzirmos de “é” a formulação “o
ser é”, uma vez que “o ser” não diz respeito ao âmbito sensível, a radicalidade de sua essência estaria em ele
simplesmente “ser”, não lhe cabendo quaisquer atributos e predicados do vir a ser. Os “predicados” que doravante
lhes são atribuídos (B8) no âmbito inteligível, diferentemente daqueles que coincidem com o âmbito sensível, não
possuem “referência” cronotópica e, por isso, não são necessariamente predicados em sentido ordinário, mas dizem
o mesmo que simplesmente ser. O ser é, portanto, “irreferenciável”, concebido de um ponto de vista mais originário
– razão pela qual proponho que o verso de B3, lido em consonância com B2, se valha de uma leitura antepositivo-
unitária, expressão que faz referência à perspectiva da anteposição de união, em que pensar e ser são o mesmo
porque, antes de se consumarem em sua plenitude, já precisavam ser em sua possibilidade originária (conforme
veremos ao longo do texto).
17
O enfoque em questão de B2, tomando por parâmetro o que há para “pensar”, não é unicamente epistemológico,
como defendem alguns; é, consoante a isso, ontológico – pois antecipa a identidade entre pensar e ser que será
exposta em B3, B6.1 e B8.34. Trata-se, portanto, de uma perspectiva ontoepistemológica (vide nota 39, para uma
melhor compreensão).
42 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

que não é, e que necessariamente é não-ser”. O caminho “que é” só se


deixa ver como o “que é” – isto é, exigindo prudência e persuasão para
trilhá-lo – porque acompanha a verdade. Mas essa verdade precisa ser
descoberta como o “que é”, e isso requer uma atenta escuta ao μῦθος que
a enuncia, para só então haver uma tal persuasão. A persuasão, que só se
realiza porque persegue a verdade, não poderia perseguir a verdade se esta
já não tivesse se apresentado como o caminho mesmo que persuade.
Trata-se de um caminho circular, em que a verdade, que é e não pode não
ser, é o caminho da persuasão; mas a persuasão, que precisa ser do que é
e não pode não ser, refere-se à verdade, porque não se pode haver
persuasão do que não é.
Essa circularidade do caminho da persuasão nos foi apresentada já
em B1.29-30, quando a deusa diz que o jovem terá de tudo aprender:

tanto o coração firme da verdade bem circular


quanto as opiniões dos mortais, nas quais não há confiança genuína.

Trata-se, pois, da circularidade da verdade, a qual está em início,


meio e fim, tanto no caminho que é, que a acompanha, quanto no caminho
que não é, que a desacompanha. Pela via genuína, em que há obediência à
verdade, todo percurso se dá sempre de modo circular, pois é preciso
acompanhar a verdade tanto no primeiro ímpeto, como na insistência e
permanência do percurso, mas também no retorno, sempre necessário à
investigação, que é uma retomada do mesmo em sua diferença, isto é, da
verdade em sua inesgotabilidade sempre por se desvelar à medida que se
vem a investigar e a pensar a sua totalidade cíclica18. Pela via espúria, cuja

18
A inesgotabilidade do mistério da verdade deve também ser pensada sob o ponto de vista dos limites da natureza
mortal do homem. Porque mortal, o homem é constituído de polos “contrapostos” e “complementares”: saber e
ignorância, prazer e dor, memória e esquecimento etc., de maneira que nunca está pleno de um só polo. Esta ressalva
é pertinente porque a inesgotabilidade em discussão precisa ser pensada 1. A partir da verdade em si mesma e 2. Na
relação com os limites cognitivos humanos de sua apreensão. A verdade é mistério que se mostra e se retrai,
simultaneamente; por isso a todo saber da verdade advém um não-saber, e é este o sentido das palavras de
Ray Renan Silva Santos | 43

desobediência atravessa os mortais, também a verdade há de se fazer


presente, mas em sua ausência. A presença ausente da verdade está em se
poder negá-la: para seguir outra via que não a verdadeira, os homens
precisam, de algum modo, contrapor-se à via que não estão a seguir; se se
contrapõem, o fazem a algo, não a nada; logo, o fazem à verdade, ainda
que não se deem conta disso. A verdade está aqui para o princípio. O
princípio, em sua totalidade, está presente em todas as partes. Ao
pensarmos a verdade, já estamos a pensar a não-verdade. É por isso que,
ao falar dos únicos caminhos de investigação que há para pensar, a deusa
indica dois: o que é e o que não é, o da verdade e o da não-verdade. Pensar
o caminho que é implica pensar o caminho que não é. Mas as opiniões
comuns dos mortais, que não pensam o que é e não perseguem a verdade,
não conseguem abarcar o seu contraste. Ao contrário, é a partir da verdade
e do pensamento que se pode chegar ao que não é nem do âmbito da
verdade nem do pensamento19.
É, pois, o caminho da obediência e da persuasão, isto é, aquele que
persegue a verdade, que necessariamente é e não pode não ser, que é
apontado para o aprendizado e, doravante, para a investigação do
conhecimento seguro (B2.7-8):

Demócrito: “Em realidade, nós nada sabemos, pois a verdade vige no abismo” (op. Cit., p. 8). Esse abismo (βυθός)
em que a verdade vigora é, pois, o mistério que nos permite pensá-la em sua totalidade luminosa e obscura. Neste
sentido, convém recordarmos a origem da palavra “ἀλήθεια”, que é constituída de “ἀ’, com sentido privado e de
negação + λήθη (esquecimento). A ἀλήθεια, literalmente, seria a negação do esquecimento. Portanto, só pode vir à
presença a partir da negação de um polo da natureza humana com vistas à intensificação de outro: a memória. Tal
memória, em sentido filosófico, coincide com um constante exercício do pensamento que pensa a essência e a
totalidade do real. Essa relação entre esquecimento, memória e verdade vem a ser desdobrada, com muito mais
propriedade e clareza, a partir da concepção de ἀνάμνησις (reminiscência) de Platão, para quem aprender e conhecer
coincide com recordar a verdade esquecida quando do nascimento das nossas almas. Cf., nesta direção, Fedro 246b-
250c, República 621a-b e Fédon 75c-e. Também de maneira assaz pertinente, Heidegger nos chama a atenção para a
tradução de “ἀλήθεια” pelo termo alemão “Unverborgenheit” (desencobrimento), salientando que o que está
esquecido encontra-se encoberto, de modo que a negação e privação (ἀ-) do esquecimento (λήθη) configura um
resgate e, portanto, um e des-encobrimento (Un-verborgenheit, ἀ-λήθεια) (HEIDEGGER, 1992, p. 14 et seq.). Chama-
nos, ainda, a atenção para a própria origem de “λήθη”, que aponta para “λαθ”, em cuja raiz está “encobrir”
(Verbergen) (Ibid., p. 30). Cf. HEIDEGGER, Martin. Parmenides. Gesamtausgabe. II. Abteilung: Vorlesungen 1923-
1944. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1992.
19
O caminho que é, portanto, configura-se como único caminho que conduz ao pensamento de si mesmo (na
identidade com o ser) e do outro (na diferença com o não-ser).
44 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

pois não poderias conhecer o não-ser – pois não é possível,


nem poderias mostrá-lo [...].

B2 está a concluir com um desdobramento da questão referente ao


caminho que não é (οὐκ ἔστιν), na identificação com não-ser (µὴ εἶναι),
para assegurar a sua falibilidade e inviabilidade. Introduz-se, ad hoc, a
questão do conhecimento, com o propósito de reforçar o caminho que é.
Isso é feito, contudo, por uma via negativa: é negado o conhecimento pela
via que não é, para que o jovem entenda que tal conhecimento só é
alcançável pela via que é. Não há identidade naquilo que não é. O
pensamento, por sua vez, capta a identidade do captável, e tal identidade
é tanto do ser em relação ao ser quanto do ser em relação ao pensar
(conforme nos sugere mais adiante B3), pelo que é próprio do pensamento
se dirigir ao que é, como é próprio do que é requerer o pensamento. Não
é possível, assim, conhecer o não-ser, e a razão disso está em não se poder
dizê-lo, mostrá-lo, indicá-lo. Aqui é estabelecida uma relação entre
conhecer (γιγνώσκω) e indicar, mostrar, dizer (φράζω). Conhecer consiste
em indicar, no sentido de mostrar à medida que se diz aquilo que se
conhece. Dizer o que se conhece, indicando e mostrando, porém, aquilo
que possibilita o próprio conhecer. Conhecer, no sentido em questão,
cumpre o exercício de indicar, mostrar e dizer a verdade. Pelo que não se
pode conhecer o não-ser, de vez que esse caminho não persegue e não
acompanha a verdade, e é a verdade o que há para se conhecer e dizer.
Não se pode conhecer o que não é, pois o que não é se configura como a
total negação do que é, e o que é se apresenta como a única via cognoscível
e dizível20. Poder-se-ia, contudo, colocar a seguinte questão: como não é

20
Para um aprofundamento deste tema, cf. GALGANO, Nicola Stefano. Os Limites da palavra: Parmênides e o
indizível. É: Revista Ética e Filosofia Política, v. II, nº XIX, 2016, pp. 4-24.
Ray Renan Silva Santos | 45

possível conhecer o não-ser, se na indicação dos “únicos caminhos de


investigação que há para pensar” (B2.2) a deusa enuncia o caminho que é
(ser) e o caminho que não é (não-ser)? A via que não é poderia, então, ser
pensada?
Para responder à questão colocada, recorramos ao que já foi dito um
pouco acima: assim como pela via da verdade é possível saber a não-
verdade, pela via do pensamento que pensa o que é já se está a pensar o
que não é21, de maneira que a verdade é tanto de ser quanto de não-ser: é
ela que revela os únicos caminhos de investigação que há para pensar22. O
que não é só pode ser pensado à medida que se pensa o que é. Mas não é
possível pensar o que não é para pensar o que é, tal como não é possível
pensar a não-verdade para se chegar à verdade. A via do não-ser é, pois,
uma via negativa, a qual só faz sentido em relação à via positiva: a do ser
e da verdade, que são uma única via23. Com a indicação da via que é em
oposição à via que não é, são instituídos os três princípios basilares da
lógica ocidental:

1) De identidade;
2) De não-contradição;
3) De terceiro excluído;
Em que:
1) “um, visto que é, e que não é não-ser” exprime A=A, ou ainda, que o que é,
isto é, a verdade (A) é idêntica a si mesma e não pode não ser nem ser algo
que não ela própria;

21
“Pensa”, contudo, apenas enquanto negação da afirmação da via que é, e não como aquilo que há para propriamente
ser pensado, já que só se pode pensar unicamente o que é (essa identidade entre “pensar” e ser” será evidenciada em
B3, fragmento que ainda iremos interpretar mais adiante).
22
Na direção desta interpretação, diz Emmanuel Carneiro Leão: “Neste percurso, porém, se dá sempre também um
outro e mesmo caminho: o caminho de e para não ser. Assim, em Parmênides o caminho de ser para ser é o caminho
de não ser para não ser. Trata-se de caminho que não pode, mas também não carece seguir” (LEÃO, Emmanuel
Carneiro. O homem no Poema de Parmênides. In: Parmênides I. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1, nº 1, 2007, p. 31)
23
Assinala Hermann Diels: “Há apenas um caminho que conduz para a meta, o caminho da verdade; todos os outros
são descaminhos” [Es gibt nur einen Weg, der zum Ziele führt, der Weg der Wahrheit, alle andern sind Irrwege]
(DIELS, Hermann. Parmenides Lehrgedicht. Griechish und Deutsch. Berlin: Verlag von Georg Reimer, 1897, p. 48).
46 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

2) “o outro, visto que não é, e que necessariamente é não-ser” alude a A≠~A e


tem por parâmetro o primeiro princípio, em que, uma vez que o que é não é
não-ser, o que não é tem de necessariamente não ser;
3) “pois não poderias conhecer o não-ser” evoca o fato de A=A e A≠~A não
permitir uma terceira via, isto é, que esteja para além da que é e da que não é.

Em consequência do raciocínio exposto, mediante o qual se dá a


conclusão de B2, devemos pensar a amplitude e a profundidade da lógica
do caminho (ὁδός) que é, o qual indica um verdadeiro método (μέθοδος)24
de investigação para se conhecer (γιγνώσκω) a verdade (Ἀλήθεια) à
medida que já se parte da própria verdade. Isto significa: somente a
caminho da verdade é que se pode chegar à verdade. Impõe-se para aquele
que já está a caminho uma intensificação do seu caminhar, isto é, um
ânimo (θυμός – B1.1) que se dá a partir da verdade e que se intensifica em
direção à busca da verdade25. Para que haja essa intensificação da busca e
investigação da verdade, faz-se necessário remeter à experiência de
aprendizado a que a deusa conduz o jovem em B1.28-30 – uma tarefa
difícil e sempre à vista, uma vez que envolve “tudo” e, portanto, evoca a
totalidade da verdade em seu mistério inexaurível.
Em B2.2, tendo dado a instrução quanto aos “únicos caminhos de
investigação que há para pensar”, a deusa estabelece o caminho genuíno e
o identifica com a verdade, que é e não pode não ser, pois o que está em
questão é o conhecimento, e não se pode conhecer o que não é, o não-ser.
Quando a deusa fala, ademais, dos únicos caminhos (ὁδοὶ) de investigação
que há para pensar, a palavra que se identifica com o caminho que é e que
persegue a verdade é κέλευθος, em B2.4: Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (caminho
da Persuasão); quando, contudo, fala do caminho que não é, o qual é

24
Para uma melhor compreensão do “método” em questão, cf. CASERTANO, G. Parmenide il método la scienza
l’esperienza. Napoli: Editore Guida, 1978 (II ediz. 1989).
25
Cf., numa direção semelhante, UNTERSTEINER, Mario. Parmenide. Testimonianze e Frammenti. Firenze: La Nuova
Italia Editrice, 1979, p. LX.
Ray Renan Silva Santos | 47

impossível e desconhecido (παναπευθέα), identifica-o com o termo


ἀταρπός, em B2.6: παναπευθέα ἀταρπόν (atalho de todo desconhecido). O
termo ἀταρπός indica um caminho curto, um atalho, e aparece no Poema
para diferenciar o caminho que é (que é difícil) do caminho que não é (que,
ao que parece, é fácil, já que os homens confundem o que é com o que não
é). Dissemos que é a partir da introdução na via que é que se torna possível
pensar a via que não é, e isso remete também a B1.28-30, em que é exposta
a necessidade de “tudo aprender”: a verdade e as opiniões dos mortais –
aqui este raciocínio, por meio do qual se pensa ser para se pensar não-ser
já é antecipado, tendo em vista a ordem mencionada (primeiro a verdade;
em seguida, as opiniões) relacionando-se com tudo o que precisa ser
aprendido.

Mesmidade de pensar e ser como anteposição de união (B3)

A identificação do que é com a verdade parece ter sido devidamente


exposta, e é nessa identidade que se pauta a explicação da razão pela qual
não se pode conhecer o não-ser. Com este modesto avanço na
compreensão, passemos para a análise de B3:

... τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι.


... pois o mesmo é pensar e ser (B3).

A compreensão de B3 só faz sentido quando da sua inserção no


contexto do Poema, que se evidencia, conforme já vimos, como uma
poética filosófica de cunho investigativo. Apesar de manter sua tônica
misteriosa – devido ao conteúdo, que por si só é do âmbito do mistério –,
B3 se insere numa direção explicativa. Testifica isso, por exemplo, a
conjunção causal γὰρ (“pois”, “porque”), que explica a razão de não se
poder conhecer o não-ser, nem indicá-lo, nem mostrá-lo, nem dizê-lo –
conjunção que já haveria aparecido anteriormente para assegurar a razão
48 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

de o caminho que não é se configurar como inviável e desconhecido. Com


isso, podemos partir perfeitamente de duas interrogações implícitas ao
Poema, às quais ele responde, respectivamente: 1. “Por que a via que não
é não é viável”? E os versos 7-8 de B2 nos respondem: “pois não poderias
conhecer o não-ser, pois não é possível, //nem poderias mostrá-lo [...]”;
2. “Por que não se pode conhecer o não-ser?” E o verso de B3 nos
responde: “... pois o mesmo é pensar e ser”. Trata-se de um
aprofundamento argumentativo da investigação a se encaminhar por
meio do pensamento originário e condutor do caminho da verdade.
Porque a verdade é e não pode não ser, e visto que só se pode conhecer o
que é, e não o não-ser (τό µὴ ἐὸν), conhecer é conhecer a verdade; porque
o conhecimento é conhecimento da verdade, uma vez que a verdade é,
conhecê-la é conhecer o ser; logo, quando o pensamento se envereda pela
via da verdade, o faz porque pensa o ser (τό ἐὸν – B6.1)26. Pelo que o mesmo
é pensar e ser. Aqui, contudo, parece haver um salto, quando nos
deparamos com “o mesmo” (τὸ αὐτὸ) a introduzir uma identidade entre
pensar (νοεῖν) e ser (εἶναι).
Se o verso de B3 testifica a identidade entre pensar e ser,
compreender o que está em questão não pode se dar de outro modo senão

26
Ocorre de haver toda uma discussão em torno do “ser” nas linhas e entrelinhas do Poema de Parmênides. A
principal dificuldade se deve ao fato de que no Poema nunca aparece “o ser”, “τὸ εἶναι” – infinitivo substantivado.
Assim, em B2.3, com a indicação do caminho que é (ἔστιν), temos que ele não é não ser (µὴ εἶναι), ao passo que, em
B2.5, o caminho que não é (οὐκ ἔστιν) tem, por necessidade (χρεών), de não ser (µὴ εἶναι). Deduz-se, a partir disto,
que, por um lado, temos não-ser para (o) que não é e, por outro, ser para (o) que é, embora os versos em questão
não evidenciem os “sujeitos de “é” e “não é”. Contudo, em B2.7, apesar de o verbo “εἶναι” não aparecer no infinitivo
substantivado, nos deparamos com a sua ocorrência no particípio substantivado: “τό µὴ ἐὸν”, que pode aqui ser
traduzido por “o não-ser” (ou: “o que não é, “o não ente”), em contraste com “τό ἐὸν” (B6.1, B8.3, B8.35), traduzido
por “o ser”. Essa dificuldade perdura, na medida em que o verso de B3 não substantiva os verbos pensar (νοεῖν) e ser
(εἶναι). Convém, dessa forma, verificarmos as diversas formas do verbo “εἶναι” que aparecem ao longo do Poema.
Utilizar-nos-emos, para tanto, da seguinte passagem de José Trindade Santos: “A que formas do verbo einai recorre
a deusa ao longo do poema para se referir ao ser? A três: ao particípio substantivado to eon (2.7, 6.1, 8.3, 8.35 passim);
a formas verbais, do indicativo do presente estin (2.3, 2.5 passim), e do futuro (estai: 8.36); e ao infinitivo einai (2.
3, 3 passim). A segunda não põe problemas: traduz-se simplesmente por ‘é’ e por ‘será’. A terceira põe poucos: é
simplesmente traduzida por “ser”. Mas a primeira, nas diversas línguas em que o poema foi traduzido, tem sido
vertida por diferentes formas, equivalentes, em português, a: ‘o ser’, ‘o que é’, ‘o ente’, ‘o essente’; no plural, ‘as coisas
que são’ (ta eonta: 7.1)” (SANTOS, 2013, p. 68).
Ray Renan Silva Santos | 49

mediante o pensamento que pensa tal identidade. Dito de outro modo: a


tarefa de compreensão de um pensamento só se realiza por meio do
pensamento. Qual é, contudo, o pensamento que deve nos conduzir a
pensar a mesmidade de pensar e ser? O mesmo pensamento que aí se nos
apresenta. Poder-se-ia aqui colocar a seguinte questão: “Então, precisamos
pensar exatamente como Parmênides?! Como, se não sabemos como ele
pensou?”. É um questionamento negligente e carente de pensamento.
Todo empenho de pensamento deve corresponder a uma convocação do
próprio pensamento. Deve, pois, partir do próprio pensamento para
pensar. Hic et nunc, o pensamento que nos convoca a pensar é o mesmo
que mostra, em Parmênides, que o mesmo é pensar e ser. O que, todavia,
queremos pensar com a palavra “mesmo”? Trata-se de um
questionamento fundamental para o qual devemos voltar a nossa atenção.
O “mesmo” não está aqui para o “igual”. O mesmo já traz consigo a
diferença e a identidade de pensar e ser27. Referindo-se a pensar e ser, o
mesmo é a verdade de ambos, a qual atrai um para próximo de outro e
outro para próximo de um. Ser é o que há para pensar, como pensar é o
que há para ser. O mesmo é o que une pensar e ser no seio da diferença de
ambos. Mais radical ainda: o mesmo é (ἐστίν) pensar e ser. O “é” do mesmo
aponta para aquilo que há de comum entre ambos, mas não designa a sua
completa igualdade e indistinção. Caso “o mesmo” estivesse designando
igualdade e indistinção, não haveria necessidade de duas categorias –
pensar, ser (νοεῖν, εἶναι) –, nem tampouco de uma conjunção – “e” (τε καὶ)
– de ligação de ambas. Se, por um lado, o “e” une, não podemos
compreender que, desde já, pensar e ser estariam de todo “separados”, e
que apenas pela conjunção é que viriam a se unir. Necessário é pensar a

27
Na esteira de Plotino: “... mas sendo dois, é essa unidade conjuntamente inteligência e o que é, tanto pensando
quanto sendo pensada, a inteligência pelo pensar, e o que é pelo que é pensado. Pois não viria a ser o pensar, não
havendo diferença e identidade. (V.1.4).
50 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

anteposição de união28 entre pensar e ser, a qual evidencia uma esfera mais
originária. É o mesmo pensar e ser: pois sempre que o pensar desabrocha,
o ser está a ele unido; sempre que o ser se manifesta, só pode fazê-lo
porque o pensar está a ele unido. Mas o pensar, na vida dos homens, este
pensar essencial que mostra o princípio por meio do qual há o pensar,
revela-se como “separado” do ser, e somente quando de sua
correspondência com o ser é que ocorre essa consumação da união de
ambos. Contudo, é necessário aqui pensar aquela anteposição de união,
sem a qual ser e pensar, sendo o mesmo na esfera da possibilidade
originária, jamais poderiam se consumar como unidade pensável e dizível.
A unidade entre pensar e ser já é em sua possibilidade de consumação, isto
é, enquanto aquela condição a partir da qual o pensar, provindo do ser,
brota como pensar que se constitui como o pensamento que se refere ao
ser de que proveio. Essa possibilidade, por sua vez, por ser do âmbito
originário, não quer dizer, aqui, algo que seja contrário à realidade; trata-
se, antes, da própria possibilidade em sua realidade, bem como da
realidade em sua possibilidade. Neste sentido, pensar e ser, em sua
possibilidade originária, a qual exprime uma anteposição de união, já é o
próprio ato possível, o qual é sempre um ato real.29
“... pois o mesmo é pensar e ser”. Em geral, nos utilizamos da
conjunção aditiva “e” para unir algo que por vezes está separado. No caso
em questão – a saber, de pensar e ser – esta conjunção exprime uma
anteposição de união. Contudo, essa anteposição, que é uma antecipação,

28
Com a palavra “anteposição”, queremos entender a esfera da possibilidade originária. Para tanto, a palavra em
questão faz referência ao seu étimo: é composta pela preposição latina “ante”, no sentido de “antes” + o substantivo
“positiō”, no sentido de posição. A palavra “positiō”, por sua vez, vem do verbo “pōnere”, no sentido de “pôr”. Assim,
a anteposição (ante-positiō) indica o que está posto previamente, isto é, como possibilidade – daí a anteposição de
união apontar para a união originária de pensar e ser como possibilidade que precisa ser consumada. Ademais, ela
deve fazer referência a uma dimensão não cronotópica, a qual está anteposta a qualquer posição espaço-temporal.
29
Cf., nesta direção, o Livro Θ, capítulo 8 da Metafísica de Aristóteles (1049b35-1050a1), em que se fala da
anterioridade do ato (ἐνέργεια) em relação à potência (δύναμις). Ou ainda, Plotino, I, 4, [46] 10, em que se fala da
anterioridade do ato (ἐνέργεια) em relação à apreensão (ἀντίληψις).
Ray Renan Silva Santos | 51

só se evidencia no movimento tardio de manifestação do pensamento que


pensa a mesmidade de si mesmo em consonância com o ser. Ora,
precisamente a anteposição de união entre pensar e ser seria isso a que
podemos chamar de esfera da possibilidade originária. Mais: é o caso de
tal dimensão só vir à luz como e a partir da dimensão “tardia”, a qual, em
seu modo de se referir ao mundo e às coisas, somente pode fazê-lo à
medida que exerce o predicar. A anteposição de união exprime, pois, a
mesmidade de pensar e ser para além da esfera sujeito-predicado. Antes,
é precisamente essa mesmidade unitária que possibilita toda e qualquer
articulação predicativa, incluindo-se aí uma concepção tardia que concebe
a realidade sob a ótica de uma dicotomia. Porquanto o ser não é
referenciável sensível e cronotopicamente30, no sentido de para ele
apontarmos ou o captarmos pelos órgãos sensoriais espaço-
temporalmente, o pensamento, ao pensar o ser, só pode se realizar como
e a partir de uma necessária unidade31. Essa necessária unidade implica
uma esfera antecipativa e possibilitadora de união entre pensar e ser, pois
o pensar só pode se consumar pensando o ser desde o ser32. Há, assim,
uma unidade entre pensar e ser, mas que só se realiza e se deixa ver como
e a partir da diferença e da identidade entre ambos. Essa unidade de
diferença e identidade nos remete a uma dimensão anterior de pensar e
ser, como dissemos. A que dimensão, porém, fazemos referência?

30
Nesta direção, dirá Plotino: “Ligava-se também Parmênides antes a essa opinião, enquanto conduzia ao mesmo o
que é e pensar, e punha o que é não nos sensíveis, dizendo: ‘pois é o mesmo pensar e ser’” (V.1.8).
31
A dificuldade de apreensão do conteúdo em questão parece residir na própria natureza da unidade entre pensar e
ser, a qual constantemente tende a ser confundida com o âmbito sensível que nos fornece referências físico-visíveis
para uma determinada apreensão. Faz-se necessário, contudo, pensar o que está em questão – a mesmidade essencial
entre pensar e ser – sem as devidas referências físico-visíveis, a fim de que nos conduzamos a uma unidade originária
que é condição inteligível e possibilitadora de toda e qualquer articulação e, portanto, de toda e qualquer predicação.
Tal âmbito inteligível, para o qual o pensamento se volta, exprime a anteposição de união de ser e pensar enquanto
possibilidade originária, a qual só pode ser propriamente pensada à medida que ocorre uma apreensão da esfera do
ser, que é essencialmente imutável, conforme nos indica B8.19-21.
32
Conforme nos atesta B8.34, sobre o qual ainda iremos discorrer.
52 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Se retomarmos B1, veremos que o primeiro ímpeto e ânimo (θυµὸς –


B1.1) que conduz o jovem para a sua investigação provém do
encaminhamento da divindade (δαίμων – B1.3). Todo o percurso, assim,
precisa ser compreendido a partir do elemento divino que conduz a vida
do mortal33, a ponto de torná-lo sapiente (εἰδότα φῶτα – B1.3); tal elemento
é o que configura a decisiva expressão da deusa sobre o caminho da
investigação, caracterizado como “fora do trilho que vem dos homens”
(B1.27). Para corroborar o elemento divino e o fato de essa trilha ser
distante, apartada da vida comum dos homens, a deusa enfatiza que foi
um bom destino (µοῖρα – B1.26), nomeadamente θέμις e δίκη (B1.28), que
enviou o jovem; em seguida, o bom destino vem a coincidir com o caminho
da verdade (Ἀλήθεια – B1.29), única via de investigação que é, pela qual é
possível conhecer, visto não ser possível conhecer o não-ser; conhecer,
aqui, está para pensar, porquanto, não sendo possível conhecer o não-ser,
isso se justifica porque o mesmo é pensar e ser. Além da própria deusa a
conduzir o jovem, deparamo-nos com uma série de elementos condizentes
com o âmbito divino e que nos levam a pensar a sua congenitura e unidade
com a capacidade investigativa e cognitiva do pensar, a qual remete à
esfera da possibilidade originária, e não a uma mera faculdade pronta e
acabada, ou ainda, pré-determinada de um sujeito cognoscente34. Assim,
há boas razões para pensarmos B3 sob a ótica do que aqui chamamos de
anteposição de união, ou ainda, de unidade de diferença e identidade,

33
Esta linha de interpretação está em conformidade com a de Sexto Empírico, que, ao interpretar os versos de B1,
atribui ao caminho da divindade justamente aquele da “investigação/teoria que está de acordo com a razão filosófica”
(κατά τον φιλόσοφον λόγον θεωρίαν), enfatizando, assim, o fato de que a razão (λόγος), para Parmênides, se expressa
na forma de um “condutor divino” (προπομπού δαίμονος) (Sexto Empírico, AM, I, 112, p. 61).
34
Com isto, o que está em discussão é [a] que o pensar não se reduz a uma faculdade correspondente ao domínio da
interioridade subjetiva do homem, mas [b] deve corresponder a um acontecimento originário de separação e união
com o ser. Dirá Heidegger, de modo acertado, que não se pode reduzir “νοεῖν” a interpretações da Biologia, da
Psicologia ou da Teoria do Conhecimento sobre o que significa “pensar”; ressalta, ainda (traduzindo “νοεῖν” por
“Vernehmung”): “A apreensão e o que a sentença de Parmênides diz dela, não é uma faculdade do homem já
determinado” [Vernehmung und das, was der Satz des Parmenides von ihr sagt, ist nicht ein Vermogen des sonst
schon bestimmten Menschen] (HEIDEGGER, Martin. Einführung in die Metaphysik. Max Niemeyer Verlag:
Tübingen, 1953, p. 108).
Ray Renan Silva Santos | 53

ambas as expressões referindo-se à mesmidade de pensar e ser. Tal


anteposição de união nos revela um parentesco e uma similitude do divino
com o mortal. É apenas por sair da trilha comum de si que o mortal vem
a se conduzir pela trilha divina, movimento que só é possível por meio do
pensamento. Reside aí, portanto, um ponto fundamental: embora a trilha
seja divina, precisa ser também uma trilha mortal, pois se trata de um
caminho de investigação, de empenho e esforço, de confronto consigo
mesmo e com as aparências e opiniões; em última instância: todo o
percurso investigativo de pensamento está designando uma experiência
de aprendizado da verdade, que é mistério sempre por se esconder e por
se revelar.
Com a argumentação exposta, queremos pensar a esfera da
possibilidade originária do pensamento, a qual é congênita à natureza
mortal, sem a qual não seria possível pensar o ser, que é essencialmente
eterno. O mesmo (τὸ αὐτὸ) – o elemento comum entre deuses e homens,
que perpassa a vida de todos os mortais, conquanto estes não se deem
conta – é a excelência máxima do mortal, que o difere dos outros viventes
e o eleva para o caminho da verdade, de modo a conduzi-lo a pensar (νοεῖν)
– e aquilo para o que se volta este pensar como o que unicamente há para
pensar – a esfera divina e imutável: que é (ἔστιν), o que coincide com ser
(εἶναι) e, doravante, com o ser (τό ἐὸν)35. O mesmo é pensar e ser porque,
antes da consumação do pensamento que pensa a si mesmo nessa unidade
de diferença e identidade com o ser, já vigorava essa mesmidade, sem a
qual não seria possível qualquer indicação nem descoberta nem
aprendizado. A anterioridade do mesmo (pensar e ser) já precisava ser,
para só então o pensamento se direcionar para o ser e o ser se configurar
como o que há para pensar. O mesmo evidencia, assim, aquilo que o

35
B4.2; B8.32.
54 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

pensamento possui de comum com o ser. É, pois, essa comunhão


primitivo-originária que possibilita a consumação do pensamento na vida
do mortal e, assim, o reconhecimento da mesmidade de pensar e ser. Este
saber essencial, por seu turno, o qual é saber do ser e da mesmidade do
ser no pensar, refere-se a um saber total, pois abarca o todo de tudo e, com
isso, transcende o que seria um mero saber temporal. Trata-se do saber
filosófico, o qual, não se restringindo a nenhuma época, abarca todas as
épocas em sua referência ao que é sempre o mesmo no pensar da
totalidade36.
“... pois o mesmo é pensar e ser” – ecoa o verso de B3. “Pensar”, aqui,
não está dizendo uma ação proveniente de um “sujeito” pensante, que
direcionar-se-ia para o seu “objeto”. Por conseguinte, “ser” não é nenhum
objeto vinculado a um sujeito que o determina de tal e qual modo. Não está
em questão o fato de ser (isto é, haver, existir) aquilo que o pensamento
cria a partir dos desígnios de um sujeito pensante e criador. Pensar
exprime, antes, um acontecimento originário de unidade com o elemento
possibilitador e condutor do pensamento. Por isso é o mesmo pensar e ser,
porque pensar consiste em dizer e mostrar a proveniência do próprio ato
de pensar. Tamanha é a especificidade do pensar, que ele é restringido ao
ser: só se pode pensar o ser, porque o ser é tão só o que há para pensar.
Pelo que pensar o não-ser consiste em partir do ser, para determinar que
é o ser o que há para ser pensado; assim também, para pensar a essência

36
O conhecimento filosófico é, portanto, a unidade que reúne a multiplicidade de passado, presente e futuro. Esse
caráter fundamental do conhecimento implica a sua transcendência em relação ao tempo, visto que para se referir a
todos os tempos, faz-se necessário que, de algum modo, ele não esteja em tempo algum. Somente pode abarcar a
amplitude da dimensão temporal um elemento que seja atemporal. Precisamente esse elemento atemporal coincide
com “o mesmo”. O mesmo, aqui, não apenas identifica pensar e ser, mas também se refere àquilo que é sempre de
tal e qual modo e não pode deixar de ser. Essa definição do conhecimento filosófico é articulada de maneira lapidar
por Platão no diálogo Laques 198d: “... quando há ciência ou conhecimento [ἐπιστήμη] de alguma coisa, não se trata
de um conhecimento dos fatos que passaram, para saber como se passaram, nem de outro do que acontece, para
saber como acontece, nem de outro, ainda, sobre a melhor maneira por que poderá vir a realizar-se o que ainda não
se tornou realidade, porém do que é o mesmo [ἀλλ᾽ ἡ αὐτή]” (PLATÃO. Laques-Eutífron. Tradução de Carlos Alberto
Nunes. Belém: ed.ufpa, 2015, p. 91). Tradução modificada.
Ray Renan Silva Santos | 55

do aparecer, faz-se necessário pensar o ser a partir do qual o aparecer se


articula para aparentemente ser.
O essencial, na vida mortal, está em poder pensar e dizer o elemento
imortal comum a todos os mortais. Fora da trilha da verdade, os homens
tomam o “aparecer” pelo “ser” e, com isso, não conhecem e nem pensam
a sua própria essência, mas apenas opinam sobre as aparências37. Cumpre
ao homem exercer o pensamento, para, em seu empenho de vir a ser,
remeter ao ser. Aqui se nos revela um aspecto fundamental de B3: a
despeito da identidade entre pensar e ser, faz-se necessário reconhecer a
diferença que aí vige. Por um lado, ser diz respeito ao que é e nunca veio a
ser; por outro, a consumação do pensar na vida mortal concerne ao que
vem a ser, sem nunca propriamente ser. O esforço de pensar está em
persistir na convergência para o que é e nunca veio a ser, mas aos mortais
só é dado constantemente vir a ser, sem nunca ser.

O λόγος na unidade entre o dizer, o pensar e o ser (B6)

Remetendo à sequência argumentativa pela qual se envereda a


mensagem de B3, o pensar é identificado com o ser; de outra parte, a
continuidade deste raciocínio é exposta em B6, em uma sequência em que
o dizer, o pensar e o ser se identificam por meio de uma unidade

37
Veja-se o parentesco entre as expressões “δόξας”, em “opiniões dos mortais” (βροτῶν δόξας – B1.30) e “as coisas
que parecem” (τὰ δοκοῦντα – B1.31). O substantivo “δόξα” (opinião, crença) deriva do verbo “δοκέω” (opinar, imaginar,
supor etc.); por sua vez, “δοκοῦντα” é o particípio ativo feminino de δοκέω. Essa ressalva é importante porque nem
sempre a tradução de “βροτῶν δόξας” por “opiniões/crenças dos mortais” faz ver o parentesco entre
“opiniões/crenças” e “as coisas que parecem”. Daí Cornford ter traduzido “βροτῶν δόξας” por “o que parece aos
mortais” (“what seems to mortals”), “pois”, explica ele, “‘opiniões’ ou ‘crenças’ é uma interpretação muito limitada.
‘O que parece aos mortais’ (τά δοκοΰντα, I, 31) inclui (a) o que parece real ou aparece para os sentidos; (b) o que
parece verdade, o que todos os homens, confundidos pelos sentidos, acreditam e os dogmas pensados pelos poetas
sobre a mesma base; e (c) o que pareceu certo aos homens (νενόμισται), a decisão que eles ‘estabeleceram’ de
reconhecer as aparências e as crenças fundadas sobre elas na instituição convencional da linguagem” [“because
‘opinions’ or ‘beliefs’ is too narrow a rendering. ‘What seems to mortals’ (τά δοκοΰντα, I, 31) includes (a) what seems
real or appears to the senses; (b) what seems true, what all men, misled by the senses, beliebe and the dogmas taught
by philosophers and poets on the same basis; and (c) what has seemed right to men (νενόμισται), the decision they
have ‘laid down’ to recognise appearances and the beliefs founded on them in the conventional institution of
language”] (CORNFORD, F. M. Plato and Parmenides. Parmenides’ Way of Truth and Plato’s Parmenides. London:
Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1939, pp. 32-33).
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necessária, sem a qual um não pode referir-se a outro. Isso se dá porque o


ser, bem como o dizer e o pensar são o mesmo, uma vez que só se pode
dizer e pensar o ser, ao passo que a verdade do ser é o que há para se dizer
e pensar. Vejamos como este pensamento se articula e quais são os seus
desdobramentos no próprio Poema:

Χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔµµεναι· ἔστι γὰρ εἶναι,


µηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν· τά σ΄ ἐγὼ φράζεσθαι ἄνωγα.
Πρώτης γάρ σ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ ταύτης διζήσιος <εἴργω>,
αὐτὰρ ἔπειτ΄ ἀπὸ τῆς, ἣν δὴ βροτοὶ εἰδότες οὐδέν
πλάττονται, δίκρανοι· ἀµηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν
στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν νόον· οἱ δὲ φοροῦνται.
κωφοὶ ὁµῶς τυφλοί τε, τεθηπότες, ἄκριτα φῦλα,
οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι ταὐτὸν νενόµισται
κοὐ ταὐτόν, πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος.
É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam. Pois ser é,
ao passo que nada não é; estas coisas indico que ponderes.
Desse primeiro caminho de investigação te <aparto>,
assim como daquele, em que os mortais, que nada sabem,
forjam, bicéfalos; porquanto a incapacidade
guia, nos seus peitos, a mente errante. São carregados,
surdos e igualmente cegos, atônitos, raças sem decisão,
para quem o ser e o não-ser são considerados o mesmo
e quase o mesmo, e o caminho de tudo é reversível (B6.1-9).

O verso de B6.3 – “Desse primeiro caminho de investigação te


<aparto>” – vem para corroborar o caminho já apontado em B2.5 – “o
outro, visto que não é, e que necessariamente é não-ser” –, de maneira a
identificar o caminho “que não é” (οὐκ ἔστιν) com o fato de que “nada não
é” (µηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν – B6.2). Com isso, temos à vista o caminho de ser e
de não-ser. Em seguida, uma “terceira via” é mostrada, mas com o objetivo
de caracterizá-la em relação à do ser e à do não-ser. Trata-se do caminho
das aparências, isto é, “daquele, em que os mortais, que nada sabem, //
forjam, bicéfalos” (B6.4-5), corroborando, agora, o aprendizado
Ray Renan Silva Santos | 57

fundamental para o qual a deusa convoca o jovem já em B1.28-32. O fato


é que “as opiniões dos mortais, nas quais não há confiança genuína”
(B1.30) coincidem com aquele caminho, em que os mortais, em não
sabendo de nada (por serem bicéfalos, por possuírem duas cabeças38),
ainda o forjam (B6.4-5), de modo tal que o caminho das “opiniões dos
mortais” (βροτῶν δόξας) não possui legitimidade justamente porque eles
“nada sabem” (εἰδότες οὐδέν), em oposição, então, ao “mortal sapiente”
(εἰδώς φώς – B1.3) que percorre o caminho da divindade e, portanto, da
verdade. Logo, os mortais que nada sabem carregam esse epíteto porque,
em vez de percorrerem a via da verdade, pela qual é possível conhecer,
percorrem outra via (das aparências), pela qual só lhes cabe opinar.
Contudo, se opinam, o fazem em relação a algo, e não a nada, não ao não-
ser39 – donde o opinar se configurar em relação às aparências, que
exprimem aqui uma “terceira via”. Como, porém, poderia haver uma
terceira via, se, como dissemos, B2 já implica os três princípios (de
identidade, de não contradição e de terceiro excluído), em que uma
terceira via é justamente negada?
Esse tertium quid, a terceira via de que falamos, a qual está vinculada
às opiniões e às aparências, tem por referência ser e não-ser40. Ela
corresponde, portanto, a essas duas vias, de maneira que nelas vigora em
seu aparecer e se retrair. A via da verdade e do ser (única via que é) aponta

38
A metáfora em questão está no seguinte: como só há um caminho verdadeiro – o caminho que é –, impõe-se para
o homem possuir “uma só cabeça” para “um só caminho”. De outra maneira, sendo duas cabeças (δίκρανος), uma
confundir-se-á com outra e outra com uma.
39
Este raciocínio é retomado, desenvolvido e aprofundado por Platão mediante uma concepção ontoepistemológica
n’A República, Livro V, 477c-478d, em que o ser está para o conhecimento (γνῶσις), assim como o não-ser está para
a ignorância (ἄγνοια) e as aparências estão para a opinião (δόξα). A opinião, assim, configura uma posição
intermediária (μεταξύ) entre o conhecimento e a ignorância, entre o ser e o não-ser.
40
Trata-se de uma via que se abre para logo se fechar, pois parte de uma não compreensão das vias positiva e
negativa: “E eis que subitamente uma terceira via se abre, para logo se fechar. Aquela em que ‘vagueiam os mortais’,
que ainda não aprenderam a respeitar a oposição do ser ao não-ser e por isso os confundem. O argumento da deusa
regressa à eliminação da via negativa e às consequências dela decorrentes” (SANTOS, 2013, p. 75).
58 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

para a via do não-ser (que não é) e para a via do aparecer, que ora aparenta
ser, ora aparenta não-ser. Por isso a advertência de B1.31-32:

Mas, de igual modo, isto aprenderás: como as coisas que parecem


precisam aparentemente ser, passando todas através de tudo.

O aprendizado fundamental e o saber essencial que estão em jogo só


se desencobrem na e a partir da verdade. Na e a partir da verdade dá-se o
ser, mas também o não-ser e o aparecer de ser e não-ser. Em B1.28, onde
se lê “Necessitas tudo aprender”, está em questão a totalidade da verdade,
a qual, à medida que vem a ser descoberta, revela o ser, o não-ser e o
aparecer na e da totalidade do real. Assim, o verdadeiro mortal sapiente,
aquele que de fato conhece a realidade essencial das coisas, só se constitui
enquanto tal à medida que, em seu realizar-se, vem a saber o não-ser e o
aparecer do seu saber e da totalidade do real. Em sabendo o não-ser e o
aparecer do seu saber, junto a isso necessariamente advém o não-saber,
porquanto o não-ser e o aparecer indicam as vias pelas quais não se
conhece. Nisto consistirá, então, “tudo aprender”: a unidade do saber que
pensa e diz o ser, o não-ser e o aparecer41. É neste sentido que o dizer e o

41
Em última instância, o aprendizado do todo, no qual está em questão o saber radical do ser, do não-ser e do
aparecer, implica uma indissociação da natureza racional da natureza sensível, isto é, do pensamento que capta o ser
dos sentidos que captam o aparecer. Trata-se de um ponto de todo relevante para uma compreensão não simplista
e dicotômica do pensamento parmenidiano. Na experiência fundamental que se dá no caminho da verdade, o homem,
porque é mortal, não pode se apartar da dinâmica de ser, de não-ser e de aparecer no seio do vir a ser. Aqui é, pois,
onde o homem se releva homem dos homens e vem a se tornar sapiente, pois consegue, sem deixar de ser homem,
transcender os homens aos quais só é dada a experiência sensível, e não a experiência de pensar o sensível no sensível.
É o que nos mostra B16.1-4: “Ὡς γὰρ ἕκαστος ἔχει κρᾶσιν µελέων πολυπλάγκτων, // τὼς νόος ἀνθρώποισι παρίσταται· τὸ
γὰρ αὐτό // ἔστιν ὅπερ φρονέει µελέων φύσις ἀνθρώποισιν // καὶ πᾶσιν καὶ παντί· τὸ γὰρ πλέον ἐστὶ νόηµα [Pois como cada
um possui uma mistura de membros multierrantes, // assim o pensamento se aproxima dos homens; pois o mesmo
// é o que a natureza dos membros pensa nos homens // tanto em todos quanto em tudo; pois o que há de maior é
o pensamento]”. Neste sentido, dirá Casertano, interpretando o fragmento em questão: “Ao ligar estreitamente o
pensamento e o pensado à natureza das partes constituintes do corpo, se é que para cada homem resulta uma unidade
incindível de corpo e pensamento, esta é uma prova ulterior da impossibilidade de se separar e contrapor, em
Parmênides, racionalidade e sensibilidade. Existe uma estreita relação entre os mélea, as partes constituintes de cada
homem, e o seu noos, seu intelecto. O sentido dessa relação é que é sempre a physis meleon, isto é, a configuração
particular que assume em cada homem a síntese entre as suas partes constitutivas, que determina o seu pensamento”
(CASERTANO, G. A cidade, o verdadeiro e o falso em Parmênides. Kriterion, Belo Horizonte, nº 116, dez/2007, pp.
307-327, p. 312). Veja-se, ainda, o que nos diz Vlastos, ao interpretar o mesmo fragmento (B16): “Quando Parmênides
fala da estrutura do pensamento no fragmento 16 como ‘muito errante’, ele a relaciona inequivocamente à mente
Ray Renan Silva Santos | 59

pensar (τὸ λέγειν τε νοεῖν) convergem para que o ser (τ΄ ἐὸν) seja, isto é,
configuram uma unidade que abarca tudo o que é, tudo o que não é e tudo
o que aparece, mas partindo sempre do ser. O que, porém, essa unidade
quer nos dizer e levar a pensar?
A investigação poética de Parmênides, consolidada mediante o μῦθος
que a deusa enuncia, agora ganha vigor em associação ao λόγος, expresso
no “dizer” (λέγειν). Este λόγος, conquanto não apareça ainda
nomeadamente nas passagens, é o fio condutor de toda a investigação, de
sorte que em B6 ele é evidenciado por meio da expressão “τὸ λέγειν”. Agora
não se trata apenas de pensar (νοεῖν), que é o mesmo (τὸ αὐτὸ) que ser
(εἶναι). Necessário (Χρὴ) é, pois, que o dizer, o pensar e o ser sejam o
mesmo. O pensar, à medida que corresponde ao ser, só pode pensar o ser,
mas o dizer é o pensar todo pleno e consumado, o qual mostra, por meio
da palavra, o pensado no pensar que se realizou como pensamento. Trata-
se de uma experiência reunidora do homem com a sua essência, do pensar
com o ser, do dizer com o pensar e o ser. Assim, τὸ λέγειν não é tão só e
simplesmente o dizer em um sentido mais imediato que possamos
conceber42; τὸ λέγειν é toda a força de realização do real no homem,

‘errante’ dos que ‘nada sabem’. ‘Errante’ é o melhor que a sensopercepção pode produzir, pois nela o nosso
pensamento não é nosso para comandar; eles ‘vêm até nós’ través do corpo, registrando passivamente sua relação
de mudança da escuridão para a luz. Mas há outra dimensão do pensamento na qual a mente tem o poder de
iniciativa; ela pode recordar, julgar, raciocinar” [When Parmenides speaks of the thinking frame in fragment 16 as
‘much-wandering,’ he links it unmistakably with ‘wandering’ mind of the ‘know nothings.’ ‘Wandering’ is the best
[69] sense-perception can produce, for in it our thought are not ours to command; they ‘come to us’ through the
body, passively recording its changing ratio of darkness to light. But there is another dimension of thought in which
the mind has the power of initiative; it can recollect, judge, and reason] (VLASTOS, Gregory. Parmenides‘s Theory
of Knowledge. In: Studies in Greek Philosophy. Vol. 1: The Presocratics. New Jersey: Princeton University Press, 1996,
p. 156).
42
Convém, neste ponto, uma atenção às palavras de Emmanuel Carneiro Leão sobre o verbo λέγειν: “O reunir de
λέγ- não amontoa simplesmente unidades a esmo. Colhe e escolhe para acolher e recolher, diferenciando por
parâmetros, selecionando por princípio de ordem [...] Na raiz de todo é e/ou não é age a força de λέγ-ειν, a força de
produzir tensões e integrar conflitos [...] Como princípio de ondem e força de organização do real em sua realização,
λέγ-ειν remete sempre para o ‘casamento de ser e linguagem’, onde mora o homem, no mais elevado grau de sua
explosão na poética das criações humanas. Por isso a vigência poética de λέγ-ειν revoluciona não apenas a fala e o
discurso mas também o ouvido e a escuta. Nas peripécias da criação ouvir é escutar a ação de λέγ-ειν, seguindo o
advento da sua força de reunião e poder de recolhimento no curso da história” (LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia
Grega – Uma Introdução. Teresópolis: Daimon Editora Ltda, 2010, pp. 32-34).
60 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

configurando, com isso, o seu λόγος. É a partir da experiência fundamental


de τὸ λέγειν que τὸ νοεῖν se consuma como τὸ αὐτὸ em relação com τὸ ἐὸν.
Só é possível trazer o ser à presença à medida que o λόγος cumpre, num
só tempo, a tarefa de dizer e pensar. É na articulação do pensamento com
a linguagem que o ser se manifesta. Sem o dizer e o pensar, como poderia
o ser vir à luz? Por conseguinte, têm de ser o mesmo o dizer, o pensar e o
ser, uma vez que a realização de um não se dá senão pela identificação com
o outro: com o outro de si e com o outro de outro. A linguagem e o
pensamento essenciais dizem e pensam o que é e, ao consumarem esse
ato, identificam-se com o que é. Torna-se necessário (χρή) o dizer e o
pensar, para só então o ser vir à luz como tal, o que significa: é pela
necessidade do λόγος (pensamento, linguagem) que o ser se evidencia em
sua verdade, assim como é pela necessidade do ser que o λόγος articula
essa mesma verdade.
A unidade entre o pensamento e a essência do pensamento só se deixa
ver a partir dessa consumação de λέγειν como o elemento sem o qual o ser
e o pensar não se manifestam43. Tal é o que configura o λόγος como a força
de evidenciação e desencobrimento44 da essência do homem, isto é, como
o que articula pensar e ser por meio do dizer que, enquanto força de
reunião desse acontecimento, diz a sua verdade. Esse λόγος, por sua vez,
demarca o surgimento e o destino da Filosofia como o pensamento
essencial que abarca a unidade de ser, pensar e dizer. Filosofia, aqui,

43
Tamanha é, portanto, a radicalidade da unidade em questão de B6.1 – ser, pensar e dizer –, que Charles Kahn diz
o seguinte: “Há somente duas possibilidades; portanto, λέγειν e νοεῖν devem ser Ser ou nada de todo” [There are only
two possibilities; hence λέγειν and νοεῖν must be Being or nothing at all] (KAHN, Charles. Some disputed questions
in the interpretation of Parmenides. Anais de Filosofia Clássica. Vol. 1, nº 2, 2007, pp. 33-45, p. 38).
44
O λόγος, neste sentido, considerado como “força de evidenciação e desencobrimento”, encontra respaldo no fr. B93
de Heráclito, mediante o uso de “λέγειν” como o elemento sem o qual não há luminosidade e visibilidade, em contraste
com “κρύπτω”, que é o ocultar e esconder: “O senhor, de quem é o oráculo, aquele em Delfos, não diz [λέγει] nem
oculta [κρύπτει], porém assinala” (HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, estudo e comentários de
Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus Editora, 2012, p. 159).
Ray Renan Silva Santos | 61

embora ainda não conceitualmente, já se insinua45 em sua forma plena:


como a ciência da essência do pensamento que apreende-se a si mesmo e
exprime a sua verdade.
Para os mortais que nada sabem, contudo, a verdade do ser não se
evidencia como tal. Nem mesmo as aparências se evidenciam para eles
como aparências, pois só é possível vê-las como tais a partir do
aprendizado fundamental de tudo, isto é, da totalidade do ser que abarca
o não-ser e o aparecer. Ora, esse saber que, ao aprender tudo, conhece
também as aparências, é o mesmo que conhece a essência. A permanência
tão somente nas aparências gera, pelo contrário, uma duplicidade das
percepções e opiniões, por isso tais homens são “bicéfalos” (B6.5), pois
neles vigora uma indigência e uma incapacidade (ἀµηχανίη), que guia, nos
seus peitos, a “mente errante” (πλακτὸν νόον), já que as aparências,
aparentando ser, logo mostram-se não-ser. Concebem, portanto, as
aparências como se fossem a essência (o que é), ao passo que se dirigem
para a essência como se fosse as aparências (a multiplicidade das coisas
que são, que vêm a ser, sem nunca ser)46. Por exemplo, julgam suas
opiniões variáveis e infundadas como verdades, ao passo que quando se

45
Não é o propósito deste texto discorrer e aprofundar sobre o fato de que é a partir de Platão e Aristóteles que a
Filosofia se instaura em seu modo genuíno e decisivo na história do Ocidente. Portanto, os elementos filosóficos de
Parmênides para os quais o texto chama a atenção, conquanto precisem sempre ser retomados pela Filosofia, ainda
não exprimem a sua plenitude, o seu conceito e o seu modus faciendi que ocorrerá sobretudo a partir de Platão e
Aristóteles, sendo válido dizer que o que aquele inaugura, estes últimos levam a cabo e realizam em sua forma plena.
Por isso é que em Parmênides as coisas estão insinuadas, mas não propriamente evidenciadas ou conceituadas
filosoficamente.
46
Poder-se-ia supor, com isto, que o empreendimento de Parmênides se dá na direção de contrapor “realidades”
(uma que é e uma que aparenta ser), mas essa leitura parece facilitar e até mesmo superficializar a complexidade de
seu pensamento. Ao considerarmos, por exemplo, que a “correção” da realidade fenomênica só é possível mediante
e a partir do parâmetro da realidade essencial, encontramos aqui uma outra via de interpretação, a qual não
simplesmente contrapõe, mas re-úne por meio de uma diferenciação. Nessa direção, diz Casertano: “Não nos
deparamos, pois, com uma contraposição entre uma realidade e uma não realidade, entre um ‘ser’ metafisicamente
entendido e um ‘aparecer’ que vem condenado, mas sim com uma distinção entre o discurso que se deve fazer sobre
a realidade como um todo e o que se deve fazer sobre a realidade como multiplicidade dos fenômenos” [Siamo di
fronte, quindi, non a una contrapposizione tra una realtà e una non realtà, tra un ‘essere’ metafisicamente inteso eun
‘apparire’ che viene condannato, bensì a una distinzione tra il discorso che si deve fare sulla realtà come uno-tuto e
quello che si deve fare sulla realtà come molteplicità di fenomini] (CASERTANO, Giovanni. I Presocratici. Roma:
Carocci editore, 2009, p. 86).
62 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

deparam com a verdade (a justiça, o saber, etc.), julgam-na como se fosse


passível de mudança de acordo com as suas próprias opiniões. Porque não
conseguem remeter ao ser do aparecer, nem tampouco pensar o ser do
não-ser, são “surdos e igualmente cegos, atônitos, raças sem decisão”
(B6.7). A que indecisão remete esse verso? Ou melhor, a que decisão
(κρίσις)47 remetem essas “raças sem decisão” (ἄκριτα φῦλα)? A alcunha de
raças sem decisão, de surdos, cegos e atônitos, logo vem a se esclarecer
pelo fato de que para tais homens

o ser e o não-ser são o mesmo


e quase o mesmo (B6.8-9).

O ser e o não-ser valem como o mesmo e quase o mesmo porquanto


as opiniões dos mortais, voltando-se para as aparências, oscilam ora sendo
ora não-sendo aquilo que aparentam ser. É por isso que as coisas que
parecem, aparentando ser, atravessam todas as coisas através de tudo
(B1.31-32). Está, pois, em questão a totalidade de todas as coisas (πάντα),
a qual é atravessada pelas coisas que parecem (τὰ δοκοῦντα) através de
tudo (διὰ παντὸς)48, incitando, nos mortais, as opiniões (δόξας) e os
conduzindo por caminhos tortuosos que os mantêm surdos, cegos,
aturdidos, em suma, indecisos. Trata-se da indecisão de estar imerso e
perdido nas aparências sempre a se desvanecerem a si mesmas em sua
dinâmica de eclosão e em seu jogo de aparição e retração. O constante vir
a ser do aparecer, vinculado às opiniões dos mortais, exprime, de um lado,
a dificuldade de apreensão da verdade em seu mistério e, de outro, a
constituição errante da humanidade, da qual não é possível escapar,
conquanto se possa, mediante o pensamento, transcendê-la na busca da

47
Confirmada, doravante, em B8.15, como veremos.
48
E isto, em última instância, significa: se todas as coisas são atravessadas pelas aparências, o ser também o é; logo,
deve-se também poder buscar o ser no próprio seio do aparecer.
Ray Renan Silva Santos | 63

verdade49. O mistério da verdade leva os homens a mergulharem na


imediatez das aparências, como a imediatez das aparências os leva a um
distanciamento do mistério da verdade. Relacionam-se, pois, mutuamente
o inclinar-se para a vida ordinária das aparências e o distanciar-se do
mistério extraordinário da verdade.

A κρίσις (B8.15-18), a circularidade (B5.1-2) e a unidade entre o pensar, o


pensamento e o pensado (B8.34)

De outra parte, impõe-se como necessidade, para aquele que trilha o


caminho da verdade, tomar uma decisão, a mais radical das de-cisões, isto
é, aquela que cinde, que separa um caminho do outro. Em questão está o
caminho que é próprio ao pensamento filosófico.

[...] ἡ δὲ κρίσις τούτων ἐν τῷδ΄ ἔστιν·


ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν· κέκριται δ΄ οὖν, ὥσπερ ἀνάγκη,
τὴν µὲν ἐᾶν ἀνόητον ἀνώνυµον – οὐ γὰρ ἀληθής
ἔστιν ὁδός – τὴν δ΄ ὥστε πέλειν καὶ ἐτήτυµον εἶναι.
[...] tal é a decisão acerca destas coisas:
é ou não é. Está decidido, portanto, conforme necessidade,
deixar um dos caminhos como impensável e indizível – pois não é
caminho verdadeiro –, enquanto o outro é e é genuíno (B8.15-18).

Tal é a de-cisão (κρίσις) que se impõe para o pensamento (νόηµα),


como a própria necessidade (ἀνάγκη) de pensar: ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν (é ou
não é). A via que é exprime a via do ser. Mas o que significa, aqui, ser?
Significa aquilo a partir do que e por meio do que o homem vem a se tornar
propriamente homem com o pensar que lhe é próprio. É a questão sobre
o ser que coloca, de forma inaugural e decisiva, a questão sobre o que é o
homem. O homem, tomado em seu sentido pleno, isto é, investigado em

49
Quer isto significar o seguinte: que as opiniões dos mortais, vinculadas incialmente às aparências, não são
“descartadas” na constituição do saber; antes, porque podem ou não ser verdadeiras (dado o seu caráter oscilante),
auxiliam o próprio exame a que se propõe o saber, semelhantemente ao caso das aparências, que devem auxiliar o
pensar e o saber que apreendem o ser.
64 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

sua essência, a partir da verdade de seu modo de ser, é o vivente em que o


pensar desponta. Esse pensar não é mero pensar, mas consiste em pensar
o ser em sua mesmidade consigo; consiste, portanto, no poder de reunião
que só o λόγος pode articular. O pensar (τὸ νοεῖν), tomado em sua essência
(τὸ ἐὸν), é a realização e o vigor de reunião do todo no dizer (τὸ λέγειν). O
saber, o autêntico saber, aquele que se envereda pela trilha da verdade,
refere-se ao que é pensável e dizível, porquanto articula, mediante o
pensamento e a razão, a dimensão originária de que ele provém. Não lhe
cabe, portanto, permanecer na esfera do impensável (ἀνόητος) e indizível
(ἀνώνυμος)50 – donde a necessária identidade entre o dizer, o pensar e o
ser na articulação do saber. Somente a via que é (do ser) se apresenta como
pensável e dizível; pela via que não é, temos a absoluta negação do que é
pensável e dizível – o impensável e o indizível – e, por conseguinte, temos
a negação do que é, do ser. Contudo, uma vez que o ser é tudo o que há
para pensar, o não-ser se configura como a total negação da totalidade do
pensável e do dizível. Por um lado, o ser é pensável e dizível, e é só o que
há de pensável e dizível para a descoberta (verdade) da essência do
homem; por outro, vigora no homem a possibilidade originária de o ser se
consumar como pensado e dito, de modo a fazer com que o pensar e o
dizer, em seu realizar-se como pensamento e palavra na existência
humana, pense e diga o pensável e dizível e, assim, a ele (ao ser) retorne
como o que foi pensado e dito. Tratar-se-á sempre de um caminho
circular, em que o “comum” (ξυνός), que aqui coincide com “o mesmo” (τὸ
αὐτὸ), aponta para a essência do homem, a qual está em todo início, em

50
Embora também possamos remeter ao ser como essencialmente impensável e indizível, porquanto mistério
sempre a se descobrir e a se pensar e dizer. Quando concebemos o ser somente como pensável e dizível, adentramos
uma perspectiva unilateral e, com isso, não o apreendemos em sua essência. O fato de o ser se nos apresentar como
pensável e dizível advém justamente de a sua natureza, originariamente, ser impensável e indizível. É a necessidade
de pensar e dizer o impensável e o indizível que nos possibilita consumar o pensamento e a linguagem. Quando,
porém, Parmênides se refere ao não-ser como impensável e indizível, o que está em pauta é a absoluta negação do
ser. Como o ser é o que há para pensar e dizer no âmbito cognitivo do saber e da verdade, o não-ser é precisamente
a negação do ser e, portanto, do saber e da verdade.
Ray Renan Silva Santos | 65

todo percurso e em todo retorno do pensar, conforme atestam os versos


de B5:

Ξυνὸν δέ µοί ἐστιν,


ὁππόθεν ἄρξωµαι· τόθι γὰρ πάλιν ἵξοµαι αὖθις.
O comum é para mim
donde começo, pois para lá retornarei novamente (B5.1-2).

Aquilo a partir do que o pensamento desponta é também aquilo para


o que o pensamento retorna. Em questão está sempre a circularidade da
verdade, que se faz presente em todo o percurso investigativo, de modo a
fazer com que o passo inicial convirja para o trilhar da rota e, de igual
modo, o trilhar da rota e o passo final convirjam para o passo inicial51.
Porque é o mesmo pensar e ser, o despontar do pensamento se dá sempre
com vistas ao mesmo de onde ele provém e para onde ele retorna. O
pensamento se manifesta no vigor de união com a sua origem. Isso
significa que tanto a origem deve sempre e novamente irromper no
pensamento, como o pensamento só acontece à medida que se volta para
a mesmidade originária de que ele se constitui e em virtude de que ele se
dá:

Ταὐτὸν δ΄ ἐστὶ νοεῖν τε καὶ οὕνεκεν ἔστι νόηµα.


Οὐ γὰρ ἄνευ τοῦ ἐόντος, ἐν ᾧ πεφατισµένον ἐστίν,
εὑρήσεις τὸ νοεῖν·
O mesmo é pensar e [ser]52 por que há pensamento
pois sem o ser, no qual está o que foi dito,
não encontrarás o pensar (B8.34-36).

51
Também, neste sentido, Heráclito no fr. B103: “O comum: princípio e fim na circunferência do círculo”
(HERÁCLITO, op. cit., 131).
52
Leio B8.34 com o verbo “εἶναι” implícito. Tal leitura se pauta em B3, na identificação entre pensar e ser, e em B6.1,
na identificação entre o dizer, o pensar e o ser, além da própria continuação do verso em questão (B8.34), em que se
explica que, sem o ser, não é possível encontrar o pensar. Sendo assim, B8.34-36 está retomando a identidade entre
pensar e ser. Prefiro esta leitura a traduzir οὕνεκεν (por que) subentendendo um pronome demonstrativo: “aquilo
por que” ou “aquilo por causa de que”.
66 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Com a noção de que é o mesmo pensar e [ser] por que há


pensamento, temos um aprofundamento da noção de mesmidade
constatada em B3 e subentendida em B6.1. Com isso, a anteposição de
união também aqui vem a ser reforçada, uma vez que se fala que o mesmo
é pensar (νοεῖν) – remetendo ao infinitivo desta ação e, portanto, à sua
condição originária – e também [ser] por que há pensamento (νόηµα) –
remetendo à consumação do ato de pensar. Assim, ser (εἶναι) está tanto
no primeiro ato (νοεῖν) quanto na realização deste ato (νόηµα), pois, em
verdade, “sem o ser” (ἄνευ τοῦ ἐόντος), “não encontrarás o pensar”
(εὑρήσεις τὸ νοεῖν), visto que só é possível pensar o ser, e não há a
realização do pensamento senão quando o ser é pensado. O pensamento
consumado implica a identificação de si mesmo com o ser, e o seu advento
não poderia se dar senão em virtude da própria possibilidade de pensar,
que remete sempre a uma dimensão de anteposição.
O mesmo é a origem – o mistério inexaurível donde o pensar
desponta e para o qual ele retorna – e o próprio pensamento. Por ser
mistério já revelado e sempre por se revelar é que o pensamento, em seu
retorno, une-se ao mesmo de antes, de agora e de depois, para poder se
realizar como tal. Trata-se, em verdade, da mesmidade do pensar, do
pensamento e do pensado, em que o ser, sendo o pensado, exprime uma
unidade com o pensar que desponta e que, ao fazê-lo, constitui
propriamente o pensamento. Em jogo está sempre a circularidade da
anteposição de união entre pensar e ser: o pensar só se realiza desde o ser;
o ser só vem à luz mediante o pensar; o pensamento só se consuma à
medida que, ao pensar o ser, reconhece a unidade de si mesmo com o ser53.
A consumação do pensamento implica a plena reunião daquilo que,

53
Ou, na linguagem de Plotino (V, 6, [24] 6): “Pois é preciso a essência primeiramente dita não ser sobra do ser, mas
ter pleno o ser. E é pleno o ser quando [ele] tomar a forma de pensar e viver. Ao mesmo tempo portanto é o pensar,
o viver e o ser no que é. Portanto se há o que é, também inteligência, se há inteligência, há também o que é, e o
pensar é ao mesmo tempo com o ser”.
Ray Renan Silva Santos | 67

enquanto possibilidade originária, vigorava já em uma identidade, sem a


qual não seria possível o despontar do pensar na articulação com o ser54.
É, pois, a plenitude do ser no pensar e, de igual modo, do pensar no ser
que constitui o pensamento. Aqui, portanto, não cabe a atribuição de um
“quem” ao acontecimento a que nomeamos pensar; antes, de um ponto de
vista mais originário, deve-se dizer: o pensar pensa, e o faz desde e como
o próprio ser, que é e está no pensar. Pelo fato de o mesmo ser origem, o
pensar provém dessa mesmidade originária, para só então se consumar
em pensamento que acolhe e expõe, num só tempo, o ser. O pensamento,
por sua vez, só se consuma plenamente mediante o pleno reunir (τὸ
λέγειν) de pensar e ser na linguagem (λόγος). Nisso se difere
essencialmente o homem que pensa dos demais homens. Uma coisa é
opinar e falar – algo que é sempre dado à maioria dos mortais; outra,
radicalmente diferente, é pensar e dizer o ser de todo opinar e falar, além
de pensar e dizer o ser do pensamento que articula a totalidade de todas
as coisas. Tal homem, então, cuja trilha e o modo de ser se atrela ao
pensamento, tem para si não apenas a possibilidade de conhecer a si
mesmo, mas a totalidade do mundo e a unidade de si mesmo com o mundo
e tudo o que nele há55.

A κρίσις do λόγος (B7.5-6) e o pensamento em torno da verdade (B8.50-51)

O pensar e o dizer que revelam o ser de todas as coisas é, pois, o


λόγος. É o λόγος tanto o poder de acolhimento e reunião quanto o vigor de
escolha e decisão. Assim ressoam os últimos versos de B7:

54
Por isto dirá Aristóteles: “A faculdade perceptiva e a faculdade científica da alma são, em potência, os seus objectos,
isto é: a última, o cientificamente cognoscível; a primeira, o sensível” (De An., III.8, 431b28-29). Na mesma direção,
dirá Plotino, focando o âmbito tão somente do pensamento e aprofundando a identidade em questão: “Portanto um
só será todas as coisas: inteligência, ato de pensar, o inteligível. Se então o ato de pensar de si é o inteligível, e o
inteligível é a mesma [inteligência], portanto esta pensará a si mesma” (V, 3, [49] 5.).
55
Conforme expressão do Oráculo de Delfos incorporada no pensamento socrático-platônico: “Conhece-te a ti mesmo
e conhecerás o Cosmos e os deuses”.
68 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

[...] κρῖναι δὲ λόγῳ πολύδηριν ἔλεγχον


ἐξ ἐµέθεν ῥηθέντα.
[...] decide através do λόγος56 a prova multiconflitante
proferida por mim (B7.5-6).

A decisão (κρίσις) de que fala a deusa em B8.15-18, a saber, a de que


é ou não é (ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν), a qual se dá por uma necessidade (ἀνάγκη),
necessidade esta que implica deixar um dos caminhos como impensável
(ἀνόητος) e indizível (ἀνώνυμος), já havia sido prenunciada em B7.5-6, sob
a forma do verbo κρίνω no aoristo imperativo médio singular κρῖναι.
Trata-se de uma ordem, que é a ordem da necessidade à qual o
pensamento deve corresponder. A necessidade da decisão (κρίσις) é, pois,
a necessidade do λόγος como a força que cinde, que separa e que, portanto,
escolhe e acolhe o caminho que é, a fim de segui-lo.
Constitui o modo próprio de ser do homem o acolher e o reunir (τὸ
λέγειν) no pensar (τὸ νοεῖν) a identidade (τὸ αὐτὸ) com a sua essência, isto
é, com o ser (τὸ ἐὸν). Todo esse acontecimento configura uma decisão
(κρίσις) do λόγος – decisão esta que não está vinculada ao arbítrio, à
vontade, ou mesmo à autoridade do homem; antes, é o próprio homem
que, atravessado pelo λόγος, vem a ser conduzido para uma decisão da
qual ele não pode escapar: a decisão de trilhar o caminho da verdade e
resgatar a essência da humanidade. Somente ao λόγος é dada a força de
toda e qualquer afirmação ou negação que evidencia o que afirma e o que
nega como tais57. A κρίσις do λόγος implica o pensamento pleno,
consumado na unidade com a origem de que proveio. Consiste em um
caminho de separação que é, simultaneamente, de união: de um lado,

56
Prefiro aqui não traduzir a palavra λόγος, por compreender a sua amplitude e multisignificância.
57
Neste sentido, dirá Reale, referindo-se ao λόγος parmenidiano, que “é o lógos, de fato, e apenas o lógos que afirma
o ser e nega o não-ser” [è il logos, infatti, e solo il logos che afferma l'essere e nega il non-essere] (REALE, Giovanni.
Storia della Filosofia Antica. I. Dalle Origini a Socrate. Quinta edizione. Milano: Vita e Pensiero, 1987, p. 126).
Ray Renan Silva Santos | 69

impõe-se a necessidade de seguir o caminho da verdade e abandonar os


descaminhos; de outro, essa escolha, proveniente também de uma
necessidade, configura um retorno à possibilidade sempre anteposta de o
pensamento pensar o que há para pensar e, com isso, unir-se ao ser em
uma mesmidade originária. Só aqui pode o homem se amparar frente à
sua finitude. Não se trata de um amparo de fim dos perigos; trata-se de
um amparo do pensamento e da linguagem no âmago do ser, conforme o
sentido das palavras finais da deusa:

Ἐν τῷ σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόηµα


ἀµφὶς ἀληθείης·
Nisto cesso o discurso confiável e o pensamento
em torno da verdade (B8.50-51).

O discurso confiável (πιστός λόγος) e o pensamento em torno da


verdade (νόηµα ἀµφὶς ἀληθείης) exprimem aqui a robustez da dimensão
de anterioridade em que deve se pautar o discurso e o pensamento
humanos. Recorrendo apenas a si como o critério de fiabilidade, o homem
se afunda cada vez mais no abismo das aparências do real e de si. Cumpre-
lhe, assim, regressar àquela anteposição de união do pensamento com o
ser, em que a de-cisão que se lhe impõe será sempre a consumação das
suas possibilidades de acolher e escolher o caminho dos caminhos. Nisso
se dá, pois, a Filosofia.

***

A compreensão desse pensamento, enunciado por meio do Poema de


Parmênides, nos encaminha a pensar o que há de radical, originário e
inescapável na história do pensamento filosófico que se deu e se dá no
Ocidente. Como todo grande pensamento, configura-se como o mesmo
70 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

pensamento que atravessa todas as diferenças do pensar na história da


Filosofia. Não à toa Platão caracterizou o pensamento de Parmênides entre
os que estão muito acima de nós58, concebendo Parmênides, mediante um
jargão homérico, como “venerável” (αἰδοῖος), ao mesmo tempo que
“temível” (δεῖνος)59. Mas aquilo a que se refere o respeito e o temor a
Parmênides é a de-cisão fundamental do pensamento pelo qual ele
percorre. Trata-se, nas palavras de Hegel, do “início da ciência” (der
Anfang der Wissenschaft)60, ou, nas palavras de Heidegger, tomando por
referência o dito de B3, “o princípio condutor da filosofia ocidental” (der
Leitsatz der abendländischen Philosophie)61.
Trata-se do pensamento que nos indica sempre um caminho de
aprendizado, o qual, sendo filosófico por excelência, requer e abarca a
totalidade de todas as coisas por uma necessidade (ἀνάγκη): “Terás
[Χρεὼ], pois, de tudo [πάντα] aprender” (B1.28). Refere-se esse
ensinamento à necessidade do pensamento e ao pensamento que deve
apreender-se em sua necessidade. Tal necessidade implica o único
caminho de investigação que há para pensar, justamente porque não se
pode fugir do necessário. É o necessário, e só o necessário, aquilo que nos
faz pensar a unidade da totalidade por meio de um princípio condutor.
Isso também expressou Heráclito, em referência à consumação do saber
filosófico como aquele que deve abarcar a finitude humana a partir da
infinitude divina:

Para falar com saber é necessário [χρὴ]62 apoiar-se sobre a comunidade de


todas as coisas [τῷ ξυνῷ πάντων], como a cidade sobre a lei e ainda mais

58
Cf. O Sofista 243a-b.
59
Cf. Teeteto 183e.
60
HEGEL, op. cit., p. 115.
61
HEIDEGGER, 1953, p. 111.
62
Veja-se, ainda, essa necessidade exposta no fr. B35: “É bem necessário [χρὴ εὖ] investigar muitas coisas para os
homens serem amantes da sabedoria” (HERÁCLITO, op. cit., p. 161).
Ray Renan Silva Santos | 71

vigorosamente. Porque todas as leis humanas são alimentadas por uma lei
una, a divina; pois exerce seu domínio tão longe quanto se consente, e basta e
envolve a todas as outras (B114)63.

Na mesma direção de Parmênides, ao articular a unidade entre o


pensamento e a essência do pensar, Platão dirá que filósofos são aqueles
que apreendem o que é sempre o mesmo64, ou ainda, que as almas
filosóficas são aquelas que se esforçam por “alcançar sempre a totalidade
e a universalidade do divino e do humano” [τοῦ ὅλου καὶ παντὸς ἀεὶ
ἐπορέξεσθαι θείου τε καὶ ἀνθρωπίνου]65. É claro que esse saber da
totalidade de todas as coisas não implica um conhecimento específico de
todas as particularidades, por isto Aristóteles, tomando o sábio pelo
filósofo, profere, em tom esclarecedor: “Consideremos, em primeiro lugar,
que o sábio conheça todas as coisas [πάντα], enquanto isso é possível, mas
não que ele tenha ciência de cada coisa individualmente considerada”66.
O que já nos propõe o Poema de Parmênides é precisamente a
necessidade radical desse saber da totalidade como uma decisão a ser
tomada através do λόγος – uma decisão da qual o pensamento filosófico
jamais poderá escapar. Decidir através do λόγος significa: recorrer ao
pensamento, ao raciocínio, ao discurso, à argumentação – sempre no
sentido de mostrar a essência que possibilita o pensamento, o raciocínio,
o discurso, a argumentação. Isso, por sua vez, é o que configura a Filosofia
como tal e a diferencia dos outros saberes. De igual modo, a Filosofia, na
medida em que se caracteriza como a ciência primeira, por pensar o que
há de primitivo-originário, deverá sempre identificar aquilo que ela pensa
com o próprio pensamento (pois o mesmo é pensar e ser – B3). Assim,

63
HERÁCLITO, ibid., p. 155.
64
A República VI 484b.
65
A República VI 486a-b.
66
Metph., A. 2, 982a.
72 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

independentemente da época, a Filosofia é isso e não pode não ser. E aqui


fica clara a razão de o pensamento de Parmênides estar necessariamente
vinculado ao destino da Filosofia.

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3

“Sensação e saber não são o mesmo”


(Platão, Teeteto 186e)

José Trindade Santos 1

A interpretação da refutação de Sócrates à primeira resposta dada


por Teeteto à pergunta — “O que é o saber” — (Teeteto 184b-186e) levanta
ainda hoje questões sobre as quais não há consenso. Em causa está a
resposta avançada — “a sensopercepção é saber” (152a) —, alimentando o
argumento desenvolvido pelo filósofo, os pressupostos em que assenta e
as finalidades que quer atingir. Discutiremos aqui sobretudo os dois
últimos pontos. Cada extensão do texto examinado é marcada pela
respectiva cota, sendo o comentário a essa seção dela separado por um
asterisco (*).
Começamos por esclarecer alguns pressupostos. Em primeiro lugar,
o termo “sensopercepções” (englobando ‘sensações’ e ‘percepções’), com o
qual traduzimos ‘aisthêseis’, e “perceber” e “sentir”, com que traduzimos
o verbo aisthanomai, é caracterizado, no Fédon (73c-d) e na República (V
477d, ss.) como: “tomar nota de algo (corpóreo) através do corpo”,
associável ao exercício da doxa (Frede, 1999, 378-379).
No Teeteto, para enquadrar a tese, associada a Protágoras, de que “as
coisas são para cada um como lhe parecem” — ou seja, “tal como as
percebe” — (152a-b), Sócrates refere uma teoria segundo a qual “o
movimento e a mistura” impedem que “algo” “seja um, nomeado ou

1
Professor visitante de Filosofia na Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: jtrin@gmail.com
José Trindade Santos | 77

receba qualidades” (152d). A teoria é elaborada numas “doutrinas


secretas” sobre o movimento e as sensopercepções (156a-157c), as quais
acrescentam às relativas aos cinco sentidos “o frio e o calor, prazeres,
dores, desejos, medos e muitos outros, sem nome” (156a).
É a aceitação desta teoria “sensista” (159b-160e) por Teeteto que vai
obrigar Sócrates a reformular concepções relativas às sensopercepções,
desenvolvidas no Fédon e na República. O argumento visa à refutação do
“infalibilismo”2, sustentado na “defesa de Protágoras” (166a-168c) e no
debate sobre a tese de que todas as opiniões são verdadeiras (170c-183c).
Até que, afastado o sofista, Sócrates dirige ao seu interlocutor um
novo argumento. Este restringe o funcionamento das sensopercepções à
captação dos sensíveis próprios de cada uma delas, tendo em vista libertá-
las do complexo que as associa à Opinião.
184b-e
Teeteto aceita a proposta do filósofo de que “o homem vê as coisas
brancas e negras… com os olhos… e ouve os [sons] agudos e o graves…
com os ouvidos” (184b; muitos outros exemplos de percepções são
indicadas adiante: 184e). Mas a concordância suscita um esclarecimento
ulterior: aquilo que hoje reconhecemos como “os órgãos dos sentidos” —
no texto identificado pelos termos que os designam (“olhos”, “ouvidos”,
etc.) — deve ser entendido como “aquilo através de que cada um percebe”
as “sensopercepções”3 (184d2, passim). Pois — rejeitando a possibilidade
de as sensopercepções “existirem em nós como em ‘cavalos de madeira’”

2
Criticando M. Burnyeat (1979, 69-111), G. Fine (1996, 105-106; 1994, 138-141) rejeita a atribuição do “relativismo” a
Protágoras, caracterizando a concepção do sofista como “infalibilista”. As duas concepções diferem, porque a
primeira é uma tese epistemológica, que nega haver verdades absolutas, enquanto a segunda, além de admitir
verdades (como será o caso da tese de Protágoras), tem implicações ontológicas, por exemplo, ao defender que cada
um capta a realidade tal como a percebe (Teeteto 156a-157c, 167a-c, 182a-b).
3
Com o termo, os dois interlocutores tanto se referem à “competência” (dynamis: 184e6) cognitiva que recorre a
esses órgãos (a que chamamos ‘sentidos’) para “sentir” (no corpo) e “perceber” (dentro e fora dele) “as [coisas]
sentidas e percebidas” (aisthêta), como ao produto desse exercício: as “sensopercepções” (de algo: Rep. V 477d1-2;
Cooper 1970, 130). Esta abrangência, para nós, ambiguidade, se mantém ao longo do argumento, como veremos,
condicionando as interpretações de que é objeto.
78 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

(184d; Zilioli 2013, 179-183) —, sugere Sócrates, ser como “instrumentos”


(organôn) dirigidos a “essa natureza una, chamada ‘alma’, que percebemos as
coisas percebidas” (184d). Podemos, portanto, referir ao corpo a percepção
das “[coisas] quentes, moles, duras, doces”, desde que aceitemos serem as
“sensopercepções” aquilo através de que percebemos (aisthanometha) as
“[coisas] percebidas” (aisthêta), de modo a convergirem na alma (184d-e).
*
Para atingir o objetivo visado pelo argumento, Sócrates deixa claro
que os sentidos são instrumentos. É deles que “a alma” (psychê) — que é
a mesma e é própria a cada homem (184d) — se serve para sentir e
perceber. É, pois, a alma que sente e percebe e não os “olhos e os outros
[‘sentidos’]” que se referem ao “corpo”.
É sobre esta tese — proposta de um sentido restrito para a aisthêsis
— que vai se apoiar todo o argumento apontado à refutação da definição
de Teeteto (152a). Na realidade, visados serão os defensores das teses
tradicionais sobre a associação da sensopercepção à Opinião, em
particular, Protágoras (e seguidores seus não identificados4: 155d-e, 178b),
que Teeteto aceita. No entanto, dada a complexidade e profundidade deste
argumento, essa finalidade acaba por ser largamente ultrapassada.
184e-185c
De imediato, Sócrates introduz a tese secundária da qual lança mão
para avançar na refutação. “Não é possível perceber através de uma
“competência” (perceptiva5) as coisas percebidas através de outra” (184e-
185a: os olhos não ouvem, os ouvidos não vêem, etc.: 185a). Além disso,
aquilo que for pensado (julgado, opinado, considerado, etc.) acerca de

4
Ver a identificação com os Cirenaicos (Zilioli 2013, 165-185), acima referida.
5
Outras “competências” são propostas na República V: o “saber” (epistêmê) e a “opinião” (doxa), não sendo a
“sensopercepção” apontada como competência, embora o diálogo faça referência e recorra amiúde a “ver e ouvir”.
Ao longo deste argumento veremos como a competência perceptiva acaba por se contextualizar na competência
cognitiva chamada “opinião” (doxa), sem nunca se confundir com ela.
José Trindade Santos | 79

ambas as sensopercepções não poderá ser sentido/percebidο através de


nenhum dos órgãos que as captam (185a).
No entanto, considerando um som e uma cor, Sócrates leva Teeteto
a conceder que “pensa que ambas são” (eston: no dual6)”, que “cada uma
é idêntica a si mesma e diferente da outra” e “são duas e cada uma delas
uma” (185a-b). Lhe pergunta então se ele é capaz de investigar se “são
semelhantes ou dessemelhantes uma da outra”. Perante a indecisão
patente na resposta do jovem, passa a explanar a dificuldade.
Como pode o moço pensar “acerca de ambas [as coisas percebidas]”,
se não pode captar o que é comum às duas nem através do ouvido, nem
da vista? Para que Teeteto possa responder à pergunta, Sócrates imagina
um exemplo. Se for possível examinar se ambas são “salgadas” (halmyrôi7)
ou não, a resposta não será dada pela vista, nem pelo ouvido, mas através
de outro [sentido]. E sem dificuldade Teeteto responde ser “através da
competência da língua” (185c).
*
Refletindo sobre este exemplo, prestemos atenção à introdução do
‘pensar’ no argumento. Como instrumentos através dos quais são
captadas “as coisas”, cada um dos órgãos é dirigido aos “sensíveis”
(aisthêta: 184d5) que é competente para captar. Se mostrará Teeteto capaz
de pensar que cada sensopercepção é (o que é), a mesma em relação a si
própria e diferente de outra (185a-b). No entanto, a avaliação conjunta de
duas percepções — por exemplo, a comparação das [“coisas percebidas”]
por uma e outra — nunca poderá ser conjuntamente examinada por
nenhuma delas.

6
O uso do dual é importante porque só ele pode assegurar que a expressão “acerca de ambas” (peri autoin) se refere,
conjuntamente às “coisas percebidas” pelas duas sensopercepções referidas. Não é, porém, assim, quando, em vez
do dual, é usado o genitivo plural (peri autôn: “acerca delas”).
7
“Salgado” é a tradução habitual do termo. Mas, como essa tradução não sugere algo comum à percepção conjunta
de uma cor e de um som, seguindo C. Kahn (2009, 98-99), defendemos que com esse exemplo Sócrates pretenderá
apenas excluir a possibilidade de usar qualquer outra sensopercepção para captar o comum a várias.
80 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Não se achará, pelo contrário, a alma constrangida por esta limitação,


imposta às sensopercepções. Pois, como se viu acima (185a), é possível
“pensar algo” acerca de “ambas”, embora não seja possível “refletir” sobre
[ambos os percebidos] por nenhum dos órgãos responsáveis pela captação
de cada uma delas (185a-b).
É este o motivo pelo qual a pergunta seguinte causa perplexidade a
Teeteto. Pois, se o exame [das coisas percebidas] por duas sensopercepções
diferentes não pode se realizar recorrendo a qualquer dos órgãos através
dos quais são captadas, como será possível examinar se são ou não
semelhantes uma à outra? (185b).
Sócrates sugere então um experimento mental. Se pudéssemos
examinar se uma cor e um som são (no dual) “salgados” (ver n. 6), como
explicaríamos a atribuição de qualidades comuns a duas [coisas
percebidas] diferentes, se cada órgão capta apenas aquela que lhe é
própria? Sócrates acha que Teeteto saberá responder à pergunta. E a
suposição é confirmada pelo fato de o moço de imediato apontar a língua
(pois, essa é a competência acerca do “salgado”).
O exemplo é problemático, pois, não só“ salgado” se não aplica às
duas percepções referidas, como se dirige a uma terceira, que igualmente
não capta o [que é] comum a elas. O filósofo parece pretender apenas
apontar à distinção que separa perceber [coisas] de pensar, mostrando que
pode se pensar sobre duas percepções distintas (‘que são’, ’o número’, ‘o
mesmo’ e ‘o outro’), mas não captar (lambanein) através de nenhuma
delas “o comum” (to koinon) a ambas. Mas, qual é a natureza deste
“comum”?
185b-e
Para focar a diferença que separa perceber e pensar, torna então a
perguntar:
José Trindade Santos | 81

Através de quê, a competência sobre o [que é] comum a todas as [coisas


percebidas], sobre essas, te revelaria aquilo com que nomeamos o “é” e o “não
é”, sobre as quais há pouco [te] questionávamos? Em todas estas, quais
instrumentos nos atribuirás, através dos quais percebemos cada [“coisa”]
percebida?”8 (185c).

E Teeteto responde:

Falas da entidade (ousia) e do não-ser, da semelhança e dessemelhança, do


mesmo e do outro, do um e de outro número relativo a essas9. É evidente que
perguntas, sobre o par e o ímpar e sobre outros que a eles se seguem, através
de que [competência], das do corpo, percebemos com a alma (185c-d).

Na continuação, quanto a haver algum órgão próprio que capte o


comum, o jovem não crê que haja. Mas admite que, na falta de um, “lhe
parece que, em si e por si, [é] a alma [que] investiga o que é comum a
todas as [coisas percebidas]” (185d-e). Sócrates não pode deixar de
concordar com ele, observando ser essa a conclusão por ele próprio
atingida: “de um lado, estão as coisas que a alma investiga em si e por si;
do outro, aquelas que [investiga] através das competências do corpo”
(185e).
*
Tinha ficado claro que não são as “sensopercepções” (os ‘sentidos’,
diríamos) que percebem, mas que é a alma que as usa como

8
Aproveitando a crítica de Cooper (1970, 135-138) à tradução de 185c-d, reproduzimos a sua versão: “Acerca delas
[as coisas percebidas], dizes que são e não são, semelhantes e dessemelhantes, as mesmas e outras, uma e mais. E
perguntas através de que [competência], das do corpo, percebemos com a alma se são pares, ímpares e outros
[números] que a eles se seguem”.
9
Sempre que um pronome é usado, o intérprete fica na dúvida sobre aquilo a que se refere. É devido a essa
ambiguidade que a expressão “acerca dessas” (peri autôn) tanto pode ter como antecedente “a unidade e outro
número”, como o que foi dito antes, a saber: “a entidade, o não-ser, etc.”. Neste caso, “essas” seriam “o que é comum
a todas as “percepções”, na pergunta de Sócrates, entendendo as expressões elencadas por Teeteto como “predicados
ligados a um sujeito”. Nesse sentido, a pergunta não se dirigiria à “entidade, semelhança/dessemelhança,
mesmo/outro, etc.”, mas inquiriria: “se [as percepções] são ou não são, semelhantes ou não, etc.” (Cooper 1970, 135-
138, 140, n. 22). O A. argumenta a partir do paralelo das referências às sensopercepções (peri autoin, peri autôn).
82 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

“instrumentos” para captar as coisas percebidas (184b-e). Isso se torna


evidente quando se constatam duas consequências dessa subordinação.
Como cada órgão capta apenas o sensível para o qual é competente (185a;
o seu “objeto próprio”: Brown 1993, 215-216), como “competência”, cada
sensopercepção não é capaz de chegar a “o [que é] comum” (to koinon:
185b) às coisas percebidas. (185a-b).
Pois, se cada competência perceptiva opera recorrendo ao órgão
através do qual capta o que é competente para captar, é claro que nenhuma
delas se acha habilitada a captar “o que é comum a todas [as coisas
percebidas]”. Essa é a questão proposta no passo acima traduzido, à qual
Teeteto responde “não haver no corpo algum instrumento através dos
quais percebemos cada [“coisa”] percebida?”10 (185d).
A resposta para esta pergunta começou por ser insinuada pela
gradual introdução de uma terminologia alheia à percepção, que habilitará
juízos sobre as “coisas percebidas” em conjunto: “pensar”, “examinar”,
“considerar”, “avaliar”, “investigar”, “julgar” e um conjunto de termos
contextualizáveis na competência cognitiva ‘Opinião’, que o diálogo
examinará a seguir. O que parece relevante, contudo, é a associação de
todas estas operação a diferentes usos do verbo ‘ser’ (Kahn 2009, 99-106).
A inflexão no argumento é confirmada pela função levada a cabo pela
primeira das operações psíquicas apresentadas: “dar nome a “o [que] é e
o [que] não é”; ou seja, distinguir no que é percebido aquilo a que
chamamos “entidade” (“o que é ou não é; aquilo que é e existe, ou não; o
que é ou não verdade”), caracterizando-a pela predicação.
Ao definir que é a alma, em si e por si, que considera “a entidade” (o
que cada coisa é), “a semelhança e dessemelhança, o número”, “o mesmo

10
Com as expressões — ‘to t’epi pasi’, ‘to epi toutois’ (ambas no dativo plural neutro: 185c) —, defendemos estar ele
a falar do que é comum a todas as “coisas” captadas por cada uma das sensopercepções, e não a “todas as percepções”
(dynameis: substantivo feminino).
José Trindade Santos | 83

e o outro”, Sócrates distingue dela as ‘qualidades’ que ela investiga


“através das competências do corpo” (185e). Como o seu objetivo é
mostrar que a alma não necessita do recurso a qualquer instrumento
(“órgão”) específico, fica perfeitamente estabelecida a diferença entre uma
e outra das tarefas a que se entrega.
A resposta dada por Teeteto abre, portanto, uma via até aqui
inexplorada pelo argumento. Embora não recorra a nenhum órgão
específico associado “ao que em nós sente”, essa competência é relativa a
como e o quê são pensados pela alma: a “entidade e o não-ser, etc.” (ou
“que as coisas são e não são, etc.”: 185c-d).
186a-e
Somos assim conduzidos à conclusão do argumento. Depois de ter
atribuído à alma a função de “perceber as coisas percebidas” através das
sensopercepções (184d) e ter separado “as coisas a que a alma chega, por
si mesma” (185e) daquelas “às quais chega pelas competências do corpo”
(184e, 185e), Sócrates recapitula o raciocínio exposto, perguntando a
Teeteto em que grupo coloca a mais importante delas: “a entidade” (ousia:
186a).
Tendo o jovem confirmado que a coloca — “entre aquelas a que a
alma chega por si própria” —, o filósofo repete a pergunta, lhe
acrescentando a “semelhança e dessemelhança”, “o mesmo e o outro”, o
“belo e feio” e “bom e mau” (186a). O jovem responde não apenas
aceitando cada uma delas, mas colocando-as na “relação de umas com as
outras” (pros allêlla), quando: “… a alma investiga a entidade, calculando
em si mesma o passado e o presente relativamente ao futuro” (186a-b).
Confirmando a nota de síntese expressa na resposta, Sócrates
pressiona então o seu interlocutor, buscando confirmação das posições
assumidas com uma nova pergunta. Lhe pedindo que se detenha, começa
por solicitar que ele admita ser pelo tato que [a alma] percebe a “dureza
84 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

do duro” e a “moleza do mole” (186b). Todavia, as consequências da


resposta à pergunta, dada a diversidade e complexidade de questões
formuladas, têm de ser consideradas uma por uma.
A primeira questão é a da “entidade”, expressa no fato de “dureza” e
“moleza”, “ambas serem“ (aquilo que são e, na medida em que são,
implicitamente existirem). A segunda é da “contrariedade” (o fato de
“moleza e dureza” serem contrárias uma à outra). A terceira é a “do ser
dessa contrariedade” (aquilo que a contrariedade é “em si”). Aceitando que
todos estas (186a-b) articulam sucessivos níveis ontoepistemológicos,
imbricados uns nos outros, é finalmente possível formular uma primeira
resposta às perguntas: “… é a própria alma que tenta distinguir [cada uma
delas] para nós, ao revisar e comparar umas com as outras” (186b).
Ou seja, é a própria alma que — tendo captado através das
sensopercepções as coisas percebidas (o duro e o mole) — chega à “a
dureza” e à “moleza” (pensadas), sucessivamente distinguindo o fato de
ambas (as “entidades”) serem e existirem, a contrariedade que opõe cada
uma à outra, e por fim o ser (ousia) dessa contrariedade — o que ela é —,
quando revê e compara umas com as outras.
Obtido o assentimento de Teeteto, segue a conclusão que sintetiza
todo o debate sobre as “relações” ativadas pela alma quando reflete sobre
as sensopercepções captadas. Sócrates distingue dois casos. De um lado,
dispõe as “experiências (pathêmata: 186c2) do corpo” que por natureza
todos os animais transmitem à alma, no curso da sua existência. Do outro,
aponta às “comparações” (analogismata) relativas ao que é [cada coisa
percebida] e ao benefício que causa, aos quais com dificuldade [os
homens] gradualmente chegam, mediante muito esforço e educação
(186c).
Portanto — voltando à resposta dada atrás por Teeteto —, se não é
possível atingir a verdade sem a entidade, e, sem verdade não se pode
José Trindade Santos | 85

saber, o saber não pode estar nas experiências do corpo que convergem na
alma, mas nos raciocínios efetuados sobre elas. Pois, pelo caminho do
raciocínio (syllogismôi), é possível atingir a entidade e a verdade;
enquanto, pelo outro não é (186c-d).
Consequentemente, se a sensopercepção “não participa da captação
da entidade e da verdade”, também “não participa da captação do ser”,
logo, também da “do saber” (186e). E, com esta conclusão, é atingida a
refutação da primeira resposta dada por Teeteto à pergunta: “o que é o
saber?11”
*
O argumento fica por aqui, porque era esse o objetivo a que visava,
no diálogo. Contudo, o mínimo que dele pode se dizer é que foi bem mais
longe do que o requerido pela refutação da primeira definição de Teeteto12.
Deixando a conclusão como adquirida, lembremos as principais teses que
estabeleceu:

1. É na alma que convergem todas as sensopercepções, sendo ela que, “através


dos instrumentos do corpo”, “percebe as coisas percebidas” (“quentes/frias,
etc.”: 184d-e);
2. se achando cada órgão (‘sentido’) habilitado a um único tipo de percepção,
quando as coisas percebidas dizem respeito a dois órgãos, a percepção não é
examinada por nenhum deles, se manifestando através de um outro (que
também não capta o comum a elas: 185b-c);
3. pelo contrário, o que é comum a todas as coisas percebidas é mostrado por
outros “instrumentos… acerca delas”: “o que é” e “o que não é”, a semelhança
e a dessemelhança, o mesmo e o outro, o um e os outros números; sendo estes

11
Teeteto começa a ser refutado quando aceita a redução dos órgãos [dos sentidos] a “instrumentos através dos quais
as coisas são percebidas” (184c). Pois, como esta posição não pode ser aceita pelo sensismo de Protágoras (até então
aceito pelo jovem), a refutação de Teeteto é operada através do exercício da maiêutica, pelo qual Sócrates o leva a
aceitar a reformulação das “sensopercepções” (Lott, 2012, 124-138).
12
É oportuno notar que o argumento refuta não apenas a definição de Teeteto e o infalibilismo de Protágoras, mas
também atinge a noção de ‘sensação’ e a continuidade desta com a ‘opinião’, na República 523-525 (Cooper 1999,
359, n. 7) ou no Fedro 249b-c.
86 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

que permitem à alma avaliar o que sente através [das competências] do corpo,
a saber: “as coisas comuns (ta koina) a todas as [coisas] percebidas” (185c-e);
4. algumas destas a alma investiga em si e por si; outras a própria alma
examina através das competências do corpo (185e);
5. entre as primeiras, se encontra a entidade, “que acompanha todas as coisas”,
a semelhança e dessemelhança, o mesmo e outro, o belo e o feio, o bom e o
mau [das/nas coisas percebidas ] (186a); entre as segundas, as “experiências”
que homens e animais percebem pelo corpo e “convergem na alma” (186b-c);
6. nestes últimos casos, a alma examina “o que é”, relacionando as percepções
umas com as outras, com vista a avaliar as experiências que teve antes e tem
agora, comparando-as com aquelas que vai ter, no futuro (186a-b); ou seja,
antecipando cada percepção e a sua natureza, mediante a revisão e
comparação com aquelas que já experimentou;
7. [Por exemplo] É através do tato que [a alma] percebe a dureza do duro e a
moleza do mole; mas é a própria alma que distingue “aquilo” (ho) que ambas
são, a oposição de uma à outra e o ser dessa oposição, quando as revisa e
compara (186b);
8. Devemos então distinguir as experiências que “através do corpo atingem a
alma” dos raciocínios que as avaliam (analogismata) — o que é cada uma e o
bem (ou o mal) que trazem —; pois, é com dificuldade, muito tempo e educação
que, ao longo da vida, alguns homens conseguem levar a bom porto essa tarefa
(186c).

De tudo isto, algumas perguntas ficaram por responder. A mais


pregnante será sem dúvida a que diz respeito à “entidade” (ousia) pela
qual “a alma anseia” (eporegetai: 186a4), pois o termo tem recebido
sentidos, traduções e interpretações muito diferentes (nomeadamente:
“essência”, “existência”, “ser”, “natureza”13, etc.). Independentemente das
opções terminológicas, há que ter a noção do que querem Sócrates e o seu
interlocutor dizer com esse termo?

13
A saber, “aquilo que [uma coisa] é”, o seu “ser”, a sua ‘essência’ — expressa pela nominalização da cópula — e,
resultando dela, o fato de “existir” — a sua ‘existência’ —, além de alguns casos veriditivos (Kahn 2014, 66-68; 1981,
175). Enquanto as duas primeiras facilmente se associam à versão clássica da teoria das Formas, a terceira remete
para a “objetividade, o modo como são as coisas no mundo” (Kanayama 1987, 62).
José Trindade Santos | 87

Dissemos que a “entidade” se refere a cada coisa que é (aquilo que ela
é) e, portanto, que existe14. Acrescentamos agora que essa é a questão a
partir da qual todas as outras podem vir a ser propostas. Pois, é pelo
pensamento que a alma, primeiro através das sensopercepções, vai
captando imagens fugazes (156a-157c) pelas quais ganha consciência
daquilo que recebe através delas, de modo a depois ser capaz de as unificar
(“convergir”: synteinei - 184d4) na entidade cujo ‘conceito’ definiu (“a
unidade compreendida a partir de muitas sensopercepções”: Fedro 249b-
c). É a partir dela que cada um se achará apto a refletir sobre as relações
que esta mantém com outras naturezas15 — semelhantes ou
dessemelhantes dela —, se tornando apto a emitir “opiniões” (juízos) sobre
as “experiências” vividas16.

II

Que quadro nos é fornecido pela análise das sensopercepções?


Ensaiando uma síntese recapitulativa (1 e 2, acima), diríamos que a função
sensoperceptiva é destituída de uma característica “experiencial”. O
“percebido enquanto percebido” só se manifesta quando é considerado
pela alma. Captado por cada órgão específico, identificado pelo seu nome
— “vista”, “ouvido”, “tato”, etc.17 —, não apresenta nenhuma característica
distintiva, porque só a alma poderá lhe conferir alguma.

14
Se pressupõe que qualquer coisa que é (o que é), e nessa medida tem uma identidade que lhe é própria, não pode
deixar de existir (Sofista 256e). É possível apontar a origem desta concepção à exegese do fragmento 2, de
Parménides. Ao contrário de “isto [que é] não é” (to mê eon), que não pode ser reconhecido (oute an gnoiês) pelo
pensar (B2.7) por não ter uma identidade própria, “isto que é” (to eon), na medida em que é reconhecido, se
pressupõe que existe.
15
É a compreensão da relevância das diferenças que separam estes níveis da cognição que justifica insistência de
Sócrates na separação e distinção das tarefas que a alma leva a cabo, ora a partir das sensopercepções (o duro e o
mole), ora em si e por si própria (a dureza e a moleza — as respectivas entidades —, a oposição, entre elas e em si).
16
Pois, a avaliação das experiências requer a aquisição de padrões objetivos (Taylor, 2011, 184-185).
17
O debate com Teeteto sobre a sensação começa precisamente com uma discussão sobre um “vento”,
hipoteticamente percebido como “frio” por um percipiente, mas não por outro. Adiante, a natureza do processo
perceptivo será examinada de diversas perspectivas (156a-157c), ensejando uma análise sensista e relativista das
sensopercepções que suporta a “infalibilidade” que lhes é conferida (152c5).
88 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Consequentemente, a percepção, por exemplo, da cor não poderá ser


identificada — o texto não esclarece este ponto —, se supondo que a alma,
e só ela, se acha apta a “comparar” a cor percebida com todas as já
percebidas (contra, Cooper 1970, 130-134). Esta restrição tem relevantes
consequências na teoria, como se verá já a seguir.
Tudo muda quando a alma é chamada a intervir sem recorrer à
sensopercepção. A sua participação se manifesta pela capacidade de
emissão de um “juízo perceptual” relativamente a “o que é comum18 a
todas as percepções”19. Para tal, é necessário que a alma disponha da
“competência” [inteligível] que lhe permite chegar ao que é comum a
todas as coisas percebidas, expresso em “o que é e o que não é”, mas
também na “semelhança e dessemelhança”, e nos que a elas se seguem
(185c-d).
Teeteto destaca a “entidade” (“essência”, “existência”, “ser”: ousia),
pois, como se verá adiante (186a), se outros tópicos podem ser incluídos
ou retirados da lista, essa “se estende a todos”. É ela que a alma busca e
dela que depende a possibilidade de sustentar que qualquer
sensopercepção é uma, igual a si própria e diferente das outras, que existe
e é verdade (185a-b).
No seu conjunto, porém, todas proporcionam à alma a capacidade de
formar conceitos e usar a predicação — ou seja, de formular juízos —,
mediante a qual será habilitada a usar uma estrutura predicativa — se
dispuser dela —, que sintaticamente liga um sujeito a um predicado e, de
uma perspectiva semântica, confere “existência” ao sujeito da predicação

18
Não sendo claro se ‘to koinon’, ‘ta koina’, se aplicam a qualquer “sensível” mediante a manifestação da ousia de
algo, pode haver dúvidas sobre o modo pelo qual são captados “conceitos” relativos a uma única percepção. O tópico
não é esclarecido pelo texto. Mas as consequências que dele derivam são necessárias para entender o argumento,
como veremos (ver nota seguinte).
19
Embora o argumento não se refira explicitamente à possibilidade de a alma emitir um juízo perceptual, por
exemplo, relativamente à identificação de uma cor, ou à caracterização de um som, específicos, não restam dúvidas
de que essa tarefa, adiante indicada (186b-c), caberá exclusivamente a ela e não às sensopercepções (Kahn
1981=2009, 103, n. 40).
José Trindade Santos | 89

e “verdade” à ligação deste a um predicado (Sofista 261e-264b; Kahn 2014,


67-68).

III

Uma das questões que mais tem contribuído para a falta de consenso
sobre o Teeteto é sem dúvida a da ausência da menção a Formas
inteligíveis, dificilmente justificável numa obra dedicada à investigação
sobre o saber. O debate sobre a presença, ou não, das Formas no Teeteto
se alarga à comunidade dos investigadores de Platão, a partir da publicação
do estudo de G. Ryle sobre o Parménides (1939), aprofundado no texto de
uma conferência do filósofo diante de uma selecta audiência, realizada em
1951 (reconstituída e publicada em 199020).
A argumentação de Ryle é muito crítica da interpretação favorável à
presença das Formas, proposta e largamente difundida numa obra
clássica, ainda hoje lida, que inclui as traduções, analisadas e comentadas
do Teeteto e do Sofista, da autoria de F. M. Cornford (1935).
O ataque de Ryle a essa leitura tradicional do diálogo, insinuando
haver no Teeteto indícios do abandono da teoria das Formas, por Platão
(1990, 44-46), deu origem à publicação de estudos de diversos AA.,
defendendo pontos de vista opostos. Entre os apoiantes de Ryle, contam-
se R. Robinson (195021) e J. Cooper (1970=1999), ao qual já fizemos e
continuaremos a fazer referência, pelo fato de ser crítico da tradução e
interpretação do argumento aqui estudado, propostas por Cornford.
184e-185e revisitado

20
O texto é precedido por uma pormenorizada explicação, que dá conta das circunstâncias em ocorreu a conferência
e justifica o interesse despertado na assistência por um escrito, que há anos circularia entre especialistas de Platão
(1990, 22-23). O tópico nele focado é a chamada “teoria do sonho” (Teeteto 201d-206b), que o A. interpreta como
uma antecipação do “atomismo lógico”.
21
O A. denuncia o argumento recorrente, usado por Cornford, em Plato’s Theory of Knowledge, de que “a ausência
de Formas no diálogo constitui uma estratégia deliberada com vista a mostrar que não podemos passar sem elas”.
Confirma depois esse ponto de vista acusando Cornford de associar o Teeteto às “doutrinas do Mênon, Fédon,
Banquete e República” (Robinson 1950, 6-11). Passa por fim ao debate da questão do erro, no Teeteto (Ibid. 19-30).
90 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Todavia, a abordagem desta questão obriga-nos a voltar ao diálogo.


No passo acima, todo o argumento de Sócrates se acha assente na única
tese, extremamente forte, conhecida como a teoria do “objeto próprio da
percepção”: “é impossível perceber por uma competência (dynamis) as
coisas (tauta) percebidas por outra” (184e-185a).
O passo é inovador, e raro neste contexto, pelo fato de separar
explicitamente as ‘competências’ (“ver”, “ouvir”) dos seus produtos, pouco
antes identificados como “as coisas brancas…, etc.” (184d-e) e aqui pelo
demonstrativo tauta. Na continuação do argumento, porém, tanto a
competência, como “as coisas” por ela percebidas, são constituídas como
referentes das expressões “acerca de” (peri: cinco vezes, em 185a; três, em
185b; uma, em 185c, em 185d, e em 185e), relativamente às quais o
argumento pergunta e responde.
É aqui que irrompe o primeiro problema: a que se referem os
genitivos pedidos pela preposição ‘peri’? De que se está a falar? A resposta
a estas perguntas é sugerida pela coerência nos usos da expressão. É às
“sensopercepções” mencionadas pelos dois interlocutores — identificadas
pelas “coisas” por elas “percebidas”— que as expressões circunstanciais
(“acerca de”) sempre se referem. Fixemos este esclarecimento, porque um
outro problema se manifesta em 185c-d.
É nesse sentido que devemos entender os usos de “todas”, nas duas
perguntas sobre as sensopercepções que Sócrates dirige Teeteto: 1.
“através de quê, a competência sobre o que é comum a todas [as coisas
percebidas] (epi pasin koinon)”, “sobre essas (epi toutois), te revelaria
aquilo com que nomeamos o “é” e o “não é”, sobre as quais há pouco [te]
questionávamos?; 2. “Em todas estas [coisas], quais (poia) instrumentos
nos atribuirás, através dos quais percebemos cada [coisa] percebida”
(185c)?
José Trindade Santos | 91

A dificuldade é composta pela aparição de um derradeiro ‘peri’, aqui


associada a mais uma referência a “todas”, em 185d-e. E o passo é
importante, pois, é nele que Teeteto responde à pergunta de Sócrates,
esclarecendo que “em si e por si a alma … investiga os comuns (ta koina)
acerca de todas (peri pantôn) [as coisas percebidas]”, no que é confirmado
pela veemente opinião do filósofo (185e).
Como apontamos atrás, o uso das expressões ‘epi pasi’, ‘epi toutois’,
‘peri pantôn’ é suficientemente vago para que “todas” se refira aos
“comuns” tanto às sensopercepções, quanto às “coisas” por elas
percebidas. Nesse sentido, cada sensopercepção “é sobre” uma infinidade
de [coisas] percebidas, sendo a pergunta relativa ao “que é comum a todas
elas” (aquelas percepções em que um, ou mais órgãos, captam os seus
objetos específicos). Por exemplo, se a cor é captada através da vista, então,
pelo fato de não ser percebida “pelo órgão” da visão, mas “através dele”, é
à alma que cabe perceber, por exemplo, “o vermelho”, bem como qualquer
outra cor específica (Burnyeat, 1990, 58-61; contra Cooper, 1970, 130-134).
Por que é assim? Porque, enquanto dynamis, o “instrumento”
(organon) — o olho — só capta a cor, não tendo poder descriminá-la. Daqui
concluímos que só a alma poderá etiquetar essa sensopercepção (contra,
M.-K. Lee, 2011, 418-419, n. 13; et al). E leva a cabo essa sua atividade, lhe
atribuindo o nome de uma cor, de um som, etc. Como podemos confirmar
esta resposta? Avançando no texto e conferindo o que Sócrates sustentará
aí: que [a alma] “raciocina” (analogidzomenê, analogismata: 186a, c) sobre
“as experiências” (186c: pathêmata; 186d: pathêmasin) que a afectam,
“revisando e comparando umas com as outras” (186b), “com dificuldade”,
ao longo da vida; tarefa que requere educação (186c). Cremos que esta
especificação se refere ao que foi perguntado em 185c. Pois, mesmo que a
expressão ‘todas…’ se não encontre aí, parece plausível que as tarefas de
revisão e comparação só possam ser levadas a cabo se se aplicarem à
92 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

totalidade das experiências perceptivas que, através de cada órgão,


convergem na alma.
*
Porque são necessárias tão pormenorizadas explicações para este
passo? Por duas razões. A primeira depende do modo como o argumento
é abordado. Se as interpretações atrás propostas, de ‘peri (com genitivo) e
‘epi (com dativo), forem aceitas, terá ficado evidente que a interpretação
do argumento requere que às expressões estudadas deva ser conferida a
mesma leitura ao longo do passo (se referindo a “o comum a todas essas
coisas percebidas”: 185d-e).
Mas a segunda razão que apresentamos incide sobre uma bem
conhecida crux que divide os intérpretes da filosofia platônica. Como
poderemos justificar a deliberada ausência das Formas do Teeteto, em
particular, tendo em conta a relação dramática que confere unidade à
trilogia complementada pelo Sofista e pelo Político, onde voltam a se
manifestar?
Poderá essa ausência implicar uma dupla rotura do diálogo aqui
estudado quer com uma obra que consensualmente o precede (a
República), quer com aquela que o aprofunda, eventualmente conferindo
às Formas um alcance em tudo distinto, no argumento que percorre o
Sofista (como, hesitando, aponta Robinson — 1950, 10-11 —, e insinua Ryle:
1990, 43-44)?
Pela análise atrás esboçada, tentamos mostrar que, a despeito de
algumas contradições (por exemplo, com a República VII 523-525; Kahn
2014, 64-65; Cooper 1970, 126, 145-146), bem como de inovações
programáticas, introduzidas no Sofista22, poderá não haver rotura, mas
revisão autocrítica.

22
Referimo-nos à reformulação da ‘negativa ’como ‘alteridade’ — 257b-c —, à teoria predicativa do enunciado e à
exemplificação de “o que é um enunciado falso” (261-264).
José Trindade Santos | 93

De resto, pelo que pudemos apontar, a apurada análise de Cooper ao


argumento do Teeteto critica os exageros de Cornford sem atingir o
coração da filosofia platônica (1999, 375-376). Do nosso ponto de vista, a
crítica do “sensismo infalibilista”, que unifica o complexo da percepção e
opinião, desenvolvida ao longo do debate da primeira resposta de Teeteto,
justifica a necessidade de provar a existência de “opiniões falsas”, pois, sem
elas, o diálogo não pode avaliar a contribuição da opinião para o saber
(187b-201d).
Por isso, no Teeteto, a prova é feita sem recorrer às Formas, sem,
contudo, avançar algo incompatível com elas. Pelo contrário, será até
possível sugerir que o argumento, em diversos passos, lhes faz
indiretamente referência, como a seguir tentaremos defender.
Recapitulado 186a-e
Pergunta Sócrates:

a dureza do duro é percebida através do tato e do mesmo modo a moleza do


mole?”… “Mas [é] a nossa própria alma [que] tenta distinguir o fato de
[ambas] serem, a oposição de uma à outra e ainda o ser dessa oposição, ao
revisar e comparar uma com a outra (186b).

Esta cadeia de perguntas expõe e distingue as duas tarefas pouco


antes confiadas à alma (185e-186a):

1. “etiquetar23 as “impressões” transmitidas [pelas “sensopercepções’]: “duro” e


“mole”;
2. distinguir e relacionar cada uma das “entidades” a elas referidas, perguntando e
respondendo (a si própria: 189e-190a) o que são: (a) “dureza” e “moleza”, (b) “a
oposição de uma à outra”, (c) “a oposição em si”24.

23
A “cor” percebida pelo ‘sentido” é discriminada pela alma: “um certo vermelho” ou qualquer outro tom da gama
de cores que a alma já recebeu noutras percepções.
24
A “entidade” (ousia), o fato de algo ser, não é captada pela percepção, mas pelo ‘pensamento’: 185a-b. É e existe
“no tempo”, passando por “muitas experiências” (186c), com a designação que suporta a sua identidade, partícipe
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Recebidas e classificadas as impressões, podemos distinguir as


operações levadas a cabo pela alma, em si e por si, relativas às três
“entidades” encadeadas no seu diálogo consigo mesma (“dureza”,
“moleza”, “oposição”): 189e-190; Sof. 264a. Em nenhum local do texto
encontramos indícios de que cada uma destas é identificada como uma
Forma inteligível. Mas também nenhum sinal nos é dado de que não
possam ser vistas como Formas, das quais a multiplicidade das “coisas
percebidas” participa.
O passo está centrado na questão do “ser”. Porém, nunca deixa de
apontar à da Opinião, à qual se entregará poucas linhas depois. Para
opinar, a alma produz enunciados, afirmando ou negando. Se confronta
com entidades que só pode captar pelo pensamento: primeiro identificadas
e distintas umas das outras, depois opostas uma à outra, finalmente,
subsumidas no questionamento da natureza da própria oposição. Uma
leitura não cancela a outra.
Admitindo a possibilidade de esses enunciados virem a ser expressos
na forma predicativa — ‘A é B’ —, o que, por ora, parece pouco plausível
(uma vez que o progresso da pesquisa depende da teoria predicativa do
enunciado, só fixada no Sofista), podemos caracterizar “dureza” e
“moleza” como predicados ou sujeitos (“a dureza é dura”, “a moleza é o
contrário da dureza”), mas, antes disso, como ‘conceitos’ que designam o
que é comum a cada tipo de sensopercepção (se for aceita a interpretação
atrás).
Esta “oposição (de uma à outra)” e, a partir dela, “a oposição”, em si,
manifestam tão nitidamente a sua natureza inteligível que não chocará

na entidade que engloba o que a ela é comum, imperceptível pelos sentidos, porém, acessível pela reflexão e fixado
no nome que lhe é atribuído: a Forma (Rep. X 596a). É deste modo que a alma passa, do “duro” à “dureza” — tal
como do “mole” à “moleza” (inicialmente captadas através do tato) —, e de ambas à “contrariedade”, em si.
José Trindade Santos | 95

aceitá-las como Formas (‘paradigmas’ orientadores da reflexão).


Salientamos, contudo, que a opção por essa leitura não pesa na avaliação
do argumento, nem resulta automaticamente dele; nem, por fim, revelará
a intenção subliminar” de Platão, de nos obrigar a aceitar a TF como
condição para atingir o saber (pela denúncia dos absurdos decorrentes da
aceitação de qualquer outra alternativa).
Por outro lado, encontramos uma confirmação indireta da teoria das
Formas no epílogo do argumento (186c-e). A conclusão de que a
“sensopercepção” não participa da captação da verdade, nem da da
entidade, portanto, também não participa do saber (186e), não pode ser
entendida, sem se aceitar a noção de ‘participação’, que, nos diálogos,
nunca deixa de estar associada à defesa das Formas.
Na síntese apresentada em 186b-c, Sócrates distingue “as
experiências do corpo, que se estendem às almas” de todos os viventes,
dos “raciocínios”, ou “cálculos”, realizados sobre elas, relativos ao “ser”
(ousian) [dessas afecções] e ao “benefício” que trazem ou não, salientando
a dificuldade e o esforço que exigem.
Todos os animais têm percepções, mas só quem se mostra capaz de
pensar sobre elas consegue avaliar a sua natureza e distinguir as que lhe
trazem “bem” das que causam “males” (186a). E faz isso quando, a partir
das suas experiências passadas e do estado em que se acha no presente,
considera o futuro (186a-b).
De um momento para o outro, o argumento muda de destinatários,
passando de Teeteto aos animais e aos humanos para regressar ele. Pois,
do jovem, tal como de cada um, depende ser contado entre a minoria dos
que, com dificuldade e aproveitando a educação que tiveram, tenta decidir
(krinein peiratai: 186b) racionalmente, contra os outros, incapazes de
avaliar as suas “experiências” (pathêmata: 186c2).
96 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

E porquê? A resposta é apontada imediatamente. Porque o saber não


está nessas “experiências” (d2) — impressões recebidas através das
sensopercepções —, mas nos raciocínios que realizam sobre elas (186d). E
com esta crítica compreendemos finalmente que não é apenas a resposta
do jovem interlocutor de Sócrates que é refutada, mas também, como já
dissemos, as teorias que o filósofo oportunamente evoca, atrás atribuídas
a Protágoras, a Heraclito e aos seus seguidores25.
Consequentemente, acompanhando L. Brown (1993, 216),
defendemos que o argumento aqui abordado, além de se concentrar em
juízos — o que, quanto a nós, implica o acesso a conceitos — , não
escamoteia a necessidade de responder à pergunta sobre “a centralidade
do ser”, no Teeteto. Pois, é precisamente a essa questão que respondemos
afirmativamente, primeiro, refutando a alegação de Cooper, que confere
algum poder de discernimento às sensopercepções26 (1970, 130-134),
depois, defendendo a não-exclusão das Formas da conclusão do
argumento (186b-e).

Conclusão

Extinta a polêmica que opôs os apoiantes de G. Ryle aos defensores


da leitura do Teeteto por F. M. Cornford, a nossa avaliação do debate é
positiva, apesar de os proponentes das teses em confronto terem todos
ganho e perdido pontos. Pois, apesar de a leitura do Teeteto, como reductio
de qualquer tentativa de chegar ao saber que ignore as Formas, ter sido

25
Ao sofista são atribuídas duas teses encadeadas: 1. havendo continuidade entre “sentir” e “opinar” (152c-168c); 2.
todas as opiniões são verdadeiras (170a-179d). O Efésio é julgado a partir das posições assumidas por discípulos seus
extremados, defensores de um “fluxismo catastófico”, impeditivo da estabilidade exigida pelo saber (179e-183b).
26
Contestamos a leitura do argumento por Cooper: “… o uso independente da mente é exclusivamente ilustrado pela
aplicação de conceitos aos objetos de mais de um sentido” … o que sugere que “o uso independente não inclui juízos
que aplicam a conceitos próprios dos objetos de um único sentido” (131). Não só a ambiguidade de ‘aisthêseis’—
admitida por Cooper (129) — não permite a distinguir ‘objetos’ e ‘sentidos’, como a discriminação das
sensopercepções não caracteriza de forma inequívoca um uso “independente” da alma. Se esta crítica for aceita, a
avaliação de L. Brown — “[Cooper] concede à [percepção] alguma capacidade cognitiva: a aptidão a identificar os
seus objetos próprios” (1993, 216) — aponta a tese que não deve ser aceita.
José Trindade Santos | 97

rejeitada, nem por isso dela decorre a irrelevância a das Formas, e muito
menos o abandono da teoria por Platão27.
O mesmo se passa com a crítica de J. Cooper à tradução e
interpretação de 184-186 por Cornford. Se, por um lado, a sua leitura do
argumento é muito mais generosa; por outro, a tese capital em que se
apoia a sua argumentação — de que as aisthêseis identificam os “objetos”
cognitivos independentemente da alma — é hoje peremptoriamente
rejeitada por diversos comentadores do diálogo (Fine 2017, 71, 72, n. 18;
Kahn 2014, 65; Kanayama 1987, 42, 48, n. 35, et al).
Ao mostrar que as sensopercepções se limitam a habilitar a alma a
fixar e usar conceitos e juízos, com vista à gestão da experiência individual
(186c) e, desejavelmente, à captação do mundo exterior, se tal progressão
for aceita, este argumento do Teeteto inverte a perspectiva pela qual o
Fédon, a República ou o Fedro abordam a cognição. A objeção de 186b2-3
mostra a trajetória seguida pela alma, se elevando das percepções aos
conceitos e daí às Formas, apontando a via a seguir para chegar à unidade
da consciência (186a7-b1, c2-4) e daí à tentativa de exploração da realidade
objetiva (186b-d; Kahn 2014, 66-68). Não mostra, porém, como esse
projeto será possível.
Deixando indefinido o âmbito dos “cálculos comparativos”
(analogismata), antes de tudo, a sensopercepção (aisthêsis) propriamente
dita é distinta da capacidade judicativa (“examinar”, “considerar”, etc.).
Esta será depois articulada com a razão (dianoia, logismos), apoiada na
linguagem, para poder chegar ao ser e daí à realidade objetiva. A conclusão
do argumento é clara: só pela via do “cálculo raciocinado” (syllogismôi)

27
Defendemos a interpretação “otimista” da teoria da reminiscência (Mênon 81c-86c; Fédon 72e-77a) segundo a qual
todos os homens terão acesso gradual ao Saber (Bostock, 1986, 69-70), apesar de poucos serem capazes de se
aproximar dele (Timeu 51e). Por exemplo, ao longo do argumento sobre os koina, Teeteto é ensinado a distinguir
diversos sentidos de aisthanomai: passando da concepção defendida por Protágoras (associando ‘perceber’ a ‘opinar’)
à abordagem restrita das “sensopercepções” e daí à extensão à ‘compreensão’ e ao ‘saber’ (186a-e).
98 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

será possível visar ao “ser” (ousia) e ao “saber” (epistêmê; 186c-d). Para


atingir esse objetivo será, contudo, necessário chegar a uma concepção
satisfatória sobre o “enunciado” (logos), a qual, se mostrando impossível
no Teeteto, se manifesta na teoria predicativa do enunciado, exposta no
Sofista.
Será difícil admitir que a finalidade do diálogo se esgote na conclusão
aporética a que chega (210a-b). E, no entanto, talvez por dois motivos o
Teeteto constitua uma peça fascinante. Pois, se nele se acha — no que
respeita às relações entre aisthêsis e doxa — a reformulação de concepções
propostas nos Livros centrais da República, também nele são apontados os
obstáculos que inviabilizam o esboço de uma via conducente ao Saber.
*
Terá Aristóteles se apercebido das debilidades da teoria da percepção
acima analisada? Não poderemos saber. No entanto, para algumas
questões mal respondidas, no Teeteto, o Estagirita encontra boas
respostas. As primeiras se acham no Da alma, onde é avançada a análise
da faculdade perceptiva (Da II5-12), mediante a distinção de três tipos de
sensíveis: per se, comuns e “por acidente” (II.6). Com esta categorização,
não só a infalibilidade atribuída à sensopercepção (152c) é limitada aos
sensíveis próprios aos cinco sentidos, como a “teoria do objeto único” é
definitivamente superada pela adjunção à faculdade perceptiva de mais
dois tipos de sensíveis, aos quais o Estagirita não concede a infalibilidade.
A segunda resposta por ele avançada, no domínio da elaboração dos
“dados” perceptivos (inexistentes na teoria platônica, dada a função
puramente instrumental, atribuída às competências perceptivas), reside
José Trindade Santos | 99

na concepção da ‘imaginação28 (phantasia) e na teoria que a suporta (Da


III.3; J. T. Santos 2020, 31-43).
Funcionando como um sistema que conjuga operações de naturezas
muito diversas, a imaginação leva a cabo as tarefas complementares de:
receber, armazenar e processar “imagens indiferenciadas” (ou seja,
imagens atribuídas a um mesmo “objeto”). Identificadas pelas designações
que lhes são atribuídas, estas imagens possibilitam a formação de
‘universais’, susceptíveis de fornecer à faculdade intelectiva o material
necessário ao exercício do ‘pensamento’ (Da III.4). Encobrirá esta
descoberta, além da crítica explícita à reminiscência, a rejeição do
argumento platônico sobre os “comuns” (Segundos analíticos II119,
99b20-100b4)?

Referências

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BORGES, A. P. Sobre o escopo cognitivo da aisthesis no argumento final da primeira parte


do Teeteto. Journal of Ancient Philosophy. v.10, n.2, 2016, pp. 45-69.

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BROWN, L. Understanding the Theaetetus. Oxford Studies in Ancient Philosophy 11, 1993,
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BURNYEAT, M. F. The Theaetetus of Plato. With a Translation of Plato’s Theaetetus by


Levett, M. J., Revised by Burnyeat. Hackett. Indianapolis/Cambridge, 1990.

28
As acutilantes críticas de Aristóteles a Platão relativamente à ‘imaginação’ (Da III.3, 428a25-428b9; Platão, Sph.
264b), são dirigidas num tom quase sarcástico; o que levará o intérprete a imaginar que o Estagirita terá submetido
a teoria do enunciado predicativo a um profundo escrutínio.
100 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

______. “Conflicting Appearances”. In: Proceedings of the British Academy 65, 1979, 69-11.

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José Trindade Santos | 101

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2006.

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Cambridge, 2013, 167-185.
4

Διάνοια: essência e égide do homem

Wesley Rennyer M. R. Porto 1

μέγα τὸ ἐν ξυμφορῆισι φρονεῖν ἃ δεῖ.


Coisa grande é pensar, no infortúnio, o que é preciso.
(Demócrito de Abdera)

Pondo em suspenso a reticência pirrônica, arriscamos a afirmar: todo


aquele que tenha verdadeiramente pressentido ou entrevisto a índole, a
radicalidade e a amplitude da filosofia e do filosofar, terá para sempre
consigo a percepção da complexidade e da profunda seriedade que reveste
toda reflexão acerca do pensamento. Essa declaração se justifica pelo grau
de importância, pela proeminência das atribuições e pela posição
hierárquica que o pensamento conserva na tradição filosófica. Mas o que
é pensamento? De onde partir para se pensar pensamento? Para
respondermos adequadamente a essas indagações, parece-nos que
nenhuma outra rota é mais profícua do que aquela que conduz à canônica
definição de pensamento exposta no Teeteto de Platão. É no referido
diálogo que Sócrates, ao ser instado a falar sobre o que é “pensar”
(διανοεῖσθαι), responde ao seu interlocutor que, a rigor, tal atividade não
é senão: “Um discurso que a alma discorre consigo mesma acerca das
coisas que examina” (Λόγον ὃν αὐτὴ πρὸς αὑτὴν ἡ ψυχὴ διεξέρχεται περὶ
ὧν ἂν σκοπῇ)2.

1
Doutorando em Filosofia pelo PPGFIL-UFRN e Graduando em Letras Clássicas pela UFPB. Endereço de correio
eletrônico: wesley.rennyer@hotmail.com
2
PLATO, Theaetetus, 189e. Aproveitamos para advertir o leitor de que todas as traduções para o português dos
trechos em grego e latim são de nossa autoria.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 103

A definição platônica é o átrio que alberga dois aspectos


“heterogêneos” e ao mesmo tempo complementares do que é pensamento.
O primeiro consiste na experiência interna e autorreflexiva do λόγος, isto
é, no discurso interior da alma de si para si que se impõe como forma
necessária de todo pensar; o segundo, diz respeito ao conteúdo ou
componente determinado do pensamento, nomeadamente em relação às
coisas que o intelecto considera, investiga, examina.
Não se deve, porém, ao considerar essa dupla característica do
pensamento, pressupor que a alma assuma duas naturezas distintas, e que
encerre, desse modo, uma dicotomia no interior de si mesma, como se a
alma fosse uma díade noética cujas partes se distinguem ontologicamente.
Na verdade, a dialética que a alma empreende consigo mesma no ato de
pensar, preserva, numa mesma unidade, o pensar e o pensado, e isso
permite que tais aspectos subsistam sendo um com a (e na) “alma” (ψυχή).
Como bem adverte Dixsaut: “O diálogo interno não exige a divisão da alma
em partes. Uma alma que dialoga consigo mesma não se divide, ela se
duplica e permanece ela mesma quando se alterna entre perguntas e
respostas”3.
Advertência consumada, tentemos ingressar, in primo loco, na
experiência interior que desponta como forma fundamental de todo
pensamento humano. Adentremos, portanto, no domínio da pura
introspecção dialógica, reduto no qual interrogante e interrogado não são
outra coisa senão a própria alma. Trata-se, em última instância, da
ambiência em que um mesmo articula, em torno de si próprio, perguntas
e respostas, realizando assim uma autorreflexão dialética: a alma a si
mesma indaga e para si mesma responde, e com isso inaugura, na ação

3
“Le dialogue intérieur ne fait pas appel à la division de l'âme en parties. Une âme qui dialogue avec elle-même ne se
divise pas, elle se dédouble et rest même qu'elle-même lors de l’alternance entre questions et réponses” (DIXSAUT,
Platon. Paris: Vrin, 2003, p. 35).
104 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

pendular que lhe é própria, um colóquio de si para si, e é essa dinamização


interior do λόγος que, para o fundador da Academia, devemos chamar
“pensamento” (διάνοια).
Mas a fórmula descritiva da atividade pensante – enquanto diálogo
interno – não é uma descoberta platônica. O canto XXII da Ilíada,
prescindindo do requinte verbal filosófico, fornece-nos uma amostra do
diálogo interior da alma, prenunciando o que viria a ser, doravante,
denominado de “pensamento”. À frente dos portões de Ílion, insensível às
súplicas de Príamo e Hécuba, o príncipe troiano, Heitor, reflete consigo
mesmo sobre os possíveis resultados de enfrentar, num combate singular,
o temível Aquiles. Antes de introduzir o discurso direto do primogênito de
Príamo, o narrador lança mão de um verso que por si só assinala o caráter
do que é pensar: “Mas então, aflito, assim disse ao seu magnânimo
coração” (ὀχθήσας δ’ ἄρα εἶπε πρὸς ὃν μεγαλήτορα θυμόν)4. Vemos nesse
verso o prenúncio do conceito filosófico de pensamento, na medida em que
dizer ao próprio coração é dizer ao íntimo da alma, é dirigir a palavra para
si e deixar afluir de si próprio a resposta – é desse jogo reflexivo da alma
que o pensar vem à luz.
Destaquemos, ademais, que o substantivo grego θυμός, que se traduz
geralmente por “coração”, também pode significar “alma”, “espírito”,
“força”, “mente”5. Sendo assim, se observarmos bem, notaremos que o
termo θυμός reúne, em suas diferentes acepções, muito do que podemos
compreender como princípio de vida, impulso vivífico, potência vital,
noções a partir das quais o sentido profundo de “alma”, enquanto força
hegemônica do homem, ganha a intensificação que lhe é peculiar. É
certamente a essa poderosa força-guia do homem que a poesia homérica

4
HOMERO, Ilíada, XXII, v. 98.
5
Cf. LIDDELL-SCOTT. A Greek-English Lexicon. New York: Oxford University Press, 1996.
1996, p. 810.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 105

faz referência quando emprega a expressão “assim disse [...] ao coração”


(ἄρα εἶπε [...] πρὸς θυμόν).
O diálogo silencioso da alma consigo mesma, que em Platão
caracteriza o pensar, resplandece de modo lapidar no gesto de Heitor, para
o qual falar ao próprio coração e dele obter veredito é tudo que o herói
troiano almeja e necessita. É nessa introspecção dialógica, quando a alma
paira reflexivamente sobre si própria, que o pensamento vem a ser o que
é. No mergulho do priamida rumo à interioridade da alma, cumpre-se
fundamentalmente a confabulação anímica que trabalha em aventar
hipóteses, apresentando-lhe cenários diversos, bons e ruins, belos e
hediondos, triunfantes e inglórios, cenários que infundem em Heitor a
hesitação e o fazem indagar: “Mas por que meu coração amigo dialoga
estas coisas comigo?” (ἀλλὰ τί ἤ μοι ταῦτα φίλος διελέξατο θυμός;)6 –
indagação que patenteia a compreensão do pensamento enquanto
articulação interna do λόγος na e pela alma.
O que sucede a Heitor, ocorre igualmente a todos os homens quando
se põem a pensar, isto é, quando nascem em suas respectivas almas
indagações, afirmações e negações que, em silêncio, são articuladas no
microcosmo da alma. À luz da compreensão do pensamento como diálogo
interior, Platão dirá, em O Sofista, que “pensamento e discurso são o
mesmo” (διάνοια μὲν καὶ λόγος ταὐτόν)7. Essa identidade, diferenciada
apenas pela emissão ou não de “som” (φωνή), evidencia o caráter formal
e absolutamente necessário de todo pensamento humano, porquanto todo
pensar só vem a ser o que é a partir do λόγος e pelo λόγος. Esse aspecto
em particular, como veremos adiante, será o sustentáculo da noção de
pensamento como essência do homem, mas antes de adentrarmos em tal
tema, vejamos a segunda característica do pensamento.

6
HOMERO, Ilíada, XXII, v. 122.
7
PLATO, The Sophist, 263e.
106 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Como aludimos anteriormente, além da dimensão formal do


pensamento humano, há também, na dinâmica do pensar, aquilo que é
pensado, ou seja, o conteúdo do pensamento – indicado na definição
platônica como o universo “das coisas que [a alma] examina” (ὧν ἂν
σκοπῇ). Em nossa apreciação desse aspecto, havemos de nos utilizar dos
elementos conceituais de Platão sem nos mantermos vinculados à sua
doutrina, de modo que recorreremos livremente, a fim de melhor explicar
esse ponto, às conceituações que são facultadas pela tradição como um
todo. Pois bem; em primeiro lugar, assinalamos que os conteúdos do
pensamento têm um caráter plástico, fluido e incrivelmente diversificado;
com isso queremos dizer que as possibilidades do pensável se estendem
quase indefinidamente, compreendendo uma multiplicidade de cores,
formas, tamanhos e outras particularidades pertencentes aos entes
subsistentes.
Contudo, apesar da plasticidade multiforme dos diferentes conteúdos
do pensamento, tais conteúdos apenas se manifestam na alma nos limites
das suas possibilidades. Em outros termos, tudo que é pensável
desabrocha inexoravelmente sob as determinações lógicas do que se pensa
ou imagina. Seguindo Aristóteles, para o qual imaginar consiste em “ter
opinião conforme o que se percebe” (τὸ δοξάζειν ὅπερ αἰσθάνεται)8,
podemos concordar que o pensamento, impulsionado pelos ventos das
sensações e da imaginação, possa pensar o produto das suas afecções e
extrapolar, em certo sentido, as determinações empíricas que concorrem
para a formação de nossas ideias na alma – nada impede que pensemos
um leão azul, um crocodilo dourado ou um elefante alado. Todavia,
malgrado essa prerrogativa, o pensamento não é capaz de pensar nenhum
objeto cujo conceito seja em si mesmo contraditório, isto é, nada que seja

8
ARISTOTLE, De anima, 428b1.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 107

conceitualmente uma contradição pode vir a ser conteúdo inteligível do


pensamento, como nos casos de um círculo quadrado, um bípede
quadrúpede ou um corpo sem dimensões.
Como escreveu o filósofo Vicente Ferreira da Silva: “O pensamento
pensa o pensável”9. A alma não acolhe o impensável em razão da sua
ininteligibilidade conceitual. O impensável é quimérico; ficção da palavra.
Por mais que possamos dizer internamente para nós mesmos “círculo
quadrado”, jamais seremos capazes de formar uma unidade conceitual
inteligível da conjunção desses dois elementos, mas apenas pensar,
separadamente, “círculo” e “quadrado”. A enunciação de tais aberrações
lógico-conceituais não é senão um bom exemplo do que poderíamos
chamar de flatus vocis.
A linguagem paradoxal, porém, que mescla coisas contrárias e
contraditórias, tem sua pertinência enquanto linguagem. Dela se valem os
poetas, os filósofos e os místicos quando anelam falar sobre as coisas que
transcendem os limites e as regras impostas pela razão humana. Em
Hesíodo, temos o aedo que, inspirado pelas Musas, se propõe a dizer o
indizível; com Heráclito, insigne dominador da linguagem enantiológica,
busca-se fazer da concórdia dos opostos a forma por excelência da
expressão filosófica; em Eckhart, a contradição faz parte de toda tentativa
humana de comunicar o Inefável. Dentre essas classes de homens, parece
haver, subjacente às especificidades que os caracterizam, a crença de que
a linguagem do paradoxo é a única possível quando se pretende discorrer
sobre o Mistério, sobre o Ser, sobre Deus, porquanto o discurso calcado na
lógica geral, ao menos nesse domínio Numinoso, é insuficiente, precário,
inadequado, concepção sobre a qual nos limitamos apenas a dizer – não
sendo este nem o lugar nem a hora dessa meditação – o que escreve

9
DA SILVA, Vicente F. “Transcendência do Mundo” In: Obras Completas. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 132, vol.
III.
108 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Giordano Bruno em De gl’eroici furori: “Se non è vero, è molto ben


trovato”10.
Ainda sobre o conteúdo do pensamento, importa-nos assinalar que
esse elemento consiste no conjunto multifacetado das ideias que
formamos na alma a partir do concurso das sensações; tal noção,
obviamente, é tributária do pensamento aristotélico, de acordo com o qual
“a imaginação não vem a ser sem a sensação, e sem imaginação não existe
suposição” (αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως, καὶ ἄνευ ταύτης οὐκ ἔστιν
ὑπόληψις)11. Sob esse prisma, torna-se clara a dependência que o
pensamento possui em relação à imaginação, porquanto é dela que
procede a “suposição” (ὑπόληψις) – parte importante do pensar e da
formação das ideias. Os conteúdos do pensamento, em última instância,
são imagens produzidas na alma cujas raízes residem nas sensações. Sem
as imagens imateriais que lhe são conteúdo o pensamento seria vazio.
Como dirá Aristóteles: “a alma jamais pensa sem imagens” (οὐδέποτε νοεῖ
ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή)12.
Alcançamos, então, com o auxílio da argumentação precedente, uma
compreensão mínima, porém relevante, do duplo aspecto do pensamento,
o qual se manifesta na alma e a faz plasmar, desde si mesma e da interação
com o mundo, uma unidade dinâmica de forma e conteúdo. Esse duplo
aspecto do pensamento compreende: I) a forma do pensar como λόγος
interior; e II) o conteúdo do pensamento enquanto o conjunto das imagens
conceitualmente inteligíveis. Com efeito, uma vez instituídas as bases de
nossa meditação sobre o pensamento, compete-nos agora dar início aos

10
“Se não é verdadeiro, é muito bem pensado” (BRUNO, Giordano. De gl’eroici furori. Milano: Mandadori, 2000, p.
170).
11
ARISTOTLE, De Anima, 427b14-15.
12
Ibid., 431a16-17.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 109

raciocínios a partir dos quais o pensamento passará a figurar como


essência e égide do homem.
Longe de ser apenas a “sombra de um grande nome” (magni nominis
umbra)13, para usar a expressão do poeta Lucano, o pensamento é, foi e
sempre será a morada insuprimível do “homem” (ἄνθρωπος). Não
exclusivamente por ser o manancial donde jorra o complexo de imagens e
ideias que compõem o microcosmo-noético-humano, mas principalmente
em razão de o pensamento fazer do homem aquilo que ele é, ou seja, por
conferir ao homem uma essência própria, uma identidade, um modus
essendi que se efetiva nele e por ele. Em poucas palavras, diríamos que é
desde a peculiaridade do diálogo interno da alma, a qual designamos
“pensar”, que o homem desponta enquanto homem, que ele encontra o
seu próprio ser, que a ele se revela, em última instância, sua própria
“essência” (οὐσία) – que é pensamento.
Em meados do século XVII, das plagas do Reino da França, proveio a
definição de homem que com argúcia e discernimento admiráveis
enfatizou o vínculo ontológico entre homem e pensamento. Referimo-nos
à sentença de Pascal que diz: “O homem não é mais que um caniço, o mais
frágil da natureza, mas é um caniço pensante”14. Tal trecho ressalta a
miséria e a grandeza do homem, única espécie para a qual a fortuna
reservou elevação e fraqueza; “miséria”, dissemos, em razão da fragilidade
humana perante a natureza; “grandeza”, pelo fato de o homem ser dotado
de pensamento, quer dizer, dotado de potência doadora de quididade, de
força sem a qual homem não se faz homem, de capacidade para ser o que
se é mediante uma singular, fundamental e tácita presença noética. Será

13
LUCANO. Guerra Civil. João Pessoa: Ideia, 2018, v. 135.
14
Assim escreve o filósofo de Clermont-Ferrand: “L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est
un roseau pensant” (PASCAL. Pensées. Paris: Librairie Delagrave, 1918, p. 10).
110 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

graças ao reconhecimento da essência do ser humano como pensamento


que dirá Pascal: “[...] não posso conceber o homem sem pensamento”15.
Mas dizer que “homem é pensamento”, significa, por extensão, dizer
que “homem é alma”, e que ele é, consequentemente, razão. Pensamento,
alma e razão são o homem, pois são esses os princípios fundamentais em
virtude dos quais um modo próprio de ser nasce, intensifica-se, floresce,
vigora. É no átrio da alma que todo pensamento vem a lume, e esse
pensamento, sendo diálogo interior, é λόγος, isto é, discurso provido de
razão e princípio hegemônico que brota na alma humana. Sob esse prisma,
a atividade dianoética, que se funda na articulação do colóquio da alma de
si para si e pressupõe o predomínio racional, revela-se como uma tríade
interdependente composta por alma, pensamento e razão: se sem alma
não há pensamento, sem razão não há inteligibilidade do que é pensado.
De tudo isso, enfim, deve-se compreender que a alma, por meio da
autorreflexão dialógica, pensa, e o pensar da alma, por estar submetido às
determinações lógicas, é racional. Em suma, a sentença que declara ser o
homem pensamento deve ser lida pressupondo a conexão intrínseca do
pensar com a alma e a razão, ou ainda, se preferirmos, ser substituída pela
seguinte sentença: “homem é λόγος”.
Para que a nossa argumentação se torne mais compreensível,
deixemos ressoar mais uma vez o que diz Platão; nesta ocasião, porém,
permitindo que o λόγος possa soar limpidamente como λόγος. Diz o
Mestre: “pensamento e λόγος são o mesmo” (διάνοια μὲν καὶ λόγος
ταὐτόν). Com esse gesto hermenêutico de extrema sutiliza, que nos
convida a re-ver e ao mesmo tempo re-considerar a sentença sob novas
lentes – lentes gregas –, damos um importante passo no caminho por onde
havemos de subir um degrau na compreensão da essência do homem, pois

15
“[...] je ne puis concevoir l’homme sans pensée” (PASCAL, op. cit., p. 9).
Wesley Rennyer M. R. Porto | 111

ouvir o λόγος como λόγος, principalmente em sua identidade com o


pensamento, não apenas nos fornece um esquema lógico que sirva à
justificação da sentença “homem é λόγος”16, mas também possibilita que
nos aprofundemos na compreensão do ser do homem até o lugar das
camadas mais subterrâneas da sua essência – donde o λόγος emerge e
fundamentalmente se mostra como “essência” (οὐσία) e “principio” (ἀρχή)
do homem.
Quando se evoca o léxico grego λόγος, põe-se em cena um vocábulo
milenar, cuja prodigalidade semântica e simbólica convertem-no,
conforme as diferentes experiências gregas de pensamento confirmam,
numa fonte primordial e inesgotável de possibilidades de sentido e
realidade. Como assinalou Vilém Flusser, λόγος representa “o fundamento
do mundo dos gregos”17. Traduzido tradicionalmente por “discurso”,
“palavra”, “verbo”, “argumento”, “razão”, “pensamento”, o substantivo
λόγος deriva do verbo λέγω, que significa, originalmente, “reunir”,
“colher”, “escolher”18 – embora viesse a adquirir a acepção de “dizer”,
“falar”19. O reunir ao qual λέγω faz referência pressupõe ordenação e
escolha, pois o que se colhe é acolhido e re-unido ordenadamente, como
bem explica Carneiro Leão: “[...] o ajuntar de λεγ- não amontoa
simplesmente coisas de qualquer jeito. Colhe e escolhe para acolher e
recolher, separando por parâmetros, distinguindo por critérios,
selecionando por princípios de ordem”20. Assim como o camponês na
estação da colheita seleciona e reúne os melhores frutos e os melhores

16
A justificação lógica da definição “homem é lógos”, que se dá em razão da identidade do lógos como o pensamento,
e à qual fazemos aqui referência, pode ser esquematizada da seguinte maneira: “se todo homem é pensamento” {Ɐx
(Hx → Px)}, e “se todo pensamento é lógos” {Ɐx (Px → Lx)}, então, por transitividade da implicação, “todo homem
é lógos” {Ɐx (Hx → Lx)}. Trata-se de uma das formas perfeitas do silogismo aristotélico.
17
FLUSSER. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2004, p. 34.
18
“λέγω: le sens originel est ‘rassebler, cueillir, choisir’” (CHANTRAINE. Dictionnaire Étymologique de la Langue
Grecque. Paris: Klincksieck, 1999, p. 625).
19
Cf. Chantraine, op. cit., p. 625.
20
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: Uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 62.
112 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

grãos, isto é, recolhe e escolhe no ato de colher, assim também o


acolhimento de λέγω reúne e separa sob a medida da ordenação. Essa
ordem que une e seleciona, encontra-se, por sua vez, diluída no próprio
λόγος, o qual desempenha o papel de imperativo lógico do diálogo que a
alma estabelece consigo mesma, visto que, por um lado, ele institui as
condições formais e necessárias do pensamento – reunindo o que é próprio
ao pensar racional –, ao passo que, por outro lado, classifica e sistematiza
as coisas pensadas.
Com isso queremos assinalar que todo acontecimento que vem à luz
a partir da potência anímica do ser humano se cumpre no λόγος e pelo
λόγος. Isso significa, primordialmente, que toda forma e conteúdo do
pensamento, no interior desse pequeno universo chamado “homem”,
estão submetidos à onipresença desse princípio racional que se afigura
como essência humana. Essa potência substancial do homem, instaurada
pelo λόγος e que com ele se confunde, tanto reúne, acolhe e escolhe o que
é pensado – dando ordenação ao conjunto das operações do intelecto –,
quanto delimita as possibilidades sempre já presentes de todo pensar, visto
que nenhum acontecer proveniente da alma, seja como pensamento seja
como linguagem, podem prescindir do νόμος primordial que rege a
dinâmica interior da alma humana e que doa essencialidade ao homem.
Foi Aristóteles, a mente mais enciclopédica que o Ocidente conheceu,
quem legou à posteridade a descrição fundamental da singularidade do
homem, assinalando o λόγος como seu elemento distintivo e característico:
“mas o homem é o único dentre os animais que possui lógos” (λόγον δὲ
μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων)21. Ao ter identificado o λόγος como o
atributo exclusivo do homem, Aristóteles não somente estabeleceu a
diferenciação entre o homem e as outras espécies animais, mas também

21
ARISTOTLE, Politics, 1253a10.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 113

consolidou a compreensão da οὐσία própria do homem como λόγος. Essa


definição aristotélica, pela concisão e verdade que encerra, tornou-se,
historicamente, o grande ponto de referência para se entender a natureza
humana, sendo revisitada sempre que se buscou definir com rigor e
clareza o que é o homem.
Com essa definição estiveram de acordo, além dos próprios
peripatéticos, os membros da Στοά, os quais também incorporaram, a fim
de expandir e fortalecer o conceito de homem, aquilo que Aristóteles
sustentou no quinto livro do Órganon22, tendo em vista que esses filósofos,
conforme atesta Sexto Empírico, “afirmavam ser o homem um animal
racional mortal, capaz de inteligência e de conhecimento” (ἔφασκον
ἄνθρωπον εἶναι ζῶον λογικὸν θνητόν, νοῦ καὶ ἐπιστήμης δεκτικόν)23. O
historiador Políbio, ao procurar delinear os traços peculiares do ser
humano, também se serviu da canônica definição aristotélica ao ponderar
a questão, visto ter declarado que “a raça dos homens difere dos outros
animais na medida em que participa de maneira única da inteligência e da
racionalidade” (γένους τῶν ἀνθρώπων ταύτῃ διαφέροντος τῶν ἄλλων ζῴων,
ᾗ μόνοις αὐτοῖς μέτεστι νοῦ καὶ λογισμοῦ)24. De maneira análoga, os
filósofos escolásticos – como poder-se-ia prever – também conservaram a
lição aristotélica sobre a essência do homem, recorrendo, amiúde, às
considerações do estagirita, tal como fizera São Tomás de Aquino, quando
escreveu que: “o homem não é apenas animal, mas também racional”
(homo non solum animal, sed etiam rationale)25 – sendo tal racionalidade
o fator determinante da essenza specifica do ser humano.

22
Na esteira de Platão, Aristóteles subscreve nos Tópicos (V, 133a20) que o homem era “um animal capaz de
conhecimento” (τὸ ζῴον ἐπιστήμης δεκτικὸν).
23
SEXTUS EMPIRICUS, PH, II, 26.
24
POLYBIUS, The Histories, VI, 6, 4.
25
TOMMASO D’AQUINO, La Somma Teologica, I, q. 85, a. 3.
114 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Na verdade, a luz que a concepção aristotélica do que é ο homem


emanou, como uma estrela de perpétuo brilho no céu da história, foi capaz
de esclarecer, para todo o Ocidente, aquilo em virtude do qual homem vem
a ser homem, isto é, sua verdadeira οὐσία (ou essentia), que jaz radicada
no pensar racional, no λόγος. Sob o influxo dessa compreensão, usufruída
ao longo dos séculos pelos mais variados escritores, Edmund Husserl nos
forneceu uma das mais dignas atualizações desse conceito, dando-lhe a
intensificação que indubitavelmente lhe cabe:

[...] se o homem é um ser racional (animal rationale), assim o é só na medida


em que toda a sua humanidade for uma humanidade racional – latentemente
orientada à razão ou manifestamente orientada à enteléquia que, chegada a si
mesma e tornada manifesta em si mesma, agora, por uma necessidade
essencial, guia conscientemente o devir da humanidade.26

A despeito dos propósitos particulares que possam subsistir no


discurso husserliano, deparamo-nos aqui com a ratificação da
racionalidade como parte essencial do homem e pertença comum de toda
a humanidade. O pensamento racional, nessa perspectiva, toma
consciência da sua essencialidade mediante um processo de autoapreensão
consciente, algo que não parece de todo ter escapado a Aristóteles, tendo
em conta que o filósofo chegou a indagar acerca da possibilidade de o
pensamento se tornar inteligível para si mesmo27, questão cuja resposta
recebeu do Estagirita contornos positivos, considerando que, segundo o
próprio Aristóteles, “o pensamento é inteligível tal como são as coisas

26
“[...] ist der Mensch Vernunftwesen (animal rationale), so ist er es nur, sofern seine ganze Menschheit
Vernunftmenschheit ist – latent auf Vernunft ausgerichtet oder offen ausgerichtet auf die zu sich selbst gekommene,
für sich selbst offernbar gewordene und nunmehr in Wesensnotwendigkeit das menschheitliche Werden bewusst
leitende Entelechie” (HUSSERL, Edmund. “Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie”. In: Gesammelte Werke (Band VI). Hrsg. von Walter Biemel. Haag: Martius Nijhoff, 1976, p. 13).
Agradeço a André Correia (UFRJ) pelo auxílio com a tradução deste trecho em alemão.
27
ARISTOTLE, De Anima, 429b25.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 115

inteligíveis” (αὐτὸς δὲ νοητός ἐστιν ὥσπερ τὰ νοητά)28. Nesse sentido, para


além do fato aparentemente irredarguível de que homem é pensamento,
caberia acrescentar que o pensar aprende a si mesmo por meio de si
próprio, isto é, a δύναμις noética que ordena e estrutura os objetos que
pertencem ao domínio interior da alma, faz-se objeto de sua própria
intelecção, de modo que o pensamento se torna apreensível assim como
são os seus objetos. Com efeito, o reconhecimento da essência humana
como λόγος faz-se realização desse mesmo λόγος que, apreendendo a si
mesmo, revela-se como primado definitivo do homem.
De qualquer forma, o que mais nos importa salientar é que a
compreensão que proclama o pensar racional como οὐσία humana – por
ser capaz de revelar a natureza fundamental do homem –, cumpre a tarefa
de iluminar a realidade antrópica interior que subjaz encoberta aos nossos
olhos, facultando-nos a possibilidade de enxergar o homem segundo seu
próprio modus essendi e sob o prisma de sua necessidade ontológica.
Afinal, como poderíamos conceber o homem destituído do seu pensar
racional? O que restaria do ser humano se todos os princípios de
ordenação e racionalidade, fundamentos constitutivos do seu ser, se
estilhaçassem e sumissem para sempre da sua natureza? O homem não
estaria fadado à mesma condição das feras que vagam a esmo arrastadas
pelo ímpeto dos instintos?
Parece-nos claro que ninguém poderia seriamente defender a tese de
que o pensamento racional é supérfluo ou dispensável, sem, no entanto,
contradizer-se ou mesmo cair em ridículo, visto que a defesa de uma tal
concepção estaria já pressupondo a atuação do pensar racional, elemento
sem o qual o próprio sentido dos termos “pensamento”, “racional”, “ser”,
“supérfluo”, assim como o próprio significado da tese defendida, jamais

28
Ibidem, 430a.
116 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

poderiam existir ou ser inteligíveis. Mas não é suficiente para a nossa


reflexão sublinhar a imprescindibilidade do pensamento racional.
Compete-nos também apresentar, para o desfecho de nossas cogitações,
como a aplicação e o exercício da dimensão essencial do homem pode
ainda nos servir (nós que vivenciamos os infortúnios da aurora do século
XXI) como antídoto aos males da alma, males que tantas vezes nos
rondam, ameaçadores, tal como as tempestades súbitas em alto mar.
Por isso cabe dizer que ao λόγος interior, que aqui foi apresentado
como οὐσία última do homem, compete também a tarefa de ser o guia
decisivo da vida humana, trabalhando sempre em proveito do que é
benéfico, útil e frutífero, pois o pensar racional não apenas deve concorrer
para as realizações intelectuais ou teóricas, mas também servir à
consecução do que é benéfico, afinal de contas, como diz o próprio
Aristóteles, “o lógos existe para que indique o vantajoso e o prejudicial” (ὁ
δὲ λόγος ἐπὶ τῷ δηλοῦν ἐστὶ τὸ συμφέρον καὶ τὸ βλαβερόν)29.
Mas como isso é possível? Como a pensamento racional pode
contribuir para uma vida melhor em meio ao caos contemporâneo?
Poucos momentos na história humana exigem tanto a observância e a
sujeição aos ditames da razão quanto os momentos de epidemia. O mundo
hiperglobalizado sobre o qual o homem do século XXI apoia hoje seus pés,
no exato momento em que estas linhas vão sendo redigidas, testemunha
o holocausto diário causado pelo SARS-coV-2 – agente infeccioso que,
desgraçadamente, lançou o mundo numa pandemia que já se arrasta por
mais de um ano. Nossa trágica situação, em particular a situação
brasileira30, evidenciada diariamente por uma contabilização macabra de
número de mortos, parece obrigar-nos a olhar para nós mesmos e

29
ARISTOTLE, Politics, 1253a15.
30
Cabe assinalar que a circunstância de elaboração deste texto são os terríveis dias do mês de março e abril de 2021,
período da chamada segunda onda da Covid-19 no Brasil, na qual diariamente milhares de pessoas perderam suas
vidas para tão nefasta doença.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 117

relembrar quão frágil e efêmera é a nossa condição, lição que há muito nos
ensinou Homero, ao comparar o viver humano ao fenecer das folhas:

οἵη περ φύλλων γενεὴ τοίη δὲ καὶ ἀνδρῶν.


φύλλα τὰ μὲν τ’ ἄνεμος χαμάδις χέει, ἄλλα δέ θ’ ὕλη
τηλεθόωσα φύει, ἔαρος δ’ ἐπιγίγνεται ὥρη:
ὣς ἀνδρῶν γενεὴ ἣ μὲν φύει ἣ δ’ ἀπολήγει.
Qual a geração das folhas, tal também a dos homens.
Por um lado, o vento espalha as folhas sobre a terra, mas a floresta vicejante
faz nascer outras, quando surge a estação da primavera:
assim como uma geração de homens nasce, outra deixa de ser.31

É compreensível que diante da profusão da dor e da morte sejamos


tentados a abraçar o fatalismo derrotista, a endossar o pessimismo
mórbido ou mesmo a nos entregar ao indiferentismo niilista, pois por
onde grassa o morticínio inclemente, também prospera a desesperança.
Nada impede que o pensamento tenda a esse caminho. Todavia, se a razão
deve guiar o homem para uma vida mais nobre e aprazível, orientar-se
pelo seu brilho é buscar o bom e o justo, o útil e o benfazejo – mesmo em
meio ao infortúnio. Como escreveu o poeta e dramaturgo austríaco Hugo
von Hofmannsthal, numa carta para o amigo Edgar Karg datada de agosto
de 1894: “A vida é indescritivelmente difícil, pérfida e ilimitadamente
maldosa, suportá-la é o que há de mais belo e precioso”32. Aproveitando o
ensejo das palavras desse escritor, destacamos que cumpre à razão
também figurar como força encorajadora do homem e baluarte da alma,
isto é, à razão cumpre o dever de servir como verdadeiro esteio do espírito,
principalmente quando o homem, assolado por males que o ameaçam,
tende à desrazão e ao fatalismo, pois é da reflexão racional que se extraem

31
HOMERO, Ilíada, VI, vv. 146-149.
32
HOFMANNSTHAL. As palavras não são deste mundo. Tradução de Flávio Quintale. Belo Horizonte: Editora Âyiné,
2017, p. 55.
118 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

os frutos do esclarecimento e da prudência, elementos tão indispensáveis


nos períodos de crise e desorientação generalizadas.
Na verdade, muitas são as possibilidades de se evidenciar o
contributo da razão nos períodos de colapso e incerteza; muitas são as vias
que, em tempos como os nossos, nos quais a vida humana encontra-se
ameaçada, a meditação racional pode servir como um guia na travessia do
hostil deserto do potencial aniquilamento súbito. Para que essa alegação
se evidencie, será suficiente expor dois elementos que nos parecem
fundamentais para a boa condução da vida nos períodos funestos, haja
vista que a vivência de cada um deles, desde que experienciada em sua
justa medida, pode nos prover um melhor anteparo ao mal que nos
espreita. Referimo-nos aqui, em primeiro lugar, à consciência do devir
inevitável, que nos previne de um duplo sofrimento, isto é, de sofrer pelo
que está ao alcance de nossa deliberação, e, em acréscimo, por aquilo que
não está; em segundo lugar, ao senso pedagógico da história, a partir do
qual os acontecimentos do passado servem para precaver os homens dos
seus males atuais.
Com a expressão “consciência do devir inevitável” fazemos
referência, por um lado, ao autoesclarecimento racional da dinâmica dos
acontecimentos; por outro, à disposição da alma que é esperada por quem
alcançou tal compreensão. Dito de maneira sumária, a noção preliminar
de devir inevitável, que envolve o modo de se conceber os desdobramentos
dos fatos temporais, pode ser resumida da seguinte forma (conforme a
própria razão nos leva a concluir): há, embora desconhecida para nós, uma
ordem necessária e universal que governa a totalidade do que acontece, do
que aconteceu e do que há de acontecer, ordem a partir da qual se erige o
palco onde atuam, sob os limites da necessidade, os atores humanos, com
suas aspirações, sonhos e desejos. Nessa acepção, todo acontecer,
enquanto possibilidade de um vir a ser que se faz necessidade, jaz
Wesley Rennyer M. R. Porto | 119

submetido à ordem cósmica, incluso o próprio leque de possibilidades de


realizações humanas, que apenas se efetiva nos limites impostos pela
necessidade.
A realidade do devir inevitável se deduz de maneira mais óbvia do
mecanismo de funcionamento da natureza, que estrutura todo o universo
físico observável, seja os movimentos dos grandes corpos celestes, seja o
germinar das pequenas sementes. Regido pela força da necessidade está
também o ciclo de vida de todo ser vivo, que uma vez tendo vindo à
existência, necessariamente há de perecer. O processo de origem e
desaparecimento de tudo que vem a ser constitui a realidade inexpugnável
de tudo que pertence ao reino da finitude, pouco importando se se trata
da vida humana, da de um camundongo ou mesmo da de um micro-
organismo qualquer. Nada do que veio a ser escapa à ordem necessária da
qual falava Anaximandro: “Assim, donde a geração é para os seres,
também a destruição vem a ser para esses, segundo a necessidade” (ἐξ ὧν
δὲ ἡ γένεσίς ἐστι τοῖς οὖσι, καὶ τὴν φθορὰν εἰς ταῦτα γίνεσθαι κατὰ τὸ
χρεών)33.
O homem, portanto, sob a óptica da ordem natural e necessária,
encontra-se no mundo como um peão em um tabuleiro de xadrez, peça
para a qual a possibilidade de escolher seu movimento certamente existe,
muito embora todas as escolhas possíveis já estejam delimitadas pelas
regras do jogo e pela especificidade do movimento que é próprio ao peão.
Da mesma forma o homem, em sua relação com o mundo, acha-se livre
para escolher uma ou outra coisa, cumprir ou abster-se de uma ação,
dirigir-se ou não para um determinado fim, todavia ele não é livre, e jamais
o será, para eximir-se do jugo da necessidade. Dar-se conta dessa dialética
entre necessidade e liberdade é fundamental para que o homem possa

33
DK2B1.
120 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

discernir, conscientemente, quais dentre as coisas que existem estão (e


quais não estão) ao alcance da sua decisão, esclarecimento que, por
consequência, nos fornece melhores condições para que nos orientemos
na vida.
Para aclarar o que foi exposto, diríamos que a força da necessidade
nos dobra, coloca-nos aos seus pés, de joelhos, sem exceção; enquanto a
liberdade nos empresta, mesmo que de forma bastante precária, instantes
de autonomia sobre o curso de nossas vidas. Nesse sentido, então, não cabe
ao homem que (sobre)vive em meio ao caos exasperar-se ou rebelar-se
contra o que transcende as possibilidades do seu controle, pois o que está
dado está dado, impõe-se de maneira inexorável, ignora por completo o
que subjetivamente cada homem prefere, espera, deseja. Não existe,
efetivamente, nenhuma razão para que o homem queira que aquilo que já
se deu jamais tivesse sido, perturbando-se com os acontecimentos que não
lhe estão subordinados e que não podem se converter em coisas diferentes
das que são e como são. Como ensinou Epicteto: “Não busques que os
acontecimentos ocorram como queres, mas queira que aconteçam como
ocorrem, e tu viverás sereno” (Μὴ ζήτει τὰ γινόμενα γίνεσθαι ὡς θέλεις,
ἀλλὰ θέλε τὰ γινόμενα ὡς γίνεται καὶ εὐροήσεις)34.
Querer que as coisas sejam como são é acolher a inevitabilidade dos
acontecimentos enquanto necessidade própria de todo devir. O que aqui
se pretende fazer ver é que atender ao chamado do inevitável é pôr-se em
consonância com a dinâmica da necessidade que reveste todo o real e que
governa imperiosamente a vida de cada ser humano. Por isso urge, nos
tempos difíceis, deixar-se impregnar dessa compreensão e da disposição
que a acompanha, porquanto somente esse gesto é capaz de reunir na alma
as luzes que iluminam os limites e as possibilidades humanas diante da

34
EPICTETUS, Encheiridion, 8.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 121

austeridade feroz dos acontecimentos. Contra a força da necessidade,


sabiam os gregos, não há quem possa lutar ou esconder-se, tampouco
fugir, pois ante o necessário não resta ao homem senão anuência e
resignação: como adverte Pítaco, um dos Sete Sábios, “contra a
necessidade nem mesmo os deuses fazem guerra” (ἀνάγκῃ δ’ οὐδὲ θεοὶ
μάχονται)35.
É de se esperar que de posse do discernimento que revela o ímpeto
irresistível da necessidade, o homem não olvide de atenuar a certeza que
costumeiramente se mescla às opiniões sobre o que fatalmente lhe está
reservado no leque indefinido das possibilidades dos acontecimentos. Dito
de outro modo, ao homem que compreende o caráter inevitável de todo
acontecer – que nenhuma pista deixa sobre suas nuances futuras e assim
inviabiliza toda tentativa de se prescrutar o porvir da necessidade –,
espera-se que sobrevenha a hesitação em julgar como hão de ocorrer os
eventos do devir, visto que em sua alma supõe-se estar claro o quanto a
visão do amanhã transcende os limites dos seus conhecimentos. Nossa
ignorância acerca do porvir é bem assinalada pelos versos do poeta
elegíaco Semônides, que tão bem delineia a condição de incerteza e
insciência em que se encontram os homens em relação ao futuro:

Νόος δ’ οὐκ ἐπ’ ἀνθρώποισιν· ἀλλ’ ἐφήμεροι


ἃ δὴ βοτὰ ζώομεν οὐδὲν εἰδότες,
ὅπως ἕκαστον ἐκτελευτήσει θεός.
Não há inteligência nos homens; mas efêmeros
vivemos como bestas, nada sabendo,
como o divino realizará cada coisa.36

35
PLATO, Protagoras, 345d.
36
ADRADOS. Líricos griegos: elegíacos y yambógrafos. Barcelona: Alma Mater, 1956.
122 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

A densa nébula que envolve o porvir, abstrusa e insuperável, nega à


inteligência dos homens o conhecimento preciso sobre o que há de
ocorrer; por isso vivemos, em relação ao futuro, como bestas inscientes,
para as quais o amanhã é todo mistério, suma possibilidade, chance de
júbilo e de horror. Aos homens cuja disposição propicia-lhes o
florescimento do colóquio da alma de si para si, o reconhecimento da
impenetrabilidade das vindouras consumações do devir, revela, com toda
a clareza, quão insensato é o julgamento peremptório sobre o porvir, tanto
no que concerne às tolas esperanças quanto ao derrotismo niilista – ervas
daninhas da mente que, quando levadas ao extremo, afastam os homens
da boa medida decantada pela razão.
A razão nos instrui para o que é, abre-nos os olhos para o real em
todo seu encanto e miséria. No caos pandêmico em que o mundo caiu, a
necessidade do infortúnio bate à porta, e não há força bruta de nenhuma
boa vontade que possa dissolvê-la. Enquanto nos espreita o perigo,
prudência e cuidado extremos é o que nos cabe, mesmo que não
encontremos nisso qualquer garantia de passarmos incólumes ao
problema. Reconhecer o inevitável e agir nos limites da liberdade,
buscando o que é melhor para si e para os outros, é o que primeiro a razão
pode nos auxiliar a cumprir.
Em adição ao que aqui apresentamos como um dos frutos benéficos
da razão em tempos de crise, acrescentaremos, por fim, “o senso
pedagógico da história”, discernimento por meio do qual o homem, ao
lançar um olhar retrospectivo para o passado, vislumbra com maior
nitidez quais atitudes tendem a resultar em benefício e quais costumam
conduzir ao infortúnio. Na realidade, comportar-se conforme a razão é
também atualizar em nós o senso da história, senso sem o qual um dos
mais inestimáveis patrimônios do homem, isto é, o patrimônio das
experiências pretéritas, é relegado ao esquecimento, ignorado, preterido –
Wesley Rennyer M. R. Porto | 123

o que resulta na impossibilidade de se apreender as vitais e perenes lições


dos tempos37. Se considerarmos a história sob essa óptica, não nos
parecerão exageradas as palavras de Cícero, que soube dimensionar com
maestria (em sua obra De Oratore) o autêntico valor da história para os
homens: “A história é verdadeiramente a testemunha dos tempos, luz da
verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira da antiguidade”
(Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra
vitae, nuntia vetustatis)38.
Não obstante o merecido encômio propalado pelas palavras de Cícero
à história, não queira crer o leitor que o valor dessa disciplina resida no
acúmulo supérfluo de informações sobre os acontecimentos passados. Pas
du tout! O préstimo do senso historial só se plenifica no homem na medida
em que a história contribui para a vida! Por essa razão, quando Cícero
utiliza-se da expressão magistra vitae, devemos compreender que aí
encontra-se pressuposta a noção de que o conhecimento histórico é
precipuamente uma ferramenta de instrução vivificante, quer dizer, o
saber histórico corresponde ao instrumento por meio do qual a
consciência das ações possíveis é renovada na alma, assegurando, dessa
forma – visto que tal consciência orienta-se pela visão retroativa dos
acertos e erros pretéritos –, as condições para que um modo mais coerente
e fecundo de o homem exercer a sua liberdade venha a florescer.
A fim de poder explorar a razão histórico-pedagógica aqui aludida,
relacionando-a ao nosso conturbado contexto pandêmico, utilizar-nos-
emos, como suporte principal, dos registros do historiador ateniense
Tucídides, em especial os trechos de sua História da Guerra do Peloponeso,

37
Como brilhantemente escreveu Ortega y Gasset: “O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro dos seus erros, a
longa experiência vital decantada gota a gota em milênios / El verdadero tesoro del hombre es el tesoro de sus errores,
la larga experiencia vital decantada gota a gota em milenios” (ORTEGA Y GASSET. La Rebelión de las Masas.
Barcelona: Editorial Planeta, 1993, p. 35).
38
CICERO, De Oratore, II, 36.
124 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

nos quais o escritor relata, com riqueza de detalhes, a devastação causada


pela peste na cidade de Atenas. Com essa análise, pretendemos evidenciar
duas importantes lições dos tempos, a saber: I) não há ninguém que,
diante da virulência de uma peste que se espalha, esteja livre de cair em
desgraça em virtude de sua classe social, raça, profissão, religião, etc.; II)
os momentos de caos e morticínio costumam trazer à tona
comportamentos insensatos, dos quais nenhum proveito se extrai, mas tão
só prejuízo e desvantagem.
Pois bem; a peste que atingiu Atenas, no início do segundo ano da
Guerra do Peloponeso, é descrita por Tucídides como uma enfermidade
que já eclodira em outras regiões, “embora não se recordasse ter havido
em nenhum lugar pestilência tão forte nem tampouco morte de tantos
homens” ([...] οὐ μέντοι τοσοῦτός γε λοιμὸς οὐδὲ φθορὰ οὕτως ἀνθρώπων
οὐδαμοῦ ἐμνημονεύετο γενέσθαι)39. Pelas palavras do historiador, nota-se
que a virulência da peste que recaiu sobre Atenas foi extremamente
devastadora, tão terrível que “nem os médicos” (οὔτε ἰατροὶ) “nem
qualquer outra arte humana” (οὔτε ἄλλη ἀνθρωπεία τέχνη οὐδεμία)
podiam ajudar; em poucas palavras, como expõe Tucídides: “tudo era
inútil” (πάντα ἀνωφελῆ ἦν)40. Os atenienses morriam aos montes, ardendo
em febre, com olhos e gargantas inflamadas e tendo a pele coberta por
pústulas; quem contraísse a doença era também acometido por forte tosse,
vômito e diarreia excessiva, chegando até mesmo, em muitos casos, a
convulsionar violentamente. A força da peste era tal que “a maioria [dos
enfermos] morriam por volta do sétimo ou nono dia” (διεφθείροντο οἱ
πλεῖστοι ἐναταῖοι καὶ ἑβδομαῖοι)41.

39
THUCYDIDES, History of the Peloponnesian War, II, XLVII, 3.
40
Ibid., II, XLVII, 4.
41
THUCYDIDES, History of the Peloponnesian War, II, XLIX, 6.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 125

Na realidade, a peste que assolou Atenas – narra Tucídides – possuía


“um caráter geral muito difícil de descrever” (κρεῖσσον λόγου τὸ εἶδος) e,
além disso, “atacava cada pessoa mais severamente do que a natureza
humana [podia suportar]” (χαλεπωτέρως ἤ κατὰ τὴν ἀνθρωπείαν φύσιν
προσέπιπτεν ἑκάστῳ)42, vitimando de maneira indistinta quem
desafortunadamente a contraísse. Esse cenário funesto revelou a
vulnerabilidade da qual todos padeciam, fossem eles ricos ou pobres,
ímpios ou pios, homens livres ou escravos – absolutamente ninguém
estava isento. O próprio Péricles, como registra Plutarco, viu-se cercado
por desgraças, “tendo perdido, durante a peste, não poucos dos amigos
próximos” (κατά τε τὸν λοιμὸν οὐκ ὀλίγους ἀποβαλόντι τῶν ἐπιτηδείων)43,
como também teve seus familiares (irmã e até o último dos seus filhos
legítimos) vitimados pela doença. Depois de tantos infortúnios vividos,
sucedeu, então, de “a peste [...] apoderar-se de Péricles” (τοῦ Περικλέους
[...] ὁ λοιμὸς λαβέσθαι)44, pondo um fim na vida de um dos mais
importantes estadistas e generais da πόλις ateniense.
Tais eventos, decerto, ampliam nossa razão histórica, ao passo que
também assinalam o vínculo existente entre diferentes épocas, de modo
que com eles podemos enfim nos locupletar – à medida que pomos em
curso o pensar racional – das muitas lições que o passado histórico do
homem nos fornece. Nesse sentido, ao observarmos com atenção a
narrativa tucidideana, percebemos que os males, em especial as doenças
que se alastram sem controle, atingem indistintamente os homens, com
total indiferença aos seus cargos, posição social e crenças religiosas. O que
se vislumbra por meio de um olhar retrospectivo às epidemias do passado,
é, sobretudo, a completa ausência, a terminante ausência de qualquer

42
Ibid., II, L.
43
PLUTARCH, Plutarch’s Live: Pericles, XXXVI, 1.
44
Ibid., XXXVIII, 1.
126 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

forma de distinção (ou separação) dentre os que tragicamente padecem de


tão nefastas moléstias.
Essa primeira percepção, propiciada pelo “senso pedagógico da
história”, une, por sua vez, as pontas que ligam o que chamamos de
“consciência do devir inevitável” e a lição da indistinção (ou aleatoriedade)
da incidência dos males. Em outros termos, a partir da razão histórica
torna-se visível o liame entre a compreensão da inevitabilidade dos
acontecimentos e a lição da contingencialidade das desventuras
individuais. Como já explicitamos, reconhecer e aceitar a necessidade do
devir é imprescindível para evitar o sofrimento supérfluo, porém tão
imprescindível quanto esse reconhecimento é a compreensão do aspecto
contingencial do que é necessário. O que queremos assinalar é que todo
vir a ser realiza em si uma necessidade, de modo que quaisquer
ocorrências, sejam elas sutis ou grandiosas, constituem-se como parte da
ordem necessária que tudo governa, embora jamais deixe de haver,
oriundo do seio dessa mesma ordem, o leque de possibilidades de
realização a partir do qual liberdade e contingência aparecem. Nessa
acepção, liberdade e contingência se confundem, e têm, em princípio, a
necessidade como seu fundamento primordial.
O equilíbrio subjacente entre liberdade e necessidade, tal como aqui
articulamos, pode ser melhor compreendido pelas palavras de Cícero na
obra De Fato, texto no qual o filósofo romano se dedica a expor a doutrina
estoica sobre o destino – e com a qual Cícero também mantém certa
afinidade. Explorando a concepção de Crisipo (que em relação ao
antagonismo entre os partidários do fatum inevitabiles e da voluntas animi
adotou uma postura intermédia), Cícero nos diz:

[...] alteri censent [...] cum causae antecesserint non sit in nostra potestate ut
aliter illa eveniant, illas fato fieri, quae autem in nostra patestate sint, ab his
fatum abesse...
Wesley Rennyer M. R. Porto | 127

[...] outros pensam [...], quando as causas tenham antecedido, não esteja em
nosso poder, que por um meio ou por outro aconteçam diversamente, elas
serem produzidas pelo destino; quanto àquelas, no entanto, que estejam em
nosso poder, o destino afasta-se delas...45

À luz do que Cícero nos expõe, podemos considerar que o destino,


enquanto força da necessidade, afasta-se das ocorrências em que o devir
possibilita a ingerência da liberdade, embora esteja, invariavelmente,
sempre presente. Não há, nesse sentido, nenhum determinismo pleno
governando os desdobramentos históricos e a vida humana, tampouco
uma liberdade inteiramente incondicionada, mas tão somente a disputa
cambiante de necessidade e contingência que dinamizam o real. As peças
do tabuleiro de xadrez são livres para se mover, mas sob as regras e no
tabuleiro de xadrez! Quando consideramos sob esse prisma o sobrevir de
um mal a um homem em particular, compreendemos que um
acontecimento dessa natureza, visto ser efetivação do possível, faz-se ao
mesmo tempo necessidade e contingência, quer dizer, necessidade
porquanto possibilidade consumada do que é dado enquanto possível;
contingência, por não haver qualquer razão específica de que um mal em
particular tenha de necessariamente sobrevir a um tal ou qual homem, de
renome ou anônimo, sábio ou tolo, se a Péricles ou a um artesão; em suma:
a incidência de uma moléstia sobre um homem em particular é um
incidente condicionado pela gama de possibilidades imposta pela
necessidade.
O contingente nada mais é do que isto: um posse-esse, um “poder-
ser”; ele é, efetivamente, um posse-fieri, um “poder-tornar-se”, cujo
caráter proprium – como ensina São Tomás de Aquino – consiste na
possibilidade de algo vir ou não a ser, ou seja, consiste em possuir a

45
CICERO, De Fato, XIX, 45.
128 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

peculiaridade de “às vezes ser e às vezes não ser” (quandoque esse et


quandoque non esse)46. Na dialética entre contingência e necessidade – e
de novo sob pano de fundo do adoecer –, é perfeitamente possível que não
adoeça aquele que pode adoecer, assim como que não morra aquele que
pode morrer, mas não é possível que aquele que não pode adoecer, adoeça,
e o que não pode morrer, morra. A necessidade nos fornece o conjunto das
possibilidades; a liberdade concorre para a efetivação de uma ou outra
realidade possível. De tudo isso, pode-se com justiça concluir que, em
tempos pandêmicos, onde as possibilidades de infortúnio pululam, o
vestígio de liberdade do homem clama por uma única coisa: prudência.
Com essa palavra tão cara à tradição filosófica damos início ao
segundo ponto do “senso pedagógico da história”, pois é da prudência que
os homens tanto carecem quando a ordem comum do funcionamento das
coisas é colapsada por uma infeliz epidemia. Alguns comportamentos e
crenças pouco arrazoadas costumam vir a lume nessas situações, e os
exemplos históricos, como mostraremos, revelam que muitos
despautérios de outrora ainda são conservados nos dias de hoje. Tucídides
relata que em Atenas, após a peste espalhar-se por toda a cidade, logo
sucedeu um “maior desprezo às leis” (ἐπὶ πλέον ἀνομίας) e muitos
costumes “foram lançados em confusão” (ξυνεταραχήσαν); além disso, à
medida que o azar lançava pobres e ricos em desgraça comum, parte dos
atenienses inclinaram-se ao proveito desmesurado dos desejos, pois
“achavam digno que se fizesse desfrutes apressados em relação ao prazer,
considerando os corpos e as coisas igualmente efêmeros” (ταχείας τὰς
ἐπαυρέσεις καὶ πρὸς τὸ τερπνὸν ἠξίουν ποιεῖσθαι, ἐφήμερα τά τε σώματα καὶ
τὰ χρήματα ὁμοίως ἡγούμενοι)47. Para uma parcela significativa dos
cidadãos de Atenas (a julgar pelo que nos diz Tucídides), ter algum gozo,

46
TOMMASO D’AQUINO, La Somma Teologica, I, q. 86, a. 3.
47
THUCYDIDES, History of the Peloponnesian War, II, LIII, 3.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 129

diante da iminência de descer ao Hades, era o que de mais apropriado se


poderia realizar.
Essa mesma atitude, obviamente, não se restringiu a alguns gregos
da antiga e próspera πόλις ateniense. Na realidade, em diferentes
momentos da saga temporal humana, semelhantes comportamentos
foram testemunhados pelos homens, de modo que essas atitudes
chegaram a se tornar uma excelente matéria-prima para os propósitos da
arte literária. A força criadora da literatura universal, que plasma a partir
dos fatos da vida arquétipos e constantes da natureza humana, fornece-
nos algumas descrições que revelam (em contextos de epidemia) o mesmo
comportamento de busca precipitada por prazeres transitórios em
detrimento da moderação e da prudência.
Na primeira jornada de novelas do Decamerão, Pampineia, a
narrativa do poeta Giovanni Boccaccio não só nos oferece um importante
registro da mortifera pestilenza que assolou a cidade de Florença em 1348,
mas também nos mostra os principais tipos de comportamento que foram
adotados nesse período sombrio. Dentre as condutas descritas pelo autor,
uma em particular nos interessa explorar, visto haver profunda
semelhança entre ela e aquela narrada por Tucídides. Nos anos em que a
terrível peste varreu impiedosamente a cidade de Florença, fazendo
perecer incontáveis vidas humanas, muitos florentinos reproduziram a
mesma conduta que a narrativa tucidideana atribuiu à boa parte dos
atenienses, quando deixaram-se impregnar da ideia segundo a qual o
deleite imediatista dos prazeres era o que a situação demandava. Como
descreve o poeta italiano, muitas pessoas:

[...] afirmavam que eram remédios eficazes, para tamanho mal, o beber em
abundância, o gozar intensamente, o ir cantando de um lado para outro, o
divertir-se por todas as formas, o satisfazer o apetite fosse lá do que fosse, e o
rir e o zombar do que acontecesse, ou pudesse acontecer. Como diziam, assim
130 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

faziam, da maneira que se lhes tornasse possível, de dia e de noite. Ora iam a
uma taverna, ora a outra; bebiam sem modos e sem comedimento. E mais
ainda o faziam na casa dos outros, obrigando-os a ouvir o que eles tivessem
vontade ou gosto de dizer. E podiam fazer isto sem maiores cuidados, porque
cada qual – quase como se não tivesse mais de viver – já havia deixado ao
abandono as suas coisas, assim como havia deixado ao abandono a própria
pessoa.48

Tal como uma parte considerável dos atenienses do período inicial da


Guerra do Peloponeso, também muitos florentinos, circundados pelo
horror da pestilência, abraçaram a fruição desmedida e a inconsequente
busca dos prazeres, como se nenhuma outra atitude fosse possível ou mais
adequada. Lamentavelmente, assim como os florentinos do século XIV e
os atenienses do século V a.C., muitos dos nossos contemporâneos
(atravessando neste início de século uma grave crise pandêmica) insistem
em ignorar os erros do passado, fecham-se para a instrução dos tempos,
menosprezam a prudência, enquanto prestam culto ao egoísmo hedonista
que a tantos tem corrompido. À luz das experiências pretéritas e atuais,
parece-nos claro que quando a razão sai de cena, isto é, quando ela deixa
de operar como guia basilar das ações, são os impulsos do ventre baixo
que nos contextos caóticos tendem a assumir o comando das atitudes
humanas, algo que equivale a delegar aos instintos animalescos, por
definição desprovidos da clarividência e da sensatez da razão, a mais nobre
e difícil tarefa do homem, que consiste no exercício consciente da liberdade
– essa fagulha de esperança e chama de insurreição contra todo possível
que se quer fatum.
Nessa perspectiva, se a liberdade é realmente uma janela de
autonomia no interior do reino da necessidade, abdicar da razão no
cumprimento da autodeterminação individual só pode corresponder, ipso

48
BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Tradução de Raul de Polillo. Nova Fronteira, 2018, p. 32.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 131

facto, a “degradar-se ontologicamente”, porquanto delegar às volições


apaixonadas as rédeas de nossas ações não é senão aspirar a uma paridade
ontológica com os animais irracionais, os quais agem no mundo segundo
as determinações dos instintos e não sob o influxo da luz racional:
prerrogativa exclusiva do homem, cujo modus essendi é justamente o
diálogo interno da alma consigo mesma, o pensar racional, o brilho do
λόγος.
Se urge a cada instante – e para todo homem – a tarefa de apropriar-
se da própria essência, que em sentido amplo significa apreender pelo
pensar que se é pensamento e viver em conformidade com a οὐσία a partir
da qual homem vem a ser homem, se urge tal tarefa, e se com ela
aspiramos a uma vida melhor (ou pelo menos mais digna), como não
condenar a inconsequência do hedonismo vulgar, que com seu canto de
sereia atraiu e continua atraindo incontáveis almas ao calabouço dos
prazeres efêmeros? Como não ver como patológico o impulso para o gozo
compartilhado quando aqui, nesta tão insólita Terra Brasilis, onde o vírus
já ceifou a vida de centenas de milhares de pessoas, ainda testemunhamos
a superabundância de aglomerações de toda a ordem, nas quais os
prazeres suplantam morbidamente o bom senso?
No momento em que certos indivíduos decidem arriscar a própria
vida e a dos seus familiares em proveito dos prazeres, não apenas se nos
mostra o quão a-significativos os conceitos de “renúncia”, “abdicação” e
“insulação” podem ser para alguns, mas também se tornam patentes os
efeitos deletérios de se proscrever a razão da função de guia da conduta
humana, substituindo-a pela perniciosa consagração dos prazeres, os
quais tão somente têm a oferecer (em tempos como os nossos) a sedução
que arruína, o feitiço que destrói, o fascínio que perverte, para enfim
abandonar seus escravos à culpa que acusa, ao remorso que corrói e ao
132 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

luto que desola49. À vista disso, talvez não nos pareçam tão severos os
conselhos de Sêneca, que em suas Epistulae ad Lucilium escreve: “Lança
fora todos [os vícios] que laceram o teu coração; se não puderes de
nenhuma forma os extrair, deves arrancar, junto com eles, teu próprio
coração. Expulsa precipuamente os prazeres e considera-os
odiosíssimos...” (Proice quaecumque cor tuum laniant, quae si aliter
extrahi nequirent, cor ipsum cum illis revellendum erat. Voluptates
praecipue exturba et invisissimas habe...)50.
Se virmos a razão como princípio do homem, isto é, como instância
a partir da qual o homem torna-se o que é e como potência por meio da
qual ele se autodetermina enquanto homem, então a usurpação dos
prazeres sobre a liderança das escolhas humanas só poderá resultar,
queira-se ou não, na negação do estatuto ontológico do homem e na
desagregação dos fundamentos da sua liberdade. Quando Sêneca
considera os prazeres odiosos, em sentido superlativo (invisissimas), ele o
faz justamente porque eleger os prazeres imoderados como guia da vida
desumaniza o ser humano, iguala-o às bestas, conspurca sua alma e
depaupera seu espírito.
Na vida filosófica, para a qual afastamento e solidão são imperativos
– posto que o deserto é o adubo das belas ideias –, a escalada da primazia
dos prazeres é inversamente proporcional à elevação do horizonte de
contemplação da alma, que jamais pode prescindir de ocupar-se
conspicuamente com as coisas do espírito. Platão, que como nenhum outro
filósofo percebeu tal problema, admoestou a todos dizendo:

[...] ἡ τοῦ ὡς ἀληθῶς φιλοσόφου ψυχὴ οὕτως ἀπέχεται τῶν ἡδονῶν τε καὶ
ἐπιθυμιῶν καὶ λυπῶν καὶ φόβων, καθ’ ὅσον δύναται, λογιζομέμη ὅτι, ἐπειδάν τις

49
Isso, é claro, quando o resultado não é a morte de quem sacrificou a prudência no altar da fruição desmedida e
inconsequente dos prazeres.
50
SENECA, Epistulae Morales, LI, 13.
Wesley Rennyer M. R. Porto | 133

σφόδρα ἡσθῇ ἢ φοβηθῇ ἢ λυπηθῇ ἢ ἐπιθυμήσῃ, οὐδὲν τοσοῦτον κακὸν ἔπαθεν ἀπ’
αὐτῶν ὧν ἄν τις οἰηθείη [...] ἀλλ’ ὃ πάντων μέγιστόν τε κακὸν καὶ ἔσχατόν ἐστι,
τοῦτο πάσχει καὶ οὐ λογίζεται ἀυτό.
[...] a alma do verdadeiro filósofo, portanto, abstém-se dos prazeres, dos
desejos, das aflições e dos temores, tanto quanto é possível, dando-se conta
que: sempre que alguém desfrute dos prazeres, tema, aflija-se ou deseje em
excesso, ele não sofre nenhum tão vasto mal dentre os quais alguém poderia
presumir [...] mas o maior de todos e o mais extremo mal que existe, isso ele
sofre e não se dá conta.51

Platão está mostrando, por um lado, o quão imprescindível é para a


alma do filósofo o afastamento dos prazeres; mas também está
assinalando, por outro, que há um mal mais extremo e profundo que
advém do conluio do homem com tais vícios. Esse mal maior, segundo
Platão, eclode na alma que jaz dominada pelo excesso de prazer, e ele
consiste basicamente no fato de a alma ser levada a crer que o conjunto de
suas experiências patéticas seja tudo quanto há de “mais evidente e mais
verdadeiro” (τοῦτο ἐναργέστατόν τε [...] καὶ ἀληθέστατον)52. Dessa
maneira, a alma, subjugada e corrompida pela desmesura do prazer, tem
sua compreensão do real deturpada; torna-se míope em relação ao todo;
julga nada existir para além daquilo que pode agarrar com mãos, como se
todo o reino do ser se reduzisse ao que se passa em seus nervos.
A trajetória dos nossos raciocínios, tendo sido iniciada pela
exploração do conceito de pensamento e passada pela identificação da
essência do homem como λόγος, ao incumbir-se de responder à pergunta
pelos bens oriundos da razão (em particular nos momentos de crise),
aventou, em primeiro lugar, a noção de consciência do devir evitável
(entendida coma uma compreensão sobre necessidade, liberdade e
porvir), para em seguida desembocar no senso pedagógico da história,

51
PLATO, Phaedo, 83b-c.
52
PLATO, Phaedo, 83c.
134 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

cujas lições transitaram entre a evidência da aleatoriedade do infortúnio e


a constatação da insensatez hedonista em tempos de colapso social. Uma
vez cumprido esse itinerário, encerramos dizendo, em especial aos que se
comprazem nestes tempos infaustos em aderir ao chavão que
insensatamente repete “o que há de ser será” (furtando-se assim à
responsabilidade por suas ações e escolhas), que não ignoramos os versos
do poeta que advertem: “digo não haver entre os homens ninguém que
tenha fugido à moira // nem nobre nem vil, uma vez que nasça” (μοῖραν
δ’ οὔ τινά φημι πεφυγμένον ἔμμεναι ἀνδρῶν, // οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν,
ἐπὴν τὰ πρῶτα γένηται)53; todavia, apesar de reconhecermos a
inevitabilidade do fatídico dia do fim, contra o qual não há remédio, se há
na vida do homem mais dignidade e autonomia do que há na de um piolho,
o compromisso com o justo e correto exercício da liberdade se nos
apresenta como indispensável, pois é a partir de sua consecução que os
homens podem aspirar a uma vida mais digna e benéfica.

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BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Tradução de Raul de Polillo. Rio de Janeiro: Nova


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53
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Wesley Rennyer M. R. Porto | 135

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TOMMASSO D’AQUINO. La Somma Teologica. Traduzione e commento a cura dei


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5

A especificidade da filosofia ocidental europeia


diante da filosofia oriental ou africana

Marco Aurélio Werle 1

No que se segue pretendo discutir em que medida é e não é


apropriado falar de uma filosofia oriental ou africana, tendo em vista a
especificidade e a dinâmica da chamada filosofia ocidental europeia, que é,
na verdade, a origem mesma do termo “filosofia” e da prática associada a
ela. O ensaio não se preocupa em comprovar meticulosa e exaustivamente
as teses levantadas, mediante citações ou referências bibliográficas, bem
como não pretende se colocar numa chave armada de polêmica ou de
rivalidade. Propõe-se antes compreender a questão, mediante uma
abordagem franca e aberta, sem o intuito de se colocar num dogmatismo
das certezas inabaláveis e acabadas.
Cabe também especificar que não se trata de propor uma espécie de
“reserva de mercado” para a prática filosófica, em particular para a
filosofia tradicional, ou de uma tentativa de convencimento de que essa é
a “melhor” (se é que se pode empregar esse termo) filosofia, mesmo
porque a consideração de que um pensamento é ou não é filosófico não
significa por si só uma valorização ou superioridade, ainda mais em nossa
época em que a própria filosofia há tempos não é mais a rainha do saber.
Desde o século XX, sabemos, o conceito de filosofia foi ele mesmo muitas
vezes rejeitado. Heidegger, por exemplo, não se reconhece mais como um
filósofo, e sim como um pensador. Por isso, como mostrarei a seguir, o

1
Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP. E-mail: mawerle@usp.br
138 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

fato de se considerar que certo pensamento não é filosófico significa


apenas isso, que não é filosófico em sua origem, sendo que ele pode ainda
ser muitas outras coisas dignas de serem consideradas, por exemplo, uma
visão de mundo, religião, sabedoria de vida, etc.
Filosofia, tal como foi compreendida essa prática por boa parte dos
filósofos, desde a Grécia até o século XX, é sobretudo a história da filosofia
e não se confunde com uma mera coleção de opiniões isoladas ou com
simples teses sobre o mundo, a vida, a natureza, a sociedade, a ética, etc.
É claro que com isso não se quer dizer que a filosofia é apenas um discurso
de cunho histórico, no sentido de um saber que se deu no tempo e que não
possui nenhum compromisso com objetos ou assuntos reais, posto que
relegado ao domínio daquilo que já foi e do que passou, mera relíquia do
passado. Pelo contrário, ao longo da história, os filósofos sempre
filosofaram sobre questões as mais diversas, mas o fizeram basicamente
no interior de uma relação histórica, olhando para frente e para trás, para
o que foi legado pela tradição, num movimento sobretudo circular. E essa
tradição não é algo morto, e sim revive até hoje no campo de uma corrente
de pensamento e determina os nossos principais problemas, sendo por
isso mesmo necessário sempre ser revisitada.
No horizonte da história, a filosofia surge então como uma prática de
crítica interna radical, marcada por uma tradição de afirmações e negações
de posições que se impuseram ao longo dos séculos. O conceito de filosofia
é determinado por esse processo e não por uma ideia ou posição particular
de uma determinada filosofia sobre o que é a filosofia, muito embora cada
uma das filosofias contribua, em sua particularidade, com uma nova
definição para a consolidação e revigoramento do processo como um todo.
O universal e o particular se complementam.
Ora, esse processo ocorreu somente no interior da tradição ocidental
europeia e em nenhum outro lugar, caso tenhamos diante de nós o
Marco Aurélio Werle | 139

percurso filosófico que se iniciou na Grécia há 2.500 anos e se estendeu


até os dias de hoje. Por isso, não houve uma outra filosofia e me parece
inadequado atribuir o nome de filosofia a pensamentos isolados que não
entraram nesse jogo e dinâmica ou não tiveram uma relação com ele, ou
seja, que se deram completamente à margem desse processo, como
pensamentos, intuições ou pressentimentos de mundo, visões de mundo
[Weltanschauungen] sem uma efetividade conceitual histórica, ou seja,
sem uma história das repercussões e influências, desde um contexto de
tradição. Considero instrutivo, nesse sentido, atentar para o conceito de
Wirkungsgeschichte, tal como o formulou primeiramente Gadamer em O
problema da história na mais recente filosofia alemã (1943): “O significado
não se revela, como pensa Dilthey, na distância do compreender, mas pelo
fato de que nós mesmos nos encontramos na conexão de efeitos da
história. O compreender histórico é sempre a experiência do efeito e dos
que propagam o efeito. Seu envolvimento significa justamente sua força
histórica de efeito”2.
Uma das marcas características da filosofia, tal como estou aqui
compreendendo esse conceito e a prática que a envolve, é justamente o
fato de que ela é uma atividade “coletiva”, de crítica, de reavaliações e de
reverberações. Só faz sentido o filosofar se ele é feito diante de/ contra um
outro filosofar. Um pensamento completamente isolado, apenas “meu
[mein]”, é uma opinião [Meinung], segundo um jogo etimológico que
Hegel realiza com o termo “opinião”, em sua “Introdução” aos Cursos de
história da filosofia3. Aliás, é conhecida a posição hegeliana de que a
história da filosofia não deve ser confundida com uma galeria de opiniões.

2
GADAMER, H. G. “Das Problem der Geschichte in der neueren deutschen Philosophie”. In: Gesammelte Werke 2:
Hermeneutik II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1986, pp. 34-35.
3
HEGEL, G. W. F. “Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie” [vol. 18]. In: Werke [in 20 Bänden], Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1986, p. 30.
140 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Também é importante distinguir a atividade filosófica da atividade


científica e religiosa, por mais que se aproximem e dialoguem. Essas
modalidades de saber são também históricas. No entanto, se a ciência lida
com um acúmulo de conhecimentos, que vão aumentando cada vez mais
e se modificam, sendo por isso mesmo a história da ciência menos
importante para a própria ciência, a religião, ao contrário, lida com o
dogma, ou seja, é uma verdade estabelecida num determinado momento
e que vai ser a base para tudo o que se sucede. A filosofia, no fundo, possui
algo de ciência e algo de religião, é um saber que concilia essas duas
esferas, o eterno e o transitório, não se confundido, porém, com ambas.
Devido a isso, nota-se na história da filosofia a ideia tanto de uma
progressão ou desenvolvimento, característica que a filosofia toma, por
assim dizer, emprestada da ciência, quanto a persistência no mesmo, uma
certa “estagnação” ou relutância em se afastar da origem, o que aproxima
a filosofia da religião. Daí se poder também compreender a história da
filosofia como progressão da razão (Hegel) ou como esquecimento gradual
da origem (Heidegger) e repressão dos impulsos dionisíacos (Nietzsche),
etc.
Mas, de onde vem propriamente esse caráter de tradição e mesmo de
“fechamento” da história da filosofia ocidental europeia? Nos últimos
tempos surgiu uma tendência de ver essa tradição a partir de uma
perspectiva ideológica de suspeita, ao se considerá-la a partir de termos
como “colonialismo”, “identitarismo branco”, “racismo”, “discriminação”,
“elitismo”, etc. De acordo com essa abordagem, a tradição da filosofia
possui em seu bojo algo como um “projeto”, consciente ou não, de
dominação, discriminação e de exclusão de outras possibilidades de
pensamento ou de culturas que não se enquadram no chamado “cânone”.
Certamente é possível verificar em alguns momentos da história da
filosofia compromissos com estratégias de exclusão ou de poder, inclusive
Marco Aurélio Werle | 141

porque a filosofia é uma prática cultural, que sempre teve e tem


compromissos com a dinâmica restante da cultura como um todo. E,
sabemos que a chamada cultura ocidental europeia, em suas diferentes
modalidades de afirmação, sejam elas religiosas, políticas ou econômicas,
em alguns momentos esteve empenhada em projetos de mundo bastante
questionáveis, contrários a uma postura de tolerância e de justiça. É claro
também que esses termos ou essas perspectivas: justiça, liberdade,
igualdade, verdade, etc. são eles mesmos históricos e é preciso tomar
cuidado para não abordá-los de modo anacrônico. Diante disso, é bastante
inócuo acusar determinado filósofo como sendo racista, misógino, etc.
quando essa acusação incide antes sobre um dado cultural de uma época
e não sobre a especificidade mesma desse determinado filósofo. Sem falar
que certo traço cultural, mesmo condenável aos olhos de hoje, não invalida
o que uma certa época ou um certo filósofo nos legou como um todo,
apesar disso.
No entanto, caso consideremos a questão de um ponto de vista
estritamente filosófico e especulativo, supondo que a filosofia, por mais
que esteja entrelaçada com a dinâmica cultural, ao mesmo tempo
constituiu, ao longo dos séculos, uma esfera ou instância autônoma e
universal de desdobramento, então faz-se necessário considerar uma
outra explicação sobre sua natureza e modo de funcionamento. O caráter
de tradição, o fato de que a filosofia ocidental europeia constituiu algo
como um sistema relativamente fechado e imanente, a meu ver se
relaciona com o próprio modo de surgimento da filosofia na Grécia e a
dinâmica que a partir disso foi instaurada e desencadeada. Quanto ao
termo “sistema”, porém, ele surgiu a rigor de modo mais forte na filosofia
apenas a partir de Kant, muito embora seja empregado nos dias de hoje
retroativamente, no sentido de se falar de um sistema em Platão, em
Aristóteles, etc. o que, no fundo, é algo um tanto quanto anacrônico. Seja
142 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

como for, o termo “sistema” não pode ser banalizado e ser aplicado a
qualquer estrutura de pensamento, apenas pelo fato de que é mais ou
menos coerente. Não é isso que faz uma filosofia ser um sistema.
No mundo grego, já antes de Platão, com Heráclito e Parmênides, ou
mesmo com o primeiro pensador de todos, Tales de Mileto, a aurora do
pensamento se pôs na chave de uma interrogação que, por sua própria
natureza, colocou em movimento algo como uma tradição. Os fragmentos
aparentemente simples de Tales: “tudo é água” e o “tudo é um” [en kai
panta] de Heráclito já nos remetem a uma espécie de contraposição
interna, de uma interrogação, de um “espanto” [thaumázein] que requer
e solicita um desdobramento, uma busca ordenada por um elo de ligação
entre o todo e as partes, ou seja, um movimento de pensamento focado na
questão mesma, enquanto um puro pensar.
Mais claramente, porém, essa dinâmica se apresenta em Platão, que
é propriamente o pai da filosofia. No fundo, toda a filosofia ocidental é, em
sua raiz, platônica, e nunca deixamos de ser platônicos. Em Platão, a
prática pensante do estabelecimento da filosofia como ideia, nas perguntas
sobre o belo, o bem e o verdadeiro: “o que é isto, o belo?”, “o que é isto, o
bem?” e “o que é isto, o verdadeiro?” incorpora necessariamente um
processo dialético ou dialógico, que lida constantemente com a relação
entre a consciência e a consciência de si. Como já ressaltou muito bem
Heidegger, em Que é isto – a filosofia?, no gesto platônico estão atuando
duas coisas: o was e o wie. “Não apenas aquilo que está em questão, a
filosofia, é em sua proveniência grego, mas também o modo como nós
perguntamos; o modo como nós ainda hoje perguntamos é grego.
Perguntamos: o que é isto ...? isso soa em grego: ti estin. A pergunta sobre
o que algo é, permanece, contudo, ambígua”4 Uma coisa é dizer que isto

4
HEIDEGGER, M. Was ist das – die Philosophie?. Stutttgart: Klett-Cotta, 2008, 12. Ed, pp. 8-9.
Marco Aurélio Werle | 143

ou aquilo é belo, bom e verdadeiro (em geral a posição dos interlocutores


de Sócrates), outra coisa é perguntar por aquilo mesmo que faz com que
isso ou aquilo seja belo, bom e verdadeiro, ou seja, essa última pergunta
incide sobre a ideia ou a essência. Confrontam-se aqui a consciência de
algo, das coisas belas, boas e verdadeiras, com a reflexividade da
consciência de si de algo, da ideia do bem, do belo e do verdadeiro.
Certamente a originalidade desse começo ou início da filosofia com
os gregos não exclui que eles tenham absorvido e incorporado uma série
de elementos do mundo oriental, do Egito em particular, como se vê em
Platão. Algo que não só se deu na filosofia como na arte também5. E
atualmente os estudiosos da Antiguidade cada vez mais questionam a tal
da originalidade grega. Só que uma coisa é acentuar essa situação, a partir
de estudos hodiernos, que se projetaram desde a filologia do século XIX,
outra coisa é constatar como a tradição mesma, até o fim do século XVIII,
considerou esse legado. Esse aspecto da recepção, desde a época antiga até
o começo do século XIX, constitui ele mesmo uma tradição ou uma cultura
de pensamento que tem seu peso e não pode ser ignorado ou minimizado.
Dito em outros termos, a tese da originalidade dos gregos, a rigor, foi ela
mesma se consolidando e ganhando força a posteriori, por meio da
tradição, o que é perfeitamente natural de se compreender: os gregos
mesmos não sabiam e nem tinham como saber que eram originais, muito
embora o tenham intuído, já que foi com eles que começou o processo da
consciência de si na filosofia.
Essa dinâmica, inaugurada por Platão, passa a seguir a pautar a
relação clássica e modelar, no mundo grego, entre Platão e Aristóteles, e é
algo que perpassa os séculos da filosofia subsequente, passando pelo

5
Remeto ao clássico estudo de SCHUHL, P-M. Platon et l’art de son temps (arts plastiques). Paris: PUF, 1952, que
abordei em meu artigo “Platão e as vanguardas artísticas do século XX”. In: Artefilosofia, vol. 6, n. 10, 2011
(https://periodicos.ufop.br/raf/article/view/614). Schuhl aponta para algumas relações que Platão tinha com
princípios artísticos egípcios.
144 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

período medieval, Santo Agostinho e Tomás de Aquino, chegando à


modernidade, junto a Descartes e Espinosa, Hume e Leibniz, Hobbes e
Rousseau, etc. e culminando com a relação entre Kant e Hegel, até os
últimos desdobramentos dessa tradição. Há uma espécie de reedição
constante do que se passou inicialmente no cerne do mundo grego. Mas,
agora, na época moderna, o movimento avança para além da relação
orgânica entre potência e ato e passa a ser pautado pela dinâmica entre a
substância e o sujeito, o em si e o para si, como diz Hegel, no horizonte do
paradigma moderno da subjetividade, que acentua sobretudo a relação, o
um-para-o-outro enquanto o mesmo. É esse gesto que costura, em termos
especulativos, o ponto de amarração de toda a história da filosofia.
Inclusive, o caráter de fechamento da tradição como um todo se
transmite com vigor a cada uma das filosofias e nelas, por sua vez, se
propaga, na particularidade, essa característica necessária sistemática de
fechamento e de autonomia. Observamos isso em todas as filosofias,
inclusive naquelas que parecem depender inteiramente de uma realidade
dada ou se apresentam com uma feição mais ligada a determinadas áreas
concretas e setorizadas da vida, por exemplo, nas filosofias que lidam
privilegiadamente com a política, a estética, a filosofia da ciência, a filosofia
da linguagem, etc. Todas as filosofias são em si mesmas internamente
estruturadas e geralmente são difíceis de serem apreendidas justamente
por isso. Cada filosofia possui uma coerência própria e, por assim, dizer, é
irrefutável em sua singularidade, pois espelha a cada momento o todo,
sendo que o reforça cada vez mais e dá a ele uma nova densidade. Essa
explicação sobre a tradição da filosofia me parece mais forte e relevante do
que aquela outra que se baseia em elementos extraídos exclusivamente da
dinâmica cultural, sociológica, antropológica, etc. de uma época, na qual
se insere sem dúvida a história da filosofia. Essa explicação não é capaz de
explicitar suficientemente a lógica interna da filosofia.
Marco Aurélio Werle | 145

Um elemento decisivo na lógica interna da história da filosofia e,


portanto, do próprio conceito de filosofia, é a consciência reflexiva, ou o
que denominei anteriormente de consciência de si. O verdadeiro filósofo é
sempre, em sua particularidade temporal e histórica, uma consciência de
si do todo, uma atualização do que é a potência da filosofia. Ora, diante
disso, pergunta-se: como é possível tomar hoje como sendo um filósofo
uma determinada figura do passado do mundo oriental ou africano, por
exemplo, que sequer teve uma consciência de si da tradição filosófica,
muito embora possa ter tido consciência de uma certa tradição não
filosófica, e de muitas outras coisas, do mundo, de si mesmo, etc.? E aqui
se nota que muitos estudiosos simplesmente projetam a atual consciência
de si ao passado, o que é um claro equívoco em termos de procedimento
em relação à história da filosofia, já criticado por Hegel, para recordar mais
uma vez os Cursos de história da filosofia6. Igualmente não se trata de,
inversamente, projetar o passado no presente, no sentido de propor uma
espécie de renascimento.
Uma coisa é Tales afirmar que tudo é água, outra coisa é nós, que
viemos depois e, portanto, tivemos a oportunidade de verificar como esse
enunciado se desenvolveu em outras filosofias posteriores, com outros
ingredientes, afirmarmos que “a água é a causa de tudo”, partindo já de
uma recepção aristotélica de Tales, que foi quem cunhou o termo causa
[aitia]. Igualmente equivocado é considerarmos, junto com Christian
Wolff, que em Tales já havia o princípio cristão do ex nihilo fit [do nada
nada se cria], desconsiderando que para os gregos a ideia cristã de criação
do mundo é algo simplesmente inexistente. Ora, isso não corresponde à
consciência de si de Tales, mas a uma consciência posterior daquilo que
ele mesmo pensou.

6
HEGEL, op. cit., pp. 62-64.
146 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Esse equívoco, aliás, para mencionar um outro exemplo, agora de um


pensador indiano, ocorre em grande medida na recepção brasileira recente
da obra de Nagarjuna, pensador do século II d. C., intitulada Versos do
caminho do meio, publicado pela Editora Phy. Já no texto de apresentação,
o tradutor e estudioso dessa obra entre nós realiza uma abordagem e
emprega uma nomenclatura francamente anacrônicas quando, por
exemplo, menciona objeções lógicas a pressupostos ontológicos, se refere
a uma perspectiva antimetafísica, a uma ontologia, a uma
substancialidade, etc. Todos esses termos e posturas foram laboriosa e
longamente preparados e consolidados ao longo da história da filosofia
ocidental europeia e, agora, são simplesmente aplicados de chofre ao texto
de Nagarjuna como se sempre estivessem estado lá! Aliás, já na simples
tradução de uma obra como essa, esse repertório categorial acaba sendo
inevitavelmente projetado, pois essa categorização praticamente se
incorporou à nossa linguagem, para além de sua dimensão especulativa e
lógica.
Talvez esse anacronismo seja algo necessário e mesmo inevitável
quando se trata do presente ou de um regaste de algo do passado visando
exclusivamente o presente. Que seja, mas continua sendo um anacronismo
que, sob certo aspecto, talvez não consiga resgatar nem a riqueza mesma
do que pretende resgatar, do que foi esse pensamento do passado e no
tempo dele, e nem consiga compreender bem o que significa o tal do tão
proclamado “presente”. E mais, trata-se de um equívoco tentar colocar
esse pensamento ao lado da tradição ocidental europeia ou mesmo tentar
introduzi-lo nela, enxertá-lo, quando ele nada teve a ver com ela.
Nagarjuna se situa numa tradição de pensamento oriental que não é
filosófica, e sim religiosa, como ele já deixa claro logo no começo da obra,
ao saudar Buda, que é tido como uma verdade consolidada, uma espécie
de Deus ou mensageiro de deus, muito embora, para Nagarjuna, essa
Marco Aurélio Werle | 147

verdade dogmática necessite ser revisitada e aprimorada. Mas,


argumentar em torno de um princípio religioso fixo visando uma certa
prática ou sabedoria de vida de modo algum é filosofia. A questão que
move Nagarjuna é sobretudo religiosa e de visão de mundo, sendo que
nem lhe passa pela cabeça que estaria filosofando.
Em suma, é muito difícil falar de uma filosofia oriental ou de um
filósofo oriental ou africano quando se tem em vista pensadores que
viveram antes do século XIX e que não participaram propriamente da
tradição ocidental europeia. A cultura oriental e africana, como se sabe,
esteve em grande medida apartada dessa tradição que elaborou e
desenvolveu aquilo que se entende de fato por filosofia. Filosofia, nesse
caso, foi sem dúvida uma prática que se inseriu numa corrente, num elo
concreto de desenvolvimento, por mais que no interior dessa corrente
tenham se constituído também divergências de concepção e diferentes
orientações de pensamento, muitas vezes conflitantes entre si. Isso, no
entanto, não abala a tendência dominante e a coesão da tradição, pois o
fato de as filosofias se negarem não é apenas um defeito delas, mas a
própria alma propulsora da verdade.
Considero, pois, um procedimento equivocado quando se toma
qualquer reflexão sobre o mundo, a vida, de um pensador oriental ou
africano, se o compara com um filósofo ocidental, e se procura com isso
fixar semelhanças de opinião ou de visão de mundo. Igualmente, há quem
argumente que o que caracteriza essencialmente a filosofia é a
argumentação racional dotada de elementos lógicos, com premissas,
deduções, conclusões, hipóteses, etc. e que isso está presente em muitos
textos do mundo oriental, tal como esse de Nagarjuna. Diante disso,
porém, enfatizo mais uma vez o que eu disse acima: a especificidade do
que é filosofia não se esgota nessa característica meramente
argumentativa individual e sim num processo mais complexo, para além
148 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

do campo lógico argumentativo. A história da filosofia nos mostra


diferentes tipos de racionalidade sendo exercidos, aliás, cada filósofo nos
apresenta uma nova racionalidade, e o que importa mesmo é a relação
recíproca dessas formas de racionalidade e não a adoção dogmática de um
único paradigma.
A propósito, a argumentação racional é algo que acontece em vários
domínios do saber, que nem por isso são chamados de filosofia. Repito,
tomar essa característica de uma racionalidade abstrata e formal ou
mesmo qualquer forma mínima de coerência de pensamento como prova
de que determinado pensamento é filosófico é desconsiderar a
peculiaridade do que é a filosofia ocidental europeia em sua essência, a
qual não reside nessa ou naquela filosofia particular, mas no processo
como um todo, no encadeamento de uma filosofia com a outra, sem uma
forma de dogmatismo previamente dado (seja ele religioso, seja místico,
etc.). Ora, é isso que falta sem dúvida ao suposto filósofo oriental, esse
estofo de uma tradição crítica que possa dar guarida e sentido ao seu
pensamento num transcurso maior. É claro que isso muda de figura se for
evidenciado e demonstrado que o pensador oriental de fato se inseriu na
tradição da filosofia ocidental europeia, dialogou com ela e, sobretudo, se
teve alguma relevância, mesmo que isso não tenha sido percebido em sua
época e somente tardiamente ou nos dias de hoje, mais recentemente. E
não se exclui que possa ter sido um importante pensador, que, no entanto,
foi negligenciado e que agora apenas está sendo resgatado. Só que não é
bem isso que se vê sendo feito hoje por aqueles que pretendem resgatar o
pensamento oriental. Aliás, muitas vezes esses estudiosos ignoram (ou não
se interessam por) o modo de funcionamento mesmo da filosofia ocidental
europeia.
Essa questão da atribuição do caráter de filosofia a um pensador
oriental ou africano toca numa outra questão muito debatida hoje, a saber,
Marco Aurélio Werle | 149

sobre o papel das mulheres na história da filosofia. Igualmente envolve a


discussão de uma série de “outros” discursos ou saberes que reivindicam
um lugar ao sol: filosofia latino-americana, filosofia de gênero e assim por
diante. No entanto, há uma diferença grande nos dois casos: um, o caso da
filosofia oriental ou africana do passado, se refere a culturas inteiras que
seguiram seu curso mais ou menos à margem do processo de
desenvolvimento do pensamento ocidental; já o outro se refere à uma
exclusão ou a um não reconhecimento de personagens e atrizes que
estiveram efetivamente sempre conectadas internamente à cultura
ocidental, no entanto foram reprimidas e não lhes foi dada uma voz. Trata-
se também de explorar novos campos de conhecimento e de saber que
foram se desenvolvendo nos últimos séculos. Nesse caso, obviamente, o
critério filosófico de relevância implica o exame de uma inserção efetiva
na história.
Aliás, é preciso também destacar aqui que, por vezes, o modo de como
se estuda e se lida com os chamados filósofos ocidentais europeus, tidos
como consagrados ou como clássicos, pode fazer com que esses mesmos
filósofos se tornem também eles um modo de pensar estranho ou
“estrangeiro” e que, nesse sentido, não corresponde ao que é de fato a
filosofia. Penso aqui na prática, infelizmente bastante difundida hoje em
dia no mundo todo, de estudar um filósofo por si mesmo, a partir de sua
chamada “coerência” interna, em boa parte desconectado da dinâmica da
história da filosofia. Declara-se que é um “clássico” e com isso a questão
estaria simplesmente decidida, não sendo necessário mostrar e indicar
porque mesmo é um “clássico”. Essa atitude é propagada pelos chamados
especialistas de um único filósofo, que acabam fazendo com que esses
filósofos que estudam se tornem simplesmente uma religião, um
dogmatismo. É claro que a compreensão do lugar que um filósofo ocupa
na história da filosofia não é fácil de ser alcançada, requer anos de estudo
150 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

e mesmo uma certa sensibilidade, que de início não se coloca para quem
começa a estudar filosofia e um filósofo. O estudante ou pesquisador é
forçado a simplesmente aceitar determinado filósofo como uma
autoridade, sem saber porque o está fazendo. Mas, isso ocorre também em
outras áreas de saber, nas ciências em geral, quando se lida com uma
teoria da chamada ciência básica. Há que lidar com um aprendizado e
confiar no que é transmitido por quem já realizou boa parte do percurso
de investigação, além do simples fato de que há uma tradição que está
acima de todos nós. No fundo, ninguém é capaz de realizar de modo pleno,
mesmo com muitos anos de estudo, uma apreensão do todo de uma
tradição a partir de um filósofo ou de um grupo deles. A tradição
simplesmente está acima de nós, mortais, inseridos numa finitude,
localizados numa época. Aprender o todo por uma época seria nada mais
nada menos do que se tornar um novo filósofo...
Certamente não se exclui a possibilidade de, a partir do estudo atento
de uma única filosofia, se conseguir dar, parcialmente, conta do todo da
tradição e fazer jus ao conceito pleno de filosofia. Ou, mesmo que não se
dê conta, há que manter isso como um ideal a ser cultivado. Isso pode
acontecer especialmente quando o filósofo em questão é um desses pilares
fundamentais da história da filosofia. Mas, então, a abordagem desse único
filósofo tem de ser feita na medida em que ele dialoga com o todo,
principalmente com o que o antecedeu, mas, também, com o que o
sucedeu, a partir do que o influenciou e a partir do legado e herança que
deixou. Ambas as direções interessam: o passado e o futuro, desde o
presente.
No entanto, se, de um lado, considerei até aqui a dinâmica da filosofia
ocidental europeia anterior ao século XIX e concluí que não cabe
propriamente considerar pensamentos orientais ou africanos como sendo
filosofia em sentido estrito e rigoroso, é preciso, por outro lado, reconhecer
Marco Aurélio Werle | 151

uma legitimidade filosófica alcançada por essas tradições não ocidentais


nos últimos dois séculos. Passo agora para o que considero ser o sentido
apropriado, positivo ou adequado, de se falar em filosofia oriental ou
africana.
Essa possibilidade resulta de um processo complexo de pensamento
que precisa ser sobretudo avaliado pelo modo como surgiu e se
desenvolveu no seio mesmo da cultura ocidental europeia, mais
fortemente desde o século XVIII, embora já tenha começado no século
XVII. O exame dessa origem, a meu ver, permite determinar em que
medida há uma filosofia oriental e que tipo de filosofia é essa. Também é
importante perceber que essa emergência do mundo oriental passou
primeiramente por domínios de saber que não são propriamente
filosóficos, e sim ligados ao estudo da cultura em geral, ao estudo das
línguas, por exemplo, no extraordinário florescimento da arqueologia, da
filologia e do estudo da mitologia no fim de século XVIII e começo do XIX.
Contribuiu para isso a percepção da originalidade do sânscrito como uma
espécie de raiz comum das línguas ocidentais. Aliás, a passagem entre a
concepção de linguagem como característica universal (Leibniz) para a
percepção da linguagem como língua (Rousseau, Herder, etc.), fenômeno
destacado por Cassirer na Filosofia das formas simbólicas, foi decisiva para
uma nova visão do ser humano e sua relação com a origem geográfica e
histórica7.
Elenco brevemente alguns outros fenômenos e nomes, que me são
mais próximos em termos de assuntos de pesquisa, que impregnaram esse
movimento de pensamento que resgatou elementos não europeus:
Creuzer e Heyne, estudiosos da mitologia dos povos antigos; Champollion,
da França, que decifrou os hieróglifos egípcios; Humboldt com suas

7
Cf. especialmente o primeiro capítulo da primeira parte de CASSIRER, E. Philosophie der symbolischen Formen [vol
1]. Darmstadt: Primus, 1997, pp. 55-90.
152 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

investigações sobre a linguagem e a cultura e poesia indiana; a perspectiva


aberta por Herder diante das canções populares dos povos; a acolhida do
romantismo de elementos da Índia e da Idade Média, que acabaram por
romper com a dicotomia “antigos e modernos”; a perspectiva de Hegel,
que abriu em sua filosofia um amplo espaço para o mundo oriental, seja
na estética, na filosofia da religião e da história; também Goethe, em idade
avançada, direcionou sua lírica para um diálogo com o mundo árabe, no
Divã ocidento-oriental; depois, já em meados do século XIX, vemos
Schopenhauer falar da negação da vontade por meio do nirvana búdico e
assim por diante. Muitos outros fenômenos poderiam ainda ser elencados,
principalmente no campo das ciências ditas naturais, da biologia, física,
etc., fenômenos que nos mostraram uma nova visão do ser humano em
sua diversidade cultural e histórica.
Em todas essas manifestações e recepção de elementos culturais não
ocidentais europeus, porém, tratou-se sobretudo de uma visão da cultura
como um todo, de uma espécie de sabedoria de vida (tomado o termo aqui
num sentido próximo ao usado por Schopenhauer), sendo bastante rara a
consideração de que esses fenômenos eram especificamente filosóficos em
sentido mais forte e rigoroso. A ideia de uma filosofia indiana é algo que
apenas se colocou mais para o fim do século XIX, quando o próprio
conceito de filosofia começou a entrar em crise, assunto que tratarei a
seguir.
Pois, a tradição da filosofia ocidental europeia, a partir do século XIX,
legitimou ela mesma a possibilidade de se poder falar de um “outro”, de
um pensamento oriental ou de outra ordem. Isso porque a filosofia abriu
mão de um discurso unívoco e começou a se decompor como unidade
discursiva e universal. E aqui começa a possibilidade legitima de se falar
de uma filosofia oriental, algo que se pode considerar como se constituindo
a partir dos séculos XIX e XX, entrando no século XXI. Essa possibilidade
Marco Aurélio Werle | 153

se coloca quando o mundo oriental se insere no ocidental e, ao mesmo


tempo, a filosofia ocidental começa a rever suas bases e fundamentos, bem
como passa a reduzir o conceito forte de filosofia.
No século XIX isso passou basicamente pela emergência de três
vertentes de pensamento, a partir de uma certa exaustão da chamada
filosofia ocidental com Hegel e o idealismo. São elas as vertentes da
filosofia da vida, do materialismo e do positivismo. Todas elas lidam com
uma rejeição da filosofia, da metafísica, pelo menos do conceito de filosofia
como atividade teórica e soberana. E essa direção de pensamento, que
começa com Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Dilthey, Comte, Bergson etc.
desemboca, na sequência do século XX, em Husserl, Russel, Wittgenstein,
Heidegger, Sartre, etc. e se torna a tônica dominante na filosofia
contemporânea. Surge assim um espaço para outros discursos, dentre eles
o de uma filosofia oriental ou africana. Se trata, também, de uma
concepção de filosofia fortemente marcada pelo paradigma das ciências,
tanto as naturais quanto as humanas ou do espírito: antropologia,
psicologia, psicanálise, sociologia, linguística, etc. E assim, o conceito de
filosofia, em nossa época, deixou de ter esse sentido de uma tradição mais
ou menos fechada em si mesma.
Hoje se faz filosofia nos mais diversos modos e registros e me parece
que todos possuem uma certa legitimidade. É claro que uns mais e outros
menos, mas aí sempre depende de uma recepção ou de um confronto com
o mundo. Não se pode, no cenário atual, recorrer a uma visão heroica da
filosofia, e sim é preciso admitir a pluralidade e inserir-se em seu meio. No
entanto, o passado continua a nos determinar em grande medida, de modo
que ambos os campos precisam de alguma maneira entrar num diálogo, o
passado e o presente numa relação recíproca e hermenêutica (como
ressalta Gadamer). Em Heidegger, por exemplo, temos uma posição que
tanto reconhece a especificidade da filosofia ocidental grega quanto abre
154 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

espaço para um outro pensar, por exemplo, mais poético e mesmo


intercultural. Penso aqui na conversa com um professor japonês do texto
A caminho da linguagem e também no texto Ciência e meditação, no qual
Heidegger apela para a Besinnung, a meditação, um termo que remete
implicitamente às culturas orientais, e que é contraposto por Heidegger ao
modo de pensar do cálculo científico.
É nesse contexto que surge a ideia, por exemplo, de uma filosofia
indiana. Volto a mencionar Nagarjuna, agora num sentido mais positivo.
Porém, por mais que essa obra se insira numa tradição de pensamento
indiano budista, e se apresente mesmo como uma reformulação do
budismo, trata-se em grande medida mais de religião do que
propriamente de filosofia. E é um pensamento que interessa a uma certa
tradição e cultura oriental, chinesa, japonesa, coreana ou indiana, fazendo
mais sentido para eles do que para nós, não querendo aqui negar a
possibilidade de uma troca cultural ou uma interculturalidade, que
certamente é interessante de ser acentuada. Mas, como eu disse
anteriormente, é evidente que no resgate dessa tradição, que ocorreu no
século XIX e se propaga no século XX na chamada Escola de Kyoto, torna-
se inevitável projetar sobre ela uma série de categorias de pensamento
legadas pela tradição ocidental, algo que, a rigor, não é algo proibitivo,
sendo inclusive necessário. Mas, há que diferenciar as coisas e não
simplesmente equipará-las, pois senão corremos um risco duplo: de fazer
pouco caso do peso da tradição ocidental europeia de filosofia, que
determina ainda a nossa vida em seus rasgos fundamentais, e de não
compreender que o mundo oriental possui muitos elementos culturais que
são simplesmente diferentes e próprios, estrangeiros.
No que se refere ao fato de a chamada filosofia indiana ser mais
religião do que filosofia, poder-se-ia questionar justamente então a
tradição filosófica ocidental europeia sob este prisma: a filosofia ocidental
Marco Aurélio Werle | 155

europeia, na época medieval, não era ela também principalmente religião?


Não. A marca da filosofia medieval é justamente sua filosofia que,
obviamente estava sob um domínio religioso, mas dele se distinguiu em
essência. Essa é uma lição básica e elementar a ser aprendida de início por
quem se debruça sobre a filosofia medieval, a saber, a de evitar o lugar
comum de que essa filosofia é privilegiadamente religião e não filosofia
propriamente dita. Portanto, a objeção não é válida: uma coisa é um
pensamento que declaradamente se diz ou se pensa como religião, e não o
oculta, outra é um ambiente cultural de conflito entre fé e saber, como o
foi em muitos momentos a filosofia medieval. Lembrando ainda que a fé
ou a crença pode ser tomada também como assunto religioso ou filosófico.
Não necessariamente a fé é em princípio religião.
Como conclusão, e uma vez que desde o século XIX se emprega o
termo filosofia para o pensamento oriental, indiano, chinês etc., fica claro
que há uma legitimidade neste procedimento. E, no fim e ao cabo, trata-se
de verificar qual tradição nos influencia efetivamente, qual tradição de fato
nos determinou e determina. Em que medida nossos principais problemas
existenciais ou de outra ordem são determinados pela tradição da filosofia
ocidental europeia ou por uma eventual filosofia oriental? Daí também a
importância de se distinguir as coisas e não simplesmente confundi-las ou
misturá-las ou mesmo tentar compreendê-las por meio de chaves
explicativas ineficazes e enviesadas.
Certamente é uma questão aberta e obviamente o texto que aqui foi
escrito, retomando o que foi dito no começo, não pretende ser da ordem
da militância e nem se colocar como uma espécie de juiz ou censor. Mesmo
porque seria insistir em algo que não surtirá efeito, pois o discurso sobre
uma filosofia indiana, japonesa, chinesa, africana, etc. já está constituído e
consolidado nos dias de hoje, veio para ficar, de modo que continuará
sendo empregando e se firmando como um campo de estudo,
156 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

independentemente do que se disser e de como se queira argumentar.


Nessas designações se trata, como em outros discursos de minorias,
muitas vezes de um anseio ou de uma aspiração por reconhecimento, de
uma valorização de emoções antes de argumentos. É algo que brota mais
de uma afetividade ou de um afeto, do coração, como uma espécie de “grito
libertador”, do que propriamente da razão, sendo os argumentos racionais
nesse caso pouco eficazes e eficientes. Mas, a contradição nisso está no fato
de que se reivindica uma consideração por meio do recurso ao rótulo
“filosofia”, como se ele pudesse garantir alguma justiça epistêmica,
histórico-social ou uma dignificação. Talvez fosse mais produtivo lidar
com outros enquadramentos, com novos discursos e categorias, que não
precisam necessariamente passar por este termo que, repito, possui um
legado e uma história que precisam ser situados de modo apropriado.

Referências

CASSIRER, E. Philosophie der symbolischen Formen [vol 1]. Darmstadt: Primus, 1997.

GADAMER, H. G. “Das Problem der Geschichte in der neueren deutschen Philosophie”. In:
Gesammelte Werke 2: Hermeneutik II. Tübingen: Mohr Siebeck, 1986.

HEGEL, G. W. F. “Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie”. In: Werke [in 20
Bänden]. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.

HEIDEGGER, M. Was ist das – die Philosophie?. Stutttgart: Klett-Cotta, 12. Ed., 2008.

SCHUHL, P-M. Platon et l’art de son temps (arts plastiques). Paris: PUF, 1952.

WERLE, M. A. “Platão e as vanguardas artísticas do século XX”. In: Artefilosofia, vol. 6, n.


10, 2011.
6

Hegel e Heráclito: a Justiça do Uno 1

André Felipe Gonçalves Correia 2

I. Como é sabido, a relevância do pensamento de Heráclito na filosofia


de Hegel é das mais significativas, sobretudo em função do primado da
identidade entre universalidade historial e lógica especulativa, o que, em
última instância, diz respeito à unidade concreta e sapiencial do Espírito,
isto é, ao desdobramento do pensamento a partir do próprio pensar. No
corpus hegeliano, referências nomeadas a Heráclito aparecem em três
ocasiões do primeiro livro da Ciência da Lógica (A Doutrina do Ser), de
1812, assim como em 1817, na Enciclopédia das ciências filosóficas (§12 e
nos adendos aos §§ 88, 286, 336, 371), e, por fim, na 16ª lição das
Preleções sobre a filosofia da religião, de 1829, além das passagens não
nomeadas ao longo desses e doutros testemunhos escritos pelo próprio
Hegel ou transcritos de suas aulas e posteriormente publicados pelos seus
discípulos. Contudo, somente em suas Preleções sobre a história da
filosofia, ministradas num total de nove vezes durante toda a sua carreira
catedrática (primeiramente em 1805/06, em Iena, então em 1816/17 e
1817/18, em Heidelberg, e, de 1819 até a sua morte, em 1831, seis vezes em
Berlin), é que o espólio de Heráclito recebe uma atenção pontuada. A
reconstrução dessas preleções, empreendida em 1833, coube ao seu aluno
Karl Ludwig Michelet, e é nela que encontramos a célebre passagem: “Aqui

1
O presente texto é resultado dos estudos de minha tese de doutorado. Ele é uma versão ampliada de um artigo de
minha autoria intitulado “Hegel e o λόγος heraclítico” (CORREIA, André F. G. In: Revista Aufklärung, vol. 8, nº 3,
2021, no prelo). O acréscimo substancial, além de significativos ajustes e supressões, acabaram por redirecioná-lo
em seu sentido e propósito, donde a necessidade de alteração do título.
2
Doutorando em filosofia pela UFRJ. Bolsista CNPq. Contato: felgorreia@hotmail.com
158 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

avistamos terra; não há nenhuma sentença de Heráclito que não acolhi em


minha lógica”3. A seção dedicada ao pensamento heraclítico é dividida em
três partes, excetuando a introdução, da qual foi retirada a citação: 1. “O
princípio lógico”, 2. “Os modos da realidade” e 3. “O processo como
universal e sua relação com a consciência”. Nosso estudo se propõe a
endossar a declaração de Hegel a partir do cotejo entre as imagéticas
heraclíticas e os pilares lógico-historiais do pensamento hegeliano. Com
isso pretendemos fornecer uma espécie de átrio e aparato à interpretação
das Preleções, cujo papel aqui será apenas subsidiário.
É igualmente sabido que os fragmentos de Heráclito nos foram
transmitidos via tradição indireta, deles restando apenas excertos dos
mais diversos materiais doxográficos, citações e testemunhos (num
período que se estende do séc. IV a.C., com Platão, até o séc. XII d.C., com
os escritores bizantinos), e que o trabalho de compilação concernente à
totalidade dos fragmentos se deu gradativamente, inicialmente na obra
Poesis Philosophica (1573), de Henricus Stephanus, passando pelos anos
de ouro da filologia do séc. XIX, de Schleiermacher a Bywater, até culminar
em sua aposição padrão no ano de 1901, encabeçada por Hermann Diels,
a qual foi inserida posteriormente em sua monumental obra Fragmente
der Vorsokratiker (1903). É provável que Hegel não tenha tido acesso a
todos os fragmentos dos quais hoje dispomos, tal como nota Heidegger em
relação ao fr. B1234, conservado pelo sofista grego Temístio (séc. IV d.C.).
A doxografia de que se utilizou, ao menos as citadas, são oriundas de obras
de Platão, Diógenes Laércio, Clemente de Alexandria, Eusébio, Estobeu e
Plutarco, além de Aristóteles e de Sexto Empírico, cujas interpretações e

3
HEGEL, G. F. W. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie I (Werke, Band 18). Suhrkamp Verlag: Frankfurt
am Main, 1986, p. 320.
4
Cf. HEIDEGGER, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental. Lógica: a doutrina heraclítica do lógos. Trad.
Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Relume Dumará, 2002, p. 124. Obs.: As referências aos fragmentos
de Heráclito seguirão a numeração padrão Diels-Kranz (DK).
André Felipe Gonçalves Correia | 159

esclarecimentos acentua. O fato de não citar grande parte dos demais


doxógrafos, à guisa de Jâmblico, Hipólito, Marco Aurélio, Orígenes, Plotino
e Porfírio, não implica o desconhecimento de suas citações, até porque
deles faz uso em ocasiões relativas a outros dos primeiros filósofos.
As premissas de Hegel nunca foram as de fornecer um apanhado
sistemático dos fragmentos ou mesmo de restituir-lhes o sentido original
– o que, a rigor, seria impossível5 –, mas sim de neles apreender a regência
imorredoura do Espírito, isto é, o elemento vivo da relação do Uno consigo
mesmo na esfera do puro pensar, que apresenta-se via figuração histórica
de Heráclito sob a forma do princípio lógico do “devir” (Werden), o qual,
diz Hegel nas Preleções, “é também o primeiro concreto (Konkrete)”, ou
seja, “a primeira unidade das determinações opostas”6. A concreção do
Uno no reino do Espírito pensante cumpre um decisivo estádio de saída
da abstração, porquanto desperta da oposição excludente e unilateral do
“entendimento” (Verstand), uma vez que, sob o influxo desse, “tomamos
as determinações diversas como reciprocamente exclusivas, como não
constituindo um concreto”, isto é, uma oposição includente; “entretanto, o
verdadeiro é a unidade dos contrários”7 – profere nas lições de Introdução
à história da filosofia, no semestre de inverno de 1823/24. Hegel concatena
as teses heraclíticas do fluxo e da unidade dos opostos a partir da
vivacidade do concreto, cujo étimo latino – o mesmo do alemão – é o verbo
concrescere (“crescer junto”), no sentido de apreender o embrulhado e o
desembrulhado sob a óptica da unidade viva, que repousa em sua

5
Com efeito, é o que escreve Burnet, em 1892, acerca da dificuldade que permeia a letra de Heráclito: “Alguns desses
fragmentos estão longe de ser claros e é provável que o significado de boa parte deles nunca seja recuperado. Assim,
voltamo-nos para os doxógrafos à procura de indícios, mas, infelizmente, no caso de Heráclito eles são menos
instrutivos do que nos outros” (BURNET, John. A aurora da filosofia grega. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 158).
6
HEGEL, op. cit., pp. 324-25.
7
Id., Introdução à história da filosofia. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 109. Daqui em
diante, faremos referência a esta obra mediante datação das lições.
160 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

atividade. É o que consta já no prefácio da Fenomenologia do Espírito, de


1807: “O verdadeiro é o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe seu
fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante
sua atualização e seu fim” 8.
II. O efetivo diz a concreção do Uno. Este, contudo, enquanto única
realidade, precisa realizar-se, ou seja, desdobrar-se (sich entfalten). O
Espírito é “o pensamento vivo que se move em si mesmo”9, e enquanto tal
é atividade universal, portanto, nada de estático e morto. Assim, enquanto
totalidade, não apenas repousa em si, mas precisa igualmente vir a ser o
que é. A natureza infinita do Espírito se apresenta, desta feita, sob a
concomitância de seu processo enquanto avanço e retorno, de maneira a
se produzir graças à sua produção. Ambos os momentos encontram-se,
portanto, num único, que no outro de si mesmo retorna a si preenchido,
traz seu abismo à luz. Trata-se da “eterna produção do mundo”, isto é, do
“eterno retorno do Espírito a si – um movimento absoluto que é ao mesmo
tempo repouso absoluto – eterna mediação consigo”10. Nesse sentido, o
movimento universal enquanto concreto diz respeito a uma série de
configurações do Espírito, cujo todo “é uma sucessão, com retrocessão
para si”11. Todo progresso já é, com efeito, regresso. Não está em pauta
uma linha reta, cujo percurso estender-se-ia ad infinitum, tampouco uma
repetição maquinal, mas antes a vivificação eterna da única Vida, que a
cada passo alcança a si mesma, ou seja, atualiza-se, atinge seu fim, o qual
já é sempre a largada do princípio, um novo passo. A reunião de princípio
e fim implica o concrescimento do Uno consigo mesmo, portanto, do pôr-
se da forma como conteúdo – da vida da forma ou da Ideia em movimento;

8
Id., Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, 5ª edição, Petrópolis: RJ, Vozes: Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2008, p. 35.
9
Id., op. cit., p. 93. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
10
Id., ibid., p. 103.
11
Id., ibid., p. 104.
André Felipe Gonçalves Correia | 161

em que forma e Ideia comportam e elevam o sentido platônico de εἶδος e


ἰδέα, respectivamente. Trata-se, por conseguinte, da Ideia (Idee)
produzindo-se e vindo a ser, logo, crescendo juntamente com o real, in
concreto, na dinâmica vital de concrescimento: “A Ideia como
desdobramento deve, primeiro, transformar-se no que é”12. Tal é a
doutrina do mundo às avessas, contida na seção III da Fenomenologia do
Espírito. O suprassensível não é a contraimagem do sensível, tal como o é
para Platão (ou para o platonismo), isto é, não há duplicação de mundos,
em que a ambiência das Ideias deflagrar-se-ia como verdadeira e imutável,
ao passo que a ambiência percebida, como aparente e corruptível. Sob a
óptica do concreto, se a inversão do aparente é o verdadeiro, também o é
a inversão desse13. Separá-las já é atividade do entendimento, porquanto
se afiguram, de per si, como unilaterais, abstratas – “o entendimento
resiste ao concreto”14. Portanto, ambos são apenas momentos do que
efetivamente é: a Vida. É o que diz Heráclito no fr. B107, conservado por
Sexto Empírico: “Para homens que têm almas bárbaras, olhos e ouvidos
são más testemunhas”15. Barbarismo seria aqui a atividade de devastar e
decompor, e nisso permanecer, ou, sob acepção grega, a tipologia do
estrangeiro, desconciliado do interno e nativo16.

12
Id., ibid., p. 94. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
13
Escreve Hegel, na Fenomenologia: “Assim o mundo supra-sensível, que é o mundo invertido, tem, ao mesmo
tempo, o outro mundo ultrapassado, e dentro de si mesmo: é para si o invertido, isto é, o invertido de si mesmo; é
ele mesmo e seu oposto numa unidade. Só assim ele é a diferença como interior, ou como diferença em si mesmo, ou
como infinitude” (Id., op. cit., p. 128). Toda extrusão, que em sua imediatidade se mostra finita, já é, in concreto, sua
inversão, ou seja, intrusão que se expõe, portanto, interioridade viva, infinita, eterna mediação consigo. Cf.
KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. Trad. José Miranda Justo, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009. Obra cujo mote
central é a acusação de pseudomovimento da Ideia hegeliana.
14
Id., op. cit., p. 106. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
15
HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários Alexandre Costa. São Paulo:
Odysseus Editora, 2012, p. 111. Utilizaremos preponderantemente esta tradução, salvo em algumas ocasiões, as quais
serão devidamente referidas.
16
Cf. o texto de minha autoria intitulado Hölderlin e a grande palavra de Heráclito (CORREIA, André F. G. In: Revista
Trágica, vol. 13, nº 2, 2020, pp. 11-42).
162 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

A vida do Espírito reúne princípio e fim em sua interioridade. Esta,


contudo, não é abstrata, mas concreta; de sorte que a exterioridade não
ultrapassa a circunferência do Uno, do contrário seria mera abstração. Tal
como na representação geométrica do círculo, cada ponto de seu
perímetro encerra a comunhão de largada e chegada. O percurso de sua
dinâmica é fechado, de modo que, a rigor, não há fora senão dentro.
Todavia, há movimento, realização, vida. A serenidade do sistema é um
decursus vitae. Isso significa que a simultaneidade de sucessão e
retrocessão implica uma ἐντελέχεια, ou seja, comporta (ἔχω) uma
finalidade interior (ἐντελώς), a qual é una (ἕν). Cada momento do Absoluto
diz respeito a uma atualização absoluta, logo, a um preenchimento da
totalidade do que é em sua dinâmica17. O ente concreto é uno, ou seja, ele
é com-um18. No grego jônico de Heráclito, o termo para o comum é ξυνός,
o qual Sexto Empírico, em Adversus Dogmaticos (I, 131-133) – na
passagem em que foram conservados os fragmentos B1 e B2 –, identifica
à “razão universal e divina” (κοινὸς λόγος καὶ θεῖος), estabelecendo um
paralelo entre ξυνός e κοινός (universal, comum)19. Com efeito, todo esse
entorno é o que consta no fr. B103, conservado por Porfírio: “O comum
(ξυνός): princípio e fim na circunferência do círculo”20.
Faz-se necessário aqui aprofundar a noção de círculo. Como poder-
se-ia compreender o eterno retorno de seu processo como avanço? Para

17
Nas lições de 1825/26: “Sistema tornou-se, na nossa época, uma palavra de reprovação porque se lhe associa a
noção de que ele se atém a um princípio unilateral. Mas o significado genuíno do sistema é totalidade, e ele só é
verdadeiro enquanto tal totalidade, a qual começa no mais simples e, mediante o desdobramento, se faz sempre mais
concreta” (HEGEL, op. cit., p.111). É o que diz o étimo grego σύστημα (“reunião”, “conjunção”).
18
Conforme escreve Cesarino: “No hay dos mundos; el ente es uno, y un más allá del ente no existe [...] La doctrina
hegeliana se caracteriza por el modo como el Uno se concilia con lo múltiple, como el universal se concilia con el
particular. En la conciliación, estos «pares» no desaparecen, antes su contrario es conservado en el movimiento
dialéctico” (CESARINO, Heleno. “Hegel y la locura infinita de la finitude”. In: Cuadernos Salmantinos de Filosofía, Nº
22, 1995, pp. 213-14).
19
Cf. EMPIRICUS, Sextus. Work in four volumes. Against the Logicians. Translated by R. G. Bury. Cambridge:
Harvard University Press, vol. II, 1967, p. 72.
20
HERÁCLITO, op. cit., p. 109.
André Felipe Gonçalves Correia | 163

tanto, a circularidade precisa ser elevada a um patamar mais concreto de


universalidade. Está em pauta, portanto, a suprassunção (Aufhebung) da
imagética circular em um círculo espiralar; à guisa do giro helicoidal do
pisão, que volteia vertical e simultaneamente para cima e em círculo. É
precisamente esse o sentido do verbo alemão aufheben (“suprassumir”),
pois, a um tempo, supera e conserva, eleva em concrescimento, ou ainda,
alavanca (hebt) para cima (auf). Por conseguinte, o princípio circular
permanece na progressão. Conforme o fr. B59, conservado por Hipólito:
“Caminho dos pisoeiros, reto e curvo, um e o mesmo”21. Princípio e fim se
encontram agora do mesmo modo em que se encontravam na curvatura
do círculo – em contínuo e tautocrônico regresso –, porém com o
enriquecimento da sucessão enquanto progresso efetivo, isto é, não
enquanto totalidade abstrata do embrulhado em si mesmo (do “simples”),
mas sim como desdobramento da Ideia, em que a totalidade ativa-se a si
juntamente com o outro de si em unidade. Tal como consta no §241 da
Enciclopédia das ciências filosóficas: “Só o auto-suprassumir-se da
unilateralidade dos dois [termos] neles mesmos faz com que a unidade não
se torne unilateral”22. Note-se que a unidade das determinações opostas já
está em vigor nas próprias unilateralidades, isto é, nos “termos” inefetivos
“neles mesmos”, porém como e enquanto abstração, sob a forma abstrata
da progressão, uma vez que o primado lógico da mútua pressuposição já
sempre se impôs em qualquer determinidade.
Reto e curvo são um e o mesmo caminho, o reto não se dilui no curvo
e o curvo não se dilui no reto, de modo que a união resguarda a desunião.
Princípio e fim são igualmente um e o mesmo, nada há no fim que já não
está no princípio, o princípio é sempre o princípio do fim e o fim, o fim do

21
Id., ibid., p. 141.
22
HEGEL, G. F. W. Enciclopédia das ciências filosóficas. Trad. Paulo Menezes, com colaboração de José Machado. São
Paulo: Loyola, 1995, p. 369.
164 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

princípio, mas cindidos são abstratos, ou seja, não efetivam unidade


alguma. Pensemos esse entorno especulativo a partir do referencial do
desdobramento (Entfaltung). Escreve Hegel na Fenomenologia: “A força
do Espírito só é tão grande quanto sua exteriorização; sua profundidade
só é profunda à medida que ousa expandir-se e perder-se em seu
desdobramento”23. O termo alemão comporta a mesma estrutura da
tradução em português, uma vez que falten significa “dobrar” e ent-,
enquanto prefixo de negação, “des-”. Trata-se, portanto, de uma exposição
que cresce sob o influxo do negativo, isto é, da força da contradição.
Todavia, uma dobra (Falte) já evoca um estar contorcido, ou seja,
embrulhado e escondido, resistente à positivação, ao estar posto. O
dobrado é o não-posto. Por conseguinte, o desdobramento é uma atividade
que nega uma negação, logo, diz respeito a uma exposição. Assim, o
embrulhado se afigura, a um tempo, como negação e afirmação, assim
como o desembrulhado. Impera aqui uma unidade de negação e afirmação
em cada uma das determinidades. Unidade esta, entretanto, abstrata. Em
sua concreção, o Espírito cumpre, conforme a citação anterior, um
“expandir-se e perder-se”, ou seja, um afirmar-se e um negar-se. Sob a
óptica do entendimento, a afirmação, enquanto exposição na forma da
exterioridade, é uma espécie de alienação, ou seja, já é uma perdição, uma
negação da interioridade. Todavia, também é dito que a “profundidade”
do Espírito equivale à sua “exteriorização”, ou seja, que o posto é o não-
posto enquanto efetividade. Assim, o “perder-se” da interioridade, na
verdade, nada mais é do que o “expandir-se” da mesma na exterioridade,
a qual, com efeito, já é retorno e mergulho no interior, que agora vem à
luz e cujo conteúdo, não obstante, é o mesmo que o da sua determinação
obscura, encapsulada, mas que agora desdobrou o seu ser-em-si

23
Id., op. cit., p. 30.
André Felipe Gonçalves Correia | 165

(Ansichsein), pôs-se, entrou na existência (Dasein)24. Trata-se aqui da


Ideia que, ao se expor, se altera e consigo mesma se preenche, que na sua
emersão imerge: “No desenvolvimento [Entwicklung]25 podemos sem
dúvida falar também de alteração, mas esta alteração deve ter uma
condição tal que o outro, o que emerge, é, no entanto, ainda idêntico ao
primeiro, pelo que o simples, o que é em-si, não se aniquila”26. Em jogo
não está uma mera duplicação, mas sim a própria realização do real, isto
é, o vir a ser do que é na experiência – conforme a máxima de Píndaro, na
Ode Pítica 2 (v. 73)27. Experiência esta que abrange o reino total da verdade
do Espírito. Seu decurso espelha o esforço de uma íngreme escalada, a qual
já é reflexo de seu reverso, pois o caminho ascendente é o mesmo do
descendente, de maneira que o labor das alturas implica também o alívio
da descida, do assentar-se em si. Ecoa aqui o fr. B60, também conservado
por Hipólito: “Caminho: para cima [ἄνω], para baixo [κάτω], um e o
mesmo”28. Trata-se aqui de um simples, porém grandioso, exemplo de
como um e o mesmo aparecem de modo completamente diverso e de como
trazer, ademais, embaraço ao entendimento, que se enrijece perante a
sentença. A extensão de um aclive em um dado terreno é a mesma do
declive, o que muda é a direção. Ambos os sentidos percorrem, com efeito,

24
Vale acentuar aqui a pertinência do vocábulo “existência” para traduzir Dasein. O étimo latino exsistere, composto
pelo prefixo ex- (“ir para fora”, “sair”) e pelo verbo sistere (“tomar posição”), implica o mesmo que o composto do
advérbio da (“aí”, “em uma determinada posição”) e do verbo sein (“ser”). Ambos comportam o sentido de emersão
e aparição.
25
Hegel se utiliza dos verbos entwickeln (desenvolver) e entfalten (desdobrar) no mesmo sentido, dado que wickeln
significa “enrolar”, “embrulhar”, de sorte que entwickeln, “desenrolar”, “desembrulhar”, etc. Importante aqui é ater-
se à literalidade do termo “des-envolvimento”.
26
HEGEL, op. cit., p. 99. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
27
Leia-se “experiência” aqui no sentido do verbo erfahren. Trata-se, inclusive, da escolha de Hölderlin para traduzir
o verbo grego μανθάνω, na tradução que fizera da respectiva ode pindárica. Verbo cuja força semântica, além dos
sentidos de “experimentar”, “experienciar” e “vivenciar”, reúne também os de “aprender”, “apreender” e
“compreender”. Em pauta está uma saga de formação. Cf. o texto de minha autoria intitulado Gênese e Formação: o
arcaico sob os vieses helênico e germano-romântico (CORREIA, André F. G. In: Homem & Natureza: entre o alvorecer
antigo e o crepúsculo moderno. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020, pp. 176-77).
28
HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: Os pensadores originários. Edição bilíngue com tradução de Emmanuel Carneiro
Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 87.
166 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

o mesmo caminho, de sorte que compõem e estão contidos na totalidade,


albergados como unidade.
III. Há na noção hegeliana de desdobramento, decerto, um traço de
hipóstase neoplatônica, no sentido de estágios henológicos na escalada do
Espírito, em que o Uno é a encruzilhada inicial e final da comunhão de
toda ἀνάβασις (“ascese”) e κατάβασις (“descese”), haja vista que grande
parte da doxografia heraclítica encontra-se em obras de neoplatônicos, a
exemplo de Plotino, Porfírio e Jâmblico29. Desdobrar-se significa, em
última instância, movimento e relação consigo mesmo, ou, em termos
mais definidos, apreensão e saber de si. A experiência concreta do Espírito
diz respeito a uma saga de formação, cujo percurso e apresentação
(Darstellung) toma notas de si apenas à medida que se percepciona na
alteridade como o mesmo. É, por conseguinte, no âmbito de sua exposição
que se dá o retorno a si enquanto de si ciente. Trata-se aqui do pensamento
que pensa-se a si mesmo e que, assim, se apreende como livre, ou seja,
como lume e transbordo de sua própria ocultação e encapsulamento:
“Somente o pensar é a esfera em que toda a alienação se desvaneceu e, por
isso, o Espírito é absolutamente livre, está em si mesmo. Alcançar
semelhante meta é o interesse da Ideia, do pensar, da filosofia”30.
O Espírito só é livre porque, em sua autoprodução, vem a ser desde
si mesmo e para si mesmo. Alheada de sua concreção, toda alteridade, com
efeito, consiste apenas em uma diferença evanescente; assim como toda
simplicidade, que alheada diz apenas o inefetivo. Assim, o pensamento,
embora anteceda em-si a sua própria atividade, nada é de efetivo antes do

29
Conforme escreve este último, em De Mysteriis (195.10-196.1): “Nós devemos ter em mente que o universo é um
único ser vivo. As partes dentro dele têm lugares distintos, mas se pressionam umas para as outras devido à sua
natureza una. A força de coesão no universo e a causa da sua junção fazem com que as partes se fundam umas com
as outras” (JÂMBLICO, De Mysteriis. Dillon, J., Clarke, E.C. e Hershbell, J. [ed. trad. e introd.]. Leiden: Brill, 2003, p.
221). Para uma leitura sinóptica, porém apurada, do vínculo em pauta, cf. GANDILLAC, Maurice. “Hegel et le
néoplatonisme”. In: Hegel et la pensée grecque. Org. Jacques D’hondt, Paris: PUF, 1974, pp. 121-131. Obs.: Há uma
tradução para o português em Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03, nº. 02, 2012.
30
HEGEL, op. cit., pp. 103-04. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
André Felipe Gonçalves Correia | 167

pensar, o qual, por seu turno, nada tem a ver com uma atividade aleatória,
uma vez que o pensamento, enquanto proveniência e meta do pensar, já
guarda em si todo o a se pensar, logo, também toda a produção real, a qual
só se despoja da alienação na medida em que o retorno assume a figura do
saber de si enquanto totalidade. O pensamento que se libera no pensar é,
dessarte, expressão da necessidade. Esta, em sua abstração, já tende a
liberar-se, porquanto já pressupõe a mediação da liberdade, assim como
esta, a mediação da necessidade. O pensamento concreto é, por
conseguinte, a produção efetiva de sua tendência na e pela liberdade de sua
atividade. É forçoso, pois, reconhecer na livre formação do Espírito a
repercussão da suma necessidade, a saber, a do tornar-se o que é. A tônica
especulativa aqui parece ser das mais severas, mas só para o
entendimento. É o que profere Hegel nas lições do semestre de inverno de
1823/24: “Temos de dizer que o Espírito é livre na sua necessidade”31. E
mais à frente:

Sem dúvida, é com maior dificuldade que nos aproximamos desta unidade, e
desta unidade não quer acercar-se o entendimento; mas deve aspirar a ela e
consegui-la. É sempre mais fácil dizer que a necessidade exclui a liberdade et
vice versa do que insistir no concreto. 32

Antes de aprofundarmos o que de fato está implicado no “ser-para-


si” (Fürsichsein) do Espírito, explanaremos um pouco mais essas
tendências em tensão. Tomemos como mote o fr. B51, conservado por
Hipólito: “Não compreendem [οὐ ξυνιᾶσιν], como concorda o que de si
difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”33. O
verbo “compreender” traduz o grego ξυνίημι, que literalmente significa

31
Id., ibid., p. 109.
32
Id., ibid.
33
HERÁCLITO, op. cit., p. 83. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
168 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

“enviar em conjunto” e cujo radical é o mesmo de ξυνός (“comum”). A


incompreensão das tendências opostas é fruto de desvio do com-um. E
este, enquanto diz a totalidade, é pensamento. Conforme o fr. B113,
conservado por Estobeu: “O pensar é comum [ξυνόν] a todos”34. Note-se
aqui a ambiguidade do pronome πᾶς, na passagem sob a forma do dativo
plural masculino/neutro πᾶσι (“a todos”). Diferentemente do que se passa
com o fr. B116 – do qual trataremos mais à frente –, não há especificação
aqui. Trata-se de todos os homens? De todas as coisas? Parece tratar-se
antes da totalidade mesma35, a qual, porquanto com-um, diz respeito a
uma harmonia36, isto é, à relação universal do Uno consigo mesmo. O arco
e a lira se afiguram como ilustrações exemplares, uma vez que o que
imputa-lhes sua atividade e meta é a inclinação das tensões contrárias. O
fundamental, contudo, não reside na unidade funcional das tendências
opostas, tal como se verifica em ambos os instrumentos, mas sim em sua
estrutura, e isso na medida em que dá mostras da dinâmica especulativa
da unidade. Quanto mais a corda do arco tender para trás, tanto mais
intensa dirigir-se-á para frente o projétil; assim como em um fraseado
melódico, cuja devida afinação (lograda, no caso da lira, por intermédio de
uma proporção simétrica no ajuste das cordas) proporcionará o trânsito
entre tons e tonalidades distintas. Todavia, essas tendências cumprem, em
sua imediatidade, uma dinâmica meramente sucessiva. A harmonia dos
divergentes deve ser abarcada não apenas em sua exterioridade. Faz-se
necessário, por conseguinte, apreender a mediatidade lógica que opera na

34
Id., op. cit., p. 115.
35
O que já implica a dimensão privilegiada do homem, como pensante, assim como a dos demais entes. Isso levou
Charles Kahn, embora não sob enfoque hegeliano, a interpretar o fragmento sob a perspectiva de um
“pampsiquismo” (KAHN, Charles. A arte e o pensamento de Heráclito. São Paulo: Paulus, 2009, p. 160).
36
O termo ἁρμονίη (grafia jônica) advém do verbo ἁρμόζω (“compor”, “ajuntar”). A divergência, portanto, já está
pressuposta em sua própria definição, dado que só se compõe ou se ajunta sob o suposto da dispersão. Um bom
emprego de seu sentido encontra-se na Teogonia (v. 937), de Hesíodo, em que Harmonia aparece como prole de Ares
e Afrodite.
André Felipe Gonçalves Correia | 169

sucessão, ou seja, a simultaneidade imediata do dinamismo interior. O


projétil, em primeira instância, só é lançado à medida que a empunhadura
e a corda em punho avançam e se conservam em diametria oposta; o
mesmo vale para as cordas tesas da lira, de cada uma em particular, do
contrário não haveria música. Cada uma das tendências se define pela
mediação de sua contraposição enquanto e como preposição. Sob a óptica
abstrata da imediatidade não se vê o contra como pré. A dinâmica
sucessiva apresenta uma harmonia do aparente, do imediato. O veículo de
sua visão é o entendimento, que a abarca, com efeito, não em sua
totalidade. Cabe, em contrapartida, à regência da “razão” (Vernunft)
apreendê-la em sua concretude – externa e interna em relação37. A
interioridade estrutural do arco e da lira suspende a sua funcionalidade,
ou seja, já em repouso vigora uma tensão. O arco desempunhado, contanto
que esteja pronto para o uso, apresenta uma corda entesada – assim como
a lira –, de modo que em repouso contém o movimento das tendências
resistentes à direção para a qual foram puxadas. A parte estendida para
cima está a todo tempo tendendo para baixo, porquanto de lá proveio, e

37
Na introdução da Ciência da Lógica, Hegel contrapõe a sua lógica especulativa (da qual atua a razão) à lógica formal
(da qual atua o entendimento). Ao contrário dessa, aquela reúne as determinações cindidas e supostamente
subsistentes por si mesmas no mesmo passo em que também resguarda a vitalidade da diferença, de sorte que supera
e guarda a formalidade da lógica tradicional (pautada no “princípio de não-contradição”). Em jogo está o estatuto da
lógica em seu sentido originário: o grego λόγος – oriundo do verbo λέγω, étimo cujo sentido primeiro significa
“reunir”, “recolher”, sob um determinado critério ou unidade de sentido, e não como um amontoado a esmo, donde
também a acepção de “concentrar”, isto é, de centro comungado. É o que consta no fr. B50, conservado por Hipólito,
em acepção propriamente filosófica: “Não de mim, mas do λόγος tendo ouvido, é sábio homologar: tudo é um”
(HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: Pré-socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Nova Cultura,
1999, p. 93). O λόγος é com-um. A contrariedade de “tudo e um” (ἓν καὶ πᾶν) diz, em última e primeiríssima instância,
a totalidade una e a unidade total, as quais, não tomadas in abstracto, encerram o conteúdo vivo do Espírito, in
concreto. Por conseguinte, toda determinidade formal ou transcendental, de per si, resume-se a má abstração, isto é,
a formalizações vazias e unilaterais, sem conteúdo efetivo; acerca das quais, escreve Hegel: “Na medida em que elas
se separam como determinações firmes e não são mantidas juntas em unidade orgânica, elas são formas mortas e o
espírito não habita nelas, espírito o qual é sua unidade concreta, que vive. Mas, com isso, elas estão desprovidas do
conteúdo sólido – de uma matéria que fosse nela mesma um conteúdo. O conteúdo que falta nas formas lógicas não
é outro senão uma base e uma concreção firmes dessas determinações abstratas; e costuma-se procurar uma tal
essência substancial para elas fora delas”; e completa, agora em relação à sua lógica especulativa: “A própria razão
lógica, porém, é o substancial ou o real, que mantêm unidas em si todas as determinações abstratas e que é a unidade
sólida, absolutamente concreta delas” (HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica 1. A Doutrina do Ser. Trad. Christian G.
Iber, Marloren L. Miranda e Federico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2016, pp. 50-51).
170 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

vice-versa. O entendimento não pode apreender o movimento no repouso


estrutural, assim como o repouso no movimento funcional. Função e
estrutura, vistas em sua imediatidade, expõem apenas uma visibilidade
abstrata. Os exemplos do arco e da lira advertem precisamente contra o
risco do saber imediato, tão acossado na Modernidade. Entretanto, o
imediato é o inefetivo: “Logo que algo é verdadeiro contém em si a
mediação, do mesmo modo que a mediação, se não for apenas abstrata,
contém em si a imediatidade”38. Trata-se daquilo que Heráclito, no fr. B54
– conservado por Hipólito –, chamou de ἁρμονίη ἀφανὴς (“harmonia
invisível”), a qual “é mais forte que a visível”39. O α privativo aqui – em
relação a φάος (“luz”) – deve ser lido como copulativo, isto é, no sentido
de que a divergência entre os contrários, em suas variegadas camadas, já
sempre pressupõe e realiza a unidade, de maneira que a “harmonia
invisível é mais forte” não por dispensar a “harmonia visível”, mas sim por
guardá-la e elevá-la.
IV. A razão que se percepciona na dinâmica da suprassunção faz
justiça a si, como λόγος, ao menos em dois hemisférios de índole
especulativa40. O primeiro diz respeito à cópula entre entendimento e
razão (ou, se se quiser, entre lógica formal e lógica dialética); no sentido
de que aquele, enquanto determina e mantém as determinações em
separado, e essa, enquanto dissolve tais determinações e produz o
universal, repercutem às expensas uma da outra, do contrário o λόγος não
apresentar-se-ia também na esfera do conceito como discurso. O conceito
(Begriff) é o pensamento na medida em que a si se determina e permeia
todos os conceitos determinados (e suas determinações), daí o verbo

38
Id., op. cit., p. 100. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
39
HERÁCLITO, op. cit., p. 85. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
40
Atente-se aqui ao étimo latino speculum, donde provém “o especulativo” (das Spekulative) de Hegel, assim como
o vocábulo “espelho”, em português.
André Felipe Gonçalves Correia | 171

greifen (“agarrar”), donde provém o substantivo alemão, acepção já


presente no latim concipere (“pegar por completo”), étimo do português
“conceito”. Assim, o conceito uno é o λόγος na medida em que agarra a si
como universalidade, na qual estão contidas todas as particularidades
(λόγοι). Esse “logos”, escreve Hegel no prefácio à segunda edição da
Ciência da Lógica (1831), é “a razão do que é” 41. Desta feita, sob a óptica
concreta do Espírito, a justiça se cumpre na medida em que o
entendimento é soerguido ao patamar da razão e vice-versa. Agora
conforme o prefácio à primeira edição (1812): “Mas em sua verdade a
razão é espírito, que é mais elevado do que ambos, a razão entendedora
ou entendimento racional”42. Uma vez que a lógica hegeliana não tem que
ver com determinações meramente formais ou transcendentais,
porquanto vazias e essencialmente separadas de seu conteúdo, logo, a-
históricas, o conteúdo κατ’ ἐξοχήν do conceito espiritual se define, por seu
turno, no desdobramento a um tempo interno e real da ciência filosófica,
lugar do saber absoluto. Já o segundo hemisfério diz respeito justamente
à exterioridade real em que a própria filosofia se apresenta: o elemento
historial. O conceito é, decerto, concreto. Todavia, enquanto tal, não realiza
a totalidade, ou seja, sua mediatidade estrutural ainda é abstrata,
porquanto carente de realidade efetiva. Contudo, na própria natureza do
conceito já opera a sua suprassunção, isto é, a demanda necessária do
preenchimento de si consigo mesmo. O conceito, que se cumula de

41
HEGEL, op. cit., p. 40.
42
Id., ibid., pp. 27-28. Conforme escreve Christian Iber, professor da Universidade Livre de Berlin e tradutor da
Ciência da Lógica no Brasil: “A lógica formal comete, para Hegel, uma traição ao logos, à ‘razão do que é’, como Hegel
diz com Heráclito, porque ela o esquece como aquilo que permeia todas as determinações do pensamento. A lógica
dialética é assim, por um lado, uma alternativa à lógica formal, por outro, ela a integra em si. Essa dupla posição
frente à lógica formal resulta da pressuposição de Hegel segundo a qual todos os conceitos determinados são
determinações do único conceito no singular. Esse conceito no singular é o equivalente hegeliano ao conceito
tradicional do logos que tudo perpassa. Todos os conceitos determinados no seu desenvolvimento devem ser
pensados como autodeterminação do conceito. A Lógica de Hegel é uma metafísica do conceito racional” (IBER,
Christian. “O que Hegel propriamente quer com sua Ciência da Lógica? Uma pequena introdução à Lógica de Hegel”.
In: Leituras da Lógica de Hegel. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017, pp. 88-89).
172 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

conteúdo e a si proporciona a sua realidade, é a Ideia. Escreve Hegel, no


terceiro livro da Ciência da Lógica (A Doutrina do Conceito):

Certamente é preciso conceder que o conceito como tal ainda não é completo,
mas tem de se elevar à ideia, a qual somente é a unidade do conceito e da
realidade, como, a seguir, tem de resultar através da natureza do próprio
conceito. Pois a realidade que ele se dá não pode ser acolhida como algo
externo, mas tem de ser derivada a partir dele mesmo.43

É possível fazer menção ao conteúdo de algo, mas não ao conteúdo da


Ideia, porquanto ela mesma é o seu conteúdo, porém, como e enquanto
realização, e isso na medida em que a realidade põe-se idêntica ao conceito.
Se conceito e realidade se cindem, então não há vida. A Ideia é
essencialmente vitalidade e atividade, logo, é também o acontecer
(geschehen) da história (Geschichte), e, por conseguinte, o movimento
mesmo da Vida, o λόγος vivo: “A Ideia é justamente o que chamamos
verdade”44 – profere Hegel nas lições do inverno de 1827/28. A formação
da verdade do Espírito se constitui no reino histórico de sua experiência.
Disso dá testemunho a etimologia proposta por Leibniz, e acolhida por
Hölderlin45, que deriva Geist do hoje obsoleto Gest (“fermento”), os quais
têm por raiz o protoindo-europeu g̑heis- (“estar agitado”). Espírito
significa, com efeito, o movimento que move-se a si mesmo em si mesmo,
ou seja, “transmutando-se, repousa”46, conforme o fr. B84, transmitido
por Plotino. Destarte, a atividade da fermentação: em que a coesão da
mistura só é mantida em sua integridade ao ser agitada. É o que consta,
ademais, no fr. B125, conservado por Teofrasto: “Mesmo o ciceão

43
HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica 3. A Doutrina do Conceito. Trad. Christian G. Iber e Federico Orsini. Petrópolis,
RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2018, p. 48.
44
Id., op. cit., p. 92.
45
Cf. CAVALCANTE, Márcia de Sá. “Pelos caminhos do coração”. In: HÖLDERLIN, F. Reflexões. Trad. Márcia de Sá
Cavalcante e Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 13.
46
HERÁCLITO, op. cit., p. 95.
André Felipe Gonçalves Correia | 173

[κυκεών], se não agitado, desmancha-se”47. O movimento, que promove o


preparo do alimento48 – cujo étimo significa “mexer”, “misturar” (do grego
κυκάω) –, fornece-lhe consistência na medida em que não desvanece. A
persistência da unidade depende, por conseguinte, de sua circularidade
motora, sentido comum na preparação de alimentos semelhantes49. O
desdobramento da Ideia, assim, diz respeito a uma espécie de gestação de
si, em que o gerado não é outro senão o próprio incubado (Ansichsein),
mas que agora veio à luz (Dasein), isto é, alavancou a dinâmica circular à
espiralar, alterou-se, liberou-se num outro. O segundo hemisfério de
justiça mencionado cumpre-se na medida em que o lógico e o histórico se
apreendem em helicoide, conforme tratado acima.
Nas lições de Introdução à história da filosofia, Hegel se vale das
noções aristotélicas de δύναμις e de ἐνέργεια para explicitar o
desdobramento como tal. A primeira, enquanto disposição e capacidade
(potentia), e a segunda, enquanto realidade efetiva (actus). Sob a óptica do
especulativo, a δύναμις não apenas antecede a ἐνέργεια, mas também é por
ela antecedida. Isso significa que a própria δύναμις diz respeito a uma
unidade composta, porém abstrata, isto é, somente em-si, segundo a
disposição, a capacidade, a possibilidade. Todavia, esta possibilidade nada
tem a ver com uma possibilidade superficial em geral, mas sim com uma
“possibilidade real”50, tanto quanto a ἐνέργεια não diz apenas uma
efetividade da superfície, porém uma real, porquanto em atendimento à
sua profundidade. Em outros termos, a possibilidade é o real da realização
e a efetividade, a realização do real51. A δύναμις, enquanto precedida pela

47
Id., ibid., p. 123.
48
O ciceão é uma espécie de mingau, mencionado já na Ilíada (XI, v. 638 ss.).
49
Cf. o comentário de Charles Kahn (KAHN, op. cit., pp. 298-300).
50
HEGEL, op. cit., p. 94. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
51
Escreve Aristóteles, na Metafísica (1051a3): “O ato é anterior à potência e a todo princípio de mudança”
(ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Giovani Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 425). Prioridade tal que de
modo algum dispensa a potência. A nível de ilustração, tomemos o exemplo do germe, no campo da botânica, repetido
174 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ἐνέργεια, é, portanto, em si diversa. Trata-se da unidade das diferenças


ainda não postas como diferentes. Ao contrário do que poder-se-ia
imaginar com tal contradição, não há aqui inércia alguma, mas sim o
cumprimento de uma justiça, qual seja, o da própria dinâmica. A
diversidade da δύναμις nela mesma – ou seja, enquanto composta – é, no
entanto, simples, contradiz-se em si mesma; com efeito, diz Hegel, “graças
a tal contradição, constrange-se a sair da disposição, do íntimo para a
dualidade, para a diversidade; ab-roga, pois, a unidade para fazer justiça
aos diferentes”52. O velado aparece, assim, como existente. Esta primeira
via cumpre o impulso de dissolução presente na natureza mesma do
concreto inefetivo. Dissolução tal que, na verdade, implica uma expansão,
ou, se se quiser, uma solução, dado que vitaliza o que na contradição
parece ser insolúvel. A segunda via, por seu turno, cumpre uma justiça
reversa: “Mas igualmente se faz justiça à unidade, pois o diferente, que é
posto, de novo se ab-roga. Deve retornar à unidade; com efeito, a verdade
do diverso é ser num só”53. A unidade verdadeiramente concreta se efetiva
nessa dupla via, cujo percurso é um e o mesmo, simultaneamente avanço
e retorno, ou seja, não há propriamente dois movimentos, mas um único
ato de realização, conquanto polêmico54, de vez que emergir significa
aprofundar-se em si. Desta feita, sua mediação, porquanto concreta e
efetiva, se dispõe como autêntica imediatidade. A verdadeira existência é
i-mediata, já que justa e necessária, isto é, mediada e racional. Como pano

insistentemente por Hegel em suas lições. Nele, a árvore já se encontra pronta, não obstante inexistente. Trata-se de
uma possibilidade real em tendência efetiva. No caso do homem, tal como veremos adiante, ato é pensamento, e,
enquanto efetivação, pensamento que se apercebe como tal, ou seja, ser-para-si (Fürsichsein) efetivo. Os diversos
estratos de existência em geral são suprassumidos no próprio pensar, cuja repercussão patenteia-se na produção
histórica da humanidade. Assim, escreve Aristóteles mais à frente (1051a-31-33), tomando como exemplo a
geometria, em que mesmo a evidência dos teoremas é necessitária de atualização: “O pensamento é ato. E do ato
deriva a potência, e é por isso que os homens conhecem as coisas fazendo-as” (Id., ibid., p. 427). Todo pensar já é
fazer e todo fazer já é pensar, em dinâmica circular.
52
HEGEL, op. cit., p. 107. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
53
Id., ibid.
54
Do grego πόλεμος (“guerra”, “combate”, “luta”).
André Felipe Gonçalves Correia | 175

de fundo, o fr. B80, transmitido por Orígenes: “É necessário saber que a


guerra [πόλεμον] é comum [ξυνόν] e a justiça [δίκην], discórdia [ἔριν], e
que todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e necessidade”55.
Já Anaximandro de Mileto havia ensinado um princípio de troca e
compensação entre os opostos. Todavia, aquilo que Hegel chamou de
“justiça aos diferentes”, talvez se lhe apresentasse como uma agressão, isto
é, como uma “injustiça” (ἀδικία)56. Não obstante mais obscuro do que o
próprio Heráclito – dada a escassa doxografia –, parece haver na doutrina
de Anaximandro o ponto de inflexão do qual se serviu Heráclito ao
elaborar sua noção de harmonia, a qual, por sinal, já à época adquirira
sentido filosófico com Pitágoras. Anaximandro vê na determinação
exterior uma infração do princípio Uno, o qual nomeia de ἄπειρον
(“indeterminado”, “ilimitado”). Delito tal que paga com a dissolução
necessária do conteúdo infrator. A injustiça reside não no conflito abstrato,
resguardado no ἄπειρον (cujo α privativo tanto nega quanto conserva o
substantivo πέρας [“limite”, “determinação”], cuja acepção ocupa aqui
uma posição consecutiva), mas sim em sua efetivação. Neste nível, tudo
aquilo que diz respeito à geração ou à vitalização é punido com seu
desenlace, contraponto do ἄπειρον, que é ἀγήρως (“sem velhice”) e
ἀθάνατος (“sem morte”), tal como se lê nos frs. B2 e B3 de Anaximandro,
transmitidos respectivamente por Hipólito e por Aristóteles57. Com efeito,

55
HERÁCLITO, op. cit., p. 91.
56
Conforme a transmissão de Simplício, em sua Física (24, 13), e enumerado posteriormente por Diels como o fr.
B1: “Princípio dos seres... ele disse que (era) o ilimitado [ἄπειρον]... Pois donde a geração é para os seres, é para onde
também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça [δίκην] e deferência uns aos
outros pela injustiça [ἀδικίας], segundo a ordenação do tempo [χρόνου]” (ANAXIMANDRO. “Fragmentos”. In: Pré-
socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1999, p. 50).
57
“A primeira ἀδικία, lesão sem reparo”, conforme anota Schüler em sua interpretação do fr. B1 de Anaximandro,
“foi romper a unidade, introduzir limites no todo sem fendas, suscitar a determinação (πέρας)” (SCHÜLER, Donaldo.
Origens do discurso democrático. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 27). Atente-se, contudo, para o caráter propriamente
filosófico dessa punição. A “ἀδικία primeira”, originariamente, não remete à alçada do gerado, mas, ao contrário, à
articulação arcaica da e com a própria justiça do ἄπειρον. Trata-se, portanto, de uma cisão originária e irreparável no
seio mesmo da unidade. A ênfase de Anaximandro parece recair, entretanto, no agravamento subsequente dessa
tensão, isto é, no âmbito da geração e da efetividade. Aqui, no elemento da sucessão historial (que o fr. B1 nomeia de
“ordenação do tempo”, “cronologia”), a pureza da unidade dá mostras de sua dissolução de modo acentuado, ao que
176 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Heráclito responde à acentuação do milésio – com a qual decerto era


familiarizado58 – mediante a elevação da guerra como e enquanto justiça59.
A “justiça à unidade” implica um retorno que alavanca a diferença, ou seja,
de gênese efetiva do Uno, a qual, contudo, porquanto em sua verdade, diz
também um concrescimento de vida e morte, de vir a ser e de deixar de
ser, onde morte significa, por um lado, a diluição da imediatidade abstrata,
meramente superficial, e, por outro, o próprio suporte do desdobramento.
De acordo com a Fenomenologia do Espírito: “A vida que suporta a morte
e nela se conserva é que é a vida do Espírito”60. É isso, ademais, que está
implicado no verbo γίγνομαι, traduzido acima no fr. B80 por “vir a ser” (e,
no fr. B1 de Anaximandro, por “gerar”), no caso, o vir a ser de “todas as
coisas” (πάντα), as quais, enquanto totalidade, não podem se reduzir à
superfície. Verbo cuja força semântica comporta um vívido sentido de

responde com a dissolução de sua dissolução, de maneira a asseverar a prioridade lógica em relação ao proceder
cronológico, fadado à retratação goela de Κρόνος abaixo, como narra a Teogonia hesiódica (vv. 459-60). É o que
observa Schüler mais à frente: “A prioridade lógica do ἄπειρον não nos obriga a pensar em prioridade cronológica”
(Id., ibid., p. 35); ou seja, aquilo que cabe às peripécias historiais diz apenas o tardio e evanescente. Essa tônica
epigonal do proceder ôntico não é de modo algum desconsiderada por Heráclito, todavia, tampouco lhe é furtada
uma concatenação mais radical, capaz de lhe conferir um legítimo estatuto de justiça ontológica. A prerrogativa, em
última e primeira instância, não reside unicamente na “prioridade lógica do ἄπειρον”, e tampouco naquilo que poderia
ser compreendido como sua inversão, ou seja, uma “prioridade cronológica”. A radical dissolução assinala, em
verdade, uma concatenação absoluta de toda e qualquer distinção e contraposição categorial ou principial, o que não
implica a isenção de discrições e de delimitações, senão enquanto empreendimento meramente unilateral. O fr. B23
de Heráclito evidencia justamente aquilo que não coube à ênfase de Anaximandro: “Ao nome da justiça [δίκης] não
ligariam, se tais coisas não existissem” (HERÁCLITO. “Fragmentos”. In: SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu
(dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 45). Essas “coisas” das quais dependem o referencial e o próprio
aparecimento da justiça – de acordo com o contexto donde o fragmento foi retirado, a saber, a obra Stromata (IV,
10), de Clemente de Alexandria – dizem respeito aos atos de injustiça, sem os quais os atos de justiça não seriam
reivindicados pelos homens. Note-se que – para além da significação jurídico-moral de tais atos – é apenas pelo apelo
do negativo que o sentido total de justiça aparece. A força do negativo, em sua efetividade, cumpre o acabamento de
liame da unidade e assim o faz como o lugar de gênese do Uno. É o que revela a forma verbal ᾔδεσαν (“ligariam”, na
tradução de Schüler), a qual pode advir de οἶδα (“conhecer”) ou de δέω (“ligar”). Desta feita, só na medida em que
os homens (no fragmento sob a forma do pronome oculto “eles”) atentam e atendem a tal liame originário é que
homologam, isto é, que dizem o mesmo que diz o λόγος – vitalidade reunidora de todas oposições e anteposições.
58
Como sublinha Charles Kahn: “É natural suspeitar de uma alusão velada às palavras de Anaximandro na
justaposição entre Conflito e Justiça que encontramos aqui [i.e., no fr. B80]” (KAHN, op. cit., p. 319).
59
É o que também observa Burnet: “A identidade que Heráclito explica como a que consiste na diferença é,
justamente, a da substância primordial, em todas as suas manifestações. Essa identidade já tinha sido percebida pelos
milésios, mas eles encontraram um obstáculo na diferença. Anaximandro tratara o conflito entre os contrários como
uma ‘injustiça’. O que o próprio Heráclito procurou mostrar foi, inversamente, que essa era a justiça suprema”
(BURNET, op. cit., p. 160).
60
HEGEL, op. cit., p. 44.
André Felipe Gonçalves Correia | 177

nascimento, o que se deixa ver no fr. B53 – conservado por Hipólito –, e


isto em função da hyponoia do “pai” (πατήρ): “De todas as coisas [πάντων]
a guerra [πόλεμος] é pai”61. Referencial tal que, além da acepção geradora
e consaguínea, evoca sobretudo o primado da unidade como Vida e da Vida
como una62.
V. Há ainda um elemento a ser enfatizado no fr. B80. Trata-se das
palavras de abertura, em que é dito: “É necessário [χρὴ] saber [εἰδέναι]”.
Tomemos o termo “necessário” conforme o rigor lógico-especulativo até
aqui evidenciado. O saber deve ser visto como elemento da totalidade. Mais
ainda, como a própria totalidade em sua suma atualização, em-si e para-
si, logo, sabendo-se de si como livre. Trata-se da ἐντελέχεια do Espírito
como pensamento, Ideia. O “saber” no fragmento, além do mais, traduz o
grego εἰδέναι – radical de “ideia” e do alemão Idee –, cujo étimo é o verbo
arcaico e poético εἴδομαι, que significa “aparecer”, “dar à vista”. Mas isso
que aparece, aparece desde si mesmo, como unidade polêmica, isto é,
como Ideia em movimento de auto-exposição, vindo à luz63. Fundamental
é discernir como se dá propriamente o nascimento desse saber para o
Espírito, sob a óptica da necessidade. Foi dito mais acima, entretanto, que
o em-si só vem à luz na existência. Porém, aí ainda não há propriamente
identidade entre necessidade e liberdade. É, com efeito, como existente que
o Espírito retorna a si e se realiza, mas só existe verdadeiramente como
livre ao voltar-se para si como de si ciente, ou seja, como “consciência-de-

61
HERÁCLITO, op. cit., p. 83. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
62
Atente-se ainda às palavras de Lebrun: “Hegel não elogia Heráclito por haver trazido a primeiro plano o conflito e
a cisão, mas por ter vislumbrado que o conflito é o avesso de uma totalização em descanso, de uma harmonia
imperialmente desenvolvida. O heraclitismo, se assim quisermos, torna-se pois um pacifismo irônico. Não é a luta
em si mesma que é justiça, porém a justiça que vem à luz através da luta” (LEBRUN, Gerard. O avesso da dialética.
Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia da Letras, 1988, p. 102).
63
Em questão está a suprassunção do sentido platônico de εἶδος e ἰδέα, tal como tratado no início do texto. Sentido
tal que não comporta a concreção de forma e conteúdo, ou seja, de essência e aparência; ao menos em suas últimas
consequências. A verdadeira existência do Espírito, enquanto experiência que faz sobre si mesma, se despoja dessa
cisão, e isso na medida em que sua exposição coincide com o saber de si, ou seja, como autêntica ciência. “Aqui”,
escreve Hegel na Fenomenologia, “a aparência se torna igual à essência” (HEGEL, op. cit., p. 82).
178 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

si” (Selbstbewusstsein). Só assim se ilumina efetivamente. Conforme


profere Hegel nas lições de inverno de 1823/24: : “O que é ser-em-si vem
à luz no ser-para-si”64. Ou conforme os termos da Fenomenologia: “Esse
em-si deve exteriorizar-se e vir-a-ser para-si mesmo, o que não significa
outra coisa que: deve pôr a consciência-de-si como um só consigo”65. Em
jogo está o lugar do homem no sistema.
Decerto que não há em Heráclito o referencial da consciência, ao
menos em seu emprego moderno, como cogito cartesiano ou como
subjetividade transcendental kantiana, uma vez que supra- e a-históricos.
O homem arcaico tampouco se definia pela sua mera particularidade, ou
seja, sua interioridade nada tinha a ver com o que dela se depreende, por
exemplo, contemporaneamente, como se o homem fosse uma questão de
realização pessoal, psicológica, individual, etc. O próprio do homem era
visto sempre a partir de um λόγος, isto é, do comum; portanto, já sempre
inserido numa comunidade (πόλις), num costume (ἦθος), num mundo
(κόσμος), enfim, num τρόπος, ou seja, direcionado conforme a maneira do
giro e da inversão (é o que diz o verbo τρέπω66), no sentido de que o
homem singular já é o cumprimento do homem universal, o qual,
entretanto, é filho de sua época, ou, em linguagem hegeliana, da vívida
presença do Espírito, que, por sua vez, nada tem a ver com um universal
abstrato, com um être suprême, de vez que dá testemunho de si em tudo
e através de tudo, na saga de sua formação. Com efeito, é o que diz
Heráclito no fr. B50, como vimos, ao instar o homem a não ouvi-lo
simplesmente, mas ao λόγος, na medida em que seu discurso dele parte.
Capital aqui é a própria necessidade de um tal discurso, ou seja, do
homem; do contrário o reino do imediato e do particular impor-se-ia e,

64
Id., op. cit., p. 98.
65
Id., op. cit., p. 40.
66
Donde τροπαί (“inversões”), do fr. B31.
André Felipe Gonçalves Correia | 179

dessarte, o Espírito não saberia de si. O homem diz a possibilidade


necessária em que a existência se apreende como tal, posto que volta-se
para si como e enquanto pensamento, o qual, com efeito, vige em toda
produtividade humana, seja teórica e/ou prática. O pensamento comum, e
não meramente particular, diz respeito a uma dinâmica de atualização da
vitalidade histórica do Espírito. A lida do homem, a rigor, nunca é privada,
todavia, a imediatez com que os momentos e as circunstâncias se lhe
apresentam, conduzem-no constantemente à inflamação da esfera
subjetiva, “como se” (ὡς) ela fosse efetiva e concreta. De acordo com o fr.
B2, transmitido por Sexto Empírico: “Embora sendo o λόγος comum
[ξυνοῦ], a massa vive como se tivesse um pensamento particular”67. O
termo “massa” traduz o grego πολλοί (donde “poli”, sob a acepção de vário
e múltiplo), ao passo que “particular”, o adjetivo ἴδιος (“privado”, donde
“idiota”). Idiotia, por conseguinte, evoca o sentido de multiplicidade
dispersa, alienada de sua com-posição. Uma sinóptica da marcha histórica
do homem poderia ser expressa como o desdobramento dos variados
níveis de alheamento e de comunhão na disciplina da consciência, cujo
nascedouro, enquanto consciência-de-si, Hegel atribui à época moderna,
da qual se serve e alavanca, inclusive no trato das épocas e do pensamento
precedentes, como no caso de Heráclito.
Toda consciência é consciência de algo. Pressupõe-se aqui, portanto,
a relação entre sujeito e objeto. Atente-se, contudo, ao que está implicado
no próprio termo “consciência”. Trata-se da ciência do comum. O mesmo
se aplica ao alemão Bewusstsein, do composto do verbo wissen (“saber”)
e da preposição bei (“junto de”, “na proximidade de”, “com”)68. É mister
apreender o trânsito entre sujeito e objeto sob óptica especulativa, e não

67
HERÁCLITO, op. cit., p. 41.
68
Não confundir com Gewissen, cujo prefixo ge- implica precisamente o sentido do “coletivo” e do “comum”, porém,
conforme o emprego do vocábulo, sob acepção moral; ao passo que o prefixo be- atrela-se mais a um sentido
epistemológico, tal como denota o adjetivo bewusst.
180 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

apenas representativa. Ou seja, esse algo de que se é ciente só apresenta-


se defronte porquanto já anteposto. Mas não no sentido transcendental,
em que o objeto aparece conforme prefiguração estrutural do sujeito, e
nunca nele mesmo. Pensado especulativamente, o objeto antecede o
sujeito como condição mesma de sua apreensão, isto é, nele mesmo.
Contudo, em-si ele é abstrato, de sorte que só vem a ser para-si no sujeito,
ou seja, como consciência. O mesmo se aplica ao sujeito, porém de modo
inverso. O sujeito cognoscente é um movimento em direção a algo, no
caso, ao objeto. Assim, ele de algum modo já se antepôs ao objeto. Porém,
apenas em-si. O objeto é a instância de alteração da qual pode-se cumprir
um retorno; de maneira que o sujeito se vê preenchido no e pelo objeto. A
suprassunção de ambos se dá como ato único, uma vez que só adquirem
consistência enquanto movimento especulativo. O sujeito em-si e o objeto
em-si são, desta feita, conceitos irrealizados. À medida que se realizam,
desvelam a unidade abstrata em que já se encontravam, ou seja, se
efetivam como experiência comum. A consciência exterior do objeto se
apreende assim como consciência interior do sujeito, ou seja, como
movimento de pôr-se a si mesmo para si mesmo como consciência-de-si,
de vez que esta, nos modos precedentes da consciência, já está implicada,
porém como algo outro que ela mesma. Escreve Hegel no final da seção III
da Fenomenologia: “Sem dúvida, a consciência de um Outro, de um objeto
em geral, é necessariamente consciência-de-si, ser refletido em si,
consciência de si mesma em seu ser-outro”69. A verdade do diverso é ser
num só, de modo que toda consciência concreta e efetiva só pode ser
consciência-de-si, círculo. Note-se ainda que a consciência-de-si que veio
a ser para si, precisa albergar a consciência em geral em seu decurso, sob
pena de abstração. Apenas assim a ciência do comum se torna saber

69
HEGEL, op. cit., p. 132.
André Felipe Gonçalves Correia | 181

universal. Daí a asserção presente no início da seção IV: “Com a


consciência-de-si entramos, pois, na terra pátria da verdade”70.
A consciência-de-si, na Fenomenologia, se apresenta como um degrau
da série de figuras da consciência, em que repercute o desenvolvimento
histórico do mundo exterior como interior – com-um. O Espírito se faz
Espírito caminhando para si mesmo, pois não há caminho sem caminhada.
É na consciência-de-si que o Espírito vem a ser para-si. Seu veículo é o
homem. Entenda-se este a partir do que poderíamos chamar de
necessidade ou dedução lógica, obviamente, em acepção especulativa: sem
caminho não há realização; todo caminho implica um distanciar-se,
alterar-se; quando o caminho é o caminho do que é, ou seja, o caminho de
todos os caminhos, então, ele é circular, cada passo à frente é um passo
para trás; todavia, conquanto em si, a cada passo sai de si; esta saída diz a
largada da experiência do que é; o que é, contudo, embora em si mesmo
abstrato, não é um puro vazio, mas sim o real em tendência, possibilidade
real (δύναμις precedida pela ἐνέργεια); a rigor, tal possibilidade não há,
uma vez que só na realização passa a ser; assim, apenas no caminho pode
haver apreensão de sua constituição; a ciência do caminho já é, com efeito,
o caminho da ciência; logo, todo saber só se apresenta como efetivo
enquanto ciência do comum, consciência; mas o comum significa a
concreção do um, de sorte que a consciência somente regressa à sua
“pátria”, à sua “verdade”, sob a figura da consciência-de-si acabada; e o
regresso que nela desponta é tão só a continuidade do caminho, porém na
esfera por excelência do saber. Não é à toa que o título inicial da
Fenomenologia do Espírito era Ciência da experiência da consciência. A
Fenomenologia é o caminho de constituição do Espírito. O fenômeno é a
coisa-em-si. E tal fenômeno, enquanto se perscruta, cresce em conjunto,

70
Id., ibid., p. 135.
182 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ou seja, o saber que aparece como consciência-de-si se sabe com o outro


já como outro, no mundo. Isso se dá, inclusive, na sua relação com outras
instâncias fenomenais, e mesmo com aquelas que se apresentam como
outras consciências-de-si, isto é, o mundo dos homens. A saga de formação
do Espírito se apreende, assim, veiculada à “formação humana”, à
“cultura” (Bildung), ou seja, ao cultivo histórico da e em direção à
consciência-de-si. O espírito subjetivo encontra-se, desta feita, sempre em
nexo intersubjetivo, porquanto universal71. Profere Hegel: “Daqui resulta,
pois, a relação do Espírito com o espírito humano. Embora a
individualidade se imagine ainda de modo inflexível e isolado, é preciso,
no entanto, abstrair de tal atomística”72. O modus operandi do homem se
caracteriza pelo atendimento ao λόγος, quer tenha despertado para isso ou
não. Isso se verifica em toda e qualquer atividade sua. Assim, sua
sonolência nunca é total, pois diz um modo privilegiado de pensamento –
é para-si, na totalidade de sua dinâmica própria, ato pensante, produção.
É isso o que diz Aristóteles, na Política (1253a1-10), ao defini-lo como o
vivente político (sempre já inserido numa πόλις) e racional (dotado de
λόγος), que vive e se desenvolve sob um influxo reunidor. Continua Hegel:

A diferença do individual e do universal deve, então, expressar-se de modo que


o espírito subjetivo, individual, seja o Espírito divino universal, enquanto este
se percepciona, enquanto se manifesta em cada sujeito, em cada homem. O
espírito que percepciona o Espírito absoluto é, pois, o espírito subjetivo.73

71
Tal como escreve Hyppolite, acerca da noção de Bildung: “A elevação do eu singular até o eu da humanidade, é, na
sua significação mais profunda, o que Hegel denomina ‘cultura’ (Bildung). Mas essa cultura não é somente aquela do
indivíduo, e não interessa apenas a ele; além disso, é um momento essencial do Todo, do Absoluto”, desse modo,
continua, “quando a consciência progride de experiência em experiência, e assim estende seu horizonte, o indivíduo
se eleva à humanidade, mas ao mesmo tempo a humanidade se torna consciente de si mesma” (HYPPOLITE, Jean.
Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Trad. Sílvio Rosa Filho; prefácio de Bento Prado Jr. 2ª ed.
São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 58).
72
HEGEL, op. cit., p. 169. Lições do semestre de inverno de 1825/26.
73
Id., ibid.
André Felipe Gonçalves Correia | 183

VI. O homem é o lugar e a hora do pensamento que se percepciona


como pensamento. Nele se abre a apercepção de que a dinâmica de
atualização do real é ela mesma dinâmica de pensamento, e que apenas
enquanto tal se lhe franqueia a descoberta e o exercício de sua liberdade.
O pensamento que pensa-se a si mesmo assume, em função de sua
estrutura especulativa, a demanda necessária do cumprimento da
liberdade não apenas sob acepção lógica, mas também histórica, ou seja,
no hemisfério em que a consciência experimenta-se a si mesma por
intermédio de sucessivas formas de saber, que são assumidas e abarcadas
pela forma suprema da ciência, a filosofia74. A linha de figuras que define
a formação do homem para o saber, delineada detalhadamente na
Fenomenologia do Espírito, expõe uma sequência de paradigmas
necessários que unem os momentos da cadeia da totalidade até à
conflagração do saber absoluto. A reconstrução do nexo lógico-historial
cabe, portanto, à esfera do puro pensar, a despeito de sua articulação
dialética para com o efetivamente real. O desenvolvimento necessário do
Espírito deve coincidir com a sua própria liberdade, e o caminho para a
sua devida apreensão é o caminho da formação do pensamento filosófico.
Hegel vê em Heráclito o momento da virada fundadora, pois nele
verifica, conforme as Preleções sobre a história da filosofia, “pela primeira
vez, a ideia filosófica em sua forma especulativa”75, ou seja, como gênese
do λόγος para o próprio λόγος. Portanto, a formação da consciência-de-si
assume em Heráclito um decisivo ponto de inflexão no elemento do puro
pensar, o qual se diferencia, com efeito, da exterioridade historial dos
acontecimentos, embora nela e atendendo a ela, ou seja, em seu interior.
Conforme dito, em Heráclito não há a linguagem da consciência. Esta

74
Conforme escreve Lima Vaz: “O caminho descrito pela Fenomenologia acompanha os passos da formação do
indivíduo para a ciência, ou, se quisermos, do homem ocidental para a Filosofia” (VAZ, H. C. de Lima. “Senhor e
Escravo: uma parábola da filosofia ocidental”. In: Revista Síntese, v. 8, n. 21, 1981, p. 16).
75
HEGEL, op. cit., p. 320.
184 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

emergirá apenas na Modernidade. A herança de Heráclito, embora situada


numa cadeia de desenvolvimento, tampouco diz respeito, porquanto
filosófica, a algo de obsoleto. A filosofia é una e viva. O que faculta o
trânsito entre as filosofias é justamente a vivacidade de sua unidade, de
sorte que voltar-se à Antiguidade mediante a linguagem da consciência se
afigura como o modo necessário da possibilidade de regresso histórico –
tendo em vista o mote presente donde se fala: Hegel e a Modernidade –,
uma vez que oferece uma dinâmica de renovação da mesma experiência,
não obstante sempre inserida no lugar e na hora que lhe competem, isto
é, na pauta do Zeitgeist. Diz Hegel, nas lições do inverno de 1827/28:
“Houve desde sempre apenas uma filosofia, o autoconhecer-se do
Espírito”76.
O destino do homem é o destino do saber de si, o que já resguarda
todo o seu horizonte produtivo, inclusive e não apenas aquele que remete
ao elemento do puro pensar. Mas, enquanto tal, o homem não é única e
exclusivamente homem, uma vez que encontra-se já sempre adiantado a
si mesmo, além, ou seja, de algum modo já fora de seu mundo, porém
também sempre comprometido com ele, aquém, isto é, largado e alienado.
Nesse sentido, o homem parece ser, de certo modo, a medida de todas as
coisas, conforme a máxima de Protágoras (Teeteto, 152a). Nele a totalidade
se encontra na encruzilhada que é. Em seu esforço de pensar com
radicalidade, a unidade total se lhe desvela como tal, porém de modo
desconcertante, dado que o faz à medida que também lhe imputa o
fracasso, pois esforço algum poderia atualizá-la de todo. Dito de outro
modo, a cada passo o absoluto se lhe desvela absolutamente, porém como
e enquanto momento. O saber de si, com efeito, não se desvencilha da
busca de si. Nenhuma atualização pode atualizar-se de modo a obstruir o

76
Id, op. cit., p. 117.
André Felipe Gonçalves Correia | 185

curso da dinâmica. A força imorredoura do Espírito consiste justamente


em ser a possibilidade de e em toda atualidade, e isso na medida em que
não se esgota em atualização alguma. A filosofia se apresenta, assim,
simultaneamente como ciência e caminho da ciência. Isso significa que só
a própria filosofia é critério de medida, e mais, critério de si mesma,
originária, posto que já sempre em seu elemento. Sua autopromoção
articula-se no reconhecimento da relação especulativo-historial, em que a
herança do já pensado em si mesma já se abre ao a se pensar como
demanda necessária do desenvolvimento, de maneira a facultar o apossar-
se de si do sistema no diálogo com a tradição. Escreve Hegel, na
Fenomenologia: “Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da
ciência – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber para ser saber
efetivo – é isso o que me proponho”77. Note-se que Hegel fala do que “se
aproxima” (es kommt näher), logo, trata-se de uma infinita proximidade,
ou intimidade, em que o saber, não obstante efetivo, já se encontra desde
sempre no caminho e a caminho de si. É o que expressa tão laconicamente
o fr. B122, que aparece como um dos verbetes do léxico bizantino Suda,
mediante um único vocábulo: “Aproximação”78; no sentido de
atendimento ao λόγος, pois “aproximar-se” (ἀγχιβατεῖν, no jônico de
Heráclito) significa “avançar” (βαίνειν) “tal como” (ἄγχι). Hegel, com
efeito, nunca deixou de se utilizar do termo filosofia no sentido de saber
efetivo. O homem, destarte, enquanto aquele para o qual se abre a
possibilidade de retorno a si como e enquanto pensamento, se difere dos
demais entes precisamente por ser espírito, embora, decerto, finito e
partilhando do que também cabe às existências cósmica e orgânica. O
diferencial, não obstante, se verifica já nas implicações de sua

77
Id, op. cit., p. 27.
78
HERÁCLITO, op. cit., p. 119.
186 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

individualidade. Se retomarmos o exemplo do germe79, nele haveremos de


constatar o seguinte: a sua duplicação calha em dois indivíduos, uma vez
que o novo germe, advindo do fruto, se difere do germe anterior, logo, não
há um retorno ao mesmo, mas a um outro; o mesmo se passa com a vida
animal: os filhos são indivíduos diferentes dos genitores, conquanto da
mesma natureza. “No espírito, pelo contrário”, diz Hegel, “é diferente;
justamente porque o espírito é livre, coincidem nele o começo e o termo”80.
Na duplicação do espírito o termo regressa ao seu começo, o que é em si
vem a ser para ele, em seu benefício como indivíduo, e não para um outro;
desta feita, vem a ser para si próprio. O espírito encontra-se em si no seu
ser outro, de modo que o que ele produz é ele mesmo, um chegar a si
próprio no seu outro, mas como o mesmo indivíduo. Meta e ponto de
partida se encontram, portanto, na mesmíssima individualidade. As
configurações naturais, conquanto existam, subjazem à necessidade, de
modo que são “existências inverdadeiras”81, isto é, não têm em si próprias
a sua verdade, não chegam a si. Tal é o caso, ademais e tanto mais, do
mundo sem história da mecânica newtoniana, o qual, sob óptica kantiana,
aparece ao sujeito nas formas acabadas das categorias do entendimento,
logo, abstratamente; embora, para Hegel, a leitura transcendental se
mostre insuficiente, pois tanto sujeito quanto fenômeno encontram-se
alheados do histórico.
Uma vez que o absoluto (ou a Ideia) é a concordância de conceito e
realidade, toda realidade constitui-se também de pensamento, mas apenas
no homem o pensamento é manifesto, autorreflexivo. O homem só é
pensante enquanto o universal é para ele. Quando ele diz, por exemplo,
“Eu”, mesmo em sentido trivial, o que está implicado é uma universalidade

79
Cf. nota 51.
80
HEGEL, op. cit., p. 102. Lições do semestre de inverno de 1823/24.
81
Id., ibid., p. 109.
André Felipe Gonçalves Correia | 187

que em si tudo contém, voltada para si, livre. Esse nível do Eu, todavia, em
si mesmo se evade de um confinamento solipsista, porquanto visa-se a si
como uma singularidade de todo determinada – logo, sob uma trama de
relações e ligamentos –, em que nada de particular é enunciado por si só.
Assim, cada um dos outros também é um “Eu”. Conforme a Enciclopédia
das ciências filosóficas (§24): “O Eu é o puro ser-para-si, em que toda
particularidade está negada e suprassumida”82. O Eu é o pensar enquanto
ser pensante. Nele, à medida que se subtrai toda particularidade, também
se envolve e se conserva tudo. Cada homem é este receptáculo universal,
em tudo que faz ou deixa de fazer, porque sempre pensante. A tendência
do livre é aperceber-se como cada vez mais livre, isto é, como cada vez
mais universal; assim, o Eu em si mesmo já implica o reconhecimento de
um outro Eu, ou seja, de um Nós, o qual, decerto, assume outro nível de
determinação, porém enquanto ampliação e reunião, dinâmica. A
comunhão dos homens diz respeito a uma consequência necessária do
pensar, em que o cuidado de si, enquanto meramente singular, é diluído
em face de seu concrescimento coletivo, cultural. É o que consta na seção
VI da Fenomenologia: “A exigência dessa dissolução só pode dirigir-se ao
espírito mesmo da cultura, para que de sua confusão retorne a si como
espírito e atinja uma consciência ainda mais alta”83.
O que há de “mais alto” nesse concrescimento é o autoconhecer-se do
Espírito, que na experiência por excelência da consciência-de-si assume a
forma do saber filosófico, o qual, a um tempo, diz a verdade da Ideia que
se sabe a si mesma e o conhecimento consciente de si do cognoscível na
esfera humana. Com efeito, a comunhão dos homens é uma tendência
crescente da própria liberdade do Espírito, da qual a filosofia é o
testemunho na esfera do puro pensar. O filósofo, embora encetado e

82
Id., op. cit., p. 79.
83
Id., op. cit., p. 362.
188 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

articulado numa teia histórico-universal, é também um homem


individual. Sua universalidade não se define apenas pelo seu γένος, tal
como se passa, por exemplo, com o animal, que nunca é para-si e cuja
universalidade vigora somente como gênero, além de encontrar-se
plenamente sob o influxo da imediatez. Escreve Hegel, na Enciclopédia
(§24): “O animal não pode falar ‘Eu’, mas só o homem, porque ele é o
pensar”84. A atividade do pensamento, da qual homem algum escapa,
decerto não lhe exime de sua parcela natural, biológica. O espírito
subjetivo diferencia-se do natural mantendo-se nele85. Essa discordância,
em verdade, só se apresenta sob a forma flexionante do pensar, de modo
que antes torna patente o abstrato do natural, ou seja, o concretiza como
pensamento, porém, na forma do pensamento, o que, com efeito, já é
também outro nível de abstração, conquanto universal. Não obstante, para
que a consciência-de-si alcance a sua identidade concreta faz-se necessário
que ela se encontre a si mesma no seu objeto exterior86, é esse o entorno,
inclusive, que faz com que Hegel, nos Cursos de Estética, privilegie a obra
humana em detrimento da obra natural87.
Também Heráclito, no fr. B101, conservado por Plutarco, escreve: “Eu
busco [ἐδιζησάμην] a mim mesmo”88. Passagem que para os biógrafos
antigos significava o fato de ele não ter tido mestre ou participado de

84
Id., op. cit., loc. cit.
85
Conforme escreve Charles Taylor: “O homem, portanto, opõe-se inevitavelmente a si mesmo. Ele é um animal
racional, o que significa um ser vivo e pensante, e só pode ser pensante porque é um ser vivo. Contudo, as exigências
do pensamento colocam-no em oposição à vida, ao que há nele de espontâneo e natural, de modo que ele é levado a
dividir-se, a criar uma distinção e a discordar no interior de si mesmo, onde originalmente havia uma unidade”
(TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 33).
86
É o que acentua Lima Vaz: “Em outras palavras, será necessário que a verdade do mundo das coisas e da vida
animal passe para a verdade do mundo humano, ou a verdade da natureza passe para a verdade da história” (VAZ,
op. cit., pp. 16-17).
87
De acordo com as preleções de filosofia da arte: “Pode-se desde já afirmar que o belo artístico está acima da
natureza. Pois a beleza artística é a beleza nascida e renascida do espírito e, quanto mais o espírito e suas produções
estão colocadas acima da natureza e seus fenômenos, tanto mais o belo artístico está acima da beleza da natureza”
(HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001, p. 28).
88
HERÁCLITO, op. cit., p. 107.
André Felipe Gonçalves Correia | 189

escolas, mas que também aponta para algo mais decisivo, sobretudo por
aludir a um dos ditames do Oráculo de Delfos, que virá a ecoar mais à
frente em Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás todo o universo
e os deuses”. É de se notar, em primeiro lugar, que o verbo δίζημαι
(“buscar”) está sob a forma do aoristo indicativo passivo, o qual
comumente é vertido para as formas pretéritas, todavia, trata-se ainda do
aoristo, cujo aspecto verbal é o da ação pura, sem determinação quanto à
duração, donde o indicativo presente da tradução. Assim, aquele que busca
a si, haverá de conservar-se na busca. O desconcerto se dá no paradoxo,
pois buscar a si só se afigura como possível se de si o homem já estiver
ausente, alterado, algo que convocar-lhe-ia a ir ao encontro de si
ininterruptamente. Mas ir ao encontro já é também encontrar-se, pois já
sempre no e desde o buscado, em si. Não se trata, portanto, nem de mera
falta nem de mera repleção; ou, conforme o fr. B66, transmitido por
Hipólito, precisamente de ambos: “carência e saciedade”89. Em segundo
lugar, na medida em que o fragmento de Heráclito faz referência ao
Oráculo de Delfos90, além, é claro, de não se tratar de um enunciado
moderno, faz-se necessário considerar o que se segue à expressão γνῶθι
σεαυτόν, a saber, “o conhecimento do universo e dos deuses”.
Para a experiência grega, o universo diz respeito ao μακρόκοσμος, ao
passo que o homem, ao μικρόκοσμος. Ambas as instâncias, entretanto, têm
nos deuses seu patrocínio vital, de gênese, aprendizagem e manutenção.
Os deuses perpassam toda a operatividade do mundo natural e do mundo
espiritual, por conseguinte, também aquilo que diz respeito ao orgânico e
ao político. Mas os deuses, ao menos desde o cânone homérico, se
apresentam preponderantemente sob aspecto humano, ou seja, mediante
o ponto de encontro e relação entre mortais e imortais. Sob tal liame está

89
Id., ibid., p. 81.
90
Menções diretas ao entorno délfico aparecem ainda nos frs. B92 e B93.
190 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

subscrito a mútua imbricação de realização e condição de realização,


respectivamente. Não há atividade humana que não seja apadroada – para
a ascensão ou para a queda – por um deus. Em contrapartida, a
esfericidade do humano compreende o campo privilegiado de efetivação
visado pelos deuses. De acordo com o fr. B62, também conservado por
Hipólito: “Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte destes,
morrendo a vida daqueles”91. Sob a perspectiva da religiosidade helênica,
ao menos em sua aplicação corriqueira, isto é, na vivência do homem
comum, soaria como um sacrilégio admitir uma tal dependência dos
imortais para com os mortais. Todavia, na própria experiência ordinária
do culto tal dependência se verifica, quando, p. ex., nas ocasiões em que os
deuses são honrados com oferendas, festividades e templos. Aí se admite,
a um tempo, reverência e conservação dos sempiternos, isto é, temor e
manutenção. Já Hesíodo, que evoca elementos do mundo pré-homérico
atrelados à vivência campesina, afirmara, em Os trabalhos e os dias (v.
108), que “da mesma origem nasceram deuses e homens”92, assim como
Píndaro, coetâneo beócio de Heráclito, na Ode Nemeia 6 (v. 1): “Uma só a
raça dos homens, uma só a dos deuses”93. Ou seja, se os deuses não
filosofam, porquanto sábios, conforme diz Platão n’O banquete (204a),
dessa sabedoria também o homem toma parte, conquanto finito94. O

91
HERÁCLITO, op. cit., p. 70.
92
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 29.
93
PÍNDARO. Epinícios e Fragmentos. Trad. Roosevelt Rocha. Curitiba: Kotter Editorial, 2018, p. 270.
94
Tal como observa Snell, o câmbio entre deuses e homens se dá sobretudo na esfera privilegiada do espírito, e não
nas demais virtualidades de ambos, em que ao mortal não cabe competir: “Quando Heráclito assinala as
reciprocidades cambiais entre deuses e homens, em pauta está a atividade do conhecimento” (SNELL, Bruno. Die
Entdeckung des Geistes: Studien zur Entstehung des europäischen Denkens bei den Griechen. Vandenhoeck &
Ruprecht Verlag, Göttingen, 2011, p. 91). Para um grego, uma competição entre deuses e homens está fora de questão.
A proveniência comum não tem que ver com dissolução das delimitações e competências específicas. Tal como
assevera Píndaro no verso seguinte da mesma Ode Nemeia: “E a partir de uma só mãe [ματρὸς] respiramos todos.
Mas nos separa todo um distinto poder [δύναμις]” (PÍNDARO, op. cit., loc. cit.). Não obstante a distinção, comungam
da mesma concatenação de origem, donde a possibilidade de igual homologação. Note-se, ademais, aquilo que parece
ser um contraponto especulativo do referencial paterno no fr. B53, a saber, a hyponoia da mãe, que assume na ode
pindárica o mesmo jaez de gênese e geração consaguínea.
André Felipe Gonçalves Correia | 191

preceito délfico já assinala o homem como a instância de encontro da


totalidade enquanto e como conhecimento, ou, em linguagem hegeliana,
consciência-de-si. Conforme escrito na Enciclopédia das ciências filosóficas
(§377), na abertura da Filosofia do Espírito:

O conhecimento do espírito é o mais concreto, portanto, o mais alto e o mais


difícil. Conhece-te a ti mesmo – esse mandamento absoluto não tem nem em
si, nem onde se apresenta historicamente como expresso, a significação de ser
apenas um autoconhecimento, segundo as particulares aptidões, o caráter, as
inclinações e as fraquezas do indivíduo; mas a significação do conhecimento
do verdadeiro do homem, como também do verdadeiro em si e para si – da
essência mesma como espírito.95

Assim, visto que essencial, o conhecimento de si encontra-se


franqueado a todos os homens. Vimos no fr. B113 que o pensar é comum
“a todos” (πᾶσι), porém sem especificação alguma, o que nos levou à
conclusão de que se tratava da totalidade dos entes, do comum a todas as
coisas. É no fr. B116, contudo, transmitido pela Antologia de Estobeu, que
se define com clareza o elemento idiossincrático do pensar humano: “Em
todos os homens [ἀνθρώποισι πᾶσι] está o conhecer a si mesmo e bem-
pensar”96. O verdadeiro do homem se lhe desvela ao voltar-se para si desde
si mesmo, num movimento de inserção e retorno. É apenas mediante o
“bem-pensar” (σωφρονεῖν), entretanto, que a possibilidade real do
conhecimento de si se alavanca como efetividade real. Importa
essencialmente, pois, que o que o homem em si é venha para ele a ser.
Todavia, o homem não é um deus, ou seja, sua vigília é oscilante, o λόγος
de todos os dias se lhe escapa com frequência, tal como se passa com
aqueles que dormem, donde as recorrentes precipitações e inflamações do

95
HEGEL, G. F. W. Enciclopédia das ciências filosóficas (vol. 3, A filosofia do espírito). Trad. Paulo Menezes, com
colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995, p. 7.
96
HERÁCLITO, op. cit., p. 117.
192 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

particular, conforme tratado no fr. B2. E isso tanto mais quando se trata
da concreção universal em que o λόγος desperta para si, isto é, na filosofia
como disciplina do conceito, do pensamento que a si próprio se apreende.
A temperança, ou o “bem-pensar”, que o grego chamava de σωφροσύνη,
solicita do homem o atendimento ao que lhe compete. Tende-se a entender
com isso que o seu lugar é aquele do meramente finito, tal como se lê, p.
ex., na lírica arcaica, cujas γνῶμαι (“máximas sapienciais”), atinentes à
medida no humano, têm por escolta, de um lado, trenos abundantes e, de
outro, satisfações comensais, como é o caso da mélica de Alceu e de Safo.
Mas o homem não é apenas o finito. Nele, o elemento especulativo se lhe
apresenta como apto a ser “agarrado” (gegriffen). A mais rudimentar
operatividade no âmbito da cultura já dá mostras de sua capacidade
reunidora, uma vez que possibilita-lhe, enquanto homem singular,
alavancar-se sobre si mesmo, lograr, por conseguinte, um alcance de
poder impossível a toda e qualquer envergadura meramente particular.
Tal entorno, contudo, já é desdobramento do conhecimento de si, o qual
não precisa estar posto em sua suma luminosidade para repercutir.
Destarte, tanto quanto a vigília, também a dormência do homem nunca é
completa. É o que diz Heráclito no fr. B75, conservado por Marco Aurélio:
“Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas que vêm a ser
no cosmo”97. Leia-se κόσμος aqui como abarcando a disposição total da
vitalidade do real, logo, nem como μακρόκοσμος nem como μικρόκοσμος
isolados, porém suprassumidos enquanto composição universal, de vez
que o que “nasce e vem a ser” (γίγνεται) no κόσμος é o próprio κόσμος, o
qual nada tem a ver com uma ordem morta ou estática. “O cosmo, o
mesmo para todos”, tal como consta no fr. B30 – registrado por Clemente
de Alexandria –, “sempre [ἀεὶ] foi, é e será fogo sempre vivo”98. Trata-se,

97
Id., ibid., p. 87. Cf. também o fr. B89.
98
Id., ibid., p. 61.
André Felipe Gonçalves Correia | 193

pois, de um princípio vital, que sob a forma do particípio presente ἀείζωον


(“sempre vivendo”) lhe confere identificação para com sua proveniência –
o λόγος vivo. É o que se depreende do fr. B1, o qual tanto Sexto Empírico
quanto Aristóteles atribuem ao começo de seu livro, desde há muito para
nós perdido: “Deste λόγος, sendo sempre [ἀεὶ], são os homens ignorantes
tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem”99. Heráclito se serve aqui
do mesmo verbo do fr. B50, quando insta o leitor a “ouvir” na sua palavra
não um mero enunciado particular, mas a ressonância do próprio λόγος.
Em questão está o verbo ἀκούω – donde “acústica” –, que significa “ouvir”
no sentido de “obedecer”, “prestar atenção”. O objeto da escuta é, com
efeito, a dimensão de anterioridade do próprio sujeito enquanto
propagação concreta. Ou seja, a obediência que se deve não atende a
arbitrariedade alguma, mas sim ao apelo da própria eternidade vivente, a
qual se desvela para si naquele que busca a si mesmo, isto é, no indivíduo
pensante. Assim, o discurso de Heráclito cumpre o papel de médium de si
mesmo como princípio universal, cosmo-lógico100.
VII. A dificuldade na empresa do autoconhecimento, acentuada por
Hegel, já aparece como um dos 20 ditos atribuídos a Tales de Mileto, o de
nº 9: “É difícil conhecer a si mesmo”101. No dito seguinte, entretanto,
consta uma versão em prosa de versos inscritos no propileu do santuário
de Leto, em Delos, cujo dístico era um consanguíneo jônico da inscrição

99
Id., ibid., p. 39. Não adentraremos aqui na longa polêmica concernente à pontuação do fragmento, iniciada com
Aristóteles (Retórica, 1.407b). Sugerimos, todavia, a solução proposta por Gadamer, que toma o impasse aristotélico
como um pseudo problema, passível de ser colocado como questão apenas por um leitor e não por um ouvinte, tal
como demandaria o texto e a época de Heráclito. É sabido que Platão, a despeito do apreço que nutria por Aristóteles,
o chamava, não sem certa ironia, de “o leitor” (ὁ ἀναγνώστης). Cf. GADAMER, Hans-Georg. “Heraklit-Studien”. In:
Der Anfang des Wissens. Reclam Verlag, Stuttgart, 2012, p. 55.
100
É o que também escreve Snell: “O único princípio vivente que atravessa o mundo é de natureza tautocronicamente
intelectual e vital”, de maneira que tal atravessamento abarca a si desde dentro de si, como homem, pois, conclui, “o
λόγος fala a partir do indivíduo” (SNELL, op. cit., p. 133).
101
DIELS, Hermann. Die Fragmente der Vorsokratiker (Band 2). Berlim: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1959,
p. 64.
194 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

délfica, conforme anotou Aristóteles102. Tal é o registro do dito de nº 10:


“A coisa mais doce é obter o que se deseja [ἐπιθυμεῖς]”103. Também Safo de
Lesbos, no mesmo período, se apropriara desse ditame délico (fr.16 Lobel-
Page, vv. 1-4), o que se nos afigura como bastante sugestivo, dado que, em
latim, o grego ἐπιθυμία ficou concupiscentia (donde “cupido”), embora a
poetiza tenha se utilizado do verbo correlato ἐράω (“desejar”, “amar
apaixonadamente”), donde Ἔρως, em grego, o que dá testemunho de sua
afamada piedade para com Afrodite104. O termo ἐπιθυμία, ademais, tem
por radical θυμός (“coração”, “apetite”), arrolado habitualmente às paixões
e ao caráter irascível do ânimo. Fato é que o dito nº 10 acentua como a
maior das solenidades a satisfação dos desejos. Heráclito, decerto, não
desconhecia a inscrição de Delos, assim como o próprio Tales, o qual,
inclusive, é mencionado no fr. B38. Tal como vimos em relação a
Anaximandro, Heráclito parece responder também à acentuação de Tales.
De acordo com fr. B110, transmitido por Estobeu: “Para os homens não é
melhor acontecer-lhes tudo o que querem”105. A obediência para com o
λόγος em muito se distingue do impulso volitivo no homem, o qual, com
efeito, lhe aproxima do caráter instintivo do animal, cujo visar, no que visa,
não reúne, isto é, vê apenas o singularizado. O apelo universal aí operante
volta-se sobretudo à imediatez da percepção e à consequente avidez de
consumação. A transição do dito de nº 9 para o dito de nº 10 dá mostras
de uma espécie de desistência do propriamente humano em face do
primado que rege as impressões sensíveis. O universal (ou o pensar),
embora comum a todos, só no homem percepciona-se a si, de sorte que a
mais louvável de suas aspirações não poderia corresponder à esfericidade

102
Cf. Ética a Nicômaco (1099a25) e Ética a Eudemo (1214a).
103
DIELS, op. cit., loc. cit.
104
Cf. SAFO. Fragmentos completos. Edição bilíngue; tradução, introdução e notas de Guilherme Gontijo Flores. São
Paulo: Editora 34, 2017, pp. 58-59.
105
HERÁCLITO, op. cit., p. 113.
André Felipe Gonçalves Correia | 195

dos apetites, o que não implica a anulação desses, mas sim a indicação de
seu devido lugar. Conforme escreve Hegel na Enciclopédia das ciências
filosóficas (§24):

O homem é pensante e é [um] universal; porém só é pensante enquanto o


universal é para ele. O animal também é em si [um] universal, mas o universal
não é, enquanto tal, para ele, mas [para ele] é o singular, somente e sempre.
O animal vê algo singular, p. ex., seu alimento, um homem, etc. No entanto,
tudo isso para ele é apenas algo singular.106

A falta que impulsiona o querer também acomete o homem, todavia,


nele, como vimos, o espírito se apreende como Espírito, o finito se
apercebe como infinito. Está em pauta a recíproca determinação entre
finito e infinito. O finito é finito somente na relação com o infinito e o
infinito é infinito somente não relação com o finito. O limite de um se
define pelo limite do outro, de modo que, conquanto contrapostos, se
refletem mutuamente. Cada um é a unidade de si e de seu outro, a qual se
efetiva na existência conforme a mediação de emergência do infinito como
finito e do finito como infinito, de maneira a cumprir o emergir total como
imediatidade relacional. Assim, é da natureza do finito ir além de si e
tornar-se infinito. Conforme a Ciência da Lógica (A Doutrina do Ser): “O
finito é o suprassumir de si mesmo, ele encerra em si sua negação, a
infinitude”107. A reconciliação da contradição, entretanto, cabe à ação do
“infinito da razão”, uma vez que sob o influxo do “infinito do
entendimento” entra em cena um “mau infinito”108. A consciência que
neste repousa não alcança jamais a sua liberdade, uma vez que encontra-
se na dependência de um outro não devidamente suprassumido na

106
HEGEL, op. cit., p. 79.
107
Id., op. cit., p. 156.
108
Id., ibid., p. 144.
196 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

passagem da verdade do mundo para a verdade da consciência-de-si. Sua


autossatisfação se lhe afigura, por conseguinte, prorrogada infinitamente,
porquanto alheada do verdadeiro conceito de infinito e marcada por uma
cadeia viciosa de carência e saciedade, que incessantemente conduz de um
singular a outro; mas não nos termos postos mais acima, conforme o fr.
B66 de Heráclito, em que carência e saciedade foram articuladas sob a
óptica do momento absoluto, isto é, do espírito que se abarca como
totalidade dinâmica. Assim, de modo ainda mais dramático que no caso do
animal, toda satisfação é por demais insatisfatória justamente por não
conduzir ao efetivo reconhecimento de si, postergado matematicamente
ad infinitum, dado que sob a óptica de cisão finitum non est capax infiniti;
símile, portanto, da desdita de um suprassensível que nunca se deixa
agarrar no sensível. A experiência da unidade do espírito aqui ainda não
se apreendeu como livre, precisamente porque liberdade não diz respeito
a satisfação volitiva do finito, mas a pensamento e reconhecimento, de vez
que todo conhecimento, incluso o de si, já é um reconhecer-se.
Esse entorno é desenvolvido ao longo da Fenomenologia do Espírito
sobretudo na passagem da “dialética do desejo” para a “dialética do
reconhecimento”, em que a obra assinala o direcionamento decisivo da
formação da consciência à sua destinação cada vez mais racional, cujo
campo de desdobramento diz respeito à significação das iniciativas de
cultura, isto é, ao mundo humano, em que se dá propriamente a
experiência do espírito, posto que, conforme a seção IV da Fenomenologia,
“a consciência-de-si só alcança sua satisfação em outra consciência-de-
si”109, isto é, na unidade dos opostos da conflagração de diversas
consciências-de-si para si essentes. Com efeito, a consciência-de-si é em si
e para si somente na medida em que é em si e para si para uma outra, isto

109
Id., op. cit., p. 141.
André Felipe Gonçalves Correia | 197

é, como algo reconhecido. Diríamos ainda – sob um artifício etimológico


indevido – que é este o sentido contido no termo Geist, pois diz o que “é”
(ist) “coletivo” (ge-)110. Entretanto, o caminho da liberdade nos demais
níveis de reconhecimento, inclusive prático e político, vive às expensas da
filosofia, do λόγος desperto, tanto daquele que antecede e prefigura os
acontecimentos quanto daquele que faz irromper o sentido dos
acontecimentos decorridos. A meta da comunidade dos homens e de suas
obras é o despertar para a necessidade da liberdade. O λόγος que se sabe
como λόγος, entrementes, assume no elemento do puro pensar um curso
diverso daquele do campo histórico-efetivo, conquanto nele. Mas a
verdade do saber é a verdade da liberdade. Tal como se lê na Enciclopédia
das ciências filosóficas (§440, adendo): “O espírito livre tem de ser
conhecido como a verdade que se sabe”111.
VIII. Como vimos, Hegel vê em Heráclito o despertar da ideia
filosófica em sua forma especulativa, isto é, como revelação lógica da
liberdade na disciplina do conceito. Dito de outro modo, como a flexão do
Uno sobre si mesmo na esfera do puro pensar. É forçoso que nos
detenhamos agora na gênese da filosofia na Grécia, ou seja, no nascedouro
do espírito pensante. Uma tal apreciação se faz necessária em todo estudo
dos primeiros filósofos, e, a rigor, em todo desempenho filosófico, pois o
que lá despontou é o que desponta agora. Os compêndios de história da
filosofia costumam situar o nascimento dessa na passagem do μῦθος para
o λόγος, como transição do domínio do alegórico para o domínio da razão.

110
A liberdade do indivíduo pressupõe, ironicamente, a desigualdade e a pluralidade, pois livre é aquele que obedece,
ou seja, aquele que ouve o λόγος, do qual, necessariamente, sempre parte. O reconhecimento do outro como um igual
é o que retira o homem tanto da diferença quanto da indiferença, pois cumpre um retorno a si a partir do com-um
da e na própria consciência-de-si. Conforme escreve Bourgeois: “Os outros também me são iguais; pois os outros são
universais da mesma forma que eu. Sou livre apenas na medida em que afirmo a liberdade dos outros e sou
reconhecido como livre pelos outros. A liberdade real pressupõe numerosos seres livres. A liberdade só é uma
liberdade efetiva, existente, no seio de uma pluralidade de homens” (BOURGEOIS, Bernard. O pensamento político
de Hegel. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 102). É o que, ademais, diz Hegel na Fenomenologia (IV): “Eu, que
é Nós, Nós que é Eu” (HEGEL, op. cit., p. 142).
111
Id., op. cit., p. 211.
198 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Com o começo da filosofia, portanto, diz Hegel nas Preleções sobre a


história da filosofia, “está apaziguada [beruhigt] a fantasia selvagem e
infinitamente colorida de Homero”112. O domínio propriamente dito da
ciência apresentar-se-ia, assim, como superação do irracional pelo
racional, logo, como um distanciar-se de tudo aquilo que compete à
multiface do estorial, ou ainda, ao império da imediatidade sensível.
Também Heráclito se expressa com termos severos perante o primado de
organização do real empreendido pela tradição homérica: “Esse Homero
merece ser expulso dos concursos e abastonado [ῥαπίζεσθαι]”113, conforme
o fr. B42, transmitido por Diógenes Laércio. O grego ῥαπίζω foi vertido
para o português mediante o verbo “abastonar”. Faz alusão, portanto, ao
ῥάβδος, bastão que os rapsodos costumavam usar nas competições de
poesia. Parece indicar, assim, que o instrumento do aedo mereceria ser
utilizado, antes de tudo, para o flagelo de seu próprio portador114.
Todavia, tanto em Heráclito quanto em Hegel, não se trata de mero
abandono do μῦθος via cesura, sobretudo em função do esteio mítico
fundamental, isto é, o divino em sua manifestação. O discurso heraclítico,
com efeito, é perpassado por recursos de índole poética e imagética, além,
é claro, de um forte apelo piedoso, que atende ao mesmo panteão da
tradição homérica. Lembremo-nos, inclusive, que o efésio depositara seu
livro no templo de Ártemis, sua única destinatária115. A emergência do
λόγος na esfera do puro pensar, em verdade, diz o despertar no homem
para a realidade que é a sua, no caso, o mundo mítico, o qual, agora, passa
a ser percepcionado sob o sentido de seu sentido, isto é, como discurso ou
unidade de sentido que se apercebe como tal, como λόγος. Note-se que, ao

112
Id., op. cit., p. 203.
113
HERÁCLITO, op. cit., p. 67.
114
Cf. fr. B104.
115
Cf. LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora
Universitária de Brasília, 2008, IX6, p. 252.
André Felipe Gonçalves Correia | 199

mencionar Homero, Hegel se utilizou do verbo beruhigen (“apaziguar”,


“aquietar”), logo, não se trata de repulsa, mas antes de contenção, no
sentido de negar a acentuação não-flexionante do μῦθος num movimento
de conservação e elevação (Aufhebung). O λόγος é reunidor, acima de tudo,
por remontar à unidade arcaica da qual se articula toda e qualquer
reunião, sentido ou multiplicidade. O mítico só é visto em sua verdade, ou
seja, como o λόγος que é, a partir do λόγος116. Atentemos às palavras do fr.
B32, conservado por Clemente de Alexandria: “Um, o único sábio [ἓν τὸ
σοφὸν], consente e não consente em ser chamado pelo nome de Zeus
[Ζηνὸς]”117. Aqui, o nexo mito-lógico assume forma exemplar.
O fragmento é de uma riqueza incomparável. Pontuaremos, contudo,
apenas três aspectos que se nos apresentam como os mais significativos.
Em primeiro lugar, o emprego do adjetivo neutro σοφόν (sábio), o mesmo
do fr. B50. Neste diz-se que sabedoria é dizer o que diz o λόγος, a saber, ἕν
πάντα (“tudo é um”). Sábio é aquele que homologa. Em questão está a
unidade do saber. Mas o saber, enquanto único, sabe apenas o que é, o
“um”, do qual, com o qual e para o qual “tudo” acena. A neutralidade do
adjetivo, ademais, não confere ao “único sábio” determinação alguma, de
vez que reporta-se à instância primária de toda determinidade, o que
implica, por conseguinte, gênese e formação do Uno como o pôr-se de si
desde si mesmo, e mais, como saber de si. O Uno é Saber. Em segundo
lugar, fica clara a denúncia contra a operatividade do entendimento, pois
a razão reúne e suprassume o que a mera imediatidade separa. O papel
que a tradição homérica atribui a Zeus – πατήρ ανδρών τε θεών τε118 – não
precisa ser deposto, mas tampouco enaltecido em seu caráter

116
Cf. FOGEL, Gilvan. “Que é Europa, Ocidente?”. In: Sobre homem e história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019, p. 95
e ss.
117
HERÁCLITO, op. cit., p. 62.
118
Do grego: “Pai dos homens e dos deuses”. Designação verificada em inúmeras passagens da Ilíada (I, v.544, IV,
v.68, etc.) e da Odisseia (XII, v.445), assim como em Trabalhos e Dias (v. 59) e na Teogonia (vv. 47, 457, etc.).
200 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

representativo, uma vez que sua narratividade não encerra o elemento


sapiencial, o λόγος que se sabe como tal119. Ζεύς – ou, no beócio e no
lacônio, Δεύς – é “o que faz tudo realizar-se, aquele que, sentado ao lado
de Têmis, inclina-se para ela e conversa”120, tal como consta no Hino
Homérico XXIII, a ele dedicado. Têmis é a Justiça. Com ela Zeus estabelece
uma relação capital. Justiça, em sua suma elevação e anterioridade, diz
respeito à Justiça do Uno. Lembremo-nos da hyponoia do “pai” (πατήρ)
presente no fr. B53, em que a “guerra” (πόλεμος) é articulada por
intermédio das noções de geração e de unidade, de modo a conferir ao
gerado a mesma radicalidade do gerador, em inserção circular, conforme
a harmonia flexionante de justiça à diferença e justiça à unidade,
trabalhadas mais acima. A totalidade da realização do real diz, assim, a
dinâmica do um, isto é, o primado especulativo em e para si do absoluto.
O Uno é Devir. Em terceiro lugar, a adoção do genitivo Ζηνός (antiga
forma poética), para se referir a Zeus, e não a do usual Διός (forma
prosaica padrão), como no fr. B120121. Ζηνός deriva de ζῆν (“viver”), forma
infinitiva do verbo ζάω (no jônico de Heráclito: ζώω), donde ζωή (“vida”).
O deus se afigura, destarte, não apenas como procedência da vida –
segundo o recurso etimológico de apreender a legitimidade dos nomes, tal
como apresentado no Crátilo (396b)122 –, mas também como a Vida

119
Veja-se o que é dito por Kirk, Raven e Schofield: “Heráclito seguiu os passos de Xenófanes ao ridicularizar o
antropomorfismo e a idolatria da religião olímpica contemporânea. Todavia”, continuam, “ele não repudiou
totalmente a ideia de divindade, ou mesmo algumas descrições convencionais dessa divindade” (KIRK, RAVEN e
SCHOFIELD. Os filósofos Pré-socráticos. Trad. Carlos Alberto Louro. 7ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa:
2010, pp. 217-18). A referência em pauta é o fr. B5, que censura as preces dirigidas a imagens e estátuas, uma vez
que inadequadas ao devido reconhecimento do divino. O que Heráclito repreende, na verdade, é o culto tradicional,
de feição meramente sensualista. Para um estudo do vínculo entre Heráclito e Xenófanes, cf. o artigo de minha
autoria intitulado Heráclito e a ontoteologia eleata: um estudo de ordem hegeliana (CORREIA, André F. G. In: Revista
Húmus, vol. 11, nº 32, 2021, pp. 95-120).
120
HOMERO. Hinos Homéricos. Tradução, notas e estudo/Edvanda Bonavina da Rosa [et al.]. São Paulo: Editora
UNESP, 2010, p. 526.
121
Cf. KAHN, op. cit., pp. 424-25.
122
Escreve Platão: “Com muito acerto foi denominado o deus dessa maneira, por ser através dele (διά) que todos os
seres alcançam a vida (ζῆν)” (PLATÃO. Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: UFPA, 1973, p. 136). A
André Felipe Gonçalves Correia | 201

mesma, ou ainda, a vida da vida, o que lhe retira da esfera meramente


representativa de senhor do Olimpo, isto é, como deus entre deuses, a
despeito de seu posto de deus dos deuses. O Uno é o λόγος vivo. Diria
Hegel: o Espírito divino-sapiencial.
Já em 1803, quando ocupava uma cátedra na Universidade de Iena,
no escrito pré-Fenomenologia intitulado Fé e Saber, Hegel atenta para o
perigo em conceber a filosofia sob a óptica de cisão. Na ocasião, se debruça
sobre a racionalidade do Iluminismo, que à época, com Kant ainda em
vida, encontrava-se em seu último período. O autoconhecimento da razão
ilustrada se impõe a partir da confiabilidade de seus próprios limites, cujo
direcionamento tem por objeto sempre o finito e o empírico, uma vez que
o Eterno, segundo crê, se lhe escapa de todo. O absoluto encontrar-se-ia,
assim, acima e além da razão. O credo ut intelligam se apresenta como seu
único refúgio, porquanto não passível de apreensão racional, vazio para o
conhecimento. Escreve Hegel, no texto supracitado: “Esse espaço infinito
e vazio do saber somente pode ser preenchido com a subjetividade do
ansiar e do pressentir”123. A razão iluminista, por não albergar a sua
própria negatividade, depreda-se a si mesma como razão, como filosofia.
Nela impera um severo vício, a saber, o de querer que o saber finito tome
o lugar do saber infinito, intento tal que, nos momentos de lucidez, sempre
volta a desembocar na apercepção de sua impossibilidade e no
consequente saudosismo para com o absoluto. Continua Hegel: “O que
outrora significava a morte da filosofia, isto é, que a razão deveria
renunciar ao seu ser no absoluto, excluir-se dele e apenas reagir
negativamente a ele, tornou-se agora o ponto culminante da filosofia”124.

preposição διά (“através”) e o infinitivo ζῆν (“viver”) acentuam os dois modos de nomear Zeus, tal como consta um
pouco antes, em 396a: “Uns lhe chamam Ζῆνα, e outros, Δία” (Id., ibid.).
123
HEGEL, G. W. F. Glauben und Wissen (Werke, Band 2). Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 1986, p. 289.
124
Id., ibid.
202 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

A crise dessa racionalidade, em verdade, é uma crise do entendimento, da


razão finita que ainda não se iluminou. O Iluminismo, de acordo com os
termos da Fenomenologia, é, com efeito, “pouco iluminado sobre si
mesmo”125. O conteúdo e os entraves da fé são os mesmos da filosofia, a
diferença reside na forma e no encaminhamento da apresentação, a qual
tanto mais justiça ao conteúdo faz quanto mais apta a revelá-lo for, isto é,
de trazê-lo à consciência sob o aspecto puro do pensar – do discurso lógico
e suas necessárias implicações. Aqui, o credo é suprassumido no saber126.
No contexto de Heráclito: o λόγος traz consigo o μῦθος; ao passo que este,
de per si, é o sono daquele127.
Mencionemos ainda um outro aspecto da crítica de Heráclito a
Homero. Trata-se do fr. A22, conservado na Ética a Eudemo (1235a25)128.
Aristóteles diz que o pensador censura o poeta pelo verso 107 do Canto
XVIII da Ilíada, em que Aquiles, assolado pela perda do amigo dileto,
Pátroclo, exclama para que “a discórdia [ἔρις] desapareça da vista dos
deuses e dos homens”129. O objeto da crítica diz respeito à desatenção para
com a “justiça” [δίκη] da “discórdia” [ἔρις], tal como vimos no fr. B80.
Cessar a guerra resultaria na supressão da realização do real, de vez que o
verdadeiro é a unidade das tensões contrárias. É necessário, contudo, levar
em conta que a fala de Aquiles – “dos heróis o mais forte” (XVIII, v. 170)130
–, é oriunda do desespero e da inflamação do finito, o qual, ao se deparar
com sua debilidade mortal, perde a convicção em sua altivez e acaba por

125
Id., op. cit., p. 389.
126
Conforme escreve Santos: “Entre o credo ut intelligam e o intelligo ut credam, a segunda alternativa tem a
vantagem de dar tempo à paciência do conceito para fundamentar as convicções” (SANTOS, José Henrique. O
trabalho do negativo. Ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Loyola, 2007, p. 15).
127
Cf. frs. A23 e B74.
128
Para uma tradução direta do grego da seção DK22A (referências biográficas e bibliográficas, síntese de doutrina,
etc.), cf. a versão de Eudoro de Sousa, publicada em 1954 pela Revista Brasileira de Filosofia, cuja reedição pode ser
encontrada nos Anais de filosofia clássica, vol. XI, nº 21, 2017.
129
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classic Companhia das Letras, 2013, p. 523.
130
Id., Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 390.
André Felipe Gonçalves Correia | 203

ceder à sanha do arbítrio singular. O herói é, com efeito, o mais passional


da campanha de Ílion; disso dá testemunho já o Canto I. Homero, assim,
parece indicar com a exclamação do herói justamente o contrário, isto é,
que tais palavras não devem ser levadas em conta, pois, como vimos no fr.
B110, “para os homens não é melhor acontecer-lhes tudo o que querem”.
A este fragmento, dada a patente continuidade, poderíamos anexar o fr.
B102, conservado por Porfírio: “Para o deus [θεῷ] todas as coisas [πάντα]
são belas, boas e justas; os homens, porém, consideram injustas umas
coisas e justas, outras”131. Há aqui uma nuance decisiva. Em pauta não está
a cessação dos valores de ordem humana, senão enquanto tomados como
critério único de apreciação, cujo proceder corriqueiro tende tão só à
discriminação. Sob a óptica da totalidade (πάντα) – no fragmento mediante
a forma do dativo singular do substantivo θεός, portanto, sem indicação
específica, salvo o da unidade (ἕν) do divino, comum a deuses e homens –
, faz-se necessário assumir a postura da distância, a despeito da força e da
insistência dos interesses humanos imediatos. Um tal porte de feitio sobre-
humano só se entreabre ao homem, mesmo enquanto elucubração
contemplativa, por acenar ao sobressalto de sua própria ossatura de
origem. Esse distanciamento é bem ilustrado no Canto IV (vv. 3-4) da
Ilíada, que expõe o contraste entre o morticínio na cidadela de Ílion e a
contemplação bem-aventurada dos sempiternos: “Brindavam-se uns aos
outros com as taças douradas, ao mesmo tempo que observavam a cidade
dos troianos”132. Sob esse fio condutor, Heráclito e Homero comungam do
mesmo parecer. Também Píndaro, na Ode Olímpica 9 (v. 41), dá
seguimento ao mesmo tema com a seguinte rogativa: “Deixa a batalha e
toda guerra distante dos imortais”133. Aqui, todavia, a censura se volta à

131
HERÁCLITO, op. cit., p. 107.
132
HOMERO, op. cit., p. 179. Trad. Frederico Lourenço.
133
PÍNDARO, op. cit., p. 128.
204 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

representatividade épica da guerra, que submete a esfericidade exemplar


dos deuses às querelas armadas e/ou verbais, seja delas tomando parte
(inclusive entre eles mesmos) seja as fitando de longe. Píndaro, aedo de
índole altamente piedosa, não endossa a “coloração selvagem” – nos
termos de Hegel – da narrativa de Homero (e, por extensão, também de
Hesíodo, representantes máximos do mesmo gênero poético). A justiça da
guerra, porquanto divina, precisa ser exposta sob outro veículo, distinto
do modo de expressão da discórdia vulgar, em que impera o domínio do
meramente humano, vigente tanto no desamparo de Aquiles quanto no
recurso da distância contemplativa, o qual, sob o manto dos deuses, não
patenteia os vieses de indiferença e de horror que o movem. Desta feita, a
crítica de Heráclito a Homero é reposta134. Vejamos.
A enunciação homérica precisa ser alçada a um patamar mais elevado
e condigno. Píndaro, conquanto poeta, segue um direcionamento de rigor
semelhante ao de Heráclito. Sua tentativa de soerguer o cânone mítico,
defasado à época em função do seguimento da lírica135, se verifica no
exercício de pô-lo em pauta desde ele mesmo, isto é, como λόγος, embora
sob a forma da mélica136. O fundamental aqui diz respeito ao modo
mediante o qual o homem traz para si a sua própria constituição
relacional, como ponto de encontro que se sabe como e enquanto fundação
dos opostos, guerra com-um. É o que diz Hegel nas Preleções sobre a

134
Para uma continuidade da relação entre poesia e pensamento arcaicos sob as figurações de Homero e Heráclito,
tendo por mote o nascimento da filosofia, cf. o artigo de minha autoria intitulado Pensamento e Sacrifício:
considerações a partir de Hegel e de Heráclito (CORREIA, André F. G. In: Cadernos Zygmunt Bauman, vol. 11, nº 26,
2021, pp. 27-54).
135
Caracterizada pela expressão dos sentimentos individuais em detrimento do culto na poesia, o que desencadeou
diversas modalidades seculares de caráter circunstancial, sobretudo no segmento dos hinos, conforme observa
Jaeger, em que “era cada vez mais frívola a ‘musa que ganha dinheiro’” (JAEGER, Werner. Paideia: A formação do
homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 254).
136
Bruno Snell, John Burnet, Werner Jaeger e Charles Kahn, referenciados ao longo de nosso percurso, são alguns
dos estudiosos que sustentam o paralelo entre Píndaro e Heráclito, o qual se lhes parece mais eficaz do que as
anotações modernas à interpretação de ambos. Cf. o texto de minha autoria intitulado Píndaro e Heráclito – acerca
de μῦθος e λόγος (CORREIA, André F. G. In: Cadernos Zygmunt Bauman, vol. 10, nº 24, 2020, pp. 250-268).
André Felipe Gonçalves Correia | 205

filosofia da religião: “Não se trata das Colunas de Héracles, em feroz


enfrentamento uma diante da outra”, uma vez que “manter-se unido,
relacionar-se é propriamente aquilo que está combatendo no um e unindo
no combate”, assim, finaliza, “eu não sou um dos termos em combate, mas
ambos os combatentes e o próprio combate”137. A guerra é o movimento
que faz com que toda independência e indiferença seja deposta, de modo
que só é vitoriosa a aptidão de conciliar (versöhnen), cujo entorno, no
exercício da letra poética em geral, acaba por enevoar-lhe o sentido, o
λόγος. O discurso do princípio divino da guerra não está em seu elemento
quando se apresenta sob a forma do desequilíbrio, da sanguinolência e da
paixão, tal como ilustra a Ilíada. O autopensar-se do pensamento, isto é,
“o saber absoluto, ou o espírito que se sabe como espírito”138, conforme o
último parágrafo da Fenomenologia, tem sua gênese na e como filosofia.
Nesta, o elemento representativo e alegórico, em última instância, é posto
como recurso didático, sem pretensões de edificação, sobretudo em função
de seu uso discreto e/ou concentrado.
A letra filosófica, enquanto razão que a si mesma se apreende, é o
ponto de partida e de chegada da educação do espírito. “A história da
filosofia”, como diz Hegel na ocasião de sua aula inaugural na
Universidade de Heidelberg, em 1816, “expõe-nos a galeria dos nobres
espíritos que, graças à ousadia da sua razão, penetraram na natureza das
coisas do homem, e na natureza de Deus”139. Seria necessário ainda que
percorrêssemos o caminho dialético entre história da filosofia e filosofia
em geral, além de uma última parada no liame entre fé e saber, entre μῦθος
e λόγος, da qual nos serviremos aqui a nível de súmula e de reticências,

137
HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Religion I (Werke, Band 16). Suhrkamp Verlag: Frankfurt
am Main, 1986, p. 69.
138
Id., op. cit., p. 545.
139
Id., op. cit., p. 13.
206 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

que poderão ser preenchidas em uma próxima ocasião. Vimos que a


figuração tradicional de Zeus, conforme o fr. B32, é, a um tempo, negada,
conservada e elevada, de modo a deflagrar o absoluto enquanto totalidade
una ou unidade total – ἕν πάντα. Ele também é descrito como aquele que
consente e não consente em ser chamado de “o único sábio” (ἓν τὸ σοφὸν).
É patente a aderência a algo que, no interior da própria disposição padrão
da religiosidade helênica, se lhe escapa, ao menos na ênfase de sua letra.
Trata-se da sapiência do Uno enquanto aquilo que, na e através da
multiplicidade, a rege. Em outros termos, Zeus é abarcado por Heráclito
como o ponto de inflexão em que a acentuação politeísta desemboca
dialeticamente em monoteísmo140, ou seja, em oposição includente, uma
vez que dialética, desde a Antiguidade, evoca precisamente o jogo dos
contrários, ou, na linguagem de Hegel, o processo do absoluto, pois confere
mobilidade ao imóvel e imobilidade ao móvel, como co-incidência de
dinâmica e repouso141. O método dialético se apresenta assim como
necessário à ossatura do discurso, porquanto reflexivo e oriundo da
estrutura processual do absoluto, logo, não diz respeito a um método
arbitrário, mas ao próprio caminho (ὁδός) mediante o qual a letra do
espírito dá testemunho de sua verdade. Como diz Hegel, nas Preleções
sobre a história da filosofia: “Heráclito concebe o próprio absoluto como
processo, como a dialética mesma”142.

Referências

ANAXIMANDRO. “Fragmentos”. In: Pré-socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza. São


Paulo: Editora Nova Cultura, 1999.

140
Kahn o chama de “super-Zeus” (KAHN, op. cit., p. 437).
141
Como bem resumem as palavras de Heidegger: “Desde o tempo de Platão, e sobretudo a partir da metafísica do
Idealismo Alemão, chama-se de dialético o pensamento das oposições em sua unidade elevada” (HEIDEGGER, op.
cit., p. 48).
142
HEGEL, op. cit., p. 319.
André Felipe Gonçalves Correia | 207

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7

Caráter e destino: a psicologia moral de Aristóteles

Francisco Moraes 1

ἦθος ἀνθρώπου δαίμων


Ηeráclito

Introdução: psicologia natural e psicologia moral

As investigações aristotélicas sobre a alma comportam objetivos


distintos e são desenvolvidas em tratados que apresentam diferenças
fundamentais do ponto de vista metodológico. Há em Aristóteles uma
psicologia moral e uma psicologia natural, que, embora não sejam
estranhas entre si, não admitem serem consideradas como se uma
fornecesse o fundamento para a outra. Em sua psicologia moral, elaborada
nos tratados éticos, a preocupação fundamental de Aristóteles é de
natureza prática. Trata-se de determinar, com a máxima clareza possível,
a obra ou função do homem (τὸ ἔργον τοῦ ἀνθρώπου), a fim de orientar
desse modo os esforços políticos para alcançá-la concretamente na ação.
Não se busca simplesmente conhecer, pois o próprio conhecimento só se
justifica aqui em virtude de sua utilidade2. Já o mesmo não pode ser dito
da psicologia natural elaborada em De anima. Localizadas no âmbito de
sua filosofia da natureza, as investigações sobre a alma realizadas neste
tratado são de cunho teorético, ou seja, seu objetivo é pura e simplesmente

1
Professor associado de filosofia na UFRRJ e membro do Programa de Pós-graduação em filosofia da UFRJ (PPGF) e
do Programa de Pós-graduação em filosofia da UFRRJ (PPGFIL). E-mail: fjdmoraes@gmail.com
2
“Como a presente disciplina não visa ao conhecimento, como as outras visam (pois inquirimos não para saber o
que é a virtude, mas para tornar-nos bons, dado que, de outro modo, em nada seria útil), é necessário investigar o
que concerne às ações, como devemos praticá-las, pois são elas que determinam também que as disposições sejam
de certa qualidade, como dissemos.” Ética a Nicômaco, II, 2, 1103 b 25-31.
Francisco Moraes | 213

conhecer. Nesse sentido, o fato de incluir a matéria como dimensão


significativa da investigação, marca característica de sua filosofia segunda,
não diminui a distância da psicologia natural do De anima em relação à
psicologia moral dos tratados éticos. A diferença fica ainda mais evidente
se observarmos um aspecto metodológico comum: Aristóteles dedica o
primeiro livro do De anima a uma recensão das doutrinas filosóficas
existentes sobre a alma e o primeiro livro da Ética a Nicômaco a uma
recensão das opiniões reputadas (ἐνδόξα) sobre o bem humano, ou seja,
sobre a felicidade (εὐδαιμονία). O acesso à alma, na psicologia natural, é
mediado pelas doutrinas filosóficas existentes, mas o acesso ao bem
humano passa, fundamentalmente, pela autointerpretação da existência,
o que exige levar em consideração, lado a lado, as opiniões dos sábios e as
opiniões da maioria dos homens, sem que as primeiras levem a preterir
ou invalidar automaticamente as segundas. O empenho de Aristóteles será
aqui o de elaborar uma concepção do bem humano que compatibilize essas
opiniões divergentes, como se algo de verdadeiro pudesse ser encontrado
em todas elas3.
Se atentarmos, por outro lado, para o De anima, logo de saída
notaremos que Aristóteles se posiciona criticamente em relação àqueles
que se pronunciam e investigam sobre a alma parecendo ter em vista
apenas a alma humana4. Sobre as partes ou “capacidades” da alma,
Aristóteles menciona as seguintes: nutritiva (θρεπτική), sensitiva
(αἰσθητική), raciocinativa (διανοητική) e de movimento (κινήσει). As
diferenças mais relevantes em relação à psicologia moral desenvolvida na
Ética a Nicômaco, são as seguintes: 1. Coextensividade de sensação e

3
As opiniões reputadas, recolhidas e comentadas por Aristóteles no livro I da Ética a Nicômaco, correspondem a
modos de vida reconhecíveis: a vida contemplativa (βίος θεορητικός), a vida política (βίος πολιτικός) e a vida aprazível
(βίος απολαυστικός). EN, I, 5, 1195 b 16-19. O primeiro modo de vida identifica a felicidade, como bem final, com a
inteligência (νοῦς), o segundo com a honra (τιμή) e o terceiro com o prazer (ἡδονή). EN, I, 7, 1097 b 1-6.
4
De anima, 402 b 4-5.
214 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

desejo: “pois onde existe sensação, existe dor e prazer; e, onde eles
existem, necessariamente também existe desejo”5. Semelhante imbricação
não é encontrada na Ética a Nicômaco, sendo antes relevada a parte
desejante da alma numa relação estrutural de escuta e de virtual
obediência à razão6; 2. A ênfase no ser separado do intelecto, o qual
Aristóteles nomeia “um outro gênero de alma” (ψυχῆς γένος ἕτερον), que
pode ser separado assim como o eterno é separado do corruptível7. Em sua
psicologia moral, Aristóteles considera praticamente inseparáveis desejo e
intelecto. Aqui, trata-se da alma humana na perspectiva de seu exercício
característico, a escolha deliberada: “a escolha deliberada (προαίρεσις) é
um intelecto desejante (ὀρεκτικὸς νοῦς) ou um desejo pensante (ὄρεξις
διανοητική), e este princípio é um homem”8.
Em sua psicologia moral, Aristóteles menciona, grosso modo, duas
partes da alma: uma parte é não racional (ἄλογον) enquanto a outra é
dotada de razão (λόγον ἔχον)9. Outras duas subdivisões são introduzidas.
Numa delas, a parte não racional é dividida em parte vegetativa (τὸ
φυτικόν), responsável por movimentos naturais que escapam, em larga
medida, ao nosso poder de decisão (alimentação, crescimento, sono) e a
apetitiva ou desiderativa (τὸ επιθυμητικόν καὶ ὅλως ὀρεκτικόν), que se
mostra capaz de ouvir a razão. Em outra divisão, a própria parte racional
aparece cindida em razão aconselhadora ou reta razão e razão matemática.
A psicologia moral de Aristóteles reside toda ela na relação entre a parte
desiderativa e a parte aconselhadora da alma, entre razão e desejo. Não
existe aqui, como em Platão, uma parte intermediária (a parte colérica)
que auxiliaria a razão na tarefa de controlar a parte concupiscente da alma,

5
De anima, 413 b 23-25.
6
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 b 29-35.
7
De anima, 423 b 25-28.
8
Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139 b 5-7.
9
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 a 14- 1103 a 10.
Francisco Moraes | 215

que seria em si mesma “insaciável de riqueza”10. Tampouco a razão


aparece, como em Platão, destinada à contemplação. Em lugar da
contrição moral, da revolta consigo mesmo, que, em Platão parece
desempenhar um papel importante no desenvolvimento da virtude, como
fica claro na história de Leôncio11, temos em Aristóteles uma importância
muito grande atribuída ao hábito. É no hábito que razão e desejo se
harmonizam.

Os tipos morais, a noção de caráter e a escolha deliberada

A partir da relação entre razão e desejo se apresentam os tipos


morais, que podem ser facilmente reconhecidos: o acrático ou
incontinente, o continente, o vicioso e o virtuoso. Nos dois primeiros
subsiste certo conflito entre as partes da alma. O acrático não segue o
aconselhamento da razão e acaba sendo guiado por seus desejos imediatos.
Ele propriamente não se contém e fracassa na tarefa de guiar a si mesmo.
Não é difícil reconhecer aqui a figura do jovem, a quem Aristóteles afirma
não serem proveitosas lições de ciência política. A ética não tem por
finalidade gerar o ser ético. Não é manual de regras de conduta ou livro de
autoajuda. Já figura do acrático, sua existência, é um perene desafio ao
intelectualismo moral. Platão, por exemplo, faz Sócrates dizer que

a maior parte das pessoas não vê o conhecimento como uma força, muito
menos como uma força diretora ou dominante; elas pensam que um homem
pode muitas vezes possuir conhecimento, sendo, contudo, governado por
outra coisa: às vezes pela ira, outras vezes pelo prazer ou pela dor; às vezes
pelo amor, muito frequentemente pelo medo. Elas realmente pintam o
conhecimento como um escravo de tudo isso.12

10
República, IV, 442 a.
11
República, IV, 439 e – 440 a.
12
Protágoras, 352 b-c.
216 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

O acrático, porém, tal como o compreendemos comumente, sabe que


há o bem, sabe o que é melhor para si, mas pratica exatamente o contrário.
Não é que falte o aconselhamento da razão, falta a convicção de que o
melhor a ser feito é segui-lo. “Com efeito”, diz Aristóteles, “elogiamos no
homem que se controla e no acrático a razão e a parte racional da alma,
pois ela exorta corretamente às melhores ações.”13 O acrático comumente
se arrepende e é capaz de se envergonhar. Um estudo precisaria ser feito
sobre a relação entre acrasía e αἰδώς (pudor), pois esta capacidade de
envergonhar-se, louvável nos jovens, embora auxilie decisivamente na
formação da virtude, tem o seu alcance limitado na ética aristotélica. Um
homem maduro, por exemplo, não seria louvado, mas antes censurado
por experimentar vergonha. É que certas ações motivadoras desse
sentimento já não deveriam ser praticadas por ele nesta altura da vida14.
Burnyeat, em Aprender a ser bom segundo Aristóteles15, destaca essa
conexão ao sustentar que Aristóteles defende um desenvolvimento moral,
no qual o primeiro estágio seria justamente “o conflituoso acrático”. O
continente também padece desse conflito entre as partes da alma, estando,
por esse motivo, ainda próximo ao acrático. Mas enquanto o acrático cede
ao desejo, o continente age de modo refletido e escolhe por deliberação.
Facilmente podemos perceber em seu comportamento certo temor de
decepcionar os mais velhos e prudentes, mais do que uma atração decidida
e feliz pelo belo ou uma aversão pelo que é em si desprezível. Já no
virtuoso, o conflito primário entre as partes da alma é superado, pois nele
a parte desejante “em tudo concorda com a razão.”16 Pode ser percebido o
itinerário que leva da acrasía, passando pela continência, até a virtude. O

13
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 b 14-16.
14
Ética a Nicômaco, IV, 9, 1128 b 10.
15
ZINGANO, M. (org.). Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2010.
16
Ética a Nicômaco, I, 13, 1102 b 28.
Francisco Moraes | 217

vicioso, por seu turno, será aquele que, assim como o virtuoso, não sofre
o conflito entre as partes da alma e que escolhe por deliberação, sendo
inclusive capaz de conter seus desejos imediatos em prol de outros desejos,
embora não seja correto dizer que o conflito entre as partes da alma
resultou nele superado. Simplesmente a razão, como razão aconselhadora,
que recomenda ou interdita certas ações em si mesmas, deixou de se fazer
ouvir. O vicioso não possui sentimentos fortes que o comprometam,
decididamente, com o todo social. No entanto, é forçoso reconhecer que
tanto o vicioso quanto o virtuoso possuem desenvoltura na ação, não
sentem remorsos e costumam alcançar o que desejam.
Aristóteles afirma que o as virtudes morais se originam do hábito17 e
que sinal disso é o próprio nome, pois a palavra ἔθος (hábito) difere
ligeiramente de ἦθος (caráter, morada habitual). Mas a palavra hábito
pode se prestar a mal-entendidos. Hábito remete a habitar, a ganhar
habitação, ganhar residência. Ao contrário do que afirma Tomás de
Aquino, não existem “hábitos das virtudes”, como se as virtudes fossem
algo que pudéssemos colocar em prática18! As virtudes e os vícios são
disposições adquiridas (ἕξεις). Ninguém nasce virtuoso ou vicioso,
ninguém se torna virtuoso ou vicioso por natureza (φύσει) ou indo de
encontro à natureza (παρὰ φύσιν). A prática reiterada é que nos torna
virtuosos ou viciosos. Ao habituarmo-nos, ganhamos certa tendência,
certa afeição, para agir sempre de determinada maneira. “Quem tem um
caráter”, diz Nietzsche, “tem também sua experiência típica, que sempre
retorna”19. A disposição adquirida, seja ela virtude ou vício, não deixa de
ser uma segunda natureza. Já nossa compreensão usual de hábito remete
a condicionamento e a algum tipo de automatismo. Quem está habituado

17
Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 17-18.
18
AQUINO, Tomás. As virtudes morais – Questões disputadas sobre a virtude. Campinas, SP: Ecclesiae, 2012, p. 25.
19
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, “Máximas e interlúdios”, 70.
218 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

a agir de determinada maneira é como se já não precisasse deliberar a cada


vez. É assim que Alexandre de Afrodísia, comentador das obras de
Aristóteles do século II, entende a relação entre escolha e determinismo
das disposições adquiridas, como se somente fôssemos livres para escolher
antes de desenvolvermos virtudes20. Trata-se de uma generalização
infundada de um caso específico, previsto pela legislação e assumido por
Aristóteles, segundo o qual aquele que, embriagado, age em estado de
ignorância, deve ter sua pena dobrada, já que de início estava em seu poder
não se embriagar. Mas, no caso das virtudes, não se trata absolutamente
de uma suspensão de nossa capacidade de decisão, muito pelo contrário.
A interpretação de Alexandre de Afrodísia distorce, dessa maneira, a
concepção aristotélica de virtude. Aristóteles não enxerga nenhuma
oposição entre escolha deliberada e virtude, muito pelo contrário. As
próprias virtudes morais são definidas recorrendo-se à noção de escolha
deliberada. A virtude, para Aristóteles, não se faz visível, primordialmente,
no resultado da ação, mas na disposição ou no estado do agente que pratica
a ação. Este sabe o que faz, escolhe por deliberação pelas coisas mesmas e
age postando-se de modo firme e inalterável21. E mais adiante Aristóteles
afirma que “as virtudes são certas escolhas deliberadas ou não são sem
escolha deliberada”.22 Somente quem tem caráter é verdadeiramente livre
para escolher, pois somente ele está em condições de pesar suas escolhas
e responsabilizar-se plenamente por elas. Ação e agente fazem um.
Trata-se, assim, de buscar a plena identificação do agente com suas
ações, a plena responsabilização. Onde tal identificação ocorre?
Claramente, tal identificação ocorre nas ações deliberadas. Aristóteles

20
De Fato, XXVII-XXIX, apud introdução de Marco Zingano à sua tradução da Ética Nicomachea I 13- III 8 (São Paulo,
Odysseus, 2008), p. 27-28.
21
Ética a Nicômaco, II, 3, 1105 a 32-35.
22
Ética a Nicômaco, II, 4, 1106 a 2-3.
Francisco Moraes | 219

situa as ações deliberadas no âmbito mais amplo das ações voluntárias.


Voluntárias são as ações cujo princípio do movimentar os membros está
no próprio agente. Involuntárias são as ações que praticamos por força ou
por ignorância das circunstâncias. Ações que praticamos à medida que
somos movidos por desejos e emoções intensos são voluntárias. Com isso,
nem toda ação voluntária é deliberada, mas toda ação deliberada é
voluntária, à medida que envolve desejo e razão. Não somos quem somos
por nossas opiniões, mas sim por nossas escolhas deliberadas e por nossas
ações. A escolha deliberada não é o mesmo que opinião, apetite, impulso
ou querer. Não é apetite e nem é impulso porque as ações que praticamos
por apetite, típicas do acrático e dos animais irracionais, não envolvem
deliberação, assim como tampouco envolvem deliberação as ações
praticadas por impulso. Também não é querer, pois podemos,
sensatamente, aspirar por coisas impossíveis e que estão além do nosso
alcance, como, por exemplo, a vitória de um atleta ou a imortalidade. A
escolha deliberada, diferentemente do querer, diz respeito propriamente
aos meios e àquilo que está em nosso poder realizar, e não aos fins.
“Queremos estar saudáveis, mas escolhemos deliberadamente que coisas
nos tornarão saudáveis; queremos ser felizes e o declaramos, mas não é
apropriado dizer que escolhemos deliberadamente ser felizes.”23
Tampouco é opinião ou um tipo de opinião, pois opinamos sobre tudo,
indistintamente, mas não sobre obter e evitar, e a escolha deliberada diz
respeito precisamente a estes últimos. Além disso, a opinião é louvada por
ser verdadeira, por ser correta, por se ajustar corretamente a algo dado,
mas a escolha deliberada “por estar subordinada ao que se deve”. Por isso,
Aristóteles pode dizer que “é por escolher deliberadamente coisas boas ou
más que somos de certa qualidade, não por opinar.”24 Ou seja, as opiniões

23
Ética a Nicômaco, III, 4, 1111 b 27-30.
24
Ética a Nicômaco, III, 4, 1112 a 3.
220 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

que professamos não refletem necessariamente o nosso ser, nossas


escolhas e ações sim o refletem. Isso não significa, evidentemente, que
determinadas opiniões como a defesa da tortura, do racismo ou de algum
tipo de preconceito não sejam indicativas de um caráter perverso, mas
tampouco são sinais inequívocos de um caráter generoso ou virtuoso as
opiniões antirracistas, feministas e de defesa do meio ambiente que
porventura venhamos a professar. Professar ostensivamente opiniões
socialmente valorizadas ou opiniões “polêmicas” tem sido uma maneira
muito frequente e eficiente de disfarçar a ausência de caráter. Por outro
lado, acreditar que a simples difusão de opiniões possa contribuir para a
formação do caráter é uma das nossas mais fortes ilusões, a qual
Aristóteles não compartilha.

Não parecem ser os mesmos os que melhor deliberam e os que melhor


opinam, pois uns, embora opinem melhor, escolhem por vício as coisas que
não devem. É irrelevante s e uma opinião precede ou acompanha a escolha
deliberada, pois não investigamos esse ponto, mas se é idêntica a uma certa
opinião.25

Mas por que, segundo Aristóteles, não deliberamos sobre os fins? Por
que os fins que buscamos alcançar não se oferecem como objeto de
deliberação? Não seremos capazes de entender esse postulado do
pensamento ético aristotélico enquanto associarmos, como fazemos
usualmente, os fins aos resultados alcançados por intermédio da ação. São,
de fato, coisas bem distintas. Os fins, tais como Aristóteles os concebe, são
princípios orientadores das nossas ações, que nos possibilitam acessar
meios adequados e rejeitar meios inadequados em si mesmos. Os fins, e
somente eles, nos qualificam como agentes, pois abrem o espaço para

25
Ética a Nicômaco, III, 4, 1112 a 9-12.
Francisco Moraes | 221

nossas deliberações sobre os meios. É agindo que nos tornamos


plenamente capazes de agir: “o que é preciso aprender para fazer, isto
aprendemos fazendo.”26 Aristóteles jamais diria que sem advogado não há
justiça, pois um advogado que não se orienta pela justiça jamais poderia
ser advogado, quanto mais fazer justiça. Um advogado só pode ser
chamado com propriedade de advogado à medida que possui uma
vinculação de caráter com isso que é a justiça como fim, e o mesmo pode
ser dito do médico em relação à saúde, do professor em relação ao
aprendizado e do atleta em relação à vitória. De forma alguma, a vitória,
como fim e princípio orientador do modo de ser atleta, se reduz à
conquista do primeiro lugar e à premiação alcançada. É no mínimo
duvidoso que a simples divisão do prêmio ou das medalhas, como
aconteceu recentemente nas Olimpíadas de Tóquio, exprima a virtude
esportiva, o caráter do atleta, embora, sem dúvida, o gesto tenha alcançado
grande repercussão nas redes sociais, tendo sido associado a um
comportamento virtuoso. Assim como os fins não estão disponíveis para o
agente, tampouco os meios se apresentam como neutros ou como podendo
ser otimizados em vista do resultado. Um alpinista não escolheria qualquer
meio para chegar ao topo da montanha, assim como um médico, digno
desse nome, não empregaria qualquer recurso para salvar a vida de um
paciente. Mais importante do que o resultado alcançado é a ação em si
mesma, é o sermos capazes de praticá-la de modo deliberado. O bem agir
(εὐπραξία), diz Aristóteles, é ele mesmo um fim27.

Caráter e destino

Em um pequeno texto intitulado Destino e caráter, Walter Benjamin


procura captar rigorosamente o significado de ambos os conceitos,

26
Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 a 32-33.
27
Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139 b 4.
222 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

remetendo-os às suas fontes originais. O conceito de destino teria sua


origem no direito e na culpa, sendo ele mesmo “o nexo de culpa do
vivente”, enquanto o conceito de caráter remeteria ao “paradoxo do
nascimento do gênio na ausência de linguagem moral”, ou seja, ao
“sublime na tragédia”, que alcançaria sua expressão consumada na
comédia de costumes. Diz Benjamin:

A grandeza da comédia de costumes repousa nesse anonimato do homem e de


sua moralidade, em meio ao desdobramento mais elevado do indivíduo na
unicidade de seu traço de caráter. Enquanto o destino desenrola a imensa
complicação da pessoa culpada, enquanto ele expõe a complicação e o elo
constrangedor de sua culpa, o caráter dá, em compensação a esta servidão
mítica, a resposta do gênio. A complicação torna-se simplicidade, o fatum,
liberdade. Pois o caráter da personagem cômica não é o do espantalho dos
deterministas, ele é a luminária cujos raios tornam visível a liberdade de suas
ações.28

Para Benjamin, destino e caráter se excluem reciprocamente. Onde


há caráter não cabe falar em destino, mas antes em liberdade. Liberdade é
liberdade em face do destino. É curioso que Benjamin leia o caráter como
“luminária cujos raios tornam visível a liberdade das ações” a partir do que
Aristóteles reconheceria como vícios. Sinal de que o virtuoso, enquanto
tipo moral, já havia se tornado, para ele, no contexto do século XX,
perfeitamente irreconhecível. Mas como se deve entender, por sua vez, a
relação entre caráter e destino em Aristóteles? Encontramos em
Aristóteles dois grandes obstáculos, duas grandes ameaças à liberdade e à
felicidade, aos quais responde a necessidade de formação do caráter. Por
um lado, temos a sorte, o acaso; por outro, a ὕβρις ou a desmedida.
Associada à primeira, temos a ameaça dos infortúnios; associada à

28
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2017, p.97.
Francisco Moraes | 223

segunda, temos a ameaça da desgraça, do cair em desgraça. Jamais o


virtuoso, aquele que formou o seu caráter nas ações virtuosas, cairia em
desgraça, para Aristóteles. Isso exigiria que ele considerasse possível e
legítimo praticar ações ignóbeis em determinadas circunstâncias, o que ele
jamais faria. Melhor dizendo, o virtuoso não justificaria para si mesmo a
prática de ações ignóbeis29. Não se considera aqui, evidentemente, a
possibilidade da calúnia, de algum tipo de conspiração, que pudesse lançar
sobre o virtuoso a pecha de algum malfeito. Em jogo está o ser de fato
causa de sua própria desonra, por ter se permitido agir de modo vil, em
vista de algo mesquinho. A calúnia, a difamação, entrariam na chave do
infortúnio e não da desgraça. O cair em desgraça passa por uma ação
deliberada do agente. Neste sentido, para Aristóteles, a virtude seria capaz
de fechar as portas para ao menos uma das duas causas possíveis de
infelicidade, pois no virtuoso a razão e o desejo se harmonizaram
perfeitamente, o que impede os conflitos internos entre as partes da alma,
geradores de remorsos e censuras. Quanto ao infortúnio, se pensarmos no
acaso e nas eventualidades que não estamos em condições de prever ou
dominar, como o ser acometido de uma doença grave e tantos outros
eventos similares, ninguém está a salvo, nem mesmo o virtuoso. Como diz
Aristóteles, “o homem feliz (εὐδαίμων) jamais se tornará desgraçado
(ἄθλιος), o que não significa que será feliz aquele que vier a experimentar
os infortúnios (τύχαις) de um Príamo.”30 Sendo o destino, nas palavras de
Benjamin, “o nexo de culpa do vivente”, mais do que nenhum outro, o
virtuoso aristotélico seria aquele capaz de fazer-lhe frente, afirmando a

29
Aristóteles admite que os homens são mesmo louvados por suportarem algo ignóbil ou penoso em troca de efeitos
grandiosos e belos, mas, ao mesmo tempo, afirma ser “típico de uma pessoa inferior suportar o que há de mais torpe
em função de algo nada ou medianamente belo”. Semelhante apreciação não exclui a possibilidade do perdão,
“quando alguém faz o que não deve fazer por tais coisas que excedem à natureza humana e que ninguém suportaria”.
Em todo caso, para o Estagirita, “a algumas coisas presumivelmente não há como sermos compelidos, mas se deve
antes morrer sofrendo as dores mais atrozes”. Cf. Ética a Nicômaco, III, 1, 1110 a 19-29
30
Ética a Nicômaco, I, 10, 1101 a 6-9.
224 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

autossuficiência de uma vida baseada no caráter, mesmo levando em conta


as possíveis restrições à sua atividade advindos das circunstâncias
exteriores, que levassem a algum sentimento de frustração por não ter
realizado tudo aquilo que poderia ter sido realizado. É que, como diz
Aristóteles, “o bom sapateiro é aquele que faz o melhor e mais belo sapato
com o couro que lhe dão”31. Por desconfiarmos do caráter, mais do que
nunca, jogamos todo o nosso empenho em alterar as circunstâncias, em
“azeitá-las”, para que estas não restrinjam os nossos planos de felicidade,
e assim nos prendemos voluntariamente na teia do destino, pois nos
tornamos cada vez mais dependentes do poder técnico que aplaina para
nós o terreno e nos oferece os meios para edificarmos a nossa felicidade,
já pré-definida em termos de maximização do prazer e minimização do
sofrimento. Somos permanentemente instados a escolher ser felizes, como
se semelhante escolha estivesse ao nosso alcance. No entanto, não nos
libertamos do destino quando nos identificamos com ele, quando o
internalizamos e o transformamos em nossa própria vida. Ao contrário,
simplesmente nos sonambulizamos.
A felicidade é, para Aristóteles, a obra do homem, assim como para
Heráclito o caráter é o destino32. Para o “iluminismo grego”, trata-se de
pensar o homem como princípio de suas ações. Para o Estagirita, sem
dúvida, quanto mais autossuficiente for a nossa vida tanto mais felizes
seremos. Esta autossuficiência ele a encontra maximamente realizada na
liberdade da atividade teorética e contemplativa, que é caracterizada por
ele como a atividade mais divina do que propriamente humana de
imortalizar (ἀθανατίζειν)33. A atividade contemplativa é a que menos
depende de fatores externos e a mais desimpedida de todas, possuindo seu

31
Ética a Nicômaco, I, 10, 1101 a 4-5.
32
DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Trad. Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta, 2002, p.183.
33
Ética a Nicômaco, X, 7, 1177 b 36.
Francisco Moraes | 225

prazer inerente. Fica claro que a felicidade para Aristóteles não se baseia
no projeto de assujeitar a realidade externa e colocá-la a nosso serviço, por
meio do controle tecnológico, mas antes na maior independência possível
das condições exteriores conquistada em uma maneira de viver sustentada
no caráter e na ação. Seria um erro, no entanto, considerar que a aposta
na felicidade da atividade contemplativa signifique, em Aristóteles, o
desprezo pelos bens materiais e o insulamento do sábio, numa espécie de
“cidadela interior”, à maneira estoica. A felicidade é um bem humano e
como tal só frutifica sob certas condições materiais, no seio da pólis. Não
podemos assegurar a paz e a prosperidade, pois isso significaria nos
emaranharmos na teia do destino, mas podemos, sem dúvida, aprender a
suportar bem as adversidades e a nos empenharmos em ações que tenham
seu fim em si mesmas. A atividade contemplativa, a atividade de
imortalizar, desdobra e consuma a possibilidade de existência
autossuficiente aberta pelo caráter no exercício das virtudes morais.

Stásis, justiça, concórdia e a felicidade

Atento ao papel que os ingredientes econômicos e sociais


desempenham nas virtudes e na existência política, Aristóteles se ocupa da
stásis, de suas causas e das maneiras de evitá-la, no livro V da Política.
Para o Estagirita, não é a desigualdade pura e simplesmente a causa da
stásis, mas o ressentimento e a inimizade decorrentes da pretensão, seja a
uma igualdade absoluta seja a uma desigualdade absoluta34. Há aqueles
que sendo iguais em algum aspecto relevante se acreditam absolutamente
iguais e aqueles que sabendo-se desiguais em um aspecto, por exemplo na
riqueza, se acreditam desiguais em tudo o mais35. Eis a origem dos dois

34
Política, V, 1, 1301 a 29-39.
35
Injustiça, segundo Aristóteles, não é apenas tratar desigualmente aqueles que são iguais, mas também tratar
igualmente os que são desiguais. Cf. Ética a Nicômaco, V, 5, 1131 a 20-27.
226 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

regimes políticos principais: a democracia e a oligarquia, regimes que


Aristóteles considera desviados exatamente por não se pautarem pelo bem
comum, refletindo seja o domínio despótico da maioria seja o domínio
despótico de uma minoria. A originalidade do pensamento político
aristotélico reside em não ter reduzido a política a um empenho de
domínio, de subjugação. A pólis não surge para viabilizar a supremacia de
alguns homens sobre outros, mas em decorrência da falta. Vivendo juntos,
os homens têm condições, melhores condições, de afastar a carência. No
entanto, nascida por causa do viver (ζῆν) a cidade existe em função do bem
viver (εὖ ζῆν)36. A redução do bem viver ao bem-estar individual e o
desaparecimento do bem comum borram a diferença entre viver e bem
viver gerando uma realidade social na qual a simples preocupação com a
segurança torna-se a meta da existência política. O neoliberalismo, na
verdade, tão somente leva à plenitude esse programa liberal, glamouriza a
selvageria e torna a guerra hobbesiana de todos contra todos a realidade
política normal. Para Aristóteles, ao contrário, a política consiste
exatamente na superação dessa selvageria pré-polítca:

O homem é o melhor dos animais, mas apartado da lei e da justiça é o mais


miserável de todos. Pois a injustiça que porta armas é a coisa mais insuportável
(penosa) que existe. O homem, porém, por natureza, possui armas para a
prudência e para a justiça, muito embora as utilize frequentemente para fins
contrários a esses. Por isso, sem virtude, é o ser mais ímpio e mais selvagem
de todos e o mais grosseiramente impelido aos prazeres do amor e à gula.37

O pensamento político de Aristóteles não deixa de assinalar com


clareza a influência de aspectos materiais, econômicos, e de interesses de
classe, na vida da comunidade política. No entanto, é preciso que se diga,

36
Política, I, 1, 1252 b 30-31,
37
Política, I, 1, 1253 a 32-37.
Francisco Moraes | 227

o Estagirita não compreende a política como a expressão pura e simples


desses interesses ou dessa força material condicionante. Os conflitos de
classe, embora existentes, não refletem para ele um horizonte fechado e
impeditivo, no qual toda forma de colaboração amistosa fosse
necessariamente provisória e, no limite, ilusória. Era perfeitamente
possível, para ele, ultrapassar esse aprisionamento, sem que fosse preciso,
para tanto, eliminar as diferenças entre as classes sociais e uniformizar a
sociedade, suprimindo, de maneira antecipada, os elementos
propiciadores da discórdia: a família e a riqueza, como pretendia Platão.
A stásis não pode aparecer assim como consequência natural de uma
sociedade desigual. Tampouco ela pode ser vista como a força propiciadora
de transformações sociais de largo alcance, no sentido de uma progressiva
democratização, algo similar ao conceito marxista de luta de classes.
Aristóteles não se pauta pela categoria do progresso e não tem como
apostar em saídas revolucionárias. Como categoria do pensamento
político, em Aristóteles, a stásis não se deixa compreender como conflito
entre as classes, um conflito sempre presente, embora camuflado, e que
por vezes eclodiria de maneira explícita e violenta. A stásis é inseparável
do horror de uma guerra fratricida. Como categoria política, ela remete à
tragédia ática que manifestava o assombro diante da dissolução dos laços
familiares em uma guerra de aniquilação. A stásis, portanto, não é
compreendida primordialmente como ser em ato, mas como ser em
potência. Em ato, como expressão da vida política normal, vigoram o bem
comum e a amizade: a concórdia (ἡ ὁμόνοια)38. Pensar a stásis com
Aristóteles significa pensar o ser em potência como tal. A stásis é a

38
Em grego, concórdia significa, literalmente, ter o mesmo pensamento. Cf. Ética a Nicômaco, IX, 6, 1167 a 22.
228 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

negatividade extremada, a dissolução dos laços de amizade que unem os


cidadãos, que se deixa pensar, com assombro, como ameaça real39.
Como é evidente, a progressiva supressão das desigualdades entre os
homens não pode constituir, para Aristóteles, a meta da existência política.
No entanto, certo nível de desigualdade pode chegar a inviabilizá-la. Há
uma curiosa passagem no livro IV da Política na qual Aristóteles trata da
relação entre as classes sociais e a ocupação de cargos na cidade. Segundo
o Estagirita, no que diz respeito aos dons da fortuna, é manifesto que a
riqueza mediana é a melhor de todas: φανερὸν ὅτι καὶ τῶν εὐτυχημάτων ἡ
κτῆσις ἡ μέση βελτίστη πάντων.40 Ao contrário, a beleza excessiva, a força
extrema, a linhagem inigualável, a riqueza excessiva, ou os respectivos
opostos, tais como a pobreza excessiva, a debilidade extrema e a ausência
de honrarias têm dificuldade de seguir a razão (τῷ λόγῳ ἀκολουθεῖν)41.
Enquanto no primeiro caso surgem os ambiciosos desmedidos e os
grandes malfeitores, no segundo caso, ocorrem os criminosos e os
pequenos delinquentes. A classe média, ao contrário, é a que menos
ambiciona e a que menos evita o poder, sendo ambas as tendências nocivas
à cidade42. Mas o problema fundamental identificado por Aristóteles em
relação aos privilegiados é que eles não admitem ser comandados, e isso
desde a infância43. Por outro lado, os que se encontram em permanente
penúria, encontram-se rebaixados. Assim sendo, a consequência tirada
pelo Estagirita é a de que uma cidade determinada por esses dois extremos
opostos, na qual a classe média não se destaca, seria uma cidade de

39
Aristóteles concordaria em larga medida com a determinação do conceito do político, feita por Carl Schmitt: “A
guerra não é, absolutamente, fim e objetivo, sequer conteúdo da política, porém é o pressuposto sempre presente
como possibilidade real, a determinar o agir e o pensar humanos de modo peculiar, efetuando assim um
comportamento especificamente político.” Cf. SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Alvaro L.M. Valls.
Petrópolis< RJ: Vozes, 1992, p. 60.
40
Política, IV, 9, 1295 b 5-6.
41
Política, IV, 9, 1295 b 5-9.
42
Política, IV, 9,1295 b 12-14
43
Política, IV, 9, 1295 b 14-16.
Francisco Moraes | 229

senhores e de escravos, e não uma cidade de homens livres, uma cidade


na qual uns têm inveja e outros revelam desprezo (γίνεται οὖν καὶ δούλων
καὶ δεσποτῶν πόλις, αλλ’οὐκ ἐλευθέρων, καὶ τῶν μὲν φθονούντων τῶν δὲ
καταφρονούντων)44 , ambos muito distantes do que deve ser a comunidade
política; com efeito, como ele próprio afirma, os inimigos não querem
partilhar nada entre si: οὐδὲ γὰρ ὁδοῦ βούλονται κοινωνεῖν τοῖς ἐχθροῖς.45
O que caracteriza os regimes retos e a própria virtude da justiça é a
capacidade de ter em mira o bem comum, e isso numa relação direta com
a própria eudaimonía. O virtuoso, ao agir virtuosamente, experimenta
prazer autêntico. Daí que Aristóteles defina a felicidade, o bem humano,
como a atividade da alma segundo a virtude e, havendo mais de uma,
segundo a virtude perfeita46, que é como ele se refere à justiça47. Por não
termos mais presente o bem comum, pelo fato de nosso modo de vida e
nossos valores fundamentais compreenderem o bem, exclusivamente,
como bem material ou exterior, como algo que pode ser disponibilizado e
adquirido, a categoria de bem comum tornou-se necessariamente abstrata
e não impositiva. Parece-nos que buscar o bem comum significa sempre o
sacrifício do bem privado e assim também da própria felicidade individual,
do prazer. Neste horizonte, o que ainda podemos chamar de “equidade”
reduz-se a um projeto fracamente determinado de não ser causa de
“injustiça” ou de sofrimento para o próximo. É a virtude dos que querem
gozar de uma “consciência tranquila”, ao mesmo tempo em que se livram
aos seus próprios negócios48. Cabe-nos, portanto, tentar elucidar, a partir
de Aristóteles, de que maneira o exercício da virtude perfeita, da justiça,

44
Política, IV, 9, 1295 b 22-24.
45
Política, IV, 9, 1295 b 25.
46
Ética a Nicômaco, I, 7, 1098 16-18.
47
Ética a Nicômaco, V, 1, 1129 26-30.
48
É exatamente este o sentido de equidade na célebre obra de John Rawls Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta
e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
230 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

pode ser intrinsecamente prazeroso e gerar felicidade, salvaguardando o


bem comum e afastando, tanto quanto possível, a stásis.
O meio-termo visado pela justiça é o bem comum (τὸ κοινόν
συμφέρον)49, que está entre o excesso: praticar uma injustiça, e a falta:
sofrer uma injustiça50. Trata-se de uma disposição, de uma ἕξις, que
encontra correspondência no estado de coisas determinado pela lei. A
justiça, no entanto, não se reduz ao cumprimento da lei. Ela se realiza
ativamente mediante a orientação para o bem comum. Sem essa
orientação internalizada para o bem comum não se poderia falar em
virtude, no sentido aristotélico. A equidade é a expressão acabada da
disposição que é a justiça. O que significa ser equânime para Aristóteles?
Certamente, não é equânime quem simplesmente deixa de praticar uma
injustiça. Equânime é aquele que sustenta uma posição, que se mantém
por si mesmo num posto, por visar ao interesse comum. O exemplo é o do
soldado que não abandona a sua posição. Este é equânime na medida em
que lhes repugna ser a causa para outro daquilo mesmo que ele não
gostaria de sofrer no exercício da função que é a sua. O soldado precisa
contar com seu companheiro e assim não pode admitir deixá-lo
desprotegido. Ser soldado é agir desse modo. O que ele enxerga é o que é,
em si mesmo, melhor, louvável: não abandonar seu companheiro.
Contudo, para Aristóteles, não é covarde e injusto, a não ser por acidente
(κατὰ συμβεβηκός), quem simplesmente lança fora o escudo e corre, mas
quem o faz de certa maneira, ou seja, quem demonstra desapreço pelo bem
comum51. O princípio da chamada direção defensiva segue a mesma
orientação. Seria preciso imaginar o virtuoso como aquele que se mantém
em seu posto em um engarrafamento, não admitindo dirigir pelo

49
Ética a Nicômaco, V, 3 1129 b 15.
50
Ética a Nicômaco, V, 15, 1138 a 28-31.
51
Ética a Nicômaco, V, 12, 1137 a 22-25.
Francisco Moraes | 231

acostamento. Ser motorista é agir desse modo. Não pelo fato de que dirigir
pelo acostamento seja ilegal e que, agindo assim, ele poderia ser multado,
mas por respeito a si mesmo e ao bem comum. Seria vergonhoso e
intolerável buscar para si a vantagem que ocasiona o prejuízo de todos, e
assim também o próprio aviltamento. Esse comportamento nada tem a
ver com simplesmente não causar prejuízo ao outro e assim evitar ser
prejudicado também.
Aristóteles afirma que “os que se distinguem pela virtude não
produzem stásis”(οἱ κατ’ ἀρετὴν διαφέροντες οὐ ποιοῦσι στάσιν)52. Sendo
a stásis, na visão aristotélica, provocada pela ambição desmedida (ὕβρις),
que acirra o sentimento de ser vítima de injustiça, tornando desprezível a
preocupação com o bem comum, facilmente o equânime pode ser
compreendido como alguém destituído de ambição, o que levanta a
questão acerca de quem estaria sendo mais injusto: quem, contrariamente
ao mérito, distribui mais ou quem recebe. Acaso quem assim procede não
estaria sendo injusto para consigo mesmo? Aristóteles responde a essa
indagação numa bela passagem, que gostaria de citar:

Se, pois, se dá a primeira alternativa, a saber, é quem distribui, mas não quem
recebe mais, que comete injustiça, e se alguém distribui mais a outrem do que
a si, com conhecimento e voluntariamente, esta pessoa comete injustiça contra
si própria – o que precisamente parecem fazer os homens moderados; com
efeito, o homem equânime é de natureza a tomar menos. Ou tampouco isto é
simples? Com efeito, o homem equânime tem ganância, porventura, de um
outro bem, a saber: da honra ou do belo propriamente dito.53

O equânime, de fato, é propenso a ceder54, mas não por abnegação


ou altruísmo, e sim por “ganância”, por fazer questão absoluta da honra

52
Política, V, 3, 1304 b 4-5.
53
Ética a Nicômaco, V, 12, 1136 b 16- 22. Trad. Marco Zingano.
54
Ética a Nicômaco, V, 14, 1138 a 2.
232 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ou do belo. Tomar menos, em certos casos, pode significar reservar a


melhor para si, ainda que não em prejuízo do outro. É assim que
Aristóteles considera que ao favorecer o amigo, ao deixá-lo praticar uma
bela ação em seu lugar, o benfeitor reserva a melhor parte para si mesmo,
ou seja, o nobilitante (τὸ καλόν)55.

Conclusão

Qualquer estudioso de Aristóteles percebe que uma das principais


marcas de seu pensamento ético-político é o peso conferido às emoções,
ao desejo, e, assim, ao irracional na vida humana. Sem os hábitos, as
emoções não podem ser contidas e/ou dirigidas racionalmente. O bem
aparente (τὸ φαινόμενον ἀγαθόν) não é, para ele, um bem ilusório, um falso
bem. É antes algo que aparece como um bem e que pode conduzir a
existência humana. O bem aparente, em Aristóteles, no âmbito de seu
pensamento político, se vincula ao prazer e à ambição de ganho, à
πλεονεξία. Ele corresponde à afirmação incondicional dos interesses
facciosos à medida que é tomado como o bem em sentido estrito. Seria o
mesmo que visualizar a riqueza como bem final. Em condições normais,
parece fácil reconhecer que a riqueza não é digna de ser entendida desta
maneira. A riqueza, em si mesma, está subordinada a outros bens
superiores. Sem um bom uso da riqueza ela antes estorva a vida do que a
favorece, à medida que a boa vida exige uma disponibilidade cultivada para
a ação e a capacidade de assumir vínculos duradouros e estáveis. Sem
amigos, diz Aristóteles, “ninguém escolheria viver possuindo todos os bens
restantes.” 56
No entanto, alguém poderia imaginar que a riqueza cria a
possibilidade, inclusive, de ter amigos e de manter vínculos duradouros. É

55
Ética a Nicômaco, IX, 8, 1169 a 32- 1169 b 2.
56
Ética a Nicômaco, VIII, 1, 1155 a 5-6.
Francisco Moraes | 233

como se ele imaginasse que mais importante do que uma vida saudável
fosse a contratação de um caríssimo plano de saúde! Neste caso, o plano
de saúde representa o bem aparente como o propriamente extraviante.
Não o plano de saúde em si mesmo, é claro, mas o plano de saúde como o
garantidor de uma vida saudável. Nestas condições, sustentar que a justiça
enquanto equidade corresponderia a uma melhor distribuição dos planos
de saúde equivale a absolutizar o bem aparente. A stásis, na perspectiva
aristotélica, surge precisamente desse desvio original. Mas se os homens
que se distinguem pela virtude, os felizes, não produzem stásis, é claro que
se trata de uma minoria absoluta incapaz de evitar a sua eclosão.
Consequência disso é que Aristóteles não possui nenhum antídoto para a
stásis. No entanto, passar por semelhante experiência, por mais terrível
que ela seja, pode propiciar uma recordação do que em si mesmo é o mais
desejável e que está ao alcance dos homens, a despeito das desigualdades
e das penúrias persistentes: a concórdia política, a possibilidade de formar
vínculos duradouros e de erigir instituições, a possibilidade de
compartilhar ativamente um mundo comum, a celebração da boa vida, da
vida dedicada às belas ações. Mas para isso é preciso que alguns pelo
menos saibam em que consiste a boa vida e que ela realmente vale a pena.

Referências

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234 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

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_________. On the soul, Parva Naturalia, On Breath. Translation by W.S. Hett. London:
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BURNYEAT, M. “Aprender a ser bom segundo Aristóteles”. In ZINGANO, Marco (org.).


Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles. Textos selecionados. São Paulo: Odysseus
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PLATÃO. A República. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, PA: EDUFPA, 2000.
Francisco Moraes | 235

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.

SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Alvaro L.M. Valls. Petrópolis< RJ: Vozes, 1992.
8

Furores Antigos: sobre o conceito de furor na


Grécia, entre delírio divino e demência

Monalisa Carrilho 1

Na Grécia arcaica, as funções e faculdades da alma são representadas


por entidades, forças que agem fora do indivíduo, como as Erínias, as
Parcas, as Fúrias, a Mania. Essa experiência da força bruta, bem descrita
por Henri Michaux:

O homem em presença de seu motor, de seu motor sem freios. Tomado numa
rede de forças cegas, nos rushs incessantes de algo fluido, condensado
sobrecarregado, próximo de seu pensamento, quase semelhante a seu
pensamento, veículo sacolejando seu pensamento, tornando-o ineficiente,
devolvendo-o irrisório e, dilacerando e adulterando-o selvagemente, sem ligar
para o “eu”, sem percebê-lo, se desentravando selvagemente em todos os
sentidos.2

Faremos um rápido resumo da evolução do conceito de manía-furor


na Antiguidade. O furor engendrou a loucura, pelo menos do ponto de
vista filológico: a mania, que os latinos traduziram por furor, era um
personagem mítico, da mesma ordem que as Erínias ou as Parcas,
divindades primitivas que já ocupavam o panteão helênico mesmo antes
da chegada dos deuses olímpicos. Mais tarde a Mania encontrará todo seu
sentido no mito de Dioniso, já que ela está na origem de seus ritos.

1
Professora do Departamento de Filosofia da UFRN. Contato: carrilhomonalisa@uol.com.br
2
MICHAUX, Henri. Connaissance par les gouffres, Paris :Gallimard, 1988(1967), pp. 236-237.
Monalisa Carrilho | 237

Homero faz uma rápida menção ao Deus louco (mainomenos


Dionysos) no episódio de Licurgo da Ilíada. Mas será sobretudo por volta
do séc. VI a.C, quando Dioniso faz sua entrada triunfante em Atenas e que
será o inspirador da tragédia, que veremos a mania revelada em todo o
seu esplendor. É verdade que os acessos de loucura não faltam nos relatos
homéricos da guerra de Tróia, mas o acento propriamente dramático, a
loucura desvairada, será encenada sobretudo nos autores trágicos.
A tragédia grega vai conciliar o entusiasmo (entheos = ter um Deus
dentro de si) com o furor. Esta junção só é possível porque existe Dioniso,
o Deus louco. O entusiasmo inspirado por ele é loucura, sua loucura é,
portanto, divina: furor.
O humoralismo3 hipocrático, por via de Galeno, será um dos
principais suportes da noção de furor no Renascimento. Para a visão do
mundo grego, ele representa um salto: a interiorização de forças que até
então encontravam-se fora do sujeito que se torna, pela primeira vez,
portador de saúde ou de doença, e, por conseguinte, uma terapia natural
será a partir de agora possível. O homem é uma mistura de quatro
humores onde a falta ou o excesso de algum indicam a doença. Nesse
esquema, o furor se apresenta como um excesso de bile negra: a
melancolia4 faz sua entrada no imaginário helênico não tardando a
simbolizar os seres de exceção.
Com Platão a inovação em termos de furor virá em sua teoria do
amor. Ele será o primeiro a aproximar o estado amoroso da inspiração
poética, da catarse e da adivinhação, reunindo esses quatro fenômenos sob
o nome de delírios divinos (theia mania). Veremos adiante a importância
e as dificuldades que implicam essa aproximação.

3
Cf. por ex. PANOFSKY, SAXL e KLIBANSKY. Saturne et la mélancolie. Paris: Gallimard, 1989, p. 31sq (Saturn and
Melancholy, 1964).
4
Melancolia em grego é, literalmente, bile negra.
238 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Aristóteles trará sua contribuição à inspiração poética acentuando


sua relação com a melancolia e colocando as bases para a concepção
moderna de gênio. É sobretudo em seu Problema XXX que encontraremos
o enriquecimento do furor divino de Platão.
Cícero religará as noções gregas do furor, dando-lhes o nome latino
de furor. Por este termo ele queria conciliar a mania de Platão e a
melancolia de Aristóteles, mas, ao fazer isso, destronou o furor de sua
origem divina, dando-lhe o mesmo nome que aos acessos tímicos como a
cólera, o ódio, as paixões. Além disso, foi através dele que Ficino, segundo
Festugière, teria tido pela primeira vez contato com a doutrina platônica5.
Os primeiros séculos de nossa era serão pródigos em novas
concepções que não deixarão de influenciar o Renascimento. No que
concerne ao furor, nós temos, primeiramente, o famoso pseudo-
Demócrito das cartas de pseudo-Hipócrates, que fará escola no século XVI.
O filósofo atomista se verá transformado no próprio emblema da
melancolia6. Depois, a Anatomia da melancolia de Robert Burton, que
assina Demócrito Júnior, que é uma espécie de testamento do furor e talvez
seja seu exemplo mais acabado.
A influência do neoplatonismo será decisiva. Em pensadores como
Plotino, Proclo ou Iâmblico, nós já observamos um germe dessa fusão
entre filosofia grega e sabedoria oriental que inspirará, sem dúvida, o
caráter sincrético das filosofias do Renascimento. Neles vemos surgir uma
nova hierarquia dos seres com a chegada dos Anjos e Arcanjos.
Assistiremos também à negativação progressiva dos demônios por causa
do monoteísmo e a fermentação da ideia de um Deus-pai, criador de todas
as coisas.

5
FESTUGIÈRE, André. “La philosophie de l’amour de Marsile Ficin et son influence sur la littérature française au
XVIe siècle” in Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1922, p. 415.
6
Num surto de melancolia, Demócrito ria de tudo o que levou os abderitanos a chamar Hipócrates para tratá-lo. A
tradição associa Demócrito ao riso e Heráclito ao choro ou o pessimismo diante do mundo.
Monalisa Carrilho | 239

As influências místicas orientais conhecidas nessa época formaram,


na figura de Hermes Trismegisto, um dos pilares de toda a filosofia do
século XVI. A tradução de Ficino do Corpus hermeticum será uma das
principais fontes teóricas do Renascimento filosófico, artístico e cultural.

A alma entre furor divino e loucura

Todo o problema da alma está no fato de seu contato com o corpo. É


ele que desperta as paixões, os apetites, os desejos que perturbam sua
tranquilidade, como o furor e a loucura, como nessa passagem onde Platão
conta que Plutão não recebe nunca os seres vivos porque eles são sujeitos
ao delírio e a loucura:

Ele, Plutão, não consente em estar em relação com os homens em posse de seu
corpo mas, ao contrário, a se colocar em relação com eles somente no dia em
que sua alma estiver pura de todos os males e desejos que se referem ao corpo:
você não pensa que isso é de um filósofo? E quem pensou bem que ele só reterá
os homens pelo desejo da virtude ao contrário de se eles estão no tem um
corpo os transportes e a demência nem o seu pai Cronos os legando com os
vínculos onde o encadeiam a lenda seria capaz de ajudar a retê-los.7

Aqui, a mania está em oposição ao desejo de virtude que os homens


têm quando sua alma está livre de todos os males e desejos que se referem
ao corpo. Nesse sentido, todos os homens são loucos enquanto estiverem
vivos, não porque estarão no excesso, mas porque o corpo é uma contínua
fonte de paixões. Por outro lado, o homem é sempre uma alma no corpo,
sem o corpo não há natureza humana. Fora do corpo a alma é pura, sem
manchas, mas não é humana. O humano só pode ser captado num sistema
de aparências, de falhas, de movimento. Poderíamos até dizer, numa lógica
da alma-no-corpo, que uma atitude insensata seria não ter paixões.

7
Crátilo, 403e-404a.
240 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Nessa dialética do corpo e da alma talvez se pudesse dizer que aqui é


a alma quem perde. Por sua plasticidade, ela tende para o corpo e deixa-
se marcar por ele, guardando eternamente, já que é imortal, a marca desse
convívio. Ela está, por assim dizer, condenada à memória do corpo,
enquanto este, chegada a hora, não guardará absolutamente nada dela...

Eu vejo a alma entremeada de elementos de natureza corpórea que fizeram


entrar em sua natureza sua familiaridade com o corpo, sua comunidade de
existência com ele que fez que durante a vida inteira ela se exerceu a não o
deixar mais.8

O forte laço que os une é o da emoção e das sensações.

Cada prazer é cada dor, possuindo as características de um prego, pregam a


alma ao corpo, a fixam nele e ela ganha natureza corpórea pronta para julgar
verdadeiro exatamente aquilo que diz o corpo.9

A ideia, nessa bela passagem do Fédon, é a íntima adesão da alma ao


corpo, uma espécie de materialização da alma. Progressivamente ela se
impregna do corpo. Até agora, não há ambiguidade em Platão: alma e
corpo são bem distintos. As coisas se complicam quando, no Timeu, a alma
ganha três dimensões. Não que ela se torne corpórea, mas ela possui,
desde sempre, uma parte mortal que não se confunde com a alma imortal.
Notável astúcia de Platão para salvaguardar a ideia de uma alma pura, sem
manchas, já que ele não podia deixá-la inteiramente insensível aos
movimentos do corpo. Há, portanto, essa alma mortal que se divide por
sua vez em duas, segundo a qualidade de sua relação com o corpo: a alma
irascível e a alma concupiscível (ou apetitiva segundo a tradução de
Robin). A sede da alma irascível é o coração e tem a ver com a coragem e

8
Fédon, 81c.
9
Fédon,83d.
Monalisa Carrilho | 241

o arrebatamento10, e a sua função é de se deixar comover pelos


acontecimentos internos e externos. A alma concupiscível é a parte bestial,
situada nos intestinos e que satisfaz os desejos de tudo o que é vital, como
comer ou beber. É, curiosamente, esta última que nos interessará mais
particularmente para o furor não por conta de sua natureza, mas por causa
desse órgão colocado bem diante dela, o fígado, que está diretamente
ligado à prática divinatória. No Timeu, a alma terá, então, desde sua
entrada no corpo, uma estrutura vertical indo do mais corpóreo ao menos
corpóreo, quer dizer, ao imortal. Não é toda a alma que entrará em contato
com o corpo: guardaremos essa parte imortal inteligível e pura enquanto
as duas outras terão comércio com o corpo.
O mito da carruagem alada contado por um Sócrates muito inspirado
no Fedro, logo depois do discurso sobre os furores divinos, traz uma visão
mais global da epopeia da alma. Comparada a uma carruagem de dois
cavalos e um cocheiro, cada um desses três elementos tinha, no início,
asas, o que lhe permitia frequentar à vontade o mundo perfeito das formas
inteligíveis. Para os deuses, o passeio é harmonioso, enquanto nos
humanos os cavalos se opõem, um branco e um negro, tornando difícil a
ascensão. Ainda por cima, isso cria um enorme engarrafamento, porque
apesar do ardente desejo de todas11 as almas em reganhar as alturas, elas
“se atropelam durante a revolução, amassam suas plumas e se distanciam
sem ter sido iniciadas à contemplação do real”12.
É entre a alma e o corpo que transita esse conceito espinhoso de furor
divino. Enquanto loucura, a mania é, de um lado, uma doença da alma,
mas a alma só pode estar doente se houver um corpo. Por outro lado, a

10
Timeu, 70a.
11
Todo ser humano tende para o mundo inteligível: “Nunca alcançará a forma humana uma alma que nunca tenha
visto a verdade” (Fedro, 249b).
12
Fedro, 248a-b.
242 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

mania de origem divina não pode ser considerada uma doença... Ela
deveria não ter relação com o corpo, lugar de manchas, mas, sem o corpo,
como falar de delírio divino? Mesmo assim, não se confundir o furor divino
(theia mania) com a simples mania, quer dizer, a loucura.
O termo mania, no sentido de delírio divino, quase não se encontra
fora do Fedro13, onde há abundância de referências à mania positiva e
divina – e essa disparidade nos faz refletir. Nos periódicos filológicos
como o Lustrum, a Année Philologique, ou ainda nas bibliografias
específicas sobre Platão, é surpreendente a escassez de textos tratando
do problema da theia mania. Se esse tema suscitou trabalhos, muitos
deles brilhantes, dos historiadores da religião grega, ele inspirou pouco
os filósofos, exceção feita, é claro, ao tema do amor, cuja bibliografia vem
aumentando incrivelmente ano a ano. Mas o amor não é o único furor e
nem todo amor é furioso...
Esse silêncio coloca uma questão: o Platão dos furores não seria um
Platão subversivo em seu próprio sistema? Ou ainda, será que aquilo que
se convencionou chamar de sistema platônico dá realmente conta de todo
o pensamento platônico?
Voltando ao Fedro, vejamos as três passagens onde Platão acentua o
caráter positivo do furor divino:

1) 244a: Se, com efeito, é sem exceção que o delírio é um mal, poderíamos falar
assim, mas é um fato que dos bens que nos cabem, os maiores são aqueles que
nos vêm através de um delírio que recebemos seguramente por um dom divino;
2) 244 b, c, d: O que certamente merece ser testemunhado é que aqueles que na
antiguidade instituíram os nomes não consideravam a mania, o delírio, como
uma coisa ruim nem tampouco uma razão de opróbrio [...] Então, o delírio,
segundo o testemunho da antiguidade, é uma coisa mais bela que o bom senso,

13
Somente uma vez, no Banquete (218b), quando se trata do delírio filosófico e uma outra vez nas Leis (VIII, 839a)
ao fazer uma aproximação entre amor e delírio. Mas a ideia de furor divino, se não nos limitarmos à expressão theia
mania, encontra- se muitas vezes em outros diálogos, particularmente no Ion e no Timeu.
Monalisa Carrilho | 243

pois o delírio que vem de um Deus é mais belo do que um bom senso – cuja
origem é humana;
3) 265a: Mas, na verdade, há duas espécies de delírio, uma que é o resultado de
doenças humanas, a outra que consiste numa ruptura entre a essência divina e
os costumes e as regras.

Da primeira citação, nós observamos que não somente há um furor


divino, mas ele está entre os maiores bens que podem nos acontecer. Na
segunda e terceira passagens, a diferença essencial entre as duas formas
de delírio é mais clara. Ela repousa sobre as causas – humana e divina –
do furor, mais do que sobre seus efeitos – ambas constituem uma ruptura
com o costume e as regras. A simples loucura é, portanto, de origem
humana, mas, o contrário da loucura, a phronesis é também de origem
humana. Veremos, em particular, no Íon, a importância dada por Platão
ao estar fora do estado de razão (ekphron), para participar do delírio
divino. Porque a doença da alma, nos diz o Timeu (86b), é desrazão
(anóia), da qual há duas formas: a ignorância (hamartia) e a loucura
(mania). Tudo o que engaja a experiência de uma ou outra forma deve ser
chamado doença. Mas uma outra característica da doença da alma é que
ela só acontece por uma disposição do corpo. Sem corpo, a alma não
adoece14! Podemos observar, enfim, que a única coisa que confere
positividade ao furor é sua origem divina. É o momento para o leitor
moderno de se perguntar: mas como saber se estou num delírio divino?
Se neste, como na loucura, há ruptura com a razão e o bom senso, quais
são os sinais que me farão valorizar um furor mais do que o outro?
O poder da crença geral de cada época15 é surpreendente. É
provavelmente por sua intervenção que um determinado saber encontra

14
É o argumento usado por Thomas SZASZ em sua crítica da psiquiatria contemporânea (O mito da doença mental,
Paris: Payot, 1975, p. 271)
15
Crença geral ou caldo cultural de cada época.
244 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

eficácia, e, daí, sua realidade dentro de um grupo. Restaria saber como e


por qual misteriosa lei essas crenças mudam ou evoluem ao longo do
tempo...
A divisão do delírio divino em quatro espécies, de acordo com as
divindades que as regem, parece-me ter sido criado pelo próprio Platão.
Duas razões apoiam essa tese: primeiramente, não a encontramos em
nenhum filósofo anterior, que como já vimos não sistematizam a
inspiração divina; em segundo lugar, encontramos um indício no próprio
Fedro quando, após ter exposto as quatro espécies de furor divino,
Sócrates acrescenta: “ora, o delírio divino nós dividimos em quatro
sessões” (265 b), dando a impressão de que a ideia nasceu durante a
conversa.
Essa divisão não se encontra em nenhum outro diálogo além do
Fedro, e Sócrates a sintetiza assim:

Ora, o delírio divino nós dividimos em quatro seções que dependem de quatro
divindades, atribuindo a inspiração divinatória a Apolo, a inspiração mística a
Dioniso, a inspiração poética às musas e enfim a quarta a Afrodite e a Amor.16

Se, portanto, Platão é o principal pilar dos quatro furores divinos, as


diferentes formas de entusiasmo já existiam separadamente nos filósofos
pré-socráticos. Apesar dessa separação, os furores sempre aparecem
entremeados de alguma forma: Dioniso vem se meter na adivinhação de
Apolo, o amor vem se meter entre as musas, o poeta é adivinho, o
apaixonado é poeta, o adivinho está sempre divinamente inspirado e o
místico selvagemente possuído. Em comum, todos têm o fato de serem
uma forma de possessão e isso faz pensar numa faceta da adivinhação
grega muitas vezes esquecida: a parte do feminino, considerado como um

16
Fedro, 265b.
Monalisa Carrilho | 245

lugar apto a receber (uma divindade, um corpo)17. A noção de


permeabilidade talvez seja aquela que na Grécia esclareça melhor o estado
do homem quando ele está às voltas com os furores divinos. Humano, o
furor não é fecundo, ele é somente cólera, humor violento que leva à
loucura e às ações insensatas. Divino, ele produz coisas maravilhosas.

Apolo e a adivinhação

Apolo e sua irmã gêmea Ártemis /Diana são frutos dos amores de
Zeus com Leto. Após muitas tribulações causadas pela ciumenta Hera, Leto
consegue enfim ir parir em Delos, ilha que se torna um local sagrado, onde,
desde então, ninguém mais terá o direito de nascer nem de morrer. No dia
de seu nascimento, cisnes sagrados deram sete vezes a volta na Ilha.
Depois disso, Zeus entregou à divindade, ao mesmo tempo que sua lira,
uma carruagem puxada por esses brancos pássaros18. É nessa carruagem
sagrada que ele vai até os Hiperbóreos antes de ir a Delfos, onde mata o
malvado dragão Píton, tomando posse do oráculo de Têmis e consagrando
ali o tripé, um dos principais símbolos do Deus, e sobre o qual a Pítia19,
sentada, faz adivinhações. Plutarco define belamente o poder de Apolo
como faculdade de ver:

Porque a faculdade de ver no domínio dos sentidos, é despertada excitada e


movida pelo Sol, da mesma forma que o dom profético o é, na alma, por
Apolo.20

17
Cf. a “matriz” do Timeu.
18
Cf. CHEVALIER et GHEERBRANT. Dictionnaire des Symboles, p. 333.
19
A Pítia é considerada às vezes um personagem dionisíaco por causa do estado de transe em que fica quando o deus
vem falar através de sua boca. Sobre a aproximação Pítia/Bacante, ver DELCOURT, Marie. L’oracle de Delphes, Paris:
Payot, 1981, p. 47.
20
PLUTARCO. De def. or. 433 DE.
246 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

A partir de agora, portanto, ele presidirá a adivinhação que se tornará


uma verdadeira instituição, com a Pítia liderando, mas também com os
sacerdotes e profetas encarregados de interpretar seus oráculos
frequentemente obscuros.
Encontramos em Apuleio uma curiosa aproximação entre Apolo e
Platão, o filósofo divino. Apuleio conta que Platão nasceu no mesmo dia
em que Leto tinha parido Apolo e Diana, no dia seguinte ao do aniversário
de Sócrates, que teve um sonho premonitório: ele viu um pequeno Cisne
voar até o altar que é consagrado a Cupido na Academia e vir pousar em
seu próprio peito; em seguida esse Cisne disparou voando para os céus
encantando, com seus acordes cheios de melodia, tantos deuses quanto
homens21. Assim que Sócrates termina de contar seu sonho levam o
pequeno Platão para ele conhecer e ele anuncia: vejam amigos quem era o
cisne do Cupido da Academia22.
O longo capítulo do furor divinatório é colocado por Platão sob a
égide de Apolo. Seu mito o confirma, mas Dioniso/Baco23 não está menos
ligado à arte divinatória. O estado de inconsciência que caracteriza seus
transes e seus delírios está igualmente presente no delírio profético.
Segundo Juliette Davreux24, nós devemos a Eurípides a origem da
associação Apolo-Dioniso, uma vez que ele já via em Dioniso um deus da
adivinhação25. Essas duas divindades, como Nietzsche nos confirma, “têm
o poder de inspirar os homens para fazer deles instrumentos

21
APULEIO. De la doctrine de Platon em Œuvres complètes, Paris: Garnier, 1873, p. 170.
22
Id., ibid.
23
O adjetivo baccheuousin é muitas vezes utilizado para significar o arrebatamento sem ter nenhuma relação direta
com Dioniso (por ex. Platão o utiliza no Banquete para o delírio filosófico, ou Eurípides, nas Troianas, descreve
Cassandra tomada pelo delírio de Apolo nesses termos: “Apollon eksebaccheuen phrenas” (v. 408).
24
DAVREUX. La légende de la prophétesse Cassandre d’après les textes et les monuments, Bibliothèque de la Faculté
de Liège, Fasc. XCIV, 1942, p. 46.
25
Cf. EURIPIDE. Bacch., vv.299 sq : “le délire bacchique étant divinatoire...”, trad. H. Grégoire, Paris: Belles
Lettres,1973; cf. aussi Hécube, v. 1245 (cette dernière référence est de NIETZSCHE dans Le service divin des Grecs,
Paris : L’Herne, 1992, p. 152
Monalisa Carrilho | 247

personificados da adivinhação, de transportar homens e mulheres para


estados extáticos”26.
Nos filósofos pré-socráticos, para quem o furor se chamava
entusiasmo, Dioniso está mais do que Apolo ligado à adivinhação. É
Heráclito quem, segundo Armand Delatte27, teria sido o primeiro filósofo
a se interessar pela questão do entusiasmo. Para ele, há três formas de
possessão divina, cuja função principal é prever o futuro: os oráculos
inspirados por Apolo, os sonhos e o delírio báquico provocado por
Dioniso28.
Existe um delírio que acompanha a adivinhação. Talvez ele seja até a
própria condição para uma alma aquecida e ressecada ou então é a própria
alteração dos sentidos quem favorece o entusiasmo e a adivinhação.
De acordo com Jeanmaire, a ideia de inspiração profética, nessa
época, já era inseparável da ideia de desgarramento produzido pela mania.
Heráclito dá à voz da Sibila o qualificativo de mainomenos29, que é
precisamente o termo empregado por Homero na Ilíada, a propósito do
frenesi de Dioniso.
Nem o próprio Platão escapará da mistura das duas divindades: ele
atribuirá o furor divinatório a Apolo, mas, curiosamente, é a Dioniso que
caberá operar as purificações e curas para os crimes e doenças de origem
obscura (Platão, Fdr. 244b).

26
NIETZSCHE. op.cit., p. 152.
27
DELATTE, A. Les conceptions de l’enthousiasme chez les philosophes présocratiques, Paris: Les Belles Lettres, 1934,
p. 6.
28
“Si ce n’était pas pour Dionysos qu’ils mènent le cortège et chantent l’hymne phallique, ils commettraient le plus
grand sacrilège. Celui qui régit les Enfers et Dionysos sont un même dieu, qui les frappe de délire et pour qui ils
célèbrent la fête des Vendanges” (frag. 18, DIELS-KRANZ, trad. BATTISTINI, Paris: Gallimard, 1968).
29
HERÁCLITO. Frag. 106, ed. cit., p.44 : “La sibylle, qui, de sa bouche délirante clame les mots sans lumière, sans
parure ou parfum, traverse par sa voix des millénaires, sous la vertu du dieu qui l’anime” (cf. PLUTARCO. De Pyth.
or., 6, 397 A).
248 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

A nuance entre adivinhação e profecia

Não se deve confundir a arte da adivinhação com o arrebatamento


profético, ainda que sua diferenciação não seja simples. A ideia é que há
dois meios de se predizer o futuro, um que provém da observação dos
sinais dados pela natureza, outro pelo entusiasmo30. Na perspectiva
científica do primeiro, o adivinho não é possuído, mas é com o uso da razão
e com toda a lucidez que ele faz suas previsões. Já no entusiasmo, como
seu nome indica, o sujeito está possuído por uma divindade que fala no
seu lugar. Todos os filósofos fazem coro ao dizerem que somente a
adivinhação é verdadeiramente fiável porque ela não depende em nada das
qualidades falíveis do raciocínio humano.
A insistência dos autores em diferenciar essas duas espécies de
adivinhação, deixa pensar que, na linguagem corrente, essas duas formas
de conhecer o futuro eram misturadas.
Platão denuncia esta confusão no Timeu (72b), quando distingue os
profetas dos adivinhos, os primeiros sendo simplesmente intérpretes,
“profetas das revelações divinatórias”, enquanto os adivinhos são os
únicos a receber diretamente a mensagem da divindade. De acordo com
esta distinção, Tirésias ou Calcas não seriam adivinhos, mas profetas. No
Fedro (244 e), Platão aproxima etimologicamente a arte divinatória,
mantikê, do delírio, manikê. Michel Casevitz, questiona esta associação
defendendo que ela é falsa, na medida em que inúmeros adivinhos, desde
os tempos homéricos, praticavam sua arte sem estar delirando. Ele conclui
que existe uma espécie de adivinhos que delira enquanto outros são
experts que dominam a arte da conjectura. Ora, nada deixa pensar que,
para Platão, toda adivinhação fosse causada por um delírio, mesmo que a

30
Encontramos esta diferenciação também como ideia central do De Divinatione de Cícero: há dois meios de
adivinhar, pela técnica ou naturalmente (De div., I, VI, 10). No primeiro grupo ficam todas as práticas divinatórias
baseadas na observação na conjectura e no raciocínio, como astrologia, as predições dos aruspícios, os intérpretes
dos prodígios e dos raios, etc. A adivinhação natural por sua vez é possível pelo sono ou pelo furor.
Monalisa Carrilho | 249

melhor adivinhação seja, sem dúvida, aquela que nos vem por um deus.
Além disso, se reconhecemos Platão como o autor das Definições, vemos,
ali, uma clara distinção entre adivinhação e arte divinatória, a primeira
sendo “a ciência que consiste em fazer conhecer a ação antecipadamente
sem demonstração”, enquanto a arte divinatória “é o conhecimento
teórico do que é e do que será para um ser vivo mortal”31.
Também no Banquete, a adivinhação de corrida do amor - do homem
habitado por esse daimon - é subtendida ser melhor que aquela de corrida
da arte)32. O apelo à tradição quer salvaguardar ou recuperar verdades
esquecidas ou perdidas. Assim, insistindo sobre o fato de que os antigos
consideravam o delírio como uma “boa coisa”, Platão quer sem dúvida
modificar a opinião comum segundo a qual todo o delírio é negativo.
É preciso então estar fora de si para compreender. A sophrosyne deve
ceder seu lugar à theia mania. O bom senso é, portanto, incompatível com
a divindade:

A profetisa de Delfos, as sacerdotisas de Dodona, prestaram enormes serviços


à Grécia tanto na esfera pública quanto privada quando estavam delirando
(mainesai) enquanto quando tinham toda sua razão (sophrosounai) não
serviam para nada ou quase nada.33

De acordo com esta passagem do Fedro que acabamos de citar,


adivinhação se produz pela intervenção de um Deus. A Sibila e a Pítia estão
fora de si mesmas porque possuídas pelo Deus (entheos). A adivinhação
em Platão seria, portanto, um simples furou, uma possessão, uma ajuda

31
Platão, Definições, 414b in Œuvres Complètes, Paris:Gallimard, 1950.
32
“Enfim, aquele que é sabedor nesse assunto é um homem demoníaco enquanto aquele que é sabedor em qualquer
outro domínio em relação seja uma ciência especial seja uma profissão manual é somente um Artesão”. (Banquete,
203a).
33
Fedro, 244b.
250 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

vinda dos deuses. Mas uma passagem do Timeu vem complicar e tornar
ambígua esta posição:

É assim que, querendo endireitar o lado fraco em nós e para que pudesse
aflorar alguma verdade, os deuses instalaram nele o órgão da adivinhação.
Uma prova suficiente de que foi por causa da enfermidade da razão humana
que Deus presenteou com a adivinhação é que nenhum homem em seu bom
senso atingiu uma adivinhação inspirada e verídica, mas é necessário que a
atividade de seu julgamento esteja entravada pelo sono ou pela doença ou
desviado por alguma espécie de entusiasmo.34

Se esta passagem parece reforçar a ideia do Fedro de que não pode


haver verdadeira adivinhação sem o repouso da razão, nós passamos
subitamente de uma causa divina a causas físicas e psicológicas: primeiro,
porque agora existe um órgão da adivinhação; em seguida, porque não há
mais somente o entusiasmo (possessão divina) como causa da
adivinhação, mas igualmente o sono ou a doença. Na mesma passagem,
Platão faz em seguida uma distinção surpreendente: para ele, não se deve
confundir as pessoas que entram em transe e que estão em relação direta
com a divindade com aquelas que só fazem interpretar as divisões e as
palavras dos primeiros. Os primeiros são para ele os verdadeiros
adivinhos, enquanto os outros não passam de profetas. Platão critica, por
sinal, o uso comum de chamar, às vezes, profetas, os adivinhos, como se
eles tivessem uma ligação qualquer com a divindade. Esta diferenciação é
surpreendente porque, falando do furor dionisíaco, Platão diz mania. Mas
talvez ele estivesse usando o uso comum do termo que ele mesmo
criticava. Quem nunca?
Nós possuímos, portanto, todos, um órgão da adivinhação, mas nem
todo mundo é adivinho. É preciso que o órgão seja posto em movimento

34
Timeu, 51e.
Monalisa Carrilho | 251

pela divindade ou pela doença ou ainda pelo sono, para que possa
funcionar. No caso do sono, Platão remete igualmente à intervenção
divina: “as palavras pronunciadas no sonho ou na vigília pelo poder
divinatório que enche de entusiasmo”35.
Tentemos entender em que contexto Platão introduz o órgão da
adivinhação. Seguindo sua tripartição da alma em apetitiva
[concupiscível], irascível e hegemônica, cada parte mora numa parte do
corpo, respectivamente, no fígado, no timo e no cérebro. O órgão da
adivinhação fica no fígado (Timeu, 71e). A explicação é genial: nesta alma
concupiscível, não podendo nunca ouvir a razão, já que é por imagens e
fantasias que ela se deixa impressionar, os deuses colocaram diante dela o
fígado, órgão denso, liso e brilhante, para que pudesse servir de espelho
aos pensamentos que vêm da inteligência. Ele é, portanto, intermediário
entre o intelecto e a alma apetitiva. O intelecto utiliza as duas qualidades
do fígado, o amargo e o doce, para provocar sensações ora positivas ora
negativas. É desta maneira que

durante a noite ele [o intelecto] a acalma [a alma apetitiva], a torna capaz, no


sono, de usar a adivinhação porque ela não participa nem dos raciocínios nem
da reflexão.36

Agora se coloca o problema da razão. Nós vimos que para estar em


contato com a verdade dos pensamentos divinos, não se pode ser dono de
si mesmo, quer dizer, nem usar raciocínio nem reflexão. É, portanto, à
parte da alma que é completamente alheia a essas duas atividades, à alma
apetitiva, que cabe praticar a adivinhação. O intelecto comunica
diretamente com ela através das imagens porque é a única linguagem que

35
Timeu, 72e.
36
Ibid., 71a.
252 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ela pode compreender. Será que nós não estaríamos aqui diante da
fórmula hermética “o que está embaixo é como que está em cima”? Pode-
se dizer que o intelecto divino abre parênteses: o que está em cima só se
comunica com a parte menos nobre da alma, aquela que não sofre o
entrave da razão. Quantos mistérios na barriga! Não é um acaso se o
budismo zen considera o hara (ventre, em japonês) como centro vital do
homem. Havia também, na Grécia, os engastrimithoi, faladores de barriga,
a não confundir com os ventríloquos. É daí que sairia, ao que parece, a voz
rouca dos possuídos37.
Como no furor dionisíaco, a questão da posição correta se coloca para
o adivinho e pode ser considerado de duas maneiras: a primeira se refere
a uma técnica que o adivinho tem que dominar para entrar em estado de
transe. Esta técnica coloca em cena o papel das emoções nos transportes e
sua relação com a imaginação:

Quando então a faculdade imaginativa fantasia e divinatória encontra-se bem


ajustada ao estado da exalação, como um remédio adequado, então os profetas
experimentam necessariamente o entusiasmo; mas, quando não é assim o
entusiasmo não acontece ou então acontece erradamente, com desordem e
confusão.38

A Pítia tem que se colocar em estado de se tornar outra pessoa; o


furor começa a se tornar uma arte. Em segundo lugar, a posição correta
pode ter uma conotação moral visando à honestidade do possuído. Com
efeito, como distinguir a verdadeira possessão divina de um estado de
delírio banal ou do charlatanismo? Enfim, não existem somente os
profissionais do furor apolíneo. Cada um de nós, sob condição de não ter
insônia, é suscetível de ver se desvendarem os enigmas do futuro.

37
DODDS. Os gregos e o irracional, pp.78-79. PLUT. DE DEF OR. 9, 414 E.
38
PLUTARCO. De def. Or., 438b.
Monalisa Carrilho | 253

Dormir para conhecer

Para melhor se compreender o que está em questão, vejamos o caso


de Aelius Aristides (Élio Aristides), importante orador grego do séc. II d.C.,
pensador itinerante que ia de cidade em cidade fazer discursos sob
encomenda, em louvor de uma cidade, um Deus ou um personagem
histórico – ele era o que se chamava na época um sofista e queria ter seu
nome imortalizado por sua oratória. Sofrendo desde muito jovem de
diversas doenças, a ironia do destino fez que justamente seus problemas
de saúde o tenham tornado célebre graças a seus notáveis Discursos
Sagrados. Aelius não gostava de intermediários: ao invés de se tratar como
o comum dos mortais por um médico, era dormindo que encontrava o
tratamento a seguir para aliviar seus males. No abandono do sono, era
Asclépios, o grande médico, filho do próprio Apolo, quem vinha visitá-lo.
Ao contrário de Cassandra, o vínculo entre o humano e o divino aqui foi
fecundo, e, o sono, o momento ideal de irrupção do divino na vida terrena.
Heráclito, como já mencionamos, foi um daqueles que colocaram o
acento sobre o caráter liberador e sagrado do sono. Segundo ele, as formas
de entusiasmo, das quais duas provêm da intervenção direta de uma
divindade (Apolo e Dioniso) e a terceira durante o sono, colocam os seres
humanos em contato direto com o Logos, durante o qual ‘os homens
trabalham fraternalmente para o futuro do mundo” (frag.87). Os estoicos
também não deixaram de citá-lo para explicar suas razões de privilegiar o
sono ao estado de vigília:

Heráclito recolhendo sobre esse ponto a concordância dos estoicos, associa a


nossa razão à Razão divina que governa e rege o mundo. Nossa razão, tendo
sido colocada graças a essa companhia constante, na confidência do decreto
254 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

da Razão, anuncia o futuro, quando nossas almas não estão perturbadas pelos
sentidos.39

Cícero colocava a adivinhação durante o sono ao lado do furor, no


contexto da adivinhação natural:

Ou bem é uma força divina preocupada conosco que nos envia advertências
pela via do sonho, ou bem são os intérpretes que, devido a uma harmonia, ou
a uma união natural chamada sympatheia, conseguem saber o que nos sonhos
se aplica tal ou tal acontecimento.40

No De natura deorum (12, 29), são abordados espectros mandados


durante o sono. Cícero se pergunta por que os deuses limitam o envio de
suas advertências às horas consagradas ao sono. Já no De divinatione,
novamente, é a incoerência das ações no sono que o deixa desconfiado:

Se a natureza tivesse previsto que os sonhadores deviam fazer o que veem no


sonho, seria preciso amarrar todos os que vão dormir porque fariam durante
o sono mais extravagâncias do que todos os loucos juntos, e, se não se deve
confiar nas visões dos loucos porque elas são falsas, eu não entendo por que
se deveria fiar às visões dos sonhos que são até muito mais excêntricas.41

Felizmente, a natureza não previu nada desse gênero. Mas a relação


entre a ação e a visão de um lado, e os loucos e os sonhadores do outro,
não diminui em nada a crença nos sonhos premonitórios. O intérprete dos
sonhos (onirocrita) tinha seu lugar na sociedade. Artemidoro foi, sem
dúvida, um dos mais célebres, e ele nos legou um tratado de interpretação
dos sonhos cujo suporte teórico se aproxima, em diversos pontos, da
psicanálise. Contemporâneo de Aelius Aristides, Artemidoro não era, ao

39
Cf. CALCIDIUS (Diels A20).
40
CÍICERO. De divinatione, LX 124.
41
CÍCERO. De div., II, LIX, 122.
Monalisa Carrilho | 255

contrário deste, um inspirado, mas um técnico, um expert em


interpretação, o que nos distancia da possessão divina dos furores.

A transição dos gregos para os latinos

É numa passagem das Tusculanas, de Cícero, que nós encontramos


essas preciosas informações sobre o furor na cultura latina, representando
notadamente o pensamento dos estoicos:

1. a mania é, primeiramente, loucura, insânia, quer dizer falta de sensatez, e, nesse


sentido, ela é muito frequente;
2. a mania é também furor;
3. os gregos quiseram fazer a mesma distinção, mas suas palavras não tinham força;
4. o que os latinos chamam furor, os gregos chamam melancolia;
5. essa distinção é insuficiente, porque a alma pode sofrer outras formas de acesso
além da bile negra.

Vejamos o trecho:

Eu não saberia dizer de onde vem a palavra grega mania; todavia, nós
possuímos distinções melhores que a dos gregos. Com efeito, essa loucura
(insânia) que, estando ligada à falta de juízo é muito frequente, nós a
separamos do furor. Os gregos queriam fazer a mesma coisa, mas suas
palavras não têm força. O que nós chamamos furor, eles chamam melancolia,
como se a alma fosse agitada somente pela bile negra e não, como tantas vezes,
por um acesso mais grave de cólera, de medo ou de dor.42

Nessa passagem, Cícero opera uma curiosa inversão: não cabe mais
ao furor de traduzir o termo grego, mas aos gregos de encontrarem um
termo que corresponda ao furor latino! Porque nem a mania nem a
melancolia bastam. No início do De divinatione, Cícero retoma o problema
nestes termos: os gregos fizeram derivar a adivinhação (mantikê) da

42
CÍCERO. Tusculanas 3, 5.
256 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

loucura (mania) como se os adivinhos fossem todos doentes. Os latinos,


por sua vez, souberam devolver-lhe seu valor divino, fazendo-a derivar de
divi, deuses.
Michel Casevitz, como já vimos, entende dar o verdadeiro sentido de
mantis. Segundo ele, Platão seria o responsável pela associação
delírio/adivinhação, como se todos os adivinhos fossem delirantes. Ora,
desde Homero encontramos o adivinho como mestre de uma arte,
intérprete dos signos em toda a consciência e de forma alguma inspirado
por um Deus ou em estado de delírio. Eu não penso que Platão tenha
querido restringir a atividade do adivinho a um acesso de delírio, mas que
ele quis acentuar o valor maior da adivinhação quando ela vem da
inspiração de um Deus. Cícero, assim como Casevitz, lamenta a associação
platônica, mas as razões diferem. O primeiro critica Platão em nome da
precisão histórica, o segundo, unicamente porque a mania é um termo
ambíguo, podendo desviar a adivinhação de seu caráter divino para fazê-
la cair num contexto de insanidade mental (insania). A insânia, mania, que
Cícero opõe à sensatez, nós a encontramos, por exemplo, no Timeu, onde
Platão fala da ignorância (anoia) como de uma das formas da loucura: “a
doença da alma é, precisamos concordar, a desrazão, e existem duas
espécies de desrazão: uma é a loucura, a outra, a ignorância” (Timeu, 86b).
Mas Cícero devia estar pensando, sobretudo, na oposição estoicas entre
sábios e loucos.
Mas voltemos ao texto das Tusculanas. A presença de dois nomes
para a mania grega não corresponde explicitamente à divisão feita por
Platão, já que, nessa passagem, não se trata de furor divino mas de uma
crise violenta. A identificação do furor com a melancolia é bem
surpreendente, sobretudo se levarmos em conta a terminologia médica da
época. Segundo Jackie Pigeaud, “se nos voltarmos para os médicos, a
justificação é bem difícil, porque eles distinguem nitidamente phrenitis,
Monalisa Carrilho | 257

melancolia e mania”43. Quando Cícero justifica sua tradução, é mais


provável que esteja pensando no significado dado pelos filósofos gregos.
Desse ponto de vista, a associação de melancolia e mania torna-se
perfeitamente justificável quando se conhece, por exemplo, a explicação
do delírio do melancólico dado por Aristóteles no Problema XXX. Cícero
menciona, por sinal, no De divinatione:

Aristóteles pensava que aqueles também que deliram sob o efeito de uma falta
de saúde e que chamamos melancólicos, têm na sua alma uma faculdade de
pressentimento e de adivinhação.44

Assim, Cícero associa tanto a mania quanto a melancolia ao furor e


ao delírio como se, tanto Platão quanto Aristóteles, houvessem profanado
esta “nobre faculdade da alma” que é a adivinhação.
Saber se todo acesso de furor se traduz num ato é um problema difícil
de resolver. Em Cícero, todos os exemplos de personagens “furiosos” são
aqueles em quem o furor desencadeou uma ação tão desmedida quanto o
sentimento que os afligia. Ele acompanha, nisso, a tradição grega do furor
como fenômeno de extroversão, de ação. Apesar desse alargamento do
conceito o termo furor não está menos ligado à divindade quanto estava
em Platão:

Existe então, nas almas, uma faculdade de pressagiar (praesagitio), vinda do


exterior e introduzida nela pelos deuses. Se esta faculdade se inflama ainda
mais, é chamada de furor profético.45

43
PIGEAUD, Jackie. La maladie de l’âme, Paris: Les Belles Lettres, 1989, p. 259.
44
De div., I, XXXVIII, 82.
45
Id., 1, XXXI, ed. cit. p. 66. A tradução da edição Budé que nós utilizamos acrescenta profético ao que Cícero chama
simplesmente furor, cujo sentido profético está implícito segundo o que ele havia escrito antes. A edição inglesa da
Loeb Clássical Library mantém somente furor (frenzy) e acrescenta “ou inspiração” (inspiration), provavelmente
para estar de acordo com esta outra passagem onde encontramos uma definição do furor: “Este arrebatamento [ele
está falando aqui da inspiração poética] também mostra que há nas almas uma força divina. Demócrito afirma que
sem furor (furore) não há grande poeta, e Platão é da mesma opinião (ele chama esse movimento furor (furore),
desde que seja experimentado como é mostrado no Fedro (De div,, XXXVII, 80).
258 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Nós poderíamos então resumir o furor em Cícero como uma


inspiração divina que leva o indivíduo a realizar uma ação extraordinária,
seja a adivinhação, a arte poética ou até a arte oratória. Para concluir esta
breve abordagem dos furores, gostaria de apontar duas balizas do furor-
mania dentro da Weltanchauung antiga. Um dos alicerces da visão de
mundo grega é, como se sabe, a ideia de medida, de bom senso, retidão
(orthos), tudo o que há de mais contrário a qualquer noção de furor. Mas,
da mesma forma que a hybris, a desmedida, o furor será absorvido no
modo de crença grego como para neutralizar suas ameaças de crise, caos,
desordem, como acontece na tragédia.
Do ponto de vista do sujeito, um suporte moral tão rígido quanto de
orthos só se mantém porque existe a mania, uma das formas da hybris no
plano psicológico. O que se teme é aquilo mesmo que legitima o sistema.
De um outro ponto de vista, sem esta possibilidade de excesso, não se
poderia suportar o tédio de uma vida sem acidentes.
Para que a hybris não venha minar por dentro a estrutura social,
inventou-se a arte suprema da simulação: a tragédia. Trata se de provocar
artificialmente a sede do perigo, o thymos, as emoções, de modo que ele
não se desencadeie um surto de forma aleatória. Verdadeira terapia, a
katharsis provocada pela tragédia é somente uma forma mais “civilizada”
(artificial, programada) dos ritos dionisíacos.
Do ponto de vista da crença, o eixo do furor na Antiguidade repousará
na noção de permeabilidade. O sujeito não constitui um campo autônomo.
Se se pudesse falar de uma dialética do furor ela estaria provavelmente
centrada no Fora e no Dentro, imanência e transcendência. A alma sai, a
divindade entra; o corpo é um lugar de circulação onde ninguém domina
um ponto fixo, nada é idêntico a si mesmo, de tal modo que nada se repete
da mesma forma. Toda mudança de humor, por exemplo, é causada por
Monalisa Carrilho | 259

uma entrada ou saída no corpo. Nós estamos, a cada instante, expostos a


essas alterações que nos colocam em devir constante, que nunca fixam
uma imagem nem uma ideia. Fixar, normalizar e criar códigos serão
tarefas da razão. Tornar vivível um corpo que se mexe sem parar, significa
recalcar seu movimento, prender a respiração, criar pontos de ancoragem
suficientemente fortes para que eles consigam dominar as razões do corpo.
Mas, para serem eficazes, esses pontos de ancoragem devem se comunicar
com o corpo e negociar com ele o movimento. A imagem é a única das
formas da alma que pode se fazer compreender pelo corpo. É ela então que
dominará o jogo, espelho cruzado entre o corpo e a alma, lugar de diálogo.
O Fora e o Dentro, participando da mesma natureza, só se separam
pontualmente, e a cada vez que há separação, entra em jogo uma outra
noção, a de intermediário. Esse conceito é mutável porque, suposto ser o
meio entre duas coisas, ele nunca é um centro imóvel. Assim, os deuses
serão intermediários entre o homem e o Destino, os demônios,
intermediários entre os deuses e os homens, o herói ou sábio entre o
comum dos mortais e os demônios, até que se tem a impressão de um
encadeamento, de uma estrutura vertical e fixa dos seres do mundo. Isso
acontecerá mais tarde, a partir do neoplatonismo de Plotino. Por
enquanto, as hierarquias ainda são móveis, cada malha da corrente pode
se ligar a qualquer outra, o mundo grego é um mundo que dança e o furor
é um dos nomes dessa plasticidade.

Referências

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ARISTIDES, Aelius. Discours Sacrés. Trad. et int. de Festugière, Paris: Macula, 1986.

ARISTÓTELES. L’homme de génie et la mélancolie (Problème XXX,1). Trad. et notes Jackie


Pigeaud, Paris: Rivages, 1988.
260 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

CHEVALIER et GHEERBRANT. Dictionnaire des Symboles. Paris: Robert Lafont, 1982.

CÍCERO. De divinatione. Londres: Loeb Classical Library, 1923.

________. De la divination. Trad. Gérard Freyburger et John Scheid, Paris: Belles Lettres,
1992.

________. Tusculanes [2 vol.]. Éd. et trad. J. Humbert, Paris: Belles Lettres, 1968.

CROISSANT, Jeanne. Aristote et les mystères. Paris: E. Droz, 1932.

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Bibliothèque de la Faculté de Liège, Fasc. XCIV, 1942, p. 46.

DELATTE. Les conceptions de l’enthousiasme chez les philosophes grecs. Paris : Les Belles
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DELCOURT, Marie. L’Oracle de Delphes. Paris: Payot, 1981.

DODDS, E. R. Les Grecs et l’irrationnel. Paris: Flammarion, 1977.

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FESTUGIÈRE, A.-J. La philosophie de l’amour de Ficin et son influence sur la littérature


française au XVIe siècle. Coimbra, 1922.

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KLIBANSKI, PANOFSKY, SAXL. Saturne et la Mélancolie. Paris: Gallimard, 1989, pp. 31 sq.

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Monalisa Carrilho | 261

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PLATÃO. Oeuvres Complètes [2 vol.]. Trad. Léon Robin, Paris: Gallimard, 1950.

___. Phèdre. Texte et trad. Paul Vicaire, Paris: Belles Lettres, 1985.

___. Timée. Texte et trad. Albert Rivaud, Paris: Belles Lettres, 1970.

PLUTARCO. Dialogues Pythiques. Paris: Belles Lettres, 1974.


9

Pensamentos ao vento

Felipe Ramos Gall 1

Sopra o vento, sopra o vento,


Sopra alto o vento lá fora;
Mas também meu pensamento
Tem um vento que o devora.

Fernando Pessoa

Xenofonte seguiu os passos de Tucídides, e compreendeu que a sua


tarefa como escritor era legar para a posteridade um κτῆμα ἐς ἀεί, uma
posse para a eternidade. O mais precioso desses tesouros são os
testemunhos de seus encontros com Sócrates, preservando a sua memória
viva. Se faltava a Xenofonte a verve poética de Platão, que é inigualável,
não faltava amor ao mestre. Assim, ele não tinha, como Platão, a
preocupação artística de se ocultar nos seus textos2, chegando mesmo a
dizer expressamente antes de narrar uma conversa: “ἐγὼ δέ (...)
παρεγενόμην”3, isto é, “eu (...) estava junto dele” – foi testemunha ocular,
como convinha a um bom historiador daquela época. O diálogo em
questão se deu entre Sócrates e Eutidemo. Xenofonte assinala, logo no
princípio, que a única preocupação de Sócrates em relação a seus
companheiros era a de promover a sensatez (σωφροσύνη) em relação ao
divino, e que qualidades poderosas como ser hábil na fala (λεκτικός),

1
Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Contato: felipegall@outlook.com
2
Cf. BUARQUE, Luisa. “Mas, cidadãos de Atenas, Platão, aqui presente...”.
3
Cf. XENOFONTE, Memorabilia, 4.3.2.
Felipe Ramos Gall | 263

eficiente no agir (πρακτικός) e ser engenhoso e inventivo (μηχανικός), sem


a sensatez para com o divino, fazem mais mal do que bem, pois a tendência
do poder desatrelado do pudor piedoso é conduzir à injustiça.
Em determinado momento do diálogo, Sócrates diz a Eutidemo que
não se deve ficar esperando que os deuses apresentem a forma plena de
seu aspecto, surgindo em todo o seu esplendor diante de nossos olhos, e
sim que devemos reconhecer a presença divina pelos seus efeitos, que são
manifestos a todos. E, entre outros, Sócrates dá os seguintes exemplos:

E os ventos eles mesmos não são visíveis, e no entanto seus feitos são para nós
evidentes, e nos apercebemos de suas aproximações. Ademais, a alma do
homem, que, mais do que qualquer outra coisa dos seres humanos, participa
do divino, evidentemente reina em nós, mas ela mesma não é visível.4

É a partir dessas considerações que gostaria de iniciar as minhas


divagações sobre o pensamento. A analogia socrática supracitada é deveras
oportuna, pois, tal como a nossa alma, também o pensamento é como o
vento: invisível, mas cuja presença nos afeta. Ele é algo ao léu, leve, solto,
gratuito – e por isso inútil. Pensar é exercício de liberdade, não serve para
nada. A atividade do pensamento é como a tecedura de Penélope, uma
mera relação com o tempo, sem resultados empíricos, pois sabe perder o
que foi feito e dele nada tem a mostrar. Tábua de argila que sempre volta
a se apagar, e por isso é potencialmente todo o universo. Só quem sabe o
valor da inutilidade é capaz de pensar. Guiar-se pela finalidade do útil é
ver na gratuidade do vento nada mais que fonte de energia eólica.
Entretanto, apesar de inútil, o ato de pensar é transformador, pois o
pensamento propriamente dito é uma conversão do olhar, um

4
“καὶ ἄνεμοι αὐτοὶ μὲν οὐχ ὁρῶνται, ἃ δὲ ποιοῦσι φανερὰ ἡμῖν ἐστι, καὶ προσιόντων αὐτῶν αἰσθανόμεθα. ἀλλὰ μὴν καὶ
ἀνθρώπου γε ψυχή, ἥ, εἴπερ τι καὶ ἄλλο τῶν ἀνθρωπίνων, τοῦ θείου μετέχει, ὅτι μὲν βασιλεύει ἐν ἡμῖν, φανερόν, ὁρᾶται δὲ οὐδ᾽
αὐτή.” (XENOFONTE, Memorabilia, 4.3.14. Tradução minha).
264 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

arrebatamento que nos leva e eleva para além das aparências em direção
às ideias, desestabilizando tudo o que parecia ser óbvio, certo e seguro. É
precisamente nesse sentido que Hannah Arendt também se utiliza da
metáfora do vento para refletir sobre o pensamento: ele tira tudo do lugar,
e por isso é perigoso.
Essa perigosa inutilidade do pensamento não passou despercebida
pela sensibilidade cômica de Aristófanes. Em Nuvens, a mais célebre de
suas comédias, Sócrates é representado como o diretor de um “instituto
de pensamento” (φροντιστήριον), que professava o culto às nuvens,
divindades padroeiras dos vagabundos. É de uma aguda perspicácia da
parte de Aristófanes a escolha das nuvens como sendo aquilo que
representa o divino para os pensadores: em primeiro lugar, elas estão no
céu, o que faz delas objetos de contemplação elevados; elas mudam de
forma ao sabor dos ventos, representando o devir e sua mutabilidade
relativista, capaz de pôr em questão os valores; ademais, cultuar as nuvens
também simboliza um materialismo naturalista, que, oferecendo
explicações científicas para os fenômenos, “desencantam o mundo”, o que
acarreta um ateísmo em relação aos deuses olímpicos – o próprio Zeus na
peça é substituído pelo turbilhão (δῖνος), que também evoca algo caótico,
mutável, destrutivo, vazio. A ideia cômica da peça é que só quem não
trabalha, quem é preguiçoso e tem tempo de sobra, pode se dedicar a ficar
contemplando coisas tão efêmeras como as nuvens, ação sumamente
inútil. Contudo, nessa inutilidade reside um grande perigo, o de questionar
e não tomar como algo dado os valores tradicionais, capaz de subverter e
corromper os jovens. Não por acaso, o Sócrates da comédia representa
precisamente as acusações sofridas pelo Sócrates real, que o condenaram
à morte.
Curiosamente, quando o protagonista da peça, interessado em
estudar no φροντιστήριον, ouve lá de um discípulo de Sócrates as façanhas
Felipe Ramos Gall | 265

intelectuais do mestre, ele se questiona: “e ainda nos admiramos com esse


tal de Tales?”5. Essa comparação que Aristófanes estabelece entre Sócrates
e Tales, apresentando ambos como pensadores inúteis que vivem no
mundo da lua e professam saberes ridículos, ecoará em Platão.
Em Nuvens, Sócrates é apresentado pela primeira vez na peça
estando dentro de um cesto suspenso no ar, utilizando-se do mesmo
mecanismo cênico usado para introduzir divindades na trama – o deus ex
machina. Questionado pelo protagonista sobre o que ele fazia lá no alto,
Sócrates responde que ele caminhava no céu e abarcava com o
pensamento (περιφρονῶ) o sol, ao que o protagonista responde com um
trocadilho, dizendo que Sócrates então tem “altos pensamentos” sobre os
deuses, utilizando o termo ὑπερφρονεῖς, que também pode significar
menosprezar, desprezar ou desdenhar (“pensar do alto” no sentido de
rebaixar). A justificativa de Sócrates é que para se pensar as coisas celestes
é preciso se elevar e se misturar com o ar, que é semelhante ao
pensamento (inclusive, até hoje dizemos que pessoas perdidas em
pensamentos estão “aéreas”). Estando no chão, a seiva do pensamento é
tragada pela terra, impossibilitando as descobertas celestes6.
Reverberam ecos disso na famosa digressão do diálogo Teeteto, de
Platão, dedicado à questão do conhecimento. Sócrates defenderá lá a
suposta inutilidade da filosofia, que despreza as questões comezinhas da
vida corriqueira, deixando apenas o corpo percorrendo a cidade, distraído
acerca de tudo que se encontra à mão, enquanto o pensamento vaga em
busca das coisas mais nobres e elevadas. De modo a exemplificar isso,
Sócrates conta uma anedota sobre Tales:

5
“τί δῆτ᾽ ἐκεῖνον τὸν Θαλῆν θαυμάζομεν;” (ARISTÓFANES, Nuvens, v. 180. Tradução minha).
6
Cf. ARISTÓFANES, Nuvens, vv. 223-234.
266 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Tal como, quando Tales observava os astros, Teodoro, e olhava para cima, caiu
num poço. Conta-se que uma elegante e graciosa serva trácia disse uma piada
a propósito, visto, na ânsia de conhecer as coisas do céu, deixar escapar o que
tinha à frente, debaixo dos pés. Esta zombaria serve para todos os que se
dedicam à filosofia.7

O Sócrates platônico não contesta as acusações da comédia; ele


simplesmente propõe uma inversão de perspectiva. De fato, o filósofo
dedicado ao pensamento das coisas mais elevadas é ridículo, mas é ridículo
do ponto de vista da serva trácia, que, sendo escrava, mulher e estrangeira,
é uma pessoa triplamente excluída da cidadania ateniense, representando,
assim, naquele contexto, o epítome da baixeza. Ora, dado que mulheres,
escravos e estrangeiros são personagens recorrentes nas comédias gregas,
não seria desapropriado considerarmos que a serva da anedota simboliza
a comédia em si mesma. Todavia, é importante atentarmos para o fato de
que os adjetivos que Platão usa para qualificar a serva são positivos8: o
adjetivo ἐμμελής significa harmoniosa, o que está no tom, bem
proporcionada, comedida, moderada, apropriada, conveniente, de bom
gosto; já χαρίεσσα, por sua vez, significa graciosa, hábil para fazer alguma
coisa, como também pode significar inclusive culta e refinada. Ademais,
dado o contexto, talvez possamos acrescentar ao seu caráter sagacidade e
espirituosidade. Ou seja, a comédia, ou a crítica cômica à filosofia, também
tem a sua razão e a sua importância.
Uma comprovação disso encontra-se na República. No Livro VI,
Sócrates está discutindo sobre a natureza do filósofo, que, almejando
contemplar a totalidade do divino e do humano, não pode se deixar tocar

7
“ὥσπερ καὶ Θαλῆν ἀστρονομοῦντα, ὦ Θεόδωρε, καὶ ἄνω βλέποντα, πεσόντα εἰς φρέαρ, Θρᾷττά τις ἐμμελὴς καὶ χαρίεσσα
θεραπαινὶς ἀποσκῶψαι λέγεται ὡς τὰ μὲν ἐν οὐρανῷ προθυμοῖτο εἰδέναι, τὰ δ᾽ ἔμπροσθεν αὐτοῦ καὶ παρὰ πόδας λανθάνοι
αὐτόν. ταὐτὸν δὲ ἀρκεῖ σκῶμμα ἐπὶ πάντας ὅσοι ἐν φιλοσοφίᾳ διάγουσι.” (PLATÃO, Teeteto, 174a-b1. Tradução de Adriana
Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, com modificações).
8
Cf. BRANDÃO, Jacyntho. O Filósofo e o Comediante.
Felipe Ramos Gall | 267

por nenhuma ἀνελευθερία, ou seja, servidão, privação de liberdade9.


Contemplando tal totalidade, é impossível para ele julgar que a vida
humana tenha grande importância, e nem tampouco a morte terá grande
importância, e por isso o filósofo não teme a morte. Sócrates vai então
enumerando uma série de qualidades da natureza filosófica, até ser
interrompido bruscamente por Adimanto, que apresenta um famoso
desafio: por mais difícil que seja refutar dialeticamente os argumentos de
Sócrates, a vida fática mostra que os que se dedicaram, desde jovens, ao
estudo da filosofia, persistindo nesse estudo sem esmorecer, na maior
parte dos casos tornaram-se excêntricos e maus, ou, na melhor das
hipóteses, inúteis para a cidade10. Não cabe aqui analisarmos a resposta de
Sócrates, que é a famosa metáfora da Nau-Estado11. Importa-nos apenas
que, a princípio, Sócrates afirma que os que dizem isso dos filósofos dizem
a verdade12. E isso, claro, não pelo valor dos filósofos em si, e sim pela
aparência que eles têm para o senso comum, para a multidão. Ou seja, se
para a multidão os filósofos são maus e inúteis, eles cumprem todos os
requisitos para serem considerados ridículos, pois, de modo geral, o
propriamente ridículo, segundo Platão, é o mal, e, mais especificamente, a
fraqueza impotente, que, no caso do filósofo aqui, é a sua inutilidade13.
Parecer inútil aos olhos da maioria é a sina de todos os que decidem se
dedicar à filosofia, desde os seus primórdios.
E talvez tenha sido por isso que Platão tenha optado por utilizar a
figura de Tales na anedota do Teeteto, uma vez que Tales era considerado

9
Cf. PLATÃO, República, VI, 486a3.
10
Cf. PLATÃO, República, VI, 487b-d.
11
Para uma análise pormenorizada dessa questão, cf. BUARQUE, Luisa. Filósofos perversos e inúteis: o desafio de
Adimanto e a comédia aristofânica.
12
Cf. PLATÃO, República, VI, 487d10.
13
Chama a atenção que, nesse contexto (488e s.), Sócrates caracteriza o ἀληθής κυβερνητικός, o verdadeiro piloto da
Nau-Estado, i.e., o filósofo, como um μετεωροσκόπος, “observador de astros”, um ἀδολέσχης, “tagarela”, e um
ἄχρηστος, “inútil”, precisamente as características do seu alter ego representado em Nuvens, numa clara alusão à
crítica da peça.
268 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

o primeiro filósofo – ou seja, podemos considerar que a intenção de Platão


era mostrar que o filósofo já fazia papel de ridículo desde o princípio,
literalmente. Digo isso porque a anedota eternizada por Platão espelha um
texto mais antigo, uma fábula de Esopo sobre o astrólogo, que não faz
referência a ninguém em específico. A fábula diz o seguinte:

O astrólogo, saindo toda vez ao entardecer, tinha o costume de examinar as


estrelas. Pois bem: certa vez, perambulando até as cercanias e com toda a
atenção voltada para o céu, sem perceber caiu num poço. Enquanto gemia e
gritava, alguém que passava, ao ouvir seus lamentos, aproximando-se e
descobrindo o que tinha acontecido, disse para ele: “Ei, você, que pretende
contemplar o que está no céu: o que está sobre a terra você não vê?”. – Essa
história alguém poderia aplicar àqueles seres humanos que se pavoneiam das
suas excentricidades, mas não conseguem realizar o que é corriqueiro.14

A moral da fábula alerta contra a ἀλαζονεία, a arrogância ou


presunção, uma certa ὕβρις de se querer parecer superior ao que
realmente se é. Apesar de a principal tese platônica sobre o cômico,
apresentada no Filebo (48-50), seguir nessa direção, a fábula de Esopo não
apresenta nenhum riso explícito, apenas uma admoestação. Desse modo,
Platão não só se apropriou dessa fábula como deliberadamente resolveu
associar o astrólogo a Tales, e também fez questão de apontar que ele havia
sido alvo de zombaria e riso; ademais, o transeunte, que na fábula não tem
nenhuma caracterização, a não ser existir, recebe de Platão toda uma série
de determinações, como gênero, origem, posição social e qualidades de
caráter, indicando, claramente, que também se trata de uma figura
importante, nem que seja pelo mero contraste.

14
“Ἀστρολόγος ἐξιὼν ἑκάστοτε ἑσπέρας ἔθος εἶχε τοὺς ἀστέρας ἐπισκοπῆσαι. Καὶ δή ποτε περιιὼν εἰς τὸ προάστειον καὶ τὸν
νοῦν ὅλον ἔχον πρὸς τὸν οὐρανὸν ἔλαθε καταπεσὼν εἰς φρέαρ. Ὀδυρομένου δὲ αὐτοῦ καὶ βοῶντος, παριών τις, ὡς ἤκουσε τῶν
στενάγμων, προσελθὼν καὶ μαθὼν τὰ συμβεβηκότα, ἔφη πρὸς αὐτον· ̔ Ὦ οὗτος, σύ τὰ ἐν οὐρανῷ βλέπειν πειρώμενος τὰ ἐπὶ τῆς
γῆς οὐχ ὁρᾷς;ʼ Τούτῳ τῷ λόγῳ χρήσαιτο ἄν τις ἐπʼ ἑκείνων τῶν ἀνθρώπων οἳ παραδόξως ἀλαζονεύονται, μηδὲ τὰ κοινὰ τοῖς
ἀνθρώποις ἐπιτελεῖν δυνάμενοι.” (ESOPO, Fábulas, C65/P40. Tradução de André Malta).
Felipe Ramos Gall | 269

Há vários indícios de que essa imagem de Tales como um paradigma


do pensador era recorrente no imaginário grego, como foi atestado por
Aristófanes e Platão. Também Aristóteles conta uma anedota sobre ele que
segue nesta mesma direção15: censuravam Tales por ele ser pobre, o que
comprovava a inutilidade da filosofia. Tales, então, tendo intuído em
pensamento (κατανοήσαντα), a partir de suas observações e
conhecimentos astronômicos, que a colheita de azeitonas daquele ano
seria muito farta, ele, ainda no inverno, levantou uma pequena quantia de
dinheiro e alugou todas as prensas de azeitona que estavam disponíveis
em Mileto e em Quios, usadas para produzir azeite. Como era inverno, não
havia nenhuma procura e concorrência por esses equipamentos, e,
portanto, Tales conseguiu tudo por um preço muito baixo. Quando chegou
a primavera, todos os agricultores, diante daquela safra enorme, ficaram
desesperados atrás de prensas, e aceitavam pagar a Tales valores
altíssimos para poder utilizá-las. A moral da história, diz Aristóteles, é “ὅτι
ῥᾴδιόν ἐστι πλουτεῖν τοῖς φιλοσόφοις”, isto é, “que é fácil para os filósofos
serem ricos”, caso eles assim quisessem; a questão é que eles não querem,
pois o ganho material não é o seu interesse.
A riqueza é um bem especificamente humano; “os asnos preferem
palha ao ouro”, já dizia Heráclito16. Dedicar a vida ao bem humano
significa, para Aristóteles, cultivar a φρόνησις, a prudência ou sabedoria
prática, virtude que determina a ação correta a se tomar em cada
circunstância particular da vida, em prol de tal bem. O fim último da vida
humana, sua destinação e o seu maior bem, é a εὐδαιμονία. É grande a
perda semântica quando simplesmente se traduz este termo por
“felicidade”, que, além de brega, parece ser algo evidente. Δαίμων é o
gênio, o espírito que habita em cada um de nós, a força própria de cada

15
Cf. ARISTÓTELES, Política, I, 1259a5-21.
16
“ὄνους σύρματ' ἂν ἑλέσθαι μᾶλλον ἢ χρυσόν” (HERÁCLITO, Fragmento IX).
270 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

indivíduo – daí também poder ser compreendido como “destino”, o lote


ou quinhão de cada um, de cada vida. Desse modo, ser εὐδαίμων até pode,
sim, ser compreendido como “ser um felizardo”, entendendo o prefixo “εὐ-
” como meramente “bom”, isto é, como sendo alguém que deu a sorte de
ter um “bom δαίμων”, um bom quinhão, alguém que “nasceu em berço de
ouro” e tem tudo na vida, todas as oportunidades. Todavia, uma tal
compreensão do termo está marcada pela passividade, como se o destino
de cada um estivesse escrito de antemão, e fôssemos meros joguetes da
providência, marionetes iludidas que se creem livres. Contra essa ideia,
mostra-se muito mais oportuna a interpretação de que o “εὐ-” é o bom ou
o bem no sentido de intensidade, de consumação, plenitude, de levar algo
ao máximo de sua potência; assim, somente é εὐδαίμων aquele que
atendeu ao chamado de seu gênio e desenvolveu ao máximo a sua força,
as suas capacidades ou potências próprias. Daí que foi de uma enorme
sagacidade a tradução proposta por Cícero de φρόνησις por prudentia,
uma vez que esta é uma contração de providentia: a providência não está
dada previamente, escrita em pedra, mas está em nosso poder, se fazendo
a cada decisão que tomamos. Assim, εὐδαιμονία seria responder ao
chamado de sua vocação própria, tornar-se quem se é, ou, numa expressão
talvez já desgastada, viver autenticamente.
No entanto, Aristóteles tem a sutileza de distinguir dois modos ou
duas formas de εὐδαιμονία, ambas regidas por excelências do pensamento.
Uma dessas excelências é, justamente, a prudência, que tem como escopo
o bem humano. Exercer a prudência e por ela guiar a existência é buscar
ser εὐδαίμων na vida ativa, é a realização de vida na dimensão da política.
Uma vez que tal dimensão dá-se sob a égide do acaso e da contingência,
vários dos bens que perfazem esse aspecto da plenitude humana são
instáveis, estando à mercê da sorte. Fatores como a riqueza, a honra e a
beleza, que são importantes bens humanos, podem ser perdidos a
Felipe Ramos Gall | 271

qualquer instante. Nessa perspectiva, diz Aristóteles, talvez Sólon tivesse


razão, quando disse que ser humano algum pode ser chamado de realizado
ou pleno (εὐδαιμονιστέον) enquanto estiver vivo, e que devemos, antes,
olhar para o seu fim, antes de julgar17. A única estabilidade possível de ser
conquistada em prol da εὐδαιμονία na vida ativa é o exercício das virtudes,
pois a têmpera do caráter, uma vez consolidada, resiste aos ventos da
mudança e da adversidade. Por isso que a prudência, atividade do
pensamento que determina e possibilita o exercício das virtudes éticas18, é
a providência que nos é possível.
Todavia, há uma segunda excelência do pensamento que determina
uma outra dimensão da εὐδαιμονία: trata-se da σοφία, a sabedoria. A
sabedoria é uma atividade, um modo de pensamento, cujo único fim é o
próprio pensar ele mesmo. Com muita lucidez, Aristóteles irá associar a
atividade da sabedoria, que é a própria filosofia, a Tales:

Por essa razão as pessoas dizem que Anaxágoras e Tales e outros deste gênero
são sábios, mas não prudentes, quando se aperceberam de que estes
desconheciam o que era bom para eles próprios; e, embora dissessem que
aqueles sabiam coisas extraordinárias, espantosas, difíceis de aprender e
divinas, por outro lado, de nada lhes servia saberem de tudo isso. Na verdade,
não procuraram saber qual era o bem para o humano.19

17
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, I, 1100a10-11. A citação de Sólon encontra-se em HERÓDOTO, Histórias, I, 30-
33.
18
Para Aristóteles, falar das virtudes éticas implica, necessariamente, falar de caráter. E caráter, segundo ele, é
intrínseco ao hábito, tal como podemos ler numa passagem preciosa e muito pouco citada da Ética a Eudemo
(1220a38-1220b1, tradução minha): “É evidente, portanto, que a virtude ética está relacionada aos prazeres e às
dores. E, dado que o caráter (ἦθος), como o próprio nome sinaliza, é um aumento do hábito (ἔθους)...” Ou seja, assim
como o “eta”, o “é longo”, é um aumento do “épsilon”, o “e breve”, também o caráter, ἦθος com “η”, seria um aumento
do hábito, ἔθος com “ε”. Por conseguinte, o caráter nada mais é que um hábito alongado.
19
“διὸ Ἀναξαγόραν καὶ Θαλῆν καὶ τοὺς τοιούτους σοφοὺς μὲν φρονίμους δ' οὔ φασιν εἶναι, ὅταν ἴδωσιν ἀγνοοῦντας τὰ
συμφέροντα ἑαυτοῖς, καὶ περιττὰ μὲν καὶ θαυμαστὰ καὶ χαλεπὰ καὶ δαιμόνια εἰδέναι αὐτούς φασιν, ἄχρηστα δ', ὅτι οὐ τὰ
ἀνθρώπινα ἀγαθὰ ζητοῦσιν.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VI, 1141b4-8. Tradução de António de Castro Caeiro,
modificada).
272 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Se o bem, assim como o ser, é dito de muitos modos, a sabedoria


consiste na apercepção de que o bem humano não é o bem mais elevado
que há, uma vez que o ser humano não é o ente mais importante que existe
– o sumo bem é o divino, que move todo o universo. Por conta disso, não
é nada casual que o nome de Anaxágoras figure ao lado do de Tales entre
aqueles que são reputados sábios. No décimo e último livro da Ética a
Nicômaco, que tematiza justamente a εὐδαιμονία mais elevada, que é fruto
da sabedoria enquanto atividade do pensamento, Aristóteles assevera que,
para Anaxágoras, a realização plena da capacidade vital (εὐδαιμονία) não
envolve nem riqueza e nem poder (οὐ πλούσιον οὐδὲ δυνάστην), e,
portanto, não deveria causar espanto que tal concepção parecesse algo
estranho (ἄτοπος) para a maioria das pessoas, uma vez que o vulgo só é
capaz de julgar aquilo que é superficial, já que é só isso que eles são capazes
de perceber20.
Concordar com os pareceres dos sábios (σοφῶν δόξαι) é um critério
de verdade, e Aristóteles não só está de acordo com a tese de Anaxágoras
supramencionada, como também via nele um importante predecessor, na
medida em que Anaxágoras defendia que o pensamento (νοῦς) era o
princípio do mundo e a causa do ordenamento do universo, e, portanto,
quando comparado aos delírios de bêbado proferidos por seus
antecessores, Anaxágoras era como que o primeiro sóbrio (νήφων) a
discursar sobre essas coisas21. No entanto, ainda que Anaxágoras tenha
intuído, acertadamente, que o pensamento era a causa motora do mundo,
ele, assim como todos os demais “pré-aristotélicos”, incluindo Platão,
havia deixado de entrever a existência de uma quarta causa para além das
causas material, formal e eficiente: trata-se da causa final, isto é, o ἕνεκα,

20
“ἔοικε δὲ καὶ Ἀναξαγόρας οὐ πλούσιον οὐδὲ δυνάστην ὑπολαβεῖν τὸν εὐδαίμονα, εἰπὼν ὅτι οὐκ ἂν θαυμάσειεν εἴ τις ἄτοπος
φανείη τοῖς πολλοῖς· οὗτοι γὰρ κρίνουσι τοῖς ἐκτός, τούτων αἰσθανόμενοι μόνον”. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X,
1179a13-16).
21
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 984b15-18.
Felipe Ramos Gall | 273

o em prol de que, em vista de que das coisas, tanto no sentido de


completude e acabamento quanto de finalidade e bem. Para Aristóteles, a
causa final é a grande descoberta de seu pensamento, que ressignifica toda
a tradição filosófica anterior.
Como Aristóteles se arroga de ter sido o primeiro a ter visto
claramente esta quarta causa, ele deve ter considerado necessário criar
tanto uma expressão quanto um termo para designar sua descoberta, pois
não havia nada no léxico filosófico precedente que pudesse se adequar
perfeitamente a ela. Por conseguinte, creio que esse fim, esse em vista de
que, é expresso, numa perspectiva metafísica, primeiramente como τὸ τί
ἦν εἶναι, isto é, numa tradução literal, “o que era para ser”, que, sendo a
própria causa formal22, de certo modo é um λόγος, é uma “definição”, uma
expressão de essência, de “quididade”; e, em segundo lugar, o fim também
é expresso como ἐντελέχεια, cunhado por Aristóteles a partir de ἐντελής,
completude, acabamento, e ἔχειν, ter, possuir – ou seja, ἐντελέχεια seria,
literalmente, um estar de posse de sua completude, um ter alcançado a
plenitude. Com efeito, o τὸ τί ἦν εἶναι é a causa final projetada, seu design
ou desígnio, e por isso um λόγος, ao passo que a ἐντελέχεια é causa final
realizada: o que era para ser agora é, cumpriu-se. Não à toa Aristóteles
expressará claramente: o ἕνεκα é o τέλος e o λόγος da οὐσία23. Destarte,
essas duas noções são mutuamente complementares e, em certo sentido,
dizem o mesmo: as causas formal e final são intrínsecas.
Nessa perspectiva, fica claro o porquê de a εὐδαιμονία ser o nosso fim,
como também o porquê de ela ser compreendida como uma atividade: a
vida humana é um constante pôr-se em obra (ἐν-έργεια) em prol de sua
plenitude (ἐντελέχεια). Entendo que é por conta disso que ambos os
termos foram traduzidos para o latim como actus, ato: a ἐντελέχεια é ato

22
Cf. ARISTÓTELES, Analíticos posteriores, II, 94a21.
23
“τό τε οὗ ἕνεκα ὡς τέλος καὶ ὁ λόγος τῆς οὐσίας” (Cf. ARISTÓTELES, Geração dos animais, 715a5).
274 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

do homem considerado em si, ao passo que a ἐνέργεια é o ato do homem


para si. Como, segundo Aristóteles, a essência é primeira em relação à
existência (tanto no sentido de prioridade ontológica, quanto de
dignidade), a ἐντελέχεια foi caracterizada como ato primeiro, e a ἐνέργεια,
ato segundo. Na perspectiva da existência, a nossa obra (ἔργον), nossa
tarefa própria, vital, é aproximar o máximo possível a ἐνέργεια da
ἐντελέχεια, pois a plenitude é a determinação do nosso agir, o fim último
que converge todas as nossas decisões relativas a fins próximos.
Todavia, isso significa também que a vida humana é oca, e, por ser
esse vazio, é sempre um gerúndio: um sendo, se fazendo, agindo. Existir
para o homem é sempre um ainda não ser enquanto tal, enquanto homem
propriamente. Assim, a nossa perfeição, nosso fim pleno, é um perene e
constante “ainda não”24. É por causa disso que Aristóteles afirmará que,
dentre todos os viventes, o coração do ser humano é o único que salta, pois
o ser humano é o único animal que tem esperanças e expectativas em
relação ao futuro, ou preocupações com o destino25. O coração do ser
humano anda sempre na frente de seus pés, pois o presente é, para nós, já
sempre futuro. Passamos nosso tempo presente perdidos em meio a uma
miríade de expectativas, esperanças, preocupações, medos e anseios. É
com isso que gastamos nossa energia.
Nesse sentido, a sabedoria, enquanto atividade do pensamento, é a
nossa destinação máxima porque o νοῦς é a essência mesma da alma, da
vida humana. Todos os demais animais possuem alma sensitiva, o ser
humano é o único animal dotado de alma noética. Misteriosamente,
contudo, o νοῦς não é uma faculdade do nosso corpo, e isso pelo seguinte
motivo:

24
Afinado com essa ideia, Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Ausência, belamente diz: “Por muito tempo
achei que a ausência é falta./E lastimava, ignorante, a falta./Hoje não a lastimo./Não há falta na ausência./A ausência
é um estar em mim”.
25
Cf. ARISTÓTELES, Partes dos animais, III, 669a13-22.
Felipe Ramos Gall | 275

Ora, se o pensar é como o perceber, ele seria ou um certo modo de ser afetado
pelo pensável ou alguma outra coisa desse tipo. É preciso então que esta parte
da alma seja impassível, e que seja capaz de receber a forma e seja em potência
tal qual, mas não o próprio objeto; e que, assim como o perceptivo está para
os objetos perceptíveis, do mesmo modo o pensamento está para os pensáveis.
Há necessidade então, já que ele pensa tudo, de que seja sem mistura – como
diz Anaxágoras –, a fim de que domine, isto é, a fim de que tome
conhecimento: pois a interferência de algo alheio impede e atrapalha. De modo
que dele tampouco há outra natureza, senão esta: que é capaz. Logo, o assim
chamado pensamento da alma (e chamo de pensamento isto pelo qual a alma
pensa de modo discursivo e concebe) não é em atividade nenhum dos seres
antes de pensar. Por isso, é razoável que tampouco ele seja misturado ao corpo,
do contrário se tornaria alguma qualidade – ou frio ou quente – e haveria um
órgão, tal como há para a parte perceptiva, mas efetivamente não há nenhum
órgão.26

O νοῦς, potencialmente, pode pensar tudo. Se ele tivesse uma causa


material, um órgão físico, as afecções corpóreas implicariam uma
necessária limitação de sua capacidade; logo, o νοῦς é imaterial e como que
separado do corpo. O νοῦς, a essência do humano, por ser potencialmente
infinito, não tem lugar no corpo, que é a própria expressão natural da
finitude, e por isso o ser humano é, fundamentalmente, ἄτοπος, estranho,
estrangeiro em meio à natureza. A alma humana, embora unida ao corpo,
excede a sua proporção: é como se o corpo humano fosse um cobertor
curto, que, se cobre a cabeça, descobre os pés. O ser humano é,
efetivamente, desproporcional, um todo maior do que a soma das partes.

26
“εἰ δή ἐστι τὸ νοεῖν ὥσπερ τὸ αἰσθάνεσθαι, ἢ πάσχειν τι ἂν εἴη ὑπὸ τοῦ νοητοῦ ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον. ἀπαθὲς ἄρα δεῖ εἶναι,
δεκτικὸν δὲ τοῦ εἴδους καὶ δυνάμει τοιοῦτον ἀλλὰ μὴ τοῦτο, καὶ ὁμοίως ἔχειν, ὥσπερ τὸ αἰσθητικὸν πρὸς τὰ αἰσθητά, οὕτω τὸν
νοῦν πρὸς τὰ νοητά. ἀνάγκη ἄρα, ἐπεὶ πάντα νοεῖ, ἀμιγῆ εἶναι, ὥσπερ φησὶν Ἀναξαγόρας, ἵνα κρατῇ, τοῦτο δ' ἐστὶν ἵνα γνωρίζῃ
(παρεμφαινόμενον γὰρ κωλύει τὸ ἀλλότριον καὶ ἀντιφράττει)· ὥστε μηδ' αὐτοῦ εἶναι φύσιν μηδεμίαν ἀλλ' ἢ ταύτην, ὅτι δυνατός.
ὁ ἄρα καλούμενος τῆς ψυχῆς νοῦς (λέγω δὲ νοῦν ᾧ διανοεῖται καὶ ὑπολαμβάνει ἡ ψυχή) οὐθέν ἐστιν ἐνεργείᾳ τῶν ὄντων πρὶν
νοεῖν· διὸ οὐδὲ μεμῖχθαι εὔλογον αὐτὸν τῷ σώματι· ποιός τις γὰρ ἂν γίγνοιτο, ἢ ψυχρὸς ἢ θερμός, κἂν ὄργανόν τι εἴη, ὥσπερ τῷ
αἰσθητικῷ· νῦν δ' οὐθὲν ἔστιν.” (ARISTÓTELES, De anima, III, 429a13-27. Tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis,
modificada).
276 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Ainda assim, Aristóteles não vê outra solução para falar do νοῦς a não
ser compará-lo, metaforicamente, a um instrumento:

O pensamento é de certa maneira em potência os objetos pensáveis, mas antes


de pensar nada é em atualidade; e em potência é assim como uma tabuleta em
que nada subsiste atualmente escrito, e é precisamente isto o que ocorre no
caso do pensamento. E ele próprio é pensável tal como os objetos do
pensamento, pois no tocante ao que é sem matéria, o que pensa é o mesmo
que o pensado.27

O pensamento não é, portanto, uma “coisa”, mas pura potência. A


tabuleta de cera, a famosa tabula rasa, enquanto não é grafada, pode
potencialmente abarcar qualquer letra, palavra e enunciado, como
também pode ser usada para se desenhar imagens, projetos, diagramas,
bem como ser utilizada para se fazer cálculos, contas, expressões
algébricas e figuras geométricas. E o mais admirável é que, mesmo depois
de ter sido marcada por qualquer uma dessas coisas, ela sempre pode ser
apagada mais uma vez, voltando a ser pura potência.
Não podemos deixar de notar o quanto essa metáfora é material: o
νοῦς seria algo análogo à materia prima, isto é, uma matéria sem nenhuma
forma, e que justamente por isso é infinita potência de receber qualquer
forma, mas que, propriamente dizendo, inexiste na natureza, pois nela
toda matéria já sempre e necessariamente está unida a uma forma. Se
prestarmos atenção, todos os exemplos enumerados acima quanto aos
possíveis usos da tabuleta noética estão essencialmente ligados à
linguagem, pois até mesmo a matemática é uma linguagem. Ora, se a alma
humana é noética, e se é próprio da alma desenvolver seus órgãos, seus

27
“ὅτι δυνάμει πώς ἐστι τὰ νοητὰ ὁ νοῦς, ἀλλ' ἐντελεχείᾳ οὐδέν, πρὶν ἂν νοῇ· δυνάμει δ' οὕτως ὥσπερ ἐν γραμματείῳ ᾧ μηθὲν
ἐνυπάρχει ἐντελεχείᾳ γεγραμμένον· ὅπερ συμβαίνει ἐπὶ τοῦ νοῦ. καὶ αὐτὸς δὲ νοητός ἐστιν ὥσπερ τὰ νοητά. ἐπὶ μὲν γὰρ τῶν
ἄνευ ὕλης τὸ αὐτό ἐστι τὸ νοοῦν καὶ τὸ νοούμενον.” (ARISTÓTELES, De anima, III, 429b30-430a4. Tradução de Maria
Cecília Gomes dos Reis, modficada. Grifo meu).
Felipe Ramos Gall | 277

instrumentos, para consumar suas necessidades28, e se o νοῦς tem


necessidade da linguagem para ser propriamente, então a alma humana
desenvolverá a linguagem. O ser humano é, pois, o animal dotado de
λόγος. Dado que o intelecto é imaterial, consequentemente o seu
instrumento, de modo essencial, também o será. Metaforicamente,
contudo, o λόγος é o estilete que grava sinais e símbolos na tabuleta de
cera, e, com isso, dá alguma forma à pura matéria do intelecto; segundo
Aristóteles, algo que une em si matéria e forma é um existente. O cortar e
grafar do λόγος através do νοῦς gera a διάνοια, o pensamento discursivo,
que é algo que existe, ainda que exista apenas na mente. Mas a alma
humana não se limita a apenas poetar pensamentos para si própria, ela
tem também a necessidade de os expressar; e, por conta disso, o ser
humano desenvolve a fala, ele é capaz de comunicar e expressar seus
pensamentos. Mas essa comunicação, para ser efetiva, necessita de alguns
princípios e algum ordenamento, o pensamento deve ter alguma
estruturação para que sua expressão faça sentido para os outros; assim, a
alma humana, de modo a aprimorar o seu instrumento, deixar o seu λόγος
mais afiado e preciso, desenvolve a lógica – e não deve ter sido por uma
felicíssima coincidência do destino que os tratados aristotélicos sobre a
linguagem tenham sido reunidos numa obra nomeada Órganon.
Desse modo, como não poderia deixar de ser, o desenvolvimento
dessas nossas faculdades próprias será o ἕνεκα do ser humano: “Para nós,
a linguagem (λόγος) e o pensamento (νοῦς) são os fins da natureza”29,

28
Do mesmo modo que, para o camponês se aquecer no inverno, é necessário que faça uma fogueira, e, para fazer a
fogueira, é necessário cortar lenha, e para tal é necessário um machado afiado, e, para ser afiado e funcionar bem, é
necessário que seja de ferro ou bronze, também a alma vai manifestando e produzindo seus instrumentos conforme
a necessidade. E é por causa disso que Aristóteles assevera que, assim como o machado, também o corpo é
instrumento. (“Τοῦτο δ' ἐστὶν ὥσπερ ἐξ ὑποθέσεως· ὥσπερ γὰρ ἐπεὶ δεῖ σχίζειν τῷ πελέκει, ἀνάγκη σκληρὸν εἶναι, εἰ δὲ
σκληρόν, χαλκοῦν ἢ σιδηροῦν, οὕτως καὶ ἐπεὶ τὸ σῶμα ὄργανον”. ARISTÓTELES, Partes dos animais, I, 642a9-11).
Organismo, órgão, ὄργανον, diz, literalmente, “instrumento”. Cada órgão é um instrumento da alma para realizar
suas aptidões, suas funções, suas necessidades. Logo, conforme a compreensão aristotélica, não é por haver o órgão
que há a função, mas justamente o contrário: é por haver a função, a aptidão, que há o órgão.
29
“ὁ δὲ λόγος ἡμῖν καὶ ὁ νοῦς τῆς φύσεως τέλος” (ARISTÓTELES, Política, VII, 1334b15. Tradução minha).
278 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

assevera Aristóteles. Quer dizer: nossa natureza, nossa essência, tem como
necessidade última desenvolver a linguagem, e, por meio desta, o
pensamento. Esse é o nosso fim, nosso propósito, tal como decretado pela
natureza, segundo Aristóteles. Seremos perfeitamente humanos se
concretizarmos esse fim.
Retomando, então, o νοῦς seria como que um sentido puramente
espiritual, capaz de ver o invisível, tocar o intangível, ouvir o inaudível e
assim por diante. Tal como ocorre com o ar, estamos a todo momento
permeados pelo pensamento, embora só o notemos quando ele se move e
nos toca, como uma brisa de vento. Ar é vida, já que a própria vida é
considerada um sopro. O ar está presente na etimologia, logo, na raiz, da
alma30. Respirar é trazer o exterior para dentro de nós, e lançar algo do
nosso interior para fora; a vida começa propriamente com o recém-
nascido inflando seus pulmões pela primeira vez, e termina quando
soltamos o último alento. O ar é o nosso primeiro e último contato com o
mundo.
Pensamento é vento, e por isso alguns filósofos denominavam o
espírito de πνεῦμα. Mesmo a linguagem se materializa na voz, que são
golpes de ar. Ademais, as disposições de ânimo nos afetam como se fossem
uma atmosfera em que nos encontramos subitamente jogados, forçados
assim a respirar daquele ar, que muitas vezes pode nos oprimir e esmagar
– e a angústia é um aperto na garganta, que nos tira o fôlego. Mesmo o
contato com o divino, o entusiasmo, é compreendido como uma
inspiração, e por isso um arrebatamento, um ser tocado e tomado

30
Inclusive, nosso termo “animal” vem do termo latino anima, que significa sopro, e é como se verteu para o latim,
com precisão, o termo grego ψυχή. Literalmente, então, animal é o “animado”, o que possui alma, o que é insuflado
pelo sopro de vida. Anima é também cognato de animus, ânimo, termo que, apesar de expressar aquilo que os gregos
chamavam de θυμός, que, em certo sentido, é a sede das paixões, curiosamente não advém dele: animus vem, na
verdade, do grego ἄνεμος, que significa vendaval ou uma forte brisa. Se a anima é um sopro, o animus é a sua
turbulência, uma procela, quando o sopro revoltado se transforma num vento de tempestade, uma tormenta de
paixões.
Felipe Ramos Gall | 279

repentinamente por algo estranho e adventício. O próprio termo


ἐνθουσιασμός significa estar possuído pelo divino, estar repleto da essência
divina, tornar-se passagem para o divino. Uma vez que o νοῦς não é
corpóreo, não somos nós que pensamos conforme nossa vontade ou
arbítrio, como se o pensar estivesse em nosso poder ou fosse uma
faculdade da nossa subjetividade; ao contrário, é o pensamento que nos
tem, e nos toma quando ele quer, desde que estejamos abertos e receptivos
a ele. Por conta disso que Aristóteles dirá que o ser humano é o único
vivente que participa do divino31. E isso porque, justamente, o pensamento
é, na compreensão aristotélica, o divino ele mesmo.
Seguindo, pois, a intuição fundamental de Anaxágoras, e
aprimorando-a, também Aristóteles defenderá que o νοῦς é o princípio do
universo. Repetindo a atividade de Tales de contemplar o céu e os astros,
Aristóteles intuirá que o movimento do primeiro céu, por ser circular e
perfeito, é contínuo e eterno32. No entanto, a amaviosa ação sinérgica da
esfera das estrelas fixas não poderia se mover por si própria, porque tudo
que está em movimento deve ter sido movido por outro. Precisa existir,
por conseguinte, um primeiro princípio que mova o céu ao mesmo tempo
em que permanece imóvel, pois do contrário haveria uma regressão ao
infinito de moventes, e o infinito é uma ideia abominável para os gregos.
Mas como pode algo mover sem ser movido? Há algo na nossa experiência
que seria análogo a isso? Sim, responde de modo genial Aristóteles: tanto

31
“Τοιοῦτο δ' ἐστὶ τὸ τῶν ἀνθρώπων γένος· ἢ γὰρ μόνον μετέχει τοῦ θείου” (Cf. ARISTÓTELES, Partes dos animais, II,
656a7-8).
32
Num raro arroubo poético de Aristóteles, ele, justificando a importância do estudo das partes dos animais, admite
que a contemplação dos astros eternos é mais nobre e divina do que os estudos daquilo que vem a ser e perece.
Contudo, nossos sentidos são muito limitados para se investigar propriamente esses entes celestes, e então temos
muito mais sucesso estudando os entes que nos são mais próximos. Ou seja, a investigação dos viventes é mais
instigante e mais precisa, e tal exequibilidade concede valor a essa tarefa. Ainda assim, Aristóteles dirá que a alegria
que obtemos contemplando as coisas celestes, ainda que nosso saber sobre elas seja escasso, ainda é maior do que a
alegria advinda do estudo mais acertado de outras coisas, do mesmo modo que um vislumbre fugaz do amado causa-
nos mais alegria do que a visão acurada de uma outra coisa qualquer. Cf. ARISTÓTELES, Partes dos animais, I,
644b23-35.
280 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

o desejo quanto o pensamento movem sem serem movidos33. Por desejo


aqui, ὄρεξις, Aristóteles não está se referindo aos apetites (ἐπιθυμητός),
que são carnais, corpóreos, e sim à “vontade” (βουλητός), enquanto o
desejo orientado pelo belo (καλόν), que, sendo um fim, é, por conseguinte,
um bem. Nesse sentido, o objeto do desejo e do pensamento coincidem:
trata-se de aquilo que é realmente belo e bom, para além de qualquer
aparência. Assim, o primeiro princípio da realidade, sendo
necessariamente esse primeiro motor imóvel, é também o seu fim último,
enquanto aquilo em vista de que se dá o movimento, e, consequentemente,
o tempo e a natureza. E ele, sendo o sumo bem, irá, então, “κινεῖ δὴ ὡς
ἐρώμενον”34, mover o mundo tal como o amado move o amante.
Mais do que isso: Aristóteles compreende que, se o objeto da vontade
e do pensamento coincidem, é porque o próprio pensamento é o princípio
da vontade, que a orienta em conformidade a fins. Por conseguinte, o
primeiro motor imóvel, sendo o primeiro princípio, será puro
pensamento, o pensamento por si mesmo. Dado que, como constatado no
ser humano, o pensamento não é corpóreo, tem-se, então, que o primeiro
motor imóvel é imaterial, pura forma, o que implica ser também puro ato,
uma vez que a potencialidade é propriedade da matéria. Ora, mas se o
pensamento só é na medida em que pensa, o primeiro motor imóvel, sendo
efetivamente pensamento, deve ser também pura atividade, puro verbo,
um eterno pensar. Mas o que poderia ser digno de objeto de pensamento
para o mais elevado e excelente dos seres, a não ser o divino, ou seja, o
primeiro motor imóvel ele mesmo? O deus aristotélico, então, é
pensamento de pensamento, o puro pensamento pensando a si mesmo
por toda a eternidade. Se essa é a atividade de deus, ou, melhor dizendo,
se deus é essa atividade, então o pensamento é divino, e participaremos do

33
“κινεῖ δὲ ὧδε τὸ ὀρεκτὸν καὶ τὸ νοητόν· κινεῖ οὐ κινούμενα.” (ARISTÓTELES, Metafísica, Λ, 1072a26).
34
ARISTÓTELES, Metafísica, Λ, 1072b3.
Felipe Ramos Gall | 281

divino sempre que também desempenharmos essa atividade: pensar é


imitar deus.
A descrição do primeiro motor imóvel que Aristóteles realiza nesse
instante da obra é, de fato, como que um verdadeiro hino para um deus,
da qual arrisco aqui uma tentativa de tradução poética:

Através deste princípio prendem-se o céu e a natureza. Travessia (διαγωγή) é


a sua conduta, de todas a mais excelente; para nós, contudo, tal
comportamento só nos é concedido por breve tempo. Sua eternidade é, para
nós, impossível. Sua atividade (ἐνέργεια) é prazer, e é por isso que a vigília, a
sensação e o pensamento são aprazíveis para nós, bem como a esperança e a
memória, uma vez que são atividades. O pensamento por si e em si mesmo é
a excelência por si e em si mesma; logo, quanto maior o pensamento, maior a
excelência. O pensamento pensa a si próprio conforme a participação (κατὰ
μετάληψιν) do pensável. Pois o pensamento vem a ser com um toque que capta
e apreende o pensável, de modo que o pensamento e o pensado são o mesmo.
Pensar é ser receptivo ao pensável e ao pensamento das essências (τῆς οὐσίας
νοῦς), e estar de posse disso é pôr em obra (ἐνεργεῖ) o pensamento, de modo
que isso, mais do que tudo, parece ser o que o pensamento divino possui. A
contemplação (θεωρία) é, pois, prazerosa e excelente. Desse modo, portanto,
se essa posse plena e perfeita (εὖ ἔχει), que para nós é passageira, pertence a
deus para todo o sempre, ele é maravilhoso (θαυμαστόν); muito mais do que
isso, sendo possuidor dessa maneira, ele é o que de mais maravilhoso há
(θαυμασιώτερον). E ele também é vida (ζωή), no sentido mais profundo, pois a
atividade do pensamento é vida (νοῦ ἐνέργεια ζωή), e ele é essa atividade: ele é
essa atividade por si e em si própria, e por isso é vida excelente e eterna.
Dizemos, portanto, que ser divino é o eterno e excelente viver, de modo que a
perpétua posse da vida em conjunto com a eternidade é o sentido mais
profundo para o divino: pois deus é isso.35

35
“ἐκ τοιαύτης ἄρα ἀρχῆς ἤρτηται ὁ οὐρανὸς καὶ ἡ φύσις. διαγωγὴ δ' ἐστὶν οἵα ἡ ἀρίστη μικρὸν χρόνον ἡμῖν (οὕτω γὰρ ἀεὶ
ἐκεῖνο· ἡμῖν μὲν γὰρ ἀδύνατον), ἐπεὶ καὶ ἡδονὴ ἡ ἐνέργεια τούτου (καὶ διὰ τοῦτο ἐγρήγορσις αἴσθησις νόησις ἥδιστον, ἐλπίδες
δὲ καὶ μνῆμαι διὰ ταῦτα). ἡ δὲ νόησις ἡ καθ' αὑτὴν τοῦ καθ' αὑτὸ ἀρίστου, καὶ ἡ μάλιστα τοῦ μάλιστα. αὑτὸν δὲ νοεῖ ὁ νοῦς
κατὰ μετάληψιν τοῦ νοητοῦ· νοητὸς γὰρ γίγνεται θιγγάνων καὶ νοῶν, ὥστε ταὐτὸν νοῦς καὶ νοητόν. τὸ γὰρ δεκτικὸν τοῦ νοητοῦ
καὶ τῆς οὐσίας νοῦς, ἐνεργεῖ δὲ ἔχων, ὥστ' ἐκείνου μᾶλλον τοῦτο ὃ δοκεῖ ὁ νοῦς θεῖον ἔχειν, καὶ ἡ θεωρία τὸ ἥδιστον καὶ ἄριστον.
εἰ οὖν οὕτως εὖ ἔχει, ὡς ἡμεῖς ποτέ, ὁ θεὸς ἀεί, θαυμαστόν· εἰ δὲ μᾶλλον, ἔτι θαυμασιώτερον. ἔχει δὲ ὧδε. καὶ ζωὴ δέ γε ὑπάρχει·
ἡ γὰρ νοῦ ἐνέργεια ζωή, ἐκεῖνος δὲ ἡ ἐνέργεια· ἐνέργεια δὲ ἡ καθ' αὑτὴν ἐκείνου ζωὴ ἀρίστη καὶ ἀΐδιος. φαμὲν δὴ τὸν θεὸν εἶναι
282 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Esta bela passagem é constantemente marcada pelas distinções entre


nós e o divino: o que para deus é plenitude e eternidade, para nós é fugaz
e momentâneo. Sendo deus ato puro, nele a ἐνέργεια e a ἐντελέχεια
convergem perfeitamente: a sua atividade é a posse mesma de sua
plenitude. Já o ser humano, por sua vez, por mais que seja o vivente dotado
com a forma de deus – pois alma é o nome para a forma dos viventes por
natureza, e a alma do homem é noética, isto é, divina –, ele ainda assim é
sínolo, matéria informada, corpo animado. Por conta disso, a nossa
ἐντελέχεια não está dada; ela é, antes, esforço, sacrifício, é a meta da nossa
ἐνέργεια, nossa atividade, como já vimos. O pensamento, que, no caso de
deus, é puro ato, no ser humano será, ao contrário, pura potência, pura
capacidade, que só se atualiza quando agarra e toma posse do pensável;
uma vez que deus está sempre de posse de si mesmo, ele será o
pensamento eternamente se atualizando, um ato eterno. O ser humano só
é capaz de pensar por pouco tempo, quando, em momentos oportunos,
irrompe subitamente o instante da contemplação. Isso significa que nunca
estamos verdadeiramente de posse de nossas próprias vidas, de nosso
próprio ser, a não ser nesses rasgos de instantes contemplativos, fugazes
como um raio, ou como uma piscadela. Todavia, o quantitativo não é
medida aqui, e lamentar que o instante seja pouco é a suma ingratidão
diante do privilégio de gozar o mais elevado e excelente dos prazeres: a
participação no e do divino, este acontecimento apropriador que, coroando
as considerações éticas de Aristóteles36, configura-se justamente como a
suprema εὐδαιμονία: a intensidade máxima da consumação do divino que
há em nós.

ζῷον ἀΐδιον ἄριστον, ὥστε ζωὴ καὶ αἰὼν συνεχὴς καὶ ἀΐδιος ὑπάρχει τῷ θεῷ· τοῦτο γὰρ ὁ θεός.” (ARISTÓTELES, Metafísica,
Λ, 1072b13-30).
36
Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X, 1178a-1179a.
Felipe Ramos Gall | 283

Referências

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______. “Mas, cidadãos de Atenas, Platão, aqui presente...” Platão tragicômico. O que nos
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de Coimbra, 2009.

______. Memorabilia. Oeconomicus. Symposium. Apologia. Trad. F. C. Marchant e O. J.


Todd. Cambridge: Harvard University Press, 1923.
10

Hegel on Imitation, Art and Natural Form:


Ancient and Modern Questions

Allen Speight 1

Like many other Hegelian principles of aesthetics articulated within


the edited volumes of his Berlin lecture series, Hegel’s approach to the
question of artistic imitation is one which has both a relatively clear official
position as well as a contrasting but more interesting and subtle stance
that offers some resistance to the official position2. The official position, as
I will set out below, appears in Hotho’s Introduction and follows many of
the lines of the eighteenth century’s long critique of the principle of
imitation, but the more interesting engagement with the topic of imitation
requires a look at Hegel’s wider corpus, as well as the influence of other
thinkers on his work.
“Imitation of nature” was a central point of focus for the critique of
the Aristotelian tradition and of classical aesthetics more broadly over the
course of the eighteenth century. Although Hegel in his lectures uses in a
clearly critical way the phrase – Nachahmung der Natur – that is employed
by both eighteenth century critics and proponents of imitation theories,
he also follows some of the critics of this tradition in writing about

1
Associate Professor of Philosophy at Boston University.
2
Most of Hegel’s interpreters have of course taken his “official” position to be highly critical of the notion of artistic
imitation, but, as Stephen Houlgate notes, Arthur C. Danto for one claimed to link Hegel more intimately to “the
renaissance paradigm of mimesis as the ideal” (DANTO. The Abuse of Beauty. Chicago: Open Court, 2003, p. 44);
and Houlgate, “Hegel, Danto and the ‘end of art,’” in: The Impact of Idealism: The Legacy of Post-Kantian German
Thought, general editors Nicholas Boyle and Liz Disley, volume III: Aesthetics and Literature, volume editors
Christoph Jamme and Ian Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 265.
286 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

mimesis in a broader sense. This paper will argue that Hegel’s ultimate
position on the topic of artistic imitation is not only the result of the
eighteenth century critique of the supposed ancient tradition but that it
also draws directly on a more positive valence to the notion of mimesis
that Hegel found first in Aristotle himself and then among contemporaries
such as Goethe and the Romantics. Following a review of the use and
critique of artistic imitation in eighteenth century aesthetics (Section I),
the paper turns to Hegel’s critical discussion of the principle of imitation
(Section II) and then to the Aristotelian and Romantic ways he might be
said to reappropriate mimesis in his aesthetics (Section III).

I. The Eighteenth Century Critique of the Concept of Imitation

Most accounts of eighteenth century aesthetics have emphasized the


central role that the critique of the principle of the “imitation of nature”
played over the course of the theoretical development of the discipline. As
Tzvetan Todorov has argued, “The principle of imitation reigns
uncontested over the theory of art during the first three quarters of the
eighteenth century… No aesthetic writings of the period fail to refer to this
principle: no art escapes it: music and dance ‘imitate’ as much as painting
and poetry do”3. But as the consideration of the supposed principle of the
imitation of nature was explored over the balance of the eighteenth
century, questions concerning art as “imitating nature” began to increase.
August Wilhelm Schlegel articulated a criticism of the attempts that earlier
thinkers such as Batteux and Diderot had made to link art and imitation
by insisting that the real consideration was one of beauty: “either we
imitate nature as it is offered to us, and then it may not appear beautiful;
or we represent it always as beautiful, and then we are no longer imitating.

3
TODOROV. Theories of the Symbol. Trans. Catherine Porter. Ithaca: Cornell University Press, 1982, p. 112.
Allen Speight | 287

Why not say rather that art must represent beauty, and leave nature
entirely aside?”4. This criticism is echoed in Schelling, who came to insist
that “what art creates in its perfection is the principle and norm for the
judgment of natural beauty”5, and in Novalis, who likewise began to speak
of the “tyranny of the principle of imitation”6. In summarizing this
developing critique, the scholar Wladyslaw Folkierski claimed that “All in
all… everyone in the eighteenth century has something critical to say about
the principle of imitation”7 and a number of studies have charted in detail
the development of this critique8.
Yet, as Stephen Halliwell has argued, picking up on a line of thought
he finds in Lovejoy, the principle of imitation is anything but univocal
across this period – in fact, “[t]he undoubtedly widespread romantic
renunciation of mimesis, or equally of ‘the imitation of nature,’ qua
supposed concern with the mere surface plausibility and verisimilitude of
artistic images, became caught up in crosscurrents of aesthetic and critical
argument that cannot ultimately be resolved into a clear-cut pro and
contra dichotomy”9. In Halliwell’s view, “at least some forms of
romanticism and its aftermath mark a renegotiated or redefined
mimeticism, rather than a clean break with the traditions of mimetic
thought”10. Halliwell’s longer argument is that a careful reading of the

4
SCHLEGEL. A Course of Lectures on Dramatic Art and Literature. Trans. J. Black, London, 1904, p. 85.
5
SCHELLING. System of Transcendental Idealism. Trans. Peter Heath. Charlottesville, VA: University of Virginia
Press, 1993, p. 227.
6
NOVALIS. Oeuvres completes. Ed. A. Guerne. Paris, 1975, II. vii. 288.
7
FOLKIERSKI, Wladyslaw. Entre le classicisme et le romantisme: Etude Sur L'esthetique Et Les Estheticiens Du Xviiie
Siecle. Paris-Krakow: Academie Polonaise des Sciences et des Lettres, 1925, p. 117.
8
Cf. also, among others, A. Tumarkin, “Die Überwindung der Mimesislehre in der Kunsttheorie des XVIII. Jhdts,” in:
Festgabe für S. Singer. Tübingen, 1930; W. Preisendanz, “Zur Poetik der deutschen Romantik. I. Die Abkehr vom
Grundsatz der Naturnachahmung,” in: H. Steffen, ed., Die deutsche Romantik. Göttingen, 1967, pp. 54-74; and
Herbert Dieckmann, “Die Wandlung des Nachahmungsbegriffes in der französischen Ästhetik des XVIII. Jhdts,” in:
H. Jauss, ed., Nachahmung und Illusion, 2d ed. Munich, 1969, pp. 28-59.
9
HALLIWELL, Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems, p. 360.
10
HALLIWELL, op. cit., p. 365.
288 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

ancient philosophical sources concerning imitation actually shows a good


deal more ambiguity: the notion of the “imitation of nature,” for example,
often assumed to be associated with Aristotle’s approach to the mimetic
arts, is in fact never applied to them, Halliwell says, but “belongs
exclusively to the general philosophy of nature… and within settings that
address the processes and supposed teleology of nature at large” rather
than to a construal of anything like what come to be considered works of
fine art in the eighteenth century’s sense – an important qualification that
many in the eighteenth (and the twenty-first) century have not always
made11.
The complications involved in unpacking a more complete account of
the role of the mimetic in eighteenth century aesthetics can be seen in the
consideration of a figure like Karl Philipp Moritz, who is given a central
place in Todorov’s account of the Romantic reconstrual of the notion of
aesthetics and imitation. In Moritz, we see a de-emphasis on the language
of imitation, but also a re-appropriation of it in a different sense: there is
a transition from the notion of the imitation of natural objects to nature
itself as a constructive principle. As Todorov sees it, the accent is now no
longer on the relationship of representation (linking the work and the
world) but on the relationship of expression (linking the world and the
artist). And, at the same time, it is not so much the question of nature
providing some external standard but rather a notion of the harmonious
internal connection of parts and whole that becomes important12. And it is
these re-appropriated elements of a new way of understanding the
mimetic tradition that, as we will see in the following sections, serve as a
clear part of Hegel’s inheritance from the Romantics – which, I argue in

11
HALLIWELL, op. cit., p. 352.
12
TODOROV, Theories of the Symbol, c. 6.
Allen Speight | 289

the following sections, is crucial for understanding his own distinctive


view.

II. Hegel’s Critique of Imitation in the Lectures on Aesthetics

Hegel’s initially critical account of imitation in the Hotho version of


the Lectures on Aesthetics is centered in the Introduction’s account of the
putative ends or goals often associated with art:

If in this matter we cast a glance at what is commonly thought, one of the most
prevalent ideas which may occur to us is… the principle of the imitation of
nature. According to this view, imitation, as a facility in copying natural forms
just as they are, in a way that corresponds to them completely, is supposed to
constitute the essential end and aim of art, and the success of this portrayal in
correspondence with nature is supposed to afford complete satisfaction.13

This introductory discussion of imitation in the Aesthetics is framed


around three specific points:
1) Hegel’s first critical point is that imitation is often simply
superfluous (überflüssig): we “already possess” many things we’d imitate
from nature – animals, scenes from nature, human affairs are already “in
our gardens or in our own house or in matters within our narrower or
wider circle of acquaintance”14. What need is there for imitation in such
instances in ordinary life?
2) Hegel’s second point is that imitation might be considered
presumptuous since it most often falls short of nature itself. In discussing
this objection, Hegel makes one of his few considerations of iconoclastic

13
HEGEL. Aesthetics: Lectures on Fine Art. Trans. T. M. Knox. Oxford: Clarendon Press, 1975, I: 41-42. a) das Prinzip
von der Nachahmung der Natur. Dieser Ansicht nach soll die Nachahmung als die Geschicklichkeit, Naturgestalten,
wie sie vorhanden sind, auf eine ganz entsprechende Weise nachzubilden, den wesentlichen Zweck der Kunst
ausmachen, und das Gelingen dieser der Natur entsprechenden Darstellung soll die volle Befriedigung geben (LFA
XIII.64).
14
HEGEL, op. cit., I: 42 (LFA XIII.65).
290 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

cultural claims within the Aesthetics, drawing on his recent reading of


James Bruce’s Travels to Discover the Source of the Nile15. “A Turk,” he
remembers from Bruce’s account, objects to the painting of a fish: “if this
fish shall rise up against you on the last day and say: ‘you have indeed
given me a body but no living soul,’ how will you then justify yourself
against this accusation?”16.
Yet Hegel acknowledges that there are cases of trickily done imitation
where, it seems, the issue is that even within nature (at least for certain
animals) there can be a perceptual responsiveness to art that attests to its
imitative capacities:

The grapes painted by Zeuxis have from antiquity onward been styled a
triumph of art and also of the principle of the imitation of nature, because
living doves are supposed to have pecked at them. To this ancient example
we could add the modern one of Büttner’s monkey which ate away a painting
of a cockchafer in Rösel’s Insektbelustigungen [Amusements of Insects] and
was pardoned by its master because it had proved the excellence of the
pictures in this book, although it had thus destroyed the most beautiful copy
of this expensive work.17

Hegel’s examples here are interesting: both were familiar from the
discussion of imitation in art in Hegel’s time, not least because they also
come up in Goethe’s remarkable discussion of artistic imitation in a brief
1798 dialogue, Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der Kunstwerke:
Ein Gespräch (“On the Truth and Probability of Artistic Works: A
Conversation”), that he published in his new journal Die Propyläen.
Goethe presents in this dialogue a discussion about imitation that is staged
between a spectator and an “advocate of the artist’s” in a German

15
BRUCE, James. Travels to Discover the Source of the Nile. London: 1813, vol. 6, pp. 526-27.
16
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Arts, I: 42.
17
HEGEL, op. cit., I: 42-3 (LFA XIII.66).
Allen Speight | 291

amphitheater18. The amphitheater has a painted scene of spectators, and


the (actual) spectators have objected to this painted scene as something
that is “untruthful and improbable,” which raises the question about the
relation between truth and imitation in art. The advocate insists that the
“truth of art” and the “truth of nature” are “fully different” – that “the
artist ought in no way strive… that his work actually appear as a work of
nature”19. When the spectator insists that he nonetheless “so often” sees
an artistic work as a work of nature (the discussion is about especially
effective operas), the examples of Zeuxis’ cherries and Büttner’s ape come
up: the advocate says that this reaction is only because of a certain lack of
spectatorial cultivation (or that is to say, the birds reveal themselves as
birds in their reactions)20. But what about a cultivated spectator (such as
the character in the dialogue) who nonetheless sees a kind of natural unity
to an artistic work? The advocate here offers an interesting qualification
to the seemingly sharp division between natural and artistic works:
because there is a “harmonization with your better nature [weil es mit
Ihrer bessern Natur übereinstimmt]”; the work is “above nature
[übernatürlich] but not outside of nature [aussernatürlich]”21.
Hegel’s conclusion about such cases as these that have appeared in
Goethe’s dialogue is that “instead of praising works of art because they

18
The whole dialogue is exceptionally rich and raises a number of other questions relevant for considering the
relation between ancient and modern modes of considering mimesis: Halliwell, for example, uses it as a frame for
his larger discussion of the mimetic tradition (see Halliwell, “Mimesis and the History of Aesthetics,” Introduction,
The Aesthetics of Mimesis: Ancient Texts and Modern Problems, pp. 1-6).
19
“das Kunstwahre und das Naturwahre völlig verschieden sei, und daß der Künstler keinesweges streben sollte,
noch dürfe, daß sein Werk eigentlich als ein Naturwerk erscheine” (Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der
Kunstwerke: Ein Gespräch. In Essays on Art).
20
Despite the clear parallels, there are some interesting slight differences: Goethe’s “advocate” speaks of sparrows
(Sperlinge), for example, while Hegel mentions doves (Tauben).
21
Weil es mit Ihrer bessern Natur übereinstimmt, weil es übernatürlich, aber nicht außernatürlich ist. Ein
vollkommenes Kunstwerk ist ein Werk des menschlichen Geistes, und in diesem Sinne auch ein Werk der Natur.
Aber indem die zerstreuten Gegenstände in eins gefaßt, und selbst die gemeinsten in ihrer Bedeutung und Würde
aufgenommen werden, so ist es über die Natur (Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der Kunstwerke: Ein
Gespräch. In Essays on Art).
292 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

have deceived even doves and monkeys, we should just precisely censure
those who think of exalting a work of art by predicating so miserable an
effect as this as its highest and supreme quality”: “by mere imitation [bei
blosser Nachahmung], art cannot stand in competition with nature, and if
it tries, it looks like a worm trying to crawl after an elephant”22. Hegel’s
final use of a simile of animal behavior to complete the discussion of these
examples of imitation rooted in animal perception shows that he seems to
have taken to heart Goethe’s emphasis on the work of art’s unity as
something that can only come from its being a work of human artistry –
something that will be emphasized, as well, in his treatment of the final
example of this section.
3) Hegel’s final point concerning imitation in this introductory
section turns on another striking example, this one taken from Kant’s
Critique of the Power of Judgment: that of the imitated sound of the
nightingale’s call23. Hegel’s critique here of Kant’s example of our response
to the “artificial nightingale” has often been discussed as an instance of his
supposed antithetical stance with respect to beauty in nature, but these
discussions do not always notice the emphasis that Hegel places on the
relation between “free natural production” on the one hand and what he
calls the “free faculty (power) of production in human beings” on the other
hand: in this example, he claims, we recognize

[…] nothing but a trick, neither the free production of nature, nor a work of
art, since from the free productive power of the human being we expect
something quite different from such music which interests us only when, as
in the case with the nightingale’s warbling, it gushes forth purposeless from
the bird’s own life, like the voice of human feeling.24

22
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Arts, p. 43.
23
KANT, Critique of the Power of Judgment, #42.
24
“Wir erkennen darin dann nichts als ein Kunststück, weder die freie Produktion der Natur noch ein Kunstwerk,
denn von der freien Produktionskraft des Menschen erwarten wir noch ganz anderes als eine solche Musik, die uns
Allen Speight | 293

There is much to notice in this passage, but for our purposes, Hegel’s
contrast between the “free production of nature” (die freie Produktion der
Natur) – something that has a unity in its own right – and the greater “free
productive power of the human being” (die freie Produktionskraft des
Menschen) seems to further amplify his point from the Goethean examples
– stressing both the separation of art and nature but suggesting ways in
which the open “purposelessness” of a natural voice might nonetheless
connect to the felt unity experienced by spectators of works created by the
productive power of the human spirit.
Following this initial critical discussion of imitation, Hegel’s further
mentions of the term Nachahmung across the Aesthetics lectures – among
other places, in the sections on the role of nature and natural beauty, in
the section on beautiful individuality at the beginning of the “Ideal of
Beauty” and in specific discussions across the various genres – share a
number of features. For one thing, as we have seen in the initial passages
of the Introduction, Hegel’s mentions of imitation often come reliably
attached to an adjective like “mere” (blosse) or “so-called” (sogenannte),
thus highlighting a certain distance from the principle and frequently a
contrast with a more living and dynamic relation between nature and art.

III. Hegel and the Reappropriation of the Mimetic

While we have noticed both a distancing from the notion of “mere”


or “so-called” imitation, as well as some sense that (like Goethe) Hegel
might nonetheless see something more from his post-classical/post-
Romantic vantage point in the larger mimetic tradition, there are a couple

nur interessiert, wenn sie, wie beim Schlage der Nachtigall, absichtslos, dem Ton menschlicher Empfindung ähnlich,
aus eigentümlicher Lebendigkeit hervorbricht. Überhaupt kann diese Freude über die Geschicklichkeit im
Nachahmen nur immer beschränkt sein, und es steht dem Menschen besser an, Freude an dem zu haben, was er aus
sich selber hervorbringt” (HEGEL, Aesthetics:Lectures on Fine Arts, p. 43).
294 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

of passages concerning imitation that deserve particular attention when


considering Hegel’s engagement with the mimetic tradition.
First of all, Hegel nods at several instances to the Aristotelian and
Romantic notions of constructiveness – a term important to his early
friend Schelling, among others – as a way of construing a broader notion
of mimesis as a form of poiesis or making. To begin with, Hegel makes
clear his debt to the Aristotelian notion of poiesis in the broader sense that
goes beyond mere imitation or copying: “Poetry in general, as the very
word indicates, is something made, produced by a human being, who has
taken it into his imagination, pondered it, and issued it by his own activity
out of his imagination”25. But beyond this nod to the Aristotelian sense of
making, there is also a broader Romantic – artist-centered – conception at
work in his account of the poietic: “Yet another interest, which goes
deeper, arises from the fact that the subject-matter is not just represented
in the forms in which it is presented to us in its immediate existence;
grasped now by the spirit, it is enlarged within those forms and otherwise
changed”26. The human being as creative artist “is a whole world of
matter, which he filches from nature and, in the comprehensive range of
his ideas and intuitions, has accumulated a treasure which he now freely
disgorges in a simple manner without the far-flung conditions and
arrangements of the real world”27.
Among the most discussed passages relevant for a consideration of
Hegel’s view of mimesis, however, is the famous (and famously brief)
claim that Hegel makes about imitation in the extraordinarily concise eight
paragraphs he devotes to art within the Encyclopedia account of Absolute

25
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, I:162 (italics mine).
26
HEGEL, op. cit., 1:164.
27
HEGEL, op. cit., I:163.
Allen Speight | 295

Spirit28. It is worth looking in some detail at the short paragraph (Enc


#558) in this section where Hegel takes up the question of imitation
directly:

For the objects of contemplation, art requires not only an external given
material – (under which are also included subjective images and ideas), but –
for the expression of spiritual truth [Gehalt] – must use the given forms of
nature with a significance which art must divine [ahnen] and possess
[innebehalten] (cf. #411). Of all such forms the human is the highest and the
true, beause only in it can the spirit have its corporeity and thus its visible
expression. This disposes of [es erledigt sich] the principle of the imitation of
nature in art; a point on which it is impossible to come to an understanding
while a distinction is left thus abstract – in other words, so long as the natural
is only taken in its externality, not as the ‘characteristic’ meaningful nature-
form which is significant of spirit [als den Geist bedeutende, charakteristische,
sinnvolle Naturform genommen wird].29

How should we understand this passage? Hegel’s phrase “es erledigt


sich” (“this disposes of the principle…”) would seem to imply a rejection
of the principle of the imitation of nature, but the rest of the sentence
raises an interesting question in the qualification that Hegel makes: that
the principle of imitation is only disposed of if the natural is “taken in its
externality,” but not if we consider it as “the ‘characteristic’ meaningful
nature-form which is significant of spirit.” Hegel’s own intertextual
reference (Enc #411) to his earlier discussion of the “actual soul” in the

28
On the importance of the section as a whole, see my “Art as a Mode of Absolute Spirit: Hegel’s Encyclopedia
Philosophy of Art”, Hegel’s Philosophy of Spirit: A Critical Guide, ed. Marina Bykova. Cambridge: Cambridge
University Press, 2019, pp. 225-242.
29
Die Kunst bedarf zu den von ihr zu produzierenden Anschauungen nicht nur eines äußerlichen gegebenen
Materials, worunter auch die subjektiven Bilder und Vorstellungen gehören, sondern für den Ausdruck des geistigen
Gehalts auch der gegebenen Naturformen nach deren Bedeutung, welche die Kunst ahnen und innehaben muß (vgl.
§ 411). Unter den Gestaltungen ist die menschliche die höchste und wahrhafte, weil nur in ihr der Geist seine
Leiblichkeit und hiermit anschaubaren Ausdruck haben kann.
Es erledigt sich hierdurch das Prinzip der Nachahmung der Natur in der Kunst, über welche keine Verständigung
mit einem ebenso abstrakten Gegensatze möglich ist, solange das Natürliche nur in seiner Äußerlichkeit, nicht als
den Geist bedeutende, charakteristische, sinnvolle Naturform genommen wird.
296 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Anthropology points to the importance of seeing the art/nature relation in


light of his prior discussion of the soul/boy relation. There have been a
number of discussions of how to interpret this important relation. Stephen
Bungay argues that there is a “parallel” between art/nature and
soul/body;30 Julia Peters has argued more strongly that the human figure
is meant to be understood as a “model or guide” that art should seek to
imitate (“art in order to create beautiful things, does not just create shapes
that are like the human figure with regard to the content they bear to their
content or meaning, but it imitates the human figure as found in nature
in the sense that it represents it”)31.
In the context of considering Hegel’s stance on the mimetic tradition
in its ancient and modern forms, I want to suggest an interpretation that
focuses on one important detail of Hegel’s formulation here that has not
been sufficiently discussed – in particular one that involves Hegel’s direct
debt to the Goethean side of the reflection about mimesis, art and nature
in the post-Kantian age and the questions that Goethe raises about the
Vorbild/Nachbild model as a way to construe the relation between nature
and art.
The phrase that interests me here is Hegel’s appeal to the notion of
the “characteristic” and its connection in his view to the task of
understanding the meaning that attaches to a work of art. The
“characteristic” is a term which like the notion of imitation also is given a
place within the introductory pages of the Hotho Lectures: it is a term that
comes from A. L. Hirt and is taken up also with resonance by Goethe32.

30
BUNGAY, Stephen. Beauty and Truth: A Study of Hegel's Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 1984, p. 40.
31
PETERS, Julia. Hegel on Beauty. New York: Routledge, 2015, p. 49.
32
Goethe also had important criticisms of Hirt’s notion too: he was disappointed to see that Hirt thought there wasn’t
much difference between natural and artistic beauty, and Goethe thought Hirt focused too much attention to the side
of aesthetic reception rather than the side of artistic production (see Werner Busch, “Das Charakteristische”, in
Schafaff, Jörn; Schallenberg, Nina; Vogt, Tobias (Hrsgg.): KunstBegriffe der Gegenwart: von Allegorie bis Zip, Köln
2013, S. 25-32 (Kunstwissenschaftliche Bibliothek; 50).
Allen Speight | 297

Although Hegel thinks that Hirt’s formulation of the characteristic is too


abstract, he also thinks that Hirt gets at something in focusing on a
relation that is key for Hegel’s own understanding of artistic expression –
namely, that between an (inner) content and an (outer) form or mode of
expression33. The mesh between these two sides of a work of art – the
content and form – is so intimate, Hegel argues, that there should be
nothing on either side that is superfluous or left out. (As a point of contrast
here – and with an interesting eye to the development of later trends in
nineteenth century aesthetics like Rosenkranz’ notion of caricature in the
context of an aesthetic conception of the ugly – Hegel points out that a
caricature obviously bears a relation to the characteristic, but involves a
move in the direction of exaggeration: interestingly, Hegel says that the
result in such cases is something that risks becoming unnatural
[denaturiert]).
It is clear that Hegel’s discussion of Hirt’s notion of the characteristic
here has an important relation to the “characteristic” way in which body
is said to express spirit in the Encyclopedia section on art and also to what
he has taken from Goethe’s engagement with the question of ancient and
modern art – in both cases, the issue is the relation between what Goethe
called the “significant” (das Bedeutende) and the notion of beauty. With
respect to Goethe, Hegel says: “The supreme principle of antiquity was the
significant [das Bedeutende], but the supreme result of a successful
treatment was the beautiful [das Schöne]”34. Hegel states the conclusion
of this introductory discussion of the characteristic in terms that correlate
with those in Enc #558:

33
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 17. Sehen wir näher zu, was in diesem Ausspruche liegt, so haben wir
darin wiederum zweierlei: den Inhalt, die Sache, und die Art und Weise der Darstellung.
34
HEGEL, op. cit., p. 19. Der höchste Grundsatz der Alten war das Bedeutende, das höchste Resultat aber einer
glücklichen Behandlung das Schöne.
298 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

[…] the spirit and the soul shine through the human eye, through a man’s face,
flesh, skin, through his whole figure, and here the meaning is always
something wider than what shows itself in the immediate appearance. It is in
this way that the work of art is to be significant and not appear exhausted by
these lines, curves, surfaces, carvings, hollowings in the stone, these colors,
notes, word sounds, or whatever other material is used; on the contrary, it
should disclose an inner life, feeling, soul, a content and spirit, which is just
what we call the significance [die Bedeutung] of a work of art.35

In light of this discussion of the characteristic and its importance for


understanding the meaningfulness of art as a unity of content and form,
how should we then construe Hegel’s notion of art’s imitation of nature?
It is important to notice, first of all, that the primary verbs Hegel employs
in #558 to capture what spirit must do with respect to nature are those of
intuiting and dwelling: Geist must intuit [ahnen] natural form and it must
possess or live in it [innebehalten]. The first of these verbs may be a
further part of Hegel’s debt to Goethe – in this case, the poet’s discussions
of intuition and aesthetic perception in his account of recognizing the
phenomena of plant development in his Metamorphosis of Plants:
encountering the “beauty with meaning” that is within nature is a matter
of perceiving/intuiting (nonlinguistically) a configuration within nature
(Goethe’s examples in an interview with Falk: “this fig tree, this little
snake, this cocoon… all are signatures, heavy with meaning”)36.
But how does the perception of such forms relate to the specifically
human form that must also be dwelt in? It is important to remember that
for Goethe nature is not simply a storehouse of existing forms in the sense
of Gestalten that the artist can just pick up in imitative fashion but rather
a creative power for which the formative impulses involved in Bildung are

35
HEGEL. Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 20.
36
Goethe, interview with J. F. Falk, June 14, 1809; in: Goethes Gespräche. Ed. F. von Biedermann, vol. II, Leipzig:
1909-11, pp.40-1.
Allen Speight | 299

central37. And it is this formative element in art’s relation to nature that


Hegel also will emphasize. In the much-analyzed passage where Hegel
takes up the image of the “thousand-eyed” Argus, for example, he stresses
that art is engaged not just with the particular bodily shape of the human
being but more broadly with the range of expressive gestures, emotions
and actions that are characteristic of human experience:

[…] art makes every one of its productions into a thousand-eyed Argus,
whereby the inner soul and spirit is seen at every point. And it is not only the
bodily form, the look of the eyes, the countenance and posture, but also actions
and events, speech and tones of voice, and the series of their course through
all conditions of appearance that art has everywhere to make into an eye, in
which the free soul is revealed in its inner infinity.38

Across the Aesthetics, Hegel also uses a number of examples of actual


human shapes potentially or actually being “inhabited” in art that suggest
that it is (in Goethean fashion) the formative effort of the artist that is
crucial rather than a static Vorbild that is studiously drawn upon. Are
there “beautiful and expressive shapes and countenances which art can
use immediately as a portrait” representing Jupiter, Juno, Venus, Peter or
Christ? This is not a philosophical issue, says Hegel, but rather a “purely
empirical question,” which, “as empirical, cannot be settled” – except,
presumably, by the talented artist who sees the potential of particular
physiognomy for such purposes39. Several of Hegel’s examples actually
turn out to be cases where art is imitating art rather than some natural
Vorbild, as in the case of his somewhat bemused description of sitters in
tableaux vivants who lack the “spiritual depth” that the artist was able to

37
See the useful discussion of this point in Hadot, The Veil of Isis, p. 254.
38
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 153.
39
HEGEL, op. cit., p. 173.
300 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

capture in the painting they are trying to recreate40. Even some of Hegel’s
much-discussed examples of the artistic representation of explicitly bodily
human form are often shaped by conventional/artificial differences such
as clothing styles41.
As Hegel describes what he calls the “reconveyance” of external
existence into the realm of the spirit that occurs in art42, he thus seems to
draw on Goethe’s insistence that the “truth of nature” and the “truth of
art” are different – as well as the consequent claim that the role of
imitation cannot be construed along the lines of a conventional
understanding of Vorbild/Nachbild. Accepting these points, however, does
not mean that the notion of art as mimetic has disappeared. In a discussion
that seems – much like his discussion of Zeuxis’ cherries and other
imitations taken to be real – to hark back to Goethe’s claims in his dialogue
on “Truth and Probability in Art”, Hegel gives this analysis of why a
product of artistic making might appear as natural even if it is in fact the
result of distinctive artistic effort:

The artistic presentation must appear here as natural, yet it is not the natural
there as such but that [artistic] making, precisely the extinction of the

40
“So, for example, in our own time, what has become the fashion, namely what are called tableaux vivants imitate
famous masterpieces deliberately and agreeably, and the accessories, costume, etc., they reproduce accurately; but
often enough we see ordinary faces substituted for the spiritual expression of the subjects and this produces an
inappropriate effect. Rapahel’s Madonnas, on the other hand, show us forms of expression, cheeks, eyes, nose,
mouth, which, as forms, are appropriate to the radiance, joy, piety, and also the humility of a mother’s love. Of course
someone might wish to maintain that all women are capable of this feeling, but not every cast of countenance affords
a satisfactory and complete expression of this depth of soul” (HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 156).
41
Cf. Hegel’s comparison of ancient drapery and modern cut-to-order clothing: “[T]he cut of our clothes today is
inartistic and prosaic in comparison with the more ideal drapery of the ancients. Both sorts of clothing have in
common the purpose of covering the body. But the clothing portrayed in the art of antiquity is a more or less
explicitly formless surface and is perhaps only determined by the fact that it needs a fastening onto the body, to the
shoulder, for example. In other respects, the drapery remains plastic and simply hangs down freely in accordance
with its own immanent weight or is settled by the position of the body or the pose and movement of the limbs… In
our modern dress, on the other hand, the whole of the material is fashioned once for all, cut and sewn to fit the shape
of the limbs, so that the dress’s freedom to fall exists no longer, or hardly at all. After all, the character of the folds
is determined by the stitching and, in general, the cut and fall of the garment is produced technically and
mechanically by the tailor… (HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, pp. 165-6).
42
HEGEL, Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 156.
Allen Speight | 301

sensuous material and external conditions, which is the poetic and the ideal in
a formal sense. We delight in a manifestation which must appear as if nature
had produced it, while without natural means it has been produced by the
spirit; works of art enchant us, not because they are so natural, but because
they have been made so natural.43

If Hegel does follow Goethe in this regard, he also sees a view of the
larger role of making and mimesis that goes beyond a sense of mere
imitation: art exalts nature in a sense, Hegel says, because it “fixes and
makes ends in themselves” natural content to which our attention might
otherwise not have been directed44.

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GOETHE, Johann Wolfgang von. Über Wahrheit und Wahrscheinlichkeit der Kunstwerke:
Ein Gespräch. In Essays on Art. Trans. Samuel Gray Ward. New York: James Miller,
1892.

43
HEGEL, op. cit., p. 164 (italics mine).
44
“What in nature slips past, art ties down to permanence: a quickly vanishing smile, a sudden roguish expression
in the mouth, a glance, a fleeting ray of light, as well as spiritual traits in human life, incidents and events that come
and go, are there and are then forgotten—anything and everything art wrests from momentary existence…” (HEGEL,
Aesthetics: Lectures on Fine Art, p. 163).
302 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

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11

O marxismo literário de Benjamin:


entre a dialética e a imagem 1

Ulisses Razzante Vaccari 2

Em uma carta ao amigo Scholem de 1924, Benjamin anuncia uma


profunda mudança em seu pensamento. Agora ele deixaria de lado as
questões de mística judaica e de metafísica da linguagem, trabalhadas na
juventude, para se voltar às questões políticas e atuais: “Também os sinais
comunistas [...] foram os primeiros sinais de uma reviravolta que
despertou em mim a vontade de não mascarar os momentos políticos
atuais em meus pensamentos, [...] mas desenvolvê-los, e, de modo
experimental, ao extremo”3. Essa viragem, anunciada em 1924, não seria
em todo caso levada a cabo neste ano, mas apenas a partir de 1928, após a
publicação de Rua de mão única, considerada a primeira de uma produção
mais voltada às questões propriamente políticas. A dedicatória a Asja Lacis,
a revolucionária de Riga por quem Benjamin havia se apaixonado em sua
viagem a Capri em 1924 (ano da primeira menção ao livro), revela a marca
que esta havia deixado em seu espírito: “Esta rua chama-se Rua Asja Lacis
em homenagem àquela que como um engenheiro a abriu no corpo do
autor deste livro”. Mas é especialmente no fragmento Armas e munição
que o caráter explosivo-revolucionário do livro vem à tona, no qual

1
O presente texto originou-se da pesquisa realizada na Universidade Humboldt, em Berlim, fomentada com uma
bolsa do programa Print-Capes.
2
Professor no departamento de Filosofia da UFSC e pesquisador CNPq.
3
Carta de 22 de dezembro de 1924. In: Benjamin, W. Briefe I. Herausgegeben und mit Anmerkungen versehen von
Gershorn Scholem und Theodor W. Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1978, p. 368.
Ulisses Razzante Vaccari | 305

Benjamin fala de sua visita à amiga em Riga no final de 1926: “Andei duas
horas, solitário, pelas ruas. Nunca mais tornei a vê-las assim. De cada
portal de casa lançava-se um jato de chamas, cada pedra de esquina
espalhava centelhas e cada bonde vinha chegando como o corpo de
bombeiros”4.
Lacis, porém, não foi a única razão do desvio político do pensamento
de Benjamin. Também a amizade com Brecht, que ele conheceu em maio
de 1929, influenciou na reviravolta materialista de Benjamin. Comentando
esse primeiro encontro de 1929, escreve Erdmut Wizisla:

À palheta temática da conversa pertenceram o novo teatro, o filme, o rádio, a


situação política, particularmente a ideia da necessidade de uma revolução e
da luta contra o fascismo, o papel dos intelectuais, a pergunta pelo pensamento
engajado, a função das artes sob a particular consideração de pontos de vista
da estética da produção e da técnica da arte5.

Em Brecht, Benjamin viu a possibilidade de executar algo que ele já


havia começado a vislumbrar em 1928 em Rua de mão única, um ano antes
do encontro com o dramaturgo, a saber, pensar o destino da arte no
contexto da crise a que ela havia sido submetida pelos desdobramentos
materiais do capitalismo desde o final do século XIX. Embora os resultados
efetivos em torno desse problema só fossem apresentados em 1935, no
ensaio A obra de arte nos tempos de sua técnica de reprodução, em muito
devedor das ideias de Brecht, é possível constatar em Rua de mão única os
primeiros movimentos nesse sentido. No aforismo Posto de gasolina,
Benjamin já expressava a necessidade de transformação da arte

4
Benjamin, W. Rua de mão única. In: Obras Escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Brasiliense, 2009, p. 34.
5
WIZISLA, E. Benjamin und Brecht. Die Geschichte einer Freundschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2019,
p. 18.
306 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

contemporânea, em particular da literatura, diante das transformações


materiais trazidas pelo capitalismo industrial:

A autêntica atividade literária não pode ter a pretensão de se desenvolver num


âmbito estritamente literário – essa é antes a expressão habitual de sua
esterilidade. Uma eficácia literária significativa só pode nascer de uma
rigorosa alternância entre ação e escrita6.

Segundo essa exigência, a literatura não poderia mais se dar ao luxo


de permanecer intocada nos limites que a determinaram nos séculos
anteriores, cujo modelo era o do escritor que, na solidão de seu gabinete,
escrevia seus livros para destinatários desconhecidos, imaginários, com os
quais jamais entraria em contato. A partir de um determinado momento
do século XIX, o escritor abandona aos poucos aquela sua figura antiga, ao
se tornar um habitante das metrópoles e um flâneur em meio às
multidões, transformação que altera igualmente a literatura, subitamente
confrontada com os problemas sociais gerados pelo “caos econômico” do
capitalismo industrial. Embora tivesse finalmente conquistado sua tão
almejada autonomia ao longo dos séculos XVIII e XIX, a arte agora
enfrentava um novo desafio, que consistia justamente na contestação de
sua autonomia, e na exigência de incorporação de elementos
heterônomos, referentes à matéria da vida moderna. A arte em geral, mas
especialmente a literatura, era desafiada a sair de si mesma, a abandonar
o âmbito exclusivamente literário, e a incorporar ao ato da escrita a rua e
seus elementos próprios: o panfleto, os reclames, o tumulto, o choque, a
multidão. Em Guarda-livros juramentado, escreve Benjamin, nesse
sentido: “A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde

6
BENJAMIN, op. cit., p. 9.
Ulisses Razzante Vaccari | 307

levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas


pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico”7.
Essa exigência imposta à arte, tal como aparece em Rua de mão única,
revelava a influência de outro autor de suma importância nas
considerações de Benjamin sobre a literatura: Alfred Döblin. É dele que
provém pela primeira vez a ideia de criação do chamado romance épico,
que, posteriormente, definiria o teatro de Brecht. A primeira menção de
Benjamin ao escritor austríaco aparece justamente no ano de 1929, no
ensaio A crise do romance: sobre Berlin Alexanderplatz, de Döblin,
publicado no Neuer Rundschau. O livro de Döblin em questão, Berlin
Alexanderplatz, colocava em prática exatamente aquelas exigências de Rua
de mão única, de que a literatura deveria abandonar o formato do livro
impresso e incorporar elementos heterônimos, relativos à vida concreta
das ruas e às dificuldades econômicas daquele momento específico do
entre guerras. Não por acaso, o ensaio de Benjamin abre com a concepção
de “poesia épica”, em referência ao ensaio A construção da obra épica de
Döblin, do mesmo ano de 1929. O retorno da literatura ao épico fornece
ao romance, fechado em sua autonomia estéril, uma resposta mais à altura
diante da crise da arte tradicional, ao fazê-lo voltar-se aos problemas
concretos da contemporaneidade: “seu último livro [de Döblin] mostra
que em sua produção a teoria e a prática coincidem”8. Contrariamente ao
“romance puro” de André Gide, puramente escritural, o livro de Döblin
incorpora “a espuma da linguagem verdadeiramente falada”, conectando
assim novamente o antigo escritor de gabinete à figura popular do
narrador ou contador de histórias épicas – o Erzähler.

7
BENJAMIN, op. cit., p. 28.
8
Id., op. cit. “A crise do romance: sobre Berlin Alexanderplatz, de Döblin”. In: Obras Escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 55.
308 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Com isso, a virada de Benjamin ao materialismo dialético, anunciada


desde 1924 e efetivamente levada a cabo a partir de 1928, ocorre por uma
via pouco ortodoxa, por meio de referências não necessariamente
marxistas strictu senso. Em que sentido deve-se considerar essa sua virada
a temas políticos, de viés marxista, demonstra-o o próprio Rua de mão
única, que não é um livro teórico sobre a teoria do marxismo. Se é de
algum modo possível identificar essa teoria no livro, ela se apresenta em
uma roupagem característica, alheia à exposição própria de Marx e Engels,
antes assumindo uma forma estético-literária. Não se trata ali de fornecer
uma interpretação sobre a vida material daquele período, mas de
incorporar esta última à literatura, que passa a expressar a materialidade
da vida em toda sua concretude. É assim que, assumindo uma forma
dispersa e poética, a obra envereda por temas os mais variados possíveis,
em geral sobre a vida cotidiana do final dos anos 1920 em uma Alemanha
arrasada pelo desemprego, a inflação, a miséria e a iminência da guerra.
O fragmento Alemão bebe cerveja alemã!, por exemplo, trata da
onipresença das filas, formadas ao longo de toda a cidade, por pessoas em
busca de emprego, mantimentos ou mesmo buscando alistamento: “Onde
quer que se lhes permita, eles se colocam em fila, sob o fogo da artilharia
ou a caminho do armazém eles se acotovelam em ordem de marcha”9.
Como notou Hannah Arendt em Homens em tempos sombrios, é
preciso levar em conta toda a especificidade da apropriação que Benjamin
faz do marxismo ao longo de sua produção: “Benjamin foi provavelmente
o marxista mais singular já produzido por esse movimento que, sabe Deus,
teve seu quinhão completo de excentricidades”10. Como se sabe, Benjamin
foi um crítico do pensamento de Marx, por mais que ele não tivesse um
conhecimento profundo de sua obra. Entre outras coisas, Benjamin critica

9
Id., op. cit., p. 30.
10
ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 176.
Ulisses Razzante Vaccari | 309

nos escritos de Marx e Engels a falta de uma reflexão mais extensa e


detalhada sobre os aspectos estéticos do capitalismo, bem como sobre o
destino da arte no interior do sistema capitalista. No ensaio Eduard Fuchs:
colecionador e historiador, de 1937, ele escreve que seu objetivo, nesse
ensaio, é o de investigar “o passado recente da teoria marxista da arte”,
pois “os mestres, Marx e Engels, não fizeram mais do que sugerir que
existe nela um vasto campo de trabalho”11. O ensaio traz de fato os pontos
mais importantes da crítica de Benjamin ao marxismo ortodoxo, o que
permite compreender seu posicionamento próprio em relação a essa
tradição. O ponto central dessa crítica surge em uma longa nota na quinta
parte do ensaio, segundo a qual:

Sabemos que Marx nunca se pronunciou em pormenor sobre o modo como se


deve entender a relação entre base e superestrutura em casos particulares. O
que sabemos é que ele pensava numa série de mediações, ou transmissões,
que se ativam entre as condições materiais de produção e os domínios mais
distantes da superestrutura, nos quais se inclui a arte12.

Essa falta dos escritos de Marx, como se depreende do texto


introdutório de A obra de arte nos tempos de suas técnicas de reprodução,
refere-se ao fato de que, “na época em que Marx empreendeu a sua análise,
o modo de produção capitalista ainda estava em seus primórdios”13. Marx,
por isso, não pôde medir todos os efeitos das transformações das condições
de produção, os quais precisaram de “mais de meio século” para serem
efetivamente percebidos, pois, segundo Benjamin, “as superestruturas
evoluem bem mais lentamente do que as infraestruturas”. Aquilo que se

11
BENJAMIN, W. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. In: O anjo da história. Trad. João Barrento. São Paulo:
Editora Autêntica, 2012, p. 125.
12
Id., ibid., p. 146.
13
Id., “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os Pensadores. Trad. José Lino Grünnewald. São
Paulo: Editora Abril, 1975, p. 11.
310 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

percebe imediatamente no plano da economia social, apenas muito mais


tarde se exprimirá no plano do pensamento e das demais áreas da cultura,
inclusive na arte. Observando retrospectivamente, porém, é possível,
segundo Benjamin, fazer um prognóstico “a respeito das tendências
evolutivas da arte dentro das condições atuais da produção”, tarefa a que
se propõe o ensaio sobre a obra de arte.
Segundo esse prognóstico, a arte tradicional passa por uma crise sem
precedentes, criada pelas inovações do sistema produtivo capitalista. Essa
crise não foi desencadeada pela invenção da fotografia e do cinema, como
geralmente se interpreta o ensaio, pois, em verdade, estas duas formas
artísticas constituem já expressões do desenvolvimento técnico do
capitalismo tardio, não podendo ser consideradas à parte dele. A fotografia
e o cinema alteraram a estrutura da obra de arte tradicional, anulando sua
aura, porque elas trazem a técnica reprodutiva para o interior da obra de
arte. Com isso, a questão da autonomia da arte torna-se uma questão
anacrônica, cujo canto do cisne pode ser observado no movimento francês
da “arte pela arte”. No ensaio sobre Fuchs, Benjamin já mencionava a
importância da crítica de Engels ao “caráter fechado das várias áreas do
saber e de sua produção – por exemplo, no que se refere à arte, o seu
próprio e o das obras que se propõe englobar”14. A partir do século XIX,
não se trata mais de buscar a delimitação das áreas do saber, mas de saber
interpretar de que modo os elementos da superestrutura podem constituir
a expressão da infraestrutura e vice-versa. A base produtiva, segundo essa
concepção (ausente nas formulações de Marx), não determina a
superestrutura, mas se exprime nela, ao mesmo tempo que a cultura
exprime a estrutura econômico-social. A arte, nesse sentido, ao abandonar
as pretensões de autonomia, passa a ser pensada como a linguagem dessa

14
Id., op. cit., p. 127.
Ulisses Razzante Vaccari | 311

expressão por excelência, como se pode ler no ensaio Paris, capital do


século XIX, escrito no mesmo ano do ensaio sobre A obra de arte nos
tempos de sua reprodução técnica. Na primeira parte deste texto, intitulada
Fourier ou as passagens, Benjamin escreve que o surgimento das
passagens de Paris, esses “centros das mercadorias de luxo”, está ligado,
por um lado, à “conjuntura favorável do comércio têxtil” e, por outro, “aos
primórdios das construções de ferro”. Ora, a transformação desse
comércio têxtil favorável bem como da indústria do ferro nas passagens é
uma atividade que cabe à arte: “As passagens são o centro das mercadorias
de luxo. Para expô-las, a arte põe-se a serviço do comerciante”15.
Foi justamente essa análise mais aprofundada do modo como a arte,
no capitalismo, se transforma em expressão da própria técnica, por meio
da qual se relacionam infra e superestrutura, que faltou às análises de
Marx. Em outros termos, faltou às suas análises a determinação do modo
como a expressão da infra e da superestrutura é um fenômeno estético
que, portanto, traz necessariamente para seu terreno a análise da função
da arte no sistema capitalista. Era essa análise específica que interessava a
Benjamin, mais particularmente a determinação do modo como, na
expressão, a arte ao mesmo tempo cria fantasmagorias, isto é, ilusões,
atestando que a relação entre infra e superestrutura não é nem causal nem
reflexiva, como se uma espelhasse fielmente a outra e vice-versa. Ao tornar
possível a expressão de uma na outra, a arte, tendo incorporado a técnica,
pode igualmente falsear o objeto material ao torná-lo um objeto de desejo,
desempenhando assim um papel fundamental na criação do fetichismo da
mercadoria, o qual pode ser definido nesse sentido como uma criação
estética do objeto material que não corresponde imediatamente ao que ele
é em si mesmo, abstração esta que está também na base da transfiguração

15
Id., Passagens (vol. I). Trad. Irene Aron. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018, p. 54.
312 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

do valor de uso no valor de troca da mercadoria. Nas palavras de Rolf


Tiedemann: “O que interessava a Benjamin na cultura não era [...] o
conteúdo ideológico que a crítica da ideologia revela em sua profundidade,
e sim sua superfície ou lado externo que contém ao mesmo tempo ilusão
e promessa”16. Particularmente a partir de 1935, passa a importar-lhe
determinar como se dá o processo – estético – de transfiguração dos
objetos materiais em objetos de desejo, por meio do qual surgem as
fantasmagorias: “a função da fantasmagoria parece ser uma função de
transfiguração: assim as exposições universais transfiguram o valor de
troca das mercadorias ao ofuscar o caráter abstrato de suas determinações
de valor”17.
Na seção K da obra das Passagens, Benjamin retoma a discussão da
relação entre infra e superestrutura como expressão, em referência à
teoria de Marx, porém, inserindo um elemento novo: o sonho. Como se lê
no seguinte fragmento (que vale citar na íntegra):

Sobre a doutrina da superestrutura ideológica. À primeira vista, parece que


Marx pretendia somente estabelecer uma relação causal entre superestrutura
e infraestrutura. Mas a observação de que as ideologias da superestrutura
refletem as condições de maneira falsa e deformada já vai além. A questão é,
de fato, a seguinte: se a infraestrutura determina de certa forma a
superestrutura no material do pensamento e da experiência, mas se esta
determinação não se reduz a um simples reflexo, como ela deve então ser
caracterizada, independentemente da questão da causa de seu surgimento?
Como sua expressão. A superestrutura é a expressão da infraestrutura. As
condições econômicas, sob as quais a sociedade existe, encontram na
superestrutura a sua expressão - exatamente como o estômago estufado de
um homem que dorme, embora possa “condicioná-lo” do ponto de vista
causal, encontra no conteúdo do sonho não o seu reflexo, mas a sua expressão.

16
TIEDEMANN, R. “Introdução à edição alemã” [das Passagens] (1982). In: BENJAMIN, op. cit.., p. 30.
17
Id., ibid., pp. 30-31.
Ulisses Razzante Vaccari | 313

O coletivo expressa primeiramente suas condições de vida. Estas encontram


no sonho a sua expressão e no despertar a sua interpretação18.

Ao se considerar a relação entre infra e superestrutura não como uma


relação causal, mas expressiva, é imperativo levar em conta que essa
expressão não é um reflexo, no sentido de um efeito fiel de sua causa.
Benjamin entende a relação expressiva entre infra e superestrutura por
meio do sonho, que envolve um trabalho inconsciente dos indivíduos no
qual suas condições de vida se expressam de modo não causal. Em sua
reinterpretação de Marx, Benjamin utiliza-se assim de um elemento a que
o autor de O capital ainda não tinha acesso em vida, a saber, a psicanálise,
o que levou Margaret Cohen a contar Benjamin como um integrante da
tradição do marxismo gótico19. Inaugurada pelos surrealistas, essa
tendência partia do pressuposto de que o marxismo tradicional não
conseguia mais explicar o funcionamento do capitalismo do início do
século XX, porque ainda se baseava em categorias pragmáticas e objetivas
para descrever um processo que enveredava necessariamente por vias
subjetivas e psicológicas, ligadas à vida do indivíduo. A própria teoria de
Benjamin acerca da perda da experiência coletiva (Erfahrung) e a
consequente incursão do indivíduo no universo da vivência (Erlebnis)
atestava a necessidade de o marxismo recorrer à psicologia e à psicanálise
em sua busca mnemônico-inconsciente pelo elo perdido entre o indivíduo
e a coletividade. Determinante na obra das Passagens, essa referência à
psicanálise aparecerá igualmente no ensaio Sobre alguns temas em
Baudelaire, de 1939, no qual Benjamin, a partir das críticas de Adorno, vê-
se obrigado a remontar ao mesmo tempo a Freud e a Proust como os dois
autores que lograram ir além da “filosofia da vida”, representada por

18
BENJAMIN, op. cit., vol. II, p. 665 (K 2, 5).
19
Cf. COHEN, MargareT. Profane Illumination. Walter Benjamin and the Paris of surrealist revolution. Berkeley, Los
Angeles, London: University of California Press, 1993, pp. 1-16.
314 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Dilthey, Klages e Jung, procedendo a uma imersão no passado por meio da


interpretação do mundo dos sonhos20.
O sonho, segundo a passagem acima citada das Passagens, contém a
chave para se compreender como a cultura elabora o processo de
expressão entre a infra e superestrutura, porque ele pode ser entendido
como o âmbito do inconsciente coletivo no qual a cultura deposita seus
desejos mais profundos. No ensaio O surrealismo: o último instantâneo da
sociedade europeia, de 1929, Benjamin mostra como fundamental o
movimento surrealista de libertação do Eu dos ditames do mundo da
consciência e da vivência, por meio de sua imersão na embriaguez onírica:
“Na estrutura do mundo, o sonho mina a individualidade, como um dente
oco”21. O surrealismo pôs em prática o que Benjamin chama de iluminação
profana, um método de “inspiração materialista e antropológica” que se
utiliza de um elemento propriamente religioso, o êxtase, porém
profanando-o, isto é, utilizando-o não para fins religiosos, mas políticos.
Esse aspecto político do surrealismo, o primeiro a percebê-lo foi André
Breton, no que foi depois seguido por Louis Aragon:

Foi o primeiro a ter pressentido as energias revolucionárias que transparecem


no ‘antiquado’, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas
primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de
cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda
começa a abandoná-los. Esses autores compreenderam melhor que ninguém
a relação entre esses objetos e a Revolução22.

20
Cf. BENJAMIN, W. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras Escolhidas III. Trad. José Carlos Martins Barbosa
e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, pp. 103-110.
21
BENJAMIN, W. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. In: Obras Escolhidas I. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 23.
22
Id., ibid., p. 25.
Ulisses Razzante Vaccari | 315

Ao encarar esses objetos do século XIX não como objetos mortos, mas
como objetos que, a despeito de sua inutilidade, permanecem vivos, nos
sonhos do presente, os surrealistas visaram libertá-los das formas
calcificadas que assumiram, aproveitando sua energia contida para a
revolução. Nessa sua tarefa, porém, “nem sempre o surrealismo esteve à
altura dessa iluminação profana, e à sua própria altura”, pois faltou ao
movimento como um todo, para que se transformasse de fato em um
movimento político-revolucionário, a conquista de um ponto fixo,
necessário para a interpretação desses sonhos, isto é, examiná-los do
ponto de vista da vigília. Para que o intento surrealista se transformasse
em um movimento político-revolucionário, não bastava apenas submeter
a consciência à embriaguez do sonho, mas também organizar os elementos
provenientes dele por meio de um trabalho consciente. Assim, escreve
Benjamin, não há dúvida que, “em todos os seus livros e iniciativas, a
proposta surrealista tende ao mesmo fim: mobilizar para a revolução as
energias da embriaguez”. Mas “a isso se acrescenta uma concepção estreita
e não-dialética da essência da embriaguez. [...] Toda investigação séria dos
dons e fenômenos ocultos, surrealistas e fantasmagóricos, precisa ter um
pressuposto dialético que o espírito romântico não pode aceitar”23.
Essa dialética entre o sonho e a vigília, ausente no surrealismo, será
desenvolvida por Benjamin na obra das Passagens, cujo método mesmo é
definido como dialético, nesse sentido específico de, por um lado, imergir
no universo onírico do século XIX – “para compreender as passagens a
fundo, nós as imergimos na camada mais profunda do sonho”24 – e, por
outro, despertar dele visando sua interpretação:

23
Id., ibid., pp. 32-3.
24
Id., op. cit., vol. I, p.349 (H 1a, 5).
316 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

O método novo, dialético, de escrever a história apresenta-se como a arte de


experienciar o presente como o mundo da vigília ao qual se refere o sonho que
chamamos de o ocorrido. Elaborar o ocorrido na recordação do sonho! — Quer
dizer: recordação e despertar estão intimamente relacionados. O despertar é,
com efeito, a revolução copernicana e dialética da rememoração25.

Por meio desse movimento dialético entre as duas instâncias, a obra


busca apreender as imagens do sonho ou imagens de desejo como imagens
dialéticas, como se deduz da primeira exposé da obra, de 1935, em cuja
segunda parte, que traz como epígrafe uma sentença de Michelet – “cada
época sonha a seguinte” –, escreve Benjamin que, quando a cultura
desenvolve novos meios de produção, a consciência coletiva forma
“imagens nas quais se interpenetram o novo e o antigo”. Essas imagens de
desejo ou de sonho, criadas na passagem entre o antigo e o novo, remetem
dialeticamente ao futuro e ao passado mais longínquo, isto é, à pós e à pré-
história. Assim:

No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época
seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de
uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu
depósito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a
utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções
duradouras até as modas passageiras26.

Mesmo que, a partir das contundentes críticas de Adorno, Benjamin,


na exposé de 1939, tenha riscado da apresentação da obra essa relação
específica com o sonho, a imagem dialética permanecerá central em seu
pensamento, constituindo um dos pilares das teses Sobre o conceito de
história, por exemplo. Neste ensaio, o conceito de imagem dialética da

25
Id., ibid., vol. II, p. 660 (K 1, 3).
26
Id., ibid., vol. I, pp. 55-6.
Ulisses Razzante Vaccari | 317

história é construído em uma relação íntima com o conceito de dialética


na imobilidade, o qual atesta igualmente a particularidade do marxismo
de Benjamin. Enquanto, para Marx, a dialética era apreendida no e pelo
movimento da história, para Benjamin, pelo contrário, a visão dialética da
história apenas se torna possível por meio da interrupção de seu curso:

Ao pensar pertence não só o movimento dos pensamentos, mas também sua


imobilização [Stillstellung]. Onde o pensamento se detém repentinamente
numa constelação saturada de tensões, ele confere à mesma um choque
através do qual ele se cristaliza como mônada27.

A imagem dialética do passado, em que se cruzam ao mesmo tempo


o novo e o antigo ou, nas palavras de Baudelaire, em que o novo surge
como antiguidade28, só pode ser apreendida por ocasião dessa interrupção
do fluxo e do devir do pensamento, isto é, por ocasião da interrupção do
tempo progressivo, vazio e homogêneo. É no rasgo dessa temporalidade
quantitativa e mecânica que eclode outro tempo, qualitativo, repleto de
tempos de agora, como se o presente se mostrasse por um instante prenhe
do passado. Essa temporalidade não progressiva permite que se relacione
um fato do presente com outro do passado, por mais longínquo esteja este
no tempo, por meio do princípio das afinidades eletivas. Se Robespierre,
em plena Revolução Francesa, citava os feitos da Roma Antiga29, isso
significa que ele, a partir da imobilização revolucionária do curso da
história, via-se capaz de libertar o passado de sua fossilização, ou de sua
inutilidade, tornando-o novamente algo vivo no presente. Na tese XVI,
Benjamin faz menção a isso, ao diferenciar o historicismo do materialismo

27
As teses Sobre o conceito de história, de Benjamin, foram citadas a partir da tradução de Jeanne Marie Gagnebin e
Marcos Lutz Müller, tal como citadas em: LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre
o conceito de história”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 130 [Tese XVII].
28
Cf. BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. Trad. Tomaz Tadeu. São Paulo: Autêntica, 2010, p. 35.
29
Cf. BENJAMIN, Sobre o conceito de história, ed. cit., p. 119 [tese XIV].
318 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

histórico: “O Historicismo arma a imagem ‘eterna’ do passado, o


materialista histórico, uma experiência com o passado que se firma aí
única”30. Contra a meretriz do “era uma vez”, própria do historicismo, o
historiador materialista salva ou redime o passado no presente,
aproveitando a oportunidade única (kairós) de se apoderar dele em um
instante de perigo.
Que a visão dialética da história seja revelada não no movimento do
pensamento, mas em imagens, que surgem por ocasião da cessão do
movimento, eis aí uma característica que inexiste no pensamento de Marx
(e de Adorno). Somente na interrupção do curso progressivo do
pensamento torna-se possível contemplar e apreender a imagem dialética
da história, na qual o presente é posto em constelação com o passado mais
remoto, salvando-o e redimindo-o. A fonte desse procedimento, para
Benjamin, não está na filosofia, mas na poesia, particularmente a de
Baudelaire. A interrupção do curso progressivo do pensamento permite
contemplar e apreender o que Baudelaire chamou de correspondências,
outro conceito estético central para Benjamin, que aponta para a fonte
literária de seu pensamento. Nos fragmentos do chamado texto fundador
das Passagens, as Passagens Parisienses, Benjamin já escrevia sobre o
“mundo de singulares afinidades secretas”31 que se descobre quando da
interrupção do pensamento e do tempo progressivos, motivo pelo qual ele
comparava o surrealismo – essa vague de rêves – à “nova arte do flanar”32.
Pois somente o flâneur, com seus passos lentos de tartaruga pode se dar
ao luxo de contemplar essas afinidades secretas dos objetos entre si,
ocultas pela pressa de quem passa absorvido no tempo que leva ao futuro.
Afinal, “sabe-se que na flânerie o longínquo de países ou épocas irrompe

30
BENJAMIN, op. cit., p. 128 [tese XVI].
31
Id., op. cit., vol. III, p. 1369 (Ao, 4).
32
Id., ibid., p. 1378 (Do, 1).
Ulisses Razzante Vaccari | 319

na paisagem e no instante presente”33, lê-se, finalmente, nas Passagens,


apontando para o estatuto anacrônico dessa figura própria das metrópoles
industriais do final do século XIX, com a qual Baudelaire, pelo menos nas
primeiras versões das Passagens, seria identificado.
Por esse motivo Hannah Arendt afirma que a recepção do marxismo
por Benjamin deve necessariamente passar pela questão das
correspondências baudelairianas:

O que aí o fascinava [no conceito marxiano da superestrutura] era que o


espírito e sua manifestação material estavam tão intimamente ligados que
parecia possível descobrir, em todas as partes, as correspondances de
Baudelaire, as quais, se fossem adequadamente correlacionadas, se
esclareceriam e se iluminariam umas às outras de modo que, ao afinal, não
mais precisariam de nenhum comentário interpretativo ou explicativo34.

O interesse de Benjamin pelo marxismo, com efeito, não se refere a


seu aspecto teórico-abstrato, o que se evidencia na sensível ausência dos
textos marxistas em seus ensaios. Essa ausência, por outro lado, é
compensada pela presença maciça e constante da literatura e da poesia em
sua produção, por meio das quais Benjamin busca a reconexão do
marxismo com a práxis, esquecida na abstração em que toda teoria
invariavelmente recai. Seguindo a intuição de Arendt, as correspondências
de Baudelaire podem ser pensadas como exemplos práticos e particulares
da relação expressiva entre infra e superestrutura, cujo ponto de vista
privilegiado repousa na abdicação de toda mediação teórico-
interpretativa. Mantendo-se fiel à formação romântica da juventude, bem
como à sua própria metafísica da linguagem, Benjamin insiste aqui, isto é,
nos textos sobre Baudelaire em seu período tardio, na ideia da imanência

33
Id., ibid., p. 706 (M 2, 4).
34
ARENDT, op. cit., p. 176.
320 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

do discurso estético, cuja expressividade assenta justamente na supressão


de toda mediação.
As correspondências de Baudelaire remetem assim ao núcleo do
método benjaminiano, que pode ser compreendido em dois passos: em
primeiro lugar, na constatação da ineficácia da teoria no seu esforço de
compreender a relação entre infra e superestrutura e, em segundo, na
absorção da literatura e da poesia como locus apropriado no qual essa
relação manifesta-se em casos particulares, a saber, na práxis da
linguagem. A poesia de Baudelaire logra nesse sentido o que os surrealistas
não alcançaram, a saber, dar expressão às imagens dialéticas, nas quais
infra e superestrutura surgem ligadas entre si imediatamente, sem
precisar lançar mão da mediação teórica. Por meio do recurso à alegoria,
as correspondências de Baudelaire proporcionam o cruzamento entre o
antigo e o novo ou entre a antiguidade e a modernidade e expõem o modo
como o fetichismo e as fantasmagorias surgem na modernidade a partir
da produção sub-reptícia da aparência do novo. Na seção J da obra das
Passagens, escreve Benjamin: “É muito importante que o moderno em
Baudelaire não apareça sozinho como marca de uma época, e sim como
uma energia, graças à qual esta época se apropria imediatamente da
Antiguidade”35. As correspondências evidenciam em última análise que as
novidades alardeadas pela modernidade, dentre as quais o progresso seria
uma das mais importantes, não são senão o antigo travestido da aparência
do novo. Eis porque, em O pintor da vida moderna, Baudelaire escreve que
a tarefa do artista consiste em “extrair o eterno do transitório”,
considerando que “a modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente,
a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”36. Por isso
também sua insistência no fato de que apenas por meio da moda, dos

35
BENJAMIN, op. cit., vol. I, p.412 (J 5, 1).
36
BAUDELAIRE, op. cit., p. 35.
Ulisses Razzante Vaccari | 321

costumes e da moral da época é possível exprimir a beleza, que possui


“uma composição dupla, embora a impressão que produz seja única”. O
traço propriamente eterno e invariável da beleza, o artista moderno
atinge-o paradoxalmente por meio da figuração de seu o oposto, o relativo
e circunstancial, isto é, daquilo que pertence somente à sua época, pois,
em última análise, os dois elementos opostos entre si se expressam na
beleza de modo imediato.
O procedimento alegórico de Baudelaire, segundo a exposé das
Passagens de 1939, expõe o aviltamento das coisas no interior da lógica
capitalista, na qual o valor de uso é transfigurado em valor de troca. O
novo surge na poesia baudelairiana como o elemento propriamente
fantasmagórico, fonte de toda ilusão, responsável por criar o caráter de
fetiche da coisa. Assim, escreve: “O novo é uma qualidade independente
do valor de uso da mercadoria. Está na origem dessa ilusão cuja infatigável
provedora é a moda”37. Na medida em que deve ser considerada expressão
das condições materiais da cultura, a arte é absorvida pelo processo do
fetichismo da mercadoria, e passa a incorporar e reproduzir essa relação
fantasmagórica do novo e da moda. Ao atuar alegoricamente, a poesia de
Baudelaire expõe o caráter fetichista da novidade incorporado pela arte
moderna, remetendo, por meio das correspondências, à antiguidade, isto
é, extraindo a eternidade de sua transitoriedade. Nas palavras que o
próprio Baudelaire emprega em relação à pintura de Constantin Guys:
“para que toda modernidade seja digna de se tornar antiguidade, é preciso
que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana
involuntariamente lhe outorga”38. Evidenciar que o novo não é senão o
antigo retornado com outro aspecto, eis o que faz em geral a poesia de

37
BENJAMIN, op. cit., vol. I, p. 84.
38
BAUDELAIRE, op. cit., p. 36.
322 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

Baudelaire, evidenciando assim o círculo mítico infernal39 que, em última


instância, constitui o círculo próprio da mercadoria no interior da lógica
capitalista.
Por meio da poesia, Baudelaire, nesse sentido, desnuda aquela lógica
do capitalismo que Marx procurou evidenciar teoricamente. Tal
procedimento revela assim a renovada relação do pensamento com a
poesia que, característica do romantismo, Benjamin retoma aqui à sua
maneira. Mais uma vez, é Hannah Arendt quem melhor captou essa
característica, que ela denomina de pensamento poético, cuja matriz reside
na própria noção de metáfora:

O que é tão difícil de entender em Benjamin é que, sem ser poeta, ele pensava
poeticamente e, por conseguinte, estava fadado a considerar a metáfora como
o maior dom da linguagem. A ‘transferência’ linguística nos permite dar forma
material ao invisível [...] e assim torná-lo capaz de ser experimentado. Não lhe
era problema entender a teoria da superestrutura como a doutrina final do
pensamento metafórico — exatamente porque, sem muito trabalho e evitando
todas as ‘mediações’, ele relacionava diretamente a superestrutura com a
chamada infraestrutura ‘material’, que para ele significava a totalidade dos
dados sensorialmente experimentados. Estava evidentemente fascinado por
aquilo mesmo que os outros rotulavam de pensamento ‘marxista vulgar’ ou
‘não dialético’40.

Os “outros que rotulavam seu pensamento de marxismo vulgar” é


uma referência implícita a Adorno e também a Scholem. A partir do
momento em que Benjamin declara publicamente a virada de seu
pensamento ao materialismo dialético, em 1929, os dois amigos, cada um
à sua maneira, manifestam-se contrários àquilo que consideram a causa
desse marxismo vulgar de Benjamin, a saber, sua relação com Brecht.

39
Cf. o fragmento Go, 17 das Passagens Parisienses. In: BENJAMIN, op. cit., vol. III, p. 1395.
40
ARENDT, op. cit., pp. 179-180.
Ulisses Razzante Vaccari | 323

Enquanto Scholem argumenta que Benjamin deveria continuar seu


caminho de juventude, calcado na metafísica da linguagem41, Adorno exige
sempre um maior rigor do amigo no que se refere ao uso do método
dialético. No caso de Adorno, embora a controvérsia com Benjamin em
relação ao modo como ele buscava acercar-se do marxismo remonte a
1934, é em 1938, por ocasião do envio do ensaio Paris, capital do século
XIX, que eclode a recusa de publicação do ensaio na Revista do Instituto de
Pesquisa Social. Em suas palavras:

Permita-me aqui me expressar de modo tão simples e hegeliano quanto


possível. Ou muito me engano ou essa dialética é falha numa coisa: em
mediação. [...] Sou tomado da sensação de tal artificialidade sempre que a obra
dá lugar a expressões metafóricas... [...] reputo metodologicamente infeliz dar
emprego ‘materialista’ a patentes traços individuais da esfera da
superestrutura ligando-os de maneira imediata, e talvez até causal, a traços
análogos da infraestrutura. A determinação materialista de caracteres
culturais só é possível se mediada pelo processo total42.

Adorno, nessa conhecida carta, pretendia descontruir o modo não


mediado e metafórico da interpretação que Benjamin pretendia fazer do
materialismo histórico, atribuído por Adorno à influência de Brecht. Para
os intérpretes extemporâneos da obra de Benjamin, entretanto, essa
crítica acaba adquirindo outro significado, ao apontar justamente para o
que há de mais característico no método materialista de Benjamin: a
elaboração de uma dialética sem mediação, baseada não no movimento
dialético do pensamento, mas em uma estrutura metafórica da razão que,
como se viu, só se torna visível a partir da interrupção do fluxo progressivo
do pensar. Pelo tom francamente hegeliano assumido por Adorno –

41
Cf. a carta de Scholem de 30 de março de 1931. In: SCHOLEM, G. Walter Benjamin – Geschichte einer Freundschaft.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2016, pp. 283-87.
42
ADORNO, T. W. Correspondência 1928-1940. São Paulo: Editora da Unesp, 2012, pp. 402-3.
324 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

“Permita-me aqui me expressar de modo tão simples e hegeliano quanto


possível” –, deduz-se que o ponto de vista de Benjamin assuma uma
postura contrária ao método hegeliano. Enquanto, para Hegel, a imagem
e a metáfora pertencem a um modo de manifestação da Ideia já superado
pela história, a saber, o da arte, para Benjamin, pelo contrário, o modo de
“pensar” próprio da arte, isto é, metafórico, possui uma dignidade maior
em relação ao método especulativo dialético. Por mais que a origem da
dialética esteja ligada ao reconhecimento da insuficiência do conceito em
sua tentativa de apreensão do real ou efetivo (Wirklichkeit), Benjamin
ainda identifica neste método um ranço racionalista, o qual desaparece nas
correspondências baudelairianas. Na Dialética Negativa, escrita muitos
anos depois da controvérsia com Benjamin, Adorno reconhece que a
dialética lança mão de um elemento não-conceitual como forma de
apreender o que está para além do simples conceito, como atesta o uso do
termo Ser no início da Lógica de Hegel. Trata-se, já em Hegel, de uma
incorporação do pensamento filosófico do heterogêneo, o que, porém, não
significa abrir mão de sua natureza reflexiva: “A filosofia que quisesse
imitar a arte, que quisesse ser por si mesma obra de arte, arriscaria a si
mesma”43. Afinal: “A filosofia não pode nem contornar uma tal negação,
nem se curvar a ela. Nela reside o esforço de ir além do conceito por meio
do conceito. Mesmo depois de recusar o idealismo, a filosofia não pode
abdicar da especulação...”44. Após tantos anos decorridos do debate com
Benjamin, Adorno continua a defender o ponto de vista da filosofia. Por
maior que fosse a limitação de sua linguagem no movimento de apreensão
do Ser, ela não poderia jamais abdicar de sua natureza especulativa,
adotando, por outro lado, o ponto de vista acrítico da arte: “O derrotismo
de Benjamin ante o próprio pensamento foi condicionado por um resto de

43
Id., Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 21.
44
Id., ibid., p. 22.
Ulisses Razzante Vaccari | 325

positividade não-dialética inalterada quanto à forma que ele arrastou


consigo da fase teológica para a fase materialista”45. Traduzindo em
miúdos, o derrotismo de Benjamin, segundo Adorno, pode ser visto no fato
de ele não ter insistido na natureza especulativa da filosofia mesmo diante
do reconhecimento da limitação do pensamento e, pelo contrário, ter
recorrido à arte, principalmente à poesia como forma de expressão
metafórica do mundo da materialidade.
Mesmo após a virada ao materialismo dialético, Benjamin não pôde
de fato se desprender completamente das origens teológico-metafísicas
que marcaram sua formação. Os protestos de Scholem, por exemplo,
contra essa viragem, revelaram-se ao fim desnecessários, pois Benjamin
jamais abandonaria completamente suas primeiras investigações. Assim,
a falta de mediação apontada por Adorno na concepção materialista de
Benjamin ecoa seu pensamento de juventude, marcado pela metafísica da
linguagem e calcado em conceitos teológico-judaicos, como se poderá
notar, por exemplo, nas teses Sobre o conceito de história. O materialismo
histórico surge nelas permeado da noção de magia da linguagem, bem
como da crítica ao seu uso instrumental, tal como exposto no ensaio Sobre
a linguagem em geral e a linguagem humana, de 1916. Embora esses
termos não apareçam nos textos tardios, é perfeitamente notável que a
crítica ao progresso, situada no centro das teses, seja perseguida por uma
crítica do uso ideológico da linguagem, isto é, do uso da linguagem como
forma específica de dominação. Assim como ocorreu com a arte de um
modo geral, também o problema da linguagem na modernidade, segundo
Benjamin, está ligado à influência que sofreu da técnica, com o
desenvolvimento do capitalismo. Quanto mais se desenvolvem as técnicas
de reprodução, mais afastada de sua origem – mágica – se encontra a

45
Id., iibid., p. 25.
326 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

linguagem, isto é, do momento pré-adâmico em que ela ainda não


consistia um instrumento de comunicação, mas se comunicava a si
própria, em sua imediaticidade. Nesta sua origem, o médium de expressão
da linguagem era a própria linguagem, que configurava assim a base de
sua comunicabilidade. Ora, as técnicas de reprodução atingem a
linguagem justamente nessa sua imediaticidade originária, pois o que são
elas senão mediações que se superpõem e que, ao fazê-lo, deixam a origem
cada vez mais distante? Em outros termos, quanto mais a linguagem
absorve as técnicas de reprodução, que vão desde a escrita, passando pela
imprensa e a fotografia e chegando ao cinema, tanto mais distante ela se
encontra de sua origem mágica, anterior à construção da Torre de Babel,
para utilizar de uma imagem de Kafka46. Nos termos de Benjamin, isso
equivale a dizer: tanto mais mediada se torna a linguagem.
Retornar à origem, como se lê na conhecida passagem da Origem do
drama trágico alemão, é um exercício – de rememoração – que se faz na
linguagem e por meio da linguagem; um exercício, cujo ápice poderá ser
mais uma vez observado nas correspondências de Baudelaire – “as
correspondances são os dados do ‘rememorar’. Não são dados históricos,
mas da pré-história”47 – nas quais a linguagem se despe
momentaneamente de suas mediações e escuta em si mesma os ecos de
sua origem paradisíaca. Nas teses Sobre o conceito de história, essa
concepção ganha sua expressão mais conhecida na imagem do anjo da
história, que, apesar de empurrado pela tempestade que sopra do paraíso,
mantém seu rosto constantemente voltado ao passado, “enquanto o
amontoado de escombros diante dele cresce até o céu”48. Se, por um lado,
o anjo deseja retornar ao Paraíso, por outro, a tempestade que sopra desde

46
Cf. MOSÈS, S. L´ange de l´histoire. Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil, 1992, pp. 9-14.
47
BENJAMIN, Sobre alguns temas em Baudelaire, ed. cit., pp. 133-4.
48
Id., op. cit., p. 87 [tese IX].
Ulisses Razzante Vaccari | 327

lá – e que chamamos de progresso – impede-o de fechar suas asas,


empurrando-o na direção do futuro. Tentando opor resistência a uma
força extremamente poderosa, isto é, à tempestade do progresso, o anjo
esforça-se por vencê-la por meio de uma rememoração do passado que,
como se sabe, é também uma atividade redentora da linguagem.
Rememorar o passado ou retornar à origem é ao mesmo tempo redimir a
linguagem das quedas representadas pelas sucessivas incorporações de
elementos estranhos a ela, de caráter técnico-reprodutíveis. Eis, com
efeito, o papel que Benjamin atribuía ao tradutor – “em nome da pura
língua, o tradutor rompe as barreiras apodrecidas da sua própria língua”49
–, isto é, redimir na língua atual, decaída, mediada, a língua original, pura
e imediata, como faz solenemente Baudelaire. Restituir os ecos da
linguagem pura, original, no seio da linguagem decaída é um exercício que
apenas pode ser levado a cabo por meio da imagem, não pela especulação.
Somente a imagem, em contraposição ao conceito, por mais dialético,
negativo e heterogêneo seja ele, traz em si aquela imediaticidade que a
linguagem possui em sua origem, isto é, aquela capacidade de se
comunicar a si mesma sem a necessidade de nenhuma mediação, a não
ser da própria imagem (da linguagem), que é em si mesma imediata.

Referências

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49
Id., “A tarefa do tradutor”. In: Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampf Lages e Ernani Chaves. São
Paulo: Editora 34, 2011, p. 117.
328 | Pensamento & Realidade: entre o alvorecer antigo e o crepúsculo moderno – volume 3

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