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RESUMO
O presente projeto de extensão iniciou em 2021 e se apresenta novamente com os
objetivos de construir e compartilhar com os serviços de Atenção Psicossocial do município
de Natal e o Serviços Escola de Psicologia (SEPA) espaços e ações de atenção em saúde
mental e educação permanente em saúde (EPS) com vistas a gestar práticas de cuidado
sensíveis aos marcadores sociais da diferença – raça/cor, classe, geração, gênero e
sexualidades. Considera o momento delicado da construção da Reforma Psiquiátrica
brasileira, marcado por muitos retrocessos no que se refere à perspectiva do cuidado
antimanicomial, cujos efeitos se agravaram com a pandemia de Covid 19 e a crise
econômica e social que a acompanhou. Parte da premissa de que a produção da saúde
numa perspectiva antimanicomial está intrinsecamente relacionada ao princípio da equidade
e, portanto, requer a construção de dispositivos nos quais usuários e trabalhadores de
saúde compõem vivências, saberes e agires para romper com as lógicas
patologizantes/manicomiais/racistas/sexistas/LGBTfóbicas e criam modos de cuidar de si e
dos outros no território. Propõe criar dispositivos de cuidado e formação neste campo,
delineados a partir de demandas específicas de cada serviço/equipe da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) bem como do Serviço Escola de Psicologia – (SEPA/UFRN), tendo
como transversais a dimensão clínico-política da atenção em saúde mental e uma ética do
cuidar como gesto movido singular e coletivamente. Neste sentido, o projeto envolve a
oferta de espaços de Educação Permanente em Saúde (EPS) - rodas de conversa,
reuniões de construção de casos e oficinas temáticas sobre saúde mental de populações
vulneráveis para estudantes e trabalhadores de saúde mental de diversas áreas
profissionais -, e de espaços terapêuticos individuais e coletivos - acolhimentos
psicossociais, acompanhamentos terapêuticos e oficinas terapêuticas para usuários dos
serviços de Atenção Psicossocial e do Serviço Escola de Psicologia. Estima-se a
participação de 40 trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial de Natal, 15 alunos da
UFRN de graduação e pós-graduação e 45 usuários de saúde mental. Como resultados,
espera-se fortalecer a articulação ensino-serviço preconizada pelo Sistema Único de Saúde,
transformando a formação profissional para efetivar a humanização do SUS; contribuir com
a necessária mudança do modelo de atenção em Saúde Mental no Brasil na direção dos
princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial e da equidade em saúde; produzir
conhecimentos e tecnologias de cuidado em saúde mental capazes de atender as
demandas de sofrimento psiquico de populações vulnerabilizadas, tais como negros,
pessoas em vulnerabilidade social, pessoas em situação de rua e LGBTQIAPN+.
JUSTIFICATIVA
OBJETIVOS
Propomos realizar ações de extensão, por meio deste projeto, buscando contribuir
para transformar as práticas de cuidado em saúde mental do município de Natal, num
contexto em que se intensificaram e proliferaram formas de sofrimento psíquico em
decorrência da pandemia de Covid19 e da crise social e econômica que assolou nosso país
nos últimos anos. Tal cenário escancarou a biopolítica (Foucault, 2005) vigente na gestão
das vidas brasileiras que, como nos ensina Mbembe (2019), opera de fato uma
necropolítica. Em referência à construção foucaultiana sobre como o biopoder teve no
Estado Nazista seu ponto culminante (Foucault, 2010), o autor nos remete às câmaras de
gás dos campos de concentração para apontar os processos de desumanização e
industrialização da morte operados pelas racionalidades instrumental, produtiva e
administrativa do mundo ocidental moderno. Políticas cotidianas de morte, instauradas por
um estado de exceção em funcionamento nos interstícios das instituições, que legitima o
“direito” de matar os considerados dispensáveis para os interesses do capital (Mbembe,
2016)
No caso brasileiro, a dura realidade da instalação da pandemia se encontrou com
um cenário estarrecedor de gestão pública após 2016, em que se precarizaram
barbaramente as condições de trabalho e vida da população; se efetivaram cortes de
recursos para as políticas públicas de saúde, educação e assistência social,
consolidando-se um desmonte sem precedentes das políticas de redução das
desigualdades e promoção da equidade, operando-se profundas perdas de direitos sociais
e de cidadania (Cabral & Belloc, 2019). Dimenstein et al. (2021), em estudo sobre a
cobertura da Rede de Atenção Psicossocial em três estados nordestinos, aí incluído o Rio
Grande do Norte, observa que até 2018 houve um importante movimento de interiorização e
expansão da cobertura de serviços de saúde mental e atenção básica, gerando ampliação
da equidade nos territórios de menor desenvolvimento econômico e social - avanços que
foram colocados em cheque pelas políticas de estado mínimo adotadas entre 2016 e 2022.
É neste contexto que a Reforma Psiquiátrica brasileira perde força, instalando-se
retrocessos substantivos no campo da saúde mental como a retomada dos investimentos
em hospitais psiquiátricos e na ambulatorização da assistência em saúde mental, assim
como a ampliação do financiamento de comunidades terapêuticas. O movimento da
Reforma Psiquiátrica iniciou no final dos anos 1970 em favor de uma reformulação das
práticas de atenção em saúde pública no país, com ênfase na saúde mental. No Brasil do
final da ditadura militar, marcada por corrupção, morte e silenciamento e da luta por
redemocratização, surge o movimento da Reforma Sanitária, que permite a criação do
Sistema Único de Saúde através da Constituição de 1988 e a emergência de um Movimento
Nacional intitulado de Luta Antimanicomial.
O significante luta aí comparece para marcar que as transformações almejadas no
campo da atenção à saúde mental não viriam de forma pacífica e consensual, mas
implicariam uma forte disputa entre o modelo manicomial e os processos de reforma, já que,
em última instância, o que está no horizonte é alterar as estruturas da sociedade.
Influenciados pela psicoterapia institucional francesa, pelas experiências de
desinstitucionalização italiana, pelo modelo das comunidades terapêuticas inglesas e pela
psiquiatria preventiva-comunitária norte-americana, o Brasil forjou seu movimento de
Reforma Psiquiátrica como movimento político, social e clínico, na luta pela inclusão do
sujeito, pelo seu direito à cidadania (Tenório, 2001).
Assim, o movimento da luta antimanicomial, que tem como bandeira central o
cuidado em liberdade, busca desmanchar a noção de doença mental, reconectando o que é
reduzido ao signo da loucura e inscrito no interior do indivíduo e da família aos processos
mais amplos e complexos da vida social e política. Ao afirmar a cidadania do “louco”,
buscou-se produzir uma outra resposta coletiva ao sofrimento psíquico, contra a
segregação, exclusão, recusa e silenciamento da diferença (Tenório, 2001). A reforma
psiquiátrica brasileira, em seu caminho já trilhado e horizonte aberto, nos mostra que a
ciência a serviço das forças hegemônicas expropria cotidianamente sujeitos e coletivos de
sua potência de discursivização e gestão, na diferença, da vida singular e coletiva
(Baremblitt, 2002).
Neste processo, a desconstrução do mito da democracia do sofrimento mental – que
atingiria igualmente as pessoas independentemente de classe social, gênero, geração,
raça/cor e etnia – é uma urgente tarefa (Dimenstein, Simoni & Londero, 2020). Tarefa esta
que também assumimos ao propor este projeto de extensão, assumindo o papel da
Universidade de empreender projetos e ações que possam agir para a redução das
desigualdades, a garantia dos direitos humanos e a efetivação do direito à saúde conforme
preconiza a Constituição do país, o que não se faz sem que os determinantes sociais da
saúde mental sejam considerados (Dimenstein, Simoni & Londero, 2020).
Considerando, a exemplo, os marcadores gênero e sexualidade em seus processos
de determinação social da saúde mental, é possível atentar-se aos dados que revelam
acentuadas formas de sofrimento psíquico entre pessoas dissidentes de gênero e
sexualidade, aí incluído o fenômeno do suicídio, recrudescidas no contexto pandêmico e
pós-pandêmico (Oliveira, Carvalho & Jesus, 2020). Contudo, é possível notar uma
saturação metodológica do campo pelo viés quantitativo, capaz de criar uma simplificação
dos processos de adoecimento, cuja consequência seria uma associação rápida entre
“identidade” e sofrimento psíquico e/ou suicídio, conforme nos alerta Baére (2019). Tal
associação não somente contribui para a proliferação de um discurso de individualização de
problemas sociais, em que se afirma que pessoas LGBTQIAPN+ tendem ao adoecimento
psíquico e a tentativas de suicídio por razões individuais, como sobrecodifica a experiência
da dissidência no registro do patológico (Baére, 2019). Assim, embora seja de extrema
importância ter em conta os dados epidemiológicos para a produção científica, as políticas
públicas e o acesso a direitos desta população, também se torna imperativo propor
intervenções capazes de visibilizar as experiências singulares das pessoas dissidentes de
sexualidade e de gênero e seus modos particulares de produzir saúde mental, promovendo
processos de mudança nos modos de atender esta população nos serviços de saúde (Cirilo
Neto et al. 2023).
Ampliando este debate para a problemática das relações entre sofrimento psíquico e
racismo estrutural e institucional, fica evidente como a determinação social da saúde mental
está imbricada com os modos particulares com que se dão as relações étnico raciais no
Brasil. Farias (2018) nos aporta reflexões sobre os efeitos traumáticos do racismo e suas
lógicas de exclusão social e produção de inferioridade, nos remetendo à belíssima obra
“Quarto de Despejo” da escritora Carolina Maria de Jesus. Esta nos conta dos efeitos
materiais e psíquicos dos ambientes de pobreza, exclusão social e invisibilidade em que
habitam a maioria dos negros em nosso país e nos quais as dinâmicas de submissão,
opressão e violência permanecem operando.
Tendo em conta os dados como o do IBGE de 2014, quando a população negra
figura em maioria de 76% entre os mais pobres, a autora destaca as produções do
sofrimento psíquico atravessadas pelas dimensões social/material dessa população,
alertando para as dificuldades em se constituir como sujeito em uma sociedade onde o
referencial é sempre o branco (Farias, 2018). O sofrimento se dá diante da ameaça de
aniquilamento, a dor é a de não existir, o contexto que é o de não-pertencimento, tendo em
vista os pactos sociais da branquitude (Bento, 2022).
Cida Bento refere que os pactos de branquitude estruturam nossas relações com as
instituições, reforçando o mito da democracia racial, pelo qual nosso país seria livre de
racismo e haveria igualdade de condições de vida e de acesso direitos para as pessoas,
independentemente de sua raça/cor. A autora aponta que tais pactos dizem de uma “a
aliança que expulsa, reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e
recordado pelo coletivo” (Bento, 2022, p. 25), relegando ao esquecimento a escravização de
negros e o genocídio de indígenas. É contra esses pactos narcísicos da branquitude que se
busca operar, ao propor intervenções que possam “debater e resolver o que ficou no
passado, para então construir uma outra história e avançar para outros pactos civilizatórios”
(ibidem), o que envolve sobremaneira a busca de garantia do direito à atenção integral em
saúde, contra a criminalização e patologização dos corpos negros.
Desta feita, entendendo que não há ato terapêutico que não revele uma posição no
laço social e, portanto, que não seja de natureza ético-política, este projeto se nomeia
(com)posições do cuidado na Rede de Atenção Psicossocial. As posições de que ele se
compõe são éticas e políticas e afirmam a necessidade de escapar ao reducionismo do
discurso psiquiátrico, desarranjando o dispositivo biomédico e dando suporte à constituição
de lugares e modos criativos de cuidados, que substituam as fábricas de produção e
exclusão dos anormais - historicamente pretos, pobres, dissidentes de gênero e
sexualidade.
Assim, os espaços de EPS e terapêuticos que constituem este projeto visam dar
borda ao singular que se produz nos processos de determinação social da saúde, sem
submetê-lo à captura dos discursos e práticas do biopoder e da necropolítica. Diante das
lógicas de generalização e homogeneização da experiência do sofrimento, nos
posicionamos de modo a sustentar um lugar de experiências onde a clínica, a política e a
educação/formação se encontram e se interrogam para resistirem à individualização dos
problemas sociais e à redução do sujeito à sua doença, alargando os limites instituídos do
cuidado em saúde mental e refazendo seus contornos.
METODOLOGIA
RESULTADOS ESPERADOS
REFERÊNCIAS
Brasil. Ministério da Saúde. (2013) Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica
e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília: Editora do Ministério
da Saúde. Disponível em: Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (saude.gov.br)
Brasil. Ministério da Saúde. (2017) Política Nacional de Saúde Integral da População Negra:
uma política para o SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e
Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. – 3. ed. –
Brasília : Editora do Ministério da Saúde. Disponível em: Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra : uma política para o SUS (saude.gov.br)
Dimenstein, M., Simoni, A. C. R., Macedo, J. P., Nogueira, N., Barbosa, B. C. N. S., Silva, B.
Í. do B. de M., Amaral Filho, J. B. do ., Silva, R. C. de A., Liberato, M. T. C., Prado, C. L. do
C., Leão, M. V. A. S., Quinto, B. A., & Soares, L. F.. (2021). Equidade e acesso aos cuidados
em saúde mental em três estados nordestinos. Ciência & Saúde Coletiva, 26(5),
1727–1738. https://doi.org/10.1590/1413-81232021265.04912021
Fanon, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.
Foucault, M. (2017) História da sexualidade: o uso dos prazeres. São Paulo: Paz e Terra.
Preciado, P. B. (2022). Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de
psicanalistas. Rio de Janeiro: Zahar.
Vidarte, P. Ética bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1
edições, 2019.