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TRANSFUSÃO SANGUÍNEA EM CÃES E GATOS

M.V. Thiago Demarchi Munhoz

1. INTRODUÇÃO
A transfusão sanguínea é uma forma simples de transplante. Sangue (o órgão), com
suas hemácias transportadoras de oxigênio, proteínas e plaquetas da coagulação, é
transferido do doador ao paciente para a correção temporária de deficiência ou disfunção. A
segurança e eficácia do transplante exigem que o órgão (sangue) obtido de doador de baixo
risco seja armazenado e manipulado de modo a manter suas funções. Uma transfusão pode
ser rejeitada, eventualmente causando complicações profundas e potencialmente
representando riscos de vida para o receptor (KRISTENSEN & FELDMAN, 1997).
Há duas grandes razões para implementar a terapia com componentes do sangue em
pacientes críticos: a necessidade de aumentar a capacidade de carrear oxigênio e a
necessidade de melhorar a hemostasia. Os componentes sanguíneos também podem ser
usados para aumentar agudamente a concentração plasmática de proteínas em pacientes
com severa hipoproteinemia ou hipovolemia e para repor imunoglobulinas G em filhotes
que não receberam colostro (PEREIRA & RAMALHO, 2001).

2. GRUPOS SANGUÍNEOS, REAÇÃO CRUZADA E TIPAGEM SANGÜÍNEA


Os eritrócitos possuem antígenos específicos (glicoproteínas ou glicolipídeos) na
superfície de suas membranas celulares que possibilita a classificação em grupos
sangüíneos. Uma característica desses antígenos é a capacidade de iniciar uma reação
causada por anticorpos anti-eritrocitários circulantes presentes no receptor ou doador
(LANEVSCHI & WARDROP, 2001).
Existem oito grupos sanguíneos caninos. Estes grupos são designados pelo principal
antígeno do grupo sanguíneo e, atualmente, recebem a denominação coletiva de DEA (dog
erythrocyte antigen). São eles: DEA 1 (subgrupos 1,1 e 1,2), DEA 3, DEA 4, DEA 5, DEA
6, DEA 7 e DEA 8. Nos felinos, foram identificados 3 grupos denominados A, B e AB. Ao
contrário dos cães, os gatos podem apresentar anticorpos naturais sendo possível, desta
forma, sofrerem reações transfusionais mesmo na primeira transfusão. Aconselha-se, então,
a realização do teste de reação cruzada antes de qualquer transfusão em felinos e, se
possível, em cães principalmente os que já receberam transfusão (BABO, 1998).
A reação cruzada completa consiste em uma parte principal (reação cruzada maior)
e uma parte secundária (reação cruzada menor). A primeira é a reação cruzada dos
eritrócitos do doador com o plasma do receptor. A segunda trata-se da reação cruzada dos
eritrócitos do receptor com o plasma do doador. A incompatibilidade é observada em forma
de hemólise ou de aglutinação. Uma reação cruzada aparentemente compatível deve sempre
ser verificada microscopicamente, em busca de aglutinação. Mesmo se a reação cruzada é
realizada antes da transfusão, podem ocorrer reações transfusionais. Este procedimento não
avalia leucócitos ou plaquetas, que são origem de muitas reações imediatas (pirexia e
hipersensibilidade pulmonar aguda) (KRISTENSEN & FELDMAN, 1997).
O ideal seria realizar a tipagem sanguínea do doador para assegurar a ausência dos
antígenos com alto potencial para promover reações adversas. Porém, o anti-soro específico
é difícil de ser obtido recomendando-se a realização da prova cruzada antes de qualquer
transfusão sangüínea (BABO, 1998).

3. ESCOLHA DO DOADOR E COLHEITA DE SANGUE


O doador ideal, canino ou felino, deve ser adulto, dócil e clinicamente sadio.
Também não deve ter recebido transfusão prévia, nem ser obeso. Cães devem pesar, no
mínimo, 25 kg e gatos, 4,5 kg (BABO, 1998). Além disso, os cães devem apresentar
hematócrito em torno de 40% e, no caso dos gatos, de 35% (LANEVSCHI & WARDROP,
2001).
Deve-se proceder à colheita com assepsia adequada, agulha de grosso calibre
conectada a um equipo e frasco coletor ou bolsa plástica a vácuo. O local preferido para
colheita é a veia jugular (BABO, 1998).
A colheita de sangue não deve exceder 15-20 mL/kg de peso para cães e 10-15
mL/kg de peso ou um total de 60 mL para gatos. Neste esquema, recomenda-se um
intervalo de 3 semanas entre as doações. Caso haja quedas significativas no hematócrito ou
nas concentrações de proteínas plasmáticas após a colheita de sangue, deve-se aumentar os
intervalos entre as doações (LANEVSCHI & WARDROP, 2001).
4. SEPARAÇÃO E CARACTERÍSTICAS DOS COMPONENTES SANGUÍNEOS
Após o sangue ser colhido em bolsas apropriadas contendo anticoagulante, seus
diferentes componentes podem ser processados. Em medicina veterinária, o mais comum é
a separação do sangue fresco total em papa de hemácias e em plasma fresco congelado ou
plasma congelado (PEREIRA & RAMALHO, 2001). Os componentes sanguíneos com
suas constituições, formas de separação e técnicas de conservação estão descritos no quadro
1, abaixo.

Quadro 1: Componentes sangüíneos, constituição, formas de separação e conservação


(adaptado de PEREIRA & RAMALHO, 2001)
Componente Constituição Forma separação Conservação
SFT Rico em He, PP, plaquetas SFT Transfundir logo
e FC após a colheita
STE He, PP e FC estáveis STA 28-35 dias entre 1
e 6º C
PH Concentrado de He, com Centrifugação do SFT ou 28-35 dias entre 1
pouca quantidade ou repouso e separação em PH e e 6º C
ausência de plasma plasma
PC FC dependentes de Centrifugação do SFT e Até 5 anos a
vitamina K e proteínas separação em PH e plasma, –18ºC
estáveis congelando este após 6 h da
colheita
PFC Rico em todos os FC e PP Centrifugação do SFT e 1 ano a –18º C
separação em PH e plasma,
congelando este até 6 h da
colheita
PRP Rico em plaquetas Nova centrifugação do plasma 5 dias entre 20-24º
fresco C, em constante
movimentação
CP Fator VIII, fator de Von Processamento do PFC após 1 ano a –18º C
Willebrand e fibrinogênio resfriamento, obtendo um
precipitado (CP) e sobrenadante
(CPP)
CPP Albumina, 1 ano a –18º C
imunoglobulinas e alguns
FC
Legenda: SFT: sangue fresco total; STE: sangue total estocado; STA: sangue total armazenado; PH: papa de hemácias;
PC: plasma congelado; PFC: plasma fresco congelado; PRP: plasma rico em plaquetas; CP: crioprecipitado; CPP:
crioplasma pobre; He: hemácias; PP: proteínas plasmáticas; FC: fatores de coagulação.

Em gatos, a utilização do sangue fresco total constitui a forma de transfusão mais


comum devido ao pequeno volume de sangue obtido do doador. Sua separação em
componentes sanguíneos é pouco descrita. O armazenamento de sangue felino raramente é
praticado como forma de se evitar contaminação bacteriana do sangue adquirido, por meio
de métodos abertos (WEINGART et al., 2004).

5. NECESSIDADE DE TRANSFUSÃO E ESCOLHA DO COMPONENTE


A necessidade de realizar a transfusão sanguínea deve ser baseada, principalmente,
na história clínica, na severidade dos sinais clínicos (palidez de mucosas, dispnéia,
taquicardia, hipotensão, depressão, sinais de hemorragias superficiais e profundas) e nos
achados laboratoriais do paciente. Animais com hematócrito abaixo de 10% deve receber
transfusão sanguínea para evitar danos decorrentes de hipóxia severa nos órgãos vitais. A
reposição de hemácias também é necessária se o hematócrito diminui rapidamente para
valores abaixo de 20% no cão e abaixo de 12-15% no gato. Animais muito debilitados e
com hematócrito entre 10-17% também devem receber suporte transfusional. Em casos em
que mais de 30% do volume sanguíneo total foi perdido (aproximadamente 30 mL/kg no
cão e 20 mL/kg no gato) ou em casos de hemorragia aguda com pobre resposta ao
tratamento convencional do choque, a hemoterapia deve ser realizada (PEREIRA &
RAMALHO, 2001).
A papa de hemácias é indicada para animais portadores de anemias crônicas, nos
quais a volemia se encontra dentro da normalidade, de modo que não se deseja aumentar o
volume líquido. O hematócrito da papa é de 80%, que pode ser diluída em solução salina
para facilitar sua administração (BABO, 1998).
O plasma fresco congelado é indicado no tratamento ou na prevenção de
sangramento em pacientes com deficiências de múltiplos fatores de coagulação, como
portadores de doenças hepáticas severas, coagulação intravascular disseminada (CID),
distúrbios hemostáticos congênitos ou adquiridos, hipoproteinemia e quando se exige
expansão aguda de volume. O plasma congelado é indicado em casos de intoxicação por
warfarin, hipofibrinogenemia e hemofilia B, além de hipoproteinemia e reposição de IgG
em filhotes que não receberam o colostro (PEREIRA & RAMALHO, 2001).

6. VELOCIDADE DE ADMINISTRAÇÃO E VOLUME A SER TRANSFUNDIDO


A velocidade de administração está diretamente relacionada com a rapidez pela qual
o déficit sanguíneo se desenvolveu. Desta forma, em casos de hemorragias massivas, a
velocidade de administração é muito maior do que nos casos de anemia crônica, por
exemplo. Em termos gerais, inicia-se administração de 0,25 mL/kg/minuto durante 15 a 30
minutos, enquanto o paciente é observado para possíveis reações transfusionais. Após esse
tempo, pode-se aumentar para 4-5 mL/kg/hora. Entretanto, em pacientes de pequeno porte
ou com insuficiência cardíaca, faz-se necessária a administração lenta. O plasma pode ser
administrado na dose de 5-20 mL/kg, à velocidade de 6 mL/minuto, a fim de evitar
sobrecarga de volume (BABO, 1998).
Os componentes sanguíneos podem ser aquecidos a temperaturas entre 22 e 37º C,
com exceção do plasma rico em plaquetas, antes de serem transfundidos. A melhor
alternativa é deixar o sangue em temperatura ambiente por cerca de 30-60 minutos, desde
que o animal não esteja hipotérmico. A transfusão sanguínea deve ser feita em um período
máximo de 4 horas, para evitar o risco de contaminação bacteriana e a perda funcional dos
elementos sanguíneos (PEREIRA & RAMALHO, 2001).
Para encontrar o volume de sangue que deve ser transfundido em pacientes
anêmicos, sugerem-se as seguintes fórmulas:
Cão – mL de sangue = peso X 90 (Ht desejado – Ht do receptor)
Ht do doador
Gato – mL de sangue = peso X 70 (Ht desejado – Ht do receptor)
Ht do doador

7. REAÇÕES TRANSFUSIONAIS
Podem ser classificadas em imediatas e tardias, imunológicas e não imunológicas
(AUTHEMENT et al., 1987).
a) Imunológicas imediatas
As reações mais graves são as do tipo hemolítica, cujos sinais são inquietação,
tremores, febre, vômitos, salivação, taquipnéia, taquicardia e convulsões. A transfusão deve
ser interrompida imediatamente, e pode ser necessário o tratamento para choque à base de
glicocorticóide e fluidoterapia. A febre imunomediada ocorre devido à destruição dos
granulócitos do doador, promovendo a liberação de pirógenos na circulação do receptor;
urticária e angioedema dão-se pela liberação de aminas vasoativas frente às proteínas
plasmáticas do doador. Deve-se reduzir a velocidade de infusão e administrar anti-
histamínicos, podendo-se retornar à velocidade inicial após o controle dos sinais (BABO,
1998).
b) Imunológicas tardias
A reação mais comum é a destruição imunomediada de eritrócitos, em decorrência
do desenvolvimento de anticorpos. Pode ser observada redução no hematócrito, após
aumento inicial, bilirrubinemia e bilirrubinúria (KRISTENSEN & FELDMAN, 1997), além
de petéquias e hemorragias (BABO, 1998).
c) Não imunológicas
A sobrecarga vascular pode ocorrer devido à rápida infusão do fluido ou ainda à
quantidade de sangue total ou plasma exagerada, e os sinais apresentados são tosse,
dispnéia, vômitos, sugerindo quadro de edema pulmonar. Deve-se interromper a transfusão
e administrar diuréticos. Também pode ocorrer hipocalcemia devido ao excesso de
anticoagulante à base de citrato pois este pode quelar o cálcio do paciente, provocando
tremores musculares e tetania. O quadro é reversível se a transfusão for suspensa por 15
minutos e reiniciada mais lentamente (BABO, 1998).

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUTHEMENT, J.M.; WOLFSHEIMER, K.J.; CATCHINGS, S. Canine blood component
therapy: product preparation, storage and administration. Journal of the American
Animal Hospital Association, v. 23, p. 483-493, 1987.

BABO, V.J. Transfusão sangüínea em cães e gatos – revisão. Clínica Veterinária, n. 14,
p.28-32, 1998.

KRISTENSEN, A.T.; FELDMAN, B. Bancos de sangue e medicina transfusional. In:


ETTINGER, S.J.; FELDMAN, E.C. Tratado de medicina interna veterinária: moléstias
do cão e do gato. 4. ed. São Paulo: Manole Ltda, 1997, cap. 64, p. 497-517.

LANEVSCHI, A.; WARDROP, K.J. Principles of transfusion medicine in small animals.


Canine Veterinary Journal, v. 42, p. 447-454, 2001.

PEREIRA, P.M.; RAMALHO, F.S. Transfusão sangüínea. Clínica Veterinária, n. 34, p.


34-40, 2001.

WEINGART, C.; GIGER, U.; KOHN, B. Whole blood transfusions in 91 cats: a clinical
evaluation. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 6, p. 139-148, 2004.

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