NOVO

ENSINO Atualidades
MÉDIO e Geopolítica

Organização: Editora Núcleo

1a edição
Editora Núcleo

1
São Paulo
 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

            Novo ensino médio : atualidades e geopolítica 1 /

              organização Editora Núcleo. – – 1. ed. – –
              São Paulo : Editora Núcleo, 2024.

              ISBN 978-65-5005-109-9

              
1. Geopolítica (Ensino médio)

23-174626                    
CDD-320.1207

Índices para catálogo sistemático:

              1. Geopolítica : Ensino médio    320.1207

Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427

Todos os direitos reservados

EDITORA NÚCLEO

0800 727 8080

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio, sem a permissão
expressa e por escrito dos seus titulares. A inobservância desta cláusula sujeita o infrator às penas
previstas em Lei.

001-096_EMS-1_T_AG-1_24.indd 2 05/10/2023 11:28:56

ATUALIDADES
E GEOPOLÍTICA

1
ENSINO MÉDIO
SUMÁRIO
Aula 1 – A primeira Constituição do Brasil........................................................ 5
Aula 2 – Constituições do Período Republicano (I) ......................................... 8
Aula 3 – Constituições do Período Republicano (II) ...................................... 12
Aula 4 – Recursos naturais: água (I).................................................................. 15
Aula 5 – Recursos naturais: água (II) ................................................................ 18
Aula 6 – Recursos naturais: energia (I) ............................................................ 21
Aula 7 – Recursos naturais: energia (II) .......................................................... 24
Aula 8 – Serviços públicos: saúde pública (I) ................................................ 28
Aula 9 – Serviços públicos: saúde pública (II) ................................................ 31
Aula 10 – Serviços públicos: educação (I) ........................................................ 35
Aula 11 – Serviços públicos: educação (II) ....................................................... 38
Aula 12 – Serviços públicos: segurança pública (I) ........................................ 41
Aula 13 – Serviços públicos: segurança pública (II)...................................... 44
Aula 14 – Tecnologia: cibersegurança (I) .......................................................... 48
Aula 15 – Tecnologia: cibersegurança (II) .......................................................... 52
Aula 16 – Tecnologia: cibersegurança no Brasil .............................................. 55
Aula 17 – Meio ambiente: Amazônia (I) ............................................................. 58
Aula 18 – Meio ambiente: Amazônia (II) ............................................................. 61
Aula 19 – Israel e a Questão Palestina (I) ......................................................... 64
Aula 20 – Israel e a Questão Palestina (II) ........................................................ 66
Aula 21 – Israel e a Questão Palestina (III)........................................................70
Aula 22 – Israel e a Questão Palestina (IV) ....................................................... 73
Aula 23 – Questão da Ucrânia (I) .......................................................................... 76
Aula 24 – Questão da Ucrânia (II) ......................................................................... 79
Aula 25 – Questão da Ucrânia (III) ...................................................................... 83
Aula 26 – Semicondutores (I) ............................................................................... 86
Aula 27 – Semicondutores (II) .............................................................................. 90
Aula 28 – Semicondutores (III) ............................................................................. 94
230
 A primeira Constituição
do Brasil
Introdução
Antes de iniciarmos nosso estudo das constituições bra-
sileiras, convém diferenciar as duas acepções do termo.
Historicamente, o que se entende pela Constituição
de uma sociedade é a forma característica das suas insti-
tuições. Nesse sentido, a constituição é uma descrição em
linhas gerais do comportamento e das relações entre as
pessoas e grupos de pessoas que participam da organiza-
ção social. Segundo essa definição, uma constituição inclui
todos os fatos de origem social que são importantes para
o funcionamento da sociedade, ou seja, uma descrição da
sua estrutura e do seu funcionamento.
Atualmente, porém, muitos juristas preferem uma
definição mais restritiva de constituição. Segundo eles,
a palavra constituição é um termo técnico que descreve
um pacto entre um soberano e uma população. Esse pac-
to também deve incluir uma descrição do uso legítimo do
poder político e a garantia de certos direitos fundamentais.
Vejamos esses requerimentos um a um:
1. A constituição é um pacto.
A constituição de um país é um acordo mútuo entre
a população e o soberano, em que ambos os lados
aceitam as estipulações constitucionais decididas por
algum processo de negociação.
2. A constituição delimita o exercício legítimo
do poder.
Em um estado constitucional há regras claras para o
exercício do poder. A constituição estipula mecanis-
mos de contenção do poder para que esse seja exer-
cido apenas em situações e de formas determinadas
previamente. O objetivo desse arranjo é tornar o po-
der previsível e eliminar o arbítrio.
3. A constituição garante direitos fundamentais.
Um certo número de relações específicas entre mem-
bros da sociedade é garantido pelo poder do Estado.
Por exemplo, o direito à propriedade estipula o reco-
nhecimento por parte de todos os outros membros do
corpo social de que um determinado bem pertence
exclusivamente a um outro membro dessa sociedade.
O Estado se compromete a garantir a observação desse
e de outros direitos.
A discussão posterior irá lidar predominantemente
com essa segunda acepção, e tem por base o exame das di-
versas estipulações legais contidas nas constituições brasi-
leiras. Para tanto, é conveniente fazer primeiro um exame
prévio das instituições e interpretações políticas dos cons-
tituintes. Neste texto, trataremos brevemente deste tema,
relembrando alguns aspectos da filosofia política do Antigo
Regime e do Iluminismo. Logos após esse breve desvio, in-
dicaremos os conflitos e os acordos que estão na origem da
primeira Constituição brasileira: a Constituição do Império.
230
1
aula
A Independência do Brasil
O processo de Independência do Brasil foi precipitado
por dois eventos inter-relacionados: a vinda da família real
portuguesa ao Brasil em 1808, e a Revolução Liberal do
Porto de 1820. O primeiro desses eventos não só conven-
ceu a elite brasileira da sua importância dentro do Império
Português, como também construiu toda uma estrutura
administrativa que seria herdada pelo governo nacional. A
Revolução do Porto, por outro lado, impôs à família real
portuguesa um sério revés, forçando-a a buscar alternati-
vas caso não quisesse ser apeada da soberania do Império.
Juntos esses dois eventos determinaram os interesses de
D. Pedro de Alcântara e os alinharam aos dos patriotas bra-
sileiros. A Independência do Brasil contemplaria os inte-
resses de ambos, e a Constituição do novo país refletiria o
acordo e a tensão entre a elite brasileira e D. Pedro I.
Os brasileiros conheciam e se inspiravam nas novas
ideias iluministas, mas entendiam a dificuldade de garan-
tir a integridade e a legitimidade do novo Estado brasileiro
sem associá-lo ao poder real e à dinastia de Bragança. A
solução escolhida foi a de uma Monarquia Constitucional
cuja Assembleia Constituinte teve lugar em 1823, um ano
após a declaração da Independência do Brasil. Devido a
conflitos entre as aspirações liberais da Assembleia e os
desejos do imperador e do círculo de políticos que o apoia-
va, a Assembleia Constituinte foi dissolvida e um projeto
do Conselho de Estado outorgado pelo imperador tomou
seu lugar.
A função da Constituição brasileira de 1824 era equi-
librar a soberania da dinastia de Bragança com os mesmos
princípios liberais que a ameaçavam em Portugal. Esse
conflito fundamental teria de ser administrado por meio de
um delicado equilíbrio entre os poderes constitucionais. O
princípio da Divisão de Poderes permitia, em tese, a har-
monia entre a soberania imperial, fundamentada no prin-
cípio hereditário, e o governo liberal de caráter represen-
tativo. A peça-chave desse arranjo era o Poder Moderador,
que permitia ao imperador do Brasil intervir no governo
de forma indireta, alterando os integrantes dos ministérios,
assembleias e tribunais.
A administração direta, no entanto, ficava reservada
aos outros poderes; o imperador não era autorizado a le-
gislar ou emitir decretos e dividia o Poder Legislativo com
a Assembleia Geral cujas leis sancionava. Apesar disso, a
influência do imperador não se expressava somente por
meios formais, e residia também no prestígio atribuído aos
senadores e ministros que escolhia. Dessa forma, a Cons-
tituição de 1824 concedia amplo espaço à atividade impe-
rial, o que se nota inclusive pela diferença entre os reinados
de D. Pedro I e o de seu filho, D. Pedro II.
Atualidades e Geopolítica 5
 Outro aspecto interessante na Constituição de 1824 é
a participação dos cidadãos no governo. Embora ela faça
referência aos súditos do imperador, o Império do Brasil
é definido como “a associação política de todos os cida-
dãos brasileiros”. A participação no governo era dividida
por um critério censitário, ficando limitada a certos cida-
dãos divididos de acordo com sua renda anual. O proble-
ma da eleição de representantes foi amplamente debatido
durante os séculos XVIII e XIX, quando era tratado como
uma tentativa de reconciliar o número dos eleitores com
a sua competência. Durante as deliberações seguintes à
Revolução Francesa em 1789, o abade Sieyès defendeu
com sucesso a ideia da necessidade de uma contribuição
financeira para participação nas eleições. Segundo ele e
seus apoiadores, há uma diferença entre os direitos civis e
os direitos políticos dos cidadãos. Sieyès argumentava que
embora todos os cidadãos devam gozar de direitos civis,
apenas àqueles que verdadeiramente contribuíam com a
sustentação da coisa pública deveriam gozar de direitos
políticos. Assim, a Constituição de 1824 faz referência aos
cidadãos ativos, isto é, àqueles que gozam de seus direitos
políticos, em relação aos cidadãos passivos, que não par-
ticipavam do sufrágio. À época, o critério principal era a
autonomia do indivíduo, isto é, consideravam-se cidadãos
ativos aqueles que não dependiam socialmente de outrem.
Esse critério excluía os jovens, as mulheres, os escravizados,
e os indigentes, além daqueles sob sanção penal.
A Constituição de 1824
Instituída no ano de 1824, a Constituição foi o docu-
mento fundador do Império do Brasil, estabelecendo um
regime de monarquia hereditária constitucional e represen-
tativa. O tecido constitucional delineava a organização dos
poderes do Estado, bem como garantia direitos e deveres
aos cidadãos.
O Poder Executivo, sob a liderança do imperador e
seus ministros, era incumbido de gerir as operações do go-
verno. Eles eram responsáveis pela seleção de ministros e
outros oficiais do governo, pelo gerenciamento de relações
exteriores, além da preservação da segurança interna e
manutenção da ordem.
O Poder Legislativo, composto por duas câmaras – a
Câmara dos Deputados e o Senado – assumia o papel de
legislar, coletar impostos e administrar os recursos da nação.
Mesmo sem legislar diretamente, o imperador desempe-
nhava uma função importante ao aprovar as leis redigidas
pelo Legislativo.
Já o Poder Judiciário, composto por juízes e jurados,
possuía uma estrutura complexa que abrangia a Suprema
Corte de Justiça, juízes de direito e juízes de paz, consoli-
dando a aplicação da justiça no Império.
A Constituição garantia aos cidadãos do Império do
Brasil, com poucas exceções, direitos civis e políticos. Esses
direitos, entretanto, poderiam ser suspensos em situações es-
pecíficas, como incapacidade física ou moral, ou como con-
sequência de uma sentença condenatória. Direitos como a
propriedade, com restrições apenas em casos de necessida-
de pública, e a liberdade de expressão e publicação, sujeita à
responsabilização por abusos, estavam assegurados.
6 Atualidades e Geopolítica
Contudo, a participação no governo era restrita por
critérios de renda, estabelecendo uma divisão entre ci-
dadãos ativos, aqueles que detinham pleno gozo de seus
direitos políticos, e cidadãos passivos, que eram excluídos
do direito ao sufrágio.
O Império Brasileiro tinha uma religião oficial, a Cató-
lica Apostólica Romana, mas a prática de outras religiões
era permitida em âmbito privado. Para além de questões
religiosas, a Constituição de 1824 tinha uma visão progres-
sista na educação, garantindo educação primária gratuita
para todos os cidadãos e estabelecendo a criação de colé-
gios e universidades voltadas para a instrução em ciências,
artes e letras.
Exercícios
1. (Enem) Art. 90. As nomeações dos deputados e sena-
dores para a Assembleia Geral, e dos membros dos Con-
selhos Gerais das províncias, serão feitas por eleições,
elegendo a massa dos cidadãos ativos em assembleias
paroquiais, os eleitores de província, e estes, os repre-
sentantes da nação e província. Art. 92. São excluídos
de votar nas assembleias paroquiais: I. Os menores de
vinte e cinco anos, nos quais se não compreendem os
casados, os oficiais militares, que forem maiores de vin-
te e um anos, os bacharéis formados e os clérigos de
ordens sacras. II. Os filhos de famílias, que estiverem
na companhia de seus pais, salvo se servirem a ofícios
públicos. III. Os criados de servir, em cuja classe não
entram os guarda-livros, e primeiros caixeiros das ca-
sas de comércio, os criados da Casa Imperial, que não
forem de galão branco, e os administradores das fazen-
das rurais e fábricas. IV. Os religiosos e quaisquer que
vivam em comunidade claustral. V. Os que não tiverem
de renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz,
indústria, comércio ou emprego.
Adaptado de Brasil. Constituição de 1824.
Disponível em: <www.planalto.gov.br>.
Acesso em: 04 abr. 2015.
De acordo com os artigos do dispositivo legal apresen-
tado, o sistema eleitoral instituído no início do Império
é marcado pela(o):
a) representação popular e sigilo individual.
b) voto indireto e perfil censitário.
c) liberdade pública e abertura política.
d) ética partidária e supervisão estatal.
e) caráter liberal e sistema parlamentar.
2. (Vunesp) A primeira Constituição brasileira, de 1824, foi:
a) aprovada pela Câmara dos Deputados e estabeleceu
o voto censitário.
b) imposta por Portugal e determinou o monopólio por-
tuguês do comércio colonial.
c) outorgada pelo imperador e definiu a existência de
quatro poderes.
d) promulgada por uma Assembleia Constituinte e con-
centrou a autoridade no Poder Executivo.
e) determinada pela Inglaterra e estabeleceu o fim do
tráfico de escravos.
230
 3. (Enem) Art. 92. São excluídos de votar nas assembleias
paroquiais: I. Os menores de vinte e cinco anos, nos
quais se não compreendem os casados, os oficiais milita-
res, que forem maiores de vinte e um anos, os bacharéis
formados e os clérigos de ordens sacras. IV. Os religiosos
e quaisquer que vivam em comunidade claustral. V. Os
que não tiverem de renda líquida anual cem mil réis por
bens de raiz, indústria, comércio ou emprego.
Adaptado de Constituição Política do Império do
Brasil (1824). Disponível em: <https://legislacao.
planalto.gov.br>. Acesso em: 27 abr. 2010.
A legislação espelha os conflitos políticos e sociais do
contexto histórico de sua formulação. A Constituição
de 1824 regulamentou o direito de voto dos “cidadãos
brasileiros” com o objetivo de garantir:
a) o fim da inspiração liberal sobre a estrutura política
brasileira.
b) a ampliação do direito de voto para maioria dos bra-
sileiros nascidos livres.
c) a concentração de poderes na região produtora de
café, o Sudeste brasileiro.
d) o controle do poder político nas mãos dos grandes
proprietários e comerciantes.
e) a diminuição da interferência da Igreja Católica nas
decisões político-administrativas.
230
4. (Vunesp) No que dizia respeito ao Estado a ser constituí-
do, genericamente o modelo disponível era aquele que
prevalecia no mundo ocidental. Tratava-se de organizar
um aparato político-administrativo com jurisdição sobre
um território definido, que exercia as competências de
ditar as normas que deveriam regrar todos os aspectos
da vida na sociedade, cobrar compulsoriamente tributos
para financiá-lo e às suas políticas, exercer o poder pu-
nitivo para aqueles que não respeitassem as normas por
ele ditadas.
Miriam Dolhnikoff. História do Brasil Império, 2019.
O texto refere-se à organização política do Brasil após
a independência, em 1822. O novo Estado brasileiro
foi baseado em padrões:
a) federalistas e garantia completa autonomia às pro-
víncias.
b) liberais e contava com sistema político representativo.
c) absolutistas e fundava-se no exercício dos três Po-
deres pelo imperador.
d) elitistas e era controlado apenas pelos portugueses
residentes no país.
e) democráticos e permitia a ampla participação da po-
pulação brasileira.
Atualidades e Geopolítica 7
 Constituições do Período
2
au la Republicano (I)
Primórdios do Período
Republicano
A história do Período Republicano no Brasil é marca-
da por uma sucessão de crises e transições entre modelos
de governo. A rápida transformação do país, assim como
os distúrbios ocorridos no fim do século XIX e início do
século XX, produziram um caleidoscópio de teorias e opi-
niões a respeito do futuro da sociedade brasileira. Ao mes-
mo tempo, entre as reviravoltas constantes, é possível ve-
rificar certas linhas de continuidade que refletem o caráter
e a estrutura da nossa sociedade.
A Constituição de 1824, escrita em uma tentativa de
conciliar os interesses da família real com os da elite brasi-
leira, adotara uma redação favorável aos ideais liberais, mas
preservando dispositivos de controle e influência nas mãos
da família imperial. Apesar da relativa estabilidade do reinado
de D. Pedro II, esse arranjo constitucional começou a se des-
fazer no esteio de uma série de crises envolvendo diferentes
correntes da elite brasileira. Nesse ambiente conturbado, os
conflitos entre a Igreja Católica e a maçonaria, entre aboli-
cionistas e escravocratas, e as incertezas acerca do status das
forças armadas provocaram a queda da monarquia.
O cenário que se sucedeu foi caracterizado pela frag-
mentação política, afinal afora o repúdio à monarquia, as
diferentes correntes de oposição ao trono pouco concor-
davam entre si. Dos republicanos históricos do Manifesto
de 1870 aos positivistas desejosos de uma ditadura cientí-
fica não havia certezas além da necessidade de mudança
no regime. Ao mesmo tempo, alguns grupos ainda apoia-
vam o regime monárquico, entre eles os partidários de
Afonso Celso, o visconde de Ouro Preto, último presidente
de Gabinete do Império. Apoiavam-no também os liber-
tos integrantes da Guarda Negra da Redentora, um grupo
de capoeiristas que se dispunham a proteger o reinado da
princesa Isabel e confrontar os republicanos.
A Constituição de 1891
Bem contados os partidários das diferentes facções,
os republicanos eram a minoria da opinião pública. Ape-
sar disso, eles dispunham de um trunfo: a adesão dos mi-
litares. Embora não houvesse entre eles uma figura caris-
mática capaz de liderar o movimento junto ao público, a
debilidade da monarquia permitiu que Marechal Deodoro
da Fonseca extinguisse o Império com uma mera procis-
são. A república foi proclamada provisoriamente em 15 de
novembro de 1889, por meio do Decreto no 1 do mesmo
ano. Em seu artigo 4o, o decreto estabelecia que antes de
se proceder à elaboração de uma Constituição, a nação se-
ria regida pelo Governo Provisório da República, sendo os
estados administrados pelos governos neles proclamados,
ou por governadores delegados pelo Governo Provisório.
8 Atualidades e Geopolítica
Assim como durante o processo de independência, entre
a proclamação da república e a promulgação da Constitui-
ção de 1891, transcorreu um período em que o Brasil foi
governado por decretos.
Naturalmente, essa prática era motivo de muita an-
siedade entre os membros da elite brasileira, desdenhosa
das repúblicas sul-americanas pela instabilidade de seus
governos. Os receios eram justificados, e se agravaram de-
vido a atos como a edição do Decreto no 7, que permitia
ao Governo Provisório ampliar ou suprimir os poderes dos
governos estaduais. Respondendo a esses anseios, a Co-
missão de Petrópolis foi formada para elaborar um ante-
projeto para a Constituição, que foi finalmente promulgada
cerca de um ano depois, em 24 de fevereiro de 1891.
A principal inovação da Constituição de 1891 foi a
mudança de regime, do monárquico para o republicano,
transferindo a soberania do país da dinastia de Bragança
para a nação brasileira. Da mesma forma, a instituição da
federação prometia às antigas províncias a condição de
estado, concedendo-lhes maior autonomia, mas exigindo
delas o custeio de sua própria administração, o que se re-
velaria difícil na prática. Por fim, uma diferença fundamen-
tal entre as Constituições de 1824 e 1891, é a ausência de
um poder capaz de dissolver o Congresso Nacional nesta
última, inaugurando um modelo institucional inspirado no
presidencialismo dos Estados Unidos da América.
A Constituição de 1934
No início do século XX, transformações sociais desen-
cadearam conflitos entre o setor cafeeiro e as emergentes
classes médias urbanas, aliadas políticas das forças arma-
das. Após as eleições de 1910, as elites paulista e minei-
ra foram compelidas a redefinir os termos de sua aliança.
Simultaneamente, as elites do Rio Grande do Sul também
se fortaleceram internamente, alinhando-se a grupos polí-
ticos influentes nas principais cidades de país.
Esse conflito veio à tona na eleição presidencial de
1930, marcada por alegações de fraude de ambos os can-
didatos: Getúlio Vargas e Júlio Prestes. Após a vitória de
Prestes, Vargas contestou o resultado. O apoio das forças
armadas e de greves no Sul e no Nordeste do país, forçou
Júlio Prestes a aceitar a deposição por uma junta militar,
permitindo a Getúlio Vargas assumir a presidência em 3 de
novembro de 1930.
Um Governo Provisório de tendência centraliza-
dora foi estabelecido, gerando amplo descontentamen-
to popular em São Paulo, e desencadeando a Revolução
Constitucionalista de 1932. Apesar de não contar com
o apoio de outros estados, a revolução marcou a impor-
tância da participação paulista no governo do país. Com
o intuito de apaziguar o país, o Governo Provisório con-
vocou eleições para a Assembleia Constituinte em 1933.
230
As elites regionais venceram amplamente nas urnas, e
após alguns meses de debate, foi promulgada a Constitui-
ção de 1934, combinando diversas influências culturais do
início do século XX, ela foi pautada pela desilusão com o
paradigma liberal clássico, pelos conflitos sociais urbanos,
e por um distinto teor nacionalista e corporativista.
Os três poderes tiveram modificações significativas. No
Legislativo, as duas câmaras passaram a operar em conjunto.
O Judiciário expandiu sua abrangência, incorporando a justi-
ça eleitoral, segregando a justiça militar das forças armadas,
e mantendo a justiça federal. No Executivo, a principal alte-
ração foi a capacidade de nomear interventores federais para
os estados, o que comprometeu o princípio federativo.
As garantias individuais, como o direito de proprieda-
de, a liberdade de associação e de expressão, também foram
modificadas. Restrições foram impostas ao direito de proprie-
dade, permitindo a expropriação em certas condições e por
interesse social ou coletivo. Recursos naturais como minas,
jazidas minerais e quedas d’água foram nacionalizados.
A Constituição estipulou também que a produção
nacional e as relações de trabalho estariam sujeitas a in-
tervenção federal, especialmente em setores estratégicos.
Finalmente, o governo passou a regular a associação de
trabalhadores em sindicatos, cuja atuação dependia do
reconhecimento governamental.
Os direitos sociais incluídos apresentaram um cará-
ter ambíguo, visto que a garantia de condições de trabalho
dignas e saudáveis estava vinculada ao controle gover-
namental dos sindicatos. Da mesma forma, a instituição
do ensino primário obrigatório foi atrelada à supervisão
governamental do conteúdo educacional.
Constituição de 1937
A Constituição de 1934 durou pouco. Diversos seto-
res da sociedade brasileira tornaram-se mais radicais, in-
fluenciados pelos movimentos intelectuais e acontecimen-
tos internacionais da década de 1930. A Ação Integralista
Brasileira (AIB) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB)
ganharam relevância, o que causou desconfiança de in-
terferência estrangeira e levou à formação de um núcleo
conservador no governo federal.
Confrontos violentos e greves envolvendo integralistas e
comunistas resultaram na autorização parlamentar de medi-
das repressivas, originando a Lei de Segurança Nacional. Em
1935, a Aliança Libertadora Nacional (ALN), partido com en-
foque nacionalista, alcançou projeção nacional, mas provocou
alarme no governo, culminando em medidas para seu encer-
ramento. No mesmo ano, o PCB tentou dar um golpe militar,
resultando em ampla repressão aos comunistas e apoio do
Congresso à criação do Tribunal de Segurança Nacional.
Durante 1936, surgiram candidaturas presidenciais,
mas nenhuma delas tinha o apoio das elites governistas.
Em 1937, a descoberta do chamado Plano Cohen, um su-
posto plano comunista para uma revolução no Brasil, foi
usada pelo governo para justificar um novo golpe de Estado
e a instauração do Estado Novo.
A Constituição de 1937 oficializou as pretensões au-
toritárias do governo. Previa um legislativo bicameral,
com deputados da Câmara eleitos pelo povo e membros
do Conselho Federal eleitos pelos estados, acrescidos de
mais 10 membros escolhidos pelo presidente da República.
230
No entanto, após o golpe de 1937, o Parlamento Nacional
nunca foi convocado. O Poder Judiciário sofreu alterações
e o Poder Executivo ganhou a prerrogativa de editar e pu-
blicar leis através do artigo 180 da Carta.
O Estado Novo
O Estado Novo tinha como base de apoio o operaria-
do urbano, a burocracia civil e as Forças Armadas. Getúlio
Vargas promoveu medidas específicas para cada um desses
grupos, enquadradas num plano de modernização e indus-
trialização do Brasil. As ofertas do governo aos operários e
trabalhadores da indústria incluíam melhores condições de
trabalho e influência política para as lideranças sindicais. Já
a burocracia civil e os profissionais liberais buscavam esta-
bilidade e modernização social e política, alinhando-se com
as intenções modernizadoras do Estado Novo. Finalmente,
os militares reivindicavam investimentos em equipamentos e
autonomia industrial. A maioria desses grupos, assim como
os integralistas, eram favoráveis à repressão ao comunismo.
Essa configuração estável foi desafiada pelas dinâmi-
cas geopolíticas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A
aliança do Brasil com os países ocidentais e a União Soviética
contra as potências fascistas levou a uma crise de legitimi-
dade do Estado Novo, cujas semelhanças com o fascismo,
especialmente na legislação trabalhista e na organização
legislativa, foram amplamente exploradas pela oposição
a partir de 1943. O clamor crescente por liberdade de ex-
pressão e associação acabou culminando no Ato Adicional
à Carta de 1937, estabelecendo um prazo para novas elei-
ções gerais. Em 1945, surgiram os três partidos principais:
a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social
Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Após a renúncia de Vargas, a primeira eleição sem sua
participação foi vencida por Eurico Gaspar Dutra, do PSD,
que, no entanto, contou com o apoio do agora senador
Getúlio Vargas. Apesar da ruptura com o regime anterior,
o apoio de muitos setores da sociedade e líderes políticos
garantiram a continuidade da influência varguista. A nova
Assembleia Constituinte foi composta principalmente por
membros recém-eleitos do congresso do PSD e da UDN,
além de membros do PTB e outros partidos.
A Constituição de 1946
A Assembleia Constituinte de 1946 buscou restaurar
o status quo anterior ao golpe de 1937, resultando em uma
Constituição que se assemelhava em vários aspectos às
constituições anteriores. Tomando emprestada a linguagem
e organização do texto de 1891, ela também incorporou as
cláusulas trabalhistas e as preocupações com a soberania
nacional e a modernização do país do texto de 1934.
O novo regime caracterizou-se por um caráter liberal-
-democrático, mantendo a república federativa presiden-
cialista e garantindo os direitos individuais. A Constituição
de 1946 também deu atenção à esfera local e à represen-
tatividade, redistribuindo a arrecadação para beneficiar os
municípios e restabelecendo a Justiça Eleitoral. A represen-
tação classista no Congresso foi eliminada, enfraquecendo
o corporativismo do Estado Novo.
Atualidades e Geopolítica 9
 No entanto, algumas outras disposições do Estado
Novo foram mantidas, como o imposto sindical e a estru-
tura dos sindicatos. Em termos sociais, os direitos traba-
lhistas e a previdência social foram mantidos na Constitui-
ção, embora as greves tenham sido declaradas ilegais na
maioria dos setores econômicos.
Exercícios
1. [...] até 1891, ano da promulgação da primeira Constituição
republicana, todo o controle sobre a vida civil estava, na
prática, a cargo da Igreja Católica. Essa instituição produ-
zia e controlava os registros de nascimento, casamento e
morte. No caso do casamento, por exemplo, embora hou-
vesse duas legislações em vigor sobre o assunto, uma civil
e outra eclesiástica, apenas esta última era considerada
legítima. [...] tanto para protestantes quanto para judeus,
não havia, durante a vigência do Império, qualquer tipo de
registro civil de nascimento ou casamento. As uniões en-
tre dois cônjuges não católicos simplesmente não tinham
qualquer valor legal, nem pela Igreja, nem pela legislação
civil. [...]. Mas a grande questão era: como legislar sobre
os bens? [...] A opção, nesse caso, seria fazer o casamento
em outro país, já que ele teria que ser aceito segundo as
normas de direitos internacional.
Keila Grinberg. Código civil e cidadania.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 37, 39.
Assinale a alternativa correta referente às alterações
da ordem legal brasileira efetuadas pela Constituição
de 1891:
a) Inspirada pelo socialismo, a Constituição de 1891
reconheceu a liberdade de culto aos praticantes de
todas as religiões, regularizando a legislação sobre
bens e heranças para protestantes e judeus.
b) As alterações no tratamento da religião contidas na
Constituição de 1891 não influenciaram o ordena-
mento civil, visto que a Primeira República reconhecia
a separação entre Estado e religião.
c) A Constituição de 1891, elaborada com base nos prin-
cípios positivistas, reconhecia como oficiais todas as
religiões e credos em prática no território brasileiro, o
que ajudou na regularização civil dos protestantes e
dos judeus.
d) Diferentemente da anterior, a Constituição de 1891
reconhecia os ritos de matrimônio de todas as reli-
giões, simplificando a documentação e a contratação
entre protestantes e judeus.
e) Até o ano de 1891, a Constituição brasileira atrelava
aspectos da legislação civil à prática da religião Ca-
tólica, dificultando a documentação e a transferência
de bens entre fiéis de outros credos.
De que maneira as políticas e as mudanças jurídico-
-institucionais implementadas pelo governo de Getúlio
Vargas nas décadas de 1930-1940 responderam às
lutas e às reivindicações dos trabalhadores?
a) A criação do Ministério do Trabalho garantiu ao ope-
rariado urbano e aos trabalhadores rurais liberdade e
autonomia para organizar suas atividades sindicais.
b) A legislação do trabalho e previdência passou a im-
pedir que imigrantes substituíssem brasileiros natos
no serviço público, na indústria, no comércio e na
agricultura.
c) A Justiça do Trabalho passou a arbitrar os conflitos
entre capital e trabalho e, sistematicamente, a apu-
rar e punir os casos de trabalho escravo e infantil no
interior do país.
d) A legislação e as instituições criadas atendiam às
reivindicações dos trabalhadores urbanos, mas
dentro de estruturas jurídicas e sindicais tuteladas
e corporativistas.
e) A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) suprimiu
o arbítrio oficial dos empresários e fazendeiros sobre
as atividades políticas de operários e camponeses.
3. (Vunesp) A deposição de Getúlio Vargas é o fim do regime
excepcional estabelecido em 10 de novembro de 1937. [...]
O governo passa ao Judiciário. O presidente José Linhares
esclarece melhor o quadro, com a Lei Constitucional no 13,
de 12.11.1945, estabelecendo que “os representantes elei-
tos a 2 de dezembro de 1945 para a Câmara dos Deputados
e o Senado Federal reunir-se-ão no Distrito Federal, sessen-
ta dias após as eleições, em Assembleia Constituinte [...]”.
Francisco Iglésias. Constituintes e
constituições brasileiras, 1965.
a) Indique qual foi o “regime excepcional estabelecido
em 10 de novembro de 1937” e cite uma caracterís-
tica da Constituição que esse regime gerou.

2. (Enem) De março de 1931 a fevereiro de 1940, foram

decretadas mais de 150 leis novas de proteção social e
de regulamentação do trabalho em todos os setores. To-
das elas têm sido simplesmente uma dádiva do governo.
Desde aí, o trabalhador brasileiro encontra nos quadros
gerais do regime o seu verdadeiro lugar.
M. Dantas. A força nacionalizadora do Estado Novo.
Rio de Janeiro: DIP, 1942.

10 Atualidades e Geopolítica
230
 b) Contextualize o cenário interno do país no período
que se seguiu à “deposição de Getúlio” e cite uma
característica da Constituição produzida por essa
Assembleia Constituinte.
4. (FGV) Leia esta notícia veiculada pela imprensa em 13
de agosto de 2013.
A Câmara dos Deputados devolveu hoje, simbolica-
mente, o mandato parlamentar a 14 deputados, do anti-
go Partido Comunista Brasileiro (PCB), que foram cassa-
dos em 1948. Os mandatos foram cassados pelo então
Superior Tribunal Eleitoral (STE), que cancelou o regis-
tro do partido em 7 de maio de 1947, quase três anos
após os deputados terem sido eleitos.
230
No início da sessão, o presidente da Câmara, depu-
tado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), prestou sua
homenagem aos deputados cassados. “Hoje, ao prestar
esta homenagem, resgatamos a dignidade do Parlamen-
to brasileiro frente a um episódio que fez o partido san-
grar e deixou importante parcela da população sem re-
presentação política”, disse.
Disponível em: <www.ebc.com.br/noticias/politica/
2013/08/camara-devolve-simbolicamente-mandato-
a-14-deputados-do-pcb-cassados-em>.
Acesso em: 02 set. 2013.
Com base nessa notícia, é correto afirmar:
a) A cassação dos parlamentares ocorreu devido à
descoberta de um projeto de tomada do poder pelo
PCB, que teria como base a formação de uma guer-
rilha rural estabelecida no interior do Brasil.
b) A cassação dos parlamentares revela os limites da
democracia brasileira entre 1945 e 1964, impedindo
a livre organização partidária no país, no contexto da
Guerra Fria.
c) A cassação dos parlamentares ocorreu devido à de-
núncia do deputado comunista Jorge Amado de que
o PCB havia conspirado com Getúlio Vargas visando
à manutenção do Estado Novo.
d) A cassação interrompeu uma longa jornada de fun-
cionamento legal do PCB, iniciada em 1922, quando
da sua fundação e interrompida, pela primeira vez,
em 1947.
e) A cassação levou ao fim do PCB e à fundação do
PC do B, que teve seus direitos imediatamente re-
conhecidos, e à formação de diversos outros peque-
nos partidos, que se dedicaram à luta armada.
Atualidades e Geopolítica 11
 Constituições do Período
3
au la
Antecedentes do movimento
de 1964
A presidência de Jânio Quadros, iniciada em 1961,
foi marcada por um estilo de governo excêntrico e por
políticas controversas, mas foi sua renúncia inesperada
que lançou o Brasil em um período de turbulência polí-
tica. Alegando pressões obscuras e forças ocultas traba-
lhando contra seu governo, Quadros renunciou em 25 de
agosto de 1961, após apenas sete meses no cargo. Sua
renúncia abrupta deixou o país em um estado de incer-
teza e instabilidade, pois o fato de o vice-presidente João
Goulart assumir era visto com intensa desconfiança por
vários setores da sociedade, principalmente entre os pro-
prietários rurais, e alguns setores das classes médias e
Forças Armadas. Tanto assim que o novo presidente fora
forçado a assumir com poderes limitados por um arranjo
parlamentarista de última hora. Por outro lado, e ao mes-
mo tempo, João Goulart contava com o apoio de amplas
partes do eleitorado, principalmente entre possíveis be-
neficiários de uma reforma agrária, e trabalhadores liga-
dos ao setor público, alinhados com as novas políticas
sindicalistas.
Esse cenário de polarização viria a se agravar gra-
dualmente durante a presidência de João Goulart por
conta do acúmulo de forças dos projetos políticos de seus
apoiadores e detratores. A ala favorável ao presidente
almejava realizar uma transformação econômica e so-
cial no Brasil através das chamadas reformas de base. O
projeto se baseava no tripé composto por nacionalismo
econômico, populismo e reformas sociais. O governo
acenava ao capital nacional com medidas protecionistas
ao mesmo tempo em que prometia o aumento dos salá-
rios dos funcionários públicos e a melhora nas condições
de trabalho na zona rural. Do ponto de vista eleitoral,
João Goulart pretendia estender o direito de voto aos
praças de pré) e aos analfabetos como modo de angariar
apoio popular. Por fim, o presidente flertava com a pos-
sibilidade de uma reforma agrária, buscando o apoio das
Ligas Camponesas e da população rural.
Apesar das aberturas ao capital nacional, os inves-
tidores nacionais não enxergavam o presidente com boa
vontade. As regiões mais economicamente ativas do
país beneficiavam-se de parcerias com investidores es-
trangeiros, de modo que o discurso econômico do pre-
sidente antes ameaçava a prosperidade desse setor da
população. A necessidade de desenvolver o país econo-
micamente diminuindo desigualdades sociais limitava o
()) praças de pré: soldado raso na hierarquia militar.
12 Atualidades e Geopolítica
Republicano (II)
controle do governo sobre a política fiscal, o que, em um
cenário favorável à inflação levou a uma deterioração da
moeda brasileira e à insatisfação com a política econômi-
ca. Como se já não bastasse, João Goulart era mal-visto
por setores importantes das Forças Armadas, um fato
que se tornaria extremamente importante no contexto da
Guerra Fria.
O movimento de 1964
Após a Revolução Cubana em 1959, os Estados Uni-
dos passaram a dar mais atenção ao perigo de revoluções
comunistas na América Latina. Por conta disso, diversas
ações diplomáticas com o intuito de reforçar a atuação
de setores favoráveis aos Estados Unidos foram empreen-
didas na região. Ao mesmo tempo em que se formavam
grupos anticomunistas, o apoio dos partidos e líderes co-
munistas a João Goulart reproduzia no plano nacional a
polarização da política externa. Gradualmente, a via de-
mocrática ia sendo abandonada por ambos os lados. Os
comunistas acreditavam ser ela apenas uma ferramenta
imperialista, usada para ludibriar o povo e acenar com re-
formas sociais que nunca vinham. A direita, por sua vez,
via com alarme a radicalização das patentes baixas nas
Forças Armadas, especialmente após uma rebelião de sar-
gentos em 1963 necessitou de intervenção armada para
chegar a uma resolução.
No início de 1964, já com sua popularidade bastan-
te desgastada, o presidente João Goulart decidiu apos-
tar em uma nova estratégia: contornar o Congresso e
passar as reformas de base por decreto com apoio dos
trabalhadores e das baixas patentes em enormes mani-
festações de rua. Reunidos em um comício no Rio de
Janeiro, milhares de apoiadores do presidente brandiam
bandeiras vermelhas e seguravam cartazes clamando
pela reforma agrária. O resultado foi a consolidação das
forças de oposição ao presidente, agora com o apoio
dos proprietários de imóveis nas cidades receosos de
uma possível reforma urbana. Uma última crise relacio-
nada à hierarquia militar na Associação de Marinheiros
sepultou a reputação do presidente junto às altas paten-
tes militares. Durante uma viagem ao Rio de Janeiro, os
generais coordenaram a deposição do presidente, que
acabou por exilar-se no Uruguai.
Em seguida ao golpe, os comandantes das forças
armadas começaram a governar a partir de Atos Insti-
tucionais, justificados pelo poder constituinte que se
arrogavam. O Ato Institucional número 1 manteve a
Constituição de 1946, mas com amplas alterações ao
funcionamento do Congresso, permitindo ao Executivo
230
aprovar leis com facilidade, e restrições de garantias
fundamentais, como a possibilidade de cassação dos
direitos políticos de adversários do regime. O governo
militar se utilizou desses meios para implementar um
bem-sucedido plano de estabilização econômica, sa-
crificando os salários da classe média e a estabilidade
contratual dos funcionários públicos. A impopularidade
dessas medidas levou à eleição de chapas de oposição
em eleições estaduais, fato que alarmou o governo e
ocasionou a edição do AI-2 fixando as eleições indiretas
para o executivo em todas as esferas de governo. Final-
mente, um ano após seu fechamento em 1966, o Con-
gresso reuniu-se em sessão extraordinária e foi compelido
a aprovar a Constituição de 1967.
A Constituição de 1988
Assim como o período que o precedeu, aquele que
sucedeu ao regime militar também foi marcado pela pos-
se de um vice-presidente (15.03.1985), dessa vez José
Sarney, que assumiu a presidência no lugar de Tancredo
Neves, morto por complicações de saúde pouco antes de
tomar posse da presidência. José Sarney manteve o mi-
nistério de Tancredo e tratou de abolir leis e práticas do
regime militar, embora tenha mantido a atuação dos ser-
viços de inteligência contra a dissensão interna.
Apesar de tudo, o governo Sarney encaminhou a re-
tomada do processo democrático no país, estabelecendo
a legalidade dos partidos de esquerda e abrindo caminho
para eleições diretas, incluindo a do presidente da repú-
blica. Mais importantes, porém, eram as primeiras elei-
ções para deputados e senadores, que tomariam parte na
Assembleia Constituinte em 1986.
Os trabalhos da Assembleia Constituinte foram lon-
gos e conturbados, marcados por inúmeras exigências
vindas de diferentes grupos de pressão. Cada setor da
sociedade, desconfiando do cumprimento das leis, com-
petia para garantir o enunciado constitucional de seus
interesses e para cercear a afirmação dos interesses an-
tagônicos. O resultado foi um documento prolixo e mui-
to criticado por entrar em matéria considerada alheia a
uma Constituição.
Apesar disso, e por causa disso, a Constituição de
1988 reafirmou os diversos direitos mencionados nas
constituições anteriores além de inserir novas categorias
de direitos.
Em sua declaração de princípios fundamentais estão
inclusos em ordem: a soberania, a cidadania, a dignidade
da pessoa humana, o trabalho e a livre iniciativa, e o plura-
lismo político.
O regime é republicano e federativo, e o rol de obje-
tivos e características da República Federativa do Brasil
faz menção à construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, ao desenvolvimento nacional, à erradicação da
pobreza e à promoção do bem. Há ainda uma seção de-
dicada a limitações à política externa brasileira incluindo
230
como princípios norteadores das relações internacionais
do Brasil a não intervenção e a defesa da paz, além do
compromisso com a integração latino-americana.
O Poder Executivo passou a estar sujeito a um nú-
mero maior de controles, com o presidente responsável
por emitir decretos e medidas provisórias, mas também
passível de julgamento por crimes de responsabilidade.
Já o Poder Legislativo Legislativo, com a Câmara dos
Deputados e o Senado, ganhou poder para sustar atos do
executivo e assumiu responsabilidades como a ratificação
de tratados internacionais.
O Poder Judiciário e o Ministério Público foram forta-
lecidos em contraste com o regime anterior, inclusive por
conta da ampliação de garantias constitucionais, incluin-
do liberdades como expressão, associação e propriedade,
direitos sociais.
A Constituição de 1988 foi a primeira a reconhecer
a categoria dos direitos difusos e coletivos. Os primeiros
são aplicáveis a grupos de pessoas indeterminados e in-
determináveis e incluem o direito a um meio ambiente
preservado, a proteção contra fraudes e produtos noci-
vos, e a segurança pública. A segunda categoria inclui
os direitos de grupos e classes de pessoas como por
exemplo as diferentes faixas etárias.
Exercícios
1. (Fuvest) No início de 1969, a situação política se mo-
difica. A repressão endurece e leva à retração do mo-
vimento de massas. As primeiras greves, de Osasco e
Contagem, têm seus dirigentes perseguidos e são sus-
pensas. O movimento estudantil reflui. A oposição li-
beral está amordaçada pela censura à imprensa e pela
cassação de mandatos.
Apolônio de Carvalho. Vale a pena sonhar.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 202.
O testemunho, dado por um participante da resistência
à ditadura militar brasileira, sintetiza o panorama político
dos últimos anos da década de 1960, marcados:
a) pela adesão total dos grupos oposicionistas à luta
armada e pela subordinação dos sindicatos e centrais
operárias aos partidos de extrema-esquerda.
b) pelo bipartidarismo implantado por meio do Ato Ins-
titucional no 2, que eliminou toda forma de oposição
institucional ao regime militar.
c) pela desmobilização do movimento estudantil, que foi
bastante combativo nos anos imediatamente poste-
riores ao Golpe de 64, mas depois passou a defender
o regime.
d) pelo apoio da maioria das organizações da so-
ciedade civil ao governo militar, empenhadas em
combater a subversão e afastar, do Brasil, o peri-
go comunista.
e) pela decretação do Ato Institucional no 5, que limitou
drasticamente a liberdade de expressão e instituiu
medidas que ampliaram a repressão aos opositores
do regime.
Atualidades e Geopolítica 13
2. (UFMG) Considerando-se os fatores que contribuíram 4. (Enem) A discussão levantada na charge, publicada logo
para a longevidade do regime militar no Brasil, é correto após a promulgação da Constituição de 1988, faz refe-
afirmar que foi de grande relevância: rência ao seguinte conjunto de direitos:
a) a combinação entre a ordem constitucional, amparada
TODO BRASILEIRO TEM AGORA LÊ AQUELE
pela Constituição de 1967, e a arbitrariedade, expressa DIREITO À MORADIA... PEDAÇO BONITO QUE
em sucessivos Atos Institucionais. FALA DE COMIDA,
b) a manutenção de um sistema político representativo, SAÚDE...
com eleições indiretas em todos os níveis, exceto
para a Presidência da República.
c) o desenvolvimento econômico-social do país, acom-
panhado de um constante crescimento do Produto
Interno Bruto (PIB).
d) o rodízio de lideranças políticas entre as Forças Ar-
madas, por meio de eleições indiretas no âmbito
do Comando Supremo da Revolução.

3. (Unicamp) A Constituição Federal promulgada em 1988

define que a República Federativa brasileira compreende
a União, os estados federados, o Distrito Federal e os
municípios, todos autônomos. Das alternativas a seguir,
aponte aquela que apresenta corretamente atribuições
que são de competência exclusiva da União.
a) Promover o adequado ordenamento territorial, me-
diante planejamento e controle do uso, do parcela-
mento e da ocupação do solo urbano.
b) Explorar os serviços e instalações nucleares e exer-
cer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra e o
enriquecimento de minérios nucleares.
c) Instituir as regiões metropolitanas, as aglomerações
urbanas e as microrregiões administrativas consti-
tuídas por agrupamentos de municípios limítrofes.
d) Organizar e prestar, diretamente ou sob regime de
concessão ou permissão, serviços públicos de inte-
resse local, incluído o transporte coletivo.
M. Paiva. Disponível em: <www.redes.unb.br>.
Acesso em: 25 maio 2014.
a) Civis, como o direito à vida, à liberdade de expressão
e à propriedade.
b) Sociais, como direito à educação, ao trabalho e à
proteção à maternidade e à infância.
c) Difusos, como direito à paz, ao desenvolvimento
sustentável e ao meio ambiente saudável.
d) Coletivos, como direito à organização sindical, à par-
ticipação partidária e à expressão religiosa.
e) Políticos, como o direito de votar e ser votado, à
soberania popular e à participação democrática.

14 Atualidades e Geopolítica
230
 Recursos naturais: água (I) 4
aula

Disponibilidade e distribuição Volume

Porcentagem
Porcentagem
de água
de água Fonte
(103 km3)
do total (%)
de água
doce (%)
Quando acima não havia céu, e abaixo a terra não fora firmada, água potável 10 530 0,76 30,1
Apsu, o fértil, misturava suas águas com Tiamat. Nenhuma ca-
bana, nenhum pântano, nem um único deus era vivo. Nenhum geleiras e neve 24 064 1,74 68,7
deles sequer tinha um nome. Antes de seus destinos serem Antártica 21 600 1,56 61,7
traçados, os deuses eram formados no encontro das águas.
Groenlândia 2 340 0,17 6,68
Stephanie Dalley. Myths from Mesopotamia: creation, the flood,
Gilgamesh, and others. Oxford University Press, USA, 2009. Ártico 83,5 0,006 0,24
montanhas 40,6 0,003 0,12
O poema sumério “Enuma Elish”, cuja parte inicial foi
traduzida acima, relata o início da criação a partir da mistu- gelo e
300 0,022 0,86
ra das águas de Apsu e Tiamat, os dois corpos primordiais. permafrost
Ao conceber o começo do Universo como um encontro de lagos 176,4 0,013 –
águas, os autores do mito mostram compreender o papel fun-
pântanos 11,47 0,0008 0,03
damental da água para o sustento da vida. No mito, as águas
de Apsu são doces, comumente relacionadas aos aquíferos rios 2,12 0,002 0,006
próximos do Golfo Pérsico. Lá elas se misturam às do oceano organismos
Índico, cujas águas salgadas correspondem à Tiamat do mito. 1,12 0,001 0,003
vivos
Não é por acaso que os autores escolheram a confluên-
atmosfera 12,9 0,001 0,04
cia de águas doces e salgadas como símbolo do início de
sua civilização. A exemplo dos sumérios, que se concentra- Igor Shiklomanov. “World water fresh resources”. In: Peter H.
ram nas áreas férteis entre os rios Tigre e Eufrates, outras Gleick. Water in crisis: a guide to the world’s fresh water resources.
grandes civilizações antigas também tiveram seu começo Oxford University Press, USA, 1993.
junto a grandes rios. Ainda hoje, as zonas de maior dina-
mismo econômico do planeta dependem dos transportes Distribuição de água potável
fluvial e marítimo para mover a maior parte de seus produtos.
Os habitantes das grandes cidades e zonas industriais acessível para uso humano
também dependem da água para o funcionamento e a ma- A distribuição de água potável naturalmente não é
nutenção desses ambientes e, claro, para sua alimentação. uniforme ao redor do globo. As Américas concentram 45%
Qualquer que seja a sua origem, e embora não excedam da água potável do mundo, seguidas da Ásia, com 28%,
0,025% da massa do planeta, as águas próximas à superfície da Europa, com cerca de 15%, e, por fim, da África, com 9%.
cobrem cerca de 70% da Terra. A ampla maioria consiste A distribuição por países é ainda mais enviesada, espe-
em águas salgadas presentes nos mares e oceanos, e ape- cialmente se levarmos em conta a variabilidade da popu-
nas 3,5% do total são de água doce. Mais da metade dessa lação. Os três países mais ricos em água, Brasil, Rússia e
água doce se encontra na forma de gelo e neve nas regiões Canadá, combinam uma grande extensão territorial com
polares; e o resto se divide entre água atmosférica, águas populações relativamente reduzidas, de modo que a quan-
subterrâneas, rios e lagos, e a água presente nos corpos tidade de recursos hídricos renováveis per capita em
de organismos vivos. Para informações mais detalhadas, cada um deles é particularmente favorável. Por outro lado,
consulte a tabela a seguir: países como China e Índia, apesar de contarem com um
volume razoável de água potável, apresentam uma relação
Volume Porcentagem muito menos favorável. Em casos extremos de pobreza em
Porcentagem
Fonte de água de água recursos hídricos, como é o caso de Israel e dos Emirados
3 3 do total (%)
(10 km ) doce (%) Árabes Unidos, diversas medidas governamentais são
reservas tomadas para garantir o acesso da população à água, por
1 385 984 100 – exemplo, a adoção de tecnologias de dessalinização.
totais
mares e
oceanos
1 338 000 96,5 – Ciclo da água
água A água se move entre diferentes regiões e estados físicos
23,4 1,7 – de acordo com a influência da energia solar e da gravidade.
subterrânea
A atmosfera terrestre constantemente perde uma pequena
umidade quantidade de água para o espaço, podendo também captu-
16,5 0,001 0,05
do solo rar partículas hídricas que porventura se aproximem do nosso

Atualidades e Geopolítica 15
230
planeta. Além disso, a atmosfera troca água com os oceanos
e continentes através dos processos de precipitação e evapo-
transpiração, perdendo e ganhando água, respectivamente.
As diferentes formas de precipitação incluem o granizo,
a geada e o sereno ou orvalho, mas principalmente a chuva,
que costuma ser dividida em três tipos:
1. Chuvas de convecção: mais frequentes em regiões
tropicais e equatoriais, essas chuvas se caracterizam
por sua alta intensidade e duração relativamente curta.
Têm sua origem na diferença de pressão entre cama-
das superiores e inferiores da atmosfera.
2. Chuvas frontais: de duração mais longa e intensidade
mais baixa, são formadas pelo encontro de massas de
ar de temperaturas diferentes.
3. Chuvas orográficas: de longa duração e alto volume
pluviométrico, são causadas pela1 condensação de
massas de ar úmidas nas encostas das montanhas.
Quanto à evapotranspiração, ela pode ser dividida
em três processos:
1. Evaporação: refere-se à transformação de água do
estado líquido para o gasoso. Geralmente é responsável
por uma proporção relativamente pequena do fluxo
de vapor para a atmosfera, exceto em regiões áridas
ou semiáridas onde a sua influência é preponderante.
2. Transpiração: é o processo de troca de água realizado
pelas plantas através da abertura de estruturas especia-
lizadas, chamadas estômatos. Embora os vegetais tam-
bém percam água através da cutícula, a porcentagem
liberada pelos estômatos costuma variar entre 90% e
95% do total. Esse processo domina o fluxo de vapor
para a atmosfera em todas as regiões florestadas.
3. Interceptação: refere-se à evaporação da água que
se acumula na superfície das plantas. Diferentemente
da transpiração, esse não é um fenômeno associado
ao funcionamento do organismo vegetal, mas simples-
mente o análogo da evaporação quando a água se
encontra sobre um vegetal, e não sobre o solo.
Devido à evaporação e à interceptação, uma parte da
quantidade de água que se precipita sobre uma região re-
torna à atmosfera sem passar por rios ou aquíferos subterrâ-
neos. Toda essa água é chamada de água azul, que também
inclui os rios e os lagos, além dos próprios aquíferos. Deno-
mina-se água verde aquele contingente de água que é inte-
grado na biomassa de uma região incluindo, naturalmente, a
água liberada pelas plantas através da transpiração.
Além dos processos de troca com a atmosfera, a
superfície continental também troca água com os oceanos
diretamente, já que as águas continentais constantemente
deságuam neles na forma de rios ou fluxos subterrâneos.
Isso poderia sugerir que os continentes sempre perdem
mais água do que ganham, mas, na verdade, o excedente de
precipitação oriundo dos oceanos é suficiente para equilibrar
essa diferença.
Em um dado local, o equilíbrio hídrico regional não
depende apenas do fluxo de água entre diferentes estados
físicos, mas também da distribuição de água dentro de um
certo estado. Por exemplo, a integridade hídrica de um lago
depende não apenas da precipitação em seu entorno ime-
diato, mas também da água que nele deságua a partir de
16 Atualidades e Geopolítica
rios, do influxo de aquíferos próximos e de fluxos intermi-
tentes nas redondezas. Da mesma forma, a umidade do ar
em uma região também está em equilíbrio com a de regiões
adjacentes da atmosfera, frequentemente trocando vapor
de água com elas a depender da diferença de pressão obser-
vada. Por fim, vale a pena notar os processos de infiltração,
em que a água é absorvida pelo solo, e de percolação, através
do qual os aquíferos recebem água armazenada no solo.
Contabilidade dos
recursos hídricos
Oferta
A oferta de água em uma região é predominantemente
derivada do fluxo de rios e da quantidade de água armaze-
nada em lagos e aquíferos subterrâneos, os chamados ma-
nanciais. Essas fontes de água são alimentadas pela preci-
pitação incidente em seu entorno, além dos fluxos oriundos
de outros rios ou águas subterrâneas. Em ambos os casos,
a quantidade média de água que flui em uma bacia hidro-
gráfica é determinada pela média da precipitação anual e
fornece um limite máximo para a quantidade de água que
pode ser retirada dessa fonte anualmente. Aquíferos e lagos,
por outro lado, representam reservatórios naturais de água
acumulada ao longo de períodos muito extensos, geralmen-
te na ordem de milhares de anos. Por conta dessa diferença,
é possível retirar uma quantidade de água superior ao que
é reposto anualmente sem exaurir completamente esse re-
curso no curto ou no médio prazo. Ainda assim, esse dese-
quilíbrio entre a reposição e a retirada de água não pode ser
mantido indefinidamente sem causar a gradual diminuição
do nível de água no reservatório.
Demanda
A demanda de água em uma região é determinada pre-
dominantemente pelo tipo de uso a que ela se presta. Em ge-
ral, quatro grandes categorias perfazem a ampla maioria do
uso de recursos hídricos de uma região, são elas: irrigação,
uso doméstico, uso industrial e geração de eletricidade. Aqui,
vale a pena introduzir uma distinção entre retirada de recur-
sos hídricos e consumo. A retirada é simplesmente o desvio
da água de sua fonte original para um outro local, por exem-
plo, uma hidrelétrica pode represar um rio e utilizar a água
acumulada no reservatório para geração de energia. Embora
a quantidade de água reservada esteja sendo retirada pela re-
presa, a imensa maioria dela não é consumida, pois retorna
ao fluxo do rio após passar pelas turbinas. Da mesma forma,
ao lavarmos as mãos, estamos retirando uma quantidade de
água do sistema hídrico e, na sequência, devolvendo um eflú-
vio equivalente, embora poluído ou contaminado. O consu-
mo de água envolve a incorporação da água sem retorno de
uma quantidade equivalente ao sistema hídrico. O melhor e
mais importante exemplo é o da agricultura: ao retirar uma
certa quantidade de água para irrigação, uma fazenda devol-
verá um eflúvio menor do que a quantidade inicial, a diferen-
ça correspondendo à quantidade de água absorvida pelas
plantas. Naturalmente, a água devolvida ao sistema também
estará contaminada por nutrientes e material orgânico, além
de eventuais pesticidas e fertilizantes presentes no solo.
230
 Além da distinção entre retirada e consumo, é comum
observar também a posição relativa em que ocorrem a re-
tirada e o consumo de água. Como certos usos podem re-
querer quantidades maiores de água ou, ainda, uma água de
alta pureza ou qualidade, a ordem em que os fluxos e eflú-
vios são retirados e devolvidos ao sistema hídrico é muito
importante. Considere o caso de um rio que flui por uma
região agrícola, uma usina hidrelétrica e um conjunto resi-
dencial. Entre os três, a demanda por água de maior quali-
dade será mais importante no caso do conjunto residencial,
seguido da agricultura e, por fim, da hidrelétrica. Por outro
lado, como a agricultura consome grande parte da água
que retira do rio, o ideal seria que a retirada de água para
irrigação fosse feita depois do ponto em que ocorre a ge-
ração de energia. Esses tipos de problemas são comuns no
planejamento inicial das cidades, e os conflitos criados por
conta da água frequentemente são objeto de litígio. Agora,
convém considerar os diferentes métodos e instrumentos
disponíveis para mitigar o uso excessivo da água.
Equilibrando oferta e demanda por
recursos hídricos
Embora a quantidade de água doce existente no pla-
neta seja suficiente para abastecer toda a população de to-
dos os países do mundo, assegurar o acesso e a qualidade
da água a todos os seres humanos não é uma tarefa fácil.
Como notamos anteriormente, isso é particularmente difícil
em lugares onde a oferta de água é escassa e a demanda é
alta. Em países como Israel e Arábia Saudita, assim como
em regiões do Oeste dos Estados Unidos, o Norte da China
ou, ainda, o Sertão nordestino, no Brasil, é necessário o uso
de técnicas de engenharia e administração para equilibrar a
oferta e a demanda por recursos hídricos.
Essa operação, invariavelmente, segue por dois cami-
nhos: aumento da oferta de água disponível para uso ou
diminuição da demanda por esses recursos. Geralmente, o
fator mais importante durante a tomada de decisão de pro-
jetos de engenharia hídrica é o custo por metro cúbico de
água a ser adicionado ou poupado pelo sistema, ou seja, o
fator financeiro. Ainda assim, é comum que essas obras en-
volvam fatores ambientais e sociais cuja análise também é
importante para garantir o sucesso da operação.
Exercícios
1. (Enem) A falta de água doce no planeta será, possivel-
mente, um dos mais graves problemas deste século.
Prevê-se que, nos próximos vinte anos, a quantidade
de água doce disponível para cada habitante será dras-
ticamente reduzida. Por meio de seus diferentes usos
e consumos, as atividades humanas interferem no ciclo
da água, alterando:
a) a quantidade total, mas não a qualidade da água
disponível no planeta.
b) a qualidade da água e sua quantidade disponível
para o consumo das populações.
c) a qualidade da água disponível, apenas no subsolo
terrestre.
d) apenas a disponibilidade de água superficial existente
nos rios e lagos.
e) o regime de chuvas, mas não a quantidade de água
disponível no planeta.
230
2. (Enem) Por que o nível dos mares não sobe, mesmo
recebendo continuamente as águas dos rios?
Essa questão já foi formulada por sábios da Grécia
Antiga. Hoje responderíamos que:
a) a evaporação da água dos oceanos e o deslocamento
do vapor e das nuvens compensam as águas dos rios
que deságuam no mar.
b) a formação de geleiras com água dos oceanos, nos
polos, contrabalança as águas dos rios que deságuam
no mar.
c) as águas dos rios provocam as marés, que as transfe-
rem para outras regiões mais rasas, durante a vazante.
d) o volume de água dos rios é insignificante para os
oceanos e a água doce diminui de volume ao receber
sal marinho.
e) as águas dos rios afundam no mar devido a sua
maior densidade, onde são comprimidas pela enorme
pressão resultante da coluna de água.
3. (Vunesp) A disponibilidade de água no Brasil é elevada,
se comparada à de outras regiões do mundo. No en-
tanto, quando se consideram o potencial hídrico no terri-
tório e a distribuição da população brasileira por regiões,
notam-se:
a) a distribuição desigual do recurso e a possibilidade
de escassez hídrica.
b) a homogeneidade da matriz energética nacional e o
predomínio de assentamentos litorâneos.
c) a transposição do recurso e a criação artificial de
demandas.
d) a valorização de áreas bem abastecidas e os fluxos
migratórios de transumância.
e) a perda do recurso por mau uso e o desequilíbrio na
ocupação de bacias hidrográficas.
4. Todas as grandes civilizações da Idade Antiga tiveram
por base uma agricultura em larga escala. Ela era abas-
tecida a partir de sistemas de irrigação construídos por
grandes quantidades de mão de obra e organizados
por um Estado centralizado.
a) Identifique duas dessas civilizações e indique quais
as principais fontes de água utilizadas por elas.
b) Descreva o ciclo da água que abastece esses manan-
ciais, dando ênfase às características da geografia e do
clima que determinam o seu funcionamento.
Atualidades e Geopolítica 17
 au la
5 Recursos naturais: água (II)
Métodos de gestão hídrica
Dessalinização da água
A remoção de sais da água é o mais caro dos métodos
examinados neste material. Ela costuma ser utilizada em
locais cuja disponibilidade hídrica é particularmente bai-
xa, como em áreas desérticas ou semiáridas. Os primeiros
métodos de dessalinização envolviam uma etapa de evapo-
ração e uma etapa de destilação da água, separando assim
os sais da água oriunda do mar ou de aquíferos salinos. A
partir da segunda metade do século XX, as usinas de dessa-
linização passaram a utilizar o processo de osmose reversa,
em que a água salgada é filtrada por membranas porosas
que permitem a passagem apenas das moléculas de água.
Apesar de sua maior eficiência em relação ao método tradi-
cional, a osmose reversa também necessita de altas quanti-
dades de energia para sua operação. Além disso, o produto
final não ultrapassa metade do volume inicial de água, dei-
xando para trás uma solução salina altamente concentrada
cuja eliminação no meio ambiente comporta riscos.
A maior vantagem da dessalinização é o fato de ela
não utilizar água de mananciais. Dessa forma, ela contribui
para a preservação da qualidade e da disponibilidade de
água e para a proteção dessas fontes naturais de água do-
ce. Por outro lado, o seu custo energético é particularmen-
te alto, favorecendo o uso da técnica apenas em casos de
extrema necessidade ou de proximidade a fontes de ener-
gia de baixo custo. O exemplo mais ilustrativo é a dessali-
nização de água do mar na Arábia Saudita com o uso da
energia termoelétrica produzida a partir do petróleo.
Reciclagem e reúso
A água de reúso é toda água anteriormente utilizada
em alguma atividade humana que, após passar por proces-
sos de purificação e tratamento, é devolvida ao sistema de
fornecimento de água. Os usos mais comuns da água de
reúso são a limpeza pública e a irrigação. Além disso, ela
também pode ser usada em sistemas de refrigeração indus-
trial, em alguns processos industriais e até mesmo para con-
sumo. O líder mundial em reciclagem de água é Israel, onde
80% da água são reutilizados de alguma forma. Logo depois
vem a Espanha, com 17%, mas, em seguida, todos os outros
países apresentam porcentagens muito mais baixas.
Embora seja possível reaproveitar a água para consumo
humano, isso raramente é feito. Em primeiro lugar, porque
do total de água usado em cidades, menos de 3% são usados
para consumo direto. Além disso, a maior parte das pessoas
não aprecia a ideia de beber água reaproveitada de outros
usos domésticos.
Assim como no caso da dessalinização, a remoção de
impurezas da água é um processo energeticamente dispen-
dioso. Isso é mais um motivo por que tratar a água apenas até
a qualidade necessária para o seu uso é um fator importante.
18 Atualidades e Geopolítica
O nível de pureza necessário para consumo direto é muito
mais alto do que para irrigação ou limpeza, encarecendo o
processo. A reciclagem de água também é muito utilizada
como fonte de água para irrigação em países em desenvolvi-
mento. Nesse caso, existe o risco de a reciclagem aumentar o
consumo final de água do sistema. Considere, por exemplo,
o caso em que sem a reciclagem o eflúvio teria sido dirigido
a um rio ou um córrego, mas, com a reciclagem, ele foi diri-
gido à irrigação. Nessa situação, a retirada de água perma-
nece a mesma, mas o consumo aumenta, já que as plantas
absorverão parte da água que seria devolvida ao sistema.
Importação de água
Desde a Roma Antiga, quando o fluxo do rio Tibre foi
ameaçado pelo crescimento da cidade, e 11 aquedutos, al-
guns chegando a mais de 100 km de distância, dirigiam água
à cidade imperial, grandes concentrações de pessoas têm re-
corrido à importação para resolver seus problemas de abas-
tecimento de água. Os aquedutos romanos eram movidos
a gravidade. Esse não é mais o caso em muitos sistemas de
importação de água ao redor do mundo. Vários deles neces-
sitam de bombeamento de água sobre grandes elevações, co-
mo os sistemas de abastecimento da bacia do Colorado, nos
Estados Unidos, ou a transposição do rio São Francisco, no
Nordeste do Brasil. A despesa energética, por vezes, é tão
alta que chega a ser a maior consumidora de eletricidade
nas regiões em que o bombeamento é necessário.
Outro ponto negativo desse tipo de operação é a possi-
bilidade de acelerar a deterioração dos mananciais de uma
bacia hidrográfica. Isso ocorre porque os processos de im-
portação frequentemente movem a água de uma bacia hi-
drográfica para outra, alterando o equilíbrio hídrico original.
O uso excessivo desse método para equilibrar a demanda
local pode, portanto, levar a mais desequilíbrios em outras
regiões. Uma forma um tanto inusitada de importar água
consiste na aquisição de gêneros agrícolas e industriais cuja
produção exige muita água. Ao evitar produzir essas mer-
cadorias localmente, diminui-se a demanda por água na re-
gião e se aproveita os recursos hídricos de outros países ou
regiões. Quando um país como a China importa carne brasi-
leira, um produto que consome muita água durante sua pro-
dução, ele está também importando água e se aproveitando
da vantagem comparativa do Brasil, tanto no abastecimento
de água como na produção agropecuária.
Armazenamento de água
Em muitas regiões, o volume médio de chuvas é sufi-
ciente para abastecer a população local, porém, devido a
variações sazonais, a maior parte da precipitação ocorre
apenas em certos meses, levando à escassez no restante
do ano. Nesses casos, a construção de reservatórios arti-
ficiais pode ser uma boa solução para garantir o abasteci-
mento durante os meses de seca. Existem muitos tipos de
230
reservatórios, os mais comuns são represas e reservatórios
subterrâneos. As represas têm um custo financeiro médio,
mas causam danos ambientais e sociais significativos, além
de perderem muita água por evaporação. Os reservatórios
artificiais costumam ser muito extensos e podem forçar ou
motivar a mudança de comunidades tradicionais. Em bar-
ragens como a de Três Gargantas, na China, longas nego-
ciações foram necessárias para garantir a concordância de
milhões de habitantes das áreas afetadas. Além disso, as
propriedades químicas da água são alteradas, o que pode
causar desequilíbrios ambientais, como a morte de peixes e
a proliferação excessiva de algas e bactérias.
Um método alternativo é a criação de reservatórios sub-
terrâneos. Isso costuma ser feito aproveitando trechos de ro-
cha porosa no solo, que são usados como aquíferos artificiais.
Durante o período de alta nos rios, parte da água é bombea-
da e armazenada no aquífero. Então, nos meses de seca, ela é
bombeada novamente do aquífero para o sistema de abasteci-
mento de água. A localização subterrânea impede perdas por
evaporação e não inviabiliza a habitação no local. É importan-
te observar que, assim como a importação de água transporta
água de um local para o outro, o armazenamento meramente
transfere a disponibilidade de água de um período de tempo
a outro. Por conta disso, qualquer tentativa de utilizar técnicas
de armazenamento para aumentar a quantidade absoluta de
água em uma bacia hidrográfica resultará em uma quantidade
menor de água em outros pontos do sistema.
Gestão de bacias hidrográficas
O fluxo e a quantidade de água retida em uma bacia
hidrográfica são fortemente influenciados pela qualidade
do solo e pelo tipo de vegetação presentes em uma região.
Através da remoção de arbustos e árvores cujas raízes pe-
netram profundamente o solo, e da substituição por outras
espécies menos sedentas por água, é possível aumentar a
quantidade de água disponível em uma bacia hidrográfica
e favorecer o reabastecimento de aquíferos. Outras abor-
dagens incluem o armazenamento de águas da chuva e a
construção de solos porosos que funcionam como aquíferos
artificiais ou, ainda, a construção de barreiras artificiais para
diminuir a velocidade da água durante enxurradas, evitando
a erosão e favorecendo a infiltração da água no solo.
As grandes vantagens dos métodos de gestão de ba-
cias hidrográficas são o baixo custo e as demandas tec-
nológicas modestas, necessárias à sua implementação.
A princípio, esses são alguns dos métodos mais baratos
e acessíveis a regiões de baixa renda ou em desenvolvi-
mento. Muitos desses métodos são usados há séculos em
diferentes civilizações, mas a sua redescoberta pela enge-
nharia hidrológica moderna permitiu melhores análise e
eficiência das técnicas de gestão.
Economia de água
Entre todas as estratégias para equilibrar oferta e de-
manda, a mais simples e barata é sem dúvida fazer o uso
mais eficiente possível dos recursos já disponíveis. Como o
custo de não desperdiçar água é, em muitos casos, apenas
o custo psicológico de desenvolver novos hábitos, e como
qualquer água que não é desperdiçada é conservada com
100% de eficiência, a economia sempre deve ser o primeiro
método a ser utilizado na gestão dos recursos hídricos.
230
No caso do uso de águas subterrâneas ou aquíferos,
é crucial identificar quanta água está sendo retirada e des-
viada para outros reservatórios. Duas das maiores fontes
de perdas na rede de abastecimento são os vazamentos em
encanamentos antigos e a evaporação de água usada para
irrigação. Redes de água antigas, como aquelas existentes
em cidades como Londres, chegam a desperdiçar até 50%
da água que passa pelo encanamento. A água desperdiçada
dessa forma também corre o risco de contaminar aquíferos
e misturar o esgoto a fontes de água potável. No caso da
irrigação, o uso indiscriminado de água resulta em grandes
perdas ambientais sem nenhuma vantagem econômica. Por
conta disso, sistemas de irrigação modernos estão abando-
nando o uso de jatos de água e adotando sistemas que levam
a água diretamente às raízes das plantas.
Outra alternativa é a substituição de gramados e ins-
talações vegetais por outras que utilizem menos água ou
sejam adaptadas a regiões semiáridas, onde a escassez
de água é um problema maior. Esse tipo de prática é bas-
tante comum no Brasil e pode ser observado em diversos
edifícios e parques: procure por seixos e plantas cactáceas,
ou mesmo o uso de areia e coqueiros. Uma estratégia in-
teressante é o financiamento de melhorias em áreas ru-
rais por parte de cidades próximas. Como o orçamento
das cidades costuma ser maior, elas podem auxiliar nessas
melhorias aumentando a eficiência da irrigação e liberando
recursos hídricos para uso próprio.
Por fim, é possível aumentar o preço da água para en-
corajar o consumidor final a economizá-la. Essa aborda-
gem funciona bem com uma variedade de bens de consu-
mo, mas não é suficiente no caso da água. O fato de ela ser
um bem essencial e de preço relativamente baixo dificulta
a criação de uma estrutura de preços que coíba o uso abu-
sivo, sem restringir o acesso da população à água. Por isso,
as companhias de abastecimento costumam cobrar preços
diferentes a depender do consumo total.
Exercícios
1. (Fuvest) O Sistema Aquífero Guarani abrange parte dos
territórios da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do
Uruguai. Possui um volume acumulado de 37 000 km3
e área estimada de 1 087 000 km2. Na parte brasileira
estende-se por oito estados: Goiás, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e São Paulo.
Disponível em: <www.mma.gov.br>.
Sobre os aquíferos e seus usos para atividades humanas,
é correto afirmar:
a) Ocorrem em formações geológicas que contêm água
em quantidades significativas que se movimentam no
seu interior em condições naturais, permitindo seu
uso para abastecimento público e estâncias turísticas
de águas minerais e termais.
b) Consistem em reservatórios de águas superficiais
formados a partir de processos de vulcanismo e tec-
tonismo em áreas de intensa atividade sísmica; seus
fluxos são passíveis de uso na produção de energia
geotérmica obtida por meio do calor proveniente do
interior do planeta Terra.
Atualidades e Geopolítica 19
 c) Os aquíferos apresentam volume de águas de
grandes proporções, contudo, os custos de bom-
beamento e tratamento inviabilizam sua utilização
e seus usos para atividades humanas, limitando-se
atualmente à dessedentação animal.
d) Os aquíferos são formados pela ação dos ventos que
acumulam areia na superfície, facilitando a infiltração
e acúmulo de água nas camadas mais profundas;
seus usos para atividades humanas dependem da
escavação de poços muito profundos com uso de
tecnologia indisponível no país.
e) Os aquíferos estão em profundidades que impos-
sibilitam seu uso para atividades humanas, incluin-
do aqueles usos destinados a fins menos nobres,
como lavagem de calçadas e praças.
2. (Enem) A possível escassez de água é uma das maiores
preocupações da atualidade, considerada por alguns
especialistas como o desafio maior do novo século.
No entanto, tão importante quanto aumentar a oferta é
investir na preservação da qualidade e no reaproveita-
mento da água de que dispomos hoje.
A ação humana tem provocado algumas alterações
quantitativas e qualitativas da água:
I. Contaminação de lençóis freáticos.
II. Diminuição da umidade do solo.
III. Enchentes e inundações.
Pode-se afirmar que as principais ações humanas as-
sociadas às alterações I, II e III são, respectivamente:
a) uso de fertilizantes e aterros sanitários/lançamento
de gases poluentes/canalização de córregos e rios.
b) lançamento de gases poluentes/lançamento de lixo
nas ruas/construção de aterros sanitários.
c) uso de fertilizantes e aterros sanitários/desmata-
mento/impermeabilização do solo urbano.
d) lançamento de lixo nas ruas/uso de fertilizantes/
construção de aterros sanitários.
e) construção de barragens/uso de fertilizantes/cons-
trução de aterros sanitários.
3. (Enem) Considerando os custos e a importância da
preservação dos recursos hídricos, uma indústria de-
cidiu purificar parte da água que consome para reutili-
zá-la no processo industrial. De uma perspectiva eco-
nômica e ambiental, a iniciativa é importante porque
esse processo:
a) permite que toda água seja devolvida limpa aos
mananciais.
b) diminui a quantidade de água adquirida e compro-
metida pelo uso industrial.
c) reduz o prejuízo ambiental, aumentando o consumo
de água.
d) torna menor a evaporação da água e mantém o ciclo
hidrológico inalterado.
e) recupera o rio onde são lançadas as águas utilizadas.
20 Atualidades e Geopolítica
4. (Vunesp) A Pegada Hídrica é uma ferramenta de gestão
de recursos hídricos que indica o consumo de água doce
com base em seus usos direto e indireto. “Precisamos
desconstruir a percepção de que a água vem apenas da
torneira [um uso direto] e que simplesmente consertar um
pequeno vazamento é o bastante para assumir uma atitu-
de sustentável”, ressalta Albano Araújo, coordenador da
Estratégia de Água Doce da Nature Conservancy...
Adaptado de <www.wwf.org.br>.
Considerando o excerto e os conhecimentos acerca
do consumo de água no planeta, é correto afirmar que
o uso indireto de água doce corresponde:
a) à comercialização de água sob a forma de produto
final.
b) ao emprego de água extraída de reservas subterrâ-
neas para o abastecimento público.
c) à quantidade de água utilizada para a fabricação de
bens de consumo.
d) ao aproveitamento doméstico da água resultante
de processos de despoluição.
e) à distribuição de água oriunda de represas distantes
do consumidor final.
5. (Enem) A necessidade de água tem tornado cada vez
mais importante a reutilização planejada desse recurso.
Entretanto, os processos de tratamento de águas para
seu reaproveitamento nem sempre as tornam potáveis,
o que leva a restrições em sua utilização. Assim, dentre
os possíveis empregos para a denominada “água de
reúso”, recomenda-se:
a) o uso doméstico, para preparo de alimentos.
b) o uso em laboratórios, para a produção de fármacos.
c) o abastecimento de reservatórios e mananciais.
d) o uso individual, para banho e higiene pessoal.
e) o uso urbano, para lavagem de ruas e áreas públicas.
6. (Enem) A situação atual das bacias hidrográficas de
São Paulo tem sido alvo de preocupações ambientais:
a demanda hídrica é maior que a oferta de água e ocorre
excesso de poluição industrial e residencial. Um dos
casos mais graves de poluição da água é o da bacia
do alto Tietê, onde se localiza a região metropolitana
de São Paulo. Os rios Tietê e Pinheiros estão muito
poluídos, o que compromete o uso da água pela po-
pulação. Avalie se as ações apresentadas a seguir são
adequadas para se reduzir a poluição desses rios.
I. Investir em mecanismos de reciclagem da água
utilizada nos processos industriais.
II. Investir em obras que viabilizem a transposição
de águas de mananciais adjacentes para os rios
poluídos.
III. Implementar obras de saneamento básico e cons-
truir estações de tratamento de esgotos.
É adequado o que se propõe:
a) apenas em I. b) apenas em II.
c) apenas em I e III. d) apenas em II e III.
e) em I, II e III.
230
 Recursos naturais: energia (I)
O conceito de energia
Em 1840, durante uma viagem à ilha de Java, um jo-
vem médico alemão chamado Julius Mayer examinou o
sangue de um paciente a bordo do seu navio. Mayer notou
que o líquido parecia muito mais claro do que o normal.
Ele concluiu que, devido ao calor dos trópicos, o corpo
humano despendia menos energia para manter sua tem-
peratura e, portanto, ali, o sangue venoso continha menos
oxigênio. Observando que a energia utilizada pelo corpo
para manter sua temperatura é a mesma que ele utiliza pa-
ra se locomover, Mayer concluiu também que o calor e a
energia mecânica são equivalentes e podem ser converti-
dos um no outro. Cinco anos depois, ele procurou genera-
lizar sua descoberta para outras formas de energia, como a
eletricidade, a luz e o magnetismo.
Originalmente criado por Aristóteles, o conceito
de energia passou por muitas transformações durante a
história do seu desenvolvimento. Foi apenas durante o
século XIX, quando foram formuladas as leis da Termo-
dinâmica, que alcançamos algum entendimento sistemá-
tico a respeito do que seria a energia. De fato, apesar de
sua importância, até hoje não sabemos por que a energia
existe sob tantas formas. Em geral, nós nos limitamos a
trabalhar com ela sob seus diversos aspectos, examinan-
do-a a partir do ponto de vista de cada disciplina, como é
o caso na Física, na Química, na Geografia e na Biologia.
Fontes de energia
A maior parte da energia do nosso planeta advém da
radiação solar e tem um papel crucial no funcionamento
tanto da atmosfera como da hidrosfera. O que resta da
energia disponível no planeta se divide entre a criada pela
atração gravitacional e a energia geotérmica do núcleo da
Terra, intimamente envolvida nos fenômenos de transfor-
mação da litosfera. Como veremos, todos esses fenôme-
nos se somam para criar as condições que possibilitam
toda a vida na Terra, incluindo, em última análise, o desen-
volvimento da civilização.
A radiação solar é a fonte da maior parte da energia
presente na Terra. Ela é predominantemente produzida
por reações nucleares de fusão em que dois átomos de
hidrogênio se transformam em um átomo de hélio. Essas
reações produzem enormes quantidades de energia, ape-
sar de nem toda ela ser utilizável em nosso planeta, afinal
a Terra intercepta apenas parte da radiação liberada pelo
Sol. Outros fatores que limitam a disponibilidade de ener-
gia solar são o efeito albedo, ou seja, a reflexão da radia-
ção por certas superfícies, como a neve e as nuvens, e a
absorção de parte da radiação ultravioleta pela camada de
ozônio. Mesmo com essas perdas, a potência disponível na
forma de energia solar para uso no planeta é várias ordens
de magnitude maior do que a necessária para abastecer o
consumo anual de energia.
230
6
aula
Observe os dados da tabela:
Ordem de
Potência anual magnitude
relativa
Energia liberada
3,9 $ 1026 W E
pelo Sol
Energia solar
8,67 $ 1016 W E $ 10-10
disponível na Terra
Energia geotérmica
4,4 $ 1013 W E $ 10-13
da Terra
Consumo de
1,89 $ 109 W E $ 10-17
energia global
Fonte: Vaclav Smil. Energy: A Beginner’s Guide.
Oneworld, 2017.
Apesar de a quantidade de energia recebida na for-
ma de radiação solar ser muito maior do que a demanda
global, parte da energia não contabilizada nessa deman-
da é utilizada pelos seres humanos de várias formas.
As mais importantes são a circulação da atmosfera, a
circulação das águas e a fixação da matéria orgânica.
Sem a energia solar, o ar não circularia entre as regiões
tropicais e as temperadas, nem entre estas últimas e as
regiões polares, afetando o ciclo das águas e transfor-
mando completamente os ecossistemas da maior parte
do globo. Em tais circunstâncias, seria difícil imaginar
que a humanidade pudesse sobreviver nas mesmas áreas
em que vive hoje.
Quanto ao papel da biosfera, é importante ressaltar a
função das algas e dos vegetais para a emergência e
a sustentação da civilização humana. Esses organismos
capazes de fixar matéria orgânica através da fotossíntese
são o principal elo na cadeia que liga a energia do Sol
a todas as criações da humanidade. Isso porque tudo o
que fizemos, fazemos e faremos pode ser analisado co-
mo transformação de energia e matéria em outras for-
mas e estruturas. A matéria orgânica de nossos corpos,
assim como a energia armazenada neles, e mesmo as
nossas cidades, os nossos livros, e até os nossos sonhos
e esperanças, só são possíveis graças à atividade fotos-
sintética desses organismos. Mas não é apenas através
do metabolismo animal que os seres humanos fazem uso
da energia solar armazenada pelas plantas. Assim como
no caso da energia contida na atmosfera e na hidrosfe-
ra, utilizada, por exemplo, em moinhos e rodas-d’água, a
biomassa também é utilizada como fonte de energia para
outros processos, por exemplo, na forma de lenha para o
Atualidades e Geopolítica 21
preparo de alimentos ou na forma de carvão vegetal pa- Os valores mostrados na tabela a seguir estão em
ra a cerâmica. A diferença entre essas fontes de energia milhões de toneladas equivalentes de petróleo (Mtep),
estava na relativa falta de processamento ou transforma- sendo 1 Mtep = 4 187 $ 1 022 J. Os valores para os anos
ção necessários para fazer uso da energia do vento ou da de 2025 e 2040 são projeções baseadas na continuação
água. Do ponto de vista da humanidade, os moinhos e as das políticas energéticas atuais.
rodas-d’água simplesmente aproveitam a energia mecâ-
nica do vento e da água, enquanto que a combustão da DEMANDA GLOBAL POR FONTE DE ENERGIA
biomassa vegetal converte a energia química da matéria
orgânica em calor. Um olhar mais profundo, no entanto, Ano
2000 2017 2025 2040
revela que toda essa energia era originalmente radiação Fonte
solar. É apenas após a sua conversão em outros tipos de Carvão 2 308 3 750 3 998 4 769
energia pela atmosfera, pela hidrosfera e pela biosfera
que ela se torna mais diretamente aproveitável. Natural- Óleo 3 665 4 435 4 902 5 570
mente, também é possível construir obras de engenharia
Gás 2 071 3 107 3 616 4 804
para aproveitar a energia solar mais diretamente.
As usinas de energia solar atuais costumam utilizar Nuclear 675 688 803 951
dois métodos: painéis solares baseados no efeito fotovol-
taico e espelhos parabólicos direcionados a uma caldeira Renovável 662 1 334 1 798 2 642
de óleo reaproveitável; o aquecimento do óleo vaporiza Hidro 225 353 413 514
uma quantidade de água, e o vapor, então, move uma tur-
bina; trata-se de uma variação de uma usina termoelétri- Bioenergia 377 727 906 1 181
ca. O principal problema da energia solar atualmente é o
Biomassa 646 658 666 591
fato de ela requerer uma imensa área ocupada para ser
economicamente viável. O mesmo ocorre com a energia Outros 60 254 479 948
eólica, embora avanços nessas tecnologias estejam miti-
gando essas desvantagens. Total 10 027 13 972 15 782 19 328
No caso de combustíveis fósseis, como o carvão, o Fonte: International Energy Agency,
petróleo e o gás natural, a origem da energia também World Energy Outlook 2018.
é o Sol. As jazidas desses recursos foram formadas por
grandes quantidades de matéria orgânica, tanto vegetal
Exercícios
como animal, que passaram por um processo de decom-
posição anaeróbica e se transformaram em combustí- 1. (Enem)
veis energeticamente mais densos. Dessa forma, os três
podem ser encarados como uma herança energética, 2
A água aquecida gera vapor,
capaz de alavancar o desenvolvimento da humanidade, que pode ser empregado para
impulsionar turbinas e gerar
mas que precisa ser bem administrada. Quanto ao car- energia elétrica.
bono contido nesses compostos, a situação é análoga. A água subterrânea escapa
por quebras da superfície
Diferentemente da combustão da biomassa, a queima terrestre, formando piscinas
termais e gêiseres, a partir
de combustíveis fósseis representa o retorno à atmosfe- dos quais pode ser canalizada
e usada em residências.
ra de uma quantidade de carbono há muito tempo cap-
turada sob a terra e, portanto, um acréscimo em relação
ao equilíbrio atual.
A mais recente fonte de energia utilizada em larga
escala por seres humanos é a energia nuclear, provenien- 1
te da radiação de isótopos de urânio e plutônio. A energia Ao escavar um quilômetro
em direção ao centro da
rocha
permeável Nas regiões onde as placas
Terra, a temperatura pode tectônicas se encontram,
liberada pelo combustível nuclear vaporiza a água de um chegar até a 250 °C. como na Islândia, o magma
magma está mais próximo da
reservatório, e o vapor gira uma turbina associada a um superfície.

gerador. A energia nuclear tem diversas vantagens em

relação a outras fontes de energia, em particular uma re-
lação extremamente favorável entre potencial energético
e volume e também o fato de não emitir gases do efeito
estufa. O motivo pelo qual ela não é usada de forma mais
ampla está ligado a preocupações com o armazenamen-
to dos dejetos dos reatores nucleares. Por conta da sua
radioatividade, esses dejetos podem contaminar áreas
muito vastas por milhares de anos, um risco ambiental
insuportável no nosso atual estado de desenvolvimento.
A fonte de energia representada na figura, considerada
uma das mais limpas e sustentáveis do mundo, é extraí-
da do calor gerado:
a) pela circulação do magma no subsolo.
b) pelas erupções constantes dos vulcões.
c) pelo sol que aquece as águas com radiação ultra-
violeta.
d) pela queima do carvão e combustíveis fósseis.
e) pelos detritos e cinzas vulcânicas.

22 Atualidades e Geopolítica
230
 2. (Vunesp) Considerando os cenários encontrados nos gráficos e
os conhecimentos sobre o consumo mundial de energia
Consumo mundial de energia primária, em primária, é correto afirmar que:
toneladas equivalentes de petróleo (TEP) a) os países-membros da OCDE diminuíram sua parti-
cipação percentual no consumo mundial de energia
1973 primária em resposta ao aumento em seu padrão
Américas África de consumo.
não OCDE 3,4% abastecimento marítimo e b) o consumo mundial de energia primária entre os
3,5% aeroviário internacional
3,0% países desenvolvidos aumentou em razão da crise
Ásia1 econômica no período.
5,5% c) a China aumentou sua participação percentual no
China OCDE2 consumo mundial de energia primária devido ao seu
7,0% 61,3% desligamento do bloco dos Tigres Asiáticos.
Europa d) os países subdesenvolvidos aumentaram sua parti-
não OCDE cipação percentual no consumo mundial de energia
15,5%
primária em função do aumento em seu dinamismo
Oriente Médio econômico.
0,8%
e) o Oriente Médio registrou o maior aumento percen-
tual no consumo mundial de energia primária devido
2013
ao crescimento de sua produção industrial.
África
Américas 5,5% abastecimento marítimo e 3. (Fuvest) O debate atual em torno dos biocombustíveis,
não OCDE aeroviário internacional
2,6% como o álcool de cana-de-açúcar e o biodiesel, inclui o
4,6%
efeito estufa. Tal efeito garante temperaturas adequa-
Ásia1
das à vida na Terra, mas seu aumento indiscriminado
12,2% OCDE2 é danoso. Com relação a esse aumento, os biocom-
39,2%
bustíveis são alternativas preferíveis aos combustíveis
fósseis porque:
a) são renováveis e sua queima impede o aquecimento
China global.
22,3%
Oriente Médio b) retiram da atmosfera o CO2 gerado em outras eras.
Europa 5,1%
não OCDE c) abrem o mercado para o álcool, cuja produção dimi-
8,5% nuiu o desmatamento.
1. Ásia, exceto China.
d) são combustíveis de maior octanagem e de menores
2. Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. taxas de liberação de carbono.
e) contribuem para a diminuição da liberação de carbono,
Adaptado de <www.iea.org>. presente nos combustíveis fósseis.

Atualidades e Geopolítica 23
230
 au la
7 Recursos naturais: energia (II)
Transição energética
A matriz energética de uma sociedade é o conjunto de
fontes de energia disponíveis para suprir sua demanda por
energia. Naturalmente, cada sociedade terá uma matriz
energética diferente, levando a desafios e oportunidades
distintos. Quando consideramos a matriz energética de
modo global, como vimos anteriormente, os combustíveis
fósseis formam a base. Esses combustíveis, contudo, cor-
respondem a uma herança de energia solar acumulada ao
longo de milhões de anos, o que torna impossível utilizá-
-los a uma taxa que permita a sua reposição em uma esca-
la de tempo razoável. Nessa perspectiva, ganha destaque
o conceito de sustentabilidade, relativo ao equilíbrio dinâ-
mico entre uma sociedade e os recursos necessários à sua
existência: uma sociedade sustentável é uma sociedade
capaz de repor os recursos essenciais à sua sobrevivência
a uma taxa adequada, garantindo sua continuidade por um
tempo indefinido.
Apesar da aparente simplicidade, a determinação da
sustentabilidade de uma civilização é bastante complexa.
A interação imprevisível entre diferentes recursos pode
fazer com que nossas tentativas de poupá-los causem dis-
funções sociais cujos efeitos são piores do que os que ten-
távamos evitar. Contudo, considerados o esgotamento das
fontes fósseis e as preocupações atuais acerca do efeito
estufa e suas consequências ambientais adversas, a ideia
de transição para uma nova matriz energética torna-se um
imperativo. As fontes de energia bem cotadas para formar
essa matriz são fontes consideradas mais limpas e renová-
veis, como a energia solar, a energia eólica, a energia geo-
térmica e a bioenergia. No futuro, elas terão de enfrentar
tanto o desafio de suprir o déficit causado pela retração do
uso de combustíveis fósseis convencionais quanto o futuro
crescimento da demanda global por energia.
As necessidades energéticas do mundo, porém, não
são uniformes. Devido a disparidades econômicas e popu-
lacionais, o consumo de energia da maior parte dos países
é drasticamente mais baixo do que o das economias desen-
volvidas, especialmente se levarmos em conta diferenças
demográficas. Por exemplo, apesar de a população africana
exceder a europeia em cerca de 550 milhões de habitantes,
o consumo total de energia na Europa foi de 83,82 exajou-
les, enquanto que na África foi de apenas 19,87 exajoules.
O impacto dessas diferenças é exacerbado durante um
processo de transição energética, porque a maior parte
do crescimento populacional deve ocorrer em regiões
subabastecidas em partes da África, da Ásia e da América
Latina, fazendo com que a adoção de tecnologias mais
limpas seja mais necessária justamente nos locais em que
ela é mais difícil. Tendo em vista esse contexto e para me-
lhor compreender o problema energético atual, tratemos
de abordá-lo em uma perspectiva histórica.
24 Atualidades e Geopolítica
A energia em sociedades
pré-industriais
Até recentemente, todas as civilizações derivavam a sua
energia de atividades como a coleta, a caça, a pesca, a agri-
cultura e/ou a pecuária. Dessa forma, o trabalho e as trans-
formações efetuadas por essas sociedades estavam intima-
mente ligados a certas formas de energia. Na maior parte dos
casos, o único processo intermediário entre a energia do Sol e
o uso final dessa energia era o metabolismo das plantas e dos
animais. Assim, até poucos séculos atrás, os músculos eram o
motor da civilização, e a comida o seu combustível.
Além disso, desde a Pré-História a humanidade tem uti-
lizado o fogo como uma das principais formas de transforma-
ção do ambiente. A combustão da madeira era utilizada para
prover calor e luz, cozinhar alimentos, devastar a vegetação
e afugentar animais. Ao longo do tempo, outros usos e ou-
tras fontes de energia foram sendo descobertos à medida que
diferentes grupos se adaptavam a ambientes distintos. Nem
todas as regiões do mundo são amplamente florestadas, e
muitas florestas logo cediam lugar a clareiras conforme con-
centrações de pessoas colhiam a madeira necessária para sua
sobrevivência. Assim, em regiões como a África, o norte da
China e a Índia, tornou-se comum também o aproveitamento
de ramos, galhos, folhas, raízes de gramíneas, resíduos agrí-
colas e até mesmo de esterco como combustível.
Outros avanços foram: a domesticação de animais,
principalmente bovinos e equinos, cujo grande porte e cujos
músculos poderosos aumentaram a produtividade agrícola
e permitiram o transporte de cargas por via terrestre; a in-
venção da vela e de rodas-d’água, que nos permitiram, pela
primeira vez, aproveitar a energia do Sol sem intermedia-
ção da fotossíntese, tornando o transporte e algumas tarefas
mecânicas muito mais eficientes; e, finalmente, a metalur-
gia, que esteve entre os primeiros usos do carvão vegetal,
produzido pela transformação de biomassa em uma forma
mais concentrada e energeticamente densa de carbono.
Transição para o carvão
A verdadeira transição do uso de madeira para o uso
de carvão ocorreu no Reino Unido, nos estágios iniciais
da Revolução Industrial. Embora seja difícil identificar as
causas, o aumento da população britânica durante os sé-
culos XVI e XVII parece ter aumentado a demanda por
madeira, criando escassez em diversas regiões da Grã-
-Bretanha. Assim, o carvão, antes utilizado apenas por
pessoas cuja renda impossibilitava a compra de madeira,
passou a ser usado para o aquecimento das casas durante
o inverno. Na mesma época, o inglês Thomas Newcomen
projetou o primeiro motor a vapor, bastante ineficiente,
que foi usado apenas para bombear água em minas de
carvão; o seu aperfeiçoamento por James Watt, porém,
230
precipitou uma cascata de transformações tecnológicas, in-
cluindo o aumento da siderurgia, a adoção de motores em
múltiplas indústrias e, claro, a extração de carvão mineral.
Logo outras regiões da Europa, como o norte da Fran-
ça, a Bélgica, o leste da Alemanha e da Rússia, bem como
regiões na China, na Índia e nos Estados Unidos, passaram a
extrair grandes quantidades de carvão. O Reino Unido man-
teve a maior produção por mais de um século, ultrapassado
apenas em 1899 pelos Estados Unidos, nove anos depois de
a transição para o carvão se completar. A biomassa deixa de
ser a principal fonte de energia global apenas em 1890, quase
duzentos anos após a sua adoção ampla como combustível.
Transição para o petróleo
Assim como o carvão, o petróleo era conhecido des-
de a Antiguidade, quando era coletado em poças e areias
betuminosas, onde ele aflorava à superfície. Naquela
época, ele era usado principalmente para iluminação em
lamparinas, além do revestimento de alguns materiais, como
mosaicos na Pérsia e na Mesopotâmia.
A exploração comercial de petróleo começou ape-
nas no século XIX, com a abertura de poços em Baku,
no Azerbaijão, e no Texas, nos Estados Unidos. Uma for-
ma de energia ainda mais concentrada e versátil do que
o carvão – para efeito de comparação, a quantidade de
energia contida em um quilograma de madeira está entre
18 e 21 MJ, e um quilograma de um carvão de alta quali-
dade contém 29 MJ, enquanto a mesma massa de petró-
leo contém até 42 MJ –, o petróleo também apresentava
vantagens no transporte e no armazenamento.
Descobertas de jazidas de petróleo na Indonésia e,
principalmente, em campos de exploração gigantescos no
Irã, na Arábia Saudita e no Golfo Pérsico, deram impulso à
Segunda Revolução Industrial. A disponibilidade de capital
europeu e, mais tarde, japonês, permitiu a exploração ace-
lerada de fontes em escala global, incluindo poços no Ca-
nadá, no México e na Venezuela. A economia global che-
gou a enfrentar um choque na oferta de petróleo em 1973,
quando temores de uma queda permanente na oferta de
combustíveis fósseis impulsionaram o desenvolvimento de
tecnologias alternativas. Ainda assim, o desenvolvimento de
tecnologias de exploração de petróleo offshore e a descober-
ta de novos depósitos na Noruega, nos EUA e no Canadá
garantiram a oferta ampla de petróleo até os dias de hoje.
De fato, afora a tendência de adoção do gás natural,
a reorganização da exploração em territórios da ex-URSS e
as intervenções americanas no Oriente Médio não cau-
saram grandes mudanças na matriz energética global.
Apesar disso, as consequências previstas por conta do
aquecimento global e o receio de uma futura escassez
de petróleo continuam a incentivar a transição da matriz
energética para energias renováveis.
Energia elétrica
Outra grande alteração no uso da energia durante
a modernidade foi a descoberta e a conversão de diver-
sas formas de energia em eletricidade. A energia elétri-
ca é particularmente conveniente, devido à sua flexibi-
lidade e à velocidade e simplicidade da sua transmissão.
230
Após o desenvolvimento das tecnologias de transforma-
ção de voltagem e particularmente depois da adoção da
corrente alternada, tornou-se possível transmitir enor-
mes quantidades de energia elétrica sem grandes perdas
durante o trajeto.
Os usos da eletricidade são tantos que ela se tornou
tão fundamental à vida contemporânea quanto a própria
água. O amplo uso da energia elétrica em tecnologias de
produção, controle e comunicação faz com que qualquer
interrupção prolongada em seu fornecimento altere não
apenas a nossa vivência, como também a própria estrutu-
ra da sociedade. Ou seja, do ponto de vista da civilização
moderna, a garantia de abastecimento sustentável desse
recurso é uma questão existencial. O desafio atual está
em tornar sua geração cada vez mais desvinculada dos
combustíveis fósseis.
Rumo às energias renováveis
A Revolução Industrial e, por conseguinte, o que en-
tendemos por modernidade, assim como todos os seus de-
senvolvimentos, não poderiam ter ocorrido sem o uso de
combustíveis fósseis. Como descrito anteriormente, a dis-
ponibilidade de grandes quantidades de novos combustíveis
energeticamente densos possibilitou a enorme transforma-
ção pela qual passou a civilização desde o século XVIII até
hoje. O desafio que nos colocamos, portanto, não é apenas
o de adotar formas de energia renováveis, mas o de fazê-lo
sem que tenhamos de abdicar do estado de desenvolvimen-
to material que já alcançamos. E não é desejável encarar es-
se requerimento como originário de uma disposição frívola
dos seres humanos, como se não estivéssemos dispostos a
viver de forma mais simples. Devemos nos lembrar de que
foi a nossa forma de vida mais simples que deu à luz a in-
dustrialização e todos os seus desequilíbrios.
Assim, o caminho para o desenvolvimento sustentável
está a nossa frente e não atrás de nós. Apenas o avanço em
direção a tecnologias que permitam os enriquecimentos
material e cultural necessários para o despertar da cons-
ciência ambiental nos devolverá a esperança de um futuro
em harmonia com a natureza. E é impossível precisar os
caminhos que essa transição irá tomar. No fundo, até mes-
mo a sua ocorrência pode ser posta em dúvida. Por conta
desse alto grau de incerteza, tudo o que podemos fazer é
examinar os contornos da situação atual, além de examinar
algumas possibilidades futuras.
Em primeiro lugar, é importante notar que, diferente-
mente das transições anteriores, a transformação que pro-
curamos operar envolve a substituição de fontes de energia
mais densas por outras menos densas. Tomando como base
a tecnologia atual, a área necessária à produção de energia
terá de aumentar para suprir a mesma quantidade de ener-
gia, com todas as consequências ambientais e sociais adver-
sas que isso implica. Em segundo lugar, de forma semelhan-
te a transições anteriores, a transição para o uso de energias
renováveis terá de conviver com aumentos no uso absolu-
to de combustíveis fósseis por muitos anos. Finalmente, é
provável que os dois fatores anteriores causem a adoção de
tecnologias não renováveis, como a energia nuclear e o gás
natural, antes mesmo de uma transição mais completa para
energias renováveis.
Atualidades e Geopolítica 25
Exercícios
1. (Enem) Segundo dados do Balanço Energético Nacional de 2008, do Ministério das Minas e Energia, a matriz energética brasi-
leira é composta por hidrelétrica (80%), termelétrica (19,9%) e eólica (0,1%). Nas termelétricas, esse percentual é dividido con-
forme o combustível usado, sendo: gás natural (6,6%), biomassa (5,3%), derivados de petróleo (3,3%), energia nuclear (3,1%)
e carvão mineral (1,6%). Com a geração de eletricidade da biomassa, pode-se considerar que ocorre uma compensação do
carbono liberado na queima do material vegetal pela absorção desse elemento no crescimento das plantas. Entretanto, estudos
indicam que as emissões de metano (CH4) das hidrelétricas podem ser comparáveis às emissões de CO2 das termelétricas.
Adaptado de A. S. Moret; I. A. Ferreira. “As hidrelétricas do rio Madeira e os impactos socioambientais”.
Revista Ciência Hoje, v. 45, n. 265, 2009.
No Brasil, em termos do impacto das fontes de energia no crescimento do efeito estufa, quanto à emissão de gases,
as hidrelétricas seriam consideradas como uma fonte:
a) limpa de energia, contribuindo para minimizar os efeitos deste fenômeno.
b) eficaz de energia, tomando-se o percentual de oferta e os benefícios verificados.
c) limpa de energia, não afetando ou alterando os níveis dos gases do efeito estufa.
d) poluidora, colaborando com níveis altos de gases de efeito estufa em função de seu potencial de oferta.
e) alternativa, tomando-se por referência a grande emissão de gases de efeito estufa das demais fontes geradoras.

2. (Enem)
Ranking da eficiência
Compare a energia e o alagamento das dez maiores usinas do Brasil

Itaipu Belo Tucuruí Jirau Ilha Xingó Santo Marimbondo Serra Sobradinho
Monte Solteira Antônio da Mesa
os lagos
estão
na mesma
escala
N
50 km

área
alagada 1,4 0,5 3,5 0,3 1,2 0,1 0,4 0,4 1,8 4,1
(mil km 2)
potência
14 11,2 8,7 3,8 3,4 3,2 3,2 1,4 1,3 1,1
(mil MW)

localização PR PA PA RO SP e MS AL e SE RO SP e MG GO BA
Fonte: Aneel, Furnas, Eletronorte, Itaipu Binacional, Chesf, Norte Energia, Energia Sustentável e Santo Antonio Energia.

“Tudo sobre a batalha de Belo Monte”. Disponível em: <http://arte.folha.uol.com.br>. Acesso em: 10 jan. 2014.
Comparando os dados das hidrelétricas, uma característica territorial positiva de Belo Monte é o (a):
a) reduzido espaço relativo inundado. b) acentuado desnível do relevo local.
c) elevado índice de urbanização regional. d) presença dos grandes parques industriais.
e) proximidade de fronteiras internacionais estratégicas.

3. (Enem) Entre as inúmeras recomendações dadas para
a economia de energia elétrica em uma residência,
destacamos as seguintes:
„ Substitua lâmpadas incandescentes por fluorescen-
tes compactas.
„ Evite usar o chuveiro elétrico com a chave na posição
“inverno” ou “quente”.
„ Acumule uma quantidade de roupa para ser passada a
ferro elétrico de uma só vez.
„ Evite o uso de tomadas múltiplas para ligar vários
aparelhos simultaneamente.
„ Utilize, na instalação elétrica, fios de diâmetros reco-
mendados às suas finalidades.
A característica comum a todas essas recomendações
é a proposta de economizar energia através da tentativa
de, no dia a dia, reduzir:
a) a potência dos aparelhos e dispositivos elétricos.
b) o tempo de utilização dos aparelhos e disposi-
tivos.
c) o consumo de energia elétrica convertida em energia
térmica.
d) o consumo de energia térmica convertida em energia
elétrica.
e) o consumo de energia elétrica através de correntes
de fuga.

26 Atualidades e Geopolítica
230
 4. (FGV) A matriz energética desse país é baseada em carvão 6. (PUC-RJ)
mineral, transportado por ferrovias, que usam muito diesel;
o minério segue em navios, que consomem muito combus- Usina nuclear de Fukushima,
tível, e o país ainda tem demanda grande de petroquímicos, Japão (após o incêndio)
por conta da construção civil e bens de consumo e da sua
crescente urbanização. Em 2010, tornou-se o maior consu-
midor mundial de petróleo, ultrapassando os Estados
Unidos. Em 2003, o valor das exportações de petróleo do
Brasil para esse país era 0,5% do total, e, em 2013, as ex-
portações brasileiras saltaram para 8,7%, confirmando
a liderança comercial desse país com o Brasil.
Valor Econômico, 23 ago. 2014.
O texto refere-se à:
a) Alemanha b) Itália c) China
d) Austrália e) Índia

5. (Fuvest) O gráfico abaixo exibe a distribuição percentual Disponível em: <www.kotaku.com.br>.

Acesso em: 30 jul. 2012.
do consumo de energia mundial por tipo de fonte.
% O incêndio na usina nuclear de Fukushima, no Japão,
50
após o tsunami do dia 11 de março de 2011, reacen-
45
40 deu as discussões internacionais sobre a sustentabi-
35 lidade desse tipo de energia. Os defensores da pro-
30 dução de energia nuclear afirmam que uma das suas
25 vantagens é:
20
15
a) a necessidade nula de armazenamento de resíduos
10 radioativos.
5 b) o menor custo quando comparado às demais fontes
0 de energia.
19

19

19

19

19

19

19

20

20

20

c) a baixa produção de resíduos emissores de radioati-

65

70

75

80

85

90

95

00

05

10

petróleo hidreletricidade vidade.

carvão mineral energia nuclear d) o reduzido grau de interferência nos ecossistemas
gás natural outras fontes renováveis de energia locais.
e) a contribuição zero para o efeito de estufa global.
Statistical Review of World Energy, 2012.

Com base no gráfico e em seus conhecimentos, iden-
tifique, na escala mundial, a afirmação correta.
a) A queda no consumo de petróleo, após a década de
1970, é devida à acentuada diminuição de sua utiliza-
ção no setor aeroviário e, também, à sua substituição
pela energia das marés.
b) O aumento relativo do consumo de carvão mine-
ral, a partir da década de 2000, está relacionado
ao fato de China e Índia estarem entre os grandes
produtores e consumidores de carvão mineral, pro-
duto que esses países utilizam em sua crescente
industrialização.
c) A participação da hidroeletricidade se manteve cons-
tante, em todo o período, em função da regulamen-
tação ambiental proposta pela ONU, que proíbe a im-
plantação de novas usinas.
d) O aumento da participação das fontes renováveis
de energia, após a década de 1980, explica-se pelo
crescente aproveitamento de energia solar, pro-
posto nos planos governamentais, em países de-
senvolvidos de alta latitude.
e) O aumento do consumo do gás natural, ao longo
de todo o período coberto pelo gráfico, é expli-
cado por sua utilização crescente nos meios de
transporte, conforme estabelecido no Protocolo
de Cartagena.
7. (Enem) Fundamos, como afirmam alguns cientistas, o an-
tropoceno: uma nova era geológica com altíssimo poder de
destruição, fruto dos últimos séculos que significaram um
transtorno perverso do equilíbrio do sistema-Terra. Como
enfrentar esta nova situação nunca ocorrida antes de forma
globalizada e profunda? Temos pessoalmente trabalhado os
paradigmas da sustentabilidade e do cuidado como relação
amigável e cooperativa para com a natureza. Queremos,
agora, agregar a ética da responsabilidade.
L. Boff. “Responsabilidade coletiva”. Disponível em:
<http://leonardoboff.wordpress.com>.
Acesso em: 14 maio 2013.
A ética da responsabilidade protagonizada pelo filósofo
alemão Hans Jonas e reivindicada no texto é expressa
pela máxima:
a) “A tua ação possa valer como norma para todos os
homens.”
b) “A norma aceita por todos advenha da ação comu-
nicativa e do discurso.”
c) “A tua ação possa produzir a máxima felicidade para
a maioria das pessoas.”
d) “O teu agir almeje alcançar determinados fins que
possam justificar os meios.”
e) “O efeito de tuas ações não destrua a possibilidade
futura da vida das novas gerações.”

Atualidades e Geopolítica 27
230
 8 Serviços públicos: saúde pública (I)
au la
Introdução a sistemas de saúde
A saúde é uma das maiores preocupações dos brasi-
leiros e um dos maiores desafios a serem enfrentados por
nossa sociedade nos dias de hoje. Embora a atenção à saúde
seja uma constante ao longo da história, a demanda por
sistemas de provisão de cuidados médicos é relativamente
recente. Os primeiros sistemas de saúde modernos foram
criados na Europa entre o fim do século XIX e a primeira
metade do século XX. Até então, cuidados médicos eram
oferecidos, de forma não integrada, por profissionais da
saúde e por instituições privadas e filantrópicas. As mu-
danças oriundas da Revolução Industrial, incluindo o
avanço da ciência e da tecnologia, além da influência do
nacionalismo, possibilitaram e impulsionaram a sociedade
a organizar um sistema de cuidados com a saúde que
abarcasse as necessidades da população.
Função
A função de um sistema de saúde é fornecer à popu-
lação, com eficiência e sustentabilidade, níveis adequados
de cuidados relacionados à saúde. Essa missão envolve uma
variedade de atividades complementares, como a pesquisa
científica, a produção de materiais e insumos da indústria
da saúde, a formação de profissionais qualificados, e a
administração e financiamento de todos esses recursos.
Sua finalidade inclui a prevenção e o tratamento de doenças,
o controle de epidemias, e a pesquisa e comunicação de
práticas saudáveis à população.
Estamos falando, portanto, de um empreendimento
de imensa escala e complexidade, cujos detalhes não podem
ser resumidos em apenas uma aula ou curso. Assim, nesta
aula, trataremos das diferenças e dos desafios do financia-
mento e fornecimento de cuidados com a saúde, bem como
dos modelos utilizados para estruturar os sistemas de saúde
ao redor do mundo.
Características
Diferentemente de outros bens e serviços essenciais,
o fornecimento de cuidados com a saúde envolve carac-
terísticas que condicionam a estrutura dos sistemas res-
ponsáveis pela saúde da população. Quando compara-
mos a saúde com a alimentação, notamos, por exemplo,
que, embora todas as pessoas sintam fome de forma mais
ou menos previsível, nem todas precisam de cuidados
com a saúde da mesma forma. Alguns indivíduos e gru-
pos de pessoas precisam de muito mais cuidados do que
outros. Além disso, é impossível determinar, antecipada-
mente, quem precisará de quais cuidados e quando essa
necessidade surgirá. Para evitar que o impacto negativo
de acidentes e doenças incida de forma imprevisível e
28 Atualidades e Geopolítica
devastadora sobre alguns membros da população, são usa-
das estratégias de dispersão de custo de tratamento, como
a contratação de seguros de saúde. Outra característica
importante está no fato de que os usuários de serviços de
saúde raramente são qualificados para determinar o me-
lhor tratamento para cada caso, dependendo para isso das
recomendações de profissionais especializados.
Finalmente, vale a pena observar que a saúde de ca-
da membro da população está altamente relacionada com
a de outros membros, fazendo com que cada cidadão se
interesse pela saúde daqueles com quem convive. Assim,
além de utilizar seguros para dividir o custo de tratamen-
to de problemas de saúde pela população, os sistemas de
saúde também procuram garantir a regulação da qualida-
de dos serviços e um investimento adequado na manuten-
ção da saúde populacional como um todo.
Para facilitar o entendimento e a análise dos modelos
de sistemas de saúde, discutidos adiante, vamos primeiro
examinar seus componentes separadamente.
Pacientes
Os pacientes são os usuários dos serviços de saúde e,
em última análise, são também os responsáveis por finan-
ciar o desenvolvimento e a manutenção desses serviços.
A diferença entre as formas de participação dos pacientes
nos modelos de saúde pública está relacionada à forma
como eles contribuem com os custos do sistema e às res-
trições que enfrentam ao contratar algum dos serviços de
saúde. Em geral, os pacientes podem contribuir através de
impostos, contratos de seguro e pagamentos diretos.
Alguns pacientes custeiam apenas suas próprias
despesas, mas, devido às características da saúde pública,
isso é raro. Em geral, independentemente do sistema de
saúde, há pacientes que subsidiam os tratamentos de outros,
que dependem dessas contribuições.
Provedores de serviços de saúde
Aqui, estamos falando dos profissionais da área da
saúde, incluindo, naturalmente, todos os que exercem ativi-
dades auxiliares necessárias para o funcionamento dos
sistemas de saúde pública. Médicos, enfermeiros, farma-
cêuticos e terapeutas estão incluídos nessa categoria, mas
cientistas, professores e administradores, entre outros,
também estão. A participação profissional em sistemas de
saúde pública difere principalmente na forma de contratação
e remuneração desses serviços, que pode ser pública ou
privada, e direta ou indireta.
Seguradoras
Contratos de seguro são uma característica comum,
mas não universal, nos sistemas de saúde em uso corrente.
Como dissemos anteriormente, a sua principal vantagem é
a dispersão do custo de tratamento, através da população.
230
Isso permite que amplas quantidades de pessoas sejam
protegidas contra problemas de saúde sem impor custos
demasiado altos a qualquer indivíduo ou grupo de indiví-
duos. Apesar disso, contratos de seguro requerem uma
estrutura legal e administrativa com os seus próprios
custos, o que significa que essa opção nem sempre está
disponível a toda a sociedade ou a todos os indivíduos.
Estruturas dos sistemas de saúde
As estruturas dos sistemas de saúde pública diferem
quanto à provisão dos serviços, à forma e à estrutura do
financiamento e à cobertura do sistema. Os serviços
podem ser prestados por um provedor único, em geral
sob controle do governo, ou por múltiplos provedores.
O pagamento pelos serviços também pode ser centralizado,
feito através de uma única corporação – o próprio governo
ou um sistema de seguros controlado por ele – ou pode
ser dividido em múltiplos pagadores. Quanto à forma e à
estrutura do financiamento, elas podem ser diretas, como
no caso do pagamento direto a uma clínica, ou indiretas,
quando o pagamento é feito a uma seguradora que poste-
riormente cobre o uso dos serviços. Por fim, a cobertura
do sistema pode ser universal ou parcial, dependendo da
disponibilidade dos serviços de saúde na sociedade.
Sistema público direto
O sistema público direto de saúde centraliza a adminis-
tração e o pagamento dos serviços de saúde na estrutura
governamental. Ele é financiado por contribuições e im-
postos dos cidadãos e procura oferecer serviços amplos
com cobertura universal. O fato de o governo ser o pro-
vedor dos serviços de saúde dá a ele um grande poder de
negociação e controle, diminuindo os custos dos serviços
e a remuneração dos profissionais da saúde. Por outro la-
do, devido à impossibilidade de se usar variação de pre-
ços para controlar a oferta e o acesso aos serviços, esses
sistemas costumam ter filas longas e uma oferta restrita,
especialmente para serviços especializados.
Sistema público indireto
O sistema público indireto, ou sistema de seguridade
social, funciona de forma semelhante ao direto, mas, ao
invés de o governo ser o provedor dos serviços de saúde,
ele opera como intermediário, através de um seguro social
compulsório. Todos os cidadãos contribuem para um fundo
de seguros que cobre um pacote padronizado de serviços
fornecidos por clínicas e hospitais particulares. Nesse
modelo, o governo também atua como regulador dos
serviços, para garantir a qualidade e a disponibilidade
deles para a população. O uso de múltiplos provedores
ajuda na diminuição de filas e na oferta de serviços espe-
cializados, embora o problema persista em alguns casos.
Sistema particular indireto
Também conhecido como sistema de seguros obriga-
tórios, o sistema particular indireto funciona de forma
similar ao público indireto, com a diferença de que, além
230
do seguro oferecido pelo governo, existem também outros
seguros de saúde oferecidos por companhias e associações
privadas. Os cidadãos podem escolher entre a opção públi-
ca e as opções particulares, que são reguladas pelo gover-
no para garantir uma oferta compatível com os objetivos
de saúde pública.
Nesse tipo de sistema, os pacientes costumam obter
um seguro de saúde através de seus contratos de trabalho,
contribuindo para o financiamento dos serviços com uma
fração do seu salário. Como o uso do sistema depende da
participação no mercado de trabalho, a cobertura desses
sistemas é apenas parcial, apesar da alta qualidade dos
serviços.
Sistema particular direto
O sistema particular direto de saúde é estruturado como
um mercado em que pacientes e provedores de serviços
de saúde interagem diretamente. Os pacientes procuram
e contratam exatamente os serviços que necessitam, sem
a intermediação do governo ou de companhias de seguro.
Historicamente, todas as sociedades usaram esse sistema
em algum momento, já que ele requer uma estrutura mínima
para funcionar. Como cada paciente contrata seus pró-
prios serviços, esse sistema não obriga nenhuma pessoa
a subsidiar o tratamento de outra. Apesar disso, é comum
que, em sociedades em que predomina esse tipo de arranjo,
existam também instituições adicionais para dar conta do
atendimento de pessoas que não conseguem custear as
próprias necessidades de saúde. É o caso de hospitais e
instituições filantrópicas financiadas por contribuições
voluntárias. Assim como no sistema particular indireto,
a cobertura desse sistema é apenas parcial.
Sistemas híbridos
Até aqui, discutimos diversas características e modelos
de sistemas de saúde pública, mas ainda não demos nenhum
exemplo de qualquer um deles. Isso porque, na realidade,
é difícil encontrar casos em que apenas um desses modelos
seja utilizado. Vejamos, por exemplo, o caso brasileiro.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é estruturado co-
mo um sistema de seguridade social, em que o governo
oferece um seguro à população aceito por múltiplos prove-
dores particulares. Ainda assim, alguns dos hospitais mais
importantes do SUS são públicos, tornando a fronteira en-
tre os modelos de sistema público direto e indireto difícil
de ser distinguida nesse caso. Além disso, muitos brasileiros
também contratam seguros particulares ou pagam direta-
mente por serviços de saúde não cobertos por seus planos.
Essa é a realidade universal em sociedades que contam
com sistemas de saúde organizados.
Há uma coexistência de diferentes arranjos em dife-
rentes proporções, a depender das condições políticas e
sociais de cada lugar. É possível, porém, debater a respeito
da estrutura ideal para esses serviços em cada conjunto
de circunstâncias. Por isso, faz sentido entender as diferen-
ças entre os modelos e defender a adoção de uns frente
a outros, sempre levando em conta a complexidade da
sua implementação.
Atualidades e Geopolítica 29
Exercícios
1. Pesquise e descreva os sistemas de saúde dos se- d) Angola:
guintes países:
a) Inglaterra:

e) Estados Unidos:
b) Coreia do Sul:

2. Até o início do século XIX, a organização da saúde pú-

blica brasileira seguia o modelo português, organiza-
c) Alemanha:
do pelo físico-mor e pelo cirurgião-mor do Reino, com
seus delegados presentes nas províncias e colônias
portuguesas. Nessa época, o foco das ações de saú-
de pública era a fiscalização da higiene e dos alimen-
tos, de modo a prevenir infecções e epidemias. As
vítimas de enfermidades crônicas muitas vezes eram
delegadas aos cuidados de instituições de caridade
e de hospitais administrados por ordens religiosas.
Já as pessoas com maior poder aquisitivo, contrata-
vam os serviços de médicos e cirurgiões particulares,
remunerando-os por cada serviço prestado. A partir
dessas características, como poderíamos classificar
esse sistema de saúde pública?
a) Sistema híbrido.
b) Sistema público direto.
c) Sistema de seguridade social.
d) Sistema particular direto.
e) Sistema de seguros obrigatórios.

30 Atualidades e Geopolítica
230
 Serviços públicos: saúde pública (II)
Introdução à saúde pública
no Brasil
Contexto histórico
O sistema de saúde brasileiro evoluiu a partir de pro-
gramas e instituições criados ao longo de vários séculos.
Durante o Período Colonial, as instituições de saúde eram
organizadas similarmente às de Portugal e subordinadas à
Metrópole. Com a vinda da família real ao Brasil e o subse-
quente movimento pela independência brasileira em 1822,
a saúde foi reorganizada como uma instituição nacional.
As primeiras campanhas para o controle de doenças infec-
ciosas e para a vacinação da população começaram já
durante o século XIX, mas a maioria dos cuidados médi-
cos ainda era oferecida por serviços particulares e por pro-
fissionais liberais.
O avanço da indústria e dos fenômenos sociais as-
sociados à modernidade, como a urbanização, criaram
novos problemas e possibilidades para a promoção da
saúde pública. Anteriormente, a atenção das autoridades
públicas era limitada a cuidados básicos com a higiene,
ao controle sanitário dos portos e à inoculação contra
a varíola. A partir do crescimento dos centros urbanos,
porém, passou a ser necessário prestar maior atenção ao
controle de epidemias e à vacinação contra outras doen-
ças. Os exageros com que o governo brasileiro respondeu
a essas novas demandas levaram, inicialmente, a campa-
nhas malsucedidas, como a que resultou na Revolta da
Vacina, no Rio de Janeiro.
Foi a crescente organização trabalhista nos parques
industriais brasileiros, além da influência dos movimen-
tos políticos radicais na Europa, que causou a adoção
de um modelo de previdência de saúde baseado em
descontos da folha de pagamento e organizado por cor-
porações de trabalhadores e empregadores. Apesar do
sucesso desse modelo entre os grupos que o adotaram,
a maior parte da população não tinha acesso a esses
serviços, principalmente em áreas rurais ou nas nas-
centes periferias urbanas. Essas pessoas dependiam de
instituições filantrópicas ou da contratação de serviços
médicos avulsos.
A partir de 1945, começou o crescimento do setor
privado na área da saúde, com a expansão da assistência
hospitalar, fenômeno que se acelerou fortemente durante o
Regime Militar de 1964. Nessa época, a cobertura do sis-
tema de saúde foi ampliada para a quase totalidade dos
trabalhadores urbanos. No campo, a inclusão de trabalha-
dores rurais na previdência social também contribuiu para
o maior uso do sistema de saúde.
230
9
aula
Finalmente, nos últimos anos do Regime Militar,
membros da sociedade civil associados à área da saúde,
empreenderam o projeto de um sistema de seguridade so-
cial brasileiro: o Sistema Único de Saúde (SUS). Ele de-
veria combinar repasses dos governos federal, estadual
e municipal para criar um modelo de gestão descentra-
lizado capaz de lidar com a diversidade de problemas
sanitários do Brasil. Embora essa meta não tenha sido
alcançada em sua totalidade, o SUS representou uma me-
lhora no atendimento em saúde para uma grande parte
da população.
Estrutura
Atualmente, o sistema de saúde brasileiro apresenta
uma estrutura híbrida, com participação tanto do setor
público quanto do setor privado. O setor público opera
com recursos recolhidos dos impostos, além de contribui-
ções especiais para a área da saúde. Ele fornece serviços
em hospitais públicos e também contrata os serviços
de hospitais e clínicas particulares para alguns proce-
dimentos. O setor privado, por sua vez, depende de con-
tribuições do sistema de previdência privada, pagamentos
diretos e incentivos fiscais do governo.
Subsistema público
O subsistema público de saúde é formado pelo SUS e
por diversos outros programas associados, como o Samu
(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e as agências
reguladoras, como a Anvisa (Agência Nacional de Vigi-
lância Sanitária) e a ANS (Agência Nacional de Saúde
Suplementar). Ele é gerido de forma descentralizada com
ênfase na participação de autoridades locais, no cuidado
com a saúde familiar e em medidas de prevenção e cuida-
do primário. É importante também ressaltar a relevância
do setor público na área de pesquisa e na formação de
especialistas de alto nível, cujos serviços são contratados
também no setor privado.
Subsistema privado
O subsistema privado inclui diversas instituições
entre seguradoras, hospitais particulares e clínicas espe-
cializadas, além de organizações filantrópicas, sem fins
lucrativos. Os planos de saúde privados, estratificados
por níveis de renda são predominantemente utilizados
por trabalhadores de empresas comerciais. Dessa forma,
o subsistema privado tende a oferecer serviços mais di-
versificados e de melhor qualidade a um grupo específico
da população.
Atualidades e Geopolítica 31
 As pessoas atendidas por planos de saúde privados
costumam estar entre os grupos mais jovens e mais saudá-
veis da população, além de se concentrar na região Sudes-
te ou nas capitais e áreas metropolitanas de outras regiões.
Parte do atendimento público utiliza a infraestrutura do
setor privado, como quando o SUS utiliza leitos de inter-
nação em hospitais particulares.
Financiamento
O SUS é financiado por impostos recolhidos da po-
pulação pelos três níveis da federação, além de por con-
tribuições sociais adicionais, como a CPMF (taxa sobre
movimentações financeiras). O restante dos gastos com a
saúde é oriundo do desembolso direto ou dos gastos com
as folhas de pagamento de empregados e empregadores.
A maior parte dos recursos públicos da saúde vem
das contribuições sociais; os impostos representam uma
porção similar, mas menor, do financiamento público.
Embora o orçamento da saúde ocupe aproximada-
mente a mesma proporção dos gastos públicos, a des-
pesa pública com a saúde vem crescendo ao longo das
últimas décadas e deve continuar crescendo ao longo
dos anos. Apesar disso, a maior parte das despesas com
a saúde no Brasil continuam a ser financiadas com re-
cursos privados.
Quanto à estratificação dos gastos com saúde entre
populações de maior e menor renda, a principal diferença
não é a fração do orçamento gasta com saúde, mas a distri-
buição desses gastos. As pessoas com menor renda gastam
uma proporção maior do seu orçamento com remédios e
atendimentos avulsos, já as de maior renda tendem a gastar
mais com planos de saúde.
Infraestrutura
Os sistemas de saúde costumam ser divididos em
componentes conforme sua função no tratamento da popu-
lação. As três principais são: a Atenção Básica, responsável
por promover saúde, prevenir doenças e encaminhar
pacientes a níveis e instalações adequados para atendi-
mento posterior; a Atenção Especializada, responsável por
procedimentos de média complexidade e por diagnósticos
especializados, como tomografias e apoio terapêutico para
doenças crônicas; e a Atenção Hospitalar, em que são
contemplados procedimentos de alta complexidade, como
cirurgias e internações.
Classificação dos serviços no sistema
de saúde
Atenção Básica ou Primária
A Atenção Básica é uma parte fundamental de
qualquer sistema de saúde. Através de iniciativas de
prevenção e promoção de hábitos saudáveis, é possível
diminuir consideravelmente os danos à saúde individual
32 Atualidades e Geopolítica
e o contágio por doenças infecciosas na sociedade. Por
conta disso, o SUS tem privilegiado ações nessa área
com programas de atenção às famílias e às comunidades
pouco servidas pelo sistema privado.
As atividades da Atenção Básica incluem equipes
multidisciplinares com profissionais de diversas áreas,
como médicos, enfermeiros, psicólogos e ortodontistas. O
avanço de programas de Atenção Básica depende mui-
to da eficiência da gestão local e de sistemas de infor-
mação da saúde que agreguem dados sobre pacientes e
tratamentos, particularmente em áreas de difícil acesso.
Atenção Especializada ou Secundária
A Atenção Especializada é um foco de problemas e
ineficiências dentro do sistema de saúde brasileiro. Devido
às carências da infraestrutura pública, o SUS é obrigado
a recorrer frequentemente à contratação de equipamen-
tos do sistema privado, o que caracteriza uma situação de
falta de aparatos nos serviços de saúde. Nos serviços de
Atenção Especializada, também, as políticas de saúde pú-
blica buscaram aumentar o acesso da população através
da descentralização e da expansão dos tipos de serviços
oferecidos. As reformas do SUS nos últimos anos adota-
ram a oferta de tratamentos odontológico e psiquiátrico,
e atendimento ambulatório emergencial através de progra-
mas específicos, mas a criação de tantos sistemas paralelos
também dificultou a coordenação e o atendimento eficiente
do público.
Atenção Hospitalar ou Terciária
A maior parte dos hospitais brasileiros pertence à rede
particular, assim como ocorre com clínicas de diagnóstico
avançado. Assim, o sistema público costuma contratar os
serviços da rede privada para prover atendimento hospi-
talar à população sem acesso a planos de saúde privados.
Porém, a concentração geográfica de hospitais e instituições
de alto nível nas áreas metropolitanas e, em especial, na
região Sudeste, dificultam o atendimento da população de
outras regiões. Isso é particularmente problemático no caso
de procedimentos que envolvam a internação dos pacientes,
já que a distribuição dos leitos não corresponde à distribuição
da população nacional. Na prática, populações das regiões
Norte e Nordeste, e de municípios periféricos, em todas as
regiões, têm mais dificuldade de acesso a um sistema de
saúde de qualidade.
Uso pela população
Quando comparamos pesquisas sobre o uso do sistema
de saúde pela população desde 1981, é possível observar
um aumento considerável no acesso a serviços de saúde em
geral, e um aumento especialmente alto no uso de serviços
de Atenção Básica. Ao compararmos os dados brasileiros
com os de outros países, notamos uma tendência conver-
gente no uso de serviços de saúde, embora ainda com algu-
ma diferença. Por exemplo, cerca de 68% dos brasileiros
afirmavam ter consultado um médico em 2008, contra 80%
nos Estados Unidos. Essa convergência é até maior no caso
de populações de alta renda, em que 76% dos brasileiros
afirmaram ter consultado um médico no mesmo ano.
230
 De fato, a diferença entre os comportamentos rela-
cionados à saúde de populações de renda diferente chama
a atenção: apenas 59% dos brasileiros classificados como
de baixa renda consultaram um médico em 2008. No en-
tanto, essa diferença desaparece na comparação dos subgru-
pos dessas populações que reportaram doenças graves,
sugerindo que a disparidade no uso de serviços médicos
está bastante ligada a percepções e hábitos diferentes, e
não à carência de oferta pelo sistema público. Ainda assim,
há também diferenças importantes na oferta de cuidados
odontológicos: apenas 3,6% da população de alta renda
não havia procurado um dentista em 2008, contra 23,4%
da população de baixa renda.
Exercícios
1. (Unicamp) O SUS (Sistema Único de Saúde) foi definido
a partir de princípios universalistas e igualitários, quer dizer,
para todos e de forma igual, embasado na concepção
de saúde como direito de todos e dever do Estado. Essa
3. (Enem)
construção do SUS rompeu com o caráter meritocrático
que caracterizava a assistência à saúde no Brasil até a
Constituição de 1988. Os seus princípios, presentes no
artigo 196 da Constituição de 1988, foram implementados
gradualmente. Um de seus marcos é a Lei Orgânica da
Saúde (no 8.080) de 19 de setembro de 1990, que fundou
e operacionalizou o SUS.
Adaptado de Telma Menicucci. “História da reforma
sanitária brasileira e do Sistema Único de Saúde:
mudanças, continuidades e a agenda atual”.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos.
Rio de Janeiro, v. 21, n. 1,
p. 77-92, jan.-mar./2014.
Com base no excerto e em seus conhecimentos sobre
a história do Brasil, assinale a alternativa correta.
a) Os princípios universais e inclusivos do SUS foram
desmantelados durante a década de 1990 em razão
da crise inflacionária que assolou o país e das reformas
neoliberais que aumentaram os gastos do Estado com
a saúde e o saneamento.
b) A criação do SUS aconteceu no contexto de reaber-
tura política e da expansão democrática que sucedeu
ao Regime Militar. O seu funcionamento mostra as
dificuldades de financiamento da saúde pública entre
as décadas de 1990 e 2000.
c) O modelo que inspirou os princípios do SUS foi o sis-
tema universal de saúde de Cuba, cujos profissionais
prestaram consultoria ao Estado brasileiro durante a
formulação dos artigos referentes à saúde da Consti-
tuição de 1988.
d) Durante o governo do presidente Fernando Collor
(1990-1992), houve a suspensão do SUS e a expansão
dos sistemas de saúde baseados em planos privados
oferecidos por instituições estrangeiras que passaram
a atuar no país.
2. (Enem) A criação do Sistema Único de Saúde (SUS)
como uma política para todos constitui-se uma das
mais importantes conquistas da sociedade brasileira
no século XX. O SUS deve ser valorizado e defendido
como um marco para a cidadania e o avanço civilizatório.
230
A democracia envolve um modelo de Estado no qual
políticas protegem os cidadãos e reduzem as desigual-
dades. O SUS é uma diretriz que fortalece a cidadania
e contribui para assegurar o exercício de direitos, o
pluralismo político e o bem-estar como valores de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, con-
forme prevê a Constituição Federal de 1988.
Adaptado de M. L. F. Rizzoto et al. “Justiça social,
democracia com direitos sociais e saúde:
a luta do Cebes”. Revista Saúde em
Debate, n. 116, jan.-mar./2018.
Segundo o texto, duas características da concepção da
política pública analisada são:
a) paternalismo e filantropia.
b) liberalismo e meritocracia.
c) universalismo e igualitarismo.
d) nacionalismo e individualismo.
e) revolucionarismo e coparticipação.
Sr. Prefeito,
junte-se a nós na
luta contra a dengue.
A sua participação
é fundamental.
A dengue é um dos grandes desafios que enfrentamos
na área de saúde no Brasil, mas, felizmente, é possível
controlá-la. Para isso, é necessário que os governos
estaduais e municipais e o governo federal trabalhem
juntos. Nesse sentido, a sua atuação como prefeito é
fundamental. Organize mutirões, envolvendo líderes
comunitários da sua cidade, para lutar contra a dengue.
No site www.combatadengue.com.br há todas as
informações necessárias para auxiliá-lo, inclusive com
materiais para download de uso livre. A mobilização
social é a chave para o sucesso no combate à dengue.
Secretarias Estaduais
e Municipais da Saúde ANOS
Ministério
da Saúde U M P A Í S D E T O D O S
GOVERNO FEDERAL
Brasil. Ministério da Saúde. Revista Nordeste,
João Pessoa, n. 35, ano 3, maio-jun./2009.
Diante dos recursos argumentativos utilizados, depreen-
de-se que o texto apresentado:
a) se dirige aos líderes comunitários para tomarem a
iniciativa de combater a dengue.
b) conclama toda a população a participar das estraté-
gias de combate ao mosquito da dengue.
c) se dirige aos prefeitos, conclamando-os a organizarem
iniciativas de combate à dengue.
d) tem como objetivo ensinar os procedimentos técnicos
necessários para o combate ao mosquito da dengue.
e) apela ao governo federal, para que dê apoio aos gover-
nos estaduais e municipais no combate ao mosquito
da dengue.
Atualidades e Geopolítica 33
4. (Enem) Com base nos dados, conclui-se que:
a) a proporção de mortes por doenças isquêmicas do
Mortalidade proporcional em relação às principais causas (%), coração é maior na faixa etária de 30 a 59 anos que
no sexo masculino, em faixas etárias selecionadas. Brasil, 2004.
na faixa etária dos 60 anos ou mais.
60 15 a 29 anos 30 a 59 anos 60 anos ou mais b) pelo menos 50% das mortes na faixa etária de 15
45
40 a 29 anos ocorrem por agressões ou por causas
35 externas de intenção indeterminada.
30
25 c) as doenças do aparelho circulatório causam, na faixa
20
15 etária de 60 anos ou mais, menor número de mortes
10 que as doenças do aparelho respiratório.
5
0 d) uma campanha educativa contra o consumo exces-
M1 M2 M3 M4 M5 M1 M6 M2 M7 M8 M8 M6 M9 M10 M11
sivo de bebidas alcoólicas teria menor impacto nos
Fonte: Ministério da Saúde/SUS.
Causas externas Doenças do aparelho indicadores de mortalidade relativos às faixas etá-
M1 agressões circulatório rias de 15 a 59 anos que na faixa etária de 60 anos
M2 acidentes de trânsito ou mais.
M6 doenças isquêmicas
M3 causas externas de
intenção indeterminada do coração e) o Ministério da Saúde deve atuar preferencialmen-
M4 lesões autoprovocadas M8 doenças
cardiovasculares te no combate e na prevenção de doenças do apa-
voluntariamente
M5 afogamento e submersões
M9 outras doenças relho respiratório dos indivíduos na faixa etária de
cardíacas 15 a 59 anos.
acidentais
Doenças do aparelho respiratório Doenças do aparelho
M10 doenças crônicas das vias digestivo
aéreas inferiores M7 doenças do fígado
M11 pneumonia

Adaptado de <tabnet.datasus.gov.br>.

34 Atualidades e Geopolítica
230
 Serviços públicos: educação (I)
Introdução
A educação é um dos assuntos mais discutidos da
sociedade contemporânea, ocupando um lugar central na
abordagem de diversos temas extremamente relevantes
para o entendimento das condições sociais em que vivemos.
Questões relativas à legitimidade do modo de governo de-
mocrático, à competitividade econômica das sociedades, e
mesmo à satisfação individual de todas as pessoas depen-
dem de uma compreensão adequada do papel da educa-
ção nas nossas vidas.
As opiniões a respeito da finalidade ou da função da
educação são muitas. Essa diversidade corresponde em
parte à versatilidade do vocábulo, mas também ao fato de
que a educação é, ao mesmo tempo, tanto uma atividade
social como uma experiência íntima de cada pessoa. Como
veremos adiante, há uma tensão permanente ao longo da
história entre uma concepção política e social do ensino,
e uma ideia particular da educação como uma atividade
além das imposições da sociedade, um último refúgio da
consciência e da individualidade.
Perspectivas e funções da
educação
A palavra “educação” é propriamente aplicada a uma
grande diversidade de atividades e comportamentos. Desde
as primeiras tentativas de acostumar os recém-nascidos
a comer ou a dormir até a pesquisa de mais alto nível,
as atividades educacionais são extremamente variadas a
ponto de não se assemelharem em nenhum aspecto, nem
em seus procedimentos nem em seus resultados. Por con-
ta disso, não tentaremos aqui definir o que é educação. Ire-
mos, em vez disso, nos contentar com uma lista que inclui
as atividades educacionais mais comuns e mais relevantes
para a nossa discussão.
Além da educação inicial que recebemos de nossos
pais, há, hoje em dia, uma imensa variedade de serviços de
ensino que correspondem a uma demanda por vários tipos
de educação. Estamos falando, por exemplo, da alfabetização,
do ensino básico (Ensino Fundamental e Ensino Médio,
do Ensino Superior, da pesquisa acadêmica e do ensino
profissional. Outras atividades, como a performance atlé-
tica ou artística, o culto religioso, a introspecção e o tu-
rismo, também foram e são, comumente, consideradas
como relacionadas à educação das pessoas.
Como mencionado acima, há muitas formas de en-
xergar o papel da educação na vida das pessoas. Adian-
te, iremos examinar como essas diferentes concepções de
educação surgiram e floresceram ao longo da história, para
assim podermos formar um entendimento melhor dos mo-
tivos e incentivos que impelem os seres humanos a se de-
dicar à descoberta e à transmissão do conhecimento.
230
10
aula
A educação na Antiguidade
A pedagogia entre os gregos antigos se referia pro-
priamente ao ato de guiar as crianças durante o percurso
até a maturidade. A noção de educação entre eles era pre-
dominantemente associada à aquisição dos hábitos e dos
costumes próprios a um homem grego. De fato, essa con-
cepção de educação era aplicada aos meninos de famílias
das classes mais altas e envolvia o acompanhamento dos
jovens por homens mais velhos, considerados modelos de
comportamento, para que os alunos então imitassem os
seus modos e o seu caráter.
Naturalmente, também era possível contratar os ser-
viços de diversos especialistas em ofícios como a carpin-
taria, a metalurgia, a construção de barcos, a criação de
animais e o cultivo e preparo do solo. No caso dos dois
últimos, era comum que os filhos recebessem a maior par-
te da instrução de seus pais e familiares.
Além disso, a educação em diversas partes da Grécia
Antiga e, mais tarde, do Império Romano, sempre incluiu
um componente social e ritual direcionado à formação dos
cidadãos. Um dos exemplos mais claros é o serviço militar
obrigatório, em que os jovens do sexo masculino eram segre-
gados de suas famílias e reunidos em turmas, divididas por
idade. Eles praticavam marchas, vigílias e habilidades de
sobrevivência em locais inóspitos, além de receberem trei-
namento para combate.
Os gregos e os romanos também valorizavam a
habilidade retórica nos debates e nas assembleias po-
líticas em que eram tomadas as principais decisões do
governo. Por conta disso, particularmente após o sécu-
lo V a.C., surgiram profissionais dedicados ao ensino de
um currículo voltado a estimular as habilidades argu-
mentativas dos cidadãos. Os sofistas eram professores
itinerantes que ofereciam os seus serviços em troca de
dinheiro. Além do ensino da gramática, da retórica e da
dialética, haviam treinadores e mestres em outras ati-
vidades de alto prestígio, como o atletismo e a música.
Entre os sofistas, haviam também os filósofos, cujas es-
peculações a respeito da origem do Universo e do papel
da humanidade prefiguravam atitudes posteriores em
relação à religião e à ciência.
Como podemos ver, as sociedades clássicas já se
dedicavam a uma ampla variedade de atividades edu-
cacionais, com finalidades múltiplas e, por vezes, con-
traditórias. As instituições de ensino buscavam tanto
a uniformização e a preparação de seus cidadãos para
conflitos e competições – ou seja, para as necessidades
práticas da vida social – como abrigavam professores e
atividades dedicadas ao cultivo dos hábitos das pessoas
e da especulação filosófica.
Atualidades e Geopolítica 35
A educação na Idade Média
A maior parte do conhecimento e das instituições
clássicas perdeu-se durante os últimos séculos do Império
Romano e foram apenas gradualmente redescobertas em
uma série de renascimentos ao longo do Período Medieval.
O principal fator de transmissão da cultura clássica no início
da Idade Média foi os diversos monastérios, onde estavam
armazenados registros, papiros e pergaminhos da Idade
Antiga. Outros repositórios desse conhecimento eram a
tradição oral cristã e as referências encontradas na Bíblia.
Em um desenvolvimento similar ao que encontramos
entre gregos e romanos, os conhecimentos acumulados
pelos monges, por motivos especulativos e religiosos,
foram mobilizados e institucionalizados por conta de
demandas políticas. Durante seu reinado, Carlos Magno
ordenou a formação de escolas de ensino básico por todo
o Império Carolíngio, além de emitir recomendações para a
melhoria do ensino e para a normatização do latim usado
pelos monges. A finalidade dessas medidas era aumentar a
quantidade e a qualidade dos membros do clero capazes
de conduzir a administração do reino, incluindo a coleta
de impostos, o comando logístico dos exércitos e a disse-
minação da religião cristã, fator de prestígio e veículo da
legitimidade do imperador.
Os alunos mais promissores das escolas eram enca-
minhados às catedrais ou aos monastérios para estudos
avançados, uma oportunidade geralmente reservada aos
filhos de famílias mais abastadas ou bem relacionadas. Di-
ferentemente das sociedades da Antiguidade Clássica, ha-
via muito mais oportunidades para as mulheres de famílias
nobres, particularmente nos monastérios, onde elas podiam
alcançar posições administrativas de grande influência.
A principal diferença entre os dois tipos de instituições é
que os monastérios se dedicavam principalmente ao cultivo
dos hábitos monásticos e à introspecção religiosa, enquanto
as catedrais ensinavam um currículo baseado nas chamadas
artes, incluindo os componentes do trivium (gramática,
retórica e dialética) e os do quadrivium (aritmética, geome-
tria, música e astronomia).
Entre os séculos XII e XV, esse modelo de educação
foi profundamente alterado pela crescente influência das
cidades. Essas mudanças foram propiciadas pelo cresci-
mento do comércio e incluíram a disseminação de conhe-
cimentos e técnicas associadas à construção, à navegação,
ao comércio, às finanças e a outros ofícios. Também foi o
período de formação das guildas e das associações pro-
fissionais de aprendizagem, onde eram educados os futu-
ros artesãos e administradores de empresas de comércio,
crédito e câmbio monetário. Esse era um modelo funda-
mentalmente diferente do utilizado nas escolas do período,
onde o aprendiz trabalhava sob orientação de um mestre
por vários anos, assimilando as técnicas e os hábitos da
profissão. Finalmente, formaram-se também as primeiras
universidades, corporações voluntárias de alunos e profes-
sores para a investigação e a pesquisa em uma variedade
de assuntos especulativos.
Com a invenção da imprensa e o advento da Reforma
Protestante e, posteriormente, da Contrarreforma, várias
regiões da Europa passaram por uma revolução ainda mais
36 Atualidades e Geopolítica
profunda nas práticas de ensino. A extensão da alfabeti-
zação, que abrangeu setores amplos da população, gerou
uma série de novas possibilidades e demandas, acelerando
o processo de disseminação dos conhecimentos produzi-
dos e recuperados durante a Renascença. Paradoxalmen-
te, embora esses movimentos religiosos fossem inspirados
por questões de natureza essencialmente intelectual, as
suas consequências políticas e sociais foram profundas.
Sistemas nacionais de educação
A reorganização das relações internacionais e da es-
trutura social, após as guerras motivadas por questões reli-
giosas na Europa, gerou um cenário de intensa competição,
tanto internamente como entre os territórios europeus. Essa
competição se refletiu nos métodos e nos objetivos do ensi-
no escolar, cujo conteúdo variou durante a Idade Moderna
a depender dos interesses políticos da ocasião. Inicialmente,
quando a religião era vista como o principal fator de coesão
social, o ensino em países católicos e protestantes diferia e
enfatizava o aspecto religioso como o principal fator de iden-
tificação dos alunos. Similarmente, a formação dos Estados
Nacionais precipitou uma maior valorização de diferenças
entre diferentes grupos nacionais.
Como vimos anteriormente, a promoção do ensino e
a seleção dos currículos escolares estão intimamente liga-
das à administração das funções de Estado. Dentro desse
contexto, o avanço da ciência e da técnica, assim como
suas aplicações comerciais e militares, criaram incentivos
para a promoção da educação como fator de força e es-
tabilidade do corpo social. Ao mesmo tempo, a crescente
complexidade e o poder conferido pelas novas tecnologias
industriais levaram a uma gradual reorientação da forma
e do conteúdo do ensino.
Enquanto o período anterior havia sido caracterizado
pelo predomínio de instituições religiosas no campo da
educação, o advento da modernidade precipitou a transfe-
rência das funções de ensino para os governos nacionais.
Essa transformação incluiu a construção de novas institui-
ções de ensino, e a emergência de novas disciplinas e uma
nova abordagem administrativa. Os Estados Nacionais
promoveram a formação em massa de novos professores
dissociados da tradição religiosa, além da inauguração de
novos institutos de pesquisa e departamentos científicos
nas universidades. Vários países também promoveram
o estreitamento de laços entre os setores econômicos e
militares e as instituições de ensino, de modo a favorecer
a cooperação científica e o desenvolvimento de aplicações
comerciais e militares.
Por outro lado, a Idade Moderna também foi, desde o
seu início, intimamente associada ao progresso da ciência
e das novas ideologias políticas nascidas das revoluções
Inglesa, Francesa e Americana. As mesmas técnicas e
descobertas que possibilitaram a consolidação do poder
dos Estados Nacionais foram inicialmente investigadas
por intelectuais comprometidos sobretudo com o avanço
do conhecimento humano. Dessa forma, o recrudescimen-
to da tensão política na Europa convivia de forma muito
próxima com movimentos políticos, artísticos e científi-
cos cujas orientações tinham um caráter universalista.
230
Os desenvolvimentos sociais e tecnológicos anteriores 2. (Fuvest) Leia o texto.
permitiram também a extensão da influência de intelec- A corrupção nos costumes das mulheres é ainda
tuais sobre a sociedade à medida que suas obras se pro- uma coisa prejudicial ao fim que se propõe o governo, e à
liferavam em livros, panfletos, traduções e discussões nos boa conservação das leis do Estado [...]. É o que aconteceu
salões e cafés das principais capitais ocidentais. em Esparta [...].
Tais são as observações feitas entre os lacedemô-
A educação na Era Global nios: no tempo da sua dominação as mulheres resolviam
quase todas as questões. De resto, que diferença existe
As estruturas de ensino elaboradas durante a Idade em que as mulheres governem, ou que os magistrados
Moderna não sofreram grandes alterações durante a sejam governados por mulheres? [...] as mulheres dos
primeira metade do século XX. No entanto, as principais lacedemônios, mesmo no caso de perigo, fizeram-lhes o
instituições de educação, características das sociedades maior mal possível.
europeias, espalharam-se e foram copiadas ao redor do Aristóteles. A política. Rio de Janeiro:
mundo. A começar pelos antigos territórios coloniais, as Ediouro, s.d., p. 79-80.
concepções ocidentais de sociedade e ensino gradualmente
É correto afirmar sobre as mulheres na Grécia Antiga:
se sobrepuseram às tradições desses locais. Essa expansão
a) Obtiveram o direito à educação e acesso às escolas
levou a um movimento duplo de desenvolvimento científico-
filosóficas da cidade-estado de Atenas durante o
-tecnológico acelerado e à disseminação de uma enorme
Período Clássico.
variedade de ideologias, teorias e narrativas políticas em
b) Em Esparta, recebiam educação física na infância,
todo o mundo.
tinham direito à herança e administravam as proprie-
Esse processo de crescente conexão e homogeneização
dades na ausência dos maridos.
do pensamento, dos hábitos e dos costumes das popula-
c) Adquiriram poderes políticos como cidadãs apenas
ções ao redor do globo ocorreu simultaneamente com a
com o estabelecimento do Império Macedônico, sob
intensificação da competição econômica entre os países.
a liderança de Alexandre Magno.
Continuando a tendência moderna de associação entre
d) Em Atenas, podiam participar de algumas discussões
produtividade econômica e qualidade educacional, isso fez
na Eclésia e possuíam direitos políticos durante o
com que os governos de diversos países e organizações
período da democracia.
internacionais reconhecessem a necessidade de melhorar
e) Tornaram-se legisladoras e integrantes do conselho
a qualidade do ensino através da pesquisa e da compara-
dos mais velhos na cidade-estado de Tebas.
ção de métodos de ensino. O resultado foi a compilação
de dados e métodos de mensurar o aprendizado aplicados 3. Caracterize a política de educação sob Carlos Magno e
como precursores de uma política educacional global forte- seu significado político.
mente atrelada às necessidades econômicas de organismos
e corporações transnacionais.
Paralelamente, a multiplicação de formas de transmi-
tir e publicar informações levou à criação de comunidades
de pessoas que partilham valores e praticam atividades em
comum, independentemente de limitações geográficas. O
mesmo ocorreu com instituições de ensino e controle do
fluxo de informações, como as universidades e a imprensa,
precipitando um cenário onde a informação é extremamente
abundante, descentralizada e opaca, carecendo de árbi-
tros legítimos da qualidade da informação.

Exercícios
1. Como é possível explicar as diferentes posições acerca 4. De que forma o desenvolvimento urbano na Idade Média
da finalidade e da função da educação? modificou as práticas de educação?

Atualidades e Geopolítica 37
230
 11 Serviços públicos: educação (II)
au la
Introdução
A educação assumiu diversas funções em diferentes
contextos ao longo da história. No entanto, apesar de a
educação hoje em dia continuar a contemplar uma ampla
variedade de finalidades, ela se tornou uma de nossas prin-
cipais preocupações devido à sua relação com a estrutura
e o crescimento econômico da nossa sociedade. Uma me-
lhora na qualidade da educação não só contribuiria para
aumentar a qualidade de vida e melhorar o convívio so-
cial, mas também seria determinante para a estabilidade e
a prosperidade da sociedade brasileira em um mundo cada
vez mais interconectado e competitivo.
Nos últimos vinte anos a educação brasileira passou
por um processo de expansão e reestruturação que
trouxe muitos resultados positivos. A escolaridade média
dos brasileiros praticamente dobrou, e os resultados em
avaliações internacionais também mostram uma melhora
significativa. Apesar disso, o país ainda se encontra entre
os últimos colocados em muitas medidas de qualidade
e capacitação dos seus cidadãos. Nesta aula, nós iremos
examinar a organização e o orçamento da educação no
Brasil, bem como o desempenho histórico do país em
avaliações internacionais.
O sistema de educação
brasileiro
A responsabilidade pela educação no Brasil é dividida
entre as esferas municipal, estadual e federal, e regulada
por uma legislação codificada na Constituição Federal de
1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB). Os princípios apresentados nesses dois documentos
são suplementados pela Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). O artigo 205 da Constituição de 1988 estabelece
que a educação é um direito de todos e imputa ao Estado, à
família e à sociedade como um todo a promoção e o incen-
tivo de atividades educativas. Ele também fixa como obje-
tivos da educação nacional o desenvolvimento individual,
o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.
O papel da LDB é descrever em maiores detalhes as
responsabilidades das diferentes instituições educacionais
no Brasil. Ela divide a educação nacional em Educação
Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino
Superior. Além dessas, há também outras divisões, como
a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Indígena e a
Educação Especial, direcionada a pessoas com deficiência.
A LDB também disciplina a divisão de atribuições entre as
esferas da federação.
Aos municípios cabem a oferta de creches e institui-
ções pré-escolares, a rede de transporte escolar municipal
e o Ensino Fundamental público. Os estados são responsá-
veis pelo repasse e pela gestão de recursos da educação
38 Atualidades e Geopolítica
para os municípios, pela rede de transporte estadual e pe-
la rede pública de Ensino Médio, apesar de costumarem
atuar também no Ensino Fundamental. Por fim, a União deve
elaborar e criar cursos do Ensino Superior, avaliar a quali-
dade do ensino e elaborar o Plano Nacional de Educação.
A BNCC, por sua vez, é um conjunto de normas que
orientam a elaboração de currículos escolares e a prática do
ensino no país. A função da BNCC é garantir a coerência dos
programas educacionais em todo o país, permitindo flexibi-
lidade às instituições de ensino e alinhando a educação com
um conjunto de competências básicas em âmbito nacional.
O que é considerada uma competência? A BNCC
considera como competência a capacidade de mobilizar
conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para a
resolução de problemas referentes ao cotidiano, à cidadania
e à produção econômica. Um exemplo característico é a
habilidade do aluno de entender o mundo econômico
e fazer escolhas alinhadas ao seu projeto de vida, que
contempla a inserção no mundo profissional.
Os princípios e as competências da BNCC buscam re-
conciliar as diversas demandas educacionais presentes na
sociedade brasileira, tais demandas são uma expressão das
variadas perspectivas possíveis a respeito do tema educação.
Como tal, a BNCC busca contemplar as dimensões artísti-
cas, esportivas, espirituais, culturais, profissionais, linguís-
ticas, tecnológicas, emocionais e sociais do conhecimento
e da educação.
Indicadores da educação no Brasil
Assim como determina a LDB, a administração de um
sistema nacional de educação requer estruturas de coor-
denação nacionais capazes de avaliar e orientar o desen-
volvimento de políticas públicas para a educação em todo
o país. Um dos principais instrumentos necessários para
essa tarefa é a produção de indicadores da qualidade da
educação. Nesta aula, vamos examinar os dados do Censo
Escolar e de mais dois tipos de indicadores de qualidade:
os dados recolhidos pelo Ideb, o Índice de Desenvolvi-
mento da Educação Básica, e os resultados do Pisa, o Pro-
grama Internacional de Avaliação de Estudantes.
Censo Escolar
Os dados do Censo Escolar de 2019 mostram que a
educação básica no Brasil inclui 47,9 milhões de alunos
matriculados em 180,6 mil escolas. Desse total, 48,1% es-
tudam em escolas da rede municipal, 32% na rede esta-
dual e 0,8% na rede federal. A Educação Infantil inclui
8,9 milhões de alunos, com um crescimento de 5,2 mi-
lhões de matrículas. Essa etapa da educação também con-
centra o maior número de estudantes em regime de tempo
integral, com 56,4% estudando nesse período. Também é a
etapa em que ocorre a maior concentração na rede privada:
45,3% dos alunos estudam em instituições particulares.
230
 Os anos iniciais do Ensino Fundamental registram
uma queda expressiva do número de alunos em regime Comparação dos dados do Ideb por região
integral, com apenas 9,4% de matrículas nessa modalida- (rede pública)
de. A queda no número de alunos em escolas particulares
também é acentuada em relação à etapa anterior, com Meta para o
Região Ideb 2005 Ideb 2019
uma taxa de apenas 19,2%. Quanto aos anos finais, veri- Ideb 2019
ficamos mais uma queda nessa estatística: só 15,4% dos
alunos concluem o Ensino Fundamental em instituições de Norte 2,9 5,0 4,9
ensino privado. Finalmente, no Ensino Médio, esse número
alcança apenas 12,5%. Como veremos adiante, a propor- Nordeste 2,7 5,2 4,6
ção de alunos em escolas de ensino da rede privada é
relevante para a qualidade da educação no país, devido à Centro-
3,8 5,9 5,7
-Oeste
maior qualidade da educação ministrada.
Sudeste 4,4 6,2 6,2
Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb) Sul 4,3 6,2 6,1
O Ideb é um índice composto por dois fatores:
Brasil 3,6 5,7 5,5
1. O desempenho dos alunos em uma prova de Língua
Portuguesa e Matemática, padronizada de 0 a 10. Adaptado de MEC-Inep.
2. A média harmônica da taxa de aprovação percentual
dos alunos em cada uma das etapas de ensino: anos Programa Internacional de Avaliação
iniciais do Ensino Fundamental, anos finais do Ensino
Fundamental e Ensino Médio.
de Estudantes (Pisa)
O produto desses dois fatores representa o índice de O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes
desenvolvimento educacional da região considerada. Por é uma pesquisa realizada pela Organização para a Coope-
exemplo, numa escola onde os alunos alcançam nota mé- ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para coletar
dados e compor estatísticas que permitam a compara-
dia de 8 pontos na prova e onde a taxa de aprovação mé-
ção e o planejamento de políticas públicas de educação
dia é 90%, o Ideb seria de 7,2. Naturalmente, esse índice
em âmbito internacional. A pesquisa consiste na aplica-
pode corresponder tanto a uma escola como a uma região
ção de provas incluindo conhecimentos em Leitura, Mate-
do país. No cenário brasileiro, um Ideb de 7,2 correspon-
mática e Ciências a alunos na faixa dos 15 anos de idade. Os
deria aos resultados das melhores unidades da federação,
resultados do Pisa permitem que cada país participante
como podemos ver na tabela abaixo:
avalie o seu desempenho e competitividade em compara-
ção com outros países do mundo.
Comparação dos dados do Ideb por região (total)
Resultados do Pisa 2018
Meta para o
Região Ideb 2005 Ideb 2019
Ideb 2019
País Leitura Matemática Ciências
Norte 3,0 5,0 5,0
Brasil 413 384 404

Nordeste 2,9 5,4 4,9 México 420 409 419

Centro- Chile 452 417 444

4,0 6,1 5,9
-Oeste
Rússia 479 488 478
Sudeste 4,6 6,5 6,4
Japão 504 527 529
Sul 4,4 6,3 6,3
Estados
505 478 502
Brasil 3,8 5,9 5,7 Unidos

Fonte: MEC-Inep. Fonte: <oecd.org/pisa/publications/pisa-2018-results-htm>.

Podemos também analisar os mesmos dados excluindo Entre os países participantes, a seleção acima inclui al-
os resultados das escolas da rede privada. Ao fazê-lo, nota- guns cujas características culturais ou demográficas são re-
mos uma defasagem relativamente uniforme de cerca de lativamente similares às do Brasil (a organização da tabela
0,2 ponto entre a rede privada e a rede pública. segue a ordem crescente das notas de Leitura dos países).

Atualidades e Geopolítica 39
230
Com exceção do Chile, cujo desempenho foi o melhor en- 3. O que é o Ideb e qual a sua importância?
tre os países da América Latina, todos os outros têm uma
população comparável à do Brasil. Esse dado é relevante
porque muitos dos melhores resultados são obtidos por
países menos populosos, como Singapura, Estônia, Canadá
e Finlândia.
No caso de países cuja cultura e desenvolvimento são
consideravelmente diferentes dos do Brasil, como Rússia,
Japão e Estados Unidos, a comparação revela a influência
das atitudes históricas e das políticas públicas desses países
na qualidade da educação. Talvez a comparação mais per-
tinente seja com o México, um país de cultura e população
semelhantes às do Brasil. Nesse caso, notamos apenas uma
pequena diferença de desempenho entre os dois, porquanto a
defasagem nas notas de Matemática e Ciências é maior, reve-
lando a necessidade de um foco maior em políticas públicas
relacionadas a conhecimentos em ciência e tecnologia.

Exercícios
1. Como se organiza a responsabilidade pela educação no
Brasil e de que forma é regulada?

4. Explique o que é o Pisa e seu significado.

2. No que consiste a BNCC e qual a sua função?

40 Atualidades e Geopolítica
230
 Serviços públicos:
segurança pública (I)
Introdução
Quando refletimos a respeito do que queremos para o
futuro da nossa sociedade, o tema da segurança pública é
um dos mais importantes. De fato, ele é um dos temas mais
frequentemente mencionados em pesquisas que procuram
avaliar as prioridades dos cidadãos brasileiros, ficando atrás
apenas dos temas saúde e educação. Apesar disso, é possível
argumentar que a importância da segurança é subestimada
pela maioria das pessoas, especialmente por aquelas que têm
a felicidade de raramente se deparar com a violência. Isso
ocorre, em parte, porque, similarmente ao que acontece com
a saúde, a importância da segurança pública só é verdadei-
ramente percebida quando esta se ausenta de nossas vidas.
No entanto, também é importante refletir sobre o impacto da
violência no exercício dos direitos dos cidadãos.
Um ambiente seguro e previsível é uma condição ne-
cessária para o exercício da liberdade dos cidadãos em seu
cotidiano e ao longo de suas vidas. Quando uma pessoa dei-
xa de ir ao mercado após um certo horário, ou quando deixa
de frequentar ou atravessar certas áreas de uma cidade por
medo do que possa lhe acontecer, estamos diante de um
cenário em que seus direitos estão sendo cerceados. Mais
importante ainda, do ponto de vista social, é a existência de
lugares públicos limpos e seguros que favoreçam a vida co-
munitária, o florescimento de laços entre famílias e a coesão
de grupos de moradores; mas tudo isso se torna impossível
em um cenário de alta da criminalidade. Em outras palavras,
a falta de segurança pública se traduz em perda de direitos
fundamentais ao longo do tempo, principalmente através
de processos de degradação de ambientes e equipamentos
públicos como parques e praças.
Naturalmente, é importante estar atento a disparida-
des na forma como a segurança pública influencia a vida
das pessoas. As restrições descritas no parágrafo acima
são muito maiores para crianças, mulheres e idosos, além
de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
A falta de segurança nas ruas tende a ter um impacto mui-
to maior no comportamento dessas pessoas, impedindo a
sua livre circulação e desencorajando a formação de co-
munidades entre elas. De uma forma ou de outra, acaba
sendo necessário isolar ou criar ambientes para o convívio
dessas pessoas, o que tende a segregar e a privatizar a vi-
da pública no Brasil. Contatos e atividades que poderiam
ocorrer em ruas, praças e avenidas migram para shoppings,
cafés, academias ou creches. Dessa forma, a violência tem
um impacto muito grande na vida das famílias brasileiras,
já que tende a aumentar os custos da formação familiar.
O mesmo ocorre com a formação de associações
de toda natureza, com impactos desproporcionalmen-
te negativos para pessoas de baixa renda. Comerciantes
ambulantes e trabalhadores autônomos frequentemente
trabalham em lugares públicos e estão expostos ao risco
de ter seus negócios afetados pela violência e pelo crime.
230
12
aula
Isso os coloca em desvantagem na competição com lojas e
comércios mais bem estabelecidos e que dispõem de meios
de mitigar a violência em seu entorno. Em geral, a insegu-
rança com relação à vida e à propriedade atua como fator
de fomento da desigualdade e da miséria ao diminuir as
possibilidades de ascensão social dessas pessoas. Existem
ainda muitos outros exemplos de como a insegurança com-
promete as garantias constitucionais e as expectativas dos
brasileiros. O elo comum entre todos eles é o fato de evi-
denciar a interação entre a segurança pública e o usufruto
de todos os outros bens públicos disponíveis na sociedade.
O aparato de segurança
no Brasil
A responsabilidade pela segurança é dividida entre
diversas corporações públicas que perfazem o sistema
de segurança pública. A divisão estabelecida pela Consti-
tuição de 1988 compreende vários tipos de organizações
policiais e corpos de bombeiros, a saber: as Polícias Fede-
ral, Civil, Militar, Rodoviária e Ferroviária, e os Corpos de
Bombeiros Militares. Recentemente, a Emenda Constitu-
cional no 104 criou as Polícias Penais federal, estaduais e
distrital. Como veremos a seguir, essas corporações são
divididas a partir de suas diferentes funções e jurisdições.
Polícia Federal
A Polícia Federal atua para garantir os interesses da
União, preservando a ordem política e social, protegendo
fronteiras terrestres e marítimas e atuando na investigação
de crimes de âmbito federal. Ela também está envolvida na
prevenção, na investigação e na repressão de crimes de re-
percussão interestadual, e mais especificamente do tráfico
de drogas em território nacional. Uma peculiaridade impor-
tante da Polícia Federal é o fato de ela atuar como polícia os-
tensiva, em operações de patrulha e prevenção, e também
como polícia judiciária, apurando e investigando crimes.
Como veremos adiante, as outras corporações policiais bra-
sileiras tradicionalmente separam essas duas funções.
A Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Ferroviária
Federal fazem o patrulhamento ostensivo das rodovias e
ferrovias, respectivamente, que, por cruzarem múltiplos
estados, não poderiam ser patrulhadas por polícias esta-
duais de forma eficiente.
Polícia Militar
Diferentemente da Polícia Federal, a Polícia Militar
opera sob a autoridade do governador de cada estado da
federação em que têm sede. Sua função é o patrulhamen-
to e a prevenção do crime, motivo por que é vista com
frequência em lugares públicos. Os integrantes da Polícia
Atualidades e Geopolítica 41
Militar, assim como os integrantes dos Corpos de Bom-
beiros Militares, são comumente egressos de academias
militares e são considerados forças auxiliares e reserva do
Exército brasileiro. Por conta disso, seus membros aderem
a normas de conduta similares às das Forças Armadas.
Polícia Civil
Assim como a Polícia Militar, a Polícia Civil é subor-
dinada ao governador de cada estado em que se encontra.
Sua função é apurar e investigar os crimes, participando
assim do processo penal. A Polícia Civil é formada por
funcionários públicos de carreira, mais conhecidos como
delegados de polícia, escrivães e investigadores.
Como fica evidente pela descrição até aqui, as funções
das Polícias Civil e Militar são complementares e exigem
a integração dos serviços de ambas as corporações. Re-
centemente, a falha nesse processo de integração motivou
tentativas de unificar as duas corporações policiais, o que
formaria a chamada Polícia de Ciclo Completo, que atuaria
tanto na prevenção como na investigação dos crimes.
Polícia Penal
Por fim, foi criada, recentemente, a Polícia Penal, sob
autoridade do órgão administrador dos complexos prisionais
em que atuam. Assim, há uma Polícia Penal Federal para pa-
trulhar os presídios federais, Polícias Penais Estaduais para os
presídios estaduais, etc. Uma característica importante e fre-
quentemente contestada por policiais dessas corporações é o
fato de não poderem portar armas dentro dos presídios.
O processo penal no Brasil
Um tema frequente em discussões sobre a segurança
pública no Brasil é a questão da impunidade. A impunida-
de se refere à ausência da punição de delitos e está, por-
tanto, intimamente relacionada à capacidade da sociedade
de identificar, investigar e organizar a punição de infratores.
Quanto mais difícil for cumprir qualquer uma dessas etapas,
ou seja, quanto mais ineficiente for o processo penal, maior
será a impunidade. Por conta disso, o aumento da eficiên-
cia do processo penal em cada uma de suas etapas é funda-
mental para a manutenção da segurança pública.
O processo penal envolve a colaboração de diversas
partes da sociedade, desde vítimas dos crimes e possíveis
testemunhas até as forças policiais, o Ministério Público e
os tribunais. A seguir, vejamos como cada uma dessas cor-
porações age durante esse processo.
O processo penal tem início com um pedido de inves-
tigação por parte da vítima ou de outra parte interessada no
caso, incluindo o Ministério Público. Tomando como exem-
plo um caso de homicídio, um parente, um amigo, ou um
colega da vítima poderia solicitar um inquérito policial a
respeito do crime. Alternativamente, um juiz ou represen-
tante do Ministério Público pode requisitar a instauração do
inquérito. Mas o que é um inquérito policial? É a fase ini-
cial da investigação de um crime, em que a polícia judiciária
(Polícia Civil do estado ou Polícia Federal) procura apurar
os fatos ocorridos. Alguns procedimentos comuns em um
inquérito são: visitar o local do crime, colher evidências, en-
trevistar testemunhas e identificar suspeitos.
42 Atualidades e Geopolítica
Após a investigação inicial, o delegado de polícia
elabora um relatório que é encaminhado a um juiz. O juiz
decide então se autoriza um promotor, membro do Mi-
nistério Público, a analisar os autos. O promotor, por sua
vez, deve então analisar o relatório policial e determinar
se dará prosseguimento ou arquivará o processo. Caso ele
decida pelo prosseguimento, pode requisitar uma nova in-
vestigação policial ou encaminhar a denúncia do crime ao
juiz. O juiz pronuncia a citação e interroga o acusado, que
deve escolher um advogado para sua defesa. Ouvidos os
argumentos da promotoria e da defesa, o juiz deve deci-
dir se há indícios suficientes de que o acusado cometeu o
crime. Em caso afirmativo, o juiz envia o processo ao jú-
ri para decidir a culpa ou absolvição do acusado, agora
chamado de réu. Após uma série de etapas envolvendo a
apresentação e o confronto entre as partes, o julgamento
do réu termina com os membros do júri respondendo às
perguntas do juiz, que determinará a sentença de acordo
com essas respostas.
Como vemos, o processo penal é longo e bastante
complexo. Em certa medida, isso é necessário para ga-
rantir aos cidadãos a idoneidade e a justiça do processo
penal. Um processo penal caracterizado pelo arbítrio ou
pelo desleixo levaria ao descrédito do sistema de justiça,
com graves consequências sociais. Todavia, uma socieda-
de justa deve equilibrar essas demandas processuais com
a demanda material de manutenção da lei e da ordem. Um
processo penal caracterizado pela impunidade e pela ine-
ficiência igualmente trabalha no sentido de desmoralizar
os cidadãos e desacreditar as leis. Assim, ao refletir sobre
a segurança pública no Brasil, e sobretudo ao sugerir in-
tervenções no aparato de segurança e no processo penal,
convém ter em mente esses dois grupos de demandas.
Exercícios
1. Recentemente, seis parques públicos da capital pau-
lista passaram a ser geridos pela Urbia, um consór-
cio de empresas privadas. Os imóveis sob gestão da
Urbia incluem tanto parques localizados em regiões
centrais, como o parque do Ibirapuera, quanto parques
localizados em regiões periféricas de São Paulo, como é
o caso do parque Lajeado em Guaianases. Leia o trecho
a seguir e responda às perguntas.
A reportagem visitou os parques Ibirapuera, Faria Lima e
Lajeado para ouvir os frequentadores sobre as principais
diferenças nas áreas verdes. Em sua maioria, dizem que
sentiram diferença – para melhor – na manutenção e na
segurança dos lugares, embora tenham críticas pontuais.
[...] Para Vitor Suter, morador do Parque Mundo Novo, a
concessão mudou o “tipo de população” que costumava
frequentar o espaço. “Desde criança eu moro aqui perto.
Quando eu era menor, não vinha, porque a gente ouvia
falar que não era muito seguro. Agora eu venho quase
todos os dias”, diz.
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/
ultimas-noticias/redacao/2021/10/03/concessao-
parques-ibirapuera-construcap-
frequentadores-melhora.htm>.
Acesso em: 28 jan. 2022.
230
 a) É possível afirmar que existe uma relação entre segu-
rança e acessibilidade ao usufruto de bens públicos?
Qual o significado dessa relação para a garantia dos
direitos dos cidadãos?
3. Em um mundo ideal, o processo penal resolveria to-
dos os crimes, identificando corretamente inocentes
e culpados e administrando as sentenças próprias a
cada caso. No mundo real, porém, é impossível proje-
tar um sistema que não possua alguma falha. O pro-
cesso penal erra tanto ao inocentar criminosos como
ao condenar inocentes, sendo necessário calibrá-lo
para atingir um equilíbrio aceitável no contexto de cada
sociedade. Sugira uma proposta de intervenção que
diminua o número de criminosos inocentados e uma
que diminua o número de inocentes culpados. Discuta
as desvantagens de ambas.

b) Em seu depoimento, o morador do Parque Mundo

Novo alude a uma mudança no “tipo de população”
que frequenta o parque após as mudanças e afirma
que, durante a sua infância, ele evitava ir ao parque.
Em que sentido a falta de segurança atua para al-
terar o comportamento e a qualidade de vida das
crianças? Há outras populações que são influenciadas
da mesma forma?

2. Em sociedades modernas, a manutenção da seguran-

ça pública é uma tarefa complexa que exige a coopera-
ção de vários atores sociais. Cite três deles e descreva
suas funções no processo penal.

Atualidades e Geopolítica 43
230
 Serviços públicos:
13
au la segurança pública (II)
Características da criminalidade levar em conta a heterogeneidade do território brasileiro.
A violência não é uniformemente distribuída em território
A estabilidade e a segurança são pré-requisitos neces- nacional. Além disso, durante as primeiras décadas do sé-
sários para a vida social. Famílias, associações culturais, culo XXI, ocorreram mudanças na distribuição geográfica
grupos de moradores e outras comunidades tendem a flo- da criminalidade brasileira.
rescer em regiões onde existe alguma garantia de que seus É importante mencionar que os gráficos usam a taxa
membros estarão seguros e suas atividades não serão inter- de homicídios por cem mil habitantes para identificar a
rompidas. De forma geral, a habilidade de uma sociedade tendência à criminalidade em cada região. Escolhemos a
de investir no seu futuro e atingir um patamar superior de taxa de homicídios por dois motivos: em primeiro lugar,
desenvolvimento depende da sua confiança de que esse esse é um crime relativamente grave e que sempre deixa
investimento dará frutos. Um ambiente instável e cheio de evidências de sua ocorrência, no caso a morte de uma
ameaças prejudica esse processo, condenando regiões de pessoa. Em segundo lugar, a estatística usada para medir
alta criminalidade à pobreza e à dependência. a taxa de homicídios é o número de ocorrências de ho-
O aparato de segurança pública existe justamente pa- micídio dividido pela população da região considerada.
ra evitar esse tipo de cenário, diminuindo taxas de crimi- Essa estatística equilibra o peso das regiões mais popu-
nalidade e protegendo a sociedade. Para isso, é importante losas e das menos populosas na análise. Note que, caso
termos um bom entendimento das origens do comporta- utilizássemos apenas o número de ocorrências, estados
mento criminoso, dando feição às suas características e mais populosos certamente pareceriam sofrer mais com
entendendo suas origens. Um crime pode ser caracteriza- a criminalidade, embora o número maior de homicídios,
do como uma transgressão social tipificada na lei. Assim nesse caso, seja apenas reflexo do maior número de pessoas
como o pecado, o solecismo, o comportamento antides- vivendo na região.
portivo e a indiscrição, o crime viola a nossa percepção de O gráfico abaixo mostra a taxa de homicídios nacional
normalidade, dando origem a sentimentos de confusão, nos anos entre 1989 e 2019. Notamos de início que, durante
ansiedade, raiva ou vergonha. Ao contrário desses outros,
o período em consideração, o valor mínimo (20,3) e o valor
porém, o crime é administrado pela sociedade por meio de
máximo (31,6) guardam uma distância considerável. Além
instrumentos específicos ligados ao campo do Direito.
disso, apesar de quedas pontuais, a taxa de homicídios cres-
Enquanto outras transgressões sociais são mitigadas
ceu durante o período, atingindo o seu máximo em 2017,
através da instrução, da polidez, da elegância e do ridícu-
quando ela caiu precipitosamente. Como explicar essas
lo, a criminalidade configura um grupo de transgressões
variações na taxa de homicídios durante esse período?
que requer medidas de ordem legal.

Dados sobre a Taxa de homicídios do Brasil (1989-2019)

31,6
criminalidade 30 29,1 29,4 29,8
28,9
30,3
28,5 28,6
no Brasil 25,926,2
27,4 27,9 26,9
26,1 26,626,226,7
27,2
27,8 27,5 27,8

25,4
A criminalidade é um 25 24,8
23,8
homicídios (a cada 100 mil habitantes)

dos problemas mais gra- 22,2

21,2 21,7
ves enfrentados pela so- 20,3
20,9
20,2
ciedade brasileira. A ilus- 20 19,2

tração mais contundente

desse desafio é o número
15
médio de homicídios em
território nacional, que ul-
trapassou 50 000 mortes 10
por ano durante as últimas
décadas. Esse nível de vio-
lência torna a criminalida- 5
de brasileira equivalente
aos efeitos de uma guer-
ra civil e representa uma
199
199
199
199
199
199
199
199
199
199
198

200
200
200
200
200
200
200
200
200
200
201
201
201
201
201
201
201
201
201
201

enorme perda para o país.

0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
9

0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9

Apesar disso, é importante Fonte: Ipea, Atlas da violência.

44 Atualidades e Geopolítica
230
Fatores correlacionados
à violência
O crescimento acelerado da taxa de homicídios
desde a década de 1980 é um dos fatos mais importan-
tes para compreender a sociedade brasileira. Para tanto,
é necessário primeiro compreender que a criminalida-
de é um fenômeno complexo cuja explicação é multi-
facetada. As origens do crescimento na taxa de homi-
cídios podem ser identificadas em diversos indicadores
e transformações da sociedade brasileira, entre eles a
estrutura etária, a urbanização e a organização de gru-
pos criminosos. Vale a pena enfatizar que a criminalida-
de não pode ser exclusivamente atribuída a uma única
causa, mas deriva sempre de uma conjuntura que envol-
ve fatores populacionais, geográficos, econômicos e so-
ciais. Tomemos como exemplo a evolução da estrutura
etária da população brasileira.
Ao analisarmos a pirâmide etária brasileira, verifi-
camos que o período que vai dos anos 1980 ao início
dos anos 2010 corresponde ao momento em que a po-
pulação jovem era predominante. O Mapa da Violência,
um estudo realizado desde 1998 compreendendo dados
desde 1979, mostra que a taxa de homicídios aumentou
97% durante o período de 1979 a 1996 entre a popula-
ção total, mas 135% entre a população jovem. Assim,
parte do aumento observado no gráfico corresponde
simplesmente à maior tendência a crimes violentos entre
a população jovem.
Além da questão etária, o aumento da população
nas cidades teve um impacto importante na taxa de ho-
micídios. Embora o processo de urbanização brasilei-
ro tenha se iniciado já no final do século XIX, a maior
transferência de população do campo para a cidade
ocorreu entre as décadas de 1950 e 1980, período ime-
diatamente anterior à alta dos homicídios. De acordo
com o Mapa da Violência, a taxa de homicídios nas
grandes capitais se manteve superior à da população
geral de cada estado entre 1989 e 1996. Corroborando
esse padrão, notamos que em 2019 todas as dez cidades
com maior taxa de homicídios são capitais de algum
estado ou o Distrito Federal.
Os fatores elencados até agora, apesar de úteis para a
compreensão do aumento na taxa nacional de homicídios,
não dão conta da variação regional, uma característica re-
lacionada, sobretudo, a diferentes políticas públicas imple-
mentadas pelos estados brasileiros. Observando o gráfico
a seguir, notamos que, no início do período em conside-
ração, a região Sudeste apresentava uma taxa de homicí-
dios bastante superior à das outras regiões. No entanto, a
partir de 2004, ela começou a cair, estabilizando por volta
de 2008. Simultaneamente, a taxa de homicídios da região
230
Nordeste esteve em ascensão, durante todo o período, até
2017, quando todas as regiões apresentaram uma rápida
queda em suas taxas de homicídios. Como podemos explicar
esse comportamento?
Evolução da taxa de homicídios por região
25 000
20 000
15 000
10 000
5 000
0
1990 1995 2000 2005 2010 2015
Nordeste Sudeste Norte
Sul Centro-Oeste
Fonte: Ipea.
Especialistas atribuem a queda paulatina nos índi-
ces de violência nos estados do Sudeste a uma combi-
nação entre a melhoria de políticas públicas de segu-
rança e o deslocamento de atividades das principais
facções do crime organizado, PCC (Primeiro Comando
da Capital) e Comando Vermelho, para as regiões Norte e
Nordeste do país. Esse fenômeno, quando somado ao cres-
cimento econômico desordenado da região Nordeste e ao
despreparo das políticas de segurança desses estados,
resultou na alta da violência nessa região.
Resta apenas dar conta da queda brusca na taxa de
homicídios em todas as regiões a partir de 2017. Não há
consenso a respeito de uma explicação satisfatória para
essa aparente diminuição da violência em todo o Brasil.
Muitos especialistas apontam para uma deterioração na
capacidade dos órgãos de governo de coletar dados du-
rante esse período, além, claro, do impacto da pandemia
de Covid-19 na circulação de pessoas.
Por fim, convém mencionar outro fator frequente-
mente negligenciado durante a análise da criminalidade: a
proporção de homens e mulheres na população. Embora
ela se mantenha relativamente constante na maioria dos
casos, a taxa de homicídios entre homens é muito maior
do que entre mulheres. Dados do Ipea mostram que a mé-
dia de homens vítimas de homicídio é doze vezes maior do
que a média entre mulheres ao longo das últimas três dé-
cadas. Esse tipo de disparidade tende a ser mais influente
em regiões de fronteira, onde imigrantes recentes costu-
mam ser homens solteiros relativamente jovens, como nos
estados do Norte do Brasil.
Atualidades e Geopolítica 45
Exercícios
1. (PUC-RS) A violência urbana atinge milhares de pes-
soas em muitos países do mundo. A cidade tem sido
palco desse fenômeno de maneira indistinta. Pode-
mos mencionar a cidade de Porto Alegre (RS), que
tem mostrado índices muito elevados de insegurança
social, demandando, inclusive, a intervenção da Força
Nacional de Segurança.
Nesse contexto, analise as afirmativas a seguir.
I. A pobreza é a causa da violência urbana. Esse fato
se concretiza em países com IDH baixo como Pa-
raguai e Nicarágua, por exemplo, que apresentam
índices maiores de insegurança nas cidades quan-
do comparados aos índices do Brasil.
II. Os EUA apresentam índices de violência mais
baixos do que a média dos países considerados
desenvolvidos, mesmo mantendo uma cultura ar-
mamentista.
III. Dentro de um país, qualquer que seja, a violência
atinge os diferentes segmentos da sociedade de
forma desigual. No Brasil, por exemplo, atinge mais
os jovens de 15 a 24 anos.
IV. O índice de violência varia de cidade para cidade.
Porto Alegre, uma metrópole regional, tem índices
de violência superiores aos de São Paulo, uma me-
trópole nacional.
Estão corretas apenas as afirmativas:
a) I e II. b) III e IV.
c) I, II e III. d) II, III e IV.
2. (FGV) Leia os fragmentos a seguir.
I. Os adolescentes são muito mais vítimas do que autores
de crimes, o que contribui para a queda da expectativa
de vida no Brasil, pois se existe um “risco Brasil” este
reside na violência da periferia das grandes e médias
cidades. Dado impressionante é o de que 65% dos in-
fratores vivem em família desorganizada, junto com
a mãe abandonada pelo marido, que por vezes tem
filhos de outras uniões também desfeitas e luta para
dar sobrevivência à sua prole.
Adaptado de M. J. Reale. Instituições de
Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2009. p. 212.
II. A maioridade penal deve ser reduzida, pois assim os
menores de 18 deixariam de ser usados para a exe-
cução de crimes, como ocorre constantemente no
Brasil, o que diminuiria a criminalidade. Devemos
considerar que o jovem dos dias atuais amadurece
precocemente, devido às informações, às tecnolo-
gias e a todos os aparatos desenvolvidos para melhor
adaptação do homem ao mundo. Assim, a legislação
deveria se adequar a esse novo comportamento dos
jovens, que é completamente diferente da época em
que o Código Penal foi criado, em 1940.
Adaptado de <www.webartigos.com/artigos/
proposta-de-reducaoda-maioridade-penal/
56734/#ixzz3fhDuOaJb>.
46 Atualidades e Geopolítica
A respeito dos argumentos sobre a redução da maiori-
dade penal, assinale a afirmação correta.
a) Ambos os fragmentos afirmam que a punição pura
e simples, com penas a serem adotadas e impos-
tas aos menores, não gera a diminuição da violência
no Brasil.
b) O fragmento I relaciona a violência praticada por
menores com as precárias condições sociais e fami-
liares dos moradores de áreas periféricas do Brasil.
c) Os fragmentos I e II discutem os aspectos jurídi-
cos inerentes ao estabelecimento da idade mínima
a partir da qual uma pessoa responde pela violação
da lei penal, na condição de adulto.
d) O fragmento II condena a redução da maioridade
penal como um recurso que aumentaria o alicia-
mento de jovens pelo crime organizado.
e) Tanto o fragmento I quanto o II consideram a mu-
dança do conceito de “criança” e de “adolescente”
ao longo do tempo como elemento que legitima a
atualização do Código Penal brasileiro.
3. O gráfico abaixo mostra o número de ocorrências de
diversos tipos de delitos no estado de São Paulo antes
e depois do início da pandemia da Covid-19. Leia os
textos selecionados a seguir e responda às perguntas.
Número de delitos em São Paulo (capital)
O gráfico mostra uma comparação entre o número de de-
litos registrados na capital de São Paulo antes e depois do
início da pandemia da Covid-19.
2° trimestre de 2019 2° trimestre de 2020
total de delitos 160 232 115 662
contra o patrimônio 126 337 88 537
contra a pessoa 23 954 18 752
outros criminais 5 352 4 680
entorpecentes 2 251 1 973
contravencionais 1 429 1 147
contra a dignidade sexual 909 573
total de crimes violentos 41 530 31 222
Fonte: SSP.
Texto I:
As ordens de lockdown estabelecidas para contro-
lar a propagação da Covid-19 estão vinculadas a uma
redução média de 37% na criminalidade em 27 cidades
de 23 países, informou uma equipe internacional de
pesquisadores nesta quarta-feira (2).
Os furtos e roubos foram os que mais caíram, 46% –
segundo os pesquisadores, as pessoas ficaram em casa
em vez de ir trabalhar e isso pode ter contribuído para o
índice. Os homicídios caíram 14%, relataram pesquisa-
dores na revista científica Nature Human Behavior.
Maggie Fox; Jacqueline Howard. “Lockdown contribuiu
para queda de criminalidade em nível mundial,
diz estudo”. CNN, 03 jun. 2021. Disponível em:
<www.cnnbrasil.com.br/internacional/lockdown-
contribuiu-para-queda-de-criminalidade-
em-nivel-mundial-diz-estudo>.
Acesso em: 16 fev. 2022.
230
 Texto II: b) A crescente complexidade do nosso entendimen-
Dados preliminares de capitais como São Paulo e to de sociedade tem motivado o uso de dados e
Rio de Janeiro mostram que houve redução nos chama- estatísticas para informar o debate político. Porém,
dos crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos. é possível que dados coletados segundo metodo-
Segundo um levantamento feito pelo jornal O Estado de logias diferentes cheguem a conclusões diferentes.
S. Paulo, essa tendência também foi observada nos Estados Encontre no material disposto anteriormete um
Unidos e em países da Europa. exemplo desse fenômeno.
Ao mesmo tempo, o número de homicídios ficou
estável e até aumentou nas duas cidades. No Rio, o fato
pode estar ligado à guerra entre quadrilhas rivais, segun-
do o jornal O Globo. Não se sabe a causa do aumento das
mortes em São Paulo. Especialistas em segurança pública
alertam que é difícil explicar o fenômeno sem conhecer a
natureza desses crimes, que podem estar ligados ao tráfi-
co de drogas, disputas territoriais ou mesmo ao aumento
das tensões domésticas.
Estêvão Bertoni. “Qual o impacto da pandemia nos índices
de criminalidade”. Jornal Nexo, 14 abr. 2020. Disponível em:
<www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/14/Qual-o-
impacto-da­-pandemia-nos-%C3%ADndices-de-
criminalidade>. Acesso em: 16 fev. 2022.

a) A segurança é um dos temas mais importantes para

grande parte da população brasileira e, como tal, é
frequentemente noticiada e discutida na imprensa.
Em debates sobre o tema da segurança pública, é
comum observar tentativas de reduzir o fenômeno
da criminalidade a fatores econômicos. Escolha, entre
os dados anteriores, dois dados que entrem em
conflito com essa conclusão.

Atualidades e Geopolítica 47
230
 au la
14 Tecnologia: cibersegurança (I)
Introdução
O aumento no número de instituições comprometidas
por ataques cibernéticos, uma lista que inclui desde ban-
cos e companhias de transporte até escolas e hospitais,
prenuncia uma nova era no âmbito da segurança pública.
Na medida em que a infraestrutura essencial à vida con-
temporânea depende cada vez mais da comunicação ele-
trônica, ela também se torna vulnerável à interferência de
atores mal-intencionados, com consequências tanto gra-
ves como difíceis de prever. Quais são os motivos do au-
mento na frequência de ataques cibernéticos e qual a ori-
gem da tecnologia e dos atores por trás deles? Para tentar
responder a dúvidas como essas, nesta aula vamos inves-
tigar os antecedentes e o papel dos ataques cibernéticos
do ponto de vista da estratégia de segurança internacional
desde o fim do século XX.
Contexto histórico
A segunda metade do século XX foi definida pela
rivalidade estratégica entre Estados Unidos e União So-
viética, cujos sistemas de alianças competiram em um
ambiente rigidamente dividido. Não só o intercâmbio eco-
nômico e cultural entre os participantes dos dois blocos
era severamente restrito, mas os limites do conflito eram
virtualmente idênticos às fronteiras políticas que os sepa-
ravam. Do ponto de vista tecnológico, o predomínio do
paradigma de mútua destruição assegurada, com o uso de
imensos arsenais de armas nucleares, incentivava a ma-
nutenção da paz entre os principais beligerantes, o que
reduziu os conflitos a operações de propaganda e subver-
são, além de guerras locais em países disputados, como
foi o caso da Guerra do Vietnã (1955-1975).
Tudo isso viria a mudar devido a uma tríade de
transformações ocorridas no início dos anos 1990. Em
primeiro lugar, o colapso da URSS inaugurou um perío-
do de unipolaridade dos Estados Unidos na geopolítica
internacional. Em segundo lugar, um evento relacionado
a vitória americana na Guerra do Golfo estabeleceu de-
finitivamente a ampla superioridade das forças militares
dos Estados Unidos e confirmou aos olhos do mundo a
futilidade de um confronto direto com a potência ame-
ricana. Finalmente, a popularização e a expansão das
tecnologias de informação transformaram a economia e
a sociedade, criando novas dependências e vulnerabilida-
des a serem exploradas em conflitos entre países. A com-
binação de unipolaridade, supremacia militar americana
e uma revolução tecnológica contribuiu para direcionar
a pesquisa em segurança internacional para novas formas
de conflito, incluindo a guerra cibernética.
48 Atualidades e Geopolítica
Estratégias assimétricas
A partir do fim da Guerra do Golfo, em fevereiro de
1991, ficou claro para os principais adversários geopolí-
ticos dos Estados Unidos que qualquer tentativa de con-
frontar as Forças Armadas americanas em uma guerra
convencional fracassaria a curto e médio prazos. O vo-
lume, a qualidade e o poder de projeção do equipamento
militar dos Estados Unidos ultrapassava em muito qual-
quer tipo já visto até então. O uso de navios porta-aviões
apoiados por um sistema de alianças permitia aos Esta-
dos Unidos abastecer suas Forças Armadas ao redor do
globo. Além disso, o uso de satélites para missões de re-
conhecimento e aquisição de alvos revolucionou o uso de
ataques com mísseis e bombas de precisão. Combinados
a um sistema de compartilhamento de informações, essas
habilidades garantiam às Forças Armadas dos Estados
Unidos ampla superioridade de informação e posiciona-
mento em quase todas as áreas disputadas do planeta.
Naturalmente, a presença de outros arsenais nuclea-
res ao redor do mundo continuou a funcionar como uma
última barreira contra intervenções dos Estados Unidos
nas áreas sob influência de outras potências. De fato, ape-
sar das tentativas de impedir a proliferação da tecnologia
de produção e lançamento de armas nucleares, países co-
mo o Irã e a Coreia do Norte continuam seus programas
nucleares como forma de preservar alguma independência
frente às demandas dos Estados Unidos. Por outro lado,
embora a ameaça do uso de armas nucleares possa dissua-
dir ataques, o custo desse tipo de defesa é demasiado alto
para impedir ações de baixa intensidade, como a aplicação
de sanções econômicas e diplomáticas. Assim, durante as
últimas décadas, o contexto estratégico limitou a influên-
cia militar americana dentro dos territórios nacionais dos
seus adversários nucleares, mas também deixou-os sem
bons meios de influenciar a política internacional.
Essa situação de relativa impotência contrastava com
as diversas opções que os Estados Unidos têm à sua dispo-
sição para direcionar as políticas públicas de outros países.
A vasta gama de instrumentos da diplomacia americana,
desde a coerção militar a sanções econômicas ou diplo-
máticas, foi sendo ampliada durante as últimas décadas do
século XX pela gradual penetração das produções culturais
americanas em países ao redor do mundo. A identificação
dos cidadãos de outras nações com referências e valores
americanos passou a fornecer meios adicionais de influen-
ciar o funcionamento dos governos de outros países, parti-
cularmente daqueles que adotaram regimes democráticos.
Porém, ao mesmo tempo em que essas novas tendên-
cias auxiliaram a projeção da cultura e da influência dos
Estados Unidos, a difusão de tecnologias de informação e
a implementação de sistemas automatizados de controle
remoto em diversas áreas criaram novas possibilidades no
230
âmbito internacional. Como observamos, a superioridade
militar dos Estados Unidos depende, em grande medida,
da obtenção e da coordenação de grandes quantidades de
dados obtidos por sistemas de reconhecimento. A habili-
dade dos adversários dos Estados Unidos de interferir no
funcionamento desses sistemas representa, portanto, uma
enorme alteração no cálculo militar, possivelmente anu-
lando ou dissuadindo ações militares por parte dos ame-
ricanos. Mas esse não é o único atrativo dessa forma de
conduzir a guerra.
Grande parte da infraestrutura moderna, incluindo
sistemas de regulação da rede elétrica, transporte público,
armazenamento de água, sistemas de saúde e instituições
financeiras, é conectada à internet, permitindo acesso
remoto aos controles dos serviços básicos que tornam a
vida possível nos centros urbanos. Isso significa que, da-
da a existência de métodos de infiltração desses sistemas,
agentes hostis podem causar um dano significativo à so-
ciedade sem o uso de qualquer tipo de armamento con-
vencional. Essa capacidade de interferir na infraestrutura
básica de um adversário apresenta diversas vantagens
sobre métodos convencionais.
Em primeiro lugar, a guerra cibernética é um territó-
rio relativamente inexplorado, em que os investimentos e
as habilidades das diversas potências militares se encon-
tram relativamente equiparados. Isso facilita o uso desse
tipo de tática por países militar ou economicamente me-
nos preparados, como é o caso dos adversários dos Esta-
dos Unidos. O fato de os investimentos em tecnologias de
informação serem mais eficientes do que em outras áreas,
como a produção de mísseis balísticos ou caças avança-
dos, permite um rápido aumento da capacidade desses
países. Em segundo lugar, a guerra cibernética independe
da posição geográfica dos participantes e ocorre em um
terreno de dimensões e propriedades completamente di-
ferentes da guerra convencional. Isso faz com que a ori-
gem de ataques cibernéticos dificilmente seja identificada
de forma clara e inequívoca. Mesmo quando essa identi-
ficação é possível, a confirmação independente por parte
de auditores é complexa e de difícil compreensão para o
público geral. Finalmente, a intensidade de um ataque ci-
bernético pode ser cuidadosamente calibrada, tornando-o
uma ótima ferramenta para o uso contra adversários mais
fortes, já que sempre é possível manter a interferência
abaixo do limite de tolerância do oponente. Todas essas
características fazem com que não seja fácil obter um con-
senso a respeito de possíveis ações retaliatórias, cedendo
a vantagem a quem ataca primeiro.
Tipos de operações
cibernéticas
Sabotagem
Em operações de sabotagem, programas ou equi-
pamentos podem ser alvo de armas digitais que causam
mal funcionamento ou falha total. Um dos exemplos
mais famosos do uso de ataques cibernéticos para fins
de sabotagem foi o worm Stuxnet, utilizado para danificar
230
centrífugas nucleares iranianas em 2011. O Stuxnet infec-
tava computadores usando vulnerabilidades do sistema
operacional Windows; o worm exibia um certificado digi-
tal, afirmando vir de uma origem confiável. A seguir, ele
verificava se o sistema infectado estava ligado a controles
industriais da Siemens, empresa cujos sistemas eram utili-
zados para controlar as centrífugas de enriquecimento de
urânio no Irã. Em caso afirmativo, o Stuxnet comprometia
os sistemas de segurança dos equipamentos, permitindo o
monitoramento de dados e até mesmo o controle remoto
de algumas funções das centrífugas. Documentos vazados
para a imprensa, por funcionários do serviço civil america-
no, indicam que o worm foi criado e usado pelos serviços
secretos dos Estados Unidos e de Israel para destruir algu-
mas das centrífugas de enriquecimento e, assim, atrasar o
progresso do programa nuclear iraniano.
Espionagem
Em setembro de 2019, uma das maiores empresas
provedoras de serviços de administração de redes e diag-
nóstico, a americana SolarWinds, foi comprometida por
um ataque que expôs dados de centenas de milhares de
organizações ao redor do mundo. O sistema de monitora-
mento de dados Orion, um dos produtos da SolarWinds,
cuja função é obter e administrar dados para várias or-
ganizações governamentais como o Pentágono e o De-
partamento de Energia dos Estados Unidos, foi atacado
por hackers usando técnicas extremamente sofisticadas.
Aparentemente, o sistema Orion foi escolhido após ex-
tensa análise dos seus clientes e depois utilizado como
plataforma para ganhar acesso a esses sistemas. Essa
abordagem é conhecida como um ataque à cadeia de
suprimentos de TI, já que utiliza os serviços prestados
por uma terceira organização como porta de entrada. Na-
turalmente, como as empresas de apoio logístico em TI
servem muitos clientes, esses ataques são consideravel-
mente mais perigosos do que o normal. O ataque foi tão
bem executado que só foi descoberto em dezembro de
2020, catorze meses depois do seu início. Isso significa
que as informações dos clientes da SolarWinds ficaram
expostas durante todo esse tempo, o que pode facilitar
novos ataques. Acredita-se que os responsáveis foram
membros dos serviços de inteligência da Rússia.
Sequestro de informações
Em junho de 2021, a maior empresa de processa-
mento de carne do mundo, a brasileira JBS, foi ataca-
da por um grupo de hackers russos sem ligações for-
mais com o governo da Rússia, chamados de REvil.
Eles acessaram os sistemas da empresa e bloquearam
o acesso dos funcionários até que um valor de resga-
te lhes fosse pago. O mesmo aconteceu um mês mais
cedo no caso da operadora de dutos de transporte de
combustível Colonial Pipeline. Neste caso, outro grupo
de hackers chamado DarkSide impediu o funcionamento
dos dutos e causou uma crise de abastecimento na cos-
ta leste do Estados Unidos. Embora os ataques tenham
Atualidades e Geopolítica 49
sido executados por grupos não afiliados ao governo da
Rússia, as operações foram identificadas como tendo
origem em território russo. Esse tipo de estrutura clan-
destina ilustra uma das vantagens dos ataques ciberné-
ticos mencionadas anteriormente. Ao abrigar e oferecer
apoio logístico a grupos de hackers, é possível manter
uma margem de plausibilidade de que os ataques não
tenham sido ordenados pelo governo.
Interferência
Em outubro de 2013, durante a publicação de uma
reportagem sobre corrupção no governo do primeiro-mi-
nistro chinês Wen Jiabao, o jornal americano The New
York Times foi invadido por hackers chineses por um pe-
ríodo de quatro meses. Os invasores procuraram obter
e­‑mails e senhas dos jornalistas, invadindo os computa-
dores do jornal através das redes de universidades ameri-
canas. Esse tipo de subterfúgio é utilizado para mascarar
a verdadeira origem do ataque. No ano anterior, o mesmo
tipo de ação fora registrado contra a empresa de notícias
financeiras Bloomberg. Duas décadas atrás, a maior par-
te dos ataques cibernéticos de origem chinesa usava téc-
nicas de engenharia social, como compor e­‑mails que
encorajam o usuário a clicar em links infectados com
malware. No entanto, operações mais recentes indicam
que os hackers chineses estão se aproximando da sofisti-
cação dos seus colegas russos. Segundo departamentos
de inteligência dos Estados Unidos, grande parte das in-
vasões de redes perpetradas por hackers chineses fazem
parte de uma operação maior de roubos de dados para
obtenção de tecnologias sigilosas.
Exercícios
1. Quais tipos de instituições podem ser alvo de ataques
cibernéticos? Por que organizações sem ligação direta
com as Forças Armadas poderiam vir a ser vítimas de
tais ataques?
50 Atualidades e Geopolítica
Saiba mais
„ Hacker: programador. O termo hacker geralmente é
utilizado na imprensa para designar pessoas com ca-
pacidades relativamente sofisticadas de infiltração de
redes e sistemas de informática. Apesar disso, a co-
munidade de cibersegurança classifica como hackers
quaisquer indivíduos, benignos ou malignos, que lidam
com esses sistemas usando técnicas de programação.
„ Malware: designa programas de computador cuja
finalidade é comprometer sistemas de informática,
monitorar dados clandestinamente ou colocá-los sob
controle de outros usuários sem o consentimento ou
o conhecimento dos seus proprietários. Há diversos
tipos de malware como vírus, worms e trojans. Os ví-
rus são programas que necessitam do auxílio de erros
de usuário para invadir computadores, uma vez ali eles
se replicam causando falhas de funcionamento. Os
worms, por outro lado, procuram ativamente invadir
outros sistemas e geralmente possuem um funciona-
mento mais sofisticado, causando alterações especí-
ficas no funcionamento dos sistemas infectados. Os
trojans têm como característica o fato de se apresen-
tar como programas diferentes do que realmente são,
nesse sentido podem ser vírus ou worms.
„ Ransomware: o termo se refere a um tipo de ataque
em que os hackers impedem o acesso dos proprietá-
rios a suas informações, seja revogando a autorização
para tanto, seja encriptando a informação com um mé-
todo cuja chave é desconhecida ao usuário. Geralmen-
te, é exigido um valor monetário como resgate, motivo
por que também se chama sequestro de dados.
2. Quais foram os eventos que precipitaram o investi-
mento no aumento da capacidade de uso de armas
digitais no fim do século XX?
230
 3. Por que o uso de ataques cibernéticos é classifica-
do como uma estratégia assimétrica? Quais são as
características dessa tática que permitem o seu uso
contra adversários com forças armadas convencionais
mais poderosas?
4. O gráfico abaixo detalha a evolução do número de ope-
rações financeiras realizadas via internet ao longo da
última década. Leia os textos selecionados a seguir e
responda às perguntas.
O golpista liga para a vítima e diz que é funcionário
do banco em que ela tem conta. Ele convence o idoso a
fazer uma atualização dos dados e pede para ele digitar
os números da agência, da conta e da senha.
Com equipamentos que identificam os sinais sono-
ros dos números digitados, os golpistas conseguem ter
acesso aos dados da vítima.
“Ele prefere ir atrás do idoso, porque o idoso já é
mais acessível. Ele começa pedindo uma informação, o
idoso vai dar uma informação maior e é aí que ele co-
meça a contar uma história para a vítima cair no golpe”,
explica Eduardo Gobetti, delegado.
Patrícia Taufer. “ldosos são alvo de estelionatários”. Jornal
Hoje, 12 maio 2010. Disponível em: <https://g1.globo.com/
jornal-hoje/noticia/2010/05/saiba-quais-sao-os­-principais-
golpes-aplicados-em-idosos.html>.
Acesso em: 16 fev. 2022.

Operações bancárias via internet a) Embora a ocorrência de crimes virtuais traga um

O gráfico mostra o número de milhões de operações financeiras elemento de novidade, é possível argumentar que
concluídas via internet entre 2010 e 2020. a tecnologia apenas facilita uma prática mais antiga.
Cite dois exemplos de crimes que utilizam a enge-
700 nharia social mesmo sem a necessidade do uso de
600 tecnologias avançadas.
500
400
300
200
100
0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
transações financeiras via computador
transações financeiras via celular

Fonte: Banco Central do Brasil.

Texto I:
Dados da Febraban (Federação Brasileira de Bancos)
trazem realidade alarmante sobre golpes digitais contra
serviços bancários durante a pandemia. Bancos registra- b) Apresente uma hipótese que explique a evolução
ram aumento de 80% nas tentativas de ataques de phishing do número de operações financeiras via computa-
(roubo de dados por e-mail), alta de 70% na fraude do falso dor. Por que os acessos desse tipo mostram uma
funcionário e crescimento de 65% no golpe do motoboy. queda em seu crescimento de 2015 a 2018?
Cerca de 70% das fraudes estão vinculadas à enge-
nharia social, que consiste na manipulação psicológica do
usuário para que ele lhe forneça informações confidenciais,
como senhas e números de cartões para os criminosos.
“Roubo de dados bancários aumenta 80% durante a
pandemia; saiba como se proteger”. CNN Brasil,
21 out. 2020. Disponível em: <www.cnnbrasil.com.br/
business/roubo-de-dados-bancarios-aumenta-80-
durante-pandemia-saiba-como-se-proteger>.
Acesso em: 16 fev. 2022.

Texto II:
“Um rapaz pediu R$ 40 reais, porque ele não tinha
dinheiro trocado, eu dei pra ele, mas ele sumiu com o
dinheiro, era golpe mesmo”, conta um senhor.
Na página na internet da Serasa, empresa que faz
levantamentos na área de crédito, há uma lista dos prin-
cipais golpes aplicados em idosos. Um deles é o golpe do
recadastramento bancário.

Atualidades e Geopolítica 51
230
 au la
15 Tecnologia: cibersegurança (II)
Introdução
Redes de computadores e algoritmos (sequência de
instruções para resolução de um problema) são partes ca-
da vez mais importantes da infraestrutura das nossas so-
ciedades. Esta transformação tecnológica trará tanto novas
oportunidades como novos desafios, incluindo o risco de
crimes perpetrados através da internet. Assim como ativi-
dades legítimas, como o comércio, a comunicação e a pes-
quisa, estão migrando para ambientes intermediados por
algoritmos, o mesmo acontece com comportamentos an-
tissociais, como o terrorismo e o crime. Em certa medida,
essa transformação já ocorreu e já afeta as nossas vidas.
Atividades de caráter militar patrocinadas por agências
de inteligência e por governos ao redor do mundo já são
mais comuns do que se pensa, mas é provável que o núme-
ro de atividades hostis praticadas por criminosos no cibe-
respaço também continue a aumentar. Por conta disso, tópi-
cos como a privacidade, a gestão de informações e o nosso
comportamento em redes sociais tendam a se tornar cada
vez mais importantes. Nesta aula, vamos estudar algumas
informações básicas sobre a arquitetura da internet e sobre
como podemos nos defender de ataques cibernéticos.
História e arquitetura da internet
A rede mundial de computadores começou nos anos
1960 como um programa financiado pela Agência de Proje-
tos de Pesquisa Avançada (ARPA, em inglês). A sua função
inicial era manter a integridade do sistema de comunicação
entre os principais centros de comando dos Estados Unidos
no caso de uma guerra nuclear. Ao longo de duas décadas,
os pesquisadores responsáveis elaboraram o conceito de
uma estrutura robusta e descentralizada, capaz de reorien-
tar o fluxo de informações para evitar áreas comprometidas
por ataques. Apesar de a primeira rede com essas caracte-
rísticas só começar a ser operada nos anos 1980, o cresci-
mento do mercado de computadores logo converteu a in-
ternet de uma tecnologia militar para um dos fundamentos
da nova economia global. Mais recentemente, a invenção
dos smartphones e o avanço de tecnologias de conexão sem
fio transformaram o mercado tecnológico, particularmente
nos países em desenvolvimento, onde grande parte da po-
pulação não tem acesso a um computador.
Mas como, afinal, funciona a internet? A rede mundial
de computadores é estruturada em quatro estágios que se co-
municam entre si: o estágio de ligação, o estágio de interco-
nexão, o estágio de transporte e o estágio de aplicativos. Cada
um desses estágios é estruturado e regulado por protocolos
diferentes, cujos nomes você já deve ter encontrado duran-
te a sua vida diária. Apesar de as tecnologias serem divididas
em estágios, é importante frisar que o funcionamento ade-
quado da rede envolve o uso de todos eles simultaneamente.
52 Atualidades e Geopolítica
Estágio de ligação (link layer)
Esse estágio é responsável por conectar dispositivos à
rede local, geralmente através de um roteador. Os roteadores
são peças extremamente importantes na arquitetura da rede.
Eles são responsáveis por coordenar as trocas de dados na
rede local e também pela conexão com a rede global. Hoje
em dia, as tecnologias mais comuns nesse estágio são o Wi-Fi
e os cabos de fibra ótica. Nesse estágio, as tecnologias têm
de decidir como os dados serão transmitidos e qual méto-
do os dispositivos usarão para fazer essa transferência. Co-
mo dissemos acima, os protocolos de transmissão podem
fazer uso de frequências de rádio, no caso do Wi-Fi ou de
emissões luminosas (laser ou LED), no caso da fibra ótica.
Estágio de interconexão
(interconnection layer)
A partir do momento em que os nossos dados pas-
sam pelo primeiro roteador, eles são transmitidos de acor-
do com o protocolo do estágio de interconexão, também
conhecido como protocolo IP. Cada pacote de dados vem
endereçado com um emissor e um destinatário, e a função
desse estágio de comunicação é transmitir os pacotes de
dados para o roteador mais próximo do destinatário. No
entanto, ao longo do caminho, a sua mensagem pode ter
de passar por dezenas de roteadores, a maior parte dos
quais não está conectado diretamente ao computador de
destino. Assim, cada roteador se ocupa apenas de enviar
os dados na direção do destinatário, tentando reduzir a dis-
tância entre o destino final e a mensagem. De certa forma,
essa é a mesma abordagem que utilizamos quando quere-
mos visitar algum lugar. Geralmente, nós não sabemos co-
mo chegar diretamente, mas sabemos como navegar cada
uma das partes do trajeto. Em cada uma das etapas, nós
simplesmente procuramos nos aproximar do destino, es-
perando até a etapa final para nos dirigir a ele diretamente.
Estágio de transporte
(transport layer)
As tecnologias desse estágio procuram garantir a in-
tegridade das mensagens durante a transmissão de dados.
Como a rede funciona fragmentando as mensagens e distri-
buindo a transmissão através dos roteadores, é importante
que haja um sistema para garantir que a mensagem chegue
inteira ao seu destino dentro do tempo alocado para isso. O
protocolo TCP coordena esse processo determinando que
cada pacote de dados inclua o endereço do remetente e o
do destinatário, além de um número indicando a posição
do pacote na mensagem. Essas informações permitem ao
computador de destino reconstruir a mensagem original in-
dependentemente da ordem em que os pacotes chegarem.
230
Mas o que fazer caso algum pacote se perca durante o
caminho? O protocolo TCP resolve esse problema, deter-
minando que os computadores informem uns aos outros
quantos pacotes ainda faltam para completar a mensagem.
Em termos simples, o remetente mantém uma cópia da
mensagem enquanto a transmite, descartando os pacotes
da memória apenas após receber uma confirmação de re-
cebimento do destinatário. Isso permite economizar a me-
mória dos computadores sem comprometer a velocidade
da conexão.
Estágio de aplicativos
(application layer)
Até aqui, nós explicamos o funcionamento da re-
de usando termos referentes ao envio de cartas e outras
mensagens, mas na verdade você já deve ter encontrado
os termos equivalentes para a internet: cliente e servidor.
O estágio de aplicativos envolve uma série de protocolos
diferentes para comunicação e reprodução das mensagens
enviadas pelos servidores aos clientes. Por exemplo, quando
abrimos uma página na internet, ela provavelmente consiste
em arquivos em formato HTML, mas também pode conter
imagens e vídeos em outros formatos, como JPEG e MP4.
Ao abrir um navegador, você está transformando o seu
computador em um cliente que pode então requisitar aces-
so aos arquivos desses formatos em um servidor através de
um endereço URL (Uniform Resource Locator).
Ataques cibernéticos
Assim como todo sistema, a internet abriga vulne-
rabilidades que podem ser exploradas para causar danos
aos seus usuários. Embora os ataques cibernéticos possam
ocorrer em diversos pontos da arquitetura anteriormente
mencionada, a maior parte das redes costuma ser super-
visionada e protegida por profissionais qualificados, como
administradores de sistemas e especialistas em cibersegu-
rança. A maior exceção a essa regra são ataques que ex-
ploram o comportamento dos usuários ou a conexão com
a rede local. A seguir, vamos examinar alguns dos tipos
mais comuns de ataque e como se defender deles.
Phishing
Em geral, as vulnerabilidades mais comumente explo-
radas em ciberataques são aquelas relacionadas ao compor-
tamento humano. No caso do phishing, os hackers procuram
explorar vieses de comportamento envolvendo os senti-
mentos de ansiedade e familiaridade. Como isso acontece?
Você já deve ter recebido e-mails ou mensagens de
SMS, ou mesmo solicitações em redes sociais, em que o
remetente se apresenta como uma empresa e pede infor-
mações de contato. Frequentemente, essas informações
podem parecer inocentes, mas elas fazem parte do proces-
so através do qual hackers procuram por vítimas para seus
ataques. Mais do que isso, um mesmo hacker pode se apre-
sentar sob o nome de diferentes entidades, construindo
gradualmente um perfil completo de suas vítimas ao longo
de um período de tempo extenso.
230
Um típico ataque de phishing tem início com um
e­‑mail, como o exemplo abaixo:
Prezado cliente, nós detectamos um padrão de ati-
vidades suspeitas na conta associada ao e­‑mail. Para
evitar o comprometimento da sua conta, confirme sua
identidade e resete sua senha clicando no link a seguir:
www.support.serviçoonlineconhecido.com.
Essa é uma mensagem automática, favor não res-
ponder.
Atenciosamente,
<Serviço On-line Conhecido>
Versões mais simples desse tipo de golpe podem
conter erros de grafia, ou uma escrita menos profissional,
mas hoje em dia os criminosos são mais sofisticados e não
basta apenas prestar atenção nesse tipo de indício. A ideia
desse tipo de ataque é confrontar o usuário com uma si-
tuação alarmante, por exemplo, a quebra de segurança de
um serviço bancário, e apresentar-se como uma institui-
ção confiável, nesse caso, o próprio banco. É importante
notar que, caso o hacker já tenha obtido informações sobre
você anteriormente, o mesmo tipo de e-mail pode incluir
informações como o seu CPF ou o número da sua conta,
ajudando a aumentar a impressão de familiaridade do lei-
tor. Como se defender desse tipo de ataque?
A melhor forma de evitar ataques cibernéticos é pro-
teger a sua privacidade. Quanto menos informações esti-
verem disponíveis na rede, menor é a chance de você ser
alvo de um golpe como esse. Quando isso não for possível,
convém observar alguns detalhes no corpo do e-mail:
„ Ataques menos sofisticados evitarão mencionar qual-
quer identificação. Em geral, podemos eliminar uma
proporção significativa de tentativas de phishing igno-
rando e-mails desse tipo.
„ Evite ao máximo clicar em links contidos em e-mails,
mensagens de SMS ou solicitações em redes sociais. No
caso de serviços contratados, como no exemplo acima,
procure sempre ir à página inicial do serviço através de
um link conhecido. Uma vez lá, navegue em direção às
páginas que contém a informação de que você precisa.
„ Desconfie de mensagens referentes a serviços nunca
contratados, e preste especial atenção a quaisquer
mensagens que transmitam o sentimento de urgência.
„ Mantenha um controle adequado sobre as suas infor-
mações e encoraje seus amigos e familiares a fazer o
mesmo.
Saiba mais
„ Phishing: é um tipo de ataque em que o usuário é
enganado por alguma mensagem para que acabe re-
velando informações confidenciais, como a sua iden-
tidade, senhas ou informações financeiras. No fun-
do, o phishing não depende de nenhuma tecnologia
específica, e existem inúmeras variedades, incluindo
links fraudulentos, pesquisas em que o hacker finge
ser alguma instituição confiável, mensagens de alerta
ou até mesmo ligações telefônicas.
Atualidades e Geopolítica 53
Wi-Fi
Outra via comum para ataques cibernéticos contra in-
divíduos são as conexões de Wi-Fi, especialmente aquelas
oferecidas em ambientes públicos, como restaurantes e aero­
portos. Isso acontece porque, ao contrário das conexões a fio,
o Wi-Fi pode ser acessado por qualquer pessoa presente na
área em que o sinal está sendo emitido. A principal forma de
ataque usando conexões de Wi-Fi envolve o uso de redes fal-
sas. O hacker basicamente usa um dos seus próprios dispositi-
vos, por exemplo, um laptop para oferecer uma rede de Wi-Fi
gratuita em um lugar público. Quem quer que se conecte a
ela conseguirá utilizar a internet normalmente, mas enviará
suas informações através do computador do hacker. Dessa
forma, ele poderá interceptar o tráfego de dados e armazenar
essas informações. Em versões mais sofisticadas desse tipo
de ataque, hackers podem inicialmente desativar uma rede de
Wi-Fi associada a uma empresa e apresentar uma nova rede
com um nome semelhante, mas controlada por eles.
Para se proteger desse tipo de ataque, o melhor méto-
do é não utilizar conexões públicas. Nenhum outro proce-
dimento garante segurança nesse caso, pois embora bons
algoritmos de criptografia possam auxiliar na proteção dos
dados, com uma quantidade de informações suficientes
é possível acessar todo o tráfego de informações usando
Exercícios
1. Como se explica a crescente importância de questões
como privacidade, gestão de informações e comporta-
mento em redes sociais?
2. Explique o surgimento da internet e sua expansão até se
consolidar como uma rede mundial de computadores.
54 Atualidades e Geopolítica
o ataque mencionado. A escolha de um bom protocolo de
criptografia é mais importante no caso da instalação de uma
rede de Wi-Fi própria. Nesse caso, o ideal é escolher a op-
ção WPA2, já que os outros algoritmos, WEP e WPA, são
muito vulneráveis e podem ter suas senhas descobertas.
Uso de senhas
As senhas são nossa última linha de defesa contra os
ataques cibernéticos e, portanto, é extremamente impor-
tante praticar certos cuidados quanto à escolha e armaze-
namento das informações relacionadas a elas. Senhas fortes
não só devem conter letras maiúsculas e minúsculas, nú-
meros e símbolos, e incluir combinações pouco usuais, mas
também ter um número elevado de caracteres, de preferên-
cia cerca de doze. Isso é importante porque as formas de
quebrar senhas mais comuns são ataques de dicionários, em
que múltiplas combinações comuns de palavras e expres-
sões são tentadas sucessivamente, ou ataques de força bru-
ta, em que o número de caracteres utilizados é o principal
entrave para os hackers. Por fim, é importante ressaltar que
o uso de sistemas de autenticação com duplo-fator é neces-
sário para garantir a segurança de contas, especialmente
utilizando aplicativos específicos como Authy e Google
Authenticator, ao invés de SMS ou confirmação por e-mail.
3. Explique o que são ataques cibernéticos.
4. Mencione a vulnerabilidade na internet mais comumen-
te explorada em ciberataques e identifique um exemplo.
230
 Tecnologia: cibersegurança
no Brasil
Introdução
O Brasil tradicionalmente registra uma das maiores
concentrações de crimes cibernéticos do mundo. Histo-
ricamente, a maior parte dos crimes desse tipo em terri-
tório nacional visou instituições financeiras, porém a in-
formatização de diversos serviços, agências do governo e
da própria sociedade brasileira tem ampliado o escopo e
a variedade de ataques cibernéticos no nosso país. Nesta
aula, vamos estudar alguns casos de ataques cibernéti-
cos, procurando demonstrar o potencial destrutivo desse
tipo de atividade. A seguir, vamos examinar o histórico
das comunidades responsáveis por crimes digitais no
Brasil. Por fim, discutiremos brevemente a legislação brasi-
leira sobre o tema, incluindo sugestões e recomendações
de intervenções que poderiam ser feitas pelo poder público.
Exemplos de ataques
cibernéticos no Brasil
Em agosto de 2021, as Lojas Renner foram atacadas
por um grupo que visava as bases de dados contendo in-
formações dos clientes. Embora os principais bancos de
dados tenham sido preservados, os serviços das lojas fi-
caram indisponíveis por várias horas. Através de ameaças
de inviabilização do acesso aos dados ou de publicação
deles, os criminosos buscavam constranger a empresa a
pagar um resgate. Esse tipo de ataque tem aumentado
muito nos últimos anos devido a algumas tendências ace-
leradas pela pandemia de Covid-19. Em primeiro lugar,
por conta do crescimento do comércio eletrônico, que
aumenta a importância desse serviço para as empresas.
Em segundo lugar, o aumento no número de funcionários
remotos faz com que dados e serviços internos da em-
presa sejam acessados por computadores relativamente
desprotegidos, multiplicando os pontos vulneráveis na
rede das empresas.
Também relacionado à pandemia de Covid-19, o site
do Ministério da Saúde foi atacado e alterado no início
de dezembro de 2021, em mais um de uma série de ata-
ques que visavam comprometer ou alterar dados cadas-
trais de brasileiros, especialmente os dados relativos à
vacinação. Outros sites do governo também já foram
alvo de ataques semelhantes, comprometendo dados
pessoais de cidadãos brasileiros, como nome, endereço
e telefone. Além de gerar insegurança, os roubos de dados
em sites do governo podem ser usados como ponto de
partida para fraudes ou tentativas de intimidação, tur-
vando a fronteira entre crimes comuns e atos políticos
ou de terrorismo.
230
16
aula
Um exemplo característico desse último tipo de ação
foram os ataques perpetrados em 2015 por uma quadrilha
de hackers associados a empresas de exploração madeireira.
Eles roubaram as credenciais de um superintendente do
Ibama e usaram-nas para desbloquear empresas proibidas
de negociar créditos de reposição florestal, facilitando a
exploração ilegal de madeira na Amazônia. Embora algu-
mas das credenciais envolvidas tenham sido obtidas sem
o uso de técnicas sofisticadas – o criminoso simplesmente
copiou e alterou a foto de um documento de identificação
do superintendente – esse tipo de crime ilustra como téc-
nicas tradicionais também podem comprometer sistemas
de informação.
Como vimos, ataques cibernéticos perpetrados por
um número reduzido de indivíduos podem comprometer
diversas áreas da sociedade, como a financeira, a sanitária,
a ambiental, entre outras. Qual a origem e os interesses
dessas organizações de criminosos no Brasil?
Comunidades de criminosos
cibernéticos no Brasil
Os primeiros provedores de internet comercial chega-
ram ao Brasil entre 1995 e 1996. Já durante esses anos,
aplicativos de mensagens como IRC e ICQ, assim como
fóruns especializados, tornaram-se as principais plata-
formas de troca de informações na rede. A comunidade
hacker começou a se organizar nessas plataformas na pri-
meira década do novo milênio, e foi durante essa época
que se estabeleceram sites para membros dedicados a
atividades ilícitas no mundo cibernético. Os fóruns e gru-
pos de mensagens discutiam tópicos como a venda de
programas e serviços ilícitos, números e informações de
cartões de crédito, técnicas de invasão de computadores
e extorsão de dinheiro. Historicamente, esses interesses
continuam a influenciar o ecossistema de segurança digital
no Brasil, como veremos a seguir.
Desde o início da formação de grupos criminosos na
internet, a principal área de atuação dos hackers focados
em atividades ilícitas no Brasil foi o setor financeiro. Além
disso, há também a vandalização de sites, uma ativida-
de cujo objetivo costuma ser adquirir status junto a ou-
tros hackers e promover os próprios serviços de invasão
e obtenção de dados ilícitos. Finalmente, com o tempo,
algumas comunidades de hackers passaram a se envolver
em atividades políticas contra sites do governo brasilei-
ro, particularmente durante a organização da Copa do
Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. No entanto, o
maior foco dessas organizações continuou a ser o setor
financeiro, motivo por que as medidas de segurança dos
bancos brasileiros costumam ir além das que se utilizam
no resto do mundo.
Atualidades e Geopolítica 55
 A partir de 2004, com a popularização do Orkut, redes
sociais também passaram a ser frequentadas por crimino-
sos, cujos grupos migraram para o Facebook, WhatsApp
e Telegram ao longo dos anos. Como podemos ver, as
comunidades de crimes cibernéticos brasileiras tendem
a frequentar os canais e as plataformas mais populares
entre a população, chegando até mesmo a utilizar pla-
taformas de fácil acesso para ações policiais. No caso
das redes sociais, por exemplo, as empresas responsá-
veis pela plataforma têm a obrigação de colaborar com
a polícia brasileira e de partilhar dados relativos a inves-
tigações. O fato de essas plataformas serem usadas por
hackers brasileiros indica certo grau de amadorismo re-
lativamente a outras comunidades criminosas, como é o
caso de russos e chineses, que tendem a utilizar fóruns
privados para comunicação.
Um detalhe interessante a respeito da comunidade
brasileira de criminosos foi descoberto em 2011, quan-
do a empresa de segurança Kaspersky encontrou um
registro de credibilidade de diversos grupos de hackers.
Tratava-se de uma ferramenta da comunidade para iden-
tificar criminosos que não honravam suas transações
com outros criminosos.
Características de ataques
cibernéticos no Brasil
Como dissemos anteriormente, os hackers brasi-
leiros focam em atividades criminosas ligadas ao setor
financeiro. Atualmente, a maior parte deles utiliza téc-
nicas relativamente pouco sofisticadas, como o phishing
via e­‑mail ou SMS. Criminosos com pouca experiência
em programação costumam comprar suas ferramentas
de outros hackers por preços que variam entre poucas
centenas e alguns milhares de reais. Além deles, há tam-
bém comunidades menores de hackers de alta sofistica-
ção técnica, que desenvolvem seus próprios programas
e ferramentas, geralmente com colaboração de comuni-
dades estrangeiras.
O tipo de ferramenta mais utilizado no mercado ne-
gro brasileiro é chamado de crypter: trata-se de um pro-
grama que impede a detecção de malware por sistemas
antivírus. Em geral, hackers brasileiros fazem uso de cam-
panhas de spam por e­‑mail ou SMS contendo arquivos ou
links infectados com malware. O crypter é responsável por
impedir que a vítima receba qualquer aviso ou alerta antes
de clicar no link ou baixar determinado arquivo.
Essa técnica é comumente combinada com alterações
no registro DNS do aparelho infectado. O DNS é o sistema
de identificação de computadores na rede, e determina
quais links levam a quais páginas na internet. Através da
alteração do registro DNS de um aparelho, é possível fazer
com que um link aparentemente inofensivo, por exemplo
“google.com”, leve a um servidor diferente, controlado pe-
lo criminoso. Assim, mesmo links conhecidos devem ser
examinados antes de serem acessados, particularmente
no caso de mensagens de SMS.
56 Atualidades e Geopolítica
O objetivo da maior parte desses ataques é a obten-
ção de credenciais de acesso ao sistema bancário. Por
conta da enorme exposição e da constante atividade de
hackers no Brasil, o sistema financeiro brasileiro utiliza
muitas salvaguardas adicionais, como biometria, auten-
ticação por dois fatores (2FA) para acessos e transações,
tokens, pré-registro de aparelhos para transações bancá-
rias, limites para transações financeiras, pré-registro de
destinatários de transferências bancárias e navegadores
específicos para internet banking. Apesar de todos es-
ses controles, as contas de usuários e os próprios ser-
viços bancários continuam vulneráveis ao sequestro
de credenciais.
É comum encontrar dados de cartões de crédito à
venda em bases de dados organizadas por criminosos.
O mesmo acontece com documentos emitidos pelo go-
verno necessários para autenticação, crédito e abertu-
ra de contas. Muito da atividade criminosa na internet
brasileira é uma consequência da relativa falta de rigor
na repressão a esse tipo de crime. Até recentemente, a
sociedade brasileira carecia de uma legislação específi-
ca para lidar com cibercrimes e proteção de dados. Es-
sas leis e diretrizes começaram a ser formuladas apenas
durante os últimos dez anos, e a Lei Geral de Proteção
de Dados (LGPD) só se tornou efetiva em dezembro
de 2020.
Política brasileira de segurança
da informação
LGPD
A Lei Geral de Proteção de Dados tem como objetivo
regulamentar e proteger os dados pessoais dos cidadãos
brasileiros. Assim, a função da LGPD não é restrita a pro-
teção dos ataques cibernéticos, ela também se estende a
questões como a privacidade e os direitos de limitar a ex-
posição de dados pessoais na rede, caso essa seja a vonta-
de do cidadão. Naturalmente, ao impor controles sobre o
armazenamento e o compartilhamento de dados, a LGPD
ajuda a proteger esses dados de serem comprometidos
por hackers.
De acordo com a LGPD, as empresas que coletarem
dados sobre seus usuários são obrigadas a solicitar seu
consentimento para armazenamento e compartilhamento
desses dados. Além disso, as empresas podem ser legal-
mente responsabilizadas pelo vazamento dos dados, sendo
obrigadas a comunicar o ocorrido e indenizar os usuários
de dados comprometidos. Finalmente, a LGPD garante ao
usuário os direitos de requisição da finalidade dos dados,
de correção de dados, de eliminação de registros desneces-
sários, de portabilidade dos dados em caso de mudança de
serviço, por exemplo, mudança de plano de celular, e a re-
visão de restrições à conta do usuário no caso de essa deci-
são ter sido tomada de forma automatizada, por exemplo, o
banimento de conta em uma rede social.
230
E-Ciber
A Estratégia Nacional de Segurança Cibernética
(E-Ciber) é um documento elaborado pelo governo brasileiro
que estabelece diretrizes e objetivos para a proteção do am-
biente cibernético brasileiro, incluindo a segurança virtual, a
segurança de infraestrutura crítica (rede elétrica, sistema fi-
nanceiro, bases de dados de hospitais, etc.), a segurança da
informação e a proteção contra vazamento de dados.
A E-Ciber orienta diversos atores da sociedade brasi-
leira no sentido de melhorar a qualidade técnica da segu-
rança digital, assim como o conhecimento da sociedade
a respeito dos riscos e das responsabilidades envolvidos
na manutenção e no uso da rede no país. As ações previs-
tas pela E-Ciber incluem: campanhas de conscientização
da população, inclusão da população no mundo digital,
Exercícios
1. Identifique uma motivação de ataques cibernéticos a
empresas privadas no Brasil.
2. Como se explica o aumento dos ataques cibernéticos
no Brasil no contexto da pandemia de Covid-19?
3. Quais seriam as motivações para ataques cibernéticos
a sites do governo brasileiro?
230
incentivo à formação de profissionais de segurança ci-
bernética, fomento à pesquisa e ao desenvolvimento em
segurança cibernética, associação com o setor privado e
capacitação continuada de profissionais, participação em
fóruns internacionais de segurança cibernética e integração
do setor público e do setor privado.
Apesar das extensas recomendações, a E-Ciber foi cri-
ticada pela falta de um orçamento adequado e dirigido à
concretização das suas recomendações e pela falta de inter-
locução entre o Gabinete de Segurança Institucional (GSI),
o principal órgão responsável por sua elaboração, e outros
representantes da sociedade. Apesar disso, a E-Ciber repre-
senta um grande avanço na coordenação das capacida-
des institucionais da sociedade brasileira para enfrentar
os desafios da segurança digital no século XXI.
4. Quais seriam as motivações para vandalização de sites
de empresas ou agências governamentais?
5. No que consiste a Lei Geral de Proteção de Dados e
qual o seu propósito?
6. Qual a importância da Estratégia Nacional de Segurança
Cibernética e quais as críticas que ela despertou?
Atualidades e Geopolítica 57
 au la
17 Meio ambiente: Amazônia (I)
Introdução
Recentemente, tem-se dado grande destaque ao
aumento do desmatamento na Amazônia. Não raro,
esse tipo de constatação é apresentado em tons que
misturam indignação, incompreensão, e até mesmo um
certo desdém pelos envolvidos. Toda essa ansiedade a
respeito da destruição da Amazônia convive, ao mesmo
tempo, com a expectativa de um grande potencial inex-
plorado. A extensão, a biodiversidade e o próprio sub-
desenvolvimento da região são apresentados ora como
fonte de esperança, ora como sinal do descaso das au-
toridades públicas. A impressão é de que as melhorias
almejadas estão prestes a se concretizar, inviabilizadas
apenas pela falta de vontade ou de comprometimento
de outras pessoas.
Embora essa visão simplista seja amplamente
divulgada, ela ignora a história e os reais desafios en-
volvidos na preservação do bioma amazônico e na
criação de uma Amazônia mais próspera e mais inte-
grada com a sociedade brasileira. Neste texto, vamos
examinar alguns fatos básicos sobre a região, a histó-
ria da sua ocupação, e as tentativas da sociedade bra-
sileira de promover o desenvolvimento sustentável da
economia amazônica.
História da ocupação
da Amazônia
Acredita-se que os primeiros habitantes da Amazônia
tenham sido exploradores oriundos da Ásia Setentrional e
da Ásia Meridional. Esses povos eram agricultores e cole-
tores que sobreviviam da caça e da pesca, além do manejo
agrícola da floresta através de queimadas. Cronologica-
mente, eles respondem pelo maior período de ocupação
da Amazônia, com uma extensão que se inicia quatorze
mil anos atrás e dura até o início do século XVI, quando os
primeiros europeus chegaram à região.
Navegando a partir da foz do Amazonas, exploradores
europeus, principalmente portugueses e espanhóis, chega-
ram às regiões mais remotas da floresta Amazônica, onde
se depararam com as populações já ali estabelecidas.
Esse contato foi profundamente traumático, principal-
mente devido a diferenças culturais e à falta de imunidade
dos indígenas às doenças oriundas da Europa, da Ásia e
da África. Os conflitos pelo controle da região amazônica
se desdobraram em tentativas, por parte dos europeus,
de influenciar os povos indígenas, seja através da coop-
tação de sua mão de obra, seja através de sua conversão
58 Atualidades e Geopolítica
para o catolicismo. Durante esse período, a maior parte
dos habitantes da região estava envolvida na fortificação
militar do território, na lavoura de artigos tropicais e no
comércio das drogas do sertão. No fim das contas, os
portugueses foram mais bem-sucedidos nesse esforço,
consolidando o controle do que hoje constitui a região
Norte do Brasil.
A exploração econômica da Amazônia continuou
ao longo desses moldes até meados do século XIX,
quando a demanda internacional por derivados de lá-
tex inaugurou o Ciclo da Borracha na região. O látex já
era utilizado como matéria-prima pelos indígenas, mas
foi apenas com sua descoberta por exploradores euro-
peus que ele passou a ser utilizado em larga escala. As
propriedades de impermeabilização e amortecimento
de impactos permitiram o seu uso em diversas aplica-
ções industriais e comerciais, provocando uma grande
alteração na economia regional. A imensa lucratividade
da exportação de borracha absorveu a maior parte da
mão de obra amazonense, além de recrutar um grande
excedente de trabalhadores originários do Nordeste. O
chamado Ciclo da Borracha só chegou ao fim devido a
dois fatores: o estabelecimento de plantações de serin-
gueiras no Sudeste Asiático, que quebrou o monopólio
amazônico, e a descoberta do uso de derivados de pe-
tróleo para a fabricação de plásticos, que fez o preço da
borracha despencar no mercado internacional. Assim,
até os anos de 1940, a região amazônica não voltou a
crescer nem demográfica nem economicamente, voltan-
do a praticar, predominantemente, a agricultura de sub-
sistência e o extrativismo.
O período entre 1940 e 1970 coincidiu com o au-
mento da preocupação do governo brasileiro com o
controle da região amazônica. Como vimos anterior-
mente, sempre houve uma relação íntima entre a pro-
moção da atividade econômica e tentativas de influen-
ciar e garantir o controle político da Amazônia. Com
efeito, esses trinta anos se caracterizaram pelo plane-
jamento e início de diversos projetos de infraestrutura,
incluindo ferrovias, hidrelétricas, estradas, complexos
de extração de minérios e implantação da Zona Fran-
ca de Manaus. Os mesmos motivos levaram à promo-
ção da colonização da região amazônica por famílias de
agricultores do Sul do país, que foram incentivados pelo
governo a estabelecer a indústria agropecuária nas re-
giões de fronteira. Foi apenas a partir de então que o
desmatamento da floresta Amazônica se converteu em
um problema de grandes dimensões, já que a retomada
da atividade econômica passou a necessitar de amplas
extensões de terra.
230
 Desmatamento anual na Amazônia Legal como a agricultura de subsistência, sejam inadequadas pa-
ra a promoção do desenvolvimento da região, a exploração
059
30 000 29 histórica de matérias-primas exclusivas do bioma amazôni-
co sugere um novo modelo de desenvolvimento.
25 000 O candidato mais expressivo para ocupar esse lugar é
a indústria da biotecnologia. Os argumentos mais frequen-
tes para a preservação da floresta Amazônica consoantes
20 000
com a promoção do desenvolvimento econômico mencio-
nam o grande potencial da biodiversidade local, permitindo
15 000 o crescimento das indústrias farmacêutica, fitocosmética e
851 fitoterápica, entre outras. Ainda têm lugar de destaque as
10
10 000 atividades de extração vegetal em culturas perenes, como
o cacau e o açaí, a indústria de biomassa e biocombustíveis
e a prática da floricultura e da piscicultura. Embora haja
5 000
precedentes para esse modelo, particularmente nos setores
alimentício e de cosméticos, a maior parte da produção da
região amazônica ainda se concentra ou em atividades liga-
1988
1989
1990
199
19921
1993
199
19954
1996
199
199 7
19998
200
20010
200
20032
2004
200
20065
2007
200
20098
2010
2011
201
20132
201
201 4
20165
201
201 7
20198
2020
das à agropecuária tradicional e à extração mineral, ou na
Fonte: Inpe. montagem de eletroeletrônicos a partir de componentes im-
O gráfico mostra a área desmatada a cada ano em
portados da Zona Franca de Manaus.
quilômetros quadrados. A Amazônia Legal é um conceito Essa situação indica a enorme defasagem existente en-
jurídico que corresponde à área de atuação da Sudam tre as condições necessárias para um modelo alternativo de
(Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). desenvolvimento da Amazônia e a realidade socioeconômi-
ca atual. Em anos recentes, a principal causa da expansão da
O aumento da população com o ingresso de migrantes
área desmatada tem sido a pressão expansionista dos agri-
do restante do país também levou ao recrudescimento de
cultores de soja combinada com a falta de fiscalização de
conflitos sociais, principalmente de disputas pela posse de
atividades irregulares. Juntos, esses incentivos criaram uma
terras entre grupos já estabelecidos e outros mais recentes.
situação em que o desmatamento é mais vantajoso para vá-
A partir da década de 1980, o aumento do número de con-
rios integrantes da população. Por outro lado, os altos custos
flitos, assim como a crescente importância dada ao impac-
iniciais do desenvolvimento sugerido pelo novo modelo de
to do desmatamento, levou à retirada dos benefícios fiscais
ocupação da região são pouco encorajadores e favorecem a
concedidos à atividade agropecuária na região amazônica.
continuidade de práticas coniventes com o desmatamento.
Embora isso tenha contribuído para desacelerar a retirada
da cobertura florestal, a exaustão das florestas em outras Exercícios
regiões do país e a dificuldade de fiscalização fizeram com
que a indústria madeireira se transferisse para a região Nor- 1. Leia o texto abaixo.
te do país, continuando o desmatamento da região. O novo modelo de ocupação da Amazônia envolve ativi-
De fato, quando examinamos a série histórica do des- dades econômicas de alta complexidade, como a biotec-
matamento amazônico, podemos reconhecer os maiores nologia, mas também atividades mais simples e acessíveis,
índices referentes a esse período em que a exploração como o cultivo do açaí. O açaí batido para o consumo ime-
agropecuária atingiu o seu primeiro pico e a exploração diato da população, a polpa industrializada congelada e o
madeireira procedia sem fiscalização. Os números recen- corante natural denominado antocianina são empregados
tes são alarmantes, não tanto por superarem a máxima nas indústrias farmacêutica, cosmética e alimentícia. Dos
histórica, mas por representarem um retrocesso, quebran- alimentos processados que contêm açaí, lançados no mer-
do a trajetória descendente iniciada no ano de 2005. Ain- cado mundial nos últimos 5 anos, 22% são representados
da assim, a área devastada em 2020 corresponde a menos por sucos, 12% por bebidas energéticas e esportivas, 9%
por lanches, 7% por sobremesas e sorvetes, 5% por lácteos
da metade da que foi desmatada em 2004 ou em 1995, in-
e 3% por doces e balas, sendo que Estados Unidos (30%),
dicando que o problema está relacionado a questões es-
Brasil (19%) e Canadá (8%) foram os países mais repre-
truturais da região amazônica, cujas causas precisam ser sentativos no lançamento desses produtos. Em 2012, a
identificadas e confrontadas para coibir o desmatamento. produção nacional de frutos alcançou 817,2 milhões de
toneladas, um total avaliado em US$ 1,2 bilhão.
O novo modelo de ocupação Com base no texto, assinale a alternativa correta.
Como vimos anteriormente, o desmatamento da Ama- a) A indústria da biotecnologia representa um mode-
zônia foi um desdobramento do aumento da população e do lo bem estabelecido de desenvolvimento da região
crescimento econômico de algumas atividades na região, amazônica, visto o sucesso da indústria de benefi-
especialmente da agropecuária e da indústria madeireira. ciamento do açaí.
No entanto, também vimos como durante séculos a região b) Uma das maiores vantagens do cultivo do açaí é sua
amazônica foi capaz de explorar uma série de atividades conexão com as práticas ancestrais da região ama-
econômicas em que o desmatamento em larga escala era zônica, o que permite a monetização da diversidade
raro ou inexistente. Embora algumas dessas atividades, cultural dos povos indígenas.

Atualidades e Geopolítica 59
230
 c) A origem do cultivo do açaí na região amazônica ga-
rante o protagonismo brasileiro nesse setor, assim
como ocorreu com o Ciclo da Borracha no século XIX.
d) Por ser uma cultura perene, o açaí ajuda a coibir o
desmatamento da região amazônica, embora seja
apenas parte de uma transição complexa para um
novo modelo de desenvolvimento.
e) Dado o crescimento recente da produção anual de
açaí, esse cultivo tem o potencial de substituir a soja,
revolucionando o agronegócio brasileiro.
do Sudeste do Brasil, sem tradição no ramo, tornaram-se
proprietários de terras e empresários rurais. Em princípio
a aquisição de terras pelos grandes capitalistas do Sudeste
animou o mercado imobiliário.
Adaptado de José de Sousa Martins, O Poder do Atraso.
Assinale a alternativa que apresenta a combinação cor-
reta entre o período a que se refere o texto e as implica-
ções, territoriais e sociais, observadas nas áreas onde a
política de incentivos fiscais entrou em operação.

2. (Enem) A floresta Amazônica, com toda a sua imensidão, a) Implicações

não vai estar aí para sempre. Foi preciso alcançar toda essa Período
taxa de desmatamento de quase 20 mil quilômetros qua- Territoriais Sociais
drados ao ano, na última década do século XX, para que Expansão
uma pequena parcela de brasileiros se dessem conta de que Aprovação
dos sistemas
o maior patrimônio natural do país está sendo torrado. do direito de
Brasil agroflorestais
A. Ab’Sáber. Amazônia: do discurso à práxis. sindicalização
Império e preservação
São Paulo: EdUSP, 1996. do trabalhador
da vegetação
rural.
Um processo econômico que tem contribuído na atua- nativa.
lidade para acelerar o problema ambiental descrito é:
a) Expansão do Projeto Grande Carajás, com incenti-
vos à chegada de novas empresas mineradoras. b) Implicações
b) Difusão do cultivo da soja com a implantação de Período
monoculturas mecanizadas. Territoriais Sociais
c) Construção da rodovia Transamazônica, com o obje- Expansão da
tivo de interligar a região Norte ao restante do país. Aumento do
área voltada
d) Criação de áreas extrativistas do látex das seringuei- Primeira número de
à pecuária e
ras para os chamados povos da floresta. República assalariados
redução da
e) Ampliação do polo industrial da Zona Franca de no campo.
mata Atlântica.
Manaus, visando atrair empresas nacionais e es-
trangeiras.

3. (FGV) A percepção da Amazônia, no Brasil e no mundo, c) Implicações

Período
é a da paisagem da floresta. Uma ideia pronta, baseada Territoriais Sociais
na magnitude de sua natureza.
A esse respeito, analise as afirmações a seguir. Expansão da Eliminação
I. A imagem recorrente da Amazônia a divulga como economia dos direitos
Estado
espaço de domínio da floresta equatorial, imbricada extrativista e trabalhistas na
Novo
a elementos como o clima e a hidrografia. concentração cidade e no
lI. A concepção predominante da Amazônia privilegia fundiária. campo.
o quadro natural anterior à presença do homem e
tende a desconsiderar seus processos históricos e
suas identidades culturais. d) Implicações
IlI. A ideia difundida da Amazônia como reservatório Período
Territoriais Sociais
natural está relacionada aos interesses existentes
na exploração de sua biodiversidade. Aumento da Aumento
Está correto o que se afirma em: Ditadura grilagem e dos conflitos
a) I, lI e III. b) lI, apenas. c) IlI, apenas. Militar avanço do violentos no
desmatamento. campo.
d) I e lI, apenas. e) lI e IlI, apenas.

4. (Fuvest) A criação do Banco da Amazônia e da Superin-

tendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e) Implicações
preconizou uma política de concessão de incentivos fiscais Período
aos empresários, especialmente das regiões mais ricas Territoriais Sociais
do país, para que deixassem de pagar 50% do imposto
Aumento da Melhora na
de renda, desde que o dinheiro fosse depositado naquele
área de distribuição
banco para financiar projetos de desenvolvimento no Nova
vegetação fundiária e dos
estado do Amazonas. Os investimentos orientaram-se de República
nativa e reforma níveis de
preferência para a agropecuária, de modo que um gran-
agrária massiva. consumo interno.
de número de empresários e de empresas, especialmente

60 Atualidades e Geopolítica
230
 Meio ambiente: Amazônia (II) 18
aula

Introdução Total acumulado de emissões de gás carbônico

417 bi
Além da sua importância econômica e geopolítica, 400 bi
a Amazônia também é importante do ponto de vista am-
biental. Apesar de não ser a maior floresta do mundo – 300 bi
essa distinção pertence à taiga, localizada no norte da 236 bi
Rússia – não é um exagero dizer que a floresta Amazôni- 200 bi
ca tem um papel ambiental ainda maior. Isso ocorre por 115 bi
100 bi 93 bi
conta das diferenças qualitativas entre os dois tipos de 78 bi 66 bi
vegetação, com destaque para a maior biodiversidade da 34 bi 21 bi 20 bi
16 bi
floresta Amazônica e para o seu papel regulador no ciclo

Al
Ch

Ca
Ja

Áf

M
Rú

Br
Re ha
Es
das águas.

em

pã

ric

éx

as
ta

na
in

in
ss
d

il
ico
o
a

ad
o
ia

dá
an
os

Un
Por ser uma floresta tropical, a Amazônia contém muito

o
Un

id

Su
o
id

l
mais variedades de árvores e organismos. A alta densidade

os
da vegetação e as elevadas temperaturas do clima equatorial Fonte: Global Carbon Project.
também contribuem para um grau incomum de evaporação O gráfico mostra o total histórico de emissões acumuladas
e transpiração, o que beneficia outros ecossistemas brasilei- de gás carbônico por país em bilhões de toneladas. Os
ros, como o cerrado e a mata Atlântica. Estima-se que sem países foram escolhidos para efeito de comparação e não
a presença da Amazônia, o ciclo das águas no Brasil seria correspondem exatamente aos dez maiores emissores.
alterado, comprometendo esses vários outros biomas, assim Uma característica importante das emissões bra-
como a produção agrícola do país. sileiras, porém, é o fato de uma alta proporção advir do
Apesar disso, o valor dessas funções ambientais é di- desmatamento e da conversão de ecossistemas naturais
fícil de quantificar e atribuir corretamente. Isso faz com para transformá-los em fazendas ou áreas de criação
que elas acabem sendo ignoradas em contextos onde os de animais. Em outras palavras, enquanto a maior parte
fatores decisivos são predominantemente econômicos, co- dos países produz suas emissões a partir da queima de
mo é o caso dos agricultores em regiões de fronteira e das combustíveis fósseis, o Brasil está entre os poucos onde
empresas produtoras de papel e celulose. O mesmo ocorre o desmatamento ocupa um lugar relevante nessa conta.
com outra função importante da floresta Amazônica: o seu Isso significa que o total das emissões brasileiras está su-
papel na captura e na fixação do gás carbônico. Para com- jeito a grandes variações dependendo de como é feita a
preender melhor o papel do Brasil e da Amazônia nessa contabilidade desses números. Observe o gráfico a seguir.
questão, convém examiná-la segundo um contexto histó- Emissões de gás carbônico por atividade econômica
rico, levando em conta as contribuições de outros países 2%
2%
2%
2% 2%
2%
2%
2%
e as alterações recentes no papel da floresta Amazônica.
5%
5%
5%
5%
3%
3%
Histórico de emissões 5%
5%
5%
5%
3%
3%

de carbono
Observando o gráfico a seguir de emissões cumu- 23%
23% 60%
60%
23% 60%
60%
lativas a partir de combustíveis fósseis, notamos que 23%
alguns países são, por emissões históricas de carbo-
no, muito maiores do que outros. De fato, a soma das
emissões históricas dos Estados Unidos, da China e da
União Europeia representa cerca de 60% das emissões
globais. Isso é importante porque a contribuição total
de cada país é um dado relevante em negociações inter- agricultura
agricultura desmatamento
desmatamento outros
outros
agricultura
agricultura desmatamento outros
outros
desmatamento
nacionais acerca da responsabilidade por reduzir o im- construção
construção civil
civil eletricidade
eletricidade
construção eletricidade
construção civil
civil eletricidade
pacto das emissões de gás carbônico. No caso do Brasil, dejetos
dejetos
dejetos
transporte
transporte
transporte
dejetos transporte
é notável que, com uma população comparável à dos Fonte: CAIT.
Estados Unidos, nós tenhamos contribuído muito pou-
O gráfico mostra a contribuição relativa de diversas
co para o efeito acumulado das emissões de carbono, atividades econômicas para a emissão de gás
aproximadamente 1% da contribuição global oriunda da carbônico no Brasil no ano de 2016. As proporções
queima de combustíveis fósseis. são representativas da tendência histórica.

Atualidades e Geopolítica 61
230
Causas do desmatamento na Amazônia
As principais atividades exercidas na Amazônia são a agricultura de soja, a pecuária extensiva, a extração de
madeira e a mineração. Entre elas, as que mais contribuem para o avanço do desmatamento são a extração madeireira
e a agricultura de soja, embora esse segundo efeito ocorra em conjunto com a expansão da pecuária. A valorização
da soja no mercado internacional cria pressão para que as terras de pecuaristas sejam incorporadas às fazendas dos
agricultores de soja. Ao vender suas terras, no entanto, muitos desses pecuaristas embolsam o ganho e desmatam
novas áreas para servir de pasto para sua criação. Assim, a fronteira agrícola gradualmente consome a floresta devido
ao impacto indireto da expansão da lavoura de soja. Veja a contribuição histórica das diversas atividades econômicas
no gráfico a seguir.

Evolução do desmatamento na Amazônia

O gráfico mostra o número de hectares desmatados na Amazônia por atividade econômica.
4 000 000

3 000 000

2 000 000

1 000 000

0
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

agricultura comercial reflorestamento infraestrutura queimadas

pecuária represas pequenas propriedades estradas
mineração extração madeireira desastres naturais
Note que, além de o desmatamento ter diminuído ao longo do período, a agricultura deixou de ser uma das principais causas
do desmatamento a partir de 2007.
Fonte: Tyukavina et al, 2017.

Alternativas e intervenções de contraventores. Ao mesmo tempo, não se pode dizer

Como discutimos na aula passada, o desmatamento
é um fenômeno complexo que envolve considerações po-
líticas e socioeconômicas, além de ambientais. A impor-
tância da agropecuária na produção econômica brasileira,
assim como a falta de alternativas de trabalho para as
populações locais, são fatores importantes na promoção
do processo de destruição e degradação da floresta Ama-
zônica. Assim sendo, não é factível alterar o cenário atual
apenas através do aumento da fiscalização e da punição
que essas medidas sejam ineficazes ou desnecessárias.
No gráfico anterior, podemos observar a queda significa-
tiva de emissões oriundas da agricultura a partir de 2004,
data da chamada Moratória da Soja, quando muitos agri-
cultores sofreram pressão de consumidores internacio-
nais pela redução das emissões de CO2 e do desmata-
mento. Ainda assim, elas só atingirão a sua máxima
eficiência se combinadas com incentivos econômicos para
a proteção do meio ambiente e projetos de longo prazo
para a região amazônica.

62 Atualidades e Geopolítica
230
Exercícios

1. (Enem) O gráfico abaixo mostra a área desmatada 3. (Enem) Localizado a 160 km da cidade de Porto Velho
da Amazônia, em km2, a cada ano, no período de (capital do estado de Rondônia), nos limites da Reserva
1988 a 2008. Extrativista Jaci-Paraná e Terra Indígena Karipunas, o
povoado de União Bandeirantes surgiu em 2000 a partir
km2
de movimentos de camponeses, madeireiros, pecuaris-
30 000
tas e grileiros que, à revelia do ordenamento territorial e
diante da passividade governamental, demarcaram e in-
vadiram terras na área rural fundando a vila. Atualmente,
20 000 constitui-se na região de maior produção agrícola e lei-
teira do município de Porto Velho, fornecendo, inclusive,
alimentos para a Hidrelétrica de Jirau.
Adaptado de R. G. C. Silva. “Amazônia globalizada –
10 000 O exemplo de Rondônia”. Confins, n. 23, 2015.

A dinâmica de ocupação territorial descrita foi decor-

rente da:
0
ano a) mecanização do processo produtivo.
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
20
20
20
20
20
20
20
20
20
b) adoção da colonização dirigida.
88
89
90
91
92
93
94
95
96
97
98
99
00
01
02
03
04
05
06
07
08
Fonte: MMA. c) realização de reforma agrária.
As informações do gráfico indicam que: d) ampliação de franjas urbanas.
a) o maior desmatamento ocorreu em 2004. e) expansão de frentes pioneiras.
b) a área desmatada foi menor em 1997 que em 2007.
4. (Enem)
c) a área desmatada a cada ano manteve-se constante
entre 1998 e 2001. Texto I:
d) a área desmatada por ano foi maior entre 1994 e 1995 De modo geral, para a região Norte, o fato contundente é
que entre 1997 e 1998. a expansão dos padrões motivados pela pecuária. Hoje, as
e) o total de área desmatada em 1992, 1993 e 1994 é pastagens se estendem como uma frente pecuarista para
maior que 60 000 km2. o interior do Pará, com São Félix do Xingu contabilizando
um dos maiores rebanhos do país.
2. (Enem) Ao longo dos últimos 500 anos, o Brasil viu suas IBGE. Censo agropecuário. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
fronteiras do litoral expandirem-se para o interior. É ape-
nas lógico que a Amazônia tenha sido a última fronteira a Texto II:
ser conquistada e submetida aos ditames da agricultura, As várzeas dos rios são os principais espaços de aprovei-
pecuária, lavoura e silvicultura. A incorporação recente tamento para o cultivo de uma lavoura rudimentar dedica-
das áreas amazônicas à exploração capitalista tem resulta- da ao consumo local, com produção de pouca extração e
do em implicações problemáticas, dentre elas a destruição
baixo nível tecnológico, induzindo a aquisição monetária à
do rico patrimônio natural da região.
complementaridade através da pesca e da extração vegetal.
M. Nitsch. “O futuro da Amazônia: questões críticas,
cenários críticos”. Estudos avançados, IBGE. Censo agropecuário. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
n. 46, dez./2002. De acordo com os textos, observa-se na região Norte a
Na situação descrita, a destruição do patrimônio natural coexistência de dois modelos agrários baseados, respec-
dessa área destacada é explicada pela(o): tivamente, no(a):
a) distribuição da população ribeirinha. a) mercado de exportação e na subsistência.
b) patenteamento das espécies nativas. b) agricultura familiar e na agroecologia.
c) expansão do transporte hidroviário. c) sistema de arrendamento e no agronegócio.
d) desenvolvimento do agronegócio. d) produção orgânica e na sustentabilidade.
e) aumento da atividade turística. e) abastecimento interno e na transumância.

Atualidades e Geopolítica 63
230
 au la
19 Israel e a Questão Palestina (I)
Antecedentes históricos
Os judeus são um povo originário da região do Levante,
no Oriente Médio. Durante a Antiguidade, eles conquistaram
as terras adjacentes ao rio Jordão e fundaram os reinos de
Israel e Judá. Após um período de prosperidade, os judeus
sofreram múltiplas derrotas militares, culminando com sua
dispersão ao longo de diversos territórios na África, Europa
e Ásia.
Já durante a Idade Média, floresceram as comunidades
judaicas no Norte da África e no Oriente Médio e judeus che-
garam a alcançar posições de destaque da Espanha à Pérsia.
Porém o ocaso do Império Islâmico inaugurou um novo pe-
ríodo de tribulações para os judeus. Rivalidades, atenuadas
pela prosperidade, ressurgiram e se intensificaram por conta
da estagnação posterior no mundo islâmico, e, embora mas-
sacres promovidos contra judeus fossem relativamente raros,
eles eram considerados estranhos à comunidade islâmica e
eram submetidos a amplas restrições.
Como resultado, a população judaica residente no
território palestino nas últimas décadas do século XIX não
ultrapassava algumas dezenas de milhares. Concentrados
nas cidades de Jerusalém, Hebron, Safed e Tiberíades, que
viviam sob a administração do Império Otomano, a maio-
ria dos judeus exercia atividades pouco rentáveis, como a
de pequeno comerciante e a de artesão.
A maior parte da população judaica habitava a chama-
da Zona de Assentamento Judaico na Rússia, uma região
da Europa Oriental que incluía Lituânia, Polônia, Letônia,
Moldávia e oeste da Rússia. Nessa região, os judeus viviam
em suas próprias comunidades, relativamente segregados
do restante da população e, por vezes, eram vítimas de
perseguições e depredações, os chamados pogroms.
O processo de integração do povo judeu na Europa ini-
ciou-se com sua emancipação durante a Revolução Francesa
(1789-1799) e através das Guerras Napoleônicas (1803-1815).
Ao longo do século XIX, o debate a respeito do lugar dos
judeus na sociedade europeia evoluiu em meio a diversas
correntes, sem chegar a uma conclusão definitiva. No entan-
to, a intensificação do nacionalismo entre os povos europeus
deu um duplo impulso ao nacionalismo judaico, sob a forma
de um modelo e devido a perseguição promovida contra eles.
Nesse contexto, o sionismo surgiu como uma alternati-
va para resolver os problemas dos judeus. A criação de uma
comunidade nacional judaica garantiria ao povo judeu um
lugar onde pudesse viver sem interferir ou sofrer interferên-
cia de outros povos, culturas, tradições ou religiões. Após
longos debates e inúmeras considerações, o movimento sio-
nista decidiu-se pelo território palestino, considerado o mais
adequado para o renascimento da nação israelita.
Já os árabes são um povo originário da península Ará-
bica, também no Oriente Médio. Inicialmente politeístas,
eles adotaram o monoteísmo no século VII com a ascensão
do Islã sob liderança do profeta Maomé e de seus seguidores.
64 Atualidades e Geopolítica
A partir desse momento, os árabes muçulmanos empreen-
deram várias guerras de conquista, adquirindo amplos do-
mínios da Índia ao sul da Espanha e convertendo ou expul-
sando as populações que habitavam essas regiões.
O destino da religião islâmica acompanhou o suces-
so de suas expedições militares tornando-se a cultura de
maior prestígio nesses territórios e dando origem a uma ci-
vilização sofisticada. Assim, o Islã não apenas conquistou
as terras anteriormente administradas por bizantinos, gre-
gos, persas e hindus, como também herdou, incorporou e
desenvolveu os conhecimentos acumulados por essas civi-
lizações. A época de maior esplendor do Império Islâmico
corresponde ao período entre 850 e 1250 d.C., após o qual
os territórios islâmicos foram gradualmente conquistados
por outros povos, entre eles os otomanos.
A partir da segunda metade do século XIX, ocor-
reram diversas alterações nas relações entre árabes e
judeus. Anteriormente, elas eram caracterizadas pela
submissão dos judeus às autoridades islâmicas, que in-
cluíam restrições a andar a cavalo, portar armas, e ves-
tir-se com roupas tradicionais, além da obrigação de
pagar um imposto adicional, a dhimma. Naturalmente, a
censura das autoridades oficiais também se refletia em
atitudes discriminatórias informais. Viajantes europeus
que visitavam a região frequentemente descreviam os
judeus como um povo passivo e resignado às agressões
cotidianas que sofriam. Isso começou a mudar com o au-
mento da influência das potências europeias no decadente
Império Otomano.
Os cônsules postados em Jerusalém por França,
Inglaterra e Rússia passaram a exigir que os cidadãos de
seus países, incluindo cristãos e muitos judeus, fossem su-
jeitos às regras e leis francesas, inglesas e russas, apesar
de estarem em território otomano. O chamado “regime de
capitulações” aumentou os direitos de cristãos e judeus,
mas, paradoxalmente, intensificou a perseguição informal
que eles sofriam pelos árabes palestinos. Isso porque essa
mudança coincidiu com um período de rápida urbanização
e relativa privação econômica, em que muitos árabes habi-
tantes de regiões rurais se deslocaram para as cidades.
No fim do século XIX, a maior parte dos árabes ha-
bitantes da Palestina eram pequenos agricultores, os cha-
mados fellahin. Eles ocupavam as poucas áreas férteis da
região, como o vale do rio Jordão e a Planície Costeira.
Além deles, havia também muitos árabes nas cidades,
estes exerciam profissões liberais ou cargos administrati-
vos, conhecidos como a’yan. Nessa época, o aumento dos
impostos coletados nas áreas rurais levou à falência de
muitos pequenos fazendeiros, forçando-os a vender suas
terras a grandes proprietários, conhecidos como effendi.
Embora alguns deles tenham permanecido nas terras
após a venda, em um regime de partilha, muitos fellahin
migraram para as cidades.
230
Geopolítica do Oriente Médio
O Oriente Médio é uma região extremamente impor-
tante do ponto de vista geopolítico. Estendendo-se da África
Setentrional ao Irã, ele conecta as principais concentra-
ções populacionais da Europa, África e Ásia, servindo como
rota de acesso entre elas. O controle dessa região permite,
portanto, o controle e a defesa do mar Mediterrâneo, do
mar Negro, do mar Vermelho, do Subcontinente Indiano
e dos Bálcãs, todas áreas de interesse das potências euro-
peias. No contexto da Revolução Industrial, a segurança e
o abastecimento das metrópoles europeias passou a exigir
a segurança das rotas de comércio e o acesso aos merca-
dos da Ásia e da África. Assim, a importância política do
Oriente Médio pode ser justificada por fatores econômicos e
militares fundamentados na geografia da região.
Além disso, a descoberta de petróleo na península
Arábica aumentou o interesse das potências europeias no
Oriente Médio. Com o início da Segunda Revolução Indus-
trial, caracterizada pela adoção de derivados de petróleo
como principal fonte de energia e de novas matérias-pri-
mas, a importância das rotas de comércio entre o Golfo
Pérsico e o mar Mediterrâneo também cresceu. O controle
do canal de Suez, no Egito, e do estreito de Ormuz, no Irã,
permite o estrangulamento do comércio internacional de
petróleo, garantindo assim uma poderosa arma de negocia-
ção em disputas internacionais. Na virada do século XIX,
a fragilidade do Império Otomano e a importância desses
fatores geopolíticos levaram a uma disputa entre Alemanha,
França, Inglaterra e Rússia por mais influência na região.
Oriente Médio RÚSSIA
AZERBAIDJÃO
Editora Núcleo
2. (Unicamp) Os estudiosos muçulmanos adaptaram a he-
rança recebida dos povos arabizados. Entre os domínios
conquistados pelos muçulmanos estavam a Mesopotâmia
e o Antigo Egito, civilizações que desde cedo observaram
os fenômenos astronômicos. O estudo dos fenômenos na-
turais no Crescente Fértil possibilitou a agricultura e per-
durou por milênios. Nas costas do mar Egeu, na região da
Jônia, surgiram no século VI a.C. as primeiras explicações
dos fenômenos naturais desvinculadas dos desígnios di-
vinos. E as conquistas de Alexandre permitiram o início
do intercâmbio entre o conhecimento grego, de um lado,
e o dos antigos impérios egípcio, babilônico e persa, de
outro. Além disso, houve trocas científicas e culturais com
os indianos. O Império Árabe-Islâmico foi, a partir do sé-
culo VII, o herdeiro desse legado científico multicultural,
ao qual os estudiosos muçulmanos deram seus aportes ao
longo da Idade Média.
Adaptado de Beatriz Bissio. O mundo falava árabe.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 200-201.
Considerando o texto acima sobre o Islã medieval e
seus conhecimentos, assinale a alternativa correta.
a) A extensão do território sob domínio islâmico e a
liberdade religiosa e cultural implementada nessas
áreas aceleraram a construção de novos conheci-
mentos pautados na cosmologia ocidental.
b) A partir do século VII, o avanço dos exércitos islâmi-
cos garantiu a expansão do império de forma ditatorial
sobre antigos núcleos culturais da Índia até as terras
gregas do Império Bizantino, chegando à Espanha.
c) Os conhecimentos sobre os fenômenos naturais
construídos pelos mesopotâmicos, egípcios, ma-
CAZAQUISTÃO UZBEQUISTÃO cedônicos, babilônicos, persas, entre outros povos,
foram ignorados pelo Islã medieval, marcado pelo

Mar TURCOMENISTÃO
TURQUIA Cáspio fundamentalismo religioso.
CHIPRE d) A difusão de saberes multiculturais foi uma das marcas
Mar LÍBANO SÍRIA
Mediterrâneo IRAQUE do Império Árabe-Islâmico, sendo ele a via de trans-
PALESTINA IRÃ AFEGANISTÃO missão do sistema numérico indiano para o Ocidente
ISRAEL JORDÂNIA e de obras da filosofia greco-romana para o Oriente.
KUWEIT PAQUISTÃO 3. (Famerp) Tradicionalmente, diplomatas dos Estados Uni-
EGITO BAREIN Golfo
Pérsico Golfo de dos, dos países árabes e da União Europeia tentam mediar
ARÁBIA CATAR
SAUDITA Omã o conflito de décadas entre Israel e os palestinos. Mas quem
Mar

EMIRADOS também anda viajando pela região é o enviado especial chi-

Verm

ÁRABES UNIDOS OMÃ Mar da

Arábia nês, Wu Sike, um nome desconhecido em grande parte do
elho

Ocidente. Ele já esteve na Arábia Saudita, no Catar, na Jor-

ERITREIA
SUDÃO IÊMEN
OCEANO
dânia, no Egito, nos territórios palestinos e em Israel, não
N
ÍNDICO só representando os interesses econômicos chineses, mas
ETIÓPIA DJIBUTI também agindo como mediador entre Israel e o Hamas.
Disponível em: <www.folha.uol.com.br>, 29 jul. 2014.
Exercícios O interesse da China em estender sua influência eco-
nômica e diplomática no Oriente Médio justifica-se:
1. (IFS) Criado a partir da ideia de um movimento deno- a) por sua política de importação de alimentos cultivados
minado sionismo (o nome vem do monte Sião, uma junto ao mar Mediterrâneo.
colina a sudeste de Jerusalém), que nasceu no fim do
b) por seu objetivo imperialista de conquistar a hege-
século XIX na Europa.
monia política na porção oriental do globo.
O texto faz referência à criação do:
c) por seus acordos de cooperação técnico-científica
a) Estado da Faixa de Gaza. na área do meio ambiente.
b) Estado da Ucrânia. d) por sua dependência energética das importações
c) Estado de Israel. de petróleo dos Estados do Golfo.
d) Estado da Palestina. e) por sua vocação humanitária ao difundir práticas que
e) Estado da Cisjordânia. ajudaram a melhorar os indicadores sociais chineses.

Atualidades e Geopolítica 65
230
 au la
20 Israel e a Questão Palestina (II)
Início da imigração de judeus
para a Palestina
Em março de 1881, o assassinato do czar Alexandre II
por revolucionários russos disparou uma série de pogroms.
Rumores alegando que os assassinos eram judeus prece-
deram a destruição de diversos vilarejos e comunidades
judaicas. Aos pogroms seguiram-se várias leis instituciona-
lizando a discriminação contra os judeus, o que os levou ao
empobrecimento e à desilusão com a ideia de assimilação
ao Império Russo. Para esses judeus, o movimento sionista
passou a ser a melhor chance de uma vida livre de persegui-
ções. Eles optaram por uma estratégia de autoemancipação,
que incluiria a compra e a ocupação de terras como prelú-
dio à formação de um Estado judaico.
Inicialmente, os judeus da primeira leva se dirigiram a
diversos países, incluindo os Estados Unidos, a Argentina, o
Brasil, a Austrália e a África do Sul. Apenas uma minoria en-
tre os sionistas decidiu imigrar para a Palestina, onde as prin-
cipais preocupações eram a compra de terras e o estabele-
cimento de pequenos assentamentos. Entre 1880 e 1890,
a população de judeus imigrantes na Palestina não chegava a
três mil pessoas. Apesar disso, eles foram bem-sucedidos ao
estabelecer pequenas comunidades judaicas em áreas rurais
da Palestina. O foco dos novos assentamentos era a compra
de terras, o financiamento da imigração e a integração dos
judeus na sociedade local. Isso envolvia a propagação da
ideia de que os investimentos da comunidade judaica seriam
benéficos também para as populações árabes ao melhorar a
economia local.
O movimento sionista se esforçou muito para obter
o apoio diplomático das potências ocidentais, que passa-
ram a ver a imigração dos judeus como uma solução pa-
ra os constantes conflitos com as comunidades judaicas
em seus territórios. Além disso, os sionistas argumenta-
vam que, como herdeiros e transmissores da cultura e
influência europeia no Oriente Médio, eles seriam um
potencial aliado local na região. Apesar das tentativas
iniciais, nem otomanos nem europeus ficaram conven-
cidos das vantagens do projeto sionista. Pelo contrário,
o fator mais importante para o crescimento dos assen-
tamentos na Palestina foi uma nova onda de pogroms
causada pela Revolução Russa de 1905. A segunda leva
de imigrantes excedeu em muito a primeira e levou con-
sigo integrantes de grupos paramilitares e veteranos das
guerras revolucionárias russas. A atitude desses novos imi-
grantes era consideravelmente mais belicosa do que a dos
imigrantes anteriores e levou a conflitos constantes com
os habitantes locais, desacostumados com a assertividade
dos novos judeus.
66 Atualidades e Geopolítica
A partilha do Império Otomano
A combinação da expropriação dos fellahin, do au-
mento da competição econômica nas cidades e da mu-
dança no status político dos judeus dentro do regime de
capitulações colaborou para produzir entre os árabes
um sentimento de abandono por parte das autoridades
otomanas. Esse foi um dos catalizadores do nascente na-
cionalismo árabe, particularmente na região da Palestina.
Subsequentemente, durante a Primeira Guerra Mundial,
esse sentimento nacionalista foi estimulado quando a
Inglaterra e a França organizaram e financiaram rebeliões
árabes contra o Império Otomano, em uma tentativa de
enfraquecer as potências centrais. Pouco antes da vitória
aliada, o Acordo de Sykes-Picot (1916) dividiu o Oriente
Médio em áreas de influência administradas sob a proteção
da França e da Inglaterra.
Ao mesmo tempo, a diplomacia do movimento sio-
nista obteve diversas vitórias quando membros pró-sio-
nistas do governo britânico assumiram posições impor-
tantes entre 1916 e 1918. O governo do primeiro-ministro
Lloyd George era amplamente favorável à ideia de uma
comunidade judaica na Palestina como posto-avançado
dos interesses britânicos na região. A consideração deci-
siva, no entanto, foi a necessidade de fortalecer os víncu-
los com os Estados Unidos e a Rússia nos últimos anos
da guerra. A cúpula do governo britânico acreditava que
a comunidade judaica desses países declararia apoio à
causa dos Aliados em troca da oferta de um lar nacional
para os judeus na Palestina. Assim, foi editada a Decla-
ração Balfour (1917), que oficializava o apoio britânico à
causa sionista.
Entre o fim da Primeira Guerra Mundial e os conflitos
de 1948, judeus e árabes palestinos disputaram o favor da
opinião pública com vitórias e derrotas de ambos os lados.
Entrementes, os judeus passaram a ser alvo de violência
e assédio constante dos árabes. As principais demandas
eram o fim da imigração judaica, o fim da expansão dos
assentamentos, e a garantia de uma Palestina administra-
da segundo a vontade da maioria árabe. Como resposta,
os sionistas passaram a organizar forças de segurança e fi-
nanciar a compra de armas através da Europa Central. Os
recursos da diáspora foram decisivos para a organização
de sistemas de segurança social, saúde, educação, e treina-
mento militar antes mesmo do estabelecimento do Estado
de Israel. A ampla desvantagem dos judeus em soldados,
material bélico e moral seria convertida em uma avassala-
dora vantagem logística e militar entre 1918 e 1948. Quando
a resolução 181 das Nações Unidas criou os Estados de
Israel e da Palestina em 1947, ambos os lados estavam
preparados para a guerra.
230
 A partilha da Palestina (segundo a A ideia era gradualmente estrangular os redutos judeus e
proposta da ONU em 1947) forçar a sua rendição. O contra-ataque israelense envolveu
o uso de explosivos e armamentos pesados para destruir
Editora Núcleo LÍBANO
Safed SÍRIA os centros de comando árabes, forçando vilarejos inteiros
Acre a se deslocar.
Haifa Mar da
Galileia No estágio seguinte, houve a internacionalização do
conflito, com invasões partindo do Egito, do Iraque, da Síria,

R io Jordão
Nabulus do Líbano e da Jordânia. As forças israelenses tiveram de se
Telaviv dividir para enfrentar os exércitos árabes, mas tinham a van-
Jafa tagem de contarem com um centro de comando unificado,
Mar
Mediterrâneo Jerusalém* enquanto seus oponentes não possuíam meios de coorde-
FAIXA DE
CISJORDÂNIA Mar nar suas ações. As campanhas mais difíceis para as forças
Morto
GAZA israelenses foram contra o Egito e a Jordânia. No entanto, os
Beer Sheba reforços e a melhoria nos armamentos das forças israelenses
JORDÂNIA
durante o conflito foram dramáticos, forçando os egípcios a
se retirarem, e garantindo a paridade com a Legião Árabe da
Jordânia. No fim, a superioridade das forças israelenses, prin-
EGITO
Estado árabe cipalmente em qualidade, quantidade de munições e equipa-
Deserto
de Estado judeu mentos, garantiu a consolidação da autoridade do governo
Negev israelense sobre o território palestino.
Jerusalém e seus
subúrbios como
zona internacionalizada Exercícios
N Elat (*) Jerusalém era considerada
uma zona internacional sob
a Resolução 181. 1. Desde a Antiguidade, o Oriente Médio é conhecido
como uma região de encruzilhada, berço de diversas
civilizações e impérios ao longo dos séculos. O advento
A Primeira Guerra Árabe- da Modernidade apenas reforçou a importância políti-
ca dessa região, devido ao seu papel nos mercados de
-Israelense (1947-1949) energia e no controle das rotas marítimas de comércio.
Com base em seus conhecimentos sobre a geografia
Os antecedentes do conflito envolviam disputas a res- da região, responda às questões a seguir.
peito das quotas de imigração para a Palestina. Enquanto
a) Cite duas vias marítimas entre a Europa, a África, e o
o movimento sionista buscava aumentá-las, os árabes exi- leste da Ásia. Qual a importância geopolítica dessas
giam sua redução, além de denunciar a imigração ilegal. rotas?
Durante esse período, organizações radicais judaicas come-
teram diversos atentados terroristas contra ingleses e árabes
como forma de pressionar o governo britânico. A tática logo
foi adotada pelos árabes contra os assentamentos judeus e
autoridades inglesas, vistas como pró-sionistas. A Ingla-
terra, pressionada por ambos os lados e sobrecarregada
pelos conflitos da Segunda Guerra Mundial, transferiu a au-
toridade sobre a Palestina para as Nações Unidas após o fim
da guerra. Nesse momento, tanto árabes como israelenses
acreditavam que a questão seria resolvida por força militar.
Um fator adicional que influenciou a guerra foi a comoção
internacional em favor dos judeus depois do holocausto.
A opinião pública na Inglaterra e nos Estados Unidos con-
dicionou a reação dos governos desses países em favor dos
interesses dos judeus. Finalmente, o conhecimento do holo-
causto também afetou a moral dos combatentes, garantindo
a coesão e o empenho das forças israelenses.
Os estágios iniciais da disputa foram caracterizados
por uma guerra civil na Palestina. Os primeiros assaltos
árabes aos assentamentos judaicos foram organizados
por grupos paramilitares, facilmente repelidos pelas for-
ças israelenses. A grande reviravolta aconteceu quan-
do os árabes abandonaram os ataques frontais e decidi-
ram controlar as estradas entre os assentamentos. Sem a
oportunidade de organizar a defesa com antecedência, os
comboios israelenses ficaram vulneráveis a emboscadas,
prejudicando o abastecimento das comunidades judaicas.

Atualidades e Geopolítica 67
230
 b) Qual a relação entre os interesses das potências eu-
ropeias e o apoio aos nacionalismos árabe e judeu
durante a Primeira Guerra Mundial?
2. Cristãos, muçulmanos e judeus conviveram no Oriente
Médio desde o século VII. Embora essa convivência
nem sempre tenha sido pacífica, as motivações dos
conflitos variaram ao longo dos anos. O aumento da
imigração dos judeus da Europa para a Palestina fez
com que surgissem novos focos de disputas na região.
Com base em seus conhecimentos históricos, responda
às questões a seguir.
a) Qual o local de origem da maior parte dos imigrantes
judeus no final do século XIX e início do século XX?
Quais motivos incentivaram sua imigração para a
Palestina?
68 Atualidades e Geopolítica
b) Quais processos políticos e econômicos motivaram
os movimentos nacionalistas árabes do início do
século XX? Qual o papel das potências ocidentais
nesses processos?
3. (ESPM) Terminada a Segunda Guerra Mundial era ne-
cessário lidar com o desastre do holocausto e com os
milhões de refugiados judeus que não tinham para onde
voltar. A catástrofe da perseguição e do assassinato em
massa da comunidade judaica europeia certamente for-
taleceu sobremaneira o movimento sionista, que obteve
o apoio internacional para estabelecer um Estado judeu
na Palestina. Em 29.11.1947, a Assembleia Geral das
Nações Unidas aprovou a resolução no 181 determinan-
do a partilha da Palestina em dois Estados, um judaico
e outro árabe. No dia 14.05.1948, um dia antes da data
oficial para a retirada britânica da Palestina, Ben Gurion
comandou a cerimônia de criação do Moderno Estado
dos Judeus, Israel.
Márcio Scalercio, Oriente Médio.
Quanto ao surgimento de Israel, tratado no texto,
aponte a alternativa que apresente corretamente os
fatos imediatamente subsequentes:
a) Os países da Liga Árabe invadiram Israel derrotando-o.
b) Em 1948, ocorreu uma guerra em que, com o auxílio
da França e da Inglaterra, os israelenses foram vito-
riosos e conquistaram o canal de Suez.
c) Graças ao imediato apoio soviético, os palestinos
conseguiram estabelecer um Estado árabe-palestino
em 1949.
d) No início de 1949, Israel saiu vitorioso de uma guer-
ra contra os países da Liga Árabe, confirmando sua
independência.
e) Na guerra deflagrada pela Liga Árabe, os israelenses
foram vitoriosos graças ao maciço apoio que rece-
beram, entre 1948 e 1949, de tropas dos EUA.
230
 4. (Mack)
Trump reconhece Jerusalém como
capital de Israel
O presidente Donald Trump anunciou nesta quarta-feira (6)
que os EUA passam a reconhecer Jerusalém como a capital
de Israel, revertendo quase sete décadas de política externa
americana, e determinou o início dos preparativos para a
transferência da embaixada americana de Telaviv para a
disputada cidade.
Adaptado de Folha de S.Paulo, 06.12.2017.
Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>.
Acesso em: 11 mar. 2018.
Com base no trecho de reportagem acima e em seus
conhecimentos a respeito do assunto em destaque,
analise as afirmações a seguir.
I. Líderes mundiais de diversos países, tanto aliados
quanto rivais dos EUA, criticaram a decisão de Trump,
temendo o aumento da violência no Oriente Médio.
230
II. Como a mudança da embaixada para Jerusalém era
uma promessa de campanha, a decisão de anunciá-
-la em dezembro do ano passado pode estar relacio-
nada a uma tentativa de recuperação de apoio entre
seus eleitores, já que grande parte de suas outras
promessas ainda não saiu do papel.
III. Trump argumenta que levou em consideração o Pla-
no de Partilha da Palestina, estabelecido pela ONU
em 1947. Na sessão presidida pelo embaixador brasi-
leiro Oswaldo Aranha, foi decidido que Jerusalém se-
ria destinada à consolidação da capital judaica, tendo
em vista sua importância religiosa para os judeus.
É correto o que se afirma em:
a) I, apenas.
b) I e II, apenas.
c) II e III, apenas.
d) I e III, apenas.
e) I, II e III.
Atualidades e Geopolítica 69
 au la
21 Israel e a Questão Palestina (III)
A crise do canal de Suez
Após o fim da Primeira Guerra Árabe-Israelense em
1949, Israel havia demonstrado a sua capacidade de de-
fender o território adquirido durante as décadas anterio-
res. Mais do que isso, os países árabes e a opinião pública
internacional haviam se dado conta da determinação e ca-
pacidade do governo e do aparato militar israelenses. No
entanto, a situação político-diplomática permaneceu ins-
tável entre os beligerantes. Tanto entre os países árabes
como dentro de Israel as lideranças políticas não estavam
certas de que a paz era o melhor caminho para atingir seus
objetivos políticos. Por um lado, Israel mantinha ambições
de expandir seu território até o rio Jordão, além de garan-
tir rotas marítimas através do canal de Suez. Por outro la-
do, o Egito buscava reaver o controle de áreas do deserto
de Negev e, assim como os outros países árabes, apoiava o
retorno dos refugiados da guerra de 1948.
Os palestinos expulsos buscavam entrar em ter-
ras controladas por Israel por diversos motivos. Muitos
queriam apenas reaver alguns de seus pertences ou vol-
tar a cultivar suas terras, mas com o tempo as incursões
passaram a incluir atos de violência e depredação das
propriedades israelenses. O governo de Israel adotou
uma política de dissuasão, estacionando tropas e pro-
movendo patrulhas com ordens para abrir fogo e pre-
parar emboscadas para os infiltradores, como eram
chamados os que adentravam o território israelense. A
situação se agravou ainda mais por conta do patrocínio
egípcio a infiltradores treinados para cometer atos de
terrorismo, os chamados fedayin. Israel respondeu orga-
nizando incursões militares nos países vizinhos, gerando
consequências diplomáticas extremamente negativas,
incluindo advertências de Washington e Londres e uma
condenação do Conselho de Segurança da Organização
da Nações Unidas (ONU).
No plano internacional, o governo revolucionário do
Egito despontava como um possível unificador do mun-
do árabe, cortejado tanto pela URSS como pelos EUA. O
chefe de Estado egípcio, o general Gamal Abdel Nasser,
aproveitou o momento para importar armas da URSS e
nacionalizar o canal de Suez, ameaçando os interesses
da Inglaterra e da França. Israel, que já sofria com inter-
ferências às suas importações, temia o estrangulamento
de suas rotas de abastecimento e, por isso, firmou um
acordo secreto com a Inglaterra e a França para invadir
o Egito e retomar o canal de Suez. A ofensiva começou
com uma invasão israelense que serviu de pretexto para
uma intervenção pacificadora das tropas anglo-francesas.
Embora a invasão tenha sido bem-sucedida, Washington e
Moscou se opuseram à operação e forçaram os europeus
70 Atualidades e Geopolítica
a desistir antes de adquirirem o controle do canal. O epi-
sódio foi uma grande humilhação para Israel, Inglaterra
e França, marcando o início de um novo momento na
geopolítica mundial.
Os interesses e a influência anglo-francesa no Oriente
Médio foram subitamente substituídos pela presença ame-
ricana. A União Soviética também ampliou seu prestígio,
estabelecendo relações com diversos grupos revolucioná-
rios árabes. Israel tentou resistir às ordens de evacuação,
mas a pressão americana foi grande demais. Os israelenses
perderam o controle da Faixa de Gaza e receberam apenas
vagas promessas de que os americanos manteriam a liber-
dade de navegação no canal de Suez. O Egito, militarmen-
te derrotado, foi diplomaticamente vitorioso, tornando-se
o líder de um mundo árabe cada vez mais convencido de
que Israel era uma arma imperialista contra o desenvolvi-
mento local. Se anteriormente a política dos estados ára-
bes mantinha algum traço de ambiguidade, depois desse
episódio, ela se tornou resolutamente contrária à existência
do Estado de Israel.
A Guerra dos Seis Dias (1967)
Após anos de calmaria, os palestinos formaram, em
1964, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP),
associada ao grupo guerrilheiro Al Fatah sob a liderança
de Yasser Arafat. Em 1965, o Al Fatah conduziu uma ope-
ração de sabotagem contra um canal de abastecimento
de água que liga o mar da Galileia ao deserto de Negev. O
mesmo tipo de incidente ocorreria pouco tempo depois
próximo às Colinas de Golã. Quando o Partido Baath,
cuja ideologia era um misto de socialismo, nacionalismo
e pan-arabismo, assumiu o poder na Síria, o governo em
Damasco procurou desviar as águas do rio Jordão para
impedir o acesso de Israel. O discurso baathista enfatiza-
va a liberação do povo árabe e a identificava à expulsão
dos judeus da Palestina.
Israel, por sua vez, conduziu operações de retaliação,
invadindo o espaço aéreo sírio e causando a morte de civis,
o que gerou um aumento nas tensões. Isso foi visto como
uma oportunidade, pelo governo do general Nasser, de
afirmar a posição de liderança do Egito no mundo árabe.
Assim, em 14 de maio de 1967, cerca de 100 mil soldados
egípcios adentraram a península do Sinai e exigiram a re-
moção das tropas da ONU estacionadas durante a última
crise. Surpreendendo a todos, o secretário-geral da ONU,
U Thant, aceitou o pedido egípcio, o que permitiu a apro-
ximação das tropas egípcias do território israelense. Nesse
momento, Nasser acreditou poder obter mais uma vitória
política na região e anunciou o fechamento do estreito de
Tiran para navios destinados a Israel.
230
 O embargo ameaçava o abastecimento de itens es- dessas opções levou vários grupos de refugiados pales-
senciais, o que levou o governo israelense a se mobilizar tinos a optarem pela luta armada como única forma de
para uma possível guerra. Apesar disso, o primeiro-minis- recuperar o território perdido nos conflitos com Isra-
tro de Israel, Levi Eshkol, receava uma repetição da der- el. Entre 1967 e 1973, quando Israel e Egito mais uma
rota diplomática de 1956 e aguardava o consentimento vez se envolveram em um conflito sobre a península
dos EUA para uma operação militar. Os norte-america- do Sinai, grupos clandestinos realizaram uma série de
nos hesitavam por temer antagonizar os países árabes, o atentados nas áreas ocupadas pelas forças israelenses.
que poderia levá-los a uma aliança com a União Soviéti- O principal desses grupos, o Al Fatah, acabou gradual-
ca. Assim, Washington procurou organizar uma esquadra mente assumindo a liderança dos movimentos palesti-
internacional para quebrar o embargo do estreito de Ti- nos e se tornando o principal interlocutor entre a popu-
ran, mas a demora na organização e a falta de entusiasmo lação de refugiados e os estados árabes, além de Israel e
entre os aliados condenaram o plano ao fracasso. Entre- das grandes potências.
mentes, Iraque, Síria, Jordânia e a OLP firmaram alian-
ças militares com o Egito, surpreendendo Washington e Exercícios
tornando o embate praticamente inevitável. Finalmente,
a decisão de apoiar o esforço militar israelense foi toma- 1. (Fuvest) Em 29 de outubro de 1956, uma grave crise
da quando dados dos serviços de inteligência americana política descambou em uma intervenção militar na
confirmaram que Israel era capaz de vencer o confronto região do canal de Suez e da península do Sinai (Egito).
militar em poucos dias. a) Identifique a importância dessa região nos quadros
O gambito israelense funcionou e destruiu as for- da política internacional do período.
ças aéreas adversárias durante as primeiras 36 horas do
conflito. A partir disso, Israel dominou completamente os
céus e continuou a usar sua força aérea para apoiar ope-
rações em terra, bombardeando as posições defensivas
e cortando as linhas de abastecimento dos adversários.
A campanha na península do Sinai, assim como aquela
contra as Colinas de Golã foram rapidamente vencidas
pelas forças israelenses devido à desmoralização e à falta
de comunicação dos exércitos egípcio e sírio. Ao mesmo
tempo, o alto comando israelense viu a oportunidade de
conquistar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, então obteve
o controle sobre as duas antes do anúncio de cessar-fogo
pelas Nações Unidas.
Embora o número de mortos tenha sido relativa-
mente baixo, as forças israelenses tomaram medidas para
expulsar grande parte da população palestina dos terri-
tórios conquistados, inclusive demolindo suas casas. No
total, cerca de 400 mil palestinos se refugiaram na Jor-
dânia ou na Síria durante as hostilidades. A vitória na b) Mencione as potências envolvidas diretamente nesse
Guerra dos Seis Dias também alterou profundamente a conflito e os seus respectivos interesses.
concepção que os israelenses tinham de si mesmos. Se
antes do conflito eles imaginavam estar lutando por sua
sobrevivência, após o armistício, o clima de euforia se
espalhou pela população judaica dentro e fora de Israel.
Uma importante consequência dessa mudança foi o iní-
cio do movimento de ocupação de terras originalmente
alocadas para o Estado Palestino na proposta de 1947.
Setores da sociedade israelense passaram a ignorar leis
e resoluções da cúpula do governo e a ocupar territórios
abandonados por palestinos durante a guerra. As reações
tépidas do governo israelense a essas transgressões mi-
naram a sua credibilidade com interlocutores internacio-
nais e ainda prejudicam o processo de negociação com
os palestinos.
Até a Guerra dos Seis Dias, os refugiados palestinos
haviam depositado a esperança de voltar a suas terras
ou em soluções diplomáticas, ou em operações militares
conduzidas pelos países árabes. No entanto, o fracasso

Atualidades e Geopolítica 71
230
c) Explique as tensões associadas à articulação política 2. (ESPM) O mapa apresenta territórios ocupados pelos
entre os diversos Estados árabes nesse período. israelenses numa das diversas guerras disputadas entre
Israel e os árabes.

Editora Núcleo
LÍBANO
Beirute
Damasco
SÍRIA

Colinas
Haifa de Golã

Mar Mediterrâneo Nabulus

Amã
Telaviv Cisjordânia
Jerusalém
Hebron
FAIXA DE Gaza
GAZA
Port Said Beer Sheba
El Arish
ISRAEL
Ismailia Canal de JORDÂNIA
Suez

Cairo Suez
EGITO Sinai
Elat Aqaba

Gol
ARÁBIA

a
e Aqab
fo d
SAUDITA

e Su

Golfo d
ez
Sharm N
ocupação territorial el-Sheik
Mar Vermelho

Marcio Scalercio, Oriente Médio.

A guerra em questão é:
a) Guerra da Fundação de Israel.
b) Guerra dos Seis Dias.
c) Guerra de Suez.
d) Guerra do Líbano.
e) Guerra do Golfo.

72 Atualidades e Geopolítica
230
 Israel e a Questão Palestina (IV)
A Guerra do Yom Kipur (1973)
Apesar de israelenses e árabes desejarem uma alte-
ração no status quo, a situação política do Oriente Médio
após 1967 carecia de aberturas para um acordo de paz. Is-
so porque Israel temia fazer concessões territoriais sem a
garantia de uma paz duradoura, e os países árabes não en-
contravam condições políticas internas para oferecer a paz
enquanto Israel detinha parte de seus territórios. A men-
talidade da liderança israelense era a de que a península
do Sinai e as Colinas de Golã haviam sido conquistadas
como garantias da sobrevivência de Israel e como moedas
de troca para uma futura negociação de paz. Os árabes,
por outro lado, sentiam-se humilhados pela derrota militar
e não haviam abandonado completamente a opção militar.
O general Nasser e seu sucessor Anwar Al Sadat promo-
veram uma reforma nas forças armadas egípcias entre 1967 e
1970. O resultado foi um corpo de oficiais consideravelmen-
te superior ao anterior, além de inúmeros contratos de com-
pra de armamento soviético. As derrotas anteriores haviam
convencido o alto comando egípcio da importância da força
aérea israelense e, consequentemente, inúmeros preparativos
foram feitos para detê-la, incluindo a compra de um número
grande de radares e baterias antiaéreas. Embora os soviéti-
cos, inicialmente, houvessem se mostrado refratários aos pla-
nos egípcios, a ameaça de uma aliança entre Egito e EUA for-
çou Moscou a cooperar com o fornecimento de armamentos.
Os preparativos finais para o início das hostilidades
foram feitos em acordos secretos com a Síria, cujas for-
ças foram organizadas para retomar as Colinas de Golã ao
mesmo tempo em que o Egito avançava em direção a pe-
nínsula do Sinai. Contrariamente ao que ocorreu durante
as guerras em 1948 e 1967, as forças árabes haviam pas-
sado por um longo período de preparação e planejamen-
to, surpreendendo as tropas israelenses nas duas frentes.
O ataque, iniciado no dia 6 de outubro, dia do Yom Kipur,
infligiu derrotas iniciais às divisões israelenses, um fato
inédito no confronto entre as duas forças. A força aérea
israelense, crucial na vitória de 1967, foi em grande parte
neutralizada pela cobertura antiaérea, o que garantiu a
penetração árabe em direção ao território israelense.
As vitórias iniciais tiveram um impacto psicológico
extremamente importante na história do conflito. Dife-
rentemente das guerras anteriores, as forças israelenses
foram forçadas a confrontar adversários competentes e
bem preparados. Dessa vez, os exércitos árabes foram de-
tidos apenas a duras penas e com amplo suporte logístico
norte-americano. Apesar disso, o contra-ataque israelen-
se também penetrou profundamente o território árabe.
Tanto Suez como Damasco se viram ameaçadas pelos
tanques israelenses, o que provocou uma medida deses-
perada da diplomacia árabe. Os principais produtores de
petróleo no Golfo Pérsico anunciaram um embargo à
Holanda e aos EUA, por conta do seu apoio a Israel.
230
22
aula
Esse golpe diplomático a favor dos árabes criou as
condições para um cessar-fogo orquestrado pelas potên-
cias. No fim das contas, as vitórias iniciais dos árabes e a
tenacidade dos israelenses permitiram que ambos os lados
se sentissem dispostos a negociar. Um acordo de paz foi
intermediado pelos EUA, o qual estabeleceu a criação de
duas zonas internacionais ocupadas pelas Nações Unidas,
uma em Sinai, e outra nas Colinas de Golã. Esse acordo
atendeu uma das principais exigências egípcias: o recuo
das tropas israelenses em troca da garantia de livre passa-
gem dos seus navios pelo canal de Suez. As relações com
a Síria também foram normalizadas, mas sem maiores
entendimentos no que diz respeito a um futuro acordo de
paz. Por fim, vale mencionar o efeito da guerra na política
interna de Israel, qual seja o enfraquecimento do partido
trabalhista e a ascensão da coalizão conservadora, que
favoreceu o prosseguimento da política de assentamentos.
A Guerra do Líbano de 1982
Em novembro de 1977, o presidente egípcio Anwar Al
Sadat, em um gesto que surpreendeu tanto árabes como
israelenses, tomou a iniciativa de visitar Israel, gerando
uma oportunidade para acordos de paz entre os dois países.
A visita de Sadat foi vista com entusiasmo por ambos os
lados e, após uma série de encontros diplomáticos, resultou
em um acordo que ajudou a regularizar as relações entre os
dois países. O Egito recuperou o controle do canal de Suez,
e a península do Sinai foi parcialmente desmilitarizada, pas-
sando a ser monitorada por forças das Nações Unidas. Em
troca, os egípcios concordaram em permitir a passagem
de navios israelenses pelo canal, assim como pelo estreito
de Tiran e pelo golfo de Aqaba.
As discussões em torno do tratado de paz foram inter-
mediadas pelo presidente norte-americano, Jimmy Carter,
em Camp David, nos Estados Unidos. Uma parte importante
das negociações versou sobre o destino dos refugiados pales-
tinos e a progressão da política de assentamentos nos territó-
rios ocupados por Israel. Inicialmente, o acordo parecia não
ser possível devido à insistência de Israel em manter bases
aéreas em Sinai, além da recusa em reconhecer formalmen-
te os territórios palestinos. Ao fim, o tratado estipulou que
os palestinos teriam autonomia na Faixa de Gaza e na Cis-
jordânia, mas a linguagem utilizada foi considerada ambígua
pela OLP. Embora israelenses e egípcios tenham festejado o
entendimento entre seus países, no resto do mundo árabe os
Acordos de Camp David de 1978 foram considerados uma
traição da causa palestina e levaram à expulsão do Egito da
Liga Árabe. A União Soviética também estimulou essa pers-
pectiva e buscou uma reaproximação com os países árabes,
receosa de perder influência na região.
Entre 1975 e 1980, a OLP estabeleceu muitas bases
de operação no sul do Líbano, onde residiam centenas de
milhares de refugiados palestinos. A partir dessa região
Atualidades e Geopolítica 73
organizavam-se muitos ataques terroristas contra Israel
como tentativa de barrar a expansão dos assentamentos is-
raelenses. Por sua vez, Israel passou a prestar auxílio logísti-
co e militar a grupos libaneses cristãos descontentes com a
violência dos terroristas muçulmanos. Os libaneses cristãos
também receavam a interferência do governo sírio e, assim,
formavam um aliado natural no conflito entre palestinos e
israelenses. Com o recrudescimento das hostilidades após
um massacre perpetrado pelos palestinos em 1978, Israel
passou a organizar uma intervenção militar no Líbano para
instalar um regime cristão favorável aos seus interesses.
Entrementes, a OLP e o governo de Israel concluíram
um acordo de cessar-fogo. O líder da OLP, Yasser Arafat, te-
mia que Israel utilizasse os conflitos no Líbano como pretex-
to para destruir as bases de sua organização, no entanto dissi-
dentes dentro do movimento palestino acreditavam em uma
postura mais agressiva diante de Israel e continuavam a or-
ganizar ataques contra judeus em países europeus, já que, se-
gundo eles, esses territórios não estariam inclusos na trégua.
Diante da quebra do cessar-fogo, o governo israelense deci-
diu por uma invasão no Líbano e orientou suas forças a ata-
carem a capital Beirute. O conflito evoluiu rapidamente para
uma guerra entre Síria e Israel, com participação de forças
auxiliares palestinas e libanesas. A superioridade militar das
forças israelenses garantiu uma vitória com poucas perdas de
pessoal e de equipamentos, especialmente após a neutraliza-
ção das forças aéreas sírias. O conflito terminou com a retira-
da de milhares de militantes palestinos das bases no Líbano
e a chegada de forças das Nações Unidas para manter a paz
na região. Apesar disso, as tensões entre israelenses e pales-
tinos continuaram e resultaram na ascensão do Hezbollah
na região, uma organização paramilitar de origem iraniana.
A Primeira Intifada (1987-1993)
A Primeira Intifada foi uma rebelião palestina motiva-
da pela deterioração das condições de vida nos territórios
ocupados por Israel. Uma grande diferença entre essa re-
belião e outros eventos do conflito israelo-palestino está
na forma de organização e na atuação dos palestinos. A
Primeira Intifada ocorreu em um contexto de piora das
condições de trabalho e da educação na Faixa de Gaza e
na Cisjordânia, pois embora Israel permitisse o emprego
de palestinos e provesse algumas oportunidades de educa-
ção, a maior parte dos empregos e ocupações destinados a
eles eram em níveis hierárquicos mais baixos. A exclusão
dos palestinos mais bem-qualificados e as constantes hu-
milhações sofridas por essa população durante a ocupação
levaram à organização de manifestações relativamente
pouco violentas, com ampla participação popular e coor-
denadas de forma descentralizada.
A Primeira Intifada resultou na morte de cerca de
1 400 palestinos. Além disso, milhares foram encarcera-
dos e interrogados em operações da polícia israelense e da
Forças de Defesa de Israel (IDF). A rebelião é considera-
da um exemplo de organização de base sem grande inter-
mediação de movimentos palestinos, como a OLP e o
Hezbollah. A intensa cobertura jornalística internacional
e o apoio de personalidades do mundo acadêmico ajuda-
ram o movimento a obter sucesso político e diplomático,
difamando a imagem de Israel junto à comunidade inter-
nacional. Como resultado, as Nações Unidas passaram
74 Atualidades e Geopolítica
duas resoluções que condenavam as atitudes do governo
israelense durante a repressão à rebelião.
A Primeira Intifada terminou efetivamente com a
conclusão dos Acordos de Oslo (1993), que criaram uma
administração oficial para os territórios palestinos, a Au-
toridade Nacional Palestina (ANP), responsável pela Faixa
de Gaza e por parte da Cisjordânia.
A Segunda Intifada (2000-2005)
Em julho de 2000, o primeiro-ministro israelense, Ehud
Barak, e o líder da Autoridade Palestina, Yasser Arafat reu-
niram-se em Camp David para continuar a negociação do
processo de paz cujas bases haviam sido estabelecidas em
Oslo. Apesar da disposição de ambos os lados chegarem a
um acordo com relação aos territórios ocupados, a negocia-
ção enfrentou sérios problemas devido ao status de Jerusa-
lém. Enquanto os palestinos não se dispunham a aceitar nada
menos do que a soberania do Estado Palestino sobre Jeru-
salém Oriental, Israel manteve-se intransigente e ofereceu,
em vez disso, uma série de direitos de autonomia e controle
sobre a região. Quando, em um gesto simbólico considerado
uma provocação pelos palestinos, o líder da oposição ao go-
verno israelense, Ariel Sharon, visitou a mesquita de Al-Aqsa
(em Jerusalém), teve início a Segunda Intifada.
Diferentemente do movimento anterior, a Segunda In-
tifada foi uma rebelião caracterizada pelo uso de atos terro-
ristas contra alvos israelenses. Embora os palestinos, inicial-
mente, tivessem se limitado ao uso de pedras como armas,
à medida que o conflito progrediu, sequestros de civis is-
raelenses e ataques com homens-bomba também foram uti-
lizados. Durante todo o conflito, as reações israelenses man-
tiveram um nível de letalidade maior do que as operações
palestinas, manifestando a mesma tendência do aumento
da violência. Enquanto de início os israelenses se limitaram
ao uso de balas de borracha e apreensões, os ataques ter-
roristas com explosivos motivaram uma resposta da força
aérea israelense contra alvos na Cisjordânia e na Faixa de
Gaza. As táticas utilizadas pelos palestinos envolviam o uso
de prédios civis como local de organização e preparação
de ataques, o que motivou o governo israelense a realizar
incursões militares nos territórios ocupados. Como respos-
ta, os palestinos e seus aliados no mundo árabe passaram
a dirigir equipamentos militares progressivamente mais so-
fisticados para a região, além de acertar com engenheiros e
especialistas a manufatura de explosivos.
Não há consenso a respeito da data de término da Se-
gunda Intifada, embora muitos escolham a morte do líder
palestino, Yasser Arafat, em novembro de 2004, como mar-
co. O desgaste de ambos os lados durante o conflito, assim
como a eleição de Mahmoud Abbas defendendo uma pla-
taforma de reconciliação, ajudaram na gradual pacificação
da região entre 2005 e 2007. Apesar disso, continuaram a
ocorrer múltiplas ações hostis de ambos os lados no perío-
do. O descontentamento dos palestinos com a interrupção
do processo de paz levou à eleição do Hamas na Faixa de
Gaza, um movimento radical oposto a Mahmoud Abbas e
adepto do uso de táticas terroristas, como o lançamento de
foguetes contra Israel. Os bombardeios constantes por par-
te do Hamas foram um fator importante para a subsequente
invasão da Faixa de Gaza pela IDF, assim como para a inten-
sificação da construção de assentamentos israelenses.
230
Exercícios
1. (Uece) O Oriente Médio é uma região composta por
países dentre os quais, Arábia Saudita, Israel, Jordânia,
Iraque, Síria, Irã e Barein. Essa região tem importância
inegável para toda a humanidade, seja pelo aspecto
religioso, como berço do judaísmo, cristianismo e isla-
mismo, seja pelo aspecto histórico ou pela importância
econômica estratégica com a exploração do petróleo.
Analise as afirmações a seguir sobre essa região e
marque V conforme sejam as declarações verdadeiras
e F conforme sejam as declarações falsas.
( ) São considerados, entre outros, como pontos ge-
radores e/ou responsáveis pela manutenção dos
conflitos que dificultam a paz nessa região, o fato
de os judeus considerarem Jerusalém indivisível
e de os palestinos exigirem que a parte oriental
de Jerusalém seja a capital de um possível futuro
Estado Palestino.
( ) Uma parcela significativa das reservas de petróleo
do mundo encontra-se no Golfo Pérsico. Porém,
nessa região, encontram-se países que também
3. (Vunesp) Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Esta-
têm posicionamentos culturais e sociais complexos,
distintos e conflitos históricos.
( ) Existem dois grandes desertos nessa região. Um
na península Arábica (deserto da Arábia) e outro
na Jordânia (deserto do Saara). Os grandes rios
dessa região são o Tigre e o Eufrates, que formam
uma extensa planície fluvial. Estes nascem no Golfo
Pérsico e deságuam no mar Negro.
( ) O conflito conhecido como a Guerra do Golfo ini-
ciou-se em 1990, quando tropas do Iraque inva-
diram o Kuweit. Essa ação teve, dentre as suas,
motivações, a crise econômica pela qual passava
o Iraque e disputas de fronteiras com o Kuweit.
( ) O Hamas, o Jihad Islâmico e o Hezbollah são gru-
pos que atuam principalmente nessa região e têm
dentre os seus objetivos a criação de um Estado
Islâmico e a manutenção da convivência pacífica
com Israel.
( ) O pluralismo geopolítico foi o argumento e a estraté-
gia geopolítica utilizada pelos EUA para justificar sua
intervenção no conflito do Golfo Pérsico de forma a
garantir o equilíbrio na balança de poder na região.
A sequência correta de cima para baixo é:
a) V – V – F – V – F – F b) V – V – F – V – F – V
c) V – V – V – V – F – F d) V – V – V – V – F – V
2. (UCS) Grupos políticos e religiosos que governam e
influenciam os países do Oriente Médio, já realizaram
ações armadas para defender os interesses dos ára-
bes palestinos. Sua ideologia básica é a da luta pela
libertação da Palestina, área disputada por árabes e is-
raelenses, desde meados do século XX, e pelo retorno
dos refugiados palestinos que vivem espalhados pelo
Oriente Médio.
Analise a veracidade (V) ou a falsidade (F) das afirmações
a seguir, sobre os grupos listados abaixo.
( ) Irmandade Mulçumana, fundado em 1928. Movi-
mento sunita mais antigo e organizado do mun-
do árabe, obteve a maioria no Parlamento egípcio
após a queda de Hosni Mubarak, em 2011, e tem
ramificações em países vizinhos.
230
( ) Al Fatah, fundado em 1959. Maior influência política
da OLP (Organização para Libertação da Palestina),
controla a Cisjordânia. Praticou atos terroristas con-
tra Israel e foi expulso da Faixa de Gaza.
( ) Hezbollah, fundado em 1982. Quase um Estado
dentro do Líbano, é um grupo xiita que representa
uma ameaça a Israel. Patrocinado pelo Irã, é acu-
sado de fornecer armas ao Hamas.
( ) Hamas, fundado em 1987. Grupo sunita, contro-
la a Faixa de Gaza desde 2007, quando expulsou
o Al Fatah. A Faixa de Gaza não reconhece Israel
e recebe apoio do Irã e do Hezbollah. Da mesma
forma que o Al Fatah, tenta restituir um governo
palestino único.
Assinale a alternativa que preenche corretamente os
parênteses, de cima para baixo.
a) V – V – V – V b) V – F – F – F c) F – F – V – V
d) F – V – F – V e) V – F – V – F
dos Unidos se viram numa situação privilegiada, como a
mais forte, coesa e próspera economia mundial. O governo
americano coordenou um vasto plano de apoio para recu-
perar as economias capitalistas da Europa Ocidental, já no
contexto da Guerra Fria. As agitações revolucionárias na
Ásia, África e América Latina forçariam desdobramentos
dos investimentos americanos também para essas áreas.
O resultado desse conjunto de medidas foi um cres-
cimento econômico sem precedentes das economias
industriais. Entre 1953 e 1975 a taxa de produção indus-
trial cresceu na escala extraordinária de seis por cento
ao ano. O crescimento da riqueza foi de cerca de quatro
por cento per capita em todo esse período. Mesmo com a
crise do petróleo, que atingiu e abateu os mercados entre
1973 e 1980, o crescimento continuou, embora reduzido
a cerca de dois e meio por cento ao ano, o que ainda era
uma escala notável.
Adaptado de Nicolau Sevcenko. A corrida para o
século XXI: no loop da montanha-russa, 2001.
No contexto descrito:
a) a industrialização no Ocidente expandiu-se 12% no
período de 1973 a 1980, o que refletiu a plena in-
dependência da indústria ocidental em relação ao
petróleo produzido e exportado pelo Oriente Médio.
b) o crescimento da riqueza foi menor no período de
1973 a 1980, em relação às décadas anteriores, de-
monstrando o impacto da Crise do Petróleo na eco-
nomia norte-americana e na do Ocidente europeu.
c) a taxa de produção industrial cresceu 132% no pe-
ríodo de 1953 a 1975, o que fortaleceu a economia
norte-americana e permitiu investimentos nos países
do Ocidente europeu.
d) a produção industrial norte-americana manteve-se
estável no período de 1953 e 1975, o que impediu
que os Estados Unidos abalassem a liderança eco-
nômica mundial da China e da União Soviética.
e) a riqueza per capita sofreu redução de 2,5% no perío-
do de 1973 e 1980, o que fragilizou a posição norte-
-americana na disputa pelos mercados dos países do
Ocidente europeu.
Atualidades e Geopolítica 75
 au la
23 Questão da Ucrânia (I)
Introdução
A mobilização de tropas russas junto às frontei-
ras ucranianas, a partir de novembro de 2021, chamou a
atenção de muitos analistas por conta da magnitude e do
tipo de material bélico reunido. O efetivo militar cresceu
gradualmente e chegou a atingir 190 mil tropas em feve-
reiro de 2022, o equivalente a cerca de 75% dos soldados
russos, contando com batalhões de engenharia para cons-
trução de pontes, remoção de minas, escavação e opera-
ções de logística. Embora as forças russas estivessem se
preparando ostensivamente para exercícios militares, sua
presença foi utilizada como forma de pressionar por ne-
gociações diplomáticas a respeito do status da Ucrânia no
sistema internacional.
Formado a partir dos destroços da antiga União So-
viética em 1991, o atual território ucraniano está situa-
do em uma posição geográfica extremamente importan-
te, que dá acesso ao mar Mediterrâneo através do mar
Negro e permite o controle do tráfego terrestre entre os
Bálcãs, a Europa Central e o Leste Europeu. Além dis-
so, percorre a Ucrânia uma extensa rede de gasodutos
responsáveis pelo abastecimento dos sistemas de aque-
cimento central da Europa Ocidental a partir da Rússia.
Por fim, vale observar também a importância da Ucrâ-
nia na produção de trigo, fertilizantes e gás néon, utili-
zado em lâmpadas, transmissões elétricas e equipamen-
tos ópticos.
Geografia da Ucrânia
A Ucrânia, com cerca de 600 mil quilômetros quadra-
dos, é o maior país cujo território se encontra exclusivamen-
te no continente europeu, situando-se no oeste da planície
europeia oriental. Os limites naturais dessa planície são
os Montes Cárpatos, que ocupam regiões da Romênia,
Hungria e Eslovênia, e os Montes Urais, entre o sul da
Rússia e o Cazaquistão. Em outras palavras, o território cor-
respondente à Ucrânia não possui fronteiras naturais, mas
ocupa uma posição intermediária facilmente transitável
entre a Europa Ocidental e a Rússia. Quaisquer tentativas
de invasão militar por terra, necessariamente, atravessam
o território ucraniano, motivo adicional do porquê esse
território é extremamente contestado, já que a segurança
tanto da Europa Ocidental como da Rússia depende do
controle da Ucrânia.
O clima predominante é o europeu continental com
quatro estações bem definidas, a única exceção é o sul da
península da Crimeia, que é caracterizado por um clima
subtropical. Os principais rios que fluem pela Ucrânia são
o Dniepre, que corta o país ao meio, o Donets e o Dniestre,
todos em direção ao mar de Azov e ao mar Negro ao sul.
76 Atualidades e Geopolítica
A presença desses rios, assim como o acesso ao mar
Negro, favoreceram a construção de portos importantes
nas cidades de Sebastopol, na Crimeia, de Mariupol, em
Donetsk, duas das cidades mais importantes da Ucrânia,
assim como as cidades de Kharkov, no leste, Lviv, no oeste,
e da capital Kiev, que ocupa uma posição central no país.
Demograficamente, a Ucrânia é habitada por uma
população de origem russa, a leste, e por uma população
atualmente denominada ucraniana, que remonta à provín-
cia da Galícia Oriental, associada historicamente ao Reino
da Polônia e ao Império Austro-Húngaro. Essa divisão étni-
ca é extremamente importante para compreender a conjun-
tura política da Ucrânia, como se pode ver no mapa abaixo.
Editora Núcleo
Porcentagem da população
ucraniana de etnia russa
Kiev
Sumy
Rivne Zhytomyr Kharkov
Poltava
Cherkasy
Lviv Ternopil Dnipro Luhansk
Vinnytsia
Ivano- Kropyvnytsky Donetsk
Zaporizhzhya
-Frankivsk Chernivtsi
Mariupol
Kherson
Odessa
N
Sebastopol
Porcentagem da população ucraniana de etnia russa:
1,2 71,6
Fonte: Censo Nacional da Ucrânia, 2001.
Panorama histórico
O Estado ucraniano é um amálgama de territórios com
diferentes histórias, e que, devido à sua posição geopolítica,
sofreu diversas influências culturais ao longo dos séculos.
O primeiro Estado eslavo, o Rus de Kiev, foi fundado no sé-
culo IX, às margens do rio Dniepre e é considerado a ori-
gem tanto da Rússia como da Ucrânia. Ele foi fundado pela
Dinastia de Rurik, um líder varangiano que conquistou as
populações eslavas locais. Mais tarde, a identidade do Rus
de Kiev se consolidaria frente aos vizinhos muçulmanos,
ao sul, através da adoção do cristianismo ortodoxo pelo
príncipe Vladimir, o Grande, em 988 d.C.
Ao longo dos séculos, o Rus de Kiev se deslocou em di-
reção a Novgorod e Moscou, principalmente por conta das
rivalidades com impérios da Ásia Central, como o Império
Mongol e o Império Turco-Otomano, e também dos confli-
tos com povos germânicos e bálticos, como o Reino Polaco-
-Lituano e as diversas ordens de cruzados oriundas da atual
230
Alemanha. As influências do Império Austro-Húngaro e do
Império Russo se refletem nos dois mundos culturais que
predominam na Ucrânia atual. Em torno da influência aus-
tro-húngara, floresceu a tradição greco-católica de rito orien-
tal, enquanto no entorno dominado pelo império czarista, a
religião ortodoxa. Da mesma forma, o idioma ucraniano se
beneficiou da diversidade aceita nos territórios do Império
Austro-Húngaro, mas foi reprimido pela política czarista.
Assim, nos territórios do oeste, o idioma ucrania-
no é predominante, enquanto no leste predomina o rus-
so, sendo que existem diversas variedades que combi-
nam características entre essas duas línguas. Foi durante
o período soviético que a Ucrânia Oriental foi unida ao
território ocidental, historicamente sob jurisdição austro-
-húngara. Isso ocorreu por conta do Pacto Ribbentrop-
-Molotov de 1939, quando Stálin incorporou aqueles terri-
tórios formando a Ucrânia como uma das quinze repúblicas
socialistas soviéticas federadas sob a URSS. Somaram-se
às regiões historicamente russas os territórios da Galícia
Oriental, a Bukovina do Norte e Volhynia.
Os soviéticos ainda redefiniram o território ucraniano
mais algumas vezes, privando-o da Transnístria, para formar
o que atualmente é a Moldávia e incorporar algumas de suas
regiões à Rússia atual. Stálin ainda incorporou à Ucrânia a
região da Transcarpácia, tomada da Tchecoslováquia. Final-
mente, em 1954, Nikita Khrushchov incorporou a península
da Crimeia, pertencente à Rússia desde o século XVIII.
O colapso da URSS e a expansão
da Otan
Com o fim da União Soviética em 1991, os Estados Uni-
dos adotaram uma política de segurança destinada a manter
a influência norte-americana na Europa Ocidental. Os princi-
pais componentes dessa política eram a manutenção do efeti-
vo militar norte-americano na Alemanha e a expansão da Or-
ganização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em direção à
Rússia. Apesar de vigorosos protestos russos, a Otan expan-
diu-se progressivamente, incorporando Polônia, Hungria e
República Tcheca em 1999; Bulgária, Romênia, Eslovênia,
Eslováquia e os países bálticos em 2004; e, finalmente, du-
rante a Conferência de Bucareste em 2008, a Otan passou a
considerar a admissão de Bósnia, Ucrânia e Geórgia.
Essa última rodada de expansão foi ainda mais seve-
ramente criticada pelos russos, culminando na Guerra da
Geórgia em 2008, quando o país foi derrotado pela Rússia
e forçado a rever seus acordos internacionais. A situação
ucraniana evoluiu de forma diferente ao longo do início do
século XXI, embora influenciada pelas mesmas tensões en-
tre Otan e Rússia. A Ucrânia converteu-se em uma arena de
disputa de influência política por parte das duas potências,
com tentativas de estabelecer um regime favorável a cada
um dos lados por meio de influência econômica e cultural.
Esses esforços são visíveis nos resultados das eleições ucra-
nianas, em que a divisão étnica e linguística do país frequen-
temente coincide com preferências ocidentais ou russas.
Esse processo atingiu um ponto de inflexão em 2014,
quando a Revolução Euromaidan, deflagrada por conta da
oposição do governo a um acordo entre Ucrânia e União
Europeia, resultou na expulsão do presidente ucraniano
230
Viktor Yanukovitch no mesmo ano, que era um aliado po-
lítico do presidente russo Vladimir Putin. Como resultado,
e para preservar seus interesses geopolíticos na região, a
Rússia interviu militarmente anexando a região estratégi-
ca da Crimeia e fomentando movimentos separatistas nas
regiões orientais de Luhansk e Donetsk. O conflito militar
desestabilizou o leste da Ucrânia, dando origem a uma sé-
rie de negociações, chamadas de Acordos de Minsk. Eles
estabeleceram diretrizes para o desarmamento e a inter-
dição do território ucraniano a bases militares estrangeiras,
e foram negociados por Alemanha, França, Rússia e Ucrânia.
Desde então, a Ucrânia vive uma situação de instabi-
lidade e conflito nas regiões separatistas, onde grupos pa-
ramilitares pró e contra Rússia se enfrentam desde 2014.
Com a eleição do presidente Volodymyr Zelensky em
2019, as negociações com a Otan avançaram e, no dia
14 de setembro de 2020, a nova edição da política de se-
gurança nacional ucraniana incluiu um acordo que visa à
futura integração da Ucrânia na Otan, assim como à deso-
cupação e reintegração da península da Crimeia. Em julho
de 2021, o presidente russo Vladimir Putin apresentou um
discurso sobre a unidade histórica de russos e ucranianos
e começou a mobilizar a Rússia para uma operação militar
na Ucrânia.
Exercícios
1. (ESPM) Em relação à crise político-territorial entre Ucrânia
e Rússia, podemos afirmar que:
Editora Núcleo
Russo como língua nativa
Kiev
N
menos de 20% 20-50% 50% ou mais
Fonte: <http://noticias.bol.uol.com.br/
ultimas-noticias/internacional.htm>.
Acesso em: 05 ago. 2014.
a) a Rússia é contrária a saída da Ucrânia da União
Europeia.
b) a porção ocidental da Ucrânia é majoritariamente
russa e desejosa de ingressar na União Europeia.
c) a Rússia pretende instalar ogivas nucleares na Crimeia
e a Ucrânia é contra.
d) a porção leste da Ucrânia é área de atuação de sepa-
ratistas russos.
e) as grandes jazidas de petróleo da parte ocidental da
Ucrânia, onde reside a maioria da população russa,
é o fator de tensão maior.
Atualidades e Geopolítica 77
2. (UERJ) O presidente russo,

Editora Núcleo
Vladimir Putin, inaugurou UCRÂNIA RÚSSIA
em maio de 2018 o trecho Kiev
rodoviário de nova ponte UCRÂNIA
que liga a Rússia continen-
tal à península da Crimeia,
anexada à Rússia em 2014.
A Crimeia, uma ex-Repúbli- Armyansk
ca autônoma que integrava CRIMEIA
a Ucrânia, foi anexada pela
Rússia durante uma grave Mar de Azov
crise que culminou num CRIMEIA
conflito entre forças leais Kerch
ao governo ucraniano e mi-
lícias separatistas apoiadas
por Moscou. RÚSSIA
A Ucrânia denunciou Simferopol
a construção como uma
flagrante violação das leis Sebastopol N
Mar Negro
internacionais. Putin diri-
giu um enorme caminhão
Kamaz, de fabricação russa,
pelos 19 quilômetros da ponte sobre o estreito de Kerch. Em discurso, o presidente exaltou a construção da ponte de
3,6 bilhões de dólares como um feito histórico e prometeu novas obras de infraestrutura na península.
Adaptado de <dw.com>.

A ponte mencionada indica mudanças no processo de anexação da Crimeia à jurisdição do governo russo, na atualidade.
Tendo como base o mapa da Crimeia e as informações da reportagem, observa-se que a construção da ponte se insere
em um projeto russo para promoção de:
a) homogeneização política
b) modernização financeira
c) centralização cultural
d) integração territorial

3. (UERJ) O evento abordado na reportagem está simultanea-

Rússia formaliza anexação da Crimeia
A Rússia anexou formalmente a península da Crimeia a
seu território, depois de um duro discurso do presiden-
te Vladimir Putin em meio a pesadas críticas aos EUA, à
União Europeia e ao governo interino da Ucrânia. Nesse
discurso que antecedeu a assinatura da anexação da
Crimeia, Putin destacou a questão como vital para os inte-
resses russos. Segundo ele, o Ocidente “cruzou uma linha
vermelha” ao interferir na Ucrânia. “A Crimeia sempre foi
e é parte inseparável da Rússia”, declarou o presidente.
Adaptado de <estadao.com.br>. Acesso em: 18 mar. 2014.
mente associado ao presente e ao passado dos povos
envolvidos.
Para explicar essa ação russa em relação à Crimeia,
são fundamentais os seguintes interesses do atual
governo Putin:
a) superar o pan-eslavismo; reduzir a diversidade étnica.
b) estimular a economia; ampliar a produção energética.
c) combater a corrupção; reconstruir a geopolítica
global.
d) reforçar o nacionalismo; consolidar a geoestratégia
militar.

78 Atualidades e Geopolítica
230
 Questão da Ucrânia (II)
Introdução
Duas semanas depois do início do conflito entre Rús-
sia e Ucrânia em fevereiro de 2022, as hostilidades entre os
dois países continuavam sem um resultado claro. O avanço
das tropas russas havia sido desigual ao longo das diferentes
frentes de guerra. A resistência dos ucranianos – ao que tudo
indica maior do que a esperada pelos comandantes russos –
obteve algum êxito na frente norte do conflito, onde um com-
boio de tropas russas se encontrava paralisado rumo à capital
Kiev. Por outro lado, o Exército russo rapidamente ganhou o
controle da região sudoeste do país ao longo do eixo sul do
ataque, começando a partir da península da Crimeia e estabe-
lecendo uma ligação terrestre com os territórios rebeldes em
Donetsk e Luhansk.
Além do território ucraniano, a guerra extrapolou as
fronteiras entre as sociedades ocidentais e o conflito entre
Estados. A imposição de sanções econômicas pelos Esta-
dos Unidos e pela União Europeia foi amplamente apoiada
pela chamada comunidade internacional, os tradicionais
aliados dos Estados Unidos no Ocidente, incluindo o Ja-
pão, a Coreia do Sul e a Austrália. Ao mesmo tempo, inú-
meras organizações independentes sediadas ou ligadas a
esses países, desde empresas até grupos artísticos e uni-
versidades passaram a organizar seus próprios boicotes, o
que contribuiu para o aumento da eficiência das sanções
contra a Rússia.
Enquanto a possibilidade de uma vitória militar russa
continua a existir, a economia e a sociedade russas têm
sentido o peso das sanções. A desvalorização do rublo, a
moeda russa, procedeu a passos largos desde a imposi-
ção das sanções econômicas, e a debandada de empresas
associadas ao Ocidente tem ameaçado as áreas da eco-
nomia russa mais dependentes do capital e da tecnologia
ocidentais. Essa assimetria fundamental entre as formas
de condução do conflito dificulta uma avaliação objetiva
das condições da guerra. Por conta disso, é importante ana-
lisar a situação com prudência e preservar a possibilidade
de múltiplos cenários.
Múltiplas narrativas sobre
o conflito
A distância, a complexidade e a incerteza associa-
das aos rumos do conflito na Ucrânia tornaram possí-
vel a emergência de múltiplas versões sobre o início das
hostilidades. Se, por um lado, alguns analistas afirmam
a importância dos eventos sucedidos entre a queda da
União Soviética e as sucessivas rodadas de expansão da
Otan, outros identificam as origens do conflito na ambi-
ção de restaurar a unidade política, seja do antigo Império
230
24
aula
Russo, seja da própria União Soviética. A importância
desse enquadramento inicial também ultrapassa a ques-
tão das origens do conflito. Frequentemente, análises
oriundas de um ou de outro ponto de vista tendem a co-
lorir as afirmações sobre a situação e os rumos da guerra
na Ucrânia.
Entre aqueles que adotam a tese de que a invasão do
território ucraniano visava a defender as fronteiras russas
contra a expansão da esfera de influência ocidental, há
algum consenso de que o avanço das tropas russas em
direção a Kiev seria inevitável. Esses analistas costumam
sustentar que, apesar da resistência dos ucranianos, o
poderio militar da artilharia russa fatalmente levaria ao
controle efetivo das áreas a leste do rio Dnieper, estabe-
lecendo uma posição robusta a partir da qual os russos
poderiam negociar um cessar-fogo que alcançasse seus
objetivos políticos: um veto à expansão da Otan e a ane-
xação de alguns dos territórios nas regiões leste e sul
da Ucrânia.
Já o grupo de analistas cuja tese identifica o início do
conflito a uma política expansionista tende a afirmar que
o resultado mais provável da guerra seria a neutralização
das ambições russas em um cenário de guerrilha no ter-
ritório ucraniano. Segundo esse ponto de vista, o contin-
gente russo seria insuficiente para estabelecer controle so-
bre a Ucrânia, tanto mais por subestimar a habilidade das
forças armadas ucranianas e o apoio que elas receberiam
do Ocidente. Desde o início do conflito, a Ucrânia recebeu
bilhões de dólares em equipamentos militares, incluindo
mísseis antitanque e lançadores de mísseis antiaéreos por-
táteis, cuja finalidade é impor altos custos a uma ocupação
prolongada. Além disso, o progressivo isolamento da Rússia
no cenário internacional foi destacado como possível cata-
lisador de uma alteração na cúpula do regime russo, com a
eventual deposição do presidente Vladimir Putin.
A evolução do conflito
Embora tropas russas tenham adentrado os territórios
separatistas já no dia 21 de fevereiro de 2022, a invasão em
larga escala começou apenas no dia 24. O avanço se dado
ao longo de três eixos: eixo norte, a partir da Bielorússia,
eixo leste, a partir de Luhansk e Donetsk, e eixo sul, a partir
da península da Crimeia. Durante a fase inicial do conflito,
a Rússia assumiu uma postura de agressão limitada, carac-
terizando a invasão como uma operação militar especial,
privilegiando o uso de armamentos de alta precisão e con-
tando com o possível apoio da população russa residente na
Ucrânia. Essa abordagem resultou em um relativo sucesso
nos eixos leste e sul, onde o Exército russo avançou rapi-
damente estabelecendo uma ligação entre as duas frentes e
cercando parcialmente as forças ucranianas.
Atualidades e Geopolítica 79
 Porém o eixo norte do avanço encontrou ampla re-
sistência rumo a Kiev e sofreu demais com severos pro-
blemas de logística. Uma tentativa inicial de estabelecer
uma ponte aérea no Aeroporto Internacional de Kiev
foi repelida pelas forças especiais da Ucrânia, o que
provavelmente adiou substancialmente o progresso da
invasão russa ao eliminar a possibilidade de conquista
da capital em poucos dias. As linhas de abastecimento
russas, dependentes da infraestrutura ferroviária conso-
lidada durante o período soviético, também foram sabo-
tadas pelos ucranianos, que destruíram trilhos e pontes,
além de inundarem a área ao norte de Kiev. Essas táti-
cas, combinadas ao uso de drones e a ações de guerri-
lha contra comboios de abastecimento, foram eficientes
como forma de contenção do avanço do Exército russo
ao norte.
Controle estimado do território ucraniano
e principais eixos de manobra russos
em 9 de março de 2022
N Belarus Rússia
Eixo de
Belarus/Kiev
O L
S direto entre a Otan e a Rússia. Tanto as
Polônia
Kiev
Kharkov
Ucrânia
Kiev
Odessa
Eixo da
Crimeia
Avanços russos estimados na Ucrânia*
Controle russo estimado em território ucraniano
Controle russo reivindicado em território ucraniano
Contraofensivas ucranianas reivindicadas
Protestos ucranianos observados contra a ocupação russa
Rodovias ucranianas
(*) Avanços russos estimados são áreas em que o ISW avalia que as forças russas operaram
ou lançaram ataques, mas não as controlaram.
Fonte: Institute for the Study of War. Disponível em:
<www.understandingwar.org/>.
Acesso em: 21 mar. 2022.
80 Atualidades e Geopolítica
A dificuldade encontrada no eixo norte, tanto como
os sucessos obtidos a sul e a leste, levou a uma alteração
nas táticas empregadas pelos russos. A partir da segunda
semana de conflito, a artilharia pesada russa passou a ser
usada em uma escala cada vez maior, o que inclui o uso
de armamentos de baixa precisão cujo dano colateral a
estruturas civis é considerável. A hipótese mais provável
é a de que os russos estavam seguindo o mesmo procedi-
mento empregado na Guerra da Chechênia (1994-1996),
quando a entrada na cidade de Grozny se tornou possível
apenas com a destruição da maior parte das estruturas
e dos prédios urbanos. O mesmo procedimento estaria
sendo utilizado na frente leste, onde o Exército russo
buscava cercar o contingente ucraniano, preparando o
terreno para a doutrina russa denominada “caldeirão”, na
qual o oponente é preso e bombardeado até a rendição.
Os ucranianos, por sua vez, buscavam
perfurar o cerco russo a oeste e evitar a
formação de um segundo caldeirão ao
redor de Kiev.
A escalada do conflito
Desde o início das hostilidades, a
principal preocupação dos envolvidos
tinha sido evitar a possibilidade da es-
calada do conflito rumo a um confronto
Eixo de Kharkov tentativas iniciais russas de assumir o
controle da Ucrânia com um mínimo de
mortes como a ausência de uma atua-
ção mais direta por parte da Otan se
explicam, em grande parte, pelo medo
de se iniciar uma guerra nuclear. Apesar
Eixo do
Donbass disso, o presidente russo, Vladimir Putin
chegou a elevar o nível de prontidão das
forças nucleares russas diante da pro-
posta ocidental de uma zona de exclu-
são aérea, tática que foi rejeitada até o
movimento como provável instigadora
de um conflito direto entre as potências.
Além da possibilidade de uma guer-
ra nuclear, convém observar alguns ou-
tros fatores moderadores da intensidade
do conflito. Do lado russo, a possibili-
dade de anexação de territórios, assim
como a presença da população étnica
russa a leste da Ucrânia serviram como
incentivo a ações mais moderadas. Foi
notável, portanto, o abandono gradual
da postura mais reservada posterior-
mente, indicando algum nível de atrito e
incerteza entre os comandantes russos.
Já os aliados ocidentais, coordenados
pelos Estados Unidos, teriam suas ações
limitadas, em grande parte, por temer
os custos econômicos e os riscos polí-
ticos de um conflito militar prolongado.
230
Além disso, cabe observar a ocorrência, em 2022, de elei- b) É possível afirmar que há uma conexão clara entre
ções presidenciais na França, e eleições para o Congresso nacionalidade e apoio à política externa de Estados
Americano, um motivo adicional para que os líderes dos Unidos e Rússia em relação à Ucrânia? Por quê?
dois países demostrem empenho na condução das nego-
ciações e no apoio militar à Ucrânia. Por fim, cabe mencio-
nar os próprios ucranianos, cujos interesses são frequente-
mente ignorados em meio ao jogo político entre Ocidente
e Rússia. O interesse fundamental deles é o fim do conflito
militar no seu território, a reconstrução do patrimônio per-
dido durante a guerra e o estabelecimento de um acordo
que previna futuras hostilidades na Ucrânia.

Exercícios
1. Em uma entrevista à revista New Yorker, o professor da
Universidade de Chicago, John Mearsheimer, afirmou
que a tentativa de transformar a Ucrânia em uma demo-
cracia pró-ocidental foi um dos fatores que precipitou o
conflito com a Rússia em 2022. Já o enxadrista cam-
peão mundial, Garry Kasparov, afirmou que a respon-
sabilidade do conflito é exclusivamente do presidente
russo Vladimir Putin, recomendando a ampliação do
boicote econômico à Rússia como tentativa de dissua-
são da guerra.
a) Cite duas perspectivas sobre as origens da guerra
na Ucrânia e apresente os seus respectivos argu-
mentos.

2. A Ucrânia atual é fruto de um acordo político que esta-

beleceu um território a oeste da Rússia, incluindo re-
giões etnicamente distintas oriundas do antigo Império
Austro-Húngaro, como a Galícia Oriental e a Volínia, e
regiões historicamente habitadas por povos russos,
como a Crimeia.
a) Estabeleça uma relação entre o avanço das tropas
russas nos diferentes eixos da guerra na Ucrânia em
2022 e a etnia predominante nessas áreas.

Atualidades e Geopolítica 81
230
 b) Quais outros fatores podem explicar a dificuldade a) Como as demandas russas e as ofertas de concessão
do Exército russo no eixo norte rumo à capital Kiev? sugeridas por analistas ocidentais refletem as diferen-
tes teorias sobre as origens do conflito?

b) Assim como os russos identificaram o batalhão de

Azov, uma guerrilha ucraniana operando a sul do
país, como um grupo neonazista, é frequente em
publicações ocidentais a identificação da invasão
russa com as operações alemãs anteriores ao iní-
cio da Segunda Guerra Mundial. Por que ambos os
lados do conflito buscam atribuir a ideologia nazista
a seus oponentes?

3. A explicação inicial apresentada pela Rússia para a en-

trada de suas tropas no território ucraniano envolvia
demandas como a desmilitarização e a remoção da cú-
pula ultranacionalista ucraniana, identificada pelos rus-
sos como nazista. Durante o processo de negociação
posterior, analistas e diplomatas ocidentais aventaram
a possibilidade de conceder territórios a leste e a sul
da Ucrânia, como a península da Crimeia e as regiões
separatistas de Luhansk e Donetsk, como moeda de
troca para o fim do conflito.

82 Atualidades e Geopolítica
230
 Questão da Ucrânia (III)
Introdução
Em 22 de fevereiro de 2022, apenas um dia após a
Rússia reconhecer oficialmente os territórios separatistas
de Donetsk e Luhansk na região ucraniana de Donbass, os
Estados Unidos e a União Europeia iniciaram uma cam-
panha de sanções econômicas e diplomáticas, com o ob-
jetivo de dissuadir e punir os russos pela operação militar
na Ucrânia. Com o avanço do conflito a partir de 24 de
fevereiro, as sanções ocidentais foram ampliadas para in-
cluir a exclusão do Banco Central da Rússia do sistema de
pagamentos internacional – a Sociedade de Telecomuni-
cações Financeiras Interbancárias Mundiais (Swift) –, com
restrições ao fluxo de capital, cancelamento de serviços
financeiros (como os cartões de bandeira Visa, Mastercard
e American Express), e até mesmo um boicote cultural
contra atletas e artistas russos trabalhando no Ocidente.
Os efeitos das sanções econômicas sobre a economia
russa foram graves, levando a uma rápida desvalorização do
rublo e causando pânico entre a população russa, que correu
aos caixas eletrônicos para sacar seu dinheiro ou convertê-
-lo em moeda estrangeira. Além dos efeitos a curto prazo, as
restrições ameaçam estrangular o já modesto crescimento
econômico russo, tornando o país ainda mais dependente de
exportações de petróleo e gás natural. Contrariamente a ou-
tros produtos exportados pela Rússia, as compras das duas
commodities ainda não foram completamente interrompidas,
em parte devido à sua importância para a economia global e
também por conta da dificuldade de encontrar fontes alter-
nativas de energia a curto prazo.
Linha do tempo das sanções
As primeiras sanções foram aplicadas pelos EUA, Reino
Unido e Canadá já no dia 22 de fevereiro. Em geral, os três
países se limitaram a restringir as atividades financeiras
dos principais bancos russos, embora o Reino Unido tam-
bém tenha aplicado sanções individuais contra magnatas
russos ligados ao presidente Vladimir Putin. A partir do
dia 23, a União Europeia, o Japão e a Austrália também
começaram a aplicar suas próprias sanções direcionadas
a indivíduos russos com negócios nas regiões separatistas
e a restringir as atividades dos principais bancos do país.
Devido à continuação da operação militar russa, no
dia 24, os Estados Unidos impuseram restrições adicio-
nais aos dois principais bancos russos, Sberbank e VTB
Bank, além de proibir a exportação para a Rússia de di-
versos componentes industriais da área de tecnologia.
A rodada de sanções também incluiu restrições indivi-
duais ao presidente russo e a vários de seus aliados apli-
cadas pelos EUA, pelo Reino Unido, pela Austrália, pelo
Japão e pela União Europeia.
230
25
aula
Entre 25 e 28 de fevereiro, Taiwan, Singapura e Coreia
do Sul também começaram a impor sanções econômicas
à Rússia. O Reino Unido e os EUA chegaram a um acordo
para interromper as importações de óleo e gás natural russos,
substituindo-os por óleo e gás dos EUA.
Nesse mesmo período, os Estados Unidos anuncia-
ram a intensão de excluir a Rússia da Swift. A Swift é
uma instituição internacional estabelecida na Bélgica
em 1973 responsável por coordenar operações financei-
ras entre bancos ao redor do mundo. Ela já havia sido
acionada em 2012 quando os EUA exigiram que os prin-
cipais bancos iranianos fossem removidos da sua rede
como forma de pressionar o país a abandonar suas pes-
quisas nucleares. Embora a corporação belga tenha re-
cusado o pedido inicial, ela cedeu após ser sancionada
pelo Comitê Financeiro do Senado dos Estados Unidos.
Em 2014, a Swift também recebeu pedidos para excluir
Israel e Rússia, o primeiro partindo de ativistas pró-Pales-
tina e o segundo do Reino Unido. Ambos foram negados
na época.
As próximas rodadas de sanções, ocorridas entre
28 de fevereiro e 11 de março, agravaram a situação fi-
nanceira da Rússia e focaram nas atividades dos princi-
pais líderes e aliados do regime em Moscou, buscando
pressionar esses indivíduos e criar fissuras entre eles.
Além das sanções direcionadas a oligarcas, ministros e
líderes militares russos, os países ocidentais se mobili-
zaram para congelar reservas de moeda estrangeira per-
tencentes à Rússia em bancos ocidentais, conseguindo
inclusive a cooperação da Suíça, país que normalmente
adota uma posição política neutra em conflitos desse
tipo. Finalmente, em 11 de março, os países do G-7 de-
cidiram interromper relações comerciais normais com
a Rússia, proibindo a importação de aço e minério de
ferro do país.
Simultaneamente, diversas empresas ocidentais da
área de telecomunicações, em particular as grandes cor-
porações de tecnologia do Vale do Silício – como Google,
Twitter e Meta – removeram o acesso de contas e pági-
nas que divulgassem conteúdo de veículos russos, como
os canais RT e Sputnik. Textos ou imagens identificados
como favoráveis à narrativa russa também foram remo-
vidos, ainda que originalmente fossem publicados por
contas individuais. As medidas foram justificadas como
esforços de contenção da desinformação, similarmente
ao que ocorreu durante a pandemia de Covid-19. Diver-
sas empresas e associações ao redor do mundo também
iniciaram um boicote cultural a artistas, atletas e produtos
culturais russos, incluindo medidas contra alimentos, apre-
sentações musicais e até mesmo animais de estimação
ligados à Rússia.
Atualidades e Geopolítica 83
Impacto econômico
das sanções
Os efeitos das sanções econômicas sobre a eco-
nomia russa foram devastadores, causando uma aguda
desvalorização do rublo e diminuindo o poder de com-
pra da população. As várias rodadas de sanções comer-
ciais interditando o suprimento de componentes para
produção de artigos industrializados também terão um
efeito desestabilizador na economia russa, causando
possivelmente a paralização de alguns setores depen-
dentes de tecnologia estrangeira. Finalmente, convém
observar que mesmo as sanções direcionadas a indiví-
duos próximos de Vladimir Putin podem ter um impac-
to negativo sobre a vida da população russa, visto que
os oligarcas chefiam muitas das principais empresas e
grupos econômicos do país. De fato, embora sanções
econômicas operem sem o concurso da força militar
elas mantêm o potencial de devastar uma sociedade de-
vido às dependências mútuas entre os países em uma
economia globalizada.
O uso de sanções econômicas, diplomáticas e cultu-
rais durante o conflito na Ucrânia tem o seu fundamen-
to em uma assimetria no sistema econômico global que
possibilita aos Estados Unidos e a seus aliados um maior
grau de influência sobre as instituições financeiras e o fluxo
de informações ao redor do mundo. Múltiplos regimes de
sanções foram coordenados pelo regime americano ao
longo das últimas décadas, incluindo o embargo comercial
a Cuba, a campanha contra o apartheid na África do Sul e
as sanções ao Irã e à Coreia do Norte. Historicamente, é
difícil julgar os resultados das sanções econômicas, tanto
do ponto de vista do sucesso ou fracasso dos objetivos po-
líticos que elas buscaram alcançar como do ponto de vista
da opinião pública.
Acompanhe, nos gráficos a seguir, os efeitos das san-
ções econômicas sobre a taxa de câmbio entre o rublo e o
dólar americano e sobre a inflação do Brasil.
Valor do dólar em rublos
O gráfico mostra como as sanções financeiras à Rússia cor-
roeram o poder de compra internacional do rublo em março
de 2022, por consequência do início do conflito (21 de feve-
reiro de 2022).
120
100
80
60
40
20
0
mar. abr. maio jun. jul. ago. set. out. nov. dez. jan. fev. mar.
2021 2022
Fonte: Yahoo Finance.
84 Atualidades e Geopolítica
Evolução do IPCA
O gráfico mostra a evolução do Índice Nacional de Preços
ao Consumidor Amplo (IPCA) de março de 2021 a março de
2022, com destaque para o último mês. O IPCA é o principal
índice de inflação no Brasil e mede a alteração no custo de
vida médio das famílias brasileiras.
1,6
1,4
1,2
1,0
0,8
0,6
0,4
0,2
0,0
mar. abr. maio jun. jul. ago. set. out. nov. dez. jan. fev. mar.
2021 2022
Fonte: IBGE.
Diferentemente de países como Cuba e Coreia do
Norte cuja participação na economia global é bastan-
te reduzida, a Rússia é uma importante provedora de
commodities e componentes precursores de vários pro-
cessos produtivos. A importância da economia russa nos
setores de gás e petróleo, grãos (como trigo e milho), fer-
tilizantes, minerais e gases raros (como criptônio, néon e
xenônio), fez com que o preço desses produtos subisse
rapidamente após o anúncio das sanções. Uma carac-
terística importante da demanda por esses produtos é a
sua inelasticidade, ou seja, mesmo um grande aumento
no preço desses produtos produz apenas uma pequena
alteração no consumo. Isso ocorre com muitos produtos
essenciais, como é o caso do trigo para o consumo das
famílias e dos combustíveis no transporte e na indústria.
É importante frisar que esses impactos serão sentidos
em um cenário de inflação já alta por conta da pandemia
de Covid-19. A inflação é a medida da perda do poder de
compra da moeda nacional de cada país, dessa forma
uma inflação alta reflete em um aumento do custo de vida
para os cidadãos.
No caso dos semicondutores, embora não sejam ar-
tigos de consumo individual, o agravante está no fato de
eles integrarem a cadeia produtiva de vários outros ar-
tigos que são, como carros, computadores, maquinário
industrial e aviões. Por conta disso, restrições na produ-
ção de semicondutores podem causar repercussões ain-
da mais negativas na produção e no transporte de outros
artigos. Já a oferta de grãos essenciais é ainda mais preo-
cupante, visto que são ingredientes básicos da dieta da
maior parte da população, seja através do consumo dire-
to de produtos à base de trigo ou milho, seja por conta do
seu consumo indireto, como na ração para animais. Da
mesma forma, qualquer adversidade com a oferta de fer-
tilizantes tem o potencial de encarecer o preço de artigos
essenciais durante a próxima safra. No pior dos casos,
uma safra menor pode agravar o problema da fome em
diversas regiões do mundo.
230
Exercícios
1. O regime russo estabelecido após o colapso da URSS 2. A pandemia de Covid-19 causou diversos entraves à
caracteriza-se pela hegemonia de diversos grupos eco- circulação de mercadorias, pessoas e informações en-
nômicos subordinados ao aparato de segurança do Esta- tre 2019 e 2022. Devido a esses problemas, as cadeias
do. Observe o gráfico abaixo e responda às perguntas. produtivas de diversas empresas foram prejudicadas,
impedindo a produção e entrega de várias mercadorias.
Impacto das sanções sobre bilionários russos Com base no gráfico e no contexto, responda às per-
O gráfico mostra a perda do patrimônio de alguns dos guntas a seguir.
alvos das sanções financeiras à Rússia entre 23 de Exportações russas em 2022
fevereiro e 3 de março de 2022. As alterações são O gráfico mostra a proporção do valor em milhões de
medidas em bilhões de dólares. dólares de diversas exportações da Rússia em 2022.
10 outros
alumínio
US$ 32.706,7
trigo
5
Vagit Gennady Mikhail fertilizantes petróleo
Alekperov Timchenko Fridman carvão US$ 110.119,4
US$ 17.560,5
Roman combustíveis
_5 Abramovich
Vladimir US$ 22.867,8
Alexey
Mordashov Potanin
_10 óleo diesel
US$ 26.157,1
Fonte: Bloomberg Billionaires Index.
ferro derivados
a) Os oligarcas russos cujas perdas foram ilustradas US$ 28.880,8 de petróleo
no gráfico anterior controlam algumas das maiores US$ 69.955,8
equipamento
empresas de petróleo, gás natural e siderurgia da industrial
Rússia. Assumindo que as sanções individuais con- gás natural
US$ 32.630,9
US$ 55.507,2
tra eles aumentam o custo de produção desses
produtos, qual deve ser o efeito dessas sanções na Fonte: Banco Central da Rússia.
oferta de commodities no mercado internacional? a) O que podemos afirmar a respeito dos tipos de
produtos exportados pela Rússia?

b) Cite duas consequências econômicas das sanções

impostas à Rússia em 2022 devido ao confronto com
b) Diferentemente das sanções internacionais contra o a Ucrânia.
apartheid na África do Sul, muitas das sanções oca-
sionadas pelo conflito na Ucrânia tomaram a forma
de restrições individualizadas, por quê?

Atualidades e Geopolítica 85
230
 au la
26 Semicondutores (I)
Introdução
Em setembro de 2022, quando a ofensiva russa na
Ucrânia começou a perder fôlego, tropas ucranianas retor-
naram pela primeira vez em um ano às cidades da região
do Donbass, no leste da Ucrânia. Ao vasculhar as residên-
cias abandonadas em busca de armadilhas e sabotadores,
os soldados ucranianos notaram algo curioso: todas as
geladeiras e máquinas de lavar haviam sumido. Logo de
início, vários analistas procuraram explicar o fenômeno
sugerindo que os russos haviam levado os equipamentos
de volta para casa. A realidade, porém, era muito mais in-
teressante. Os primeiros indícios de que havia algo a mais
por trás desses eventos apareceram quando especialistas
em eletrônica começaram a examinar os destroços de tan-
ques russos destruídos nas batalhas mais recentes. Eles
identificaram a presença de microchips e semicondutores
extraídos de eletrodomésticos nos sistemas de orientação
e controle dos tanques. Os soldados adversários haviam
utilizado essas peças para consertar armamentos danifica-
dos durante o conflito.
Esse episódio ilustra uma realidade muito conheci-
da, mas que ao mesmo tempo é amplamente ignorada: a
centralidade dos semicondutores na sociedade contem-
porânea. Desde satélites avançados e mísseis de cruzeiro
até os mais simples eletrodomésticos contêm componen-
tes eletrônicos baseados em materiais semicondutores.
Eles estão presentes nos sensores que identificam a nos-
sa localização e movimento através do espaço, nos com-
putadores que interpretam todos esses dados, e também
servem como arquivo para a enxurrada de informações
que orientam as nossas decisões diárias. Até mesmo
produtos que não costumam ser associados à área da in-
formática estão repletos de componentes baseados nes-
sa tecnologia. Os modelos de carros mais recentes, por
exemplo, contêm entre 1 500 e 3 000 chips diferentes,
contribuindo com aproximadamente 10% do seu custo
de produção, um valor que ainda subestima a sua impor-
tância para o funcionamento dos veículos. Devido ao nú-
mero de produtos cuja cadeia de abastecimento inclui es-
ses materiais, os semicondutores estão se tornando uma
das chaves para entender a nova geopolítica global. Hoje
em dia, é impossível obter um entendimento adequado
dos principais conflitos econômicos e militares sem uma
boa compreensão da história, da geografia e da tecnolo-
gia por trás desses componentes. Posteriormente, vamos
estudar como a indústria de semicondutores se desenvol-
veu, como a sua cadeia de abastecimento evoluiu com o
passar dos anos e como a importância geopolítica dessa
tecnologia só cresceu com o acirramento das relações
entre Estados Unidos e China.
86 Atualidades e Geopolítica
Origens dos computadores
modernos
Como funciona um computador? Embora essa per-
gunta seja abrangente demais para que a tratemos aqui,
vale a pena refletir um pouco sobre as origens do conceito
de computação. No fundo, não estamos falando de nada
mais complicado do que uma máquina de calcular, su-
plementada e adaptada de forma a possibilitar operações
mais complexas do que uma simples calculadora. Para fa-
lar a verdade, mesmo os algoritmos que representam as
quatro operações fundamentais não são completamente
triviais em sua implementação. Você mesmo deve ter de-
morado pelo menos alguns meses para aprender a utili-
zá-los representando as quantidades com símbolos ma-
temáticos. Da mesma forma que escrevemos operações
matemáticas com lápis e papel, os computadores também
precisam representar as quantidades envolvidas no pro-
cesso de calculá-las. Quando utilizamos um ábaco, por
exemplo, nós representamos diferentes quantidades como
grupos de pedras que movemos para cima ou para baixo
a depender da operação necessária. Já os computadores
representam os seus cálculos por outros mecanismos.
Antes da invenção dos semicondutores, os computa-
dores utilizavam tubos a vácuo – ampolas capazes de con-
duzir ou interromper o fluxo de corrente elétrica – para re-
presentar dois estados físicos diferentes codificados como
0 e 1. A partir desses dois algarismos é possível simbolizar
qualquer número em base 2, e, com o uso de técnicas de
programação, esses números podem ser utilizados para re-
presentar estruturas mais complexas. Em última instância,
portanto, a construção de um computador envolve a des-
coberta de formas cada vez mais eficientes de representar
informações através de estados físicos da matéria. Teori-
camente é possível construir um computador mecânico,
e de fato existiam máquinas desse tipo (o ábaco pode ser
considerado um exemplo primitivo); no entanto, o uso de
correntes elétricas para representar informações permite
manipulá-las de forma mais eficiente e flexível. Os tubos
a vácuo cumpriam bem essa função, mas tinham um pro-
blema: eles eram grandes demais. Alguns dos primeiros
computadores utilizados durante a Segunda Guerra Mun-
dial para estimar trajetórias de artilharia ocupavam áreas
enormes, porém o seu poder computacional era muito in-
ferior ao de um celular atual. Tudo isso mudou com a des-
coberta das propriedades semicondutoras de materiais co-
mo o germânio e o silício. Esses materiais são capazes de
conduzir ou amplificar uma corrente elétrica quando sub-
metidos aos efeitos de um campo elétrico, funcionando co-
mo um transistor. Isso significa que eles podem ser usados
para controlar a passagem de corrente elétrica através de
230
um circuito, permitindo a representação dos dois estados
físicos necessários para simbolizar números, operações e
estruturas de dados. O uso de placas de silício como subs-
trato para circuitos metálicos permitiu a miniaturização
dos transistores e dos próprios computadores.
O Vale do Silício
A julgar pelas reportagens e artigos sobre o Vale do
Silício, os fundadores das principais empresas de tecno-
logia americana são desbravadores e pioneiros, ansiosos
por transgredir barreiras e transportar a humanidade a
um futuro repleto de novas possibilidades. Certamente há
algo de verdadeiro nessa descrição. Para o bem e para o
mal, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as princi-
pais transformações socioculturais por que passaram as
principais metrópoles globais foram todas prefiguradas na
Califórnia, muitas delas relacionadas a avanços em tecno-
logias de informação e telecomunicação. Contudo, é im-
possível contar a história dessas tecnologias sem nos re-
ferirmos ao protagonismo do governo dos Estados Unidos
no fomento à pesquisa científica e ao seu aproveitamento
em aplicações militares, a maioria das quais envolve o uso
de semicondutores.
O Vale do Silício surgiu a partir da colaboração entre
as principais universidades de pesquisa dos Estados Uni-
dos, agências e departamentos governamentais e investi-
dores e empresários de todas as partes do país. Essa co-
laboração começou durante os últimos anos da Segunda
Guerra Mundial, cujos desafios motivaram a integração
entre o capital privado e a administração pública. Após a
conclusão das hostilidades, os Estados Unidos passaram a
enxergar a URSS como principal risco para a estabilidade
da ordem internacional. Do ponto de vista deles, o maior
risco para a ordem do pós-guerra era a disparidade entre
as esparsas forças convencionais americanas estacionadas
na Europa Ocidental e o poderio militar soviético organi-
zado para enfrentá-las. A devastação das economias euro-
peias durante o conflito anterior, assim como a distância
entre os Estados Unidos e os campos de batalha europeus,
parecia conceder aos soviéticos uma vantagem logísti-
ca incontornável. Durante muito tempo, os americanos
dependeram da ameaça do uso de armas nucleares para
frear uma invasão a partir do Leste Europeu.
Essa situação só começou a mudar com o fim da
Guerra do Vietnã, quando o Departamento de Defesa
americano decidiu por uma estratégia fundamentada na
superioridade tecnológica da esfera ocidental. Ao invés
de contrapor míssil a míssil e tanque a tanque, os america-
nos começaram a projetar armas inteligentes, capazes de
atingir os seus alvos com precisão a distâncias cada vez
maiores. Essas tecnologias não só dependiam de sensores
que registram a posição das armas relativamente aos seus
alvos como também de computadores e redes de comuni-
cação que se estendem por todo o globo terrestre. Dessa
forma, tanto o desenvolvimento de chips mais avançados
como a rede mundial de computadores estão relacionados
à estratégia americana de contenção da União Soviética.
Antes dos anos 1970, os maiores contratos das princi-
pais empresas de semicondutores americanas eram com
230
o Pentágono, para a produção de mísseis e bombas inte-
ligentes. Ao aumentar a precisão com que alvos distantes
poderiam ser atingidos, esses novos armamentos permiti-
ram às Forças Armadas dos Estados Unidos superar a dis-
paridade logística no teatro de guerra europeu. Embora a
URSS tenha tentado competir com os Estados Unidos no
desenvolvimento de tecnologias de informação, uma série
de fatores impediu os soviéticos de construírem uma in-
dústria de tecnologia competitiva.
Geopolítica e geoeconomia dos
semicondutores
A indústria de semicondutores é extremamente com-
plexa, envolvendo materiais, componentes e equipamen-
tos fabricados ao redor do mundo e alguns dos processos
de produção mais avançados que a humanidade já inven-
tou. Essa complexidade é o principal entrave à entrada
de novos atores nesse mercado, e o maior determinante
da geografia de produção dos semicondutores. Durante a
Guerra Fria, a União Soviética, apesar de obter bons resul-
tados em pesquisas científicas em diversas áreas, carecia
de um ecossistema eficiente para promover a difusão des-
ses conhecimentos entre os setores produtivos da econo-
mia. Problemas na interface entre os principais centros de
pesquisa e as suas maiores indústrias fizeram com que os
soviéticos ficassem defasados em relação à esfera ociden-
tal. Por conta disso, o Kremlin embarcou em uma política
de espionagem tecnológica cujo objetivo era replicar as
tecnologias desenvolvidas no Ocidente.
Embora os soviéticos tenham obtido algum sucesso,
a estratégia de copiar o Ocidente praticamente garantiu
que os microchips soviéticos sempre estivessem cerca de
duas gerações tecnológicas atrasados em relação aos oci-
dentais. Como a capacidade de computação de cada chip
dobra a cada dois anos, esse intervalo foi suficiente para
assegurar a superioridade militar das forças armadas ame-
ricanas a partir dos anos 1970. A eliminação da ameaça
militar soviética na Europa Ocidental contribuiu muito pa-
ra a derrocada da URSS duas décadas depois, mas ela não
foi o único fator. Na realidade, muitas das características
do mundo em que vivemos hoje foram consequências de
um efeito colateral da política americana de contenção em
outra região do mundo – o Leste Asiático.
Quando as primeiras fábricas de semicondutores fo-
ram construídas nos vales da Califórnia, poucas pessoas
imaginavam a importância que os seus trabalhadores iriam
adquirir. Inicialmente, as fábricas contratavam americanos
e imigrantes oriundos do México, principalmente mulhe-
res, tanto porque elas aceitavam salários mais baixos como
porque os engenheiros do Vale do Silício acreditavam que
as suas mãos menores eram mais adequadas para o traba-
lho de montar os circuitos elétricos nas placas de silício.
Nessa época, a indústria de semicondutores ainda utilizava
métodos artesanais, mas a produção já exigia muitas ho-
ras de trabalho, priorizando regiões com mão de obra ba-
rata. Nas décadas de 1970-1980, à medida que o trabalho
se tornou mais e mais qualificado, as empresas americanas
começaram a ter dificuldades para equilibrar a demanda
Atualidades e Geopolítica 87
por custos baixos e alta qualificação técnica, especialmen-
te diante do principal competidor econômico da época – o
Japão. A primeira empresa japonesa a produzir chips de
computador foi a Sony, que rapidamente explorou as pos-
sibilidades comerciais dessa nova tecnologia popularizan-
do o uso de rádios portáteis. Sob a direção do Ministério
do Comércio Internacional e da Indústria, as várias cor-
porações japonesas começaram a investir em pesquisa e
desenvolvimento com o objetivo de tomar a dianteira na
competição por tecnologias mais avançadas. Inicialmen-
te, os Estados Unidos encorajaram esse processo porque
acreditavam que o desenvolvimento econômico da Ásia
era fundamental para impedir o avanço do comunismo na
região. Como resultado, as principais patentes americanas
de semicondutores foram licenciadas para as fabricantes
japonesas de modo a criar uma rede de cooperação inter-
nacional que aproximasse os dois países.
A estratégia foi muito mais bem-sucedida do que se
imaginara, e o Japão chegou a ameaçar a posição dos Es-
tados Unidos como maior economia do mundo. Mais do
que isso, as empresas de tecnologia japonesas estiveram
a um passo de derrotar as suas principais competidoras
americanas. Até hoje, alguns dos componentes eletrôni-
cos e chips mais importantes são fabricados predominan-
temente pelo Japão. A única forma que os americanos
encontraram para contornar esse obstáculo foi mover
cada vez mais processos produtivos de suas empresas de
Exercícios
1. Qual a importância dos semicondutores para a econo-
mia internacional?
88 Atualidades e Geopolítica
tecnologia para a Ásia. Esse foi um dos maiores fatores
responsáveis por impulsionar as economias do Leste Asiá-
tico a partir dos anos 1980. Ao transferir essas funções pa-
ra locais como Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e Malásia,
as empresas e o governo americanos conseguiram atingir
dois objetivos importantes: 1) impedir o Japão de domi-
nar o mercado de tecnologia e 2) amarrar as economias
da Ásia em uma rede de relações econômicas dominada
pelos Estados Unidos.
Conclusão
A indústria de semicondutores se tornou uma das
partes mais essenciais da sociedade contemporânea.
Atualmente, todos os setores da economia, desde a agri-
cultura mecanizada até o setor de serviços, sem falar da
miríade de aplicações da tecnologia na indústria, são
dependentes de componentes eletrônicos avançados.
Qualquer tipo de interrupção na produção desses com-
ponentes causaria severos efeitos econômicos adversos
ao redor do mundo. Mais do que isso, o desenvolvimento
de semicondutores cada vez mais avançados é vital para
a manutenção do equilíbrio militar entre os Estados Uni-
dos e os seus principais adversários geopolíticos. Mais
à frente vamos examinar com mais detalhes a cadeia de
abastecimento desses produtos e como ela se relaciona
com a geopolítica internacional.
2. Como os Estados Unidos resolveram os seus desafios
logísticos e militares na Europa durante a Guerra Fria?
230
 3. Por que a URSS não foi capaz de alcançar o mesmo 4. Qual estratégia econômica os Estados Unidos adotaram
grau de desenvolvimento do Ocidente na área de tec- para conter o avanço do comunismo na Ásia?
nologia da informação?

Atualidades e Geopolítica 89
230
 au la
27 Semicondutores (II)
Introdução
Durante as últimas décadas, a crescente interdepen-
dência econômica entre as nações aumentou imensamen-
te o custo das guerras. O risco de interrupção das cadeias
de abastecimento inviabilizou a condução de políticas ex-
pansionistas e alterou o cálculo dos estados nacionais na
direção de garantir a paz e a prosperidade geral. Essa era
a tese do livro A Grande Ilusão, escrito por Ralph Norman
Angell no Reino Unido, e publicado em 1909, poucos anos
antes do início da Primeira Guerra Mundial. O título fa-
zia referência à ilusão, amplamente difundida segundo o
autor, de que era possível obter ganhos materiais a partir
de conquistas militares. Embora o argumento do livro seja
persuasivo – Norman Angell tinha razão ao apontar que
os benefícios do comércio internacional superavam os
que poderiam ser obtidos por meios militares –, a conclu-
são logo se mostrou equivocada.
Recentemente, eventos como a Guerra da Ucrânia e
as tensões entre os Estados Unidos e a China no oceano
Pacífico voltaram a apontar para a possibilidade de con-
flitos militares, elevando o nível de preocupação de go-
vernos e organizações internacionais. Esse cenário vem
acompanhado de severos reveses políticos nas principais
democracias ao redor do mundo, além de um sentimen-
to de desesperança diante da deterioração de condições
econômicas e sociais, principalmente entre os grupos
mais jovens dos países mais desenvolvidos. É impossível
prever o que acontecerá no futuro, mas é possível afir-
mar que o mundo hoje está muito menos estável do que
se previa até poucas décadas atrás. Naqueles anos poste-
riores à queda da URSS, os Estados Unidos aproveitaram
um momento de unipolaridade para consolidar a rede de
instituições construídas no período pós-1945 ao redor do
mundo. Uma das principais peças desse programa foi a
admissão da República Popular da China na OMC, um
primeiro passo para a integração da China na comunida-
de internacional.
Além do apoio americano, o início do milênio coroou
os esforços da geração de líderes políticos chineses que
emergiu da Revolução Cultural (1966-1976) com uma sé-
rie de vistosas conquistas, incluindo a conclusão da hidre-
létrica de Três Gargantas em 2006, a realização dos Jogos
Olímpicos de Pequim em 2008 e um marco importante
para a economia chinesa em 2010, quando o seu PIB su-
perou o do Japão pela primeira vez em décadas. Foi um
período marcado por previsões otimistas a respeito do
país, cujo sucesso econômico foi tomado como prenún-
cio de uma futura abertura democrática. Especialistas em
geopolítica e relações internacionais ecoavam a expecta-
tiva de um mundo caracterizado pela cooperação entre as
90 Atualidades e Geopolítica
nações, reforçavam a importância da interdependência
econômica gerada pela globalização e minimizavam o ris-
co de conflitos internacionais, concentrando suas críticas
na atuação de organizações terroristas e regimes autori-
tários recalcitrantes. O próprio regime chinês era tratado
como um parceiro econômico essencial para o sucesso da
economia americana.
Atritos nas relações
sino-americanas
É difícil precisar quando os ventos políticos começa-
ram a mudar de direção. Do lado americano, os primeiros
indícios surgiram já no início dos anos 2010, quando a ad-
ministração do então presidente Barack Obama anunciou
um plano de reorientação da política externa americana
em direção ao oceano Pacífico. Ainda assim, a opinião pú-
blica nos Estados Unidos só passou a refletir essas preocu-
pações a partir da campanha presidencial de 2016, quan-
do o então candidato Donald Trump associou o declínio
das regiões industriais americanas à ascensão econômica
da China. Já no país oriental, a falta de transparência do
sistema político dificulta ainda mais a descoberta de um
momento-chave para a alteração nas relações sino-ame-
ricanas. Atualmente, porém, a maior parte dos analistas
estima que a cúpula do Partido Comunista Chinês nunca
confiou em uma aliança duradoura com os americanos,
e várias análises sugerem que os chineses se preparavam
para um confronto mais amplo mesmo antes da escolha
de Xi Jinping, o atual líder chinês. Os indícios de que os
chineses se preparam para um conflito em larga escala são
muitos, incluindo o recrudescimento do sentimento nacio-
nalista chinês ao longo das décadas subsequentes à que-
da da URSS. Hoje é possível enxergar os primórdios desse
movimento ainda durante a liderança de Deng Xiaoping,
que, após suceder a Mao Zedong em 1978, sinalizou refor-
mas econômicas e sociais no sentido de abrir a economia
e a sociedade chinesas. Porém, o trauma representado pe-
lo colapso soviético iniciado em 1988 e o subsequente mo-
vimento de estudantes na Praça da Paz Celestial em 1989
parece ter alterado bruscamente os rumos políticos dita-
dos pelo Partido Comunista Chinês. O crescimento eco-
nômico, principal prioridade do governo chinês desde os
anos 1980 passou a conviver com a necessidade de salva-
guardar a autonomia política do país frente à comunidade
internacional. Para isso, os chineses adotaram políticas de
controle das telecomunicações, modernização das forças
armadas e arregimentação de aliados diplomáticos. O ob-
jetivo era formar uma rede de nações que pudesse rivalizar
com a aliança encabeçada pelos Estados Unidos.
230
 É verdade que, no início do século, Norman Angell
estava equivocado ao sugerir que as guerras haviam se
tornado obsoletas, mas ainda assim ele acertou ao res-
saltar o papel da interdependência econômica entre as
potências. A mesma observação é válida no cenário atual.
Embora seja impossível descartar a possibilidade de
um confronto militar direto entre China e Estados Uni-
dos, já é possível identificar medidas de ambos os la-
dos para restringir as opções de seu futuro adversário.
Um dos principais alvos visados por ambos os países é
a cadeia de abastecimento de semicondutores. A capa-
cidade de produção de chips cada vez mais poderosos é
fundamental tanto para a manutenção do crescimento
econômico como para a garantia da superioridade mi-
litar no oceano Pacífico. Assim sendo, o controle da ca-
deia de abastecimento e das tecnologias de produção de
semicondutores será um fator decisivo na disputa por
influência global durante as próximas décadas. Neste
texto, vamos procurar entender melhor como funciona
o processo de pesquisa, desenvolvimento e produção
de semicondutores.
Tipos de semicondutores
Uma cadeia de abastecimento é uma série de pro-
dutores e consumidores de materiais e componentes ne-
cessários para a produção de um item final. A cadeia de
abastecimento dos semicondutores é uma das mais com-
plexas e rentáveis da economia atual, incluindo centenas
de milhares de subprodutos, desde minerais e gases no-
bres, como o silício e xenônio, até maquinário especiali-
zado, como lasers de carbono e máquinas de litografia de
radiação ultravioleta. Esses subprodutos são obtidos ao
redor do mundo, mas as principais atividades da cadeia se
concentram no hemisfério Norte, principalmente na Costa
Oeste dos Estados Unidos, nos países do norte da Europa
e no Leste Asiático.
Os semicondutores podem ser divididos em três ca-
tegorias amplas: chips de lógica, como CPUs e GPUs, chips
de memória DRAM ou NAND, e chips analógicos ou sen-
sores. Entre essas três categorias, a primeira é a mais im-
portante. Os chips de lógica são os principais responsáveis
pelo aumento de performance de aparelhos eletrônicos e
são cruciais para pesquisa e desenvolvimento de tecnolo-
gias emergentes, como inteligência artificial e computação
quântica. As empresas mais importantes dependem de
amplos orçamentos para se manter à frente dos seus com-
petidores, favorecendo a concentração do mercado e polí-
ticas industriais de financiamento governamental. Chips de
memória são menos especializados e são produzidos em
basicamente duas variedades: chips DRAM, cujo papel é
armazenar dados durante o período em que o computa-
dor está ligado, e chips NAND ou flash, responsáveis por
manter os dados quando ele está desligado. As empresas
desse setor competem em volume, o que torna esse mer-
cado mais vulnerável à entrada de novas empresas, des-
de que elas disponham do capital financeiro necessário.
230
Finalmente, a categoria de chips sensores envolve uma mi-
ríade de produtos de qualidade e função especializada, o
que favorece um mercado dividido entre pequenas e mé-
dias empresas com conhecimento específico para cada
aplicação.
Etapas de produção
A produção de semicondutores é organizada nas
seguintes etapas: 1) pesquisa e desenvolvimento, 2) de-
senho técnico, 3) fabricação, e 4) controle de qualidade
e integração. A primeira etapa diz respeito à descober-
ta de processos e tecnologias básicas para manufatura
de semicondutores. Ela envolve não só a elaboração de
projetos para novos chips, como também o desenvolvi-
mento de várias tecnologias auxiliares usadas no pro-
cesso de fabricação. A segunda etapa, desenho técnico,
envolve o uso de programas especializados para proje-
tar novos circuitos baseados em desenhos industriais,
patentes e outros tipos de propriedade intelectual. A
terceira etapa, fabricação, envolve o uso de processos
de alta precisão para gravar os desenhos produzidos na
etapa anterior em placas de silicone conectadas por cir-
cuitos metálicos. Já a quarta etapa, controle de quali-
dade e integração, é responsável por testar e integrar os
chips a produtos intermediários, como placas-mães e HDs,
ou mesmo a produtos de consumo, como computadores
e celulares.
Pesquisa e desenvolvimento
A pesquisa e desenvolvimento de novos chips é a
etapa mais intensiva em termos de capital. Para manter a
sua competitividade, as principais empresas responsáveis
por essa etapa precisam investir bilhões de dólares a cada
ano. Além do capital financeiro, essas empresas também
precisam disputar um número limitado de engenheiros e
cientistas familiarizados com os processos de produção
mais avançados. Essas dinâmicas implicam uma alta con-
centração de mercado em poucas companhias e enormes
obstáculos para a entrada de novas empresas no merca-
do. Geograficamente, os principais pesquisadores dessa
área se encontram nos Estados Unidos, principalmente no
Vale do Silício. As principais empresas responsáveis por
pesquisa e desenvolvimento são Intel, AMD, ARM Nvidia
e Samsung. Sem exceções, todas são controladas pelos
EUA ou por seus parceiros econômicos.
Desenho técnico
O desenho técnico é uma etapa intermediária entre a
pesquisa de novas tecnologias e a fabricação de semicon-
dutores que as implementem. Décadas atrás essa etapa
envolvia aspectos artesanais, com os principais projetistas
desenhando os novos circuitos à mão, após testar uma sé-
rie de desenhos diferentes. A partir dos anos 1970, porém,
a extrema miniaturização dos circuitos fez com que os
principais componentes de circuitos fossem patenteados e
uniformizados em programas especializados para projetos.
Atualidades e Geopolítica 91
A etapa de desenho técnico se tornou, portanto, extrema-
mente dependente da aquisição de licenças e proprieda-
de intelectual das primeiras empresas a desenvolverem
essas tecnologias, como Intel, AMD, Nvidia, Qualcomm e
Micron, sendo as duas últimas responsáveis por chips para
telecomunicação e memória. Além das licenças e paten-
tes, é necessário obter programas específicos de empresas
como a americana Cadence ou a japonesa Zuken. Nova-
mente trata-se de uma etapa de produção dominada por
empresas controladas pelos Estados Unidos e seus aliados.
Fabricação
A etapa de fabricação envolve vários processos al-
tamente complexos. Inicialmente, o silicone é purificado,
conformado em cilindros e cortado em finas pastilhas ou
wafers de silicone. Em seguida, as pastilhas são cobertas
com uma fina lâmina de produtos químicos fotorreativos.
O próximo passo envolve o uso de máquinas de fotolito-
grafia que projetam luz em diferentes frequências de onda
através de uma máscara que imita o desenho dos circuitos
de cada chip. Os feixes de luz provocam reações nos com-
postos químicos sobre o silicone, permitindo a gravação
dos desenhos. A seguir, equipamentos especializados re-
movem o resíduo químico e depositam o material neces-
sário para formar uma camada dos componentes do chip.
Esse processo é repetido quantas vezes forem necessárias
para formar os circuitos integrados em cada chip. Como
os chips mais avançados costumam ser construídos em ca-
madas de espessura da ordem de um átomo, é essencial
manter a pureza do ar nas imediações das fábricas. Por
conta disso, o ambiente interno é constantemente filtrado
e a umidade e as impurezas são controladas para evitar de-
feitos de fabricação.
Equipamento especializado
Os equipamentos altamente sofisticados utilizados em
máquinas de fotolitografia e depositores iônicos de precisão
dependem cada qual de sua própria cadeia de abastecimen-
to, que envolve partes especializadas, como espelhos de
molibdênio, lentes de alta precisão e os próprios produtos
fotorreativos. O complexo de fabricantes desses produtos
se divide entre países europeus, como Holanda, Alemanha,
França, Itália, e o Japão, que domina o mercado de fotor-
reativos. Essa etapa intermediária é um dos maiores garga-
los na cadeia de abastecimento. A produção dos chips mais
avançados é completamente dependente do uso de máqui-
nas fotolitográficas, cujo desenvolvimento levou cerca de
três décadas. Embora a maior parte da tecnologia básica
tenha sido desenvolvida nos EUA, uma parceria entre a em-
presa holandesa ASML e a principal fábrica de semicondu-
tores em Taiwan, a TSMC, fez com que ambas dominassem
a produção de chips de lógica de última geração.
Controle de qualidade e integração
A última etapa do processo de produção requer
testes para assegurar a confiabilidade dos semicondu-
tores e também a sua integração em outros produtos.
92 Atualidades e Geopolítica
A economia desse setor requer grandes quantidades de
mão de obra qualificada, mas ao mesmo tempo as em-
presas acabam competindo em volume, ou seja, a sua
margem de lucro exige custos baixos e processos muito
eficientes. Na prática, isso significa que essa função exige
trabalhadores com imensa disciplina e dispostos a aturar
longas horas na linha de produção. Essa etapa da produ-
ção começou a migrar para a Ásia ainda nos anos 1970,
e hoje está quase totalmente concentrada naquela região.
Mesmo as empresas americanas envolvidas nesse ramo
mantêm suas fábricas em países como Malásia, Filipinas
e a própria China. Um detalhe importante é que, como os
ganhos tecnológicos da miniaturização de semiconduto-
res estão se tornando mais difíceis, é possível que futuros
ganhos de performance estejam ligados a avanços na eta-
pa de integração dos circuitos. Essa é uma etapa de pro-
dução em que a China tem vantagens competitivas sobre
os Estados Unidos.
Materiais
Ao longo da cadeia de abastecimento é necessá-
rio extrair e coletar diversos materiais para fabricar se-
micondutores avançados. O material mais abundante, e
crucial para a produção dos chips, é o próprio silicone,
que precisa ser refinado até altos graus de pureza em
indústrias químicas antes de ser utilizado. Embora as
maiores empresas desse ramo sejam todas controladas
por aliados americanos, todas atuam no mercado chinês,
garantindo alguma medida de controle sobre as suas ins-
talações. Outros materiais importantes são gases nobres
e minerais como lítio e gálio, produzidos em áreas especí-
ficas ao redor do mundo. Nos últimos anos, empresas de
mineração chinesas têm procurado controlar a extração
e dominar os processos de refinamento dessas matérias-
-primas. É difícil precisar quem tem maiores vantagens
nessa área, mas a China é bastante competitiva devido às
suas próprias reservas e contatos com países na América
do Sul e na África.
Conclusão
A cadeia de abastecimento de semicondutores é
longa e complexa, envolvendo desde matérias-primas
abundantes, como o silício, até equipamentos de alta
sofisticação, como máquinas de fotolitografia. O papel
crucial dos semicondutores na produção e no desenvol-
vimento de aplicações militares e a importância dessas
aplicações para o posicionamento de China e Estados
Unidos no oceano Pacífico estão levando ambos os países
a investir em formas de garantir o controle dessa cadeia
de abastecimento. Foram identificadas as principais
etapas de produção e indicamos quais setores são con-
trolados em alguma medida por cada um dos lados. Em
seguida, veremos como China e Estados Unidos têm im-
plementado estratégias econômicas e diplomáticas para
assegurar seus interesses e dissuadir medidas agressivas
do seu adversário.
230
Exercícios
1. Quais eventos recentes sinalizam a ascendência de 3. Quais são as principais etapas da cadeia de produção de
preocupações geopolíticas sobre a agenda econômica semicondutores? Quais delas são mais intensivas em
internacional? termos de capital, e quais em termos de mão de obra?

2. Descreva em linhas gerais a evolução das relações entre

Estados Unidos e China entre 1980 e 2020.

4. Identifique quais setores da cadeia de abastecimento

de semicondutores contêm gargalos que podem ser
explorados, respectivamente, pelos Estados Unidos e
pela China.

Atualidades e Geopolítica 93
230
 au la
28 Semicondutores (III)
Introdução
A competição política e econômica entre China e
Estados Unidos é frequentemente comparada à Guerra
Fria. Assim como no período posterior a 1945, o mundo
atual dirige muitas das suas preocupações e esperanças
aos eventos que ocorrem diariamente nas duas maiores
economias do mundo. No entanto, a relação sino-america-
na não parece seguir os mesmos rumos da disputa anterior
entre americanos e soviéticos. Embora o grau de animosi-
dade tenha se elevado recentemente, já há indícios de uma
normalização da relação entre os dois países. Mais do que
isso, nem China nem Estados Unidos parecem estar dis-
postos a romper completamente a aliança econômica que
vigora entre eles.
Ao contrário do que ocorreu durante a Guerra Fria,
quando a Cortina de Ferro impunha uma verdadeira se-
paração entre Ocidente e Oriente, hoje as economias das
duas potências estão intimamente entrelaçadas. Como
vimos em aulas anteriores, a transferência de grande par-
te da capacidade produtiva do Ocidente para os países
do Leste Asiático foi um instrumento de contenção da
influência soviética na Ásia. A inclusão de países como
Japão, Coreia do Sul, Malásia, Singapura e Filipinas nas
cadeias de abastecimento das principais empresas oci-
dentais possibilitou simultaneamente o aumento da sua
eficiência econômica e a integração das populações desses
países na economia global.
Embora parte desse processo tenha sido motivada por
considerações geopolíticas, após a queda da URSS a mes-
ma tendência continuou por motivos predominantemente
econômicos. Pode parecer difícil entender por que uma
empresa estaria disposta a delegar parte dos processos
produtivos que ela mesma pode executar. Afinal, por que
será que empresas como a Apple montam seus aparelhos
na China, se têm a capacidade de fazê-lo por si próprias
em solo americano? Note que não basta justificar essa de-
cisão apenas com base em custos de trabalho mais baixos.
A Apple não só realiza a montagem na China, mas contra-
ta outra empresa, a Foxconn, para fazer esse trabalho. O
que explica a delegação para outra empresa, ao invés de
simplesmente abrir uma filial da Apple na China, são os
ganhos de produtividade advindos da especialização eco-
nômica. Ao concentrar os seus esforços cada uma em uma
parte do processo, Apple e Foxconn conseguem atingir
uma eficiência maior, o que gera lucros maiores também.
Contudo, apesar dessa vantagem, a especialização
também tem os seus custos. O principal pré-requisito pa-
ra que esse tipo de arranjo funcione é a eliminação de
obstáculos à troca de informações, serviços, mercado-
rias e pessoas entre as empresas. Quanto maiores esses
94 Atualidades e Geopolítica
obstáculos, mais difícil é coordenar as etapas de produ-
ção entre empresas diferentes, maiores são os custos de
delegar partes da produção para outras corporações e
menores são os benefícios obtidos pela especialização.
Isso significa que o principal requisito para que essa for-
ma de organização funcione é uma relação de confiança
entre todas as partes envolvidas. Com o crescimento do
antagonismo entre Estados Unidos e China, houve uma
deterioração do ambiente de negócios entre as empre-
sas e governos dos dois países, gerando uma pressão por
mais autonomia econômica e operacional.
Extricar cadeias de produção estabelecidas ao longo de
décadas não é uma tarefa fácil. Tampouco é possível fazê-lo
sem diminuir a competitividade de empresas americanas e
chinesas frente a rivais de outros países. Por isso, a natureza
da competição entre Estados Unidos e China no século XXI
envolve o equilíbrio entre eficiência na esfera econômica e
autonomia na esfera política. Como cada país depende in-
tensamente do desempenho do outro, quaisquer tentativas
de prejudicar a economia adversária ameaçam disparar
uma escalada de medidas econômicas deletérias, com gra-
ves consequências para a estabilidade global. O mais prová-
vel, portanto, é que tanto Estados Unidos como China bus-
quem formas graduais de aumentar sua autonomia política,
enquanto tentam, ao mesmo tempo, tornar seu adversário
mais dependente economicamente.
Trajetória da política
econômica chinesa
As décadas de 1970-1980 foram um período crucial
para a trajetória econômica da China durante o último
meio século. Em meados dos anos 1970, como resultado
da radicalização promovida por Mao Zedong, a China se
encontrava em frangalhos. Sua sociedade estava dividi-
da e traumatizada pelos horrores da Revolução Cultural
e a economia chinesa não dava sinais de recuperação.
Foi a política de reforma e abertura, instituída por Deng
Xiaoping em 1978, que iniciou o período de rápido cres-
cimento econômico na China, liberando o imenso poten-
cial da sua força de trabalho. Ainda durante o século XIX,
a China já era vista como uma das principais candidatas
ao papel de potência econômica por conta do tamanho
do seu mercado consumidor. Deng Xiaoping foi o pri-
meiro líder chinês capaz de organizar uma estratégia de
desenvolvimento econômico em torno do controle do
acesso a esse mercado. Em troca do direito de vender
produtos aos chineses, ele exigiu que empresas estrangei-
ras provessem empregos e transferissem tecnologia, auxi-
liando os chineses a galgarem a escala de valor agregado
em diversas indústrias.
230
 Durante esse processo, o fator mais importante no
sucesso da estratégia chinesa foi a qualidade da relação
diplomática com os Estados Unidos. Após o enorme retro-
cesso causado pela guerra entre nacionalistas e comunis-
tas durante a primeira metade do século XX, China e Es-
tados Unidos restabeleceram boas relações diplomáticas
com a visita do presidente americano Richard Nixon em
1972. O motivo inicial da visita foi acentuar a rivalidade
entre China e URSS para tentar trazer os chineses para a
esfera americana. O plano funcionou, mas os chineses lo-
graram obter concessões diplomáticas e transferências de
recursos econômicos e tecnológicos. Ao longo do tempo, a
China conseguiu transformar esses ganhos em vantagens
maiores utilizando o potencial da sua força de trabalho e
do seu mercado consumidor.
Mais adiante, a China encorajou uma aliança de in-
teresses com os Estados Unidos por meio da cooptação
dos interesses dos investidores americanos. À medida que
mais e mais empresas transferiam suas fábricas para a Chi-
na, as principais empresas americanas se tornaram mais
e mais dependentes do crescimento da economia chinesa.
Através da regulação do acesso dessas empresas ao mer-
cado chinês, a China foi capaz de extrair mais e mais con-
cessões diplomáticas dos americanos. Simultaneamente,
as empresas chinesas acumularam conhecimento técnico
aprendendo as tecnologias e processos administrativos
das principais corporações americanas.
A relação de interdependência entre as duas econo-
mias permitiu aos chineses acessar diversas vantagens
que teriam sido difíceis de obter de outras formas. A es-
perança dos Estados Unidos era a de que a integração
do país na ordem global construída após 1945 levaria o
país a uma gradual abertura econômica e culminaria na
formação de um governo de caráter liberal e democráti-
co na China. Porém, não foi isso o que aconteceu. Após
o susto com as manifestações estudantis na Praça da Paz
Celestial em 1989, o Partido Comunista Chinês alterou a
sua orientação, opondo-se fortemente à abertura política.
Consequentemente, os chineses firmaram a determinação
de utilizar o seu potencial econômico e o que enxergam
como vulnerabilidades do sistema político americano, para
ultrapassar os seus rivais ocidentais, garantindo a sobrevi-
vência do seu próprio sistema político.
Reorientação da política
econômica americana
Toda relação de interdependência é permeada por
assimetrias e ambiguidades. Hoje, a ideia de que a China
aproveitou a sua relação especial com os Estados Uni-
dos para ameaçar interesses geopolíticos americanos se
tornou um lugar-comum. No entanto, por muitas déca-
das, críticos da postura americana foram taxados de pa-
ranoicos e nostálgicos da Guerra Fria. O reconhecimento
da ingenuidade da política externa americana em relação
à China chegou até a levar algumas pessoas a sugerir
que é necessário reverter a aliança econômica, desligan-
do os interesses comerciais americanos e abandonando
230
completamente os investimentos naquele país. No entan-
to, uma avaliação mais equilibrada dos objetivos geopolíti-
cos e das ferramentas disponíveis aos americanos acabou
por levá-los a uma conclusão diferente. De fato, a atual
estratégia americana parece procurar um equilíbrio entre
competição e engajamento.
Em 2022, com a passagem de duas leis – o Chips
and Science Act, e o Inflation Reduction Act – os Estados
Unidos adotaram medidas para reorganizar a cadeia de
suprimentos de itens considerados essenciais, incluindo,
além dos semicondutores, equipamentos médicos, pro-
dutos químicos e materiais essenciais para tecnologias
emergentes, como fontes de energia renováveis e bate-
rias. Grande parte dos novos centros de produção foram
transferidos para outros países no oceano Pacífico, como
Vietnã, Coreia do Sul, Malásia e Filipinas, mas outras re-
giões também receberam investimentos, principalmente
a Europa Ocidental e a América Central. O intuito é es-
tabelecer uma cadeia de abastecimento independente e
robusta no caso de um conflito militar no Leste da Ásia.
Enquanto a inclusão de países em regiões mais distantes
aumenta a autonomia da economia americana, a presença
de investimentos vultosos no oceano Pacífico permite aos
Estados Unidos recrutar aliados e justificar possíveis inter-
venções americanas no futuro.
A transferência de elementos da cadeia de produção
de volta para o solo americano também contribui para
amenizar as divisões sociais oriundas do processo de de-
sindustrialização americano. Uma boa parte da recente
polarização política nos Estados Unidos pode ser atribuí-
da ao ocaso do cinturão industrial no Meio-Oeste, cau-
sado em grande parte pela transferência de empregos li-
gados à indústria para o Leste Asiático. Os habitantes de
estados americanos como Ohio, Pensilvânia, Michigan e
Wisconsin têm votado em grandes números por candida-
tos e políticas distantes daquelas veiculadas pelas princi-
pais organizações de imprensa e agências governamentais
americanas. Aliviar a situação econômica dessas pessoas é
crucial para a estabilização da sociedade americana, o que
ajudaria a evitar vulnerabilidades que podem ser explora-
das em um conflito militar.
Além da transferência de fábricas e centros de produ-
ção para outras regiões, os Estados Unidos têm trabalhado
para identificar e controlar gargalos na cadeia de abasteci-
mento por meio de tratados comerciais e controles de ex-
portação. O objetivo dessas medidas é controlar o acesso
da China a tecnologias essenciais para a transformação da
economia global nas próximas décadas. Os Estados Unidos
desejam manter a sua liderança tecnológica e intensificar a
dependência dos chineses controlando os materiais e pro-
cessos necessários para avanços em áreas como inteligên-
cia artificial e energias renováveis. Atualmente, o principal
gargalo é a manufatura de chips de última geração. Através
do Chips and Science Act, o governo americano restringiu
tanto a exportação desses produtos como de qualquer pro-
duto que utilize tecnologia americana considerada restrita
para os chineses, incluindo produtos manufaturados por
empresas de outros países.
Atualidades e Geopolítica 95
 Essas medidas anunciam uma nova era na relação
entre Estados Unidos e China. Os americanos não estão
mais contentes com a relação de engajamento que vigo-
rava anteriormente e não se sentem à vontade com a ero-
são das suas vantagens tecnológicas. Em outras palavras,
os Estados Unidos concluíram que é necessário aumentar
essa vantagem, investindo mais em ciência e pesquisa e
buscando desacelerar o desenvolvimento de novas tecno-
logias na China. Ao mesmo tempo, o governo americano
não restringiu a exportação de chips de gerações anterio-
res e não pretende diminuir o ritmo de colaboração entre
empresas chinesas fora de áreas selecionadas, tampouco
atenuar o fluxo de estudantes e pesquisadores chineses
que trabalham nos dois países. Isso sinaliza uma estraté-
gia em que os Estados Unidos buscam aproveitar a base
industrial chinesa para gerar recursos para a economia
americana, ao mesmo tempo em que procuram recrutar os
melhores alunos e pesquisadores chineses para trabalhar
em prol dos Estados Unidos.
Exercícios
1. Como a disputa entre Estados Unidos e China difere
da Guerra Fria?
2. Em que consistiu o movimento de reforma e abertura
de Deng Xiaoping?
96 Atualidades e Geopolítica
Conclusão
A competição geopolítica entre Estados Unidos e
China é um processo extremamente complexo. Embo-
ra ambos tenham consciência da situação de conflito
em que se encontram, nenhum dos dois países se limita
apenas a ações ou políticas cujas consequências sejam
negativas para o seu adversário. Pelo contrário, tanto os
americanos como os chineses parecem acreditar que a
sua vitória depende de uma administração cuidadosa da
relação com o adversário. Engalfinhados nessa disputa,
ambos procuram aproveitar a força e os movimentos do
oponente, para então derrubá-lo. Os chineses fazem is-
so explorando a necessidade americana de encontrar
novas fronteiras econômicas para seus investimentos.
Já os americanos parecem confiar sobretudo na força da
sua cultura para atrair talentos do mundo todo, um pré-
-requisito para manter e expandir a dianteira tecnológica
herdada de competições anteriores.
3. Quais medidas anunciadas pelos Estados Unidos sina-
lizam uma nova era na competição econômica com a
China?
4. Além do mercado de semicondutores, quais outros
mercados foram considerados fundamentais para o
futuro da economia global pelo Chips and Science Act
do governo americano?
230