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DESENHO FONTE DE

INTERPRETAÇÃO
PARA O
DESENVOLVIMENTO
PESSOAL
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

SUMÁRIO

INTRODUÇÃ O 3
1- A IMPORTÂNCIA DA ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL 12
2- O DESENHO DIDÁTICO INTERATIVO NA EDUCAÇÃO ONLINE 17
3- OS CAMINHOS PARALELOS DO DESENVOLVIMENTO
DO DESENHO E DA ESCRITA 22
4- A CASA: CULTURA E SOCIEDADE NA EXPRESSÃO DO DESENHO INFANTIL 42
REFERÊNCIAS

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INTRODUÇÃO

A psicanálise exerceu forte influência no desenvolvimento e construção dos métodos


projetivos e na compreensão do processo psicodiagnóstico, no entanto o ensino na
área das técnicas projetivas centra-se muitas vezes na aprendizagem das pautas de
interpretação dos instrumentos, correndo o risco de favorecer modelos atomísticos de
interpretação, perdendo de vista o objetivo de alcançar as operações mentais operadas
pelo sujeito e que permitiriam ao psicólogo alcançar o modo de funcionamento psíquico
do paciente, objetivo principal de um processo psicodiagnóstico pautado na
psicanálise.

Pesquisas sobre técnicas projetivas com estudos de validação e de padronização são


importantes para comprovar cientificamente as qualidades psicométricas dos
instrumentos, identificando características próprias de várias patologias ou grupos
clínicos, no entanto o uso clínico destes instrumentos exige uma compreensão mais
ampla que aquela alcançada pelas pesquisas de traços ou categorias, exigindo do
clínico considerar a produção projetiva como um todo e na singularidade de cada
sujeito.

Acreditamos que o conhecimento clínico e teórico da psicanálise poderia contribuir


para o ensino de técnicas de avaliação da personalidade a partir de desenhos. No
entanto análise das produções projetivas gráficas, valiosa ferramenta dentro do
processo psicodiagnóstico, quando feita apenas baseada nos manuais de interpretação
dos testes, sem utilizar o raciocínio clínico do psicólogo que integra as informações
obtidas e tendo como pano de fundo um conhecimento teórico sobre o
desenvolvimento e a personalidade, corre o risco de resultar em interpretações
estereotipadas, perdendo seu caráter de rica possibilidade de comunicação, que pode
contribuir para mapear as várias dimensões presentes na construção da subjetividade
do paciente, permitindo um melhor encaminhamento aos profissionais que trabalham
no campo da infância.

Pretendo expor neste trabalho o vértice encontrado para integrar estes aspectos e
manter a confiança de que, como psicanalista, é possível contribuir para a formação de
psicólogos que utilizam o desenho no processo psicodiagnóstico da criança. Esta
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proposta pretende contribuir para retirar a análise de desenhos do limbo no qual se
encontram todas as técnicas de avaliação psicológica, tratadas em algumas áreas
acadêmicas como um conjunto de instrumentos que retiram o sujeito de sua condição
de indivíduo.

Trata-se de lutar contra uma desconfiança gerada pela vulgarização, por vezes,
demasiado simplista, dos modos de investigação psicológica, que correm o risco de
catalogar a criança e ao mesmo tempo defender a utilização de desenhos como forma
de aproximação e conhecimento do sujeito.

A perspectiva que propomos como reflexão é considerar o desenho, não como um


"teste", mas como uma forma possível de diálogo com as crianças, introduzindo a ideia
de que a produção gráfica da criança, a exemplo da produção onírica, é antes de tudo
resultado de um trabalho psíquico e de que qualquer busca de sentido só será
alcançada, se este puder ser inserido em um diálogo e uma certa postura de escuta.
Este vértice encontra eco em autores como Sigal (2000) e Mannoni (1981).

Os testes são para mim apenas um meio e não um fim. Utilizo-os num diálogo, durante
o qual procuro apurar um sentido, um sentido, sem dúvida, em função de certo
esquema familiar. E é, pois, ao discurso do sujeito que vou prender-me sobretudo
(Mannoni, 1981, p. 84)

Diagnosticar é, neste sentido, interpretar, construir hipóteses que nos permitam dar
conta do trabalho simbólico junto aos conflitos que se estruturam no caminho de
construção da subjetividade, assim como abordar as formações imaginárias que se
apresentam como armadilhas do desejo para a sua satisfação (Sigal, 2000, p. 30).

A área da investigação psicodiagnóstica está repleta de testes de personalidade que


utilizam o desenho como veículo de comunicação e que, na maior parte das vezes, são
acompanhados de pautas de interpretação dos conteúdos simbólicos associados às
diferentes partes dos desenhos (casa, árvore, pessoa ou família), tendendo a levar a
uma postura de que é possível decifrar um desenho. Ilusão e tentação da busca de um
sentido imediato prescindindo do diálogo.

Diatkine (2007) alerta que os sentidos atribuídos às produções da criança provêm do


fato de que os afetos, em busca de representações ou ligações, se articulem a
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elementos da trama do discurso do paciente, que podem ser percebidos como indícios
que mobilizam o psicanalista a construir um objeto de conhecimento. É a partir de sua
elaboração interpretativa que este indício pode ser transformado em signo e como tal
um elemento de comunicação emitido para que a criança o receba.

A criança, por sua vez, não emite, intencionalmente, nenhuma mensagem codificada e
o psicanalista não tem que lhe mostrar alusivamente que sabe decifrar enigmas... É no
transcurso que a criança descobre o que tem para dizer e que por isso pode entrar no
universo do discurso (Diatkine, 2007, p. 35)

A produção de imagens é uma forma de comunicação de afetos que, a partir daquele


que a produz, estimula aquele que as observa a entrar em contato com elas, como
uma espécie de linguagem. Como apreciador de uma arte, podemos simplesmente nos
deixar levar por esta linguagem, mas como psicanalistas, temos muitas vezes a função
de acolher este código de linguagem e comunicação e tentar encontrar um sentido.
Assim como nos sonhos, temos imagens que se apresentam, às vezes condensadas,
distorcidas, aparentemente desconexas, mas que podem, a partir de um determinado
modelo de escuta, adquirir um sentido.

O sonho, o desenho ou o jogo apresentam-se ao psicanalista como uma espécie de


linguagem cifrada, a ser decifrada por uma certa postura de observação; o grande
enigma está em como desenvolver os processos de decifração.

Há sempre o perigo de trabalhar com códigos unívocos, onde cada símbolo


corresponde a um outro, a ele relacionado diretamente, o que resulta em
interpretações estereotipadas e empobrecidas da mente humana, não alcançando uma
visão dinâmica do funcionamento da personalidade, além de desconsiderar o aspecto
transferencial de um diálogo do qual ambos participam e no qual os personagens da
dupla interagem modificando os personagens do desenho.

Tentaremos percorrer o caminho que a psicanálise nos oferece para pensar.


Comecemos com Freud: apesar de incluir no relato do caso Hans o conhecido desenho
das girafas (Freud 1909/1980) ele não trabalhou com desenhos, mas com as imagens
dos sonhos. Além disso, ele também produziu um belíssimo texto no qual a partir de
algumas obras e textos de Leonardo da Vinci (Freud, 1910/1980) tentou formular

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hipóteses sobre a personalidade do artista. Freud é pródigo em exemplos de análise,
de mitos, produções artísticas, etc., representando conflitos típicos de todos nós.

Sobre os artistas e suas produções, Freud (1908/1980) aponta que a criatividade tem
como uma de suas fontes o brincar infantil. O poeta criativo faz o mesmo que a criança
ao brincar, cria um mundo de fantasia que é levado muito a sério e no qual investe
muita emoção, sem confundir realidade com fantasia e nisto resulta o prazer destas
experiências. São atividades levadas a sério, mas nas quais se desfruta de uma
liberdade para vivenciar as fantasias, um dos fatores que tornam tão fascinantes tanto
os escritores criativos quanto crianças ao brincar. Ler um livro, ver um filme ou
observar uma brincadeira ou desenho infantil satisfaz nosso anseio por vivenciar esta
experiência de exploração do mundo dos sentimentos e nos mostra como é
possível brincar com as fantasias, sem perder o contato com a realidade ou
enlouquecer, muito pelo contrário, elas permitem crescer e enriquecer-se com tais
experiências.

É sempre instigante acompanhar uma criança que se permite desenhar com liberdade,
pois nos leva com ela para um passeio no universo das fantasias infantis.

Todos nós mantemos dentro de nós um caminho para a exploração deste universo: o
caminho dos sonhos, a via régia para o inconsciente (Freud, 1900/1980). Ele afirma
que, todo sonho é uma realização disfarçada de um desejo sexual infantil reprimido;
uma formação do inconsciente que se utiliza predominantemente de imagens para
expressar-se, uma linguagem mais próxima do inconsciente em seu modo mais
primário de funcionamento, possível de surgir à mente durante o sono pela regressão
funcional ocasionada pelo estado de adormecimento. Esta condição, segundo Anzieu
(1981) está presente, em parte, também nas técnicas projetivas pela forma como são
configurados os materiais projetivos e pelo tipo de atividade proposta.

Mas evitando uma perspectiva reducionista sobre as contribuições freudianas devemos


destacar que, em seus estudos, Freud destacou a importância do trabalho de formação
dos sonhos, no qual estão agindo concomitantemente, tanto a realização dos desejos
quanto a sua proibição, chamando a atenção para a produção onírica como um modo
de expressão de desejos, que só aparece predominantemente por imagens e enquanto
dormimos ou alucinamos. Outra forma de expressão deste mesmo sonho se revela
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quando acordamos (elaboração secundária), além de outras possibilidades como
esquecer o sonho, quando este, apesar de possível de ser sonhado, torna-se
inacessível para a vida desperta ou ainda, os pesadelos que interrompem o sono, etc.
O estudo do processo de sonhar permitiu a Freud elaborar a sua primeira formulação
sobre a constituição do aparelho psíquico (Freud, 1900/1980). Este grande preâmbulo
pretende colocar em realce que, para além da mera decifração dos conteúdos dos
sonhos, é primordial ao psicanalista estar atento à compreensão do processo de
formação deste sonho e, assim, poder ter acesso ao sonhador e não ao inconsciente.
Esta é a perspectiva sob a qual sugerimos considerar o uso de desenhos no processo
psicodiagnóstico. Tomar o desenho final como resultado de um trabalho psíquico, que
se inicia com as instruções do teste que mobilizam as angústias do sujeito e que o
resultado final do desenho refletirá a forma como este sujeito lidou com estes
conteúdos, de acordo com suas capacidades egóicas.

A um analista engajado e consciente de nada serve um manual de interpretação dos


sonhos, pois se é verdade que o sonho utiliza certo simbolismo para expressar os
desejos inconscientes, é também verdade que só a análise do sonhador permitirá
compreender, porque ele precisou sonhar este sonho, deste jeito. Assim deve-se
considerar que além do conteúdo simbólico do sonho, a forma imagética na qual ele se
apresenta, temos a forma como ele é lembrado e, nunca é demais ressaltar, temos as
associações despertadas por cada um dos elementos deste sonho e o mesmo vale
para as produções gráficas.

É intuito deste trabalho, alertar para o cuidado que devemos ter quando nos
aproximamos de uma técnica projetiva gráfica e dos manuais de interpretação. Os
manuais são úteis para orientar o psicólogo a respeito dos principais aspectos
simbólicos associados aos elementos destas produções gráficas.

Ao interpretar desenhos nos valemos dos significados dos símbolos deri vados da
psicanálise, dos folclores, dos estudos dos sonhos, dos mitos e das fantasias. Estes
símbolos funcionam como engates a partir dos quais o inconsciente se vale para
alcançar o caminho da consciência e, disfarçadamente, encontrar uma forma de
expressão. Devemos também estar atentos aos mecanismos de deslocamento e
condensação, além de uma vasta gama de tratamentos possíveis dados a estes
símbolos para a formação de um desenho final.
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O texto de Freud "Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci" (1910/1980) pode ser
útil para discutir os "usos e abusos" das técnicas projetivas. Ele traz, por um lado, uma
valiosa contribuição, revelando como a psicanálise pode, valendo-se das produções
gráficas e verbais do artista, alcançar a compreensão da sua personalidade, mas
também nos ajuda a ficar atentos para o perigo de nos apegarmos a determinados
conteúdos simbólicos no processo de construções de nossas hipóteses. Neste texto,
Freud mostra como as obras de Leonardo da Vinci retratam sua relação conflituosa
com sua mãe, enigmática e sedutora como a Mona Lisa, destacando não só aspectos
de conteúdo das obras de Leonardo, mas também a vagarosidade de sua produção, a
insatisfação com o resultado final, as modificações feitas nas obras até chegar a sua
conclusão, a repetição de um certo modelo de sorriso nas obras posteriores e a
contigüidade entre esta obra e uma outra (Sant'Ana com a Madonna e o menino) como
exaltação da maternidade. Mas a leitura deste texto também permite pensar sobre o
que chamo de abusos, pois como mostra Strachey (editor inglês da obra freudiana) em
nota introdutória ao texto, Freud teria se apegado a um conteúdo simbólico de um
determinado pássaro, que erroneamente é confundido com um símbolo mitológico
egípcio para formular a teoria da mãe fálica, mostrando o perigo de nos apegarmos a
determinados elementos simbólicos no afã de corroborar nossas hipóteses.

Pesquisas são importantíssimas para identificar possibilidades simbólicas


desencadeadas por estímulos como a casa, a árvore, a pessoa, o telhado, a chaminé,
os olhos, a boca, o cabelo, o tronco, etc., usados como estímulos projetivos e na
elaboração e validação das técnicas projetivas. Precisamos destas pesquisas para
estimular nossas produções de hipóteses, mas há outra pesquisa a ser feita em cada
produção individual que se nos apresenta: a verificação de como esta pessoa
específica valeu-se destes símbolos possíveis para produzir este desenho para aquela
pessoa que a está solicitando. Este trabalho deve ser feito para cada produção obtida
pelo psicólogo que está observando.

É importante considerar toda produção gráfica como um trabalho do inconsciente, um


trabalho de inscrição do desejo em composição com a censura da resistência que este
desejo desperta e, a partir desta transação mútua, surge o desenho final. As produções
gráficas ainda trazem a vantagem de permitir que o observador acompanhe o que se

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constrói diante dele e os movimentos da criança em relação aos resultados de suas
produções e à presença do observador.

A interpretação deste processo dinâmico pode vir da resposta para algumas questões.
Como é tratada a folha de papel? Que relações a pessoa estabelece com a folha como
espaço e como a usa? Preocupa-se em ocupar a folha ou é uma pseudo-ocupação de
todas as folhas e lápis que estão a sua frente, sem poder realmente desenhar. Trata-se
de pura descarga de traços ou há uma elaboração no traçado? O contato com o
psicólogo ao longo dos encontros afeta de que maneira sua produção? Há uma visível
preocupação em não deixar espaços em branco, como se temessem o vazio, ou, ao
contrário, restringem-se a um único espaço da folha? Em que parte da folha se
colocam? Quais partes da folha não podem ocupar? Há alguma modificação ao longo
do encontro conosco? Como muda seu desenho? Expande-se ou restringe-se? Torna-
se mais colorido ou cada vez mais sombrio?

Comporta-se em relação a seu desenho na folha como se o espaço disponível fosse


muito menor do que aquele que a folha parece oferecer, ocupando mínimas
proporções da mesma, ou seu desenho parece transbordar o espaço efetivo da folha?
Ele se dá conta disso ou desconsidera? Qual elemento do desenho é reduzido ou
ampliado? Como trabalha este espaço? A folha parece dividida em duas partes
distintas (cima/baixo ou direita/esquerda)?

O que há de invariante nestas características formais? É possível detectar variações


destas características ao longo da produção gráfica do sujeito e como articulá-las ao
tema do desenho ou ao traçado ou mesmo à relação com o psicólogo.

Como estão as cores, gradações de intensidade cromática? Com que partes do


desenho ele parece insatisfeito, como lida com esta insatisfação (apaga, retoca,
reforça) e qual é o resultado final deste trabalho de acertar este desenho?

Queremos salientar que não se trata de excluir toda referência aos conteúdos
temáticos, mas integrá-los aos aspectos expressivos. Há um ambiente-folha no qual o
paciente vai através de seu lápis se colocar (Van Kolck, 1984) e a forma como o sujeito
a utiliza poderá revelar a forma como se coloca no mundo. Estas questões visam
investigar como é feita esta abordagem ao ambiente, usando o instrumento (lápis) do

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qual dispõe. Hammer (1991) coloca que estes aspectos expressivos traduzem as
atitudes básicas do indivíduo em relação a si mesmo e ao ambiente assim como a
forma como lida com seus impulsos.

Vários autores como Hammer (1991) e Rodulfo (1992) falam de uma escritura que se
revela por detrás de nossos traços no papel ou traços corporais. O que nos fornece
esta escritura no desenho são estes aspectos estruturais do desenho: tamanho;
pressão e qualidade da linha; posição na folha; precisão e grau de completude do
desenho; detalhamento; simetria; proporções; perspectiva; sombreamentos; reforços;
correções e retoques.

Grassano de Piccolo (1974) e Grassano (1977) apresentam trabalhos na área


diagnóstica, e tentam demonstrar como os principais mecanismos de defesa podem
aparecer nas produções gráficas. Grande parte das características levantadas pela
autora se referem a aspectos como: organização guestáltica do desenho (organi zação,
coerência, harmonia), perspectiva (como forma de expressão do tempo),
preenchimento dos espaços na folha, limites dos desenhos, tipo de traçado, distância,
proximidade ou separação entre os personagens, tamanho, reforçamentos,
detalhamentos ou retoques; mostrando a riqueza do trabalho com estes elementos
expressivos do desenho. A autora também apresenta algumas características do
conteúdo dos desenhos, mas este é um excelente exemplo de um raciocínio clínico
sobre as características estruturais dos desenhos como reveladoras de um modo de se
organizar frente aos impulsos.

Além disso, deve-se considerar, frente a uma criança, que está em um processo de
desenvolvimento e de construção de sua estrutura de personalidade, que o uso do
desenho como linguagem e expressão também passa por um processo de
constituição. Do momento inicial no qual apropria-se do instrumento lápis, que lhe
permite o prazer da inscrição de um traço ou uma marca à possibilidade de usar sua
escrita como comunicação, de um lado uma descarga motora de prazer do gesto e de
outro a possibilidade de inscrição permanente (Mèredieu, 1974; Teixeira, 1991).

A posterior conquista do desenho de círculo que além da façanha motora, também


remete a conteúdos simbólicos ligados a este elemento. É possível encontrar na
literatura científica (Dolto, 1984; Rodulfo, 1992), referências que destacam o elemento
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gráfico circular, como representativo do corpo materno e das primeiras concepções
sobre o próprio corpo e sua interioridade, além da noção de continente e contido, o que
aponta para a importância de tal representação no processo de individuação da
criança. Porém é importante ressaltar a necessidade de articular tais elementos às
associações verbais obtidas.

Procuramos neste trabalho destacar a importância dos elementos expressivos na


análise das produções gráficas do sujeito e o cuidado na utilização dos aspectos
simbólicos do desenho para a elaboração do raciocínio clínico do profissional. A
fundamentação psicanalítica permite pensar a produção gráfica como resultado de um
trabalho psíquico que, tal como o sonho, pode dar acesso a aspectos importantes da
personalidade do sujeito. Considerar os desenhos como um todo, como destaca Silva
(2008b), muito mais do que como mera somatória de sinais ou características, contribui
para valorizar a utilização das técnicas projetivas gráficas dentro do processo
psicodiagnóstico.

Tal perspectiva não exclui a importância das pesquisas que fundamentem


cientificamente as pautas gerais de interpretação mas, como destacam Saur e Pasian
(2008), Silva (2008a) e Trinca (1999), a utilização clínica destes instrumentos exige
uma atenção ao preparo do clínico que as utiliza para permitir uma melhor significação
e integração dos dados obtidos.

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1- A IMPORTÂNCIA DA ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Você já parou para pensar sobre a importância da arte em nossas vidas, sobre o
papel que ela ocupa em nosso dia a dia? A arte diverte, emociona, promove reflexões,
amplia os horizontes do pensamento, faz a gente viajar na imaginação.

Você consegue imaginar um mundo sem arte? Impossível, não é!? Até porque a arte
se mostra como necessidade de expressar o mundo desde os primeiros registros da
história.

Se a arte é tão importante para nós, pense nos efeitos que as expressões artísticas
causam nas crianças. É quase consenso entre pesquisadores e especialistas em
educação a ideia de que são muitos os benefícios para os pequenos.

Não é à toa que existem tantas aulas de musicalização infantil, contação de histórias,
danças, teatro e tantos produtos artísticos voltados para as crianças de diferentes
faixas etárias.

Neste artigo, vamos falar um pouco sobre esse assunto e abordar alguns dos
benefícios que comprovam a importância da arte na educação infantil. Acompanhe!

Porque a arte é tão importante na educação infantil?


A infância é uma fase muito importante na construção das bases do aprendizado que
acompanharão o indivíduo para vida toda. Por esse motivo, é interessante apresentar
aos pequenos os estímulos adequados para o seu desenvolvimento de forma
saudável.

Antes mesmo do início da educação formal, é possível inserir a criança no mundo


das artes ao apresentar músicas e outros estímulos sonoros, como os de instrumentos
musicais – existem classes de musicalização infantil até mesmo para bebês -, cores,
texturas e materiais artísticos – de desenho ou pintura -, adequados para cada idade.

É interessante que o estímulo à arte tenha continuidade também na fase escolar.


Mais adiante falaremos de aprendizado criativo e dos seus benefícios.

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Uma recomendação é procurar saber se a escola em que seu filho será matriculado
compreende a importância da arte na infância como ferramenta de desenvolvimento de
habilidades criativas, motoras, emocionais e sociais, e se conta com atividades
específicas para esse fim.

Razões da importância da arte na educação infantil


Não são poucos os estudos científicos que comprovam a importância da arte na
educação infantil. São diversos os livros e artigos disponíveis que buscam entender e
provocar reflexões sobre o assunto. Entre os resultados conquistados com o estímulo à
arte na infância, destacamos 5 nos tópicos a seguir.

Desenvolve a criatividade
Todos temos a capacidade inata de criar histórias inusitadas, fazendo conexões entre
as coisas que enxergamos no mundo ao redor, mas vamos, de alguma forma,
reprimindo essa característica ao longo da vida.

Ao nos envolvermos com atividades artísticas, tanto como espectadores quanto como
artistas, nos permitimos ampliar a imaginação e dar vazão à criatividade,
resgatando essa habilidade tão valiosa.

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Por isso, é importante estimular a criança artisticamente em todas as fases da infância,
fortalecendo a sua relação com a criatividade, algo que fará muita diferença na sua
trajetória ao longo da vida.

Uma dica é deixar a criança livre para criar de acordo com a sua própria imaginação,
sem limitar ou dizer o que é certo ou o que é errado na sua expressão artística.

Propicia a expressão de emoções


Se você convive com crianças, deve saber que em certas fases elas choram por tudo,
fazem birra, ainda que tentemos explicar que esse não é o melhor jeito de lidar com as
situações. É comum elas chorarem mesmo quando estão com sono, em vez de apenas
deitarem para dormir.

Isso acontece porque as crianças ainda não têm controle e conhecimento sobre as
suas emoções. Essa é uma habilidade que se adquire com o tempo, e a arte pode
cumprir um importante papel nesse sentido.

A arte na infância é o registro de como a criança vê e sente o mundo ao redor.


Desse modo, ela aprende uma forma de expressar as suas emoções. Essa é uma
habilidade importante para a vida inteira e tem melhores resultados se estimulada
desde a infância.

Aguça os sentidos
A arte, em seus diferentes segmentos, oferece diversos estímulos aos sentidos, o
que proporciona autoconhecimento, desenvolve a sensibilidade e melhora a relação
da criança com ela mesma e com o mundo.

Você pode expor a criança a diferentes sons, odores, cores, permitir que trabalhem
com as mãos, aumentando assim o seu repertório de mundo a partir dos sentidos. Mas
permita que elas explorem o mundo do seu próprio jeito, sem interferir de forma
limitadora.

Desperta o senso crítico


Através da arte, a criança aprende a observar o mundo, mas não só de uma forma
passiva. Ao fazer arte, ela cria a partir da sua percepção dos elementos ao redor.

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Para isso, sem se dar conta, ela processa as informações e estímulos que recebe
através de seus sentidos e transforma em sua própria expressão.

Há diferentes formas de despertar o senso crítico nas crianças por meio da arte e
você pode aumentar a complexidade dos estímulos ao longo do tempo, de acordo com
a faixa etária, promovendo uma atitude mais curiosa, questionadora e mobilizadora.

Estimula a escrita
Uma das habilidades mais importantes para o aprendizado da escrita é a coordenação
motora. Ao estarem envolvidas com atividades que utilizam o tato, como a escultura
com massa de modelar, o desenho e a pintura, ainda que sejam apenas rabiscos, há
um estímulo ao desenvolvimento dessa habilidade. E isso pode fazer toda a diferença
quando ela atingir a idade de alfabetização.

A filosofia da aprendizagem criativa


Lembra que prometemos falar sobre aprendizagem criativa anteriormente? Pois bem,
ela é uma abordagem educacional que acredita na importância da arte e nos benefícios
do estímulo à criatividade para o aprendizado não só das crianças. Mas é muito efetiva
se iniciada já nessa fase da vida.

Essa filosofia tem a metodologia baseada em 4 pilares:

A prática da aprendizagem criativa é capaz de desenvolver conhecimentos e


habilidades cognitivas, motoras, emocionais e sociais, benefícios que serão
colhidos ao longo do crescimento e que fará diferença na escola, no mundo do trabalho
e nas relações sociais.
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Para que seja colocada em prática, em casa ou na escola, é importante oferecer para a
criança um ambiente rico em estímulos; que seja ensinada a forma de utilizar as
ferramentas artísticas; e que a experimentação seja encorajada.

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2- O DESENHO DIDÁTICO INTERATIVO NA EDUCAÇÃO ONLINE

A educação online quer investimentos diferenciados em relação à educação


presencial ou a distância via suportes tradicionais. A primeira exige metodologia
própria para educar com base em diálogo, troca, participação, intervenção, autoria,
colaboração. É certo que essa metodologia não é prerrogativa do computador
conectado, mas é nele que encontra possibilidades de sua potencialização. (SILVA,
2003) O peso histórico da pedagogia da transmissão exigirá em contrapartida a
formação continuada e profunda capaz de levá-lo a redimensionar sua prática
docente tendo claro que não basta ter o computador conectado em alta velocidade de
acesso e amplo fornecimento de conteúdos para assegurar qualidade em educação.
Em lugar de transmitir meramente, ele precisará aprender a disponibilizar múltiplas
experimentações e expressões, além de montar conexões em rede que permitam
múltiplas ocorrências. Em lugar de meramente transmitir, ele será um formulador de
problemas, provocador de situações, arquiteto de percursos, mobilizador da
experiência do conhecimento. Para isso contará com ferramentas ou interfaces que
compõem o ambiente virtual de aprendizagem, onde ocorrem interatividade e
aprendizagem (fórum, chat, blog texto coletivo, portfolio, midiateca e videoconferência
no modelo “todos-todos”). (SILVA, 2004, 2005, 2006).

O professor precisará, inicialmente, vencer o preconceito que já alimentava com a


educação a distância em suportes analógicos, agora ampliado com a educação
online. Há aquele que tem acesso ao computador conectado e desconfia da ausência
do olhono-olho, considerado essencial no ensino e na avaliação, ou sente-se
ameaçado por qualquer tecnologia de informação e comunicação cuja performance
de transmissão esteja acima da sua. E há aquele vitimado pela infoexclusão, arredio,
desabilitado, resistente, conservador, preconceituoso diante das tecnologias digitais e
da educação online.

Todavia, há outras desconfianças por vezes procedentes. Há aquelas geradas em


reação à febre mercadológica de empresas e instituições de ensino se lançando em
busca do mercado garantido, fácil e barato, sem assegurar aos usuários qualidade
das redes disponíveis e disponibilidade de serviços de apoio ou suporte. E há também
a desconfiança gerada pela baixa qualidade dos cursos baseados na disponibilização
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de conteúdos fechados, à maneira de apostila eletrônica com monótonos exercícios
de verificação.

O preconceito vem dispersando ou afastando investimentos em políticas públicas,


sociais e empresariais em educação online. Entretanto, a educação a distância e a
educação online ganha incentivo, valorizando igualmente os suportes tradicionais e as
tecnologias digitais. Consórcios e parcerias foram criados, mas poucos avançam em
suas metas. Instituições públicas, particulares e corporativas buscam soluções
próprias, muitas vezes num clima de salve-se-quem-puder. A legislação brasileira
atual sobre EAD é arrojada. Inicialmente a Portaria do MEC 2.253 de 18 de outubro
de 2001, conhecida como “Portaria dos 20%”, veio garantir às instituições de ensino
superior a opção de oferecer até 20% de suas disciplinas regulares na modalidade a
distância, que transita dos suportes tradicionais para a Internet. Pouco tempo depois
veio a Portaria 4.059/2004 e o Decreto 5.622/2005 que ampliaram muito mais os
horizontes para a modalidade educacional a distância (o impresso via correio, o rádio
e a TV) e para a modalidade educacional online (o computador e a Internet).

Mais recentemente há o Programa Universidade Aberta do Brasil (UAB) como


inusitada política do MEC visando a democratização, expansão e interiorização da
oferta de ensino superior público e gratuito no País, assim como o desenvolvimento
de projetos de pesquisa e de metodologias inovadoras de ensino, preferencialmente
para a área de formação inicial e continuada de professores da educação básica.
Seus editais convocam instituições públicas de ensino superior (federais, estaduais e
municipais) a encaminhar suas propostas de cursos superiores na modalidade de
EAD, os quais serão vinculados aos pólos de apoio presencial. É, portanto, semi -
presencial. Há o pólo com salas de aula presenciais e há também a modalidade a
distância via ambiente online.

Como se vê, as iniciativas em favor da EAD são crescentes no País, todavia precisam
vir acompanhadas de formação de professores para atuação na modalidade
educacional que ganha consolidação com a legislação recente e com as políticas do
MEC em favor da democratização do ensino superior. Visando responder à demanda
por formação de professores para docência online, este projeto estrutura-se no
contexto interinstitucional que envolve doze PPGs que se mobilizam em torno do
tema.

A pesquisa interinstitucional visa troca de experiência, de inquietações e colaboração


18
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
na construção de soluções. Os doze PPGs, 11 brasileiros e um português, estarão
reunidos por dois anos em um ambiente online Moodle criado especificamente para
contemplar a identidade do projeto interinstitucional. Nesse ambiente serão realizadas
experiências de construção de desenho didático, de docência e de aprendizagem na
modalidade online no próprio Moodle, software livre mundialmente adotado, inclusive
pelo MEC e particularmente pela UAB.

Realizada na modalidade online, a pesquisa já traz em sua prática o engajamento dos


pesquisadores envolvidos no contexto mesmo dos desafios de aí desenvolver
soluções para o ensinar e o aprender com base no desenho didático que favorece e
potencializa a docência e a aprendizagem.

Estruturar a prática pedagógica para a educação online é antes de qualquer coisa


arquitetar um desenho didático como que envolve o planejamento, a produção e a
operatividade de conteúdos e de situações de aprendizagem, que estruturam
processos de construção do conhecimento na sala de aula online. Estes conteúdos e
situações de aprendizagem devem contemplar o potencial pedagógico,
comunicacional e tecnológico do computador online, bem como das disposições de
interatividade próprias dos ambientes online de aprendizagem.

Uma sala de aula online não é apenas o conjunto de ferramentas infotécnicas, mas
um ambiente que se auto-organiza nas relações estabelecidas pelos sujeitos com os
objetos técnicos que interagem e afetam-se mutuamente ao longo do processo de
construção do conhecimento. Neste sentido, é preciso que o desenho didático
contemple uma intencionalidade pedagógica que garanta a educação online como
obra aberta, plástica, fluida, hipertextual e interativa. Caso contrário, repetirá práticas
próprias da pedagogia da transmissão.

Os ambientes online de aprendizagem são compostos por um conjunto de interfaces


de conteúdo e de comunicação. Interfaces de conteúdo são os dispositivos que
permitem produzir, disponibilizar e compartilhar conteúdo digitalizado em diversos
formatos e linguagens (textos, áudio, imagens estáticas e dinâmicas) mixadas ou não.
As interfaces de comunicação são aquelas reservadas para interatividade entre os
interlocutores. Estas podem ser síncronas, de comunicação em tempo real (como
chats e webconferências), ou assíncronas, de comunicação em diferentes tempos
(como correio eletrônico, fóruns, listas de discussão, portfólios, diários, blogs,
glossários, wikis). Entretanto, conteúdo e comunicação são elementos híbridos e
19
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
imbricados, uma vez que não se pode conceber conteúdo apenas como informação
para auto-estudo ou como material didático construído previamente pelo professor ou
pela equipe de produção. Ademais, conteúdos são construídos pelos interlocutores
que, dialogicamente, produzem sentidos e significados mediados pelas interfaces
síncronas e assíncronas de comunicação. (SANTOS, 2006; SILVA, 2005, 2006).

O desenho didático é a arquitetura de uma teia de conteúdos e situações de


aprendizagem para estruturar uma sala da aula online contemplando as interfaces de
conteúdo e de comunicação. Antes da criação dos conteúdos e das situações de
aprendizagem a serem disponibilizados nas interfaces, é necessário atentar para
algumas questões de planejamento: qual o contexto sócio-histórico e cultural dos
aprendentes?; quais seus perfis sociocognitivo e político-cultural?; quais são suas
expectativas para o curso online?; qual a infra-estrutura tecnológica de que dispõem
os docentes e os cursistas?; que competências pretendemos mobilizar nos
aprendentes?; que profissionais podem ser agregados ao projeto para uma produção
interdisciplinar?; que conteúdos abordar?; como arquitetar o curso nas interfaces de
conteúdos e de comunicação?; como estruturar os conteúdos, os objetos e as
situações de aprendizagem em hipertexto?; como conciliar situações de
aprendizagem individuais (auto-estudo) com situações de aprendizagem interativas
(aprendizagem colaborativa)?; como aproveitar as situações de aprendizagem como
dispositivos para uma avaliação formativa?; quais indicadores utilizar para avaliar a
aprendizagem a partir das participações nas interfaces de comunicação?; que
interfaces de conteúdos e de comunicação utilizar em cada aula, fase, bloco, módulo
ou unidade do curso? Estas são indagações importantes para a arquitetura
hipertextual de um desenho didático na sala de aula inline.

A idéia de hipertexto eletrônico foi enunciada pela primeira vez por Vannevar Bush em
1945. Este matemático imaginava um sistema de organização de informações que
funcionasse de modo semelhante ao sistema de raciocínio humano: associativo, não-
linear, intuitivo, muito imediato. Nos anos 1960, Theodor Nelson criou o termo
“hipertexto” para exprimir o funcionamento da memória do computador. O desenho
didático pode estruturar-se como hipertexto assim entendido para exprimir o perfil da
sala de aula online engendrada pela co-autoria da equipe de produção, do docente e
dos cursistas na construção da aprendizagem e da própria comunicação. A sala de
aula online não mais centrada na figura do professor, mas possuidora permanente de

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
diversos centros em que se dão a constante construção e a renegociação dos atores
em jogo. Nela, a aprendizagem se dá com as conexões de imagens, sons, textos,
palavras, diversas sensações, lógicas, afetividades e com todos os tipos de
associações. O docente não perde sua autoria enquanto mestre. De pólo transmissor
ele passa a agente provocador de situações, arquiteto de percursos, mobilizador da
inteligência coletiva. (SILVA, 2004).

O hipertexto se apresenta como novo paradigma tecnológico que liberta o usuário da


lógica unívoca, da lógica da distribuição de informação, próprias da mídia de massa e
dos sistemas de ensino predominantes no século XX. Ele democratiza a relação do
indivíduo com a informação, permitindo que ele ultrapasse a condição de consumidor,
de espectador, para a condição de sujeito operativo, participativo e criativo. Pode-se
dizer, então, que o hipertexto é o grande divisor de águas entre a comunicação
massiva e a comunicação interativa. Pode-se dizer enfim que “o hipertexto é
essencialmente um sistema interativo” e que, materializado no chip, ele faz deste o
“ícone por excelência da complexidade em nosso tempo” (MACHADO, 1997, p. 183 e
254).

O desenho didático precisará estruturar links com textos, imagens, sons, palavras,
páginas, gráficos, etc. E para a elaboração de conteúdos de aprendizagem deverá
contemplar princípios do hipertexto eletrônico como usabilidade (fácil acesso à
informação, navegabilidade intuitiva), multivocalidade (vários pontos de vista),
intratextualidade (conexões no mesmo documento), intertextualidade (conexões com
outros documentos), multilinearidade (leituras sem hierarquias) (LEMOS, 1999).

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
3- OS CAMINHOS PARALELOS DO DESENVOLVIMENTO DO DESENHO E DA
ESCRITA

Apesar de termos um grande aumento na escolaridade das crianças brasileiras, os


índices de aprendizagem têm se mostrado muito baixos. Um número elevado de
crianças apresenta grandes dificuldades quanto à alfabetização enquanto que os
demais, mesmo aprendendo, o fazem em índices inferiores ao que seria esperado. Por
detrás dessa realidade temos diversos fatores, tais como, desrespeito às
características etárias, sociais e psicológicas das crianças como sujeitos do
aprendizado e aos conhecimentos prévios sobre o sistema de representação, tanto do
desenho como da escrita, bem como o significado destas representações que elas
trazem por viverem, desde que nascem numa sociedade cuja cultura dominante é a
letrada.

O Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação (CNE) propôs um


aumento da escolaridade de oito para nove anos, ampliando as possibilidades de
aprendizagem. É importante destacarmos que o objetivo da inclusão, mediante a
antecipação do acesso, tinha como objetivo assegurar a todas as crianças um tempo
mais longo de convívio escolar, dando-lhe maiores oportunidades de acesso ao
conhecimento, ampliando, assim, seu letramento e sua capacidade de expressão por
meio das múltiplas linguagens, destacando-se dentre elas, o desenho e a escrita.

No entanto, em vários depoimentos recolhidos entre professores de Educação Infantil,


principalmente em escolas particulares, percebemos que a maioria não se debruçou
sobre o documento oficial de implantação da proposta, cometendo assim, inúmeros
equívocos, num flagrante desrespeito à criança e ao seu nível de desenvolvimento.

Estes relatos de prática mostram uma falta de coerência pedagógica enorme, tanto na
Educação Infantil como no Ensino Fundamental, pois há uma priorização do acesso ao
código escrito em detrimento do letramento e da grafia representada pelos exercícios
mecânicos de coordenação motora, sem se perceber a importância da ampliação do
conhecimento do mundo que pode advir de um trabalho bem dirigido através da
exploração dos desenhos das crianças, de suas relações com o mundo da escrita; da

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
necessidade do investimento na formação de leitores e na relevância do papel do
professor como mediador de leitura, formal e informal.

Como isso, há muitos problemas na prática pedagógica que merecem uma discussão
mais aprofundada por parte de professores e demais profissionais envolvidos com
educação e aprendizagem.

Dentre os relatos, há um caso trazido para uma aula de Psicopedagogia da


Linguagem, de uma criança de cinco anos que riscava sistematicamente seus
desenhos. Como estávamos analisando o desenvolvimento do desenho pela criança,
foi trazido materiais para a tematização da prática. Ao se analisar o material trazido
verificou-se, ao lado dos desenhos rabiscados, uma série imensa de treinos
ortográficos de famílias silábicas. Tudo indica que os desenhos rabiscados eram uma
espécie de protesto contra a negação de sua autoria e de sua possibilidade de
expressão. Com a preocupação excessiva com a aquisição do código deixou-se de
lado toda a riqueza que há no desenvolvimento do desenho e da escrita,
característicos desta faixa etária.

Trata-se de um retrocesso sem tamanho, pois as pesquisas apontam que este treino
mecânico, além dos problemas já citados, não ajudará a criança em sua inserção no
mundo letrado. Pelo contrário, são muitas as crianças que não querem voltar para a
escola, pois se sentem cansadas, desmotivadas e incompetentes.

Vygotsky critica a ênfase do ensino da escrita apenas como habilidade motora:


"Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se
ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está
escrito que se acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal (1984, p.119).".

O aprendizado da escrita é, portanto, entendido por Vygotsky, como um processo


longo e complexo que é iniciado pela criança "muito antes da primeira vez que um
professor coloca um lápis em sua mão e mostra como formar letras" (Vygotsky, L.S et.
al. 1989, p.143). Para o autor, o aprendizado da linguagem escrita envolve a
elaboração de um sistema de representação simbólica da realidade e Vygotsky afirma
que há uma espécie de continuidade entre as diversas atividades simbólicas: gesto,

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
desenho e brinquedo. Nestas atividades os signos representam significados e por isso,
contribuem para o processo de apropriação da linguagem escrita.

Toda criança em algum momento pede papel e lápis para desenhar. Se ela não tiver os
materiais mais convencionais, a criança busca instrumentos, para deixar, nas
superfícies, o registro de suas idéias, suas vontades, suas fantasias e seus gestos: se
não tiver papel, pode ser na terra, na areia, na parede, nos muros, nos móveis... Se
não tiver lápis serve um giz, uma pedra, gravetos, cacos de tijolos, carvão, tinta...

Poucos adultos conseguem perceber o quanto o desenho infantil pode ser revelador do
grau de grau de maturidade, do equilíbrio emocional e afetivo, bem como do
desenvolvimento motor e cognitivo da criança. Dentre vários autores que falam sobre a
importância do desenho destacamos Pillar,

O desenho está muito mais próximo dos aspectos figurativos da realidade e do


símbolo, enquanto a escrita está próxima dos aspectos operativos – não ligados às
configurações dos objetos, mas às suas transformações – e dos signos e sinais que
são arbitrários. (1996a, p. 17)

Este fato tem trazido surpresas aos educadores que apresentam muitas dúvidas em
relação ao desenvolvimento do desenho e da escrita, confundindo alguns aspectos
comuns, das duas formas de representação.

Por exemplo, em relação à garatuja desordenada, característica comum às crianças de


um a dois anos, presente no realismo fortuito, se percebe que o exercício livre no papel
é sistematicamente confundido com a imitação de escrita, que ocorre nas produções
iniciais da criança. (vide anexo 3 e 11).

Posto isso, pretendemos discutir dois aspectos fundamentais que se encontram no


cerne de toda a questão: a compreensão dos caminhos paralelos entre o desenho e a
escrita, abarcando os dois sistemas de representação e a possibilidade de um
diagnóstico mais preciso, no caso de o sujeito apresentar rupturas na apropriação da
linguagem.

24
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Sistema de Representação

Segundo Piaget, há dois sentidos para o termo representação. Num sentido mais
amplo, que ele chamou de representação conceitual, é confundido com o pensamento,
ou seja, com toda a inteligência que se apóia num sistema de conceitos e, num sentido
mais estrito, ele chamou de representação simbólica que se reduz às imagens mentais,
isto é, às lembranças simbólicas da realidade ausentes. Elas se relacionam entre si,
pois enquanto a imagem é um símbolo concreto, o conceito é mais abstrato. Isto se
deve ao fato que, embora o pensamento não se reduza a um sistema de imagens, ele
se faz acompanhar de imagens. Portanto, segundo Piaget (1978, p.87) "se pensar
consiste em interligar significações, a imagem será um 'significante' e o conceito, um
'significado'."

Piaget (1969) distinguiu cinco condutas representativas, que ele chamou de


desenvolvimento da função simbólica. Segundo o autor, elas aparecem mais ou menos
ao mesmo tempo, mas ele as enumerou por ordem crescente de complexidade.

A primeira delas é a imitação diferida, em que a criança imita o comportamento de uma


pessoa quando esta não está mais presente. Constitui-se o começo do aparecimento
de um significante diferenciado.

Em segundo lugar, há o jogo o simbólico, em que a criança brinca de faz-de-conta,


utilizando gestos imitativos com objetos, que se tornam simbólicos porque lhes é
atribuído um significado qualquer.

Em terceiro lugar, há o desenho ou a imagem gráfica, que inicialmente é uma ponte


entre o jogo simbólico e a imagem mental. Até aproximadamente oito/nove anos as
crianças desenham o que sabem e não o que vêem.

Em quarto lugar estão as imagens mentais que são representações internalizadas.


Elas são diferentes tanto das percepções quanto das operações mentais, pois as
imagens não lidam com conceitos, mas com os objetos como tais e, com toda a
experiência perceptiva passada ao sujeito.

Em último lugar, surge a evocação verbal de ações passadas através da linguagem.


Surge então, a capacidade de verbalizar os acontecimentos.
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Considerando o que há de comum entre as cinco funções semióticas, Piaget (1985,
p.79.) afirma que:

[...] a despeito da espantosa diversidade das suas manifestações, a função simbólica


apresenta notável unidade. Quer se trate de imitações diferidas, de jogo simbólico, de
desenho, de imagens mentais, e de lembranças-imagens ou de linguagem, consiste
sempre em permitir a evocação representativa de objetos ou acontecimentos não
percebidos atualmente.

Assim, segundo o autor, a representação é uma condição básica para o surgimento do


pensamento, como a capacidade de evocar e articular ações interiorizadas.

Este fato é muito importante porque ao se analisar desenho e escrita como linguagens,
elas só poderão aparecer depois do surgimento da função simbólica.

Ainda, segundo o autor, a capacidade de a criança usar abstrações desenvolve-se de


modo ordenado e previsível e Piaget descreve três níveis de desenvolvimento da
abstração dos materiais escritos: índice ou sinal, símbolos e signos.

No índice ou sinal, a parte representa o todo. Se de uma janela se vê a copa de uma


árvore, isto é sinal que ali existe uma árvore, mesmo que não se consiga vê-la em sua
totalidade.

O símbolo é a primeira forma verdadeira de representação. Os símbolos são


construídos socialmente, mas mantém uma relação com o objeto que representa, não
são arbitrários ou convencionais, isto é, diferentes grupos podem ter símbolos originais
que os represente. Pode-se afirma, conforme posto anteriormente, que os desenhos
estão próximos dos símbolos.

Os signos são abstrações inteiramente arbitrárias ou convencionais, que não têm


nenhuma relação com o objeto que representam, mesmo sendo construídos
socialmente. Dentre eles, por exemplo, temos as letras do alfabeto, os numerais, as
notas musicais.

Ao longo da humanidade, as representações da realidade têm se articulado com os


sistemas simbólicos, pois os signos não se mantêm como marcas externas, isoladas,

26
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
referentes como objetos avulsos nem como símbolos usados por pessoas
particularmente, mas os signos são mediadores da comunicação entre os membros de
uma comunidade, justamente por compartilhar significados comuns.

Portanto, os sistemas de representação da realidade são dados socialmente e a


linguagem é o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. Em relação à
linguagem escrita, Vygotsky afirma que "[...] o brinquedo de faz-de-conta, o desenho e
a escrita devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente
unificado [...] (1989 p.131), o que nos leva a conclusão de que "[...] brincar e desenhar
deveriam ser estágios preparatórios do desenvolvimento da linguagem escrita[...] (op.,
p.134).

Logo, tratar o desenho e a escrita como sistemas de representação gráfica e não


apenas como o aprendizado de um código, implica em considerar o ponto de vista da
criança, que aprende produzindo e interpretando estes sistemas de forma
complementar. Como afirma Pillar,

[...] para que a criança se aproprie dos sistemas de representação do desenho e da


escrita, ele terá de reconstruí-los, diferenciando os elementos e as relações próprias
aos sistemas, bem como a natureza do vínculo entre o objeto do conhecimento e sua
representação. Esse vínculo pode ser arbitrário, como no caso da escrita, por se valer
de signos, ou analógico, como no desenho, por utilizar símbolos. (Pillar, 1996a, p.32).

Desenho como Sistema de Representação

Há muitos autores que estudaram, sob diferentes enfoques, a questão do desenho


infantil. Dentre eles podemos relacionar, por exemplo, Ana Angélica Albano Moreira,
Analice Dutra Pillar, Florence de Méredieu, Jean Piaget, Liliane Lurçat, Luquet, Luria,
Victor Lowenfeld e Lev Vygotsky, entre outros. Neste estudo, teremos como base, as
conceituações de Piaget, Vygotsky e Luquet.

Esses estudiosos do grafismo infantil, sem exceção, reconhecem haver determinadas


fases, etapas ou períodos que são comuns aos sujeitos em processo de apropriação
do desenho enquanto sistema de representação. E, de fato, desde o rabisco sem
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
intencionalidade de representação até a representação gráfico-plástica propriamente
dita, podemos claramente identificar aspectos visuais invariantes no processo de
apropriação do desenho como sistema semiótico de representação por parte do sujeito.

Para Piaget, a criança desenha mais o que sabe do que realmente consegue ver. Ao
desenhar ela elabora conceitualmente objetos e eventos. Daí a importância de se
estudar o processo de construção do desenho junto ao enunciado verbal que nos é
dado pelo indivíduo.

Fases do Desenho segundo Piaget:

Garatuja: faz parte da fase sensória motora (zero a dois anos) e parte da pré-
operacional (dois a sete anos), indo aproximadamente até três ou quatro anos. A
criança demonstra extremo prazer em desenhar e a figura humana é inexistente. A
garatuja pode ser dividida em:

• Garatuja Desordenada onde os movimentos são amplos e desordenados, parecendo


mais um exercício motor. Não há preocupação com a preservação dos traços, que são
cobertos com novos rabiscos várias vezes.

• Garatuja Ordenada em que os movimentos aparecem com traços longitudinais e


circulares e a figura humana ainda aparece de forma imaginária, podendo começar a
surgir um interesse pelas formas.

Nessa fase a criança diz o que vai desenhar, mas não existe relação fixa entre o objeto
e sua representação. Por isso, ela pode dizer que um círculo ovalado seja um avião, e
antes de terminar o desenho, dizer que é um peixe.

Pré- Esquematismo: esta fase faz parte da segunda metade da fase pré-operatória,
indo normalmente até os sete anos quando ocorre a descoberta da relação entre
desenho, pensamento e realidade. Observa-se que os elementos ficam dispersos e
não são relacionados entre si.

Esquematismo: faz parte da fase das operações concretas (7 a 10 anos), mas


costuma ir até mais ou menos, nove anos. Dentro dos esquemas representativos,
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
começa a construir formas diferenciadas para cada categoria de objeto. Nesta etapa
surgem duas grandes conquistas: o uso da linha de base e a descoberta da relação cor
objeto. Já tem um conceito definido quanto à figura humana, no entanto podem surgir
desvios do esquema, tais como: exagero, negligência, omissão ou mudança de
símbolo. Aparecem também dois fenômenos como a transparência e o rebatimento.

Realismo: normalmente surge no final das operações concretas, tendo maior


consciência do sexo e começa uma autocrítica pronunciada. No espaço, descobre o
plano e a superposição, mas abandona a linha de base. As formas geométricas
aparecem, junto com uma maior rigidez e formalismo. Nesta etapa normalmente usam
roupas diferenciadas para cada um dos sexos.

Pseudo Naturalismo: faz parte da fase das operações abstratas (10 anos em diante).
É o fim da arte como atividade espontânea e muitos desistem de desenhar nesta etapa
do desenvolvimento. Inicia a investigação de sua própria personalidade, transferindo
para o papel suas inquietações e angústias, característica do inicio da adolescência.
Nos desenhos aparecem muito o realismo, a objetividade, a profundidade, o espaço
subjetivo e o uso consciente da cor. Na figura humana, as características sexuais
podem aparecer de forma exageradas.

Fases do Desenho segundo Vygotsky

Para Vygotsky, o desenvolvimento do desenho requer duas condições. A primeira é o


domínio do ato motor, por isso, para o autor, inicialmente, o desenho é o registro do
gesto e logo passa a ser o da imagem. Assim, a criança percebe que pode representar
graficamente um objeto. E essa característica é o um indício de que o desenho é
precursor da escrita, pois a percepção do objeto, no desenho, corresponde à atribuição
de sentido dada pela criança, constituindo-se realidade conceituada.

Outra condição fundamental na evolução do desenho é a relação com a fala existente


no ato de desenhar. Num primeiro momento, o objeto representado só é reconhecido
após a ação gráfica quando a criança fala o que desenhou identificado pela sua
semelhança como objeto. Depois ela passa a antecipar o ato gráfico, verbalizando o

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
que vai fazer, indicando que há um planejamento da ação. Por isso, Vygotsky afirma
que a linguagem verbal é a base da linguagem gráfica. (1989, p. 141)

Este fato é essencial na visão do autor porque aqui se pode perceber já "um certo grau
de abstração" da criança que desenha, pois ao fazê-lo, libera conteúdo da memória.
Ele afirma que "[...] os esquemas que caracterizam os desenhos infantis lembram
conceitos verbais que comunicam somente aspectos essenciais do objeto." (1989,
p.127).

Ao descrever as etapas de desenvolvimento do grafismo infantil, o autor não se


preocupa em detalhar o período da aquisição do sistema de representação do
desenho. Vygotsky não faz uma investigação sistemática do processo de apropriação
do desenho como processo semiótico, mas efetua um recorte no desenvolvimento
cultural do grafismo infantil desprezando a "pré-história" do desenho. A fase dos
rabiscos, garatujas e "da expressão amorfa de elementos gráficos isolados" (Idem, p.
94) não interessa aos objetivos que ele possui em seu ensaio psicológico, pois
realmente, o desenho, enquanto sistema semiótico, só existe efetivamente após o
período dos rabiscos.

Vygotsky identifica ao longo do desenvolvimento da expressão gráfico-plástica infantil


as seguintes etapas:

Etapa simbólica (Escalão de esquemas) – É a fase dos conhecidos bonecos que


representam, de modo resumido, a figura humana. Esta etapa é descrita por Vygotsky
como o momento em que as crianças desenham os objetos "de memória" sem
aparente preocupação com fidelidade à coisa representada. É o período em que a
criança "representa de forma simbólica objetos muitos distantes de seu aspecto
verdadeiro e real" (Vygotsky, 1987, p.94). Segundo o autor, é grande a arbitrariedade e
a licença do desenho infantil nesta etapa.

Etapa simbólico-formalista (Escalão de formalismo e esquematismo) – É a etapa na


qual já se percebe maior elaboração dos traços e formas do grafismo infantil. É o
período em que a criança começa a sentir necessidade de não se limitar apenas à
enumeração dos aspectos concretos do objeto que representa, buscando estabelecer
maior número de relações entre o todo representado e suas partes. Percebe-se que os

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
desenhos permanecem ainda simbólicos, mas já se pode identificar o início de uma
representação mais próxima da realidade.

Etapa formalista veraz (Escalão da representação mais aproximada do real) - Nesta


fase, as representações gráficas são fiéis ao aspecto observável dos objetos
representados, acabando os aspectos mais simbólicos, presentes nas etapas
anteriores.

Etapa formalista plástica (Escalão da representação propriamente dita). Observa-se


uma nítida passagem a um novo modo de desenhar, pois como um desenvolvimento
viso-motor mais acentuado, o sujeito acaba se utilizando de técnicas projetivas 1 e de
convenções mais realistas. O grafismo deixa de ser uma atividade com fim em si
mesma e converte-se em trabalho criador. No entanto, há uma diminuição do ritmo dos
desenhos que permanecem mais entre aqueles que realmente desenham porque
sentem prazer neste ato criador.

Embora os dois autores analisados tenham focado diferentes aspectos do desenho,


Piaget, focando mais os aspectos epistêmicos e Vygotsky, os aspectos mais sociais, os
dois autores se aproximam em dois pontos básicos: em relação à importância do
desenho no desenvolvimento da criança e à característica de que a criança desenha o
que lhe interessa e o que sabe a respeito de um objeto.

Fases do Desenho segundo Luquet

Como afirmamos anteriormente, muitos autores compartilham dessas proposi ções,


mas gostaríamos de destacar Luquet, pela pesquisas realizadas por Pillar, utilizando
este autor, procurando demonstrar o cerne do tema ora proposto neste artigo: os
caminhos paralelos do desenvolvimento do desenho e da escrita.

Assim, segundo Pillar, a escolha por Luquet2 se deu ao fato de que ele é citado na
maioria dos trabalhos que abordam o desenho a partir do construtivismo (Pillar, 1996a,
p.42). A sequência de desenvolvimento do desenho para Luquet é:

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Realismo fortuito: estágio, segundo Luquet, se subdivide em desenho involuntário e
desenho voluntário. No desenho involuntário, a criança desenha para fazer linhas, sem
se preocupar com imagens, porque não tem consciência de que as mesmas linhas
podem representar objetos. Aparecem figuras em forma de mandalas, radiais e sóis.

Realismo fracassado ou incapacidade sintética: Surge geralmente entre três e


quatro anos, quando a criança descobre a identidade forma-objeto e procura reproduzir
esta forma. Nestas produções, os elementos estão justapostos em vez de estarem
coordenados num todo. Dá aos detalhes um destaque maior, de acordo com que acha
importante, exagerando ou omitindo partes, segundo o seu ponto de vista. (No
desenho abaixo, Érica exagera no sorriso do tio Igor, ilustrado no desenho)

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Realismo intelectual: estendendo-se dos quatro aos 10-12 anos, caracteriza-se pelo
fato que a criança desenha do objeto não aquilo que vê, mas aquilo que sabe. Para
tanto, a criança se utiliza de processos variados, tais como a descontinuidade, o
rebatimento, a transparência, a planificação e a mudança de pontos de vista. Nos
desenhos abaixo poderemos observar a descontinuidade (os desenhos estão soltos no
ar, sem o apoio de uma linha no chão) e a transparência, pois se pode ver o interior da
casa:

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Realismo visual: Ocorre geralmente por volta dos 12 anos, marcado pela descoberta
da perspectiva e a submissão às suas leis, daí um empobrecimento, um enxugamento
progressivo do grafismo que tende a se juntar às produções adultas. Assim, a criança
abandona as estratégias utilizadas anteriormente e a transparência dá lugar à

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
opacidade, ou seja, a criança desenha apenas os elementos visíveis e o rebatimento e
às mudanças de ponto de vista se coordenam, dando origem à perspectiva.

Em relação ao desenvolvimento do desenho, Luquet (1969) destaca que os estágios


não são rígidos, pois cada fase pode se prolongar enquanto a seguinte já houver
começado. Na passagem de um nível para outro há a renúncia de alguns elementos e
uma reconstrução dos conhecimentos adquiridos que depende muito das interações da
criança em seu meio. No caso do sujeito investigado, os elementos característicos do
realismo visual começam a surgir um pouco antes da idade prevista, porque na época
fazia um curso de desenho baseado num material de Daniel Azulai que desenvolveu
um curso especialmente para crianças.

Os desenhos passam, então, a ser representados nesta nova concepção e os detalhes


ganham espaço porque agora eles têm a finalidade de particularizar formas que antes
eram mais genéricas, ampliando-se assim a sua representação.

35
DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Entrando na adolescência há um aumento do olhar crítico do sujeito. O desenho como


atividade espontânea tende a desaparecer, mas inicia-se uma nova etapa de
investigação de sua própria personalidade. Por isso, observa-se uma nítida passagem
a um novo modo de desenhar. O sujeito não mais se satisfaz com a expressão gráfico-
plástica pura e simplesmente: ele busca adquirir novos hábitos representacionais,
diferentes técnicas gráficas e conhecimentos artísticos profissionais. O grafismo,
conforme já afirmava Vygotsky, deixa de ser uma atividade com fim em si mesma e
converte-se em trabalho criador.

Escrita como um Sistema de Representação

A apropriação da escrita é um processo complexo e multifacetado, que envolve tanto o


domínio do sistema alfabético-ortográfico quanto à compreensão e o uso efetivo e
autônomo da língua escrita em práticas sociais diversificadas.

Podemos afirmar que a apropriação da linguagem escrita é de natureza social, uma


vez que o domínio do sistema de escrita não se reduz ao domínio gráfico nem à
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transposição da linguagem verbal. A linguagem escrita tem funções bem definidas e se
manifesta através de diferentes registros.

As crianças não aprendem a ler e a escrever apenas porque veem pessoas lendo e
escrevendo, mas porque elaboram e transformam as informações que encontram em
seu meio. O contato com diferentes portadores de texto permite que as crianças
percebam que as letras não são apenas marcas no papel e sim objetos substitutos, isto
é, que representam alguma coisa, que há diferentes modos de escrever e diferentes
contextos funcionais para ler e escrever. Esse processo é favorecido por uma série de
objetos físicos que contêm escritas, tais como: livros, revistas, bulas, embalagens,
rótulos, cartas, receitas, mapas, cheques, listas telefônicas, notas fiscais, folhetos de
propaganda, instruções de jogo, dicionários, carnês etc.

Encontramos ainda, na maioria das escolas uma ênfase no ensino da língua como
código descontextulizado. A criança precisa aprender de modo mecânico e repetitivo e,
o que é pior, alienante. A escrita viva e real que possibilita a emergência da autori a fica
fora dos muros da escola. Ou seja, ensina-se a grafia, o desenho da escrita e não a
linguagem escrita.

Esta prática tem a ver com as concepções de escrita existentes na escola. Ela pode
ser vista como a transcrição de um código ou como a apropriação de um sistema de
representações. A escolha de uma concepção ou outra muda radicalmente o modo de
ensinar e de ver a questão da leitura e da escrita. Emília Ferreiro, pesquisadora
argentina que revolucionou a prática de alfabetização, com a sua pesquisa a
psicogênese da língua escrita, desviou o foco, até então dominante, de como se
ensinar, presentes nos diversos métodos de alfabetização, para como a criança
aprende. Ela afirma que:

[...] se a escrita é concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é


concebida como a aquisição de uma técnica; se a escrita é concebida como um
sistema de representação, sua aprendizagem se converte em apropriação de um novo
objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual. (FERREIRO,
1984, p.6)

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
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Ferreiro afirma que a criança constrói o seu conhecimento sobre a língua escrita na
interação com o objeto e que alfabetizar é um processo de conquista que a criança faz
em direção ao conhecimento da escrita, buscando compreender a natureza do seu
sistema. Em seu livro "Reflexões sobre a Alfabetização", Ferreiro tece um paralelo
entre o desenho e a escrita:

[...] sabemos, desde Luquet, que desenhar não é reproduzir o que se vê, mas sim o
que se sabe. Se este princípio é verdadeiro para o desenho, com mais razão o é para a
escrita. Escrever não é transformar o que se ouve em formas gráficas, assim como ler
também não equivale a reproduzir com a boca o que o olho reconhece
visualmente. (FERREIRO, 1985, p.55)

Portanto, se ler não é apenas decodificar e escrever não é copiar, quando a criança
estiver desenhando ou escrevendo, estará expressando as suas ideias a respeito do
sistema de representação utilizado. Nesse sentido, de acordo com Ferreiro (1985, p.
10),

[...] a construção de qualquer sistema de representação envolve um processo de


diferenciação dos elementos e relações reconhecidas no objeto a ser apresentado e
uma seleção daqueles elementos e relações que serão retidos na representação.

Segundo Ferreiro, a partir dos quatro anos de idade, as crianças começam a distinguir
desenho de escrita. Esta distinção permite que vejam desenho e escrita como objetos
substitutos com naturezas e funções diferentes, pois o desenho passa a representar a
forma dos objetos e a escrita, o nome deles. Muitos confundem esta escrita com a
garatuja, mas a escrita é um sistema representativo e sua conquista transcende o
aspecto motor e a percepção de letras. A partir deste momento, a criança começa a
construir hipóteses sobre a escrita. (Anexo11: SEBER, 1997, p.38)

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DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Relações entre Desenho e Escrita

Posto estas considerações, podemos retomar que, para Piaget, o desenho é uma das
manifestações semióticas. Desenvolve-se concomitantemente às outras
manifestações, entre as quais o brinquedo e a linguagem verbal (PIAGET, 1973) e que
para Vygotsky, a apropriação de um sistema simbólico de representação da realidade
em que os gestos, desenhos, e o brinquedo simbólico contribuem para esta
apropriação pelo seu caráter representativo, isto é, utiliza-se de signos para
representar significados.

Portanto, as duas linhas teóricas convergem para um mesmo ponto: desenho e escrita
são formas de representação, são expressões da função semiótica e têm em comum a
mesma origem gráfica. Além disso, a evolução do desenho acompanha o processo de
desenvolvimento da criança, passando por etapas que caracterizam a maneira da
criança se situar no mundo

Pillar, (1996a, p. 29), baseando-se em Ferreiro e Luquet, propõe que inicialmente há


uma origem comum do desenho e da escrita, momento em que o desenho é
involuntário (realismo fortuito) e a escrita começa como um desenho.

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Num segundo momento, a criança passa a distinguir desenho da escrita, percebendo-
os como objetos substitutos. Neste momento, a criança entra na fase do desenho
voluntário (ainda no realismo fortuito) e da escrita pré-silábica.

Posteriormente, a criança passa a construir diferentes formas de diferenciação entre os


elementos, tanto no desenho como na escrita, entrando na fase da incapacidade
sintética do desenho, percebendo as diferentes formas dos objetos e as relações
espaciais topográficas, mas permanecendo na escrita pré-silábica, quando começa a
fazer diferenciações quanto ao número e posição de letras, sem se preocupar ainda
com a relação fonema/grafema.

No momento seguinte dá um salto qualitativo, aprofundando as diferenciações entre os


elementos, passando a coordená-los entre si. No desenho é o momento do realismo
intelectual, em que começa a coordenar as representações de forma e espaço,
atribuindo formas projetivas e euclidianas para representar o espaço, enquanto que na
escrita, a criança passa a fonetizar, dando atenção às propriedades sonoras do
significante. Assim, avança nas etapas de desenvolvimento da escrita, passando pelas
fases silábica, silábica-alfabética e alfabética, momento em que consegue fazer a
correspondência entre fonemas e grafemas.

Finalmente chega a etapa final deste desenvolvimento paralelo, quando começa a se


preocupar com o aprimorando dos dois sistemas. O desenho entra no realismo visual e
na escrita, a criança busca a aprendizagem da ortografia, pois percebe que escrever
como se fala não é suficiente em nosso sistema de escrita.

Muitos professores da educação Infantil e, principalmente, das séries iniciais do Ensino


Fundamental, afirmam que não podem perder tempo com os desenhos das crianças,
pois há muito conteúdo a ser desenvolvido. Analisando-se as relações acima expostas,
pode-se constatar que, na realidade, é exatamente o oposto, pois ao desenhar, a
criança está se desenvolvendo e aprendendo a representar graficamente suas
experiências e para chegar à escrita, são poucos passos a serem dados.

Considerações Finais

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Portanto, pensar em desenho constitui num desafio quando percebemos que muito se
tem falado sobre o desenho, mas quase nada em relação ao processo da produção
das crianças.

Para que possa se ver a criança com um novo olhar torna-se necessário que se tenha
uma nova atitude em relação a ela, considerando-se que aprender é também interagir
com uma multiplicidade de linguagens. Palavras, ações, gestos, expressões de afeto
por meio do corpo, do desenho, do olhar, tudo isso compõe o dia-a-dia da criança
dentro do espaço escolar e também funcionam como referência de constância e
continuidade, tornando o espaço educativo compreensível para ela e abrindo caminhos
para as descobertas e as manifestações da criança.

O grafismo é o meio pela qual a criança manifesta sua expressão e visão do mundo, o
exercício de uma atividade imaginária, que se relaciona a um processo dinâmico, em
que a criança procura representar o que conhece e compreende. Pelo fato de o
desenho infantil ser um meio de compreensão da realidade, é um valioso instrumento
para a construção de conhecimentos, pois mostra um produto resultante da imaginação
e atividade criadora da criança.

O importante nesse processo é o educador ampliar o olhar para além dos padrões e
procurar ver as crianças pelo que elas têm e não pelo que lhes falta. O trabalho com a
linguagem do desenho e da escrita requer profunda atenção no que se refere ao
respeito à individualidade e aos esquemas de conhecimento próprios de cada criança,
pois o desenho como possibilidade de brincar e de comunicar marca o
desenvolvimento da infância e a escrita como possibilidade de comunicar, resgatar
lembranças, registrar o vivido e o imaginado, marca a construção da autoria.

A mudança de olhar para a infância é uma necessidade urgente, responsabilidade de


todos aqueles envolvidos com o desenvolvimento da criança. O psicopedagogo tem aí
um papel muito importante, pois não pode reproduzir o que escola tem feito, mas ter
um olhar diferenciado para perceber, nas marcas deixadas pela criança e o
adolescente, sua pré-história de construção do grafismo para poder propor propostas
que ajudem a reconhecer momentos em que houve rupturas no seu processo de
aprender3.

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4- A CASA: CULTURA E SOCIEDADE NA EXPRESSÃO DO DESENHO INFANTIL

O estudo de desenhos, em especial de desenhos infantis, tem sido objeto de nossas


investigações sobre a construção da identidade, seja analisando o próprio desenho
seja como recurso para avaliação dos resultados de nossas pesquisas.

Na primeira vez em que aplicamos desenhos em pesquisa, fizemos um trabalho de pré


e pós-intervenção. Analisamos dez grupos de crianças de periferia, da faixa de 07 a 09
anos, que passaram por um processo de psicoterapia de um ano. Para este trabalho,
criamos um critério quantitativo, selecionando dez itens relevantes nos desenhos da
casa, árvore, pessoa e família, para verificar a maturidade emocional dessas crianças.
Posteriormente, utilizamos o mesmo critério para comparações da referida população,
com grupos infantis indígenas, inicialmente os Guarani/Kaiowá e mais recentemente os
Kadiwéu.

Além desta aplicação, mais quantitativa, imediata e exploratória dos desenhos,


trabalhamos com grupos menores, com atividades de expressão artística, em especial
desenhos e pinturas, usando diferentes materiais.

Neste trabalho com desenhos e pinturas, um dos temas, a casa, chamou-nos a


atenção pelo seu significado e representação, intimamente relacionados à cultura,
sociedade, vida e tradição familiar e, finalmente, à identidade.

O DESENHO INFANTIL

Nossos estudos com desenhos sempre foram feitos em trabalhos de crianças. Por isso,
para melhor fundamentar nossas reflexões sobre o desenho da casa, torna-se
necessária uma revisão teórica de aspectos relevantes do grafismo no
desenvolvimento infantil.

Partindo de autores que procuraram analisar o significado do desenho e como ele se


manifesta em diferentes etapas do desenvolvimento humano, em especial daqueles
que estudaram o desenho da casa, pretendemos refletir sobre nossa experiência, a
importância e significado do desenho da casa para a criança.

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
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Segundo Widlöcher (1998), os desenhos infantis são objeto de nossa curiosidade
porque não existe o desenho adulto. Se o adulto não é um artista, ele não desenha.
Sua atividade gráfica é reduzida a alguns ensaios de caricaturas e rabiscos não
figurativos. As crianças, no entanto, revelam, em relação aos desenhos, um tipo de
conduta que parece próprio e espontâneo.

O desenho, em cada etapa da evolução das atitudes intelectuais, perceptivas e


motoras das crianças, representa um compromisso entre suas intenções narrativas e
seus meios. Trata-se, portanto, de um campo de estudos original da psicologia da
criança.

A criança não toma cuidado com a aparência visual que permite reconhecer o objeto.
Fiel, antes de tudo, à sua preocupação com o significado, ela faz igualmente uso de
procedimentos que vão ao encontro do realismo visual. Se um detalhe invisível permite
fazer um reconhecimento melhor do objeto, ele será representado contra toda a
aparência.

Assim, a criança não hesita, no quadro de uma casa em que ela venha a desenhar a
fachada, em representar o interior das peças que a compõem, seus habitantes nas
respectivas tarefas familiares, os móveis, etc. Este fenômeno, conhecido como
transparência, não merece, segundo Widlöcher (1998), esse nome, pois é uma vez o
interior e uma vez o exterior que a criança representa, sem procurar combinar
logicamente essas duas representações.

Widlöcher (1998) critica o termo realismo intelectual, dizendo que a preocupação da


criança não é representar as coisas tais quais elas são, mas figurá-las de maneira
identificável. Todos os artifícios que utilizar visam a este fim de representatividade,
especialmente a exemplaridade de detalhes e a multiplicidade de pontos de vista.

Em relação à evolução da criança em direção ao realismo visual, Luquet (1994) afirma


que, para não desenhar senão aquilo que se vê, é preciso saber se livrar de todas as
inferências intelectuais e esquecer o que se sabe. A criança não pode isolar esse ponto
de vista. A partir do momento em que ela o faz, graças ao progresso de suas
capacidades de atenção e de concentração, ela renuncia ao sincretismo do realismo
intelectual e ingressa, então, na fase do realismo visual.

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Wallon, Cambier e Engelhart (1990), buscando ilustrar a influência do meio nos
trabalhos infantis, relatam um estudo feito há dez anos, no Nepal, por uma etnóloga, N.
Bauthéac, cujo objetivo era aprender, pelas crianças, os fundamentos de sua
sociedade. O recolhimento dos desenhos teve lugar no acaso dos caminhos, nas
cidades, no curso das atividades cotidianas, fora das escolas em geral, salvo em
Katmandou. Segundo as regiões estudadas, as tendências aparecem muito
nitidamente nos desenhos, seja na sua grafia seja no seu simbolismo.

Os desenhos obtidos com crianças taru, aborígenes da região do Terai, celeiro agrícola
ao norte do território indiano, mostram que a folha de papel é um espaço aberto e que
ela se recobre em todos os sentidos, segundo a cultura e o meio ambiente em que a
criança está inserida. As crianças taru, segundo Bauthéac, citada por Wallon e cols.
(1990), reproduziram o esquema gráfico tradicional para fazer, nos desenhos de
homens e animais, o apoio de dois triângulos, inspirando-se nas esculturas decorativas
das casas taru.

Por outro lado, nos desenhos de crianças escolarizadas da região de Katmandou, a


representação gráfica é toda feita conforme os modos ocidentais, com a mesma
organização da página. A evolução da pessoa e da casa, segundo a autora,
corresponde àquela das crianças francesas.

Nas vilas do vale do Langtang, a 4000m. de altura, num lugar onde as crianças vivem
afastadas de outra civilização que não a sua, sem escola e sem imagem, os desenhos
de 400 crianças são uma transmissão dos símbolos culturais pelos símbolos religiosos,
como os objetos de oferenda e bandeiras sagradas.

As pesquisas relatadas e outros estudos, afirmam Wallon e cols. (1990), os leva a


pensar que cada sociedade, cada grupo, exprime-se graficamente de maneira
diferenciada e específica, sem excluir a existência de signos e de regras universais.

O desenho conta também, a quem pode entender, o que nós somos no momento
presente, integrando o passado e nossa história pessoal. O desenho conta sobre o
objeto; ele é a imagem do objeto e se inscreve entre numerosas modalidades da
função semiótica: ilustrar, desenhar, fazer o sentido com os traços, quer dizer com
outros sinais ou com as imagens de tais objetos, que são muitas vezes difíceis de dizer
ou descrever com as palavras.
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INTERPRETAÇÃO PARA O
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O desenho é um suporte onde se misturam e se cruzam os valores do objeto e os
valores da pessoa. (Grubits & Darrault-Harris, 2001). Ele é a concretização de um
diálogo inconsciente, buscando conciliar as exigências do sujeito e aquelas do objeto,
um diálogo que organiza o conhecimento e permite reduzir a distância entre o eu e o
não-eu.

A identificação e a legibilidade da produção são geralmente tributárias de uma


semelhança visual, visão fotográfica com o objeto: a imagem desenhada aparece como
uma transcrição, sobre a folha de papel, das qualidades sensíveis do objeto; ela reduz
o real para melhor o evocar; ela é uma elaboração original, um agregado de
significados, cuja natureza e estrutura são largamente determinadas pelos processos
diversos, de ordem perceptiva, cognitiva e sociocultural; processos que, além disso,
subentendem e trabalham a personalidade do desenhista.

Wallon e cols. (1990) alertam quanto aos riscos que corremos ao analisar o desenho,
quando, para facilitar ou por falta de clareza, nossa atitude pragmática nos leva a
esquecer as origens do desenho e a considerá-lo como objeto autônomo, sem nos
preocuparmos inicialmente com as circunstâncias particulares e os processos que
orientam sua produção.

Mais grave seria decompormos a imagem, isolar algum detalhe privilegiado,


hierarquizá-lo e lhe atribuir um valor significativo específico. Além disso, o signo não
adquire seu significado senão nas suas relações com a reunião de tudo aquilo a que
ele pertence.

Esse procedimento é particularmente nefasto no caso de desenho da criança, onde o


adulto é levado a isolar uma série de unidades significativas, definidas por um conceito
de objeto que não corresponde necessariamente à concepção sincrética de uma
criança. Em conseqüência, o desenho da criança tem muitas vezes sido analisado com
referência a uma perspectiva adulta (adultóide) e a uma maneira de fazer valorizada
pelo grupo social.

A qualidade da produção gráfica é legitimada por uma dimensão normativa e cultural; o


desenho da criança é, desde então, descrito em termos negativos, em termos de
ausência, de semelhança e de detalhes. Um exemplo disso está na maiori a das
escalas psicométricas, onde a argumentação de número de detalhes traduz uma
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
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melhor leitura (interpretação) do desenho e aparece como uma mais valiosa ordem
intelectual.

Destarte, também os objetos não pertencem somente às classes de objetos, eles se


definem nas suas relações com os outros objetos, segundo as leis que fazem do nosso
universo um mundo de forças e relações. Assim o sol simboliza calor, vida e poder de
fecundação. Em cada uma dessas relações, ele se encontra numa situação análoga à
de outros objetos que igualmente simbolizam calor, ou vida, ou fecundação. Por um
lado, ele se opõe à lua, astro noturno, mas por outro lado, ele se opõe, também, à terra
que ele ilumina.

O mundo dos objetos também é, destarte, um mundo de símbolos. O domínio do


imaginário, que tem uma grande parte na vida da criança, se exprime muito
naturalmente nesses desenhos.

Finalmente, o valor narrativo do desenho tem sobretudo um significado simbólico. Ele


nos mostra a maneira como a criança, através das coisas, vive os significados
simbólicos que ela lhes atribui. É a reunião de seu mundo imaginário que se reflete no
seu desenho. O que ela não pode nos dizer de seus sonhos, emoções, nas situações
concretas, ela nos indica pelos seus desenhos.

As análises e interpretações são, portanto, melhores, não se nos contentamos em


estudar um desenho isolado, mas quando procedemos a uma análise comparativa de
uma série de desenhos de uma mesma criança, procurando os temas comuns.

A CASA

Em relação aos desenhos propostos no HTPF 2, o tema pessoa faz um apelo ao reino
animal, àquele da árvore, o reino vegetal e àquele da casa, o reino mineral.

Por pertencer a um material mineral rígido, irredutível, da matéria que a constitui, a


casa aparece como representativa dos elementos mais fundamentais do ser, segundo
Royer (1989), de sua própria essência, química, alquimia, e como tal, de sua natureza
mais profunda, inata, inteira, de alguma forma, a pedra angular da personalidade.

Por outro lado, a casa é construída, elaborada, edificada pela mão do homem. No seu
estado atual, sua concepção é o resumo de todas as aquisições efetuadas ao longo

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DESENHO FONTE DE
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das diferentes etapas do desenvolvimento humano. Assim, também a criança é
moldada a partir de seus instintos, educada, transformada por sua família, ambiente e
cultura. A representação de uma casa, portanto, parece, muito particularmente, levar
em conta as interações entre a natureza e a cultura, entre o inato e o adquirido, entre o
indivíduo e a sociedade.

Royer (1989) afirma, na sua obra Le dessin d’une maison, que a casa constitui um
arquétipo mais complexo, e por isso, mais difícil de interpretar, mais rico também de
significados que os temas desenho da árvore e pessoa. A casa é o símbolo de todas
as "peles" sucessivas que nos envolvem - o seio materno, corpos, família, universo - e
que vão se encaixando e modelando.

Assim, desenhar uma casa é evocar o último ego que reside mais fundo, assim como
suas relações com todos seus envelopes; é revelar as modalidades de sua pertença no
mundo.

Para a autora, a casa é o termo mais carregado de ressonância afetiva, mais capaz de
desencadear tantas lembranças, tantos sonhos, tantas paixões: a casa da infância, a
casa da família, a casa das férias, a casa dos sonhos matrimoniais, a casa de retiro, a
última moradia.

Cada uma de nossas casas possui suas fragrâncias, corredores e portas secretas,
espaços, recantos, alquimia, culinária, ruídos e silêncios, fogos e águas, luzes,
penumbras assustadoras ou propícias aos desabafos.

A imagem da casa, alegre ou não, nos acompanha ao longo de nossa vida. Esse
arquétipo ligado a nossa segurança, amores, posses, status social, está inscrito mais
profundamente em nós, até na nossa parte primitiva e animal, como a concha para o
caracol.

A etologia nos informa que um grande número de animais possui, como nós, uma casa
com suas peculiaridades: a toca rudimentar escondida sob as moitas, ninhos
cuidadosamente construídos, buracos com labirintos com múltiplas passagens,
colmeias sofisticadas, etc. Em torno desses refúgios, o animal delimita um território,
uma zona de jogo e de caça, que ele se reserva e que marca os limites graças ao odor
pessoal de seus dejetos, reconhecido pelos outros membros de sua espécie, assim
como pelos predadores. (Royer, 1989).
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
No curso de sua evolução, a habitação foi submetida a formidáveis transformações.
Inicialmente escondido em grutas naturais, o homem foi pouco a pouco personalizando
sua habitação troglodita, acumulando tesouros e projetando suas fantasias na
decoração das paredes.

Durante milênios a casa é aquecida, iluminada, mobiliada e decorada, relacionando


paralelamente conforto e estética. A casa familiar se diferenciou para satisfazer a
coletividade. Ela se transforma em escola, prefeitura, palácio de justiça, prisão, loja,
hotel, etc. Assim também, exaltando seus sonhos e ambições, o homem construiu
pirâmides, templos, catedrais, arranha-céus e palácios.

Dessa forma o homem construiu suas casas à imagem de sua evolução. Royer (1989)
afirma que também a criança, na pesquisa de sua identidade, desenha as casas.

A CASA NOS GRUPOS INFANTIS INDÍGENAS

Em nossas investigações com grupos indígena,s desde do início da década de 1990,


reunimos trabalhos e informações sobre os Bororo de Mato Grosso e Guarani/Kaiowá,
de Mato Grosso do Sul. Atualmente já possuímos pesquisas mais avançadas, porém
com resultados preliminares sobre os Kadiwéu e estamos iniciando atividades com os
Terena, ambos também de Mato Grosso do Sul. As reflexões e análises no presente
artigo envolvem desenhos e estudos de crianças Bororo, Guarani/Kaiowá e Kadiwéu.

ORGANIZAÇÃO DAS CASAS: CULTURA E SOCIEDADE

Durante nossa pesquisa de 1997 a 2001, na reserva indígena de Caarapó, Mato


Grosso do Sul, reunimos um material muito significativo nas quatro escolas da referida
reserva. As crianças realizaram o HTPF, desenhos com lápis de cor, lápis-cera e
finalmente com cola colorida.

As afirmações e reflexões sobre os desenhos das casas, no capítulo anterior,


corroboram nossas conclusões e primeiras experiências de escolha dos sujeitos da
pesquisa com o grupo infantil Guarani/Kaiowá. Assim, as casas se destacaram nos
desenhos do HTPF e nas pinturas das crianças da Reserva de Caarapó, indicando três
formas de expressão e representação muito significativas.

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Percebemos claramente que algumas crianças fizeram opção por desenhos de casas
ligadas por caminhos, de acordo com a tradição de referido grupo, reunindo as
habitações pelo parentesco, no mesmo local). Outro grupo desenhou casas isoladas,
mantendo, porém, as características da arquitetura Guarani/Kaiowá. Finalmente, outras
representaram simplesmente casas como os padrões de desenhos comuns da maioria
das crianças que frequentam escolas, nos centros urbanos.

Tendo em vista que a busca de identidade dessa população infantil - o que sobrevive
da cultura indígena e o que vem se impondo na sociedade nacional envolvente -
constituía o ponto fundamental na proposta de nossa pesquisa, achamos essa
indicação valiosa para seleção dos sujeitos.

É importante ressaltar a estrutura do espaço onde vivem as famílias Guarani/Kaiowá, a


representação da aldeia Guarani, segundo Viveiros Castro (1986), para entendermos a
importância e significado dos desenhos das casas feitos pelas crianças.

O espaço onde vivem, segundo estudos de Viveiros de Castro (1992), Schaden (1974),
Meliá (1990) e outros, envolve a significativa e peculiar relação do Guarani com a terra,
que vai muito além do lugar para a morada e sobrevivência e de onde retiram o
sustento através da agricultura.

A terra é, sobretudo, o tekohá, ou seja, o lugar onde se dão as condições de


possibilidades do modo de ser do Guarani, o que envolve lei, cultura, comportamento,
hábitos, religião, etc., que Pereira (1995) tão bem sintetizou como sendo um "espaço
físico-político-simbólico, que remonta a mais um ato criativo dos deuses, lugar
estruturante e suporte de sua organização social,(...) aí também circulam crenças,
valores e normas" (p. 83).

Os desenhos de casas ligadas por caminhos, de acordo com a organização social


Guarani, representam, portanto, o tekohá, o espaço físico-político-simbólico, conforme
fomos confirmando no estudo de caso da menina da referida etnia, descrito mais
adiante.

Outra experiência semelhante ocorreu numa reserva Bororo, realizada numa oficina de
desenho3 com giz de cera, com um grupo de 12 crianças, em 2002, em Meruri, Mato
Grosso, onde aparece também, no desenho da casa, a representação da organização
social do referido grupo étnico.
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Na concepção dos Bororo, a sociedade é organizada em aldeias formadas por um
conjunto de choupanas tradicionalmente dispostas em círculo, em torno de uma grande
choupana central, a casa dos homens, bai mana gejewu4. A aldeia é dividida em duas
metades pelo eixo leste-oeste, com as choupanas tugarege ao sul e
choupanas ecerae ao norte, segundo Viertler (1976).

Na ocasião das primeiras visitas feitas a Meruri e Garça, para a execução da uma
pesquisa, na década de 1990, observamos que alguns aspectos da cultura Bororo,
como os descritos pelos autores Lévi Strauss (2000) e Viertler (1976), permaneciam
como outrora, mas outros haviam sido modificados.

No Garça, aldeia que fica a trinta quilômetros de Meruri, constatamos que as casas dos
índios eram construídas de palha e ainda dispostas em círculo, de acordo com a
tradição Bororo. A organização das famílias permanecia e o bai mana gejewu era
mantido, com suas atividades, no centro da aldeia (Grubits 1994).

Em Meruri, ao contrário, as casas eram de tijolo e a disposição delas não era circular,
apesar da tentativa de que as fileiras formassem pelo menos um retângulo em torno do
terreno central, onde existia uma estrutura que constituía uma tentativa de construção
do bai mana gejewu (algumas estacas e cobertura de palha). Nem círculo nem o
retângulo se completaram, mas, segundo os depoimentos dos moradores, ainda se
tentava que as famílias mantivessem uma organização semelhante à tradicional
(Grubits 1994).

Nos desenhos infantis Bororo realizados na oficina, em 2002, percebemos que nas
representações, completas ou não, também ocorriam tentativas de manutenção da
referida organização.

ESTUDOS DE CASO: MENINO E MENINA GUARANI/KAIOWÁ, MENINA KADIWÉU

Os estudos de caso do menino e menina Guarani/Kaiowá, assim como o da menina


Kadiwéu, foram feitos a partir de desenhos, pinturas e outras técnicas expressivas, em
grupos de cerca de seis crianças, nas duas reservas, numa média de quatro sessões
mensais, durante nossas visitas de três dias.

Refletindo ainda sobre representação da casa e sua relação com a sociedade e


cultura, em dois estudos de caso, percebemos também representações significativas.
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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
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Uma menina Guarani/Kaiowá, num de seus desenhos com caneta hidrocor, num plano
superior desenhou duas casas ligadas, de acordo com a representação tradicional
Guarani/Kaiowá, mas as casas desenhadas são uma mistura de arquitetura indígena e
casas semelhante às da cidade.

Além das casas, desenhou também árvores, um cachorro, o sol e nuvens. Ainda nesse
nível, predominam as cores azul e amarela. No segundo, representou um ônibus, uma
nuvem com chuva - mas sem nenhum desenho embaixo destas nuvens -, duas flores,
uma árvore, uma casa com arquitetura dos desenhos da cidade, tudo no mesmo
tamanho e nas cores vermelha e alaranjada.

Finalmente, no plano inferior, usando a própria borda do papel como linha de terra,
desenhou, da esquerda para a direita, uma árvore e uma casa vermelha, uma flor
verde e amarela, maior que a casa, um cachorro sem as patas traseiras e uma
representação de chão sob suas patas, uma árvore azul, uma figura feminina em preto,
uma outra casa e árvore, ambas em vermelho.

As casas ainda são uma mistura da arquitetura Guarani/Kaiowá com a casa da cidade.
As árvores e a flor são maiores do que as casas. O cachorro e a figura feminina são
menores do que os outros desenhos.

Nesse desenho, os três níveis estão bem-definidos, sendo que uma linha horizontal
separa o segundo do terceiro de cima para baixo. No primeiro, sob o sol, com nuvens
ao lado, aparece a representação das casas reunidas, um cachorro junto a uma árvore
e mais adiante uma bananeira e depois da casa uma plantação.

Cabe ressaltar que a casa aparece nos desenhos que, em análises semióticas
posteriores, iriam nos indicar a representação dos três níveis (superior/céu;
médio/terra, aldeia e inferior/mundo subterrâneo) da cosmologia Guarani. (Grubits &
Darrault-Harris, 2001)

No desenho da casa do menino Guarani/Kaiowá aparecem num mesmo plano, com a


representação da linha de terra, da esquerda para a direita, um coqueiro muito
colorido, uma casa com arquitetura das casas da cidade, porém com uma terceira
parte, inclinada no lado direito, para o observador, o que não é comum nas referidas
casas e nos indica discreta influência da arquitetura Guarani/Kaiowá, pois nesse caso,

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INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
freqüentemente são representadas três partes de frente no desenho da casa, ou uma
inclinação à esquerda e outra à direita.

O mesmo menino, no último desenho, após um ano de sessões regulares na Reserva


de Caarapó, além da própria casa como casa da cidade, fez um caminhão, uma
bicicleta, um aparelho de som numa mesa, uma TV em outra mesa, uma kodak,
conforme ele denominou a máquina fotográfica.

Todos esses aparelhos estão fora da casa, como se ele quisesse expor, ordenar os
objetos de consumo da sociedade moderna, importantes na busca de sua identidade
de homem da cidade. Desenhou também duas laranjeiras e uma outra árvore, o sol
amarelo rodeado de nuvens, um coqueiro e várias flores, informando, porém, que eram
da sua casa e não da reserva indígena.

Na trajetória das duas crianças, nos seus desenhos, pinturas, bricolagem e


modelagem, observamos como a representação desse espaço, o tekohá, usando dos
recursos dos conceitos fundamentais da semiótica como proxemique, destinador e
antidestinador6, entre outros, nos conduziu a configuração de suas identidades.

Vejamos o caso da menina. Desde sua primeira pintura, ela começa a representar
através de seus destinadores e destinatários conforme análise semiótica desenvolvida
em pesquisa, que sempre são bons e satisfatoriamente organizados, quando
intimamente ligado às forças da natureza, matas, roças; representa as casas
ordenadas segundo a organização social tradicional Guarani.

Também é interessante ressaltar, como fato que demonstra a importância do trabalho


realizado e a construção de sua identidade, tanto sob ponto de vista psíquico como
social, da cultura e em especial da cosmologia Guarani, que ambas as crianças
começaram do mesmo ponto, representando a cultura Guarani/Kaiowá e a sociedade
nacional envolvente nos primeiros trabalhos, e no final optaram por uma delas.

A casa, nosso objeto de estudo desde a seleção das crianças, foi muito reveladora na
trajetória de ambos.Apareceu indicando, para a menina, mais aspectos da cultura
Guarani/Kaiowá e sua estrutura familiar, representada pela ligação de casa, ou um
agregado de pequenas aldeias, bairros, de casas voltadas para si mesmas, conforme
afirmou Schaden (1974, p. 59-60). Quanto ao menino, os desenhos das casas têm
características semelhantes aos das crianças da cidade.
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DESENVOLVIMENTO PESSOAL
Na última sessão com o grupo da referida pesquisa, a meninarepresentou somente a
cosmologia e natureza, o menino, com muito destaque, os aparelhos e viaturas que
caracterizam o mundo moderno, ou seja, aquilo que é muito anunciado e pontuado na
mídia de um modo geral.

Atualmente estudamos os Kadiwéu, também conhecidos como Guaicuru, índios


cavaleiros, ceramistas famosos, com cores e desenhos característicos, de acordo com
o grupo familiar, segundo relato de informantes. Como nos estudos citados por Wallon
e cols. (1990), as meninas decoraram as casas com motivos de tais cerâmicas e
tradição familiar.

A sequência de desenhos de uma menina do grupo traz a representação da decoração


Kadiwéu, que tradicionalmente se refere à mulher ceramista, na fachada de duas casas
e nas flores representadas.

Em outro trabalho da mesma menina Kadiwéu aparecem cores e desenhos das


cerâmicas da referida etnia, não só na fachada das casas, mas também nas plantas e
no animal desenhado.

Os homens não são ceramistas, trabalham mais na pecuária e caça. Um dos trabalhos
de um menino Kadiwéu serve como ilustração dos temas, cores e desenhos escolhidos
pelos meninos. A casa, os dois animais silvestres, uma anta e um tatu, assim como um
boi, não são coloridos.

As diferenças são muito relevantes e apareceram nos desenhos, em especial a casa


da menina Kadiwéu. As questões de gênero e cultura vêm sendo confirmadas nas
pesquisas que estamos desenvolvendo com o referido grupo étnico.

Cabe ressaltar, mesmo sem termos chegado à discussão final da pesquisa, que a
construção da identidade Kadiwéu na análise destes trabalhos aparece sem conflitos
ou contradições em relação à sociedade nacional envolvente.

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DESENHO FONTE DE
INTERPRETAÇÃO PARA O
DESENVOLVIMENTO PESSOAL
REFERÊNCIAS

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0006-
59432011000200007<acesso em 29/09/2023>

https://blog.tris.com.br/a-importancia-da-arte/<acesso em 29/09/2023>

https://saladeaulainterativa.pro.br/moodle/file.php/11/TIDD_PUCSP/TEXTO_Marco_E
NDIPE_2008.pdf<acesso em 29/09/2023>

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
69542010000200003<acesso em 29/09/2023>

https://www.scielo.br/j/pe/a/hPdwKkkxp4zhrJJYpYm9sBG/<acesso em 29/09/2023>

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