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UNIDADE 1

História da psicologia
como ciência
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Traçar o perfil histórico dos antecedentes da psicologia.


„„ Descrever o surgimento da psicologia como ciência.
„„ Problematizar a psicologia como ciência do comportamento.

Introdução
A história da psicologia perpassa a formação da ciência moderna e de
um modelo de racionalidade que se tornou hegemônico no Ocidente.
Esse campo emerge como ciência independente na esteira de uma série
de debates filosóficos e sociais a respeito do sujeito e da subjetividade.
Nesse contexto, surgem diferentes projetos de psicologia, que levaram
ao nascimento da psicologia como ciência e profissão.
Neste capítulo, você estudará a emergência da psicologia como
ciência a partir de uma contextualização do debate epistemológico
que levou à consolidação da ciência moderna. Além disso, conhecerá
as problematizações em torno dos limites de pensar a psicologia como
ciência do comportamento.
16 História da psicologia como ciência

1 Antecedentes da psicologia:
a racionalidade moderna e
a emergência das ciências humanas
Os antecedentes da psicologia remontam à constituição da ciência moderna,
no século XVI, quando houve importantes debates empreendidos pela física,
primeiramente com a mecânica e, em seguida, com a “revolução copérnica”,
que transformaram a cosmologia religiosa preponderante até aquele momento.
Trata-se da passagem de uma visão de mundo que teve seu ápice com Isaac
Newton e iniciou com Nicolau Copérnico (1473–1543), cuja obra impactou
a ciência quando este afirmou que a Terra girava em torno do Sol, e não o
contrário. Essa teoria influenciou, meio século depois, Galileu Galilei e Kepler,
os quais podem ser considerados influentes físicos da Revolução Científica
do século XVII (SANTOS, 2008).
Esse processo levou ao fim do geocentrismo, abandonando-se a imagem
da Terra como centro, o que ocasionou a abertura para um espaço cósmico —
o universo —, bem como para o questionamento da dualidade natureza versus
ordem divina. Japiassu (1975, p. 22) afirma que essa transformação produziu
uma primeira desconstrução de uma cosmologia:

A física deste saber, a filosofia natural, reduz-se a uma física quimérica.


A analítica escolástica do devir e de seus princípios, bem como os conceitos
aristotélicos de natureza e de sistema das causas, passam doravante a ser de-
sacreditados pelo novo modo de aprender a realidade. [...] Ao mesmo tempo,
no plano do saber que procura extrair dos livros sagrados as fontes do conhe-
cimento, a autoridade da Escritura revela-se invalidada em matéria de física.

O impacto dessas mudanças acarretou o fim da cosmologia escolástica e


o nascimento do Iluminismo. Com isso, a matemática e a física constituem-se
em modelo de cientificidade, com o qual se julgaria o caráter científico dos
diversos campo de conhecimento. Conhecer, então, passa a significar quan-
tificar, pois, como afirma Santos (2008), passa a se desqualificar a qualidade
do objeto e impera a quantidade em que se possa ser traduzido. Esse método
assenta-se na redução da complexidade, na medida em que o conhecimento
se produz a partir da divisão e da classificação do objeto.
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Portanto, trata-se de um modelo de racionalidade científica que se cons-


titui, a partir do século XVI, nas ciências naturais, quando se assume que o
conhecimento científico não é filosófico. Há, então, a negação das formas de
conhecimento que não se pautassem pelos critérios metodológicos e os princí-
pios epistemológicos do que se constituiu como modelo de ciência (SANTOS,
2008). Assim, passa-se a desconfiar de toda forma de saber que não pudesse
ser quantificada, ou seja, “[...] a qualidade antiga, doravante acusada de ser
uma ‘qualidade oculta’, simples determinação ‘subjetiva’ do psiquismo [...]”
(JAPIASSU, 1975, p. 23).
Nesse processo, emerge uma nova antropologia, o Iluminismo, em que
o ser humano passa a ser uma visão concreta entre organismo e psiquismo.
O corpo é reduzido a uma máquina, que pode ser explicada pelo seu funcio-
namento físico e biológico, deixando de fora os aspectos psíquico-mentais,
como sensibilidade, consciência e afetividade. Surge, então, uma cosmologia
antropocêntrica, em que é dada centralidade à individualidade do ser humano,
que se torna o centro dos valores e do conhecimento.
Assim, tem-se uma superação das passividades em relação à autoridade
religiosa, da natureza e das situações humanas vividas como inevitáveis. Nesse
contexto, a ciência aparece como a libertação do ser humano dos grilhões da
natureza, ao colocá-la a serviço de seu interesse (JAPIASSU, 1975). Segundo
Santos (2008), essa visão conduz à distinção entre natureza e pessoa humana,
pois a natureza será entendida como passiva, eterna, reversível e, consequen-
temente, passível de manipulação.
A primazia de uma forma de conhecimento que se objetiva leva à separa-
ção do conhecimento em dois domínios: ciência e não ciência. Santos (2008)
destaca que essa separação entre conhecimento científico e senso comum
esteve calcada na ideia de que as evidências da experiência imediata são
ilusórias. Esse modelo de racionalidade constitui-se na revolução científica do
século XVI que acontece na física, negando todas as formas de conhecimento
que não se pautaram pelos seus critérios epistemológicos e metodológicos.
Por isso, esse modelo desconfia do conhecimento do senso comum, considerado
ilusório e enganoso.
Tal separação levou à divisão entre várias disciplinas: matemática e ciên-
cias naturais de um lado e humanidades de outro, tendo os estudos sobre a
realidade social e da psique ficado entre essas duas áreas. Por isso, buscava-se
um conhecimento rigoroso a partir da matemática enquanto fornecedora de
ideias claras, que permitiriam ascender a um conhecimento profundo. Esse
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paradigma assenta-se em um conhecimento causal, aspirando à formulação


de leis, à luz das regularidades que são observáveis para além do tempo e do
espaço (SANTOS, 2008).
Segundo Santos (2008), o modelo de racionalidade torna-se hegemônico,
pois a verdade seria encontrada apenas por meio da ciência. Desse modo, esse
modelo passa a ser visto como a única forma de produção de conhecimento e
explicação válida dos fenômenos, constituindo-se em um guia moral e social.
Além disso, surge a crença de que é por meio da ciência que os problemas
serão resolvidos e, assim, a sociedade obterá o progresso e a ordem diante
das crises que perpassavam o Ocidente oitocentista.
Acreditava-se que esse conhecimento fosse neutro, imparcial e objetivo,
ao passo que os fenômenos seriam separáveis e independentes, passíveis de
observação e medição, possibilitando a correção das variáveis para a cons-
trução de um modelo explicativo. Tal perspectiva influenciou outras ciências,
como a emergência das ciências humanas, para a constituição dos critérios de
cientificidade de uma ciência em desenvolvimento.
Com o desenvolvimento da ciência moderna, a sociedade e o comporta-
mento humano também passaram a se constituir como objeto de estudo de
forma objetiva e sistemática. A influência do positivismo comteano foi impor-
tante para a busca das ciências humanas pelos critérios de cientificidade, visto
que Comte propôs o pensamento positivo com o objetivo de tornar possível
a reorganização da sociedade e o seu progresso por meio das leis científicas.
Portanto, para alcançar a positividade, seria necessária a adoção dos métodos
das ciências naturais (CASTRO; DIAS, 2001).

Auguste Comte (1798–1857) foi um pensador francês influente na discussão sobre


o positivismo e a ciência como o caminho para o progresso e ordem na sociedade.
Vivendo em um contexto de grandes mudanças políticas, econômicas e sociais, ele
entendia a necessidade da elaboração de uma ciência que compreendesse o social
enquanto fenômeno científico tal qual a natureza constituía-se em objeto para a
ciência natural. Com isso, ele demandava a ruptura com o pensamento filosófico,
considerado especulativo, para uma valorização da ciência empírica como forma de
obtenção de um conhecimento que se daria por meio da produção de fatos observáveis
e demonstráveis (JAPIASSU, 1975).
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As ciências humanas ingressam na era da positividade, quando começa


a se colocar que essa ciência deveria seguir os critérios e métodos das ciências
da natureza. Essa entrada enquanto ciência positiva consiste na possibilidade
de determinação daquilo que diz respeito ao seu domínio de saber, ou seja,
o seu objeto. A emergência do ser humano como um estatuto científico acom-
panha o surgimento de algumas áreas, como economia, filologia e biologia,
e, posteriormente, das ciências sociais e da psicologia.
Contudo, como pensar uma especificidade da psicologia, considerando-se
que seu objeto é compartilhado por diferentes disciplinas das ciências huma-
nas? Por meio das discussões sobre o sujeito e a subjetividade, que emergem
com a ciência moderna, na medida em que o ser humano passa a ser tanto
sujeito quanto objeto do conhecimento. Assim, o ser humano se vincula às
condições de possibilidade do surgimento das ciências sociais e da psicologia,
o que levará ao debate sobre a possibilidade de esta última se constituir como
ciência independente.

2 A emergência da psicologia no século XIX


Os primeiros projetos de psicologia como uma ciência independente emergem
na metade do século XIX, quando se passou a considerar a necessidade de um
campo próprio para o estudo dos fenômenos psicológicos. No entanto, para
que esse processo fosse levado a cabo, era preciso que uma ciência emergente
demonstrasse possuir objeto próprio e um método para o estudo desse objeto.
No que diz respeito à psicologia como ciência, esse aspecto apresentou-se com-
plexo, pois implicava separar a psicologia da filosofia (FIGUEIREDO, 2008b).
De acordo com Barreto e Morato (2008), a história do pensamento psicoló-
gico envolve múltiplas questões conceituais, metodológicas e epistemológicas
na busca por uma delimitação de um campo e seu objeto de estudo. Essas ideias
produziram-se em diferentes centros de pesquisa, entre a Europa e os Estados
Unidos, marcadas pela demanda em responder aos anseios de apresentar
soluções aos problemas e como guias para a ação humana.
Na Idade Moderna, o que constituiria o objeto da psicologia estava disperso
entre a filosofia, ciências físicas e biológicas e ciências sociais. Então, como
constituí-la enquanto ciência independente? Conforme Figueiredo (2008b,
p. 15), “[...] o principal empecilho para a psicologia seria seu objeto: a ‘psique’,
entendida como ‘mente’, não se apresenta como um objeto observável, não
se enquadrando, por isto, nas exigências do positivismo [...]”. Desse modo,
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o objeto da psicologia sai do campo filosófico, da psicologia racionalista e


metafísica, para uma psicologia empírica.
O autor aponta, ainda, que a questão que atravessa a formação de um campo
científico da psicologia diz respeito à sua dependência da biologia e da sociologia.
Além disso, a criação da psicologia científica mantém estreita relação com as
ciências naturais ou sociais. Desse modo, a reivindicação de uma ciência própria
com objeto e método é complexificada diante das relações estabelecidas com
outras ciências que possuem aproximações de objetos de estudos.
Segundo Figueiredo (2008b), as condições que propiciaram o surgimento
da psicologia como ciência independente no século XIX estão relacionadas
à experiência da subjetividade privatizada e à sua crise. O sujeito moderno
constituiu-se durante a crise que assolou a Europa no fim do século XIX, a partir
das mudanças nas instituições e tradições, que serviram de referência para os
indivíduos. Se, no período medieval, havia uma sensação de pertencimento,
que se dava por meio da autoridade que constrangia e produzia a sensação de
fazer parte de uma ordem superior, o Renascimento proporcionou um contato
com a diversidade e as condições para novos modos de ser.
A liberdade possibilitava uma abertura aos constrangimentos de outrora, mas
também impunha a sensação de desamparo. É nesse contexto que a valorização
do ser humano como o centro produz transformações na noção de subjetividade
a partir da modernidade. De acordo com Figueiredo (2008b, p. 26–27):

O século XVI vê surgirem diversos personagens, reais ou fictícios, donos de um


“mundo interno” rico e profundo. Leonardo da Vinci, Dom Quixote, Hamlet,
entre muitos. Além disto, os personagens literários contribuíram também para
a construção da interioridade dos leitores. [...] a difusão da leitura silenciosa
[...] cria um diálogo interno que desenvolve a construção de um ponto de vista
próprio. O trabalho intelectual passa a ser progressivamente um ato individual
e mesmo a religiosidade pôde se tornar uma questão íntima [...].

Portanto, a emergência de uma subjetividade privatizada ocorre em mo-


mentos em que há crise das tradições e novas formas de vida, que deixam os
seres humanos sem referências com as quais possam tomar suas decisões. Isso
aconteceu, por exemplo, na passagem do Renascimento para a Idade Moderna,
que produziu mudanças econômicas, políticas e sociais que, juntamente, com
novas correntes do pensamento (Iluminismo, empirismo e racionalismo),
provocaram grandes transformações na Europa e, consequentemente, desen-
cadearam uma crise material, cultural e moral. Desse modo, os indivíduos
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de então foram obrigados a recorrer à sua consciência ou interioridade para


construir bases sobre o que sentiam, desejavam e consideravam adequado,
justo e ético (FIGUEIREDO, 2008b).
Com isso, houve uma valorização do ser humano enquanto centro do mundo,
o que fez emergir o Humanismo moderno. O reflorescimento da filosofia cética
acompanhou essas transformações em razão da dúvida da possibilidade de
obtenção de algum conhecimento que fosse seguro e fornecesse condições
de acesso à verdade do mundo. A interioridade e a individualidade passaram
a ser um valor, proporcionando as condições para o surgimento do sujeito
moderno e a sua crítica. Somadas à reação ao individualismo e ao ceticismo,
produziu-se duas críticas: ao racionalismo e ao empirismo. Ambas buscaram
novas bases para as ações humanas a partir da discussão sobre a subjetividade.

„„ Empirismo: a experiência sensível seria o caminho para a produção do conheci-


mento. Por isso, questiona-se a possibilidade de um conhecimento absoluto, dado
que a realidade se modifica conforme o tempo e o espaço. Principal pensador:
Francis Bacon.
„„ Racionalismo: prioriza o sujeito e a capacidade de duvidar, enfatizando a existência
de um ser pensante que pode atingir a verdade. Principal pensador: René Descartes.

O Iluminismo produziu uma crítica para a onipresença do “eu” e a razão


universal dessas perspectivas. A ideia de que a razão poderia levar ao conhe-
cimento foi questionada, acompanhada do aprofundamento de concepções
filosóficas românticas, com representantes como Nietzsche, que apresenta outra
concepção sobre a subjetividade. Com isso, tem-se uma crise da subjetividade
e seu caráter ilusório, do mesmo modo que a liberdade e a singularidade emer-
gem com o declínio dos ideais liberais e românticos (FIGUEIREDO, 2008b).
Esse panorama levou à formação de diferentes projetos de psicologia,
em meio ao debate sobre a psicologia científica e sua aproximação com as
ciências naturais. Assim, como visto, a história desse campo é marcada por
diferentes abordagens, que buscaram uma aproximação ou afastamento das
ciências biológicas, a fim de produzir um objeto que lhe fosse próprio.
22 História da psicologia como ciência

A psicologia científica, propriamente dita, nasce com Wilhelm Wundt,


considerado o fundador desta como disciplina acadêmica, a partir da fundação
do primeiro laboratório experimental na Universidade de Leipzig, em 1879.
No entanto, esse psicólogo possuía uma concepção da disciplina como ciência
intermediária, e sua concepção dos processos psicológicos demonstrava a
formação de dois projetos de estudos. Wundt reconhecia a importância do
contexto social para a compreensão da consciência, de modo que analisou
os fenômenos psicológicos como resultantes da combinação de diferentes
fatores, que incluíam a linguagem, os mitos, os costumes, além dos processos
psicológicos, produzindo algo novo (BARRETO; MORATO, 2008).
Por conseguinte, a psicologia emerge com duas perspectivas: psicologia
experimental e psicologia dos povos, cada uma recorrendo a métodos diferentes.
Enquanto a primeira utilizava os métodos das ciências naturais, a segunda
realizava análises a partir do método comparativo das ciências da cultura.
Entretanto, enquanto projeto de cientificidade, foi a primeira perspectiva —
experimental — que venceu e passou a constituir a formação desse campo
como ciência independente (BARRETO; MORATO, 2008).
Esse projeto vinculou-se ao positivismo e à preocupação com a quantifica-
ção. Por isso, os métodos de introspecção ou auto-observação serão criticados
à luz dos debates epistemológicos da ciência moderna, por serem considerados
subjetivos e enganosos. Assim, buscou-se superar a experiência imediata
como forma de obtenção do conhecimento para que se pudesse compreender e
explicar melhor o comportamento humano. A redução da análise ao observável
e mensurável excluía do campo analítico a subjetividade como objeto, dado que
a interioridade não seria acessível. Assim, apenas o comportamento, enquanto
exterioridade, era observável e passível de ser conhecido.
Desse modo, desenvolveu-se um debate sobre a exclusão da afetividade do
campo de saber psicológico, uma vez que ela colocava obstáculos ao conheci-
mento exato e dificultava a consolidação da psicologia como ciência dentro dos
padrões de verificabilidade e refutabilidade (MOLON, 2008). Nesse contexto,
emerge a demanda por uma ciência que pudesse prever e promover o controle
científico do comportamento, acompanhando as transformações sociais e
a necessidade de maior controle dos indivíduos (FIGUEIREDO, 2008b).
História da psicologia como ciência 23

O conhecimento psicológico passa a operar pela redução do sujeito cognos-


cente ao sujeito empírico e da consciência à cognição. Para Molon (2008, p. 12):

[...] o conhecimento psicológico constituiu-se marcado por dicotomias: ob-


jetividade e subjetividade, corpo e mente, natural e cultural, objeto e sujei-
to, razão e emoção, indivíduo e sociedade, exclusão e inclusão. Com isso,
o sujeito da Psicologia oscila entre uma objetividade observável e uma sub-
jetividade inefável.

Desse modo, o objeto que então seria atribuído à psicologia é excluído,


consolidando-se um campo científico que passa a opor objetividade e subjetivi-
dade (MOLON, 2008). Conforme Molon (2008), o percurso para a constituição
de uma ciência independente, ao assumir o paradigma dominante na época,
correu o risco de perder seu objeto, a subjetividade e o sujeito. Todavia, como
afirmam Barreto e Morato (2008, p. 149), a psicologia “[...] já se configurava
como um espaço de dispersão do pensamento psicológico, ocupando um espaço
intermediário entre as ciências da natureza e as da cultura [...]”, tornando
a ideia de um objeto único e uma ciência unificada impossível.
Assim, as diferentes perspectivas metodológicas, teóricas e epistemoló-
gicas utilizadas formaram uma pluralidade de sistemas de pensamento. Por
isso, a história da psicologia constitui-se na formação de diversos sistemas
de pensamento, que emergem quase ao mesmo tempo e configuram diversas
concepções de subjetividade, do objeto da psicologia e sobre qual a melhor
forma de abordá-lo. Esses sistemas dividiram-se em diversas matrizes que
fundamentam o pensamento psicológico, com algumas posicionadas próximo
à psicologia experimental e outras próximo a perspectivas compreensivas.
Essas diferentes matrizes de pensamento deixam entrever o longo debate
sobre qual seria o objeto específico da psicologia como ciência independente.

3 A psicologia seria uma ciência


do comportamento?
A psicologia é parte de uma produção moderna do indivíduo enquanto in-
terioridade que levou à invenção do psicológico. É uma produção histórica
que constituiu as experiências dos sujeitos enquanto um campo a ser explo-
rado. Segundo Prado Filho e Martins (2007, p. 14), isso aponta que, antes da
emergência:
24 História da psicologia como ciência

[...] das psicologias a experiência psicológica não existia, bem como não exis-
tiam a própria materialidade da “substância psíquica”, a existência psicológica
e a percepção de si mesmo como ente subjetivo, que dão forma ao campo
de experiências do sujeito moderno, compondo sensações de privacidade e
intimidade que ele vivencia como “reais” e “naturais”.

As condições históricas para a emergência de um sujeito psicológico na


modernidade dizem respeito ao Humanismo, à reforma religiosa e ao antro-
pocentrismo. Todas essas condições produziram uma série de reflexões que
colocaram o sujeito cognoscente como central para a vida cotidiana, para a
ciência e a filosofia. Entretanto, também levaram a uma crítica à metafísica e
à necessidade de uma objetivação do que seria o objeto da psicologia.
Qual é, afinal, o objeto específico de estudo da psicologia? Psicanalistas,
comportamentalistas, cognitivistas e funcionalistas darão, cada um, diferentes
respostas a essa questão. Prado Filho e Martins (2007) apontam que, habi-
tualmente, essa área é definida como ciência do comportamento, a partir da
forte influência de correntes cientificistas nesse campo. Todavia, sua origem
filosófica coloca etimologicamente essa área como um campo de reflexão
sobre a alma e, posteriormente, a mente. Assim, tem-se a compreensão de
que o estudo da psicologia seria a experiência humana ou a consciência, ou
mesmo o abandono dessas concepções, por serem consideradas imprecisas e de
difícil medição. Desse modo, essas concepções são substituídas pela ideia de
comportamento, a fim de que a psicologia se constitua em uma ciência positiva.
Considerando-se o surgimento desse campo de conhecimento enquanto
busca por um caráter científico, haveria uma “dança de objetos” (PRADO
FILHO; MARTINS, 2007), articulada com o desenvolvimento de diferentes
psicologias não unívocas, tampouco lineares. Tal característica indica não
uma superação de sistemas de pensamento, mas a diversidade e a divergência
epistemológica de abordagens sobre o fenômeno psicológico.
Assim, tem-se, na construção da psicologia como campo, objetos distintos:
a mente, enquanto concepção idealista, subjetivista, com forte vinculação
metafísica; os processos psicológicos, enquanto cognição; o comportamento
e a relação estímulo-resposta; a percepção, enquanto fenômeno experienciado
pelo indivíduo; o inconsciente; e as relações sociais, articuladas ao processo
de subjetivação. Cada uma desses objetos compõe diferentes matrizes de
pensamento psicológico coexistentes ainda hoje.
História da psicologia como ciência 25

Conforme Figueiredo (2008a), o campo da psicologia reproduziu, no âmbito


teórico, a ambiguidade de objetos, de modo que uma sistematização será sempre
marcada pelas contradições próprias dessa formação plural. O autor divide,
ainda, esse campo em dois grandes agrupamentos de pensamentos, que se
subdividem em outros mais (Quadro 1). A organização dessas duas perspectivas
de pensamento procura acompanhar a discussão da psicologia como ciência
independente desde o seu nascimento e institucionalização com Wundt. Assim,
tem-se, de um lado, escolas cientificistas, em que a especificidade do objeto,
o subjetivo e a singularidade são excluídos em favor do modelo das ciências
naturais; e, de outro lado, as escolas de matrizes românticas e pós-românticas,
cujo objeto seria os atos e vivências de um sujeito, considerando os significados
e valores atribuídos por este às suas experiências.

Quadro 1. Matrizes cientificistas e matrizes românticas e pós-românticas

Matrizes românticas e
Matrizes cientificistas
pós-românticas

Matriz nomotética e quantificadora Matriz vitalista e naturista

Matriz atomicista e mecanicista Matrizes compreensivas

Matriz funcionalista e organicista

Bairrão (2009) aponta que essas diferentes matrizes de pensamento definem


a psicologia pelo que é feito, em termos de método, em função dos objetos
estudados. O autor aponta, ainda, que, na busca por libertar-se de sua emer-
gência no campo filosófico, a psicologia caminhou até as ciências naturais para
encontrar os métodos que pudessem constituí-la como um objeto específico.
Contudo, se já em sua emergência com Wundt a psicologia apresentava
duas perspectivas de estudo, isso indica que o objeto estudado por ela não
pode ser reduzido a atividade cerebral, respostas fisiológicas e comportamento.
Portanto, é um campo de conhecimento que se constituiu em uma pluralidade
de matrizes de pensamento, mas procurou, por muito tempo, sustentar, ao pegar
emprestado métodos de outras áreas, uma ontologia que a tornou vulnerável
aos reducionismos (BAIRRÃO, 2009).
26 História da psicologia como ciência

Conforme Prado Filho e Martins (2007), nessa dança, há um movimento


de construir um objeto que se desloca do biológico ao cultural, de modo que
há concepções que levam em consideração a consciência, o comportamento,
a personalidade, a identidade, a subjetividade e a singularidade. Para Serbena
e Raffaelli (2003), é preciso considerar também a formação da psicologia
como ciência da alma, para que sejam incluídas as abordagens e os debates
sobre a subjetividade e a experiência humana. Ou seja, a existência de várias
matrizes de pensamento não invalida um campo de conhecimento enquanto
ciência quando se considera a especificidade das ciências humanas e de seu
objeto, o ser humano.
Seguindo as reflexões de Santos (2008) sobre a emergência de um outro
paradigma que se contrapõe ao modelo positivista, pode-se compreender que
a psicologia possui um estatuto próprio enquanto ciência humana marcada
por uma pluralidade de objetos. Assim, não é possível reduzi-la à ciência
do comportamento ou ao inconsciente, considerando-se que o ser humano
é complexo e constituído por múltiplos fatores sociais, culturais, políticos,
fisiológicos e subjetivos.
Essa leitura coloca a psicologia enquanto processo histórico, possibilitando
uma ruptura com as dualidades que constituíram a ciência moderna. Desse
modo, Santos (2008) entende que uma ruptura com o paradigma dominante
de ciência implica em superar dualismos tradicionais da ciência no estudo da
humanidade. Assim, a pessoa é tanto um sujeito do mundo histórico como
do natural. A vida é uma totalidade sistêmica e complexa: apreender a com-
plexidade do real.
Entretanto, as tentativas de distinção epistemológica entre sujeito e objeto
nunca foram tranquilas, embora existissem estratégias metodológicas para que
se pudesse controlar a distância entre eles. Essa perspectiva de uma ciência
social nascente mostrou, ao longo do tempo, seus limites, uma vez que a rela-
ção é entre dois sujeitos, e não entre um objeto e um sujeito. Contudo, ambos
produzem textos, escritos em línguas distintas (disciplinares e do mundo da
vida/cultural), o que mostra que a subjetividade nunca esteve fora da ciência,
mas antes constitutiva desta.
A partir dessa virada, Santos (2008) compreende que não se pode reduzir
a totalidade às partes que constituem e que poderiam ser examinadas à luz
do modelo das ciências naturais. Tal perspectiva levou à especialização do
conhecimento e à divisão da psicologia em disciplinas e subáreas, centradas
apenas no estudo de uma parte do todo. Para o autor, tal fragmentação deveria
ser tratada como questão temática, e não disciplinar.
História da psicologia como ciência 27

Por isso, a ruptura de um modelo dualista contribui para a superação da


perspectiva de disciplinas, uma vez que constituiria barreiras. Para um campo
científico que tem o ser humano como objeto compartilhado, tal parcelização
implica em fragmentação e disciplinarização do conhecimento, impossibi-
litando o diálogo e a articulação entre diferentes campos de conhecimento.
Prado Filho e Martins (2007) e Bairrão (2009) deixam claro que a forma-
ção do campo científico psicológico é marcadamente política, uma vez que
seu surgimento e reivindicação enquanto ciência independente diz respeito à
resposta às demandas políticas e sociais da época. De acordo com a perspec-
tiva apresentada por Santos (2008), deve-se considerar a psicologia enquanto
epistemologia plural, marcada pela complexidade que constitui o ser humano
e seu compartilhamento com múltiplas áreas das ciências humanas. Portanto,
é uma ciência em contínuo diálogo com outros campos de saber.

1. A ciência moderna surgiu a partir de a validade de um conhecimento se


importantes influências no campo dá pelos critérios de cientificidade
da física, as quais provocaram desse modelo, assinale a
revoluções na cosmologia ocidental alternativa que indica o significado
e conduziram a transformações de produzir conhecimento
no modo de produção do fidedigno nesse contexto.
conhecimento. A esse respeito, a) Quantitativo.
assinale a alternativa que indica b) Qualitativo.
a primeira revolução pela qual c) Quanti-quali.
passou o Ocidente moderno. d) Compreensivo.
a) Revolução Kepleriana. e) Subjetivista.
b) Revolução Galileana. 3. A proposição da ciência como o
c) Revolução Copernicana. único caminho possível para a
d) Revolução Newtoniana. reorganização da sociedade e o seu
e) Revolução Freudiana. progresso, por meio da formulação
2. O modelo hegemônico de de leis científicas pelo conhecimento
cientificidade constituiu-se a partir observável e demonstrável, a partir
das ciências naturais, de modo dos métodos científicos das ciências
que a obtenção do conhecimento da natureza, influenciou as ciências
somente seria considerada a partir humanas. Assinale a alternativa que
de seus métodos. Considerando que indica o nome dessa proposição.
28 História da psicologia como ciência

a) Subjetivismo. d) Crise da subjetividade


b) Iluminismo. privatizada e redução do sujeito
c) Empirismo. cognoscente ao sujeito empírico.
d) Racionalismo. e) Reconhecimento da afetividade,
e) Positivismo. sensibilidade e criatividade
4. A emergência da psicologia como dos sujeitos cognoscentes.
ciência é acompanhada por um 5. A psicologia enquanto ciência
contexto de debates sobre o lugar desenvolve-se a partir de diferentes
do sujeito e da subjetividade. projetos, que objetivaram constituir
A partir de mudanças sociais, um campo de saber com objeto,
acompanhadas de reflexões método e matriz teórica próprios.
filosóficas, houve condições para Por se tratar de uma multiplicidade,
o surgimento de uma noção de é possível dizer que a psicologia não
um mundo interior. Levando em possui uma epistemologia unitária,
consideração que o debate sobre sendo formada por diferentes
a psicologia enquanto ciência matrizes de pensamento. Levando
situa-se nesse contexto, assinale a em consideração essa característica
alternativa que indica as condições da formação do campo científico
para o surgimento da psicologia. da psicologia, assinale a alternativa
a) Ascenção da subjetividade que corresponde às matrizes
privatizada e valorização do pensamento psicológico.
do sujeito empírico. a) Matrizes cientificistas
b) Valorização da subjetividade e quantificadoras.
privatizada e do sujeito b) Matrizes românticas/pós-
cognoscente. -românticas e cientificistas.
c) Desconsideração dos c) Matrizes nomotéticas
comportamentos observáveis e mecanicistas.
e mensuráveis. d) Matrizes científicas e atomistas.
e) Matrizes organicistas
e compreensivas.

BAIRRÃO, J. O que é a psicologia? Psicologia, Lisboa, v. 23, n. 2, p. 11–20, 2009


BARRETO, C. L. B. T.; MORATO, H. T. P. A dispersão do pensamento psicológico. Boletim
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