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O Sol que nos separa

Existe uma coisa na vida que me fascina. É o sol. Uma estrela que se encontra
a milhões de quilómetros do nosso planeta, mas que, mesmo assim, o
influencia. O sol não nos deixa sozinhos, nós é que o deixamos com os outros,
que um dia já cá não estarão. Ninguém cá estará.
Mas vamos deixar este assunto para mais tarde e para outro contexto.
A vida é inesperada e não se resume a algo simples e concreto, expande-se
para uma dimensão muito mais abstrata que nem nós próprios
compreendemos. Ou quando a compreendemos já cá não estamos.
Nasci no dia 20 de março de 2003. Até aos meus seis anos, cresci no seio de
uma família feliz, abastada e com grandes princípios morais. Com o apoio da
minha mãe consegui superar a fase da minha vida que se seguiu. Quando
entrei para a primária, já o meu pai se tinha separado de nós e fugido com a
outra mulher com quem já estava há algum tempo.
Mas este tormento foi superado quando conheci a minha melhor amiga,
Clarisse. Uma doce menina de cabelo ruivo aveludado e olhos de cor
semelhante à amêndoa. O seu rosto era revestido por sardas e era
simplesmente linda na sua simplicidade. Era delicada e inocente.
Sorriu para mim e eu retribuí. A partir deste momento, uma nova amizade
surgiu embalada numa melodia de alegria. Cada vez ficamos mais próximos.
Todos os dias que passava com ela eram maravilhosos. No fim de semana da
primeira semana de aulas, mais precisamente, nesse domingo, fui para casa
de Clarisse.
A casa era humilde e próxima do mar. Estava situada no topo de uma falésia.
Essa tarde passou num bater de asas. Como éramos crianças, qualquer coisa
nos divertia e agradava. Mas ser criança também tem a vertente das asneiras,
não as podemos evitar. Corremos até à ponta da falésia. Nesse preciso
momento, o céu pintou-se de cores: laranja, vermelho, amarelo. Foi o pôr do
sol mais belo que alguma vez vi e, ao lado de Clarisse, ainda mais belo ficou.
Este pôr do sol espelhado no mar paralisou-nos.
Após este momento, combinamos encontrar-nos todos os domingos para ver o
pôr do sol. Éramos pequenos, mas tínhamos grandes planos. A minha mãe,
todos os domingos, me levava a casa de Clarisse, depois do almoço em casa
da avó Berta e do avô Augusto. Mantivemos este costume mesmo quando
fomos para o ensino básico. Estávamos na mesma turma e isso facilitava tudo.
Estávamos sempre juntos. Era uma amizade imensamente sólida e
inseparável. Até aos nossos doze anos, praticamente não nos separamos.
Passava sempre o fim dos domingos com Clarisse, em sua casa, para vermos
o pôr do sol. Mas, num certo domingo, Clarisse, após vermos o pôr do sol,
disse-me para eu ficar mais um pouco na falésia. Pegou na minha mão com os
seus finos dedos delicados e disse-me algo que me deixou incrédulo e atónito.
Olhando para mim disse-me com a voz um pouco tremida que ia para a
Austrália. Nesse momento, o meu mundo desabou. A nossa amizade era um
pilar muito forte para mim, que sempre me tinha ajudado a superar as fases
mais difíceis da minha vida como a separação dos meus pais. O seu carinho e
doçura eram contagiantes. Uma lágrima descia-me no rosto. Só mais tarde é
que ela me explicou o porquê desta situação. Os pais de Clarisse tinham boas
profissões, mas o seu rendimento não era suficiente para todos os seus gastos.
Tinham de pagar o centro de reabilitação onde se encontrava a avó de Clarisse
que tinha metade do corpo paralisado e, ainda, a sua casa na falésia. O pai de
Clarisse era professor (penso eu que era de filosofia) e a sua mãe era
enfermeira. Duas profissões que nesta época sofreram bastante com a crise.
Poucos dias depois, ela foi. Pedi imenso à minha mãe para ir com Clarisse ao
aeroporto. Depois de tanto insistir, decidiram levar-me. Mal cheguei ao
aeroporto, o meu coração acelerou. E então quando a vi, quase que explodia
de euforia. Fui ao encontro dela. Estava com os seus pais e com a sua avó,
que não podia ficar sozinha. Foi Clarisse que me disse olá pois nesse momento
eu estava tão perturbado que nada me saía. As despedidas foram breves,
nenhum de nós aguentava uma longa conversa. A nossa despedida baseou-se
num simples “até à vista”. Depois disto, Clarisse virou costas. Mas eu não
aguentei, corri para ela e abracei-a. Abracei-a como se não houvesse amanhã.
Um abraço tão longo e tão caloroso, que parecia que o universo tinha parado.
Nenhum de nós queria largar, e nenhum largou até que se ouviu “última
chamada: voo para a austrália, porta 4”. Aí larguei-a, acenei e fui embora.
Reconheço que foi um momento bastante cliché, mas Clarisse era a minha
melhor amiga. A verdade é que a minha vida sem ela ficou muito menos
colorida. A nossa ligação era muito forte desde o primeiro sorriso e troca de
olhares. Eu não a queria perder, mas também o que ia fazer? Prendê-la? Como
bom amigo que sou, tinha de a apoiar e só podia desejar-lhe que fosse feliz.
Clarisse deu notícias quando chegou à Austrália. Adorou logo de imediato
aquele lugar tão quente e característico. Contou-me que, no primeiro dia, tinha
visto cangurus e koalas, o seu novo apartamento e alguns dos mais famosos
locais da cidade onde iria morar. Pouco mais me disse. Não tinha tempo. Entre
toda aquela euforia e animação, pouco tempo restava para falar comigo.
Estávamos em 2015, uma época difícil cá em Portugal. A minha mãe perdeu o
emprego, mas rapidamente arranjou outro. Tinha de me sustentar.
Como era domingo, fui de bicicleta até à falésia onde era a casa de Clarisse,
que ainda estava à venda, e vi o pôr do sol. Clarisse estava na Austrália desde
terça feira e eu já morria de saudades dela. Foi um longo caminho, mas valeu a
pena. Decidi repetir este ritual todos os domingos, sem exceção, quer estivesse
chuva ou sol. Era uma maneira de me sentir próximo de Clarisse, de sentir que
estávamos separados por algo muito ténue, como a luz do pôr do sol.
Mantive-me sempre em contacto com ela. Mantivemos sempre aquela nossa
amizade.
Amizade não se resume à proximidade, mas sim à conexão que se estabelece.
Não é fácil criar uma amizade sólida, leva tempo e é necessária disposição
para permitir esse começo e não vale a pena ter muitos “amigos”, feliz daquele
que tem uma mão cheia deles. Nessa altura, eu via em Clarisse, uma amizade
perfeita, a única amizade que procurava.
Apesar da distância, continuava a sentir o seu apoio e ternura.
As semanas após a partida de Clarisse não foram fáceis na escola. Ao longo
destes anos, tinha-me refugiado muito nela e pouco tinha contactado com os
meus outros colegas. Sentia a necessidade de ter amigos não só devido à
pressão social, mas também para melhorar a minha autoestima.
Continuamente ouvia insultos como o rejeitado, aquele com quem ninguém
quer estar por estar sempre sozinho. Isso levou a que me refugiasse nas redes
sociais. A busca incessante de seguidores, likes e comentários levaram a um
descontrolo. Momentaneamente sentia um aumento de confiança, mas
rapidamente caía no meu estado de desespero normal.
A minha mãe perdeu novamente o emprego, por volta de maio de 2016. Foi um
ano complicado. Tive de me privar de alguns bens materiais, mas, mesmo
assim, não deixei de ser feliz. Para mim a felicidade não vinha daquilo que é
material, mas sim das emoções. De tudo aquilo que me faz bem ao coração. A
minha mãe era a minha heroína, fazia tudo o que estava ao seu alcance para
melhorar um pouco mais a minha vida.
Um herói não é só aquele que combate o crime e salva toda a gente, é muito
mais que isto. Um herói é uma figura que o ser humano admira, um exemplo a
seguir. São figuras que transmitem coragem e ensinamentos importantes e
necessários para a nossa vida. Para mim, os heróis são importantes na medida
em que incutem vontade de sermos melhores. Por outro lado, os heróis têm o
importante papel de manter o nosso “mundo da fantasia” sempre aceso dentro
de nós, estimulando a nossa imaginação e criatividade. O ser humano não vive
sem sonhar pois é a única coisa que não custa dinheiro.
À medida que se aproximava a época natalícia, o meu desejo de estar com
Clarisse aumentava.
O Natal deste ano foi difícil pois o meu avô Augusto tinha morrido apenas um
mês antes desta época tão festiva.
Perder alguém não é fácil. Faz-nos repensar toda a nossa vida e o que
vivemos ao lado dessa pessoa. O meu avô morreu de cancro, cancro dos
pulmões. Após muitos dias internado, morreu devido às metástases que
afetavam os seus órgãos principais. Mas, antes disso, a vida não lhe tinha sido
favorável. Mal descobriu que tinha esta maldita doença, iniciou os tratamentos,
mas o cancro venceu-o logo de início e rapidamente ficou preso a uma cama,
cheio de dores. Apesar dos inúmeros fármacos que tomava, nada aliviava
aquela dor. Berta, a minha avó, chorava amargurada ao ver o sofrimento de
Augusto. Foi uma doença fatal tal como o sentimento de perder alguém.
Consome-nos por dentro. Por muito que queiramos mostrar uma faceta alegre,
estes sentimentos puxam-nos para o nosso lado mais triste. Sentimo-nos
vazios, o que leva, por vezes, a uma certa insegurança que nos muda
completamente, que muda a nossa personalidade e forma de ser.
Nestes momentos, só queremos alguém em quem confiar. Apesar da confiança
na minha mãe, eu só desejava Clarisse.
Por isso, nesta época natalícia, tudo o que precisava era ver o pôr do sol na
falésia, tal como fazia todos os domingos sem exceção, mas este foi especial.
Fui até lá de bicicleta, como sempre, sentei-me na ponta da falésia e assim
fiquei. Estava a nevar levemente, o que abrilhantou ainda mais aquele pôr do
sol. Foi tão lindo como o primeiro que vi com Clarisse. Como desejava tê-la ali.
Uma pequena lágrima escorreu-me pelo rosto.
Chegou 2017 e com ele novos e novos planos, mas faltava-me Clarisse. A
saudade apertava cada vez mais e as nossas conversas eram cada vez mais
escassas. Nesse ano, decidi que já estava na altura de arranjar uma
namorada. Tinha de ultrapassar o que sentia por Clarisse. Não tinha a certeza
se o que sentia por ela era amor, mas sabia que era algo especial. Comecei a
namorar com Sameiro, uma rapariga por quem tinha tido uma paixoneta. Ela
era loira, com cabelo grosso e volumoso, mas rosto singelo. Era extremamente
carinhosa. Demorei algum tempo a ter coragem para a pedir em namoro. Foi
precisamente numa quarta feira soalheira. Ela estava à sombra de um
majestoso plátano. Eu aproximei-me, sentei-me junto dela e fixei-lhe o olhar.
Ela desviou os seus olhos em direção aos meus. Assim, perguntei-lhe num tom
leve e delicado “Gostas de mim?”, ao que ela respondeu “Profundamente”.
Encostei os meus lábios no seu rosto, mas ela agarrou-me a face e beijou-me.
Senti um arrepio a subir pelo meu corpo. Era uma sensação inexplicável. Mas
não foi tão memorável como quando Clarice segurou a minha mão e olhando
para mim disse que ia para a Austrália. Não sabia se estava pronto para seguir
em frente com Sameiro, mas decidi arriscar.
O tempo foi passando. Já namorava com Sameiro há um ano. Sentia-me
seguro ao lado dela e simultaneamente feliz, mas não se comparava à
felicidade que sentia ao lado Clarisse.
Já corria o ano 2018 quando decidi levar Sameiro à falésia, para ver aquele
magnífico pôr do sol. Quando chegamos à falésia, sentamo-nos na ponta da
mesma e demos as mãos. Entrelaçamos os dedos e encostamos
carinhosamente as cabeças. Quando o sol beijou o mar, uma profunda falta de
Clarisse corroeu-me. Sameiro ia beijar-me, mas eu desviei a face e de cabeça
baixa disse-lhe que não podia continuar a violar os meus sentimentos mais
nobres com ela. Pedi-lhe que me desculpasse. Sameiro olhou para mim, sorriu
e foi-se embora.
Como fui estúpido! Só nesse momento percebi o quanto amava Clarisse. O
quanto queria reviver com ela os momentos que tivemos juntos. Tudo o que
queria era senti-la junto a mim.
O amor não é algo fácil de compreender. É um sentimento confuso e às vezes
até parece malévolo, gosta de nos fazer sofrer. Mas também só através do
amor consegui interpretar os meus sentimentos por Clarisse. Eu amava-a e só
queria dizer-lhe que a amava profundamente. Assim terminou o meu 2018.
O ano de 2019 também não foi fácil, basicamente nenhum ano o foi. Mas então
esse verão foi demais para mim. As temperaturas atingiam valores
extremamente elevados cá em Portugal e no mundo, mas a minha
preocupação recaía mais fortemente em Clarisse. Mesmo assim, não deixei de
ir ver o pôr do sol na falésia, aquele tão belo pôr do sol.
Lembro-me que um dia, enquanto almoçava, ouvi uma notícia referente à
Austrália. Os meus ouvidos abriram-se e toda a minha atenção se fixou
naquela notícia. O meu coração palpitava incessantemente.
A Austrália estava a arder, mais concretamente uma cidade vizinha àquela
onde Clarisse se encontrava. Liguei-lhe imediatamente. Tremia por todos os
lados e escorria tanta água pelo meu corpo como aquela que há no oceano.
Clarisse atendeu. Pelo seu tom de voz parecia ansiosa e perturbada. Falamos
um pouco, mas não cheguei a compreender o impacto que a catástrofe estava
a ter na sua vida. Desliguei. Ai como queria vê-la. Era tudo o que desejava. As
notícias relativas a este grande incêndio e as consequências para o planeta e
para a vida animal eram recorrentes.
Vim a saber uma semana depois, que Clarisse esteve internada seis dias
quase sem respirar devido à excessiva inalação de fumos, derivada do
aumento das proporções do incêndio, que já tinham consumido toda a cidade
onde ela morava. Esta notícia chocou-me. Quando os pais dela ma contaram,
senti um medo enorme de perdê-la. Durante essa semana, Clarisse tinha
realizado diversos exames que vieram confirmar o pior: tinha ficado com graves
problemas nos pulmões. Eram pequenas deteriorações nos canais
respiratórios. Os seus pais mantiveram-me sempre a par do seu estado de
saúde. Sabiam claramente o quanto ela significava para mim. Clarisse,
passada mais uma semana em recuperação, voltou para casa um pouco
melhor, mas ainda assim, numa cadeira de rodas. Apesar de Clarisse estar
numa cadeira de rodas, não era isso o que mais me preocupava, mas sim tudo
o resto, desde a sua saúde à sua felicidade.
Sentia um medo angustiante só de pensar que poderia perdê-la. A minha tão
amada Clarisse. Ela representava tudo de bom da minha vida. Desejava
ardentemente tê-la junto a mim. Não queria perdê-la sem lhe dizer um último
“até à vista”. Queria muito dizer-lhe que a amava. O sentimento de proximidade
que até então me preenchia, começou a desvanecer. Sentia-a cada vez mais
distante.
Perante este turbilhão de emoções, enchi-me de coragem, liguei-lhe e disse-lhe
que precisava de a ver. Ela nem hesitou e respondeu que apesar da sua
fragilidade, iria regressar para me ver. Marcamos encontrar-nos no dia 5 de
fevereiro, já em 2020, na falésia.
O meu coração ficou cheio. Até esta data, a minha ânsia aumentava cada vez
mais.
Mas Clarisse ia piorando. Quanto mais se aproximava do dia do nosso
encontro, pior ela ficava. Passou a estar dependente de um aparelho de
oxigénio e a fraqueza apoderava-se dos seus braços que já mal empurravam
as rodas da sua cadeira. Mesmo neste estado, resignava-se a desistir. Eu
sabia que também ela queria ver-me e que não suportava a ideia de partir sem
concretizar tal desejo.
A minha vida já só girava em torno dela, deste nosso tão esperado encontro.
Ela já tinha comprado o bilhete há muito. No dia do embarque, Clarisse trazia a
sua mala e, atrelada a si, a sua máquina do oxigênio da qual ela dependia a
cem por cento. Apesar das suas incapacidades, veio sem hesitar mesmo tendo
lhe sido desaconselhado pelo seu médico e pelos seus pais.
A probabilidade de morrer em breve era elevada, mas se Clarisse não o
fizesse, morria por dentro. Só tinha 17 anos, mas viajou sozinha. Foi uma
viagem longa e extremamente cansativa.
Passou por algumas dificuldades durante a viagem desde quebras de tensão
até algumas paragens respiratórias.
Eu passei toda a tarde na falésia, à espera de Clarisse. Esperava
inquietamente o seu regresso. No aeroporto, Clarisse entrou num táxi
especializado para transportar pessoas em cadeira de rodas.
Estava eu na falésia quando ouvi um carro a chegar. O meu coração quase
que se soltava do peito. Corri rapidamente. Ajudei-a a sair daquele táxi. Aquilo
que sentia naquele momento era inexplicável. Era amor. O meu maior desejo
estava a realizar-se: finalmente estava junto de Clarisse.
Ela estava mesmo debilitada. Empurrei-a até ao topo da falésia e sentei-me
junto dela.
Peguei-lhe suavemente na mão e fixei-lhe o olhar. Acariciando-lhe os finos e
delicados dedos, disse-lhe “Eu amo-te”, ao que completou a muito custo “Com
todo o meu coração”. Entrelaçamos os dedos e eu colei os meus lábios nos
dela.
O pôr do sol começou, majestoso como sempre. Encostamos as cabeças. À
medida que o sol descia, Clarisse ficava mais fraca. Uma lágrima escorria-lhe
pelo rosto. Novamente fixou o seu olhar no meu, esboçou um sorriso e
gesticulou-me “Eu amo-te e amar-te-ei para sempre, Eduardo”.
Voltou a olhar para o sol. E quando este se pôs por completo também os seus
olhos se fecharam para sempre.

Hoje, passados 20 anos, sinto que o que amei e amo, fica comigo para sempre,
faz parte de mim. É como se o amor entranhasse no íntimo do meu ser, e
ficasse tatuado na minha alma.

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