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COMPOSIÇÕES DO CUIDADO NA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

COORDENAÇÃO: ANA CAROLINA RIOS SIMONI e MÁRIO FRANCIS PETRY LONDERO

RESUMO
O presente projeto de extensão iniciou em 2021 e se apresenta novamente com os
objetivos de construir e compartilhar com os serviços de Atenção Psicossocial do município
de Natal e o Serviços Escola de Psicologia (SEPA) espaços e ações de atenção em saúde
mental e educação permanente em saúde (EPS) com vistas a gestar práticas de cuidado
sensíveis aos marcadores sociais da diferença – raça/cor, classe, geração, gênero e
sexualidades. Considera o momento delicado da construção da Reforma Psiquiátrica
brasileira, marcado por muitos retrocessos no que se refere à perspectiva do cuidado
antimanicomial, cujos efeitos se agravaram com a pandemia de Covid 19 e a crise
econômica e social que a acompanhou. Parte da premissa de que a produção da saúde
numa perspectiva antimanicomial está intrinsecamente relacionada ao princípio da equidade
e, portanto, requer a construção de dispositivos nos quais usuários e trabalhadores de
saúde compõem vivências, saberes e agires para romper com as lógicas
patologizantes/manicomiais/racistas/sexistas/LGBTfóbicas e criam modos de cuidar de si e
dos outros no território. Propõe criar dispositivos de cuidado e formação neste campo,
delineados a partir de demandas específicas de cada serviço/equipe da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) bem como do Serviço Escola de Psicologia – (SEPA/UFRN), tendo
como transversais a dimensão clínico-política da atenção em saúde mental e uma ética do
cuidar como gesto movido singular e coletivamente. Neste sentido, o projeto envolve a
oferta de espaços de Educação Permanente em Saúde (EPS) - rodas de conversa,
reuniões de construção de casos e oficinas temáticas sobre saúde mental de populações
vulneráveis para estudantes e trabalhadores de saúde mental de diversas áreas
profissionais -, e de espaços terapêuticos individuais e coletivos - acolhimentos
psicossociais, acompanhamentos terapêuticos e oficinas terapêuticas para usuários dos
serviços de Atenção Psicossocial e do Serviço Escola de Psicologia. Estima-se a
participação de 40 trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial de Natal, 15 alunos da
UFRN de graduação e pós-graduação e 45 usuários de saúde mental. Como resultados,
espera-se fortalecer a articulação ensino-serviço preconizada pelo Sistema Único de Saúde,
transformando a formação profissional para efetivar a humanização do SUS; contribuir com
a necessária mudança do modelo de atenção em Saúde Mental no Brasil na direção dos
princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial e da equidade em saúde; produzir
conhecimentos e tecnologias de cuidado em saúde mental capazes de atender as
demandas de sofrimento psiquico de populações vulnerabilizadas, tais como negros,
pessoas em vulnerabilidade social, pessoas em situação de rua e LGBTQIAPN+.

JUSTIFICATIVA

A lógica manicomial que captura as expressões do sofrimento nos quadrantes do


normal e do patológico opera historicamente nas práticas de saúde, mas também na
formação dos trabalhadores (Simoni & Moschen, 2020). Neste sentido, a efetivação da
Reforma Psiquiátrica, pela consolidação da Rede de Atenção Psicossocial e de sua malha
de tecnologias de cuidado territoriais, encontra-se com os impasses inerentes à formação
de trabalhadores para o setor e aos processos de trabalho das equipes de saúde - desafios
estratégicos para a mudança do modelo de atenção (Dimenstein, Simoni & Londero, 2021).
Nestes contextos, lógicas racistas, sexistas, LGBTfóbicas se reproduzem naturalizadas nas
práticas institucionais que compõem nosso tecido social - aí incluídos os serviços de saúde
(Cirilo Neto et al., 2023).
Desta feita, o presente projeto de extensão se justifica pela necessidade de se
construírem processos de colaboração entre a universidade e as políticas públicas de
saúde, na direção de sustentar os princípios da Reforma Psiquiátrica no cotidiano
institucional, promovendo transformações tanto na formação dos estudantes e
trabalhadores da área da saúde quanto nos processos de cuidado. Para tanto, propõem-se
intervenções nos cenários em que sujeitos e instituições se coproduzem, a saber, os
serviços de saúde, na direção de romper com as lógicas antes referidas (Baremblitt, 1998).
Nos territórios em que o cuidado e a formação se encontram, é preciso reconhecer a
imbricação dos determinantes sociais de saúde, das iniquidades, dos marcadores sociais da
diferença e dos processos de sofrimento mental, visando a mudança nas práticas de
educação/formação/atenção em saúde.
Este projeto almeja com sua reedição continuar a construção desses cenários de
experiência de intercessões da cultura, dos direitos humanos, da educação e da saúde
contra as capturas das existências singulares nos estigmas da incapacidade e da
periculosidade (Amarante, 2008; Simoni & Moschen, 2020), da inferioridade (Fanon, 2008;
Gonzales, 2020; Souza, 2021), da monstruosidade (Preciado, 2020) e da morte (Mbembe,
2019; Nafaguchi, 2019; Cabral & Belloc, 2019). Esta perspectiva está em consonância com
a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e com as metas do Ministério da
Saúde do Brasil, estabelecidas no documento técnico “Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento?”, de 2018, o
qual visa a parceria das universidades para a produção de “práticas e experiências
inovadoras de educação na saúde, transformando o conhecimento tácito em conhecimento
explícito e promovendo a troca de informações, mediante a construção de redes entre as
partes interessadas” (BRASIL, p. 7, 2018).
Também coaduna com a Política Nacional de Saúde Mental e a Política Nacional de
Humanização, na medida em que ambas demandam a colaboração das universidades com
a “formulação de estratégias efetivas de educação permanente e crítica dos profissionais de
saúde” (Mello & Paulon, p. 86, 2015). Com a Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra, uma vez que recomenda “fortalecer a inserção da temática étnico-racial
nos processos de educação permanente dos profissionais de saúde” (BRASIL. p. 42, 2017).
Ainda com a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais, a qual orienta “a inclusão da temática da orientação sexual e identidade de
gênero de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nos processos de educação
permanente desenvolvidos pelo SUS”.
Portanto, este projeto também demonstra sua pertinência pois no conjunto das suas
ações, a saber, espaços de Educação Permanente em Saúde (EPS) através das rodas de
conversa, reuniões de construção de casos e oficinas temáticas) e os espaços terapêuticos
individuais e coletivos (acolhimentos psicossociais, acompanhamentos terapêuticos,
oficinas e grupos terapêuticos), trata-se de trazer para o cotidiano das práticas em saúde
mental as recomendações das políticas antes mencionadas. Ou seja, produzir cenários
permanentes de aprendizagens e reinvenção das ações de saúde mental na perspectiva
antimanicomial, junto aos usuários cujas vidas são atravessadas pelos marcadores sociais
da diferença - questões étnico raciais, de gênero e sexualidade, pobreza, exclusão social.

OBJETIVOS

1. construir e compartilhar com os serviços de Atenção Psicossocial do município de


Natal e o Serviços Escola de Psicologia (SEPA) espaços e ações de atenção em
saúde mental e educação permanente em saúde com vistas a gestar práticas de
cuidado sensíveis aos marcadores sociais da diferença – raça/cor, classe, geração,
gênero e sexualidades;
2. fortalecer a reforma psiquiátrica no município de Natal, ao promover espaços
antimanicomiais de cuidado e formação em saúde mental;
3. qualificar a formação dos alunos da UFRN e dos trabalhadores de saúde do SUS de
Natal na área da saúde mental;
4. promover equidade em saúde mental à população atendida na rede pública de
saúde e no Serviço de Psicologia Aplicada da UFRN.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Propomos realizar ações de extensão, por meio deste projeto, buscando contribuir
para transformar as práticas de cuidado em saúde mental do município de Natal, num
contexto em que se intensificaram e proliferaram formas de sofrimento psíquico em
decorrência da pandemia de Covid19 e da crise social e econômica que assolou nosso país
nos últimos anos. Tal cenário escancarou a biopolítica (Foucault, 2005) vigente na gestão
das vidas brasileiras que, como nos ensina Mbembe (2019), opera de fato uma
necropolítica. Em referência à construção foucaultiana sobre como o biopoder teve no
Estado Nazista seu ponto culminante (Foucault, 2010), o autor nos remete às câmaras de
gás dos campos de concentração para apontar os processos de desumanização e
industrialização da morte operados pelas racionalidades instrumental, produtiva e
administrativa do mundo ocidental moderno. Políticas cotidianas de morte, instauradas por
um estado de exceção em funcionamento nos interstícios das instituições, que legitima o
“direito” de matar os considerados dispensáveis para os interesses do capital (Mbembe,
2016)
No caso brasileiro, a dura realidade da instalação da pandemia se encontrou com
um cenário estarrecedor de gestão pública após 2016, em que se precarizaram
barbaramente as condições de trabalho e vida da população; se efetivaram cortes de
recursos para as políticas públicas de saúde, educação e assistência social,
consolidando-se um desmonte sem precedentes das políticas de redução das
desigualdades e promoção da equidade, operando-se profundas perdas de direitos sociais
e de cidadania (Cabral & Belloc, 2019). Dimenstein et al. (2021), em estudo sobre a
cobertura da Rede de Atenção Psicossocial em três estados nordestinos, aí incluído o Rio
Grande do Norte, observa que até 2018 houve um importante movimento de interiorização e
expansão da cobertura de serviços de saúde mental e atenção básica, gerando ampliação
da equidade nos territórios de menor desenvolvimento econômico e social - avanços que
foram colocados em cheque pelas políticas de estado mínimo adotadas entre 2016 e 2022.
É neste contexto que a Reforma Psiquiátrica brasileira perde força, instalando-se
retrocessos substantivos no campo da saúde mental como a retomada dos investimentos
em hospitais psiquiátricos e na ambulatorização da assistência em saúde mental, assim
como a ampliação do financiamento de comunidades terapêuticas. O movimento da
Reforma Psiquiátrica iniciou no final dos anos 1970 em favor de uma reformulação das
práticas de atenção em saúde pública no país, com ênfase na saúde mental. No Brasil do
final da ditadura militar, marcada por corrupção, morte e silenciamento e da luta por
redemocratização, surge o movimento da Reforma Sanitária, que permite a criação do
Sistema Único de Saúde através da Constituição de 1988 e a emergência de um Movimento
Nacional intitulado de Luta Antimanicomial.
O significante luta aí comparece para marcar que as transformações almejadas no
campo da atenção à saúde mental não viriam de forma pacífica e consensual, mas
implicariam uma forte disputa entre o modelo manicomial e os processos de reforma, já que,
em última instância, o que está no horizonte é alterar as estruturas da sociedade.
Influenciados pela psicoterapia institucional francesa, pelas experiências de
desinstitucionalização italiana, pelo modelo das comunidades terapêuticas inglesas e pela
psiquiatria preventiva-comunitária norte-americana, o Brasil forjou seu movimento de
Reforma Psiquiátrica como movimento político, social e clínico, na luta pela inclusão do
sujeito, pelo seu direito à cidadania (Tenório, 2001).
Assim, o movimento da luta antimanicomial, que tem como bandeira central o
cuidado em liberdade, busca desmanchar a noção de doença mental, reconectando o que é
reduzido ao signo da loucura e inscrito no interior do indivíduo e da família aos processos
mais amplos e complexos da vida social e política. Ao afirmar a cidadania do “louco”,
buscou-se produzir uma outra resposta coletiva ao sofrimento psíquico, contra a
segregação, exclusão, recusa e silenciamento da diferença (Tenório, 2001). A reforma
psiquiátrica brasileira, em seu caminho já trilhado e horizonte aberto, nos mostra que a
ciência a serviço das forças hegemônicas expropria cotidianamente sujeitos e coletivos de
sua potência de discursivização e gestão, na diferença, da vida singular e coletiva
(Baremblitt, 2002).
Neste processo, a desconstrução do mito da democracia do sofrimento mental – que
atingiria igualmente as pessoas independentemente de classe social, gênero, geração,
raça/cor e etnia – é uma urgente tarefa (Dimenstein, Simoni & Londero, 2020). Tarefa esta
que também assumimos ao propor este projeto de extensão, assumindo o papel da
Universidade de empreender projetos e ações que possam agir para a redução das
desigualdades, a garantia dos direitos humanos e a efetivação do direito à saúde conforme
preconiza a Constituição do país, o que não se faz sem que os determinantes sociais da
saúde mental sejam considerados (Dimenstein, Simoni & Londero, 2020).
Considerando, a exemplo, os marcadores gênero e sexualidade em seus processos
de determinação social da saúde mental, é possível atentar-se aos dados que revelam
acentuadas formas de sofrimento psíquico entre pessoas dissidentes de gênero e
sexualidade, aí incluído o fenômeno do suicídio, recrudescidas no contexto pandêmico e
pós-pandêmico (Oliveira, Carvalho & Jesus, 2020). Contudo, é possível notar uma
saturação metodológica do campo pelo viés quantitativo, capaz de criar uma simplificação
dos processos de adoecimento, cuja consequência seria uma associação rápida entre
“identidade” e sofrimento psíquico e/ou suicídio, conforme nos alerta Baére (2019). Tal
associação não somente contribui para a proliferação de um discurso de individualização de
problemas sociais, em que se afirma que pessoas LGBTQIAPN+ tendem ao adoecimento
psíquico e a tentativas de suicídio por razões individuais, como sobrecodifica a experiência
da dissidência no registro do patológico (Baére, 2019). Assim, embora seja de extrema
importância ter em conta os dados epidemiológicos para a produção científica, as políticas
públicas e o acesso a direitos desta população, também se torna imperativo propor
intervenções capazes de visibilizar as experiências singulares das pessoas dissidentes de
sexualidade e de gênero e seus modos particulares de produzir saúde mental, promovendo
processos de mudança nos modos de atender esta população nos serviços de saúde (Cirilo
Neto et al. 2023).
Ampliando este debate para a problemática das relações entre sofrimento psíquico e
racismo estrutural e institucional, fica evidente como a determinação social da saúde mental
está imbricada com os modos particulares com que se dão as relações étnico raciais no
Brasil. Farias (2018) nos aporta reflexões sobre os efeitos traumáticos do racismo e suas
lógicas de exclusão social e produção de inferioridade, nos remetendo à belíssima obra
“Quarto de Despejo” da escritora Carolina Maria de Jesus. Esta nos conta dos efeitos
materiais e psíquicos dos ambientes de pobreza, exclusão social e invisibilidade em que
habitam a maioria dos negros em nosso país e nos quais as dinâmicas de submissão,
opressão e violência permanecem operando.
Tendo em conta os dados como o do IBGE de 2014, quando a população negra
figura em maioria de 76% entre os mais pobres, a autora destaca as produções do
sofrimento psíquico atravessadas pelas dimensões social/material dessa população,
alertando para as dificuldades em se constituir como sujeito em uma sociedade onde o
referencial é sempre o branco (Farias, 2018). O sofrimento se dá diante da ameaça de
aniquilamento, a dor é a de não existir, o contexto que é o de não-pertencimento, tendo em
vista os pactos sociais da branquitude (Bento, 2022).
Cida Bento refere que os pactos de branquitude estruturam nossas relações com as
instituições, reforçando o mito da democracia racial, pelo qual nosso país seria livre de
racismo e haveria igualdade de condições de vida e de acesso direitos para as pessoas,
independentemente de sua raça/cor. A autora aponta que tais pactos dizem de uma “a
aliança que expulsa, reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e
recordado pelo coletivo” (Bento, 2022, p. 25), relegando ao esquecimento a escravização de
negros e o genocídio de indígenas. É contra esses pactos narcísicos da branquitude que se
busca operar, ao propor intervenções que possam “debater e resolver o que ficou no
passado, para então construir uma outra história e avançar para outros pactos civilizatórios”
(ibidem), o que envolve sobremaneira a busca de garantia do direito à atenção integral em
saúde, contra a criminalização e patologização dos corpos negros.
Desta feita, entendendo que não há ato terapêutico que não revele uma posição no
laço social e, portanto, que não seja de natureza ético-política, este projeto se nomeia
(com)posições do cuidado na Rede de Atenção Psicossocial. As posições de que ele se
compõe são éticas e políticas e afirmam a necessidade de escapar ao reducionismo do
discurso psiquiátrico, desarranjando o dispositivo biomédico e dando suporte à constituição
de lugares e modos criativos de cuidados, que substituam as fábricas de produção e
exclusão dos anormais - historicamente pretos, pobres, dissidentes de gênero e
sexualidade.
Assim, os espaços de EPS e terapêuticos que constituem este projeto visam dar
borda ao singular que se produz nos processos de determinação social da saúde, sem
submetê-lo à captura dos discursos e práticas do biopoder e da necropolítica. Diante das
lógicas de generalização e homogeneização da experiência do sofrimento, nos
posicionamos de modo a sustentar um lugar de experiências onde a clínica, a política e a
educação/formação se encontram e se interrogam para resistirem à individualização dos
problemas sociais e à redução do sujeito à sua doença, alargando os limites instituídos do
cuidado em saúde mental e refazendo seus contornos.

METODOLOGIA

Nesta proposta, o método não é entendido como um conjunto de procedimentos a


priori, independente dos limites e possibilidades que se abrem nos territórios da
intervenção, mas sim como efeito da experiência no campo, que pede lugar de
problematização a partir dos rastros do vivido (Simoni & Rickes, 2008). Deste modo,
partindo da perspectiva ético-metodológica da pesquisa-intervenção (Kastrup & Tedesco,
2014), em que o conhecer se faz no próprio gesto de intervir, busca-se romper com a
tradição do pensamento moderno e colonial que naturaliza, normaliza e essencializa os
“objetos” de conhecimento, especialmente problemática quando se trata do trabalho junto a
populações estigmatizadas (Vidarte, 2019).
As ações do projeto buscarão fomentar, sobretudo, o trabalho em rede, pelo qual se
busca uma mudança institucional (Baremblitt, 2002), uma modificação na atitude dos
profissionais, no sentido de organizarem-se para operarem sincronicamente, com
finalidades comuns. A rede só se efetiva pelo agir em rede, quando há profissionais e
equipes em sincronia, criando condições de obter resultados que, sozinhos, não
alcançariam (BRASIL, 2013). Assim, priorizamos a construção das ações em parceria com
as equipes no sentido do que postula a Política Nacional de Educação Permanente em
Saúde, a qual, como “instrumento viabilizador de análise crítica e constituição de
conhecimentos sobre a realidade local” deve ser executada, adaptando-se aos contextos de
“situações de saúde em cada nível local do sistema de saúde” (BRASIL, p. 10, 2018). Sobre
este solo ético-técnico-político, propomos as seguintes etapas metodológicas para a
intervenção:
1) Apresentação da reedição do projeto com três equipes de centro de atenção
psicossocial de Natal, quais sejam, Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil,
Centro de Atenção Psicossocial ad III Leste e Centro de Atenção Psicossocial III
Leste, bem como com as equipes de Consultório na Rua (Ponta Negra e São João).
2) Levantamento de necessidades das equipes, tanto no que se refere às ações de
educação permanente, quanto no que diz respeito à proposição de novos espaços
de cuidado nos serviços ou no Serviço de Psicologia Aplicada (SEPA) para seus
usuários.
3) Pactuação com as equipes de um Plano de Trabalho e cronograma de ações
envolvendo Educação Permanente em Saúde (rodas de conversa, construção de
casos, oficinas temáticas sobre saúde mental de populações específicas como
negros, mulheres, LGBTQIAPN+) e/ou dispositivos terapêuticos para os usuários
dos CAPS (acolhimentos psicossociais, acompanhamento terapêutico, oficinas
terapêuticas). As ações pactuadas poderão ocorrer tanto no Serviço Escola de
Psicologia como nos Centros de Atenção Psicossocial e espaços de intervenção das
equipes de Consultório na Rua, de acordo com os planejamentos feitos com cada
equipe. Estima-se que os espaços de cuidado (acolhimentos psicossociais,
acompanhamentos terapêuticos e oficinas terapêuticas) tenham frequência semanal
e que os espaços de Educação Permanente em Saúde (rodas de conversa, reuniões
de construção de caso e oficinas temáticas) tenham frequência mensal.
4) Avaliação das ações do Plano de Trabalho com as equipes com as quais foram
pactuadas, o que envolverá visitas aos serviços para o compartilhamento das
experiências do projeto e a construção conjunta de registros que indiquem os
resultados alcançados, as aprendizagens produzidas e prospectem novos caminhos
para as ações pactuadas quando necessário.
Caracterização dos dispositivos de Educação Permanente em Saúde e de Atenção
em Saúde Mental a serem ofertados às equipes:
1) Rodas de conversa: são dispositivos de Educação Permanente em Saúde (EPS)
para, a partir da horizontalidade das relações, “gerar reflexão sobre o processo de
trabalho, autogestão, mudança institucional e transformação das práticas em
serviço, por meio da proposta do aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de
construir cotidianos e eles mesmos constituírem-se como objeto de aprendizagem
individual, coletiva e institucional” (BRASIL, p. 10, 2018). São propostas a partir de
problemáticas específicas do cotidiano de trabalho, como por exemplo dificuldades
no manejo de situações de crise em saúde mental; dificuldades de gerar adesão dos
usuários a espaços grupais ofertados pelo serviço; impasses nas práticas de
acolhimento feitas pela equipe multiprofissional, entre outros. As rodas de conversa
funcionarão segundo os assuntos emergentes na pactuação com o serviço,
seguindo os rastros dos impasses que se colocam no cotidiano de trabalho.
2) Reuniões de construção de caso: referem-se ao princípio de que na clínica
antimanicomial é importante que a equipe esteja trabalhando em uma direção
compartilhada a partir da singularidade de cada caso. A construção do caso é uma
contribuição da psicanálise para o trabalho na atenção psicossocial e, conforme
Figueiredo (2004), refere-se à proposta de partilhar determinados elementos de
cada caso em um trabalho conjunto, coletivo, possibilitando colher das produções do
sujeito narradas pela equipe e da singularidade de seus sintomas uma orientação
clínica para o trabalho. Esta perspectiva se coaduna com o que preconiza a Política
Nacional de Humanização da Atenção no SUS acerca da construção de projetos
terapêuticos singulares como ferramentas de gestão do cuidado (BRASIL, 2013).
3) Oficinas temáticas: como dispositivo de EPS, assemelham-se às rodas de conversa,
com a diferença de funcionam com temáticas definidas a priori, quais sejam, no caso
deste projeto, saúde mental da população negra, saúde mental da população
LGBTQIAPN+ e saúde mental de pessoas em vulnerabilidade social. Trata-se de
partir da experiência cotidiana de cuidado para daí problematizar as especificidades
dos sofrimentos atravessados pelos marcadores sociais da diferença e construir
novas possibilidades de cuidado. Envolvem ainda a socialização de conhecimentos
consolidados nos meios científicos e nas políticas públicas acerca das
particularidades implicadas nos processos de saúde-doença-cuidado destes grupos.
4) Acolhimentos psicossociais: constituem-se em escutas que acolhem a singularidade,
ao atentar aos processos de determinação social da saúde mental, priorizando o
estabelecimento de vínculos e longitudinalidade no cuidado (Brasil, 2013). No caso
deste projeto, se realizará através de acompanhamento psicológico individual,
normalmente, semanal, a usuários de saúde mental cujas vidas sejam atravessadas
por processos de sofrimento que envolvem questões étnico-raciais, de
vulnerabilidade socioeconômica ou de gênero e sexualidade e que tenham sido
encaminhados ao SEPA pelas equipes da RAPS que pactuarem ações do projeto.
5) Acompanhamento terapêutico: é um dispositivo clínico individual com foco na
promoção da autonomia, que opera o cuidado por meio de uma escuta territorial,
que envolve construção de vínculos e redes sócio-afetivas (Palombini, 2019). É uma
importante tecnologia de cuidado nas situações de sofrimento psíquico atravessadas
por marcadores sociais da diferença, como questões raciais, de gênero e
sexualidade e grave vulnerabilidade social, sendo indicado para pessoas que se
encontrem em situação de baixa autonomia e contratualidade nos espaços sociais.
Os atendimentos de saúde mental acontecem em espaços domésticos ou urbanos,
onde acompanhante e acompanhado compartilham situações corriqueiras do
cotidiano, através das quais as intervenções clínicas acontecem.
6) Oficinas terapêuticas: se constituem como espaços coletivos de criação, com foco
em uma modalidade de expressão cultural, como literatura, teatro, música,
artesanato, culinária, etc., objetivando agenciar laços sociais e processos de
transmutação do sofrimento em experiências singulares e coletivas de invenção
(Guerra, 2004). Possibilitam o compartilhamento de experiências, nos quais o
mediador busca fazer circular os lugares de saber e poder, distanciando-se da lógica
clássica da terapia grupal pela qual um especialista maneja o espaço coletivo de
forma a tratar das condições patológicas individuais. As conexões com práticas
culturais demonstram ser potentes no trabalho com grupos historicamente
invisibilizados, inferiorizados e estigmatizados como os que são foco deste projeto.
A equipe executora trabalhará em pequenos grupos em torno dos dispositivos
pactuados nos Planos de Trabalho com os serviços, de forma que os participantes se
envolverão mais diretamente com os espaços de planejamento, supervisão e avaliação
referentes às ações que realizarão. Deste modo, a supervisão e orientação dos alunos
participantes será realizada em pequenos grupos ou individualmente, tendo participantes
mais experientes ocupando a função de supervisão e orientação (colaboradores,
coordenadora e coordenador adjunto e mestrandos). Deste modo, a metodologia de
desenvolvimento do projeto, envolve uma sincronia de trabalho coletivo articulado em rede
(entre os pequenos grupos), tal qual se deseja desenvolver nas equipes com as quais o
projeto será pactuado.
Por fim, prevê-se a realização de um evento acadêmico de compartilhamento das
experiências dos projetos, com participação dos integrantes do mesmo e das equipes de
trabalhadores dos serviços. Neste, os pequenos grupos organizados em torno das ações
realizadas, trarão as aprendizagens e tecnologias de saúde mental produzidas.

RESULTADOS ESPERADOS

Como resultados, espera-se:


1. fortalecer a articulação ensino-serviço preconizada pelo Sistema Único de Saúde,
transformando a formação profissional para efetivar a humanização do SUS;
2. contribuir com a necessária mudança do modelo de atenção em Saúde Mental no
Brasil na direção dos princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial e da
equidade em saúde;
3. fomentar processos formativos singulares e coletivos, qualificando os processos de
trabalho das equipes participantes;
4. produzir conhecimentos e tecnologias de cuidado em saúde mental capazes de
atender as demandas de sofrimento psiquico de populações vulnerabilizadas, tais
como negros, mulheres, pessoas em situação de rua, LGBTQIAPN+, entre outros.

REFERÊNCIAS

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