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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio)

Jogos de abertura e contato:

Contribuições da Técnica do Viewpoints para o Gestalt-Terapeuta

Departamento de Psicologia

Especialização em Gestalt-Terapia

Aluno: Fernando Dias Vilela

Orientadora: Fernanda Bond

Rio de Janeiro

2022
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FERNANDO DIAS VILELA

Jogos de abertura e contato: Contribuições da Técnica do Viewpoints


para o Gestalt-Terapeuta

Monografia apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Psicologia da PUC-Rio como
requisito parcial para a obtenção
de título de Especialista em
Gestalt-terapia, aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo
assinada.

Orientadora: Fernanda Bond.

RIO DE JANEIRO

2022
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Resumo:

A Gestalt-Terapia, trouxe em seu arcabouço técnico e teórico, um desafio para o


terapeuta: colocou-o frente às necessidades de ter na sua relação com seu cliente, seu
instrumento de trabalho mais importante. A relação dialógica exige mais do que
capacidade analítica. Requer um ser humano integral, capaz de afetar e ser afetado no
aqui e agora, capaz de uma qualidade de presença que estabeleça vínculos. O
entendimento de que a técnica do Viewpoints criada pela coreógrafa Mary Overlie, e
depois desenvolvida pela diretora de teatro Anne Bogart é um excelente treinamento
para Gestalt-Terapeutas, é a intuição primeira deste trabalho. A disposição de abertura
que a prática dos Viewpoints desenvolve em seus participantes, a presença fincada no
aqui e agora, o treinamento de uma percepção alargada e variada, guarda imensas
afinidades com a qualidade de presença que se espera de um Gestalt-Terapeuta. A
aventura de aprender a ‘não performar’ é também uma aquisição desenvolvida nos jogos
de Viewpoints. Assim como a técnica do Viewpoints busca treinar a percepção e
liberdade do ator para compor cena na sua relação com as pessoas e objetos presentes,
livre de um desempenho baseado em representações ficcionais de um personagem, do
mesmo modo o Gestalt-Terapeuta deve, a despeito de todo seu estudo e conhecimento
sobre o ‘homem em geral’, estar livre e aberto para jogar, como um performer de
Viewpoints, com os objetos e pessoas presentes.

Palavras-chave: Gestalt-terapia, Teoria dos Viewpoints, Anne Bogart, Mary Overlie


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Sumário:

1 – Introdução

2 - Apresentação da técnica dos Viewpoints.


2.1 – Contexto histórico do seu surgimento -------------------------------- p.8
2.2 – O surgimento dos Viewpoints e o que propõe ------------------------ p.11
2.3 – Alguns aspectos relativos à postura do jogo -------------------------- p.15
2.3.1 - O trabalho no aqui e agora ------------------------------------------ p.15
2.3.2 - Soft Focus + 'Escuta extraordinária' -------------------------------- p.17
2.4 – Sobre o que se desenvolve nos jogos de Viewpoint ----------------- p.18
2.4.1 – Entrega ------------------------------------------------------------- p.18
2.4.2 – Possibilidade -------------------------------------------------------- p.18
2.4.3 – Escolha e Liberdade ------------------------------------------------ p.19
2.4.4 – Crescimento -------------------------------------------------------- p.19
2.4.5 – Inteireza ------------------------------------------------------------ p.19

3 – Articulações da Técnica dos Viewpoints com a Gestalt-Terapia: - p.20


3.1 - Coincidência de contextos de surgimento ---------------------------- p.20
3.2 - Desconstrução dos modos de olhar ----------------------------------- p.20
3.3 - O campo ---------------------------------------------------------------p.22
3.4 – A abolição das hierarquias ------------------------------------------- p.23
3.5 – A relação dialógica --------------------------------------------------- p.24
3.6 – O Ethos do agora ----------------------------------------------------- p.29
3.7 – Awareness ------------------------------------------------------------ p.31

4 – Proposta Prática ------------------------------------------------------------- p.33


4.1 – Resumo da proposta de trabalho de Bogart e Landau
e suas relações com a Gestalt-Terapia ------------------------------------- p.34
4.1.2 – Considerações iniciais e exercícios preliminares ------------------ p.34
4.1.3 Panorama dos Viewpoints ------------------------------------------- p.37
5 – Conclusão --------------------------------------------------------------------- p.42
6 – Referências bibliográficas ------------------------------------------------- p.44
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1 - Introdução:

No segundo semestre de 2021, o curso de formação em Gestalt-Terapia na PUC


se encaminhando para o fim, entra na grade a matéria ‘Psicologia e Teatro’. De imediato
fantasiei que faríamos discussões baseadas na apropriação do recurso da dramatização
por parte da psicologia, como Hole Play, o psicodrama de Moreno e outras iniciativas
que utilizaram o corpo em cena para fantasiar encontros e simular dinâmicas. Tratando-
se de uma aula virtual, descartei de pronto qualquer tipo de encenação. Enfim, curioso e
animado para saber o que faríamos de fato, já que de um modo geral assuntos
relacionados ao teatro sempre me interessaram, entrei na sala virtual.

Iniciando a aula pelo fim, levamos para casa a tarefa de nos filmar durante 10
minutos, sem a incumbência de apresentar nada e nem tampouco causar qualquer
emoção. Não havia na verdade, nem prescrição nem proibição. A tarefa era
simplesmente se postar diante da câmera e botar pra gravar sua existência, durante 10
minutos, com a consciência de estar sendo observado. Havia uma clara desincumbência
da tarefa de performar, criar, surpreender ou mostrar algo. E ao mesmo tempo, nada
disso estava exatamente proibido. Em meio à mil interrogações, assim foi feito. Sem
entrar nos fundamentos que levaram a esta proposta, assunto que será abordado ao
longo do trabalho, digo apenas que na semana seguinte estávamos vendo sob orientação
do olhar treinado da professora, uma quantidade enorme de coisas que aconteciam em
cenas que até então nosso olhar viciado em histórias só conseguia ver vazio e
neutralidade. Sessões, variações, repetições, pontos de ruptura com mudanças bruscas
na cena aconteciam naquilo que há pouco era um nada. Aulas depois, já jogando em
conjunto com os colegas, estávamos imersos em séries de improvisos já com o breaffing
de alguns aspectos a serem privilegiados (‘Viewpoints’). E também foram coletadas dos
alunos, frases que resumissem temas de interesse para que servissem de mote para os
improvisos.

A clássica justificativa encabulada, “eu não sou ator”, ali perdia o sentido. Não
estava sendo exigida nenhuma habilidade especial, senão aquela tão falada em Gestalt-
Terapia: esteja presente e vivo no aqui e agora. Dilate os poros da sua superfície de
contato com o outro e esteja vivo no campo! Não que isso fosse fácil ou desprovido de
constrangimentos para nós, alunos na maioria inexperientes, da especialização. Mas não
podíamos nos esconder por detrás da desculpa de nos estar sendo exigida uma
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habilidade na qual não havíamos treinado nossos talentos. Para o exercício da Gestalt-
Terapia, é nos exigida presença viva e aberta. Muitas vezes os improvisos caíam no que
chamamos de ‘conversa de bar’, designando certa estagnação no registro da fala. Mas
aos poucos, aqueles primeiros exercícios tímidos e ‘super-empalavrados’, foram
absorvendo as inspirações dos Viewpoints, que justamente abriam a percepção para
registros outros que não a fala, e geraram divertidíssimos improvisos com ações
inusitadas, coincidências incríveis e muita diversão e engajamento da turma.

Em retrospecto, agora enquanto escrevo, tomo consciência de ter sido após um


dos improvisos dos meus colegas, que tive a intuição primeira deste trabalho. Na hora
foi formulada através de uma dúvida. Pensei: ‘será que foi de propósito’? Esta pergunta
interna se referia precisamente ao fato de eu estar intuindo que uma habilidade
absolutamente central de um Gestalt Terapeuta estava sendo treinada naqueles jogos. E
me ocorreu: foi de propósito, com esse objetivo que os Viewpoints entraram na grade?
É porque já descobriram há muito tempo que jogar Viewpoints exercita habilidades que
nos são caras, ou estou diante de mais uma das sincronias do improviso do mundo? Era
pra ser teatro de um modo geral e calhou de ser a técnica dos Viewpoints só porque era
a linha de pesquisa da professora de teatro, ou desde o início buscou-se os Viewpoints
especificamente? Esse pensamento me ocorreu sem desdobramento naquele primeiro
momento e foi esquecido. Só mais tarde, pensando em quais assuntos me estimulariam
escrever sobre, retomei a ideia dos Viewpoints.

Inicialmente, pensei em trabalhar a técnica dos Viewpoints e adaptá-la para ser


proposta ao cliente, como uma espécie de experimento em sessão particular ou vivência
grupal. Via (e vejo) a potencialidade de grandes benefícios para o cliente que se lançar
aos jogos de improviso. Mas já me incomodava uma grave objeção: não seria qualquer
cliente que se disporia a jogos de improvisação. Previa dificuldades na estruturação de
algo viável no mundo real para ser proposto em terapia. Fora o fato de que é sabido que,
para o sucesso de um experimento, vale mais a criatividade e o senso de oportunidade e
pertinência, do que grandes estruturações prévias.

Mas, logo ao iniciar a escrita deste trabalho, retomei contato com as


‘coincidências’ entre as habilidades exigidas dos atores-improvisadores e dos Gestalt-
Terapeutas. E compreendi que meu trabalho com Viewpoints teria como público-alvo os
terapeutas, e não os clientes. Aos meus colegas, me sentia autorizado propor os jogos, e
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via possibilidades mais claras de aproveitamento. Inclusive vínhamos de uma


experiência recente e muito bem sucedida nesse sentido. No decorrer do curso,
experimentamos os jogos enquanto terapeutas e saímos todos mais conscientes das
fronteiras, dos movimentos do campo, das formas de escuta e apreensão. Os
depoimentos da turma e minhas experiências me autorizam afirmar isso.

Parece-me claro que, para chegarem a exigir de seus participantes disposições


afins, a Gestalt-Terapia e a técnica dos Viewpoints vão demonstrar muito antes, em seu
arcabouço teórico, premissas e interesses, muitas afinidades. Tentarei neste trabalho
explicitar algumas. Mas antes será necessário explicar, o que são os Viewpoints, de
onde surgiu e a que se propõe, para depois, compreender de que modo pode servir ao
treinamento de Gestalt-Terapeutas. Como este trabalho se destina a profissionais ou
estudantes em formação, não me darei ao trabalho de explicar conceitos da Gestalt-
Terapia. Citarei sem maiores explicações conceitos da Gestalt sempre que estes forem
pertinentes para traçar paralelos entre as competências exigidas do ator improvisador e
do Gestalt-Terapeuta, objetivo principal deste trabalho. Utilizarei citações quando me
parecerem importantes para fundamentar o argumento, mas, partindo sempre do
princípio que os termos da Gestalt-Terapia são familiares ao leitor.

Por fim, percorrendo o caminho que Anne Bogart e Tina Landau propõem em
seu trabalho “O Livro dos Viewpoints”, farei observações da relação entre os exercícios
propostos e a Gestalt-Terapia.
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2 - Apresentação da técnica dos Viewpoints:

2.1 – Contexto histórico do seu surgimento:

A partir da década de 50 do século XX, os parâmetros da dança e do teatro, antes


centrado em uma história a ser contada e na emoção que essa história é capaz de gerar
no espectador, começam a ser movimentados. O direcionamento do olhar dentro de cada
linguagem artística passou a focalizar novos parâmetros. E os limites, não só das artes
cênicas, mas da arte como um todo, começavam a ser questionados. Por exemplo: ruído
de talheres pensados e dispostos numa combinação proposital, é música? E notas
musicais com frequência definida, mas em sequência aleatória disposta pelo acaso? O
que faz com que um fenômeno possa ser chamado de música, ou teatro, ou dança?
Seguindo com um exemplo musical, imaginemos a obra de John Cage intitulada “4’33”:
uma composição constituída apenas de pausas. O músico se dirige ao piano e passa
quatro minutos e trinta e três segundos, lendo as pausas, portanto, acompanhando a
partitura, contando os compassos internamente como se fosse ter seu momento de
entrada. Mas esse momento nunca chega, pois sua partitura é constituída 100% de pausa
e sua mão, portanto, não chega a encostar nas teclas do piano. Trata-se de uma peça
musical, ou de uma performance? E se tivesse uma nota tocada mudaria alguma coisa?
Nas artes plásticas, foram inseridos os ready-mades, que consistia em apresentar em
local próprio das artes (um museu) um objeto que antes de ser eleito para exposição, já
existia com finalidade comum do dia-a-dia. O exemplo mais conhecido foi a obra ‘La
Fontaine’ de Marcel Duchamp, no caso, um mictório de banheiro comprado numa loja
de material de construção. Na dança, se expunham movimentos cotidianos ao invés das
alegorias gestuais do ballet, sons da vida cotidiana entraram fortemente na música
gerando a música eletroacústica. Poderíamos aqui listar muitos outros exemplos
espalhados por todas as linguagens de obras que exigiram revisão de velhos conceitos,
ao mesmo tempo em que estimulavam cada vez mais criações, hibridismos, manifestos
e, como não poderia deixar de ser, polêmicas. A fronteira entre o que é teatro e o que é
dança, o que é performance, o que é música, o que são artes plásticas, poesia ou
filosofia, já não era nada óbvia. Comenta Rinaldi:

Os territórios e fronteiras entre as artes tornam-se, a partir de 1950,


cada vez mais difusos. Algumas produções acabaram sendo
forçosamente chamadas de escultura ou de teatro, para dar conta dos
desafios que algumas obras e artistas lhes impunham. Isso exigiu,
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por um lado, maior elasticidade das nomenclaturas por um lado


e, por outro, a revisão de conceitos e suas especificidades.”
(RINALDI, 2016, p.25).

Foi neste contexto de um hibridismo acentuado, que surge o Viewpoint como


fruto das pesquisas da coreógrafa americana Mary Overlie e posterior desenvolvimento
se dá nas pesquisas teatrais de Anne Bogart como veremos. Overlie deixa clara a
importância de sua formação em Montana, sua cidade natal, em todo seu pensamento
artístico, que desembocou nos seis Viewpoints. Conviveu de perto com artistas desde
muito cedo, em especial, os DeWeese, casal de artistas plásticos com quem mantinha
fortes laços e, entre os quais, assuntos sobre arte eram a tônica em encontros
promovidos em seu ateliê. Comenta que sua intuição primeira do que viriam a ser mais
tarde os ‘seis Viewpoints’, surgiu ao observar como os artistas plásticos conversavam
sobre suas obras. Os parâmetros manipuláveis, materiais e técnicas tinham uma
objetividade que ela não encontrava na dança. E pode ter nascido desses encontros com
os DeWeese a intuição de que responsividade é o que devemos trabalhar. Estabelecer
com o mundo uma relação de atenção para o que há e estabelecer com ele uma relação
de pró-atividade, mais do que uma imposição cabal e cega de intenções. Miriam Rinaldi
comenta em sua tese que
(...) uma das filhas do casal (DeWeese), Tina, conta ter encontrado
escrito, no caderno de rascunhos do seu pai, a palavra
"responsabilidade", que ele definiria como a habilidade de responder.
Segundo ela, seu pai estava sempre fazendo algo, rabiscando em
pedaços de papel, fazendo colagens com qualquer coisa que estivesse
à mão: "ele sentia que esse era o significado de ser responsável". Em
inglês a palavra responsável (responsable) pode ser traduzida como
ser capaz de responder a algo. Portanto ele se mantinha sempre em
contato com o que estivesse ao seu redor, buscando a tudo
transformar. Essa lição de Bob DeWeese parece ter ficado para
Overly (RINALDI, 2016, p.51 e 52)

Mas, voltando para o mundo do lado de fora, não só as fronteiras entre as artes
foram borradas neste período, mas a própria concepção do que é arte foi posta em
xeque. O tradicional entendimento da obra de arte como fruto de um trabalho especial
que exige burilamento e habilidades específicas foi sendo corroído com a entrada do
cotidiano e do ordinário. A arte que até então era da esfera do extraordinário e do
sublime e exigia habilidades incomuns para merecer a alcunha de grande arte, começava
a ser questionada em todas as linguagens. E ao se questionar o que é arte, questiona-se o
que é um artista. Conta-nos Miriam Rinaldi:
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‘Contemplação, redefinição por acidente e incidentes cotidianos


tornaram -se fontes primárias da arte. Houve um reposicionamento
da imaginação e da visão em detrimento da observação e da
interação – e que acabaram por tirar o privilégio e domínio
hierárquico na arte, resultando em um massivo distanciamento da
figura do artista como um criador original.”(GOLDBAUM, 2016,
p.31)

Tomando mais uma vez a música como exemplo, vejo no atonalismo (música
serial ou dodecafônica) um exemplo perfeito de proposta ‘não hierárquica’. O tonalismo
elege uma nota como ‘centro gravitacional do sentido musical’. Chamada de tônica é
nesta nota que a melodia ‘descansa’, e a ideia se conclui. E se não volta no fim da
música para a tônica, temos uma sensação de ‘não conclusão’, que a melodia ficou
suspensa no ar, demandando conclusão. Se temos intuitiva capacidade de apreender o
‘discurso’ lógico de uma melodia, é por termos a tônica como expectativa tácita, mesmo
nos momentos em que a melodia está se desdobrando em outras paragens. E só há a
possibilidade de falarmos em ‘outras paragens’ porque, no contraste, existe a tônica. No
atonalismo, no entanto, essa hierarquia é quebrada e uma nota só pode ser tocada
novamente depois de todas as outras serem tocadas. Há uma franca manipulação nos
procedimentos composicionais para que esse ‘centro gravitacional do sentido musical’
seja implodido.

É claro que esse exemplo musical do atonalismo é absolutamente extensivo a


todas as outras artes e muito particularmente ao que fez Overlie com as artes cênicas.
Poderia dizer numa livre comparação, que retirar o texto de seu lugar de ‘centro
gravitacional’ do fenômeno teatral e colocar os elementos da cena em jogo não
hierárquico é como fazer um teatro ‘atonal’. Lidar com as variáveis no que elas revelam
aqui e agora, ao invés da apreensão no arco lógico do tempo que conta uma história,
seja com o corpo, com a fala, com tinta ou com notas musicais.

Abrindo um pequeno parêntese, me parece que toda vez que a organização dos
parâmetros de uma linguagem estiver muito condicionada em nós, quando nosso
‘patrimônio afetivo’ está construído sobre essas bases, desconstruí-las, é, pelo menos
em um primeiro momento e de algum modo, decepcionante ou desconfortável. Não é à
toa que esses momentos de desconstrução tenham acontecido sempre sob fortes forças
de oposição e resistência. O velho e o novo sempre se alternaram sob fortes fricções.
Um colega certa vez comentou falando de sua sensação ao ouvir música atonal: “É
como se estivessem destruindo a casa da minha infância e, erguendo no lugar, uma
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lâmina de vidro!”. Nunca me esqueci dessa imagem. De fato, é como se estivessem


mexendo em nossa memória afetiva mais íntima, questionando nossos sentimentos em
última instância. São bastante numerosos os exemplos de fúria e agressão contra artistas
que propunham o novo. É preciso bom humor, curiosidade, disposição e espírito
aventureiro para o desapego das velhas formas. É preciso uma relação de alegria e
brincadeira com a vida para que o novo, ao invés de virar uma frontal ‘desautorização’
da forma como aprendi a sentir o mundo me instigue a ‘brincar de outra coisa’. E esta
‘outra coisa’, é feitas de novos parâmetros e pontos de vista que vão demandar algum
nível de abertura e desapego.

E para concluir a exposição deste contexto histórico, digo que esta atmosfera de
renovação e quebra de paradigmas tomava conta, não só das artes, mas de todas as áreas
da sociedade. Comenta Miriam Rinaldi (p.26):

No contexto político, os anos 1960 são marcados por um


rejuvenescimento das utopias, consequência da explosão demográfica
do pós-guerra. Nas ruas, uma maioria formada de jovens entre 17 e
30 anos - com o otimismo e a rebeldia que lhe são associados, entram
em confronto direto com as autoridades (...) Não se buscava uma
revolução dividida entre pobres e ricos, negros e brancos, homens e
mulheres, gays e heterossexuais, mas uma revolução estrutural em
todas as instituições da sociedade: na família, na escola, na igreja
etc. Intensifica-se de maneira irreversível a luta pelos direitos civis
reunindo não só os grupos minoritários unidos por interesses
particulares, mas uma maioria articulada em grandes
mobilizações contra essas instituições (RINALDI, 2016, p.26)

Resumindo, podemos dizer que o contexto de surgimento da Técnica dos


Viewpoints, foi de muitas camadas de desconstrução: da hierarquia entre os elementos
dentro de cada linguagem artística; das fronteiras entre as linguagens artísticas entre si;
das relações entre vida e arte, entre artista e homem comum, entre um mundo velho e
um mundo novo.

2.2 – O surgimento dos Viewpoints e o que propõe:

Como já foi esboçado anteriormente, a ideia básica da coreógrafa Mary Overlie,


estruturada em 1976 em sua proposta dos seis Viewpoints, é decompor os elementos da
cena em seus elementos básicos e constitutivos.

Para ilustrar, pensemos antes em uma cena de Romeo e Julieta nos moldes de
uma encenação clássica: temos um elemento principal que toma a frente e organiza toda
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a cena: a história que está sendo contada. E todos os outros aspectos se colocam para
confirmar, complementar e corroborar a contação desta história. Não é à toa que o texto
teatral muitas vezes é chamado de ‘peça’. Como se denunciasse um entendimento tácito
de que o texto detém, em sua essência, o fenômeno cênico completo. Esta ideia parece
sugerir que os outros elementos da cena, são ‘perfumaria secundária’ para dar mais
veracidade, realismo ou beleza à cena. Mas, que não estão ali com voz própria e não
têm autorização para tomar o sentido do fenômeno e interferir ou mudar o rumo da
história. Nenhum elemento tem essa autorização: os cenários, por exemplo, serão
aqueles previstos no texto (salão do baile, a sacada, a caverna mortuária da cena final); a
música será mais dançante no baile, mais lírica e introvertida na cena da sacada e,
espera-se, que esteja carregada de terror e drama na cena das mortes. Todos os
elementos da cena estarão em sincronia e direcionados para criar a atmosfera
psicológica da cena e entregar uma carga de emoção ao espectador, de acordo com as
palavras e rubricas de Sheakespeare, com seus contextos e épocas fictícias, genialmente
descritas na grande bula que chamamos de ‘peça’. E assim será com os figurinos, com o
uso da luz, dos adereços, com a modulação emocional dos atores, com a intensidade e
amplitude dos gestos e todos os parâmetros da cena. Mesmo que adaptações de época e
outras sejam feitas, serão feitas no texto, que carregará todo um universo vassalo de
elementos para revelar a releitura.

Imaginemos agora, retirar a história – espinha dorsal onde todas as linguagens


estão penduradas – e dar a cada elemento, independência e legitimidade para propor
cena e virar figura? E iniciar um jogo improvisado de inter-relações. Um jogo, não
sobre o nada, mas sobre a interação entre pessoas e objetos. Não de forma fria e sem
tônus, mas com as temperaturas e tônus gerados no jogo. Mas, sempre, livre da luta
por expressar a emoção proposta na bula de um texto. Mas, apesar de não estarem
presas a um texto ‘pré-fabricado’, nem a história e nem as emoções, estão proibidas.
Mas aqui vale o esclarecimento de que “história”, sobre o ponto de vista da teoria dos
Viewpoints, não é mais do que “um arranjo de informações, um conjunto de dados
dispostos em uma ordem lógica singular, que não deve seguir nenhuma
predeterminação”. Fernanda Bond nos esclarece:
(...) no processo de liberar o View Point história da estrutura
dramática que tenta cooptá-lo inevitavelmente, as práticas iniciais
deste View point consistem em pedir que os atores investiguem objetos
comuns, como geladeiras, lixeiras, etc. A ideia é treinar o ator a
compreender a noção de história distante do "dilema humano",
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observar concretamente objetos do mundo e aprender a compor com


eles (BOND, 2014, p. ).
Complementa Jakenia Nascimento:
(...) a ideia principal por trás dos exercícios em View points
propostos por Bogart e Landau, é afirmar a sensação como motor
do movimento e vice-versa. Segundo as autoras, sustentar-se
desesperadamente sobre a emoção, é sacrificar a interação humana
genuína no presente (aqui agora). Em vez de forçar ou preconizar
uma emoção, o "treinamento em Viewpoints" permite que
sentimentos indomados sejam, a partir da situação física, verbal, e
imaginativa, compartilhada entre os atores (NASCIMENTO, 2020,
p.57).

Mary Overlie busca categorias primárias como foco de atenção, pois ali está a
‘matéria prima’ da cena. Abrindo mão desta submissão e com esses elementos em
mente, cria-se um campo de interação livre das categorias hierarquizadas das
encenações clássicas. Mas como seria então uma cena não hierarquizada e livre da
hegemonia do texto? Como é possível trabalhar os elementos da cena sem que nenhum
deles ganhe status de liderança? Como manejar uma “cena atonal”? Faremos adiante na
parte prática deste trabalho, uma exposição de exercícios práticos propostos para
trabalhar cada Viewpoints. Mas por ora adianto que qualquer ânsia por ‘formas de se
fazer alguma coisa’, será frustrada. O manejo desta cena está, paradoxalmente em não
manejar. Ao invés de nos ensinar a fazer, nos prepara a disposição para receber o que já
existe. Fazer é em alguma parte, não atrapalhar a abertura.

Comenta Fernanda Bond sobre a proposta de Overlie,

“através da ‘capacidade perceptiva’ de experimentar determinado


material, desenvolvida através de exercícios específicos que compõem
o arcabouço da técnica. As práticas se constroem sempre a partir do
que ela denomina "princípio da observação". Na sua perspectiva da
técnica, o ato de olhar é valorizado em detrimento da proposição de
formas. (BOND, 2014, p.2)

O que Overlie chama de ‘materiais’ são aspectos a serem observados, sejam


objetos físicos, ou parâmetros. Elegeu seis para trabalhar: forma, tempo, movimento,
espaço, emoção e narrativa, como veremos com mais detalhes. Estes parâmetros estão
presentes na cena e podem ser manipulados e tomar a prioridade das atenções. Ao
contrário do teatro de texto, aqui não se sabe onde vai chegar. O deslocamento do foco
entre os elementos e a relação que se estabelece com eles constroem o acontecimento
cênico. Essa relação é primariamente sensorial. Somos atraídos pelas cores, texturas,
movimentos dos corpos – o praticante de Viewpoint é estimulado desde o primeiro
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momento, a percebê-los. E nessas interações vão surgir ideias, sugestões ou


sentimentos que também vão propor cena.

A ideia principal por trás dos exercícios propostos Por Overlie é


afirmar a sensação como motor do movimento e vice-versa, o
movimento produzindo sensação. O objetivo geral elaborar um
"vocabulário físico" que seja consequência do estabelecimento de um
diálogo sensorial com os elementos do espaço-tempo

Segue abaixo, a descrição dos seis Viewpoints elencados por Overlie que, com
suas iniciais, formam o hexagrama SSTEMS:

S - Space (espaço) - "ver e sentir relação física"


S - Shape (forma) - "ver e sentir forma física"
T - Time (tempo) - "experimentar duração e sistemas criados para regular duração"
E - Emotion (emoção) - experimentar estados de ser
M - Moviment (movimento) - "experimentar e identificar sensação cinética"
S - Story (história / Narrativa) - "ver e entender sistemas lógicos como um arranjo de
informações coletadas’

Um marco definitivo para a técnica foi quando a diretora teatral Anne Bogard,
descobriu que ela poderia ser de grande valia para o treinamento do ator de teatro, e
passou a adaptá-la para a realidade de suas produções teatrais e experimentações.
Expandiu seu uso, modificou o hexagrama de Mary Overlie e abriu um caminho de
pesquisa próprio junto à sua companhia de teatro Siti Company.
Anne Bogart e Tina Landau estabelecem dois parâmetros principais: Espaço e
Tempo. E reestrutura a partir deles, nove Viewpoints. Daqueles originais de Mary
Overlie saem três: Emoção, História e Movimento. Dos três originais que sobraram,
acrescenta outros seis: Repetição, Topografia, Arquitetura, Duração, Gesto e Resposta
cinestésica, ficando assim:

VIEWPOINTS DE TEMPO
- Tempo/ritmo: “A velocidade com que um movimento ocorre; o quão rápido ou
devagar algo acontece no palco.”
- Duração: “Por quanto tempo um movimento ou uma sequência de movimentos
continua/ dura.
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- Resposta cinestésica: “Uma reação espontânea a um movimento que ocorre fora de


você; o timing da sua resposta aos eventos externos de movimento ou som; o
movimento impulsivo que ocorre a partir de uma estimulação dos sentidos”.
- Repetição: “A Repetição de alguma coisa no palco. Repetição inclui (1) Repetição
interna (repetir um movimento do seu próprio corpo); (2) Repetição externa ( repetir a
forma, tempo/ andamento, gesto, etc, de algo fora do seu próprio corpo)”

VIEWPOINTS DE ESPAÇO
- Forma: “O contorno ou limite que um corpo, ou corpos, traçam no espaço.”
- Gesto: “Um movimento envolvendo uma parte, ou partes do corpo; o Gesto é forma
com um começo, meio e fim”
- Arquitetura: “O ambiente físico no qual você está trabalhando e como a consciência
dele afeta o movimento.”
- Relação espacial: “A distância entre coisas no palco, especialmente (1) de um corpo
para outro; (2) de um corpo (ou corpos) para um grupo de corpos; (3) do corpo para a
arquitetura.”
- Topografia: “A paisagem, o padrão de chão, o design que criamos em movimento
através do espaço.” (BOGART, LANDAU, 2005, p. 8 a 12 - apud BOND).

Apesar das diferenças entre a abordagem original de Mary Overlie e a


reestruturação proposta por Anne Bogart, o princípio é o mesmo em essência e ambas
nos servem quando o assunto é tecer relações com a Gestalt. No entanto, no meu
entender, a proposta de Bogart e Landau facilitou a compreensão ao especificar mais
alguns parâmetros. E facilitou muito a introdução na prática dos jogos com o
lançamento de “O Livro dos Viewpoints”. Composto de esclarecimentos e exercícios, o
livro propõe uma imersão na prática da técnica, com a inserção gradativa de cada
Viewpoint.

2.3 – Alguns aspectos relativos à postura do jogo:


2.3.1 - O trabalho no aqui e agora:
Várias propostas poderiam ser entendidas como tentativas para dar cabo do
impasse que se estabelece entre a necessidade de se cumprir as indicações de um texto
e, ao mesmo tempo, se manter vivo e presente no aqui e agora. Talvez este impasse
pudesse ser colocado assim: ou bem observo o que sinto e o que o outro me causa, ou
bem empresto meu corpo para ser ‘cavalo’ de uma fala e uma emoção concebida em
outro tempo, por um autor, e, portanto, observo o que o outro causa no meu
personagem.

Um dos grandes estudiosos desta segunda opção, que privilegia a incorporação


de um personagem, foi o russo Constantin Stanislavsky. Quando ele propõe em seu
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método de memória afetiva, que o ator traga para sua atuação memórias da sua vida real
que tenham paralelo com a emoção exigida pelo personagem, me parece uma tentativa
de conciliação deste impasse: trazer emoção real, através da memória, para dar presença
e verdade aqui e agora para o personagem na ficção. Esta habilidade de se entregar
como ‘cavalo’ de uma emoção alheia, é o que definiu e de certo modo define ainda hoje
em muitos círculos, o ofício de um ator. O bom ator como aquele ser humano com a
habilidade de ter a ficção tão bem incorporada, que não aparece o artifício. Consegue
uma mistura tão bem sucedida do ‘phatos’ do outro no próprio corpo e sentimentos, que
se ‘torna’ o outro na licença poética da ficção. O melhor ator sheakespereano como o
médium mais capaz de incorporar aquela ideia poética e comunicá-la ao mundo. E
aquilo chega na plateia com tônus de verdade, evocando, como não poderia deixar de
ser, emoção verdadeira.

Não é à toa que se estimula nesta escola de interpretação, experiências vastas de


vida, atenção no mundo cotidiano, observação atenta a tudo e a todos. Como se
entendesse que o ‘vocabulário existencial’ do ator será a chave de identificação capaz
de atravessar este impasse e se conectar com o que há de verdade na ficção e entregá-la
ao público, viva, no aqui e agora da realização do espetáculo.

Mas sempre em uma camada anterior ao artifício existe alguém que decide
entrar neste parêntese no mundo real, proposto pelo texto. Decide abrir mão do aqui e
agora radical, fenomenológico e concreto que o permitiria sentar caso tivesse vontade,
ou calar. Não há dúvidas de que mesmo com todas as marcas e textos a cumprir, um
bom ator pode, com seu talento camaleônico, tocar aspectos da verdade humana
universal e plasmá-la no próprio corpo, entregando ao público paixões verdadeiras em
essência. Mas, estas serão sempre expostas nas regras e nos limites da ficção.

Já nos Viewpoints, há o abandono do artifício e da ficção, e o ator é estimulado a


se colocar responsivo aos estímulos presentes, internos e externos. Decide não
abandonar o mundo concreto do aqui e agora radical e fenomenológico e não entra no
mundo simbólico e atemporal das paixões humanas. Pelo menos não ao modo antigo em
que essa paixão era, geralmente, expressada através de personagens que as portavam na
alma fictícia. O sentimento, e toda sua palheta de tipos e gradações, é bem-vindo nos
jogos de Viewpoints. Mas sua fonte será o jogo real, não a literatura.
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A implicação disso é enorme. E urge desbravar possibilidades e entendimentos


como quem explora um instrumento nunca tocado. E se a postura ‘textocentrista’ já
tinha seus manuais, propostas e contrapropostas discutidos e praticados no mundo todo,
o trabalho com esses elementos crus, no aqui e agora, abre um campo novo de perguntas
e possibilidades. Como nos conta Fernanda Bond:

Ao privilegiar a escuta da ação do outro ou a observação-


participante, no caso de Overlie, a técnica permite vivenciar de forma
intensa a transição permanente que ocorre da ação à percepção e da
percepção à ação. Mas como avaliar e medir essa ampliação
sensorial? Como ela se manifesta? De que forma podemos
complexificar essas noções? A técnica - tanto na perspectiva de
Overlie como na de Bogart e Landau - diz respeito à percepção, a
uma sofisticação da percepção, talvez. Mas o que define a percepção?
É possível perceber mais ou melhor? (BOND, 2014, p.71)

2.3.2 - Soft Focus + 'Escuta extraordinária'


Como o nome sugere, o Soft-Focus é uma disposição de abertura e apreensão
mais ampla acerca do lugar, dos sons e das presenças. Parte de uma disposição física de
relaxamento do olho e ampliação do espectro de visão. Está presente em todos os
exercícios propostos em O Livro dos Viewpoints, de Bogart e Landau. Aparece como
uma premissa que deve estar presente na postura do performer em todos os exercícios. É
exigida nos exercícios, mas também trabalhada individualmente para que cada vez mais
esta amplitude da percepção seja natural nos atores:

O soft focus, por exemplo, é um conceito criado para designar um


estado físico no qual os olhos estão relaxados e assim, ao invés de
olhar para um objeto ou pessoa específicos, o individuo permite que a
informação visual chegue até ele passivamente, numa via invertida.
Suavizando o foco dos olhos, o indivíduo expande o espectro de sua
consciência, especialmente a periférica. Ao invés de olhar para uma
ou duas coisas em foco direcional, aumenta-se a amplitude focal. O
foco suave alivia os olhos da tarefa de garantir a apreensão da
informação primária e dominante, ele estimula um outro tipo de
olhar, que se dá com o corpo todo, e proporciona o assimilar da
informação num modo novo e mais sensitivo. Quando a visão, que é
normalmente o sentido dominante, encontra-se suavizada, os outros
sentidos têm um espaço maior de atuação (BOND, 2014, p.71)

A ‘escuta extraordinária’ é a variação auditiva da mesma ideia: trata-se da escuta se


calar nas suas expectativas e efetivamente se abrir ao campo. Nos alerta Bogart e
Landau: “(...) se alguém está sempre procurando um resultado particular premeditado,
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muitas coisas que estão acontecendo do lado de fora desses parâmetros, não são
reconhecidas” (BOGART e LANDAU, p.51,52).

2.4 – Sobre o que se desenvolve nos jogos de Viewpoint:


Em O livro dos Viewpoints, Bogart e Landau em certo ponto descrevem o que
chamaram de ‘presentes que ganhamos dos Viewpoints’. Esta exposição clara e objetiva
acerca dos benefícios que o treinamento nesta técnica pode oferecer aos seus praticantes
será muito útil, pois explicita a imensa intersecção que há entre as habilidades exigidas
do performer e do Gestalt-Terapeuta. Vou comentar brevemente cada um destes
‘presentes’ colocados por Bogart e Landau, mas, como tem sido até agora, deixarei
qualquer articulação com a Gestalt-Terapia, para o próximo capítulo.

2.4.1 – Entrega
Fazendo alusão à pressão do ator tradicionalista de ter que cumprir um roteiro
predeterminado, as autoras citam como benefício imediato, o alívio que é não se sentir
preso à obrigação de performar, não ter que ser criativo e nem ter que entregar um
resultado previsto. Aqui vale um parêntese: será que grande parte do nervosismo, tão
presente nos bastidores do mundo cênico, não é exatamente essa cangalha de
expectativas e ‘afazeres’ que pesa nos ombros do artista e enche sua fantasia de medos e
inseguranças? Aqui a aventura é outra, e o ator aprende a contar com muito mais do que
sua performance. Nesse sentido, exercita sua entrega ao, reiteradas vezes, constatar em
jogo, que pode contar com o campo. Como nos explica Bogart e Landau:
Os Viewpoints aliviam a pressão de ter que inventar tudo por si
mesmo, de gerar tudo sozinho e de forçar a criatividade. Permitem
que nos entreguemos, que possamos cair em um espaço criativo vazio
e confiar que há algo lá, outra coisa além do nosso próprio ego ou
imaginação para nos captar. Os Viewpoints nos ajudam a confiar em
deixar algo acontecer no palco, em vez de fazer acontecer. A fonte
para a ação e a invenção vem até nós a partir dos outros e a partir do
mundo físico ao nosso redor. (BOGART e LANDAU, 2005, p.37)

2.4.2 - Possibilidade
Os autores entendem que alargamos o leque de possibilidades quando nos vemos
livres da hierarquia que submete uma linguagem à outra.
“Os Viewpoints nos ajudam a reconhecer as limitações que impomos a
nós mesmos e à nossa arte quando habitualmente nos submetemos a
uma presumida autoridade absoluta, seja ela o texto, o diretor, o
professor. Ele nos liberta do enunciado: “Minha personagem nunca
faria isso”. Nos Viewpoints não há bom ou mau, certo ou errado – há
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somente possibilidades e, mais tarde no processo, escolhas. (BOGART


e LANDAU, 2005, p.37)

2.4.3 – Escolha e Liberdade


A disposição favorável dos Viewpoints ao contato com as possibilidades
exercita como consequência, a liberdade de escolha:
“Os Viewpoints conduzem a um maior estado de atenção, o qual nos
conduz para mais escolhas, que nos conduz para uma maior liberdade.
Uma vez que você está consciente de toda uma gama de possibilidades,
não precisa escolher tudo o tempo todo; você está livre e não limitado
pela inconsciência. A escala aumenta. Você pode começar a pintar com
mais variedade e mestria” (BOGART e LANDAU, 2005, p.37)

2.4.4 – Crescimento
As autoras explicam que nesse ambiente de possibilidades várias, diversos
aspectos são colocados em jogo. O que nos possibilita, se avaliarmos o que fazemos ou
o que não fazemos com nossa liberdade, acessar informações sobre pontos fortes e
fracos de nós mesmos.
Os Viewpoints se tornaram um teste pessoal, um medidor de suas
próprias forças e fraquezas, para a descoberta do quanto você está
livre ou do quanto está inibido, quais são seus próprios padrões e
hábitos. Novamente é a atentividade que nos dá esse presente – a opção
de mudar e crescer (BOGART e LANDAU, 2005, p.38)

2.4.5 – Inteireza
A sobrecarga da visão e da fala não faz jus ao imenso potencial de contato,
expressão e coleta de informações de que é capaz o ser humano. Com a prática dos
Viewpoints, alargam-se as possibilidades de apreensão e entramos em sintonias mais
sutis de comunicação.
Os Viewpoints despertam todos os nossos sentidos, deixando claro o
quanto e o quão frequentemente vivemos somente “em nossas cabeças”
e vemos somente através dos nossos olhos. Por meio dos Viewpoints,
aprendemos a ouvir com todo o nosso corpo e a ver um sexto sentido.
Recebemos informações de níveis que não estávamos cientes que
existiam e começamos a nos comunicar com mais profundidade
(BOGART e LANDAU, 2005, p.38)

Comentarei sobre estes ‘presentes’ e sua relação com a Gestalt-Terapia ao avaliar, na


parte prática, os exercícios propostos por Anne Bogart e Tina Landau.
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3 – Articulações da Técnica dos Viewpoints com a Gestalt-Terapia:


3.1 - Coincidência de contextos de surgimento:
Foi precisamente naquele mesmo mundo que estava em plena transformação de
valores e paradigmas que a Gestal-Terapia foi criada. O livro Gestalt-Therapy:
excitement and growth in the human personality, de autoria de Fritz Perls, Paul
Goodman e Ralph Hefferline foi lançado em 1951, bem no epicentro da expansão das
desconstruções que acirravam os ânimos no mundo da arte. Laura e Fritz Perls viveram
em abundância a ebulição das ideias, e se nutriam delas. Faziam parte do grupo dos sete
(Fritz e Laura Perls, Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Elliot Shapiro e
Sylvester Eastman), em que as ideias que geraram a Gestalt-Terapia foram fomentadas e
fermentadas. Frequentavam também o grupo "Bauhaus", composto por artistas,
arquitetos, poetas e filósofos. Os próprios Fritz e Laura Perls tinham relação com o fazer
artístico. Nos conta Nascimento (2020, p.62) “Frederick Perls trabalhou em teatro, teve
aulas de pintura, e muitas vezes utilizava recursos de expressão artística em seus
trabalhos. Laura Perls estudou dança e Paul Goodman era poeta e escritor”.

As novidades estavam impregnadas no novos modos do fazer artístico e também


nos novos modos de pensar a arte e o mundo. E os fundadores da Gestalt-Terapia
estavam envolvidos em ambos.

É nesse ambiente — que muito se parece com a Berlim dos anos 1920
— que Perls mergulha, passando a frequentar, os ‘‘meios artísticos e
boêmios, os ‘‘intelectuais de esquerda’’ do pós-guerra, anarquistas e
revoltados: escritores, pintores, músicos, bailarinos e, sobretudo, os
atores do Living Theater’’. (apud GINGER e GINGER, 1995, p.55,
apud HELOU, 2015, p.66)

Não era de se espantar que tanto a Gestalt-Terapia quanto a Técnica dos


Viewpoints se nutrissem de motivações semelhantes. Compartilhavam do mesmo
mundo, interesses e inquietações.

3.2 - Desconstrução dos modos de olhar

Se no âmbito das artes, o paradigma que supervaloriza a emoção e a história


estava sendo questionado; nos modelos de terapia, a hegemonia freudiana que, a seu
modo, também erguia a história e emoções do passado do paciente ao patamar de foco
principal com ênfase quase exclusiva da fala, também estava sendo questionada por
Fritz e seus parceiros com a apresentação da Gestalt-Terapia. O deslocamento dos
parâmetros da história pregressa do paciente para o fenômeno presente no aqui e agora,
21

começou a botar luz no ‘como’ se fala e não apenas no ‘que’ se fala. Agora não só a
palavra escolhida pelo cliente, mas sua postura, suas contrações musculares, o não dito,
jeitos de se postar vão importar. Abre-se aí um campo alargado de fontes de
informações que por vezes comunicam mais do que o cliente é capaz de entregar nas
suas falas. Entre o que ele diz e o que faz, vale o que faz. Se alguém diz “estou bem”
com a cara pálida, trêmulo e olhar perdido, não convence.

E a lente dos parâmetros se abre ainda mais quando a própria relação e os afetos
que ela move são fontes fidedignas de informações sobre o outro. A forma como sou
afetado por uma presença me fala dela. A própria relação passa a ser parâmetro,
categoria primária e instrumento. O foco sai da doença e se estende ao ser integral do
outro e, como a soma dos elementos, reverbera no campo. A relação vira não apenas
fonte de coleta de informações, mas também de ‘cura’. Coloco aqui a citação de E.E
Cummings que Gary Intef e Talia Levine Bar-Yoseph elegeram como prólogo do
capítulo sobre Relação dialógica do Lvr. Manual de teoria, pesquisa e prática em
Gestalt-Terapia, de Phillip Brownell:

Não acreditamos em nós mesmos até que alguém revele que bem dentro
de nós há algo valioso, que valha a pena ouvir, digno de nossa
confiança, sagrado para o nosso toque. Quando acreditamos em nós
mesmos, podemos arriscar curiosidade, admiração, prazer espontâneo
ou qualquer experiência que revele o espírito humano (apud
CUMMINGS)

Como sempre disse a professora Sandra Salomão, “é nas relações que a gente
adoece e é também nas relações que a gente se cura”. Aqui está previsto o ser integral
do psicólogo, e não apenas a sua capacidade analítica. Aqui palavras consagradas na
literatura das relações de ajuda como ‘remédio’, ‘diagnóstico’ paciente’, cura’ parecem
começar a exigir aspas, pois o paradigma que as elegeu como significante, já não é mais
o fundo de onde emergem essas novas concepções.

Na prática dos Viewpoints, como vimos, tem-se o Soft-Focus como uma postura
de apreensão mais larga e atenta do que a atenção focada em um aspecto principal. O
treino desta habilidade é importante para o Gestal-Terapeuta, pois entre a relação
terapeuta x cliente se estabelece um campo. A consciência de que informações valiosas
estão espalhadas por todo o campo, e não apenas em aspectos como a fala, nos faz olhar
o todo com mais cuidado. Incluiria nessa disposição prévia toda possível suspensão de
valores e preconceitos para poder apreender o outro em seus termos e valores.
22

Pergunto: nessa busca, não estaríamos em semelhante posição do ator que se


livra de bulas e busca espalhar sua atenção nas formas, nas luzes, cores e sugestões
diversas vindas dos objetos ou de outros atores do campo? Anne Bogart, ao falar de Soft
Focus, se refere a um estado físico de um olho relaxado. Transmutando este olho físico
para um ‘olhar’ no sentido mais amplo e simbólico, temos uma postura gestáltica de
desconstrução de um modo de olhar, com foco mais ampliado e inclusivo. Comenta
Rollo May:

O uso de si próprio como instrumento, exige, é claro, uma tremenda


autodisciplina por parte do terapeuta... Na verdade, quero dizer que a
autodisciplina, a auto purificação (se assim vocês a entendem),
colocar entre parênteses as próprias distorções e tendências
neuróticas, até o limite do possível para um terapeuta, parece-me
resultar em torna-lo capaz de experienciar – em maior ou menor grau
- o encontro como uma forma de participar dos sentimentos e do
mundo do paciente (apud 1983, p.23)

O olhar aqui, deve ser revestido de certa ‘passividade’ para deixar-se afetar.
Olhar bem é, antes, desobstruir do que inserir novas lentes. Nessa disposição de maior
abertura temos algumas desconstruções históricas: a da hegemonia da palavra,
desconstrução do entendimento de que entre terapeuta e paciente existe um vazio estéril
de significados, desconstrução do conforto do entendimento de que existe bula capaz de
me guiar na relação com o outro. E diante disso desconstrói a estratégia: dá um passo
atrás e exercita princípios, deixando os resultados para o indizível do campo.

3.3 - O campo

Quando comentei sobre o benefício da entrega que nos lega o trabalho com
Viewpoints, esta entrega era fortalecida pelo exercício de se buscar “em um espaço
criativo vazio e conferir que há algo lá’, outra coisa além do nosso próprio ego ou
imaginação para nos captar (...) A fonte para a ação e a invenção vem até nós a partir
dos outros e a partir do mundo físico ao nosso redor” (BOGART e LANDAU, 2005, p.37)

Anne e Landau não falam de campo como o faz a Gestalt-Terapia, que se


apropria da Teoria de Campo de Kurt Lewin. Mas, apesar disso, Overlie conta com ele,
e o tem como parceiro direto do ator quando pede que abandone sua subjetividade como
fonte única e exclusiva de motivações e indica, através de termos como ‘lá’, ‘palco’,
‘vazio criativo’, ‘além do ego’ ou ‘mundo físico ao nosso redor’, uma instância
23

motivadora de acontecimentos. Segundo Kurt Lewin, (1965,p29), as afirmações básicas


de uma teoria de campo são:
a) O comportamento deve ser derivado de uma totalidade de fatos coexistentes.
Esta proposição inclui a afirmação de que temos que lidar em psicologia,
também, com um conjunto, cujas interrelações que não podem ser representadas
sem o conceito de espaço;
b) Esses fatos coexistentes têm caráter de um ‘campo dinâmico’ enquanto o estado
de qualquer parte desse sistema depende de cada uma das partes do campo.

Quando Overlie propõe a retirada do texto como lente que se impõe ao olhar e
exercita a amplitude do olho e do olhar, abre-se para o campo (“totalidade de fatos
coexistentes”). E só se lança a ele para além do próprio ego, porque sabe, na prática, que
ele é dinâmico. É capaz de enxergar o ‘vento invisível’ que sustenta o sentido das
movimentações de quem se coloca ‘aerodinamicamente’ vivo em seu caminho. Não há
abismo pois o campo é fonte de propostas o tempo todo. Parece que aprender a jogar, e
aqui como metáfora para vida, para o jogo terapêutico e para os improvisos de
Viewpoints, é, em algum grau, se munir das asas possíveis e se lançar no abismo do
campo acreditando que há vento e sustentação onde o olhar descuidado e viciado nas
amarras da bula, diz que não há nada.

3.4 – A abolição das hierarquias:

De que modo a abolição das hierarquias, base como vimos da perspectiva dos
Viewpoints, se relacionam com a Gestalt-Terapia? O estudioso e o objeto estudado
sempre foram, na história da ciência, personagens distintos. E não foi diferente na
história da psicologia. Essa relação de quem detém o saber X quem necessita deste
saber, permeia as relações de ajuda e impõe uma hierarquia muito clara. Na medicina
tradicional, como o foco está exclusivamente na fisicalidade, temos esta hierarquia em
seu grau máximo: chegamos à consulta muitas vezes sem fazer a menor ideia da
enfermidade que temos, recebemos a prescrição de um remédio que não sabemos o que
contém, tomamos em quantidade e horários que não saberíamos prescrever e, se tudo
der certo, temos uma melhora do quadro sem saber exatamente por quais processos
químicos. Ali o médico é a única voz autorizada e falar sobre os processos necessários
para a cura. Do paciente, espera-se boa descrição dos sintomas e obediência às
prescrições. Estão muito claros, nesta relação, quem sabe e quem não sabe, ainda que o
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ignorante seja o dono do corpo, e portanto, quem sofrerá os efeitos da medicação.


Mesmo trazendo a reflexão para os limites da psicologia, por muitos anos essa
hierarquia se manteve intacta. Não só a falência do meu fígado, mas também a falência
da minha alegria ou da minha capacidade de me relacionar, por muitos anos, foram
tratados como uma incógnita cujas respostas estavam encarceradas na inteligência e
compreensão de um psicanalista, que era o detentor do entendimento do que é, e o que
não é significativo no mar de palavras e impressões que recebe dos pacientes.

Mas, conforme foi dito, o olhar foi ampliado com a Gestalt-Terapia e muitas
outras correntes humanistas. E uma consequência natural e de enorme relevância desta
ampliação, me parece ser, a quebra da hierarquia entre analista X analisado. Com as
novas perspectivas do que está em jogo, já não sou autorizado a estabelecer uma relação
unilateral de promotor de cura nos moldes antigos. Vamos encontrar nos estudos sobre a
‘relação dialógica’, de Martin Bubber, uma poderosa fonte de aprofundamento sobre as
relações, suas características e consequências. É sobre sua luz que se desfazem
quaisquer resquícios de hierarquia possível na relação terapeuta-cliente.

3.5 – A relação dialógica

O ser humano é complexo, e não deixa de sê-lo quando está em um bar


comprando refrigerante. No entanto, o vendedor de refrigerantes não adentra o mar de
complexidades do comprador, e nem tampouco o comprador adentra o mar aberto do
vendedor. Eles têm um objetivo prático que resolve a razão de ser daquele encontro,
ainda na arrebentação: um sai satisfeito com o refrigerante, o outro com o dinheiro da
venda. Está resolvida a razão de ser de um sair de casa e do outro abrir seu
estabelecimento. E quando falo que os mares não se encontram, é porque cada qual está
pensando exclusivamente nos seus interesses. Não dão verdadeiramente passos em
direção ao outro - dão passos em direção à satisfação de suas necessidades, o outro ali é
apenas um detalhe, um meio, jamais um fim. Não existiria diferença significativa se o
vendedor fosse substituído por uma máquina de refrigerantes, ou se o vendedor,
mandasse entregar a mercadoria pelo correio. Esse tipo de relação, com interface prática
e interesses bem delimitados entre as partes, é o que Buber chamou de relação EU-
ISSO.

Outro cenário: e quando temos uma relação aluno x professor? Temos que
admitir que demos passos largos em direção à pororoca dos mares. Já não temos uma
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máquina, que de forma tão eficiente, possa substituir o mestre (neste caso, a máquina
poderia ser o computador que dá acesso a um curso pré-gravado online). Os livros
tampouco são capazes de substituir sem implicações. Isso porque em uma relação aluno
x professor, já temos a possibilidade do envolvimento afetivo e apreensão mútua dos
universos subjetivos. Esses interesses 'secundários' de bem querer, transcendem a
simples comunicação x apreensão de conteúdo. Nessa relação já vamos encontrar com
frequência, um interesse genuíno em relação ao outro. Isso sem falar da vivência do
mestre sobre os conteúdos, que em uma aula ao vivo, estará presente em todo o
processo. Aqui, tanto a experiência pessoal quanto a afetividade, vão interferir
positivamente (espera-se!) na apreensão do conteúdo pelo aluno. Mas, ainda assim,
temos ali um 'contrato' onde se espera algo do mestre e este recebe, em contrapartida,
uma remuneração. Ou seja, estamos, ainda que de forma mais difusa e menos radical,
estabelecendo condições para uma relação EU-ISSO, ainda que possa, nessa fronteira,
ser também outra coisa, dependendo de como cada relação se desdobre.

Outro cenário ainda: pensemos em uma relação marido x mulher. Aqui, supõe-se,
não há interesse prático algum que seja o grande mediador do encontro. Aqui não
damos passos, mais um salto em direção ao encontro dos mares. Trata-se de uma
relação cuja razão de ser é pura afetividade, no caso, o amor entre as partes. E todos os
interesses que naturalmente possam existir fora do afeto, são, em tese, secundários.
Inclusive veremos casos em que o amor representa um verdadeiro 'desserviço prático'.
Por amor, tolera-se prejuízos financeiros, viagens exaustivas e diversas atitudes que, se
não estivessem embebidas no sentido supremo desse afeto avassalador que se justifica
em si mesmo, seriam inconcebíveis! Essas atitudes não são serviços, não têm paga e
ainda exigem muitas vezes da vida prática o que ela não tem para dar. Aqui chegamos
ao que Buber chamou de relação EU-TU, uma experiência de verdadeiro encontro e de
conexão natural, “uma experiência de apreciar a ‘alteridade’, a singularidade, a
totalidade do outro, enquanto isso também acontece, simultaneamente, com a outra
pessoa”. Nela, atravessamos a arrebentação e adentramos, com todos os riscos que isso
implica, na vastidão imprevisível do mar aberto do outro, sem saber com precisão onde
esse encontro vai dar, mas com a certeza de que a mistura das águas necessariamente
nos tornará outro. Não o outro, mas outro-eu.

Coloquei estes três cenários para pensar o paradoxo que existe entre as dimensões
objetiva e subjetiva nas relações. Temos no primeiro exemplo, quase uma ausência
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desse paradoxo, pois somos como que 'desumanizados' já que o que nos é demandado,
não passa de uma faceta radicalmente objetiva do que somos. Do lado oposto, no
terceiro exemplo (marido-mulher), não há nenhum 'serviço' a ser prestado, não existe no
contrato fundamental essa entrega objetiva prevista. Mas aqui é preciso esclarecer que
existem duas coisas diferentes: uma atitude EU-TU e o momento EU-TU. Quando
falamos de uma relação marido-mulher, estamos supondo que se trata de uma relação
em que as condições gerais estarão mais propícias para o acontecimento da relação EU-
TU do que o são as condições relacionais da compra de um refrigerante. Mas, toda
relação carrega sua dinâmica de alternância entre essas duas dimensões e o mundo real
do aqui-agora não pode ser congelado em uma ou outra categoria. Em toda relação, há
uma tensão entre o quanto a pessoa precisa se ocupar das suas questões individuais, e o
quanto deve se ocupar das questões da relação. Na relação marital, por exemplo, vamos
ter variáveis que frequentemente suscitam essa discussão pelo seu grau de objetividade
e demanda de esforço, como lavar as louças, buscar os filhos na escola, pagar contas e
tantas outras situações que são grandes desafios que puxam a relação para um
estacionamento na dimensão EU-ISSO. Como assiná-la Buber, "essa é a extrema
melancolia de nosso destino: de que todo TU em nosso mundo precise se tornar um
ISSO".

Esclarecido o fato de que não são instâncias congeláveis que se repetirão no


automatismo, temos de qualquer modo, relações que se fundam com maior ou menor
compromisso de desprendimento de si em direção ao outro e vão, portanto, estar mais
ou menos implicadas no paradoxo da objetividade × subjetividade. E Buber coloca a
relação terapêutica como a mais paradoxal de todas por estar no caminho do meio. Já
vimos que a relação professor-aluno se aproxima desse meio, e, portanto, esbarra neste
paradoxo. Poderíamos acrescentar muitas outras relações que envolvem um objetivo,
mas nem por isso são desprovidas de afeto e interesse sincero para além dos serviços
prestados. Mas nenhuma dessas relações nasce, cresce e faz morada 'no entre' a
objetividade e a subjetividade, ou em outras palavras, vive integralmente em cima deste
paradoxo como a relação terapêutica. É inegável que há um serviço a ser prestado e sua
contrapartida financeira. Mas onde está o conteúdo a ser ensinado como tem o
professor, o remédio a ser ministrado como faz o médico, o refrigerante a ser entregue?
No nosso caso, a demanda não é clara, definida e uniforme, de modo que possamos
responder objetivamente se temos ou não temos para dar. E aqui o termo 'paradoxo' se
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mostra muito pertinente, pois um professor que não sabe o conteúdo que vai ensinar, ou
uma birosca com propaganda da Coca-cola que não vende refrigerantes, não podem ser
entendidos como paradoxo. São antes uma contradição, uma enganação, uma mentira.
Mas não é o nosso caso. Nós temos que aceitar a metáfora do 'curador ferido', do
contrário, não daremos um passo sequer, pois temos que admitir que muito além de
objetividades, nosso instrumento é nosso ser inteiro, e nos entregamos nessa relação
como humanos que somos, com nossos pontos cegos, nossas próprias feridas abertas e
fechadas, dificuldades e habilidades relacionais e, sobretudo, não temos controle da
demanda do lado de lá! Se forçássemos a barra para nos comparar a um vendedor,
seríamos um vendedor que não sabe se pedirão refrigerante ou um coelho rosa. E seria
igualmente inadequado nos compararmos aos amantes, apesar de termos o objetivo
claro de adentrar o mar aberto de nosso cliente – porém de outra forma. Nós nos
formamos, fazemos supervisão, especialização, lemos incontáveis livros, nos
preparamos, temos subsídios embasados em séculos de entendimento sobre o ser
humano em geral, sobre as disfunções e psicopatologias, pensamos 'cientificamente' até
onde a ciência é capaz de nos dar as mãos, mas na hora, somos lançados na natureza dos
encontros. E quando falo 'natureza dos encontros', temos aí uma incógnita pois essa
natureza é pura abertura e será preenchida de presenças em um tempo específico, com
disposições específicas "insimuláveis". Não há estudo de caso que resolva cabalmente
minha vida naquele momento. E nesse mundo real dos encontros, terei que usar toda a
flexibilidade existencial de meu espírito para manter o setting na configuração que se
espera para essa relação (não virar amigo, carrasco, conselheiro, amante ou paciente de
meu paciente) e ao mesmo tempo, a despeito do distanciamento crítico e awareness do
todo da relação que conduzo, não conduzir, exatamente como o faz aquele que carrega
um roteiro pré-estabelecido. Como denominou Buber, o terapeuta deve caminhar pela
'vereda estreita' entre a objetividade e a subjetividade, em que há suporte, mas nenhuma
segurança garantida. Conduzir, interferir e ao mesmo tempo deixar-se levar e ser
afetado pelo outro. E nessas considerações, vemos que, além de profundamente
paradoxal nos âmbitos da objetividade e da subjetividade, nossa matéria-prima é a
própria relação.

Numa perspectiva dialógica, existe o entendimento de que a relação é a base


última da nossa existência, e que é justamente nos fios inter-humanos dessas relações
que tecemos nossa individualidade. É na fricção do EU com o NÃO-EU, no 'entre' das
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fronteiras de contato que posso apreender quem sou. Estamos sempre buscando o ponto
de equilíbrio entre nossa separação e conexão com o outro. E vamos, no trabalho
terapêutico, encontrar pessoas cujos contatos estão interrompidos ou se dão de forma
insatisfatória, muitas vezes com concepções de si mesmas e do mundo 'vencidas' e sem
validade atual para vida presente daquele paciente. O ser humano, ao contrário dos
outros animais, se torna humano na relação com os outros de sua espécie, e neste
processo de individuação, vai sentindo necessidade de confirmação pelo outro do que se
é. Hycner chega a afirmar em seu livro De Pessoa a Pessoa que "a base subjacente da
maior parte da psicopatologia não-organicista é a falta de confirmação que todos
sofremos no esforço de nos tornarmos seres humanos". E que Buber poeticamente
arremata com a belíssima frase "é de um homem para o outro que é passado o pão
celestial de ser o seu próprio ser"

Vamos encontrar em nosso consultório pessoas sem esta confirmação


fundamental, muitas vezes enxergada ao longo da sua vida em sequências de relações
EU-ISSO, e será necessário estabelecer ali, entre terapeuta e paciente, condições para
que se possa olhar o paciente como um todo em sua alteridade única, com o olhar
cuidadoso da inclusão, passando 'para o outro lado' sem perder o próprio centro,
estabelecendo, sempre que possível, momentos de legítima e transformadora relação
EU-TU.

É por razões como essas que, ao contrário de outras abordagens, entende-se que o
que chamamos de 'cura' está na própria relação, no 'rastrear' no fluxo da 'dança dialógica
curativa' o entre que se estabelece entre nós, e não nas descobertas que faço sobre o
funcionamento da psique do meu cliente. Entende-se que no 'entre' está o objetivo
maior, pois ali então também os maiores problemas da vida. A própria relação é o
objetivo último e a fonte da cura. Como diz Sandra Salomão, "é nas relações que a
gente adoece e é nas relações que a gente se cura"

E se formos estabelecer uma livre relação entre as hierarquias quebradas nos


Viewpoints e na Gestalt-Terapia, diria que o texto está sendo retirado do centro, em
ambos os casos. Nos Viewpoints, o texto enquanto falas e rubricas, e na Gestalt-
Terapia, o texto como teoria. Em ambos os casos, estamos destituindo do poder de
estruturador geral do fenômeno, um autor que não se encontra no campo. E entregando
29

ao campo e seus participantes, onde se inclui o terapeuta, o motor dos acontecimentos e


significados.

A característica central na orientação dialógica da Gestalt-terapia é


a de que , para conduzir um diálogo, os parceiros em interação devem
estar prontos para mudar e serem mudados. Para fazer com que isso
seja possível, os psicoterapeutas precisam ser altamente treinados
para fazer parte da interação, para ser capaz de se aproximar do
limite de contato e, ao mesmo tempo, estar principalmente a serviço
das necessidades de desenvolvimento do cliente – estar lá
autenticamente como uma pessoa atenciosa que permite a exploração
e a investigação, em vez de ser uma pessoa no papel de “aquele que
sabe mais”. (Manual de teoria, pesquisa e prática em Gestalt-Terapia
– Phillip Brownell – organizador. Cap.9 – Relação dialógica p.227 –
Gary Iontef e Talia Levine Bar-Yoseph)

A citação acima esclarece mais um ponto importante: algo que a princípio pode
parecer uma faculdade espontânea e natural, pode e deve ser treinada. É claro que a
capacidade de se afetar e estabelecer reações dialógicas em bases não hierárquicas, é
uma capacidade do ser humano e vamos encontrar muito bem desenvolvida em algumas
pessoas, mesmo sem treinamento. No entanto, para todos aqueles que têm nestas
capacidades suas ferramentas e tem intenção de aprimorá-las, o treinamento existe e é
sempre bem-vindo. O treinamento também é salientado por Anne Bogart quando cita
como um dos problemas do Teatro Contemporâneo, a ‘falta de treinamento contínuo do
ator’. Comenta Bogart e Landau: “o treinamento forja relacionamentos, desenvolve
habilidades e oferece uma oportunidade para o crescimento contínuo” (BOGART e
LANDAU, p.35)

3.6 – O Ethos do agora:

Como vimos no item 2.3.1, o trabalho no aqui e agora é uma das mudanças mais
radicais de perspectivas que caracteriza os Viewpoints. É justamente o abandono do
texto e a entrada no aqui e agora radical do jogo com os elementos da cena que vamos
encontrar sua força. E assim é também na Gestalt-Terapia.

Quando pensamos no foco que tanto se deu ao passado na psicanálise, a primeira


consideração importante sobre o aqui e agora, tem caráter fenomenológico e pode ser
apreendido com uma pergunta simples: 'de onde você lembra seu passado?' O ato de
pensamento sempre se dá no presente, embora possa discorrer sobre um 'mote' lançado
no pretérito. Para nós, Gestalt terapeutas, importará mais a glosa do que o mote. Ou, em
outras palavras, como bem salientou Sartre, 'não importa o que a vida fez de nós, mas o
30

que faremos com o que a vida fez de nós'. Essa mudança de perspectiva não é um
detalhe. Ela representa na verdade uma mudança de perspectiva com implicações
enormes na visão de ser humano e consequentemente em toda a prática clínica. Traz
novo objetivo e método, diferente do método regressivo freudiano, que buscava a
elaboração de traumas da infância e propunha um mergulho no passado, como se o
terapeuta fosse um escafandrista atrás de traumas e situações que só poderiam ser
acessadas através do mergulho no passado. Não seria esse escafandrista um correlato na
psicologia, daquele ator que se colocava como ‘cavalo’ buscando incorporar um
personagem, e que também, a seu modo, entregava o aqui e agora radical do encontro,
por uma outra qualidade de presença, regida por parâmetros estabelecidos previamente?

Freud buscou acesso ao inconsciente inicialmente através da hipnose e depois


associação livre e sonhos. A Gestalt parte de uma premissa completamente diferente:
na GT, o propósito é colocar a vida em andamento. Entende-se a vida como processo,
como fluxo. Somos seres de ação, e por isso privilegiamos a experiência no aqui e
agora. Entendemos a GT como uma terapia do devir.

Perls entende a subjetividade no intervalo entre percepção e ação (aparelho do


arco reflexo, ou sensório-motor); percepção como parte sensorial e ação como a parte
motora. No intervalo entre a parte sensorial e motora existe a subjetividade/consciência.
E quando nos ocupamos deste intervalo entre o perceber e agir acontece a awareness,
ponto fundamental de todo o processo. E a questão fundamental é que só é possível
chegar à awareness, no aqui e agora, como um aprendizado de viver no presente e
apreendendo o que se passa. Aprender é pensar; escolher é pensar; awareness é pensar.

Estes princípios terão grandes implicações na postura do terapeuta em GT e,


como vimos, também nos jogos de Viewpoints: na Gestalt-terapia a posição do analista
e do analisando também é muito diferente do que acontece na psicanálise. Na
psicanálise, existe o distanciamento do terapeuta e as intervenções só acontecem
quando, no entendimento do psicanalista, o inconsciente se manifesta. Já na gestalt-
terapia, o terapeuta se coloca como instrumento. Não há o distanciamento e as
intervenções são voltadas para os processos de aprendizado que acontecem a cada
sessão, os acontecimentos. Exige verdade e presença do terapeuta. Na psicanálise, a
relação transferencial se torna uma relação de poder. A transferência positiva (amor) ou
negativa (ódio) pode ser aprisionante. Na GT, o processo é de mão-dupla, pois o
31

terapeuta não detém conhecimento privilegiado sobre o cliente, se relaciona de igual


para igual em um processo dialógico, como já vimos. Na Gestalt-Terapia, a abertura tem
que se dar dos dois lados - terapeuta e cliente. Cada encontro é um encontro. Tudo o que
aprendemos, aprendemos através de encontros.

3.7 – Awareness
Awareness é um problema central na GT. Awareness é como como aquela
consciência de si, capaz de modificar comportamentos. Isso não é possível sem perceber
o que está automatizado. Tomar decisões exige capacidade de fazer escolhas e muitas
vezes, contrariar velhos hábitos. Queremos, através da awareness, restaurar a
capacidade que todos temos, mas muitos não exercem, de fazer escolhas próprias. E
aceitar perdas, está necessariamente neste pacote, já que os velhos hábitos nos garantem
certa segurança e memória, familiaridade. Aqui vale uma observação: é preciso ter
respeito com as possibilidades do cliente. A insistência no abandono dos hábitos pode
ser algo muito violento. O abandono dos hábitos e da memória requer um 'ato de fé'. É
necessário um ato de fé para 'descartar o chiclete sem gosto': pode-se perder tudo, ou
pode-se encontrar alimento mais farto. E para um cliente com liberdade muito atrofiada,
aquele hábito, ainda que insuficiente, pode ser o que é possível no momento. Neste
ponto, não é diferente de qualquer outro sintoma em GT: entende-se que há um
ajustamento criativo possível, ainda que não satisfatório.
Mas, mesmo que estejamos vivendo no automatismo, SEMPRE fizemos uma
escolha lá atrás, ainda que não tenhamos consciência disso. Escolher não escolher, já é
uma escolha. Muitas vezes não nos damos conta, mas não escolhemos apenas entre
objetos, mas modos de vida. E esse dar-se conta é o que chamamos de awareness.
Quando nossas escolhas estão pautadas no desejo do outro, vivemos uma vida
inautêntica. A inautenticidade consiste na incapacidade de fazer escolhas - essas
escolhas são feitas pelo mundo, pelos outros. Mas, temos a angústia como sentimento
norteador da 'propriedade' de nossas escolhas, clamando sempre pelo que nos é mais
próprio. Tudo o que depende de mim, posso escolher. Mas não escolho a ação do outro.
A escolha modifica meus hábitos e estes, demandarão novas escolhas.
Outro ponto importante para falarmos de awareness, é o aparelho do arco reflexo,
onde, entre o sensório e o motor, temos o intervalo de indeterminação. Awareness é, em
última instância, a tomada de consciência do Intervalo de Indeterminação. Mas não é
algo simples, pois existe muito assunto entre o perceber e o agir! Temos a dimensão da
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subjetividade que chamamos de memória, onde rememora-se acontecimentos vividos


(evocamos o tempo todo a memória para avaliar o presente); temos toda a base material
da subjetividade que chamamos de sensação (sensação térmica, de luminosidade, etc.);
temos os sentimentos (o sentimento está no ponto de articulação entre o objetivo e o
subjetivo e evoca memórias relacionadas); temos os afetos, os desejos.
Segundo Bergson, o passado, paradoxalmente, não passa. O que passa é o
presente. O modo linear - passado - presente - futuro, não leva em conta a subjetividade.
Passado não é o que 'deixou de ser'. A função do passado é, justamente, conservar o
presente que passa. Do mesmo modo que nossa subjetividade interfere em nossa
percepção do presente, também interfere nas nossas percepções do passado. Portanto,
muita coisa no intervalo de indeterminação, seja de aspecto 'material' na relação com
objetos presentes, ou aspecto temporal (elaboração do passado), tem que ser elucidada
pela awareness para libertar a esfera do agir. Portanto, conscientização do
comportamento, sentimentos, sensações, rememorações, avaliações, nossa dimensão
histórica, preconceitos, desejo e valores, tudo isso faz parte da awareness. E não será
possível qualquer movimento pela negação. Não devemos negar nossos sentimentos
indesejáveis - inveja, ódio, tristeza, ciúme, desejos - mas elaborá-los. Os sentimentos
possuem uma força que a consciência só consegue atravessar quando os aceita. Trata-se
de uma força que só pode ser modificada com outra força. Por isso, é tão necessário a
awareness e sua cartografia sentimental. Quando não há awareness, vamos encontrar
problemas entre elementos percebidos e rememorados, entre sentimentos e ações, entre
fala e ato. É só através da awareness que vamos conquistar a integração do ser. E temos
neste termo a chave que pode ser um resumo do que pretende, em última instância, a
Gestalt-Terapia e, ao mesmo tempo, os trabalhos em Viewpoints. No caso dos
Viewpoints, busca-se Awareness dos elementos da cena. Apreensão através do Soft-
Focus e Escuta Extraordinária de tudo o que há; no caso da Gestalt-Terapia, Awareness
como inventário de tudo o que há, não mais na cena, mas no mundo sentimental da
pessoas em sua relação com o mundo. Consciência do que precisa, do que sente falta, do
que efetivamente busca e como o faz.
33

4 – Proposta Prática:
De início, imaginei estruturar uma proposta prática que deveria ser algo pensado
exclusivamente para este trabalho. A criação de uma série de dinâmicas e exercícios
baseadas na técnica dos Viewpoints, que de algum modo trouxessem mais de perto a
realidade da psicologia, para ser aplicada a um grupo de Gestalt-Terapeutas. O que
significava isso, não sabia dizer. Mas acreditava que a própria feitura do trabalho me
traria pistas. Mas no decorrer da escrita, percebi que os princípios que nos interessam
enquanto Gestalt-Terapeutas, estão plenos no simples jogo como estão propostos por
Bogart e Landau. Compreendendo a dinâmica que elas propõem em O Livro dos
Viewpoints, a vontade de mudar era nenhuma. Estava tudo ali. E não tive como não
pensar se não estava eu, no afã de fazer, propor, assinar autoria e entregar resultado,
acabando por tirar o foco do que importa – o jogo. É claro que se pode, por exemplo,
como sugestão de gesto, propor ‘gesto cliente atrasado’, ou qualquer outro relacionado à
realidade do terapeuta, mas, como algo secundário. Cada um que salpique a gosto seu
tempero. Mas aqui, o que nos importa, é a imersão no jogo dos Viewpoints pelos
princípios que treinam e as reflexões que alargam. E isso Bogart e Landau o fizeram
com grande êxito como resultado de anos de pesquisas que culminaram no livro. E
também não faz sentido aqui, refazer a proposta já feita por Bogart e Landau. Por mais
detalhado que eu fosse, seria redundante uma vez que a proposta delas se encontra
pronta e inteiriça no livro dos Viewpoints. Para um grupo de terapeutas que queira
trabalhar na prática, sugiro a fonte original.
O que nos interessa aqui verdadeiramente, é aproveitar os exemplos práticos nos
esclarecimentos que trazem quando saímos da descrição de conceitos e passamos para a
prática. Bogart e Landau já alertavam para o fato de que os princípios apresentados nos
exercícios de Viewpoints, “são mais bem compreendidos através do fazer do que do
descrever” (ANNE e Bogart, 2005, p.40). E citava a frase de Ludwig Wittgenstein
como conselho: “Se você não pode dizer, aponte” (p.40). Portanto, ainda que a ideia de
uma proposta prática estruturada de aplicação dos Viewpoints para um grupo de
Gestalt-Terapeutas tenha sido abandonada, acredito que mesmo a simples narrativa das
propostas práticas, lance luzes sobre como funcionam, na prática, o trabalho com os
Viewpoints.
Proponho, portanto, neste capítulo, seguir parte do caminho de prática sugerido
por Anne Bogart e Tina Landau no trabalho O Livro dos Viewpoints para esclarecer
pontos da técnicas e tecer relações com a Gestalt-Terapia. Elas propõem, através de
34

esclarecimentos e vários exercícios, uma imersão gradativa dos Viewpoints. Vão


lançando luz, um a um, em exercícios sequenciados que conduzem os participantes a
experienciar na prática cada um dos Viewpoints de forma o mais individualizada
possível e também em combinações.

4.1 – Resumo da proposta de trabalho de Bogart e Landau e suas relações com a


Gestalt-Terapia
Pretendo neste capítulo, discutir alguns exercícios e pensar de que forma as
habilidades trabalhadas nos exercícios, podem facilitar e energizar a fronteira de contato
do Gestalt-Terapeuta e aumentar sua percepção das potencialidades do campo.

4.1.2 – Considerações iniciais e exercícios preliminares:


Antes de apresentar cada Viewpoint, as autoras propõem algumas considerações
acerca do local, que deve estar limpo e desobstruído. Sugere piso de madeira e indica
que as pessoas devem estar preferencialmente descalças e sem meia. Fazem ainda uma
observação especial acerca da necessária pontualidade. Diz Anne e Bogart: “Começar e
terminar as sessões de trabalho com pontualidade mostra respeito mútuo, e acrescenta
um senso de ordem que, paradoxalmente, permite mais complexidade e entrega no
tempo alocado (p.39)”
Já nestas considerações prévias, quando falam dos cuidados com o ambiente de
trabalho, se antevê cuidado com as condições para que certo evento se dê. Evento que
não é especial pelos elementos mágicos que contém, mas pelo trato da atenção e do
alargamento da awareness que buscaremos neste espaço e tempo. E me parece
pertinente antecipar esta postura de atenção para a preparação do set. No caso do teatro,
o palco para início dos trabalhos em Viewpoint; no caso da Gestalt, o espaço onde se
dará o início de uma sessão de terapia. Nem um texto genial de um lado, nem uma
teoria milagrosa do outro, salvarão minha pessoa no set. Será um espaço forjado no jogo
com as coisas que são e estão ali. E a preparação do espaço para essa extra cotidiana
atenção acerca dos elementos cotidianos já sugere certa identidade de propósitos quando
se fala de Viewpoints e Gestalt. Na Gestalt-terapia, é muito importante cuidar da
entrada e da saída deste espaço de relação – os horários. Isso tem a ver com respeito e
reconhecimento da qualidade deste espaço di jeito que consideraram Bogart e Landau..
É importante reservar espaço de certa privacidade e que possibilite a concentração. As
obstruções e manipulações no espaço terão implicação no fenômeno.
35

Depois do primeiro exercício dedicado à preparação do corpo para as atividades


através de um alongamento guiado passo a passo, já propõem o que será a postura base,
sempre, em todos os exercícios: o Soft Focus. Esta postura, como já foi dito neste
trabalho, propõe um estado de relaxamento ocular onde se pretende abrir a amplitude de
alcance do olhar periférico e não direcionar o foco em algumas figuras principais – aqui
tudo é fundo. Uma postura física e psicológica de deixar-se afetar mais do que induzir o
foco. Associado à escuta extraordinária, resultam em uma pessoa mais capaz de captar
os estímulos do meio – aprofundando o olhar físico, e aumentando as possibilidades de
percepção e interação, para além da visão – “escutar com o corpo inteiro” (ANNE e
Bogart, 2005, p.51)
Para a técnica dos Viewpoints, faz todo sentido pensar separadamente a
ampliação da recepção pela visão e depois debruçar a atenção à audição formulando
dois conceitos: “Soft-Focus” e “Escuta Extraordinária”. Mas para o que nos interessa
em Gestalt-Terapia, tanto a escuta quanto o olhar viram uma metáfora para uma
apreensão mais alargada, mais ‘passiva’ na sua intenção de se deixar afetar sem impor
expectativas prévias. Postura receptiva, que inclui escuta e olhar, mas não se esgota
neles. Como vimos anteriormente, esse olhar se estende a tudo o que, do campo,
reverbera em mim: seja acusticamente, visualmente, teoricamente, emocional ou
espiritualmente. Se fosse arriscar um termo correlato para apreensão alargada do
terapeuta, diria algo como “Apreensão extraordinária”.
Anne e Bogart concluem os exercícios preliminares salientando dois aspectos
importantes que são trabalhados: o primeiro, é a contínua atentividade aos outros, que
tem em seu primeiro desafio, a possibilidade de se trabalhar em uníssono “Uma vez que
você estiver habilitado a se mover verdadeiramente em uníssono com os outros, pode
começar a trabalhar com conceitos mais avançados de contraponto, justaposição e
contraste (p.52).
Uníssono é definitivamente um termo interessante como uma metáfora para a
apreensão que se busca do outro numa relação dialógica. Sem entender uma
despropositada e impossível tarefa de ‘ser’ o outro, ou de deixar nossos aprendizados
absolutamente neutralizados, ainda assim há como já foi comentado, muito a se fazer no
preparo para apreender o outro através de um estado de ‘contínua atentividade’. E me
parece que este uníssono em terapia é o que vamos acabar nomeando de ‘vínculo’.
Aquela base de confiança, bem querer e respeito entre duas pessoas, sobre a qual se
erguerão movimentos mais complexos de contraste, contraponto e justaposição. Só um
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vínculo poderoso como o de mãe e filho, por exemplo, suporta sem arrebentar as fibras
da relação, os contrastes de uma surra física e um “dengo de boa noite”. E é este
vínculo, informação de amor e bem querer que paira soberana em camada superior a
todo desprazer, que bota as almas em uníssono no jogo das relações podendo se valer de
uma ‘elasticidade’ bem lubrificada e potente que garantirá resistência nas alturas e
precipícios das emoções. O mesmo princípio se dá em uma relação terapêutica: o
vínculo, que aqui relaciono com este ‘uníssono’ dos Viewpoints, é o que garantirá a
permissividade e autorização por parte do meu cliente, para minha entrada no seu
mundo íntimo e pessoal, incluindo aí a possibilidade de mexer em suas feridas, e
angústias. Relações íntimas (EU-TU) parecem carregar este poder de explorar as
extremidades do prazer e do desprazer, pela informação tácita de amor e segurança na
qual se baseiam.
Um segundo aspecto que Bogart e Landau levantam, é a possibilidade de
trabalhar dois polos de experiência e energia que precisam ser calibrados: feedfoward e
feedback. O primeiro é a energia dinâmica externa, que antecipa o agir, e o segundo, a
sensação que alguém recebe como resultado de uma ação. “O teatro se torna um espaço
de aguçada vivência tanto em relação à ação que aconteceu, como àquilo que
acontecerá em seguida” (ANNE e Bogart, 2005, p.53)
Este reconhecimento de situações externas que antecipam nossa ação são
frequentes e necessárias em terapia – faz parte da awareness, o conhecimento dos
sentimentos que efetivamente movem nossas ações. Que ‘traçantes’ de desejos e
necessidades me atravessam sem que eu me dê conta? Assim como o feedback de como
verdadeiramente está nosso sentimento diante das respostas do mundo. Esse
treinamento de ver, ser visto, perceber-se, perceber o outro, é precioso para qualquer
pessoa e muito particularmente, para quem tem nessas percepções, seu instrumento de
trabalho.
Feitas as considerações iniciais e os 8 exercícios preliminares que trabalharão
basicamente o uníssono grupal, as autoras começam a apresentar os 9 Viewpoints
separadamente, um por um de forma gradativa e cumulativa. Para cada Viewpoint
apresentado, propõe alguns exercícios. Frisa que é importante avaliar se o Viewpoint
anterior está bem absorvido (leia-se: dentro de nosso espectro de atenção e
entendimento) antes de inserir um novo. Iniciarei agora um passeio por alguns
Viewpoints e o que me fazem refletir sobre o trabalho do terapeuta.
37

4.1.3 Panorama dos Viewpoints


No andamento, “o foco não está no que é a ação, mas, no quão rápida ou
lentamente ela é executada” (p.56). Anne e Bogart propõem 3 exercícios para se
trabalhar andamento. A título de exemplo, exponho o primeiro e mais simples: para
começar, escolha uma ação com início e fim claros; repita várias vezes, certificando-se
de que a forma é exata e reproduzível. Depois, execute a ação em um andamento médio,
depois rápido e depois, lento.
As autoras chamam a atenção para o fato de como o sentido de uma ação pode
ser modificado quando alterado o seu andamento. A extensão de um braço em direção a
um corpo, por exemplo, se executado lentamente pode propor a busca de um carinho; se
executado rápido pode sugerir agressão.
Quando pensamos em Andamento, temos uma relação direta com a realidade do setting
terapêutico. Entendendo qualquer intervenção do terapeuta como uma ação (mesmo que
seja uma ação verbal), vamos colher muitos benefícios se atentarmos para as
possibilidades de jogo com esta variável. Será que determinadas intervenções não
surtem mais efeito se ditas de forma lenta e espaçada? Quando se achegar devagar e
pausadamente e quando jogar uma impressão no campo, de supetão e sem meias
palavras? E aqui já adiantei assunto de duração: se a fala deve ser espaçada, quão
espaçada? Este espaçamento em seu grau adiantado de duração pode virar um grande
silêncio. Qual será a sustentação mais produtiva desse silêncio? Silêncio muitas vezes
para o cliente é puro constrangimento, mas para o terapeuta, tanto o constrangimento
quanto a dificuldade do cliente se desvencilhar desta angustia com seus recursos, são
material de trabalho. E trabalhar esses parâmetros na realidade cênica parece um grande
disparador de ideias e inspirações.
Segundo Bogart e Landau, , (...)“Duração pede-lhe que esteja atento ao registro
de quanto tempo dura esta ação e/ou andamento” (p.60). Como prática para exercitar a
Duração, propõem que o grupo desfaça o círculo para trabalhar em uma nova
Topografia – uma grade. Pedem que imaginem linhas imaginárias cortando o chão da
sala em linhas horizontais e verticais se atravessando em ângulos de 90º, formando um
imenso quadriculado cobrindo todo o chão da sala. Pedem que se movimentem em uma
grade executando uma ação que possa permanecer constante para que o foco possa se
deter primariamente na duração. Chamam a atenção, tanto no andamento como na
duração, de uma tendência de ‘vivermos em uma zona média’(p.61). Pedem que tornem
consciente este fato e permaneçam em andamentos fora do limite de conforto. Aqui nos
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importa não apenas o “quão rápido você pode ir, mas por quanto tempo pode
permanecer em cada velocidade”.
Já a resposta cinestésica “é sua reação física espontânea ao movimento que está
fora de você (...) ao focar na Resposta Cinestésica, você estará trabalhando no
‘quando’, em vez de no quão rápido (andamento) ou por quanto tempo você se move
(duração)” (p.63). Anne e Bogart chamam a atenção para o fato de que aqui, pela
primeira vez, a ideia é que não tenhamos exatamente ‘escolha’. Os alunos estavam
livres para propor seus andamentos e durações nos exercícios anteriores. Mas aqui, a
ideia é reagir compulsoriamente! “Não cabe mais a você escolher o que está certo ou
errado, o que é bom ou mau – mas, sim, fazer uso de tudo. Se alguém passa correndo
por você – use isso” (p.63). Esclarecem as autoras que é exatamente neste ponto que se
retira do sujeito o ônus de ter que ser inventivo, criativo, interessante, etc. A ideia é que,
se o sujeito está aberto aos estímulos do mundo através do Soft-Focus , basta reagir a
ele.
Abriria um parêntese especial para a importância para o terapeuta do trabalho
com Resposta Cinestésica, pelo mesmo motivo que também ganhou destaque na
descrição de Bogart e Landau. Porque é precisamente na postura de crença no campo,
de que a partir de uma postura atenta e responsiva, é confiável e lícito contar com o
campo, que também o terapeuta se liberta da necessidade de ‘fazer coisas’, performar.
Acreditar que não precisa estar munido de uma alegoria premeditada e genial de
recursos prontos, falas e conduções saturadas de expectativas, libera o terapeuta para
estar diante do seu cliente e apreendê-lo a partir do que se mostra, podendo responder à
‘respiração’ viva da relação como propõe a relação dialógica. E ainda, numa implicação
bem direta e física, me parece que um terapeuta treinado e disponível para reações
cinestésicas, pode gerar intervenções físicas de grande espontaneidade e impacto. É
parte da prática em Gestalt-Terapia, compartilhar fantasias que se tem a partir de como
reverberam em nós, os relatos do paciente. E esse compartilhamento pode se dar através
de reações diversas e não apenas exposição oral. Reações faciais, corporais ou verbais
espontâneas, diretas e reativas, me parece ser algo aperfeiçoado no treino prático e nas
reflexões sobre Reações Cinestésicas.

“Deixe o quando você se move (Resposta Cinestésica), o como você se move


(Andamento) e o por quanto tempo você se move (Duração), serem determinados pela
Repetição. Primeiro, propõem que os atores repitam padrões vindos de outras pessoas.
39

Pode ser o caminho, a direção, velocidade, etc. Pedem que não se fixe em uma pessoa,
mas possa alternar entre pessoas que estão mais longe, ou mais perto. Indicam ainda a
possibilidade de repetir certo aspecto de uma pessoa e outro aspecto, de outra:
“repetição do padrão de postura no chão de uma pessoa e o Andamento de
outra”(p.65). E a todo tempo reitera a necessidade do Soft-Focus que nos permite
repetir padrões não apenas daqueles que estão à nossa frente, mas exercitar uma
consciência de 360 graus.
As autoras começam chamando a atenção para o fato de já estarem, desde o início,
trabalhando com topografia, sendo esta toda delimitação física ou imaginária do
espaço, não há como não se trabalhar em um espaço, seja ele qual for. A própria
proposta inicial de se pensar uma grade no chão, é um trabalho com topografia.
Propõem como exercício deste Viewpoint que transforme a topografia imaginada da
grade por círculos e outros padrões. Propõem também que imaginem seus pés como
pincéis embebidos em tinta vermelha e pintem padrões no chão. E depois manipulem os
tamanhos destes padrões.
As considerações iniciais acerca do ambiente de trabalho e preparação do Set,
eram de natureza topográfica. No caso, a ideia era pensar o nespaço ‘antes’ do inicio do
trabalho. E aqui, já como um Viewpoint a ser trabalhado, aspectos do set terapêutico
serão utilizados como fontes e recurso do campo.
Vamos encontrar benefícios para o trabalho em terapia de se treinar um olhar
para as Repetições, vejo ganhos no modo de se pensar o espaço terapêutico à luz da
Arquitetura, questões de Forma vão sugerir ideias para trabalho do terapeuta e
merecem atenção. Mas, para finalizar, coloco luz em mais dois Viewpoints por suas
relações mais instigantes com o trabalho do terapeuta: Gesto e Relação Espacial.
A Relação Espacial coloca o foco no espaço que há entre as pessoas e objetos no
espaço. Bogart e Landau chamam a atenção novamente para certa tendência de nos
aproximarmos de uma ‘media’ confortável. E quando se trata de Relação Espacial, esse
princípio se mostra bastante vivo, pois trazemos vários condicionamentos sociais acerca
das aproximações. Aproximações com espaço menor do que 1 metro, tendem a criar por
si só, “dinâmica, evento, relacionamento (...) e algo começa a acontecer no espaço
quando lhes prestamos atenção”(p.65). Propõem então, que os atores tomem decisões
por si próprios acerca de seus movimentos, porém, mantendo aguda percepção do
espaço. E pedem que cuidem para que suas decisões sejam baseadas em onde as outras
pessoas estão. Incentivam a provocar extremos de distanciamento e aproximação.
40

Temos na Relação Espacial, um parâmetro que nos faz tecer algumas


considerações com o trabalho em psicoterapia. As fronteiras de contato, suas
potencialidades e disfunções, vão de modo direto ou indireto, falar do quanto ‘entra em
mim’ coisas vindas do campo, sejam elas ideias, estados de humor ou alimentos.
Frequentemente vamos encontrar vítimas de relações abusivas com dificuldade de
aproximações físicas. Um retraimento em situação de invasão, é sinal de saúde – é o
filtro possível de males que vem de fora. Mas frequentemente, certo padrão de
emergência lançado pelo indivíduo com os recursos que tinha na hora, vira depois um
padrão. O que era um ajuste criativo vira uma disfunção de contato. Brincar, portanto de
debruçar a consciência sobre a proximidade dos corpos, da solidão do afastamento à
mistura do campo vibracional, parece um exercício de coletas de impressões sobre a
dinâmica das minhas fronteiras e a dinâmica das fronteiras dos outros (que na sessão
será meu cliente), e como isso reverbera no campo.
Segundo as autoras, Gestos podem ser comportamentais ou expressivos. “Gestos
comportamentais são aqueles que pertencem à vida cotidiana, que são parte do
comportamento humano como nós o conhecemos e observamos (...) gestos expressivos
são aqueles que pertencem ao mundo interior mais do que ao mundo exterior” (p.70).
Como no livro a proposta de apresentação do gesto se segue à da forma, Bogart e
Landau propõem que das investigações sobre forma, se provoque o grupo a pensar que
determinada Forma por vezes pode virar um Gesto Expressivo. A diferença é tão sutil
quanto importante: no gesto, estamos trabalhando com ‘algo por trás do movimento (um
pensamento, um sentimento, uma ideia); e temos começo, meio e fim para o movimento.
Trabalha o Gesto Expressivo pedindo ao grupo que explore a expressão de ideias e
sentimentos, usando o corpo todo, incluindo partes negligenciadas ou insuspeitas. Pede
consciência do grupo sobre quais partes do corpo tende a confiar e aquelas que ignoram.
Pede atenção ainda para padrões de hábitos repetidos e territórios não explorados.
Argumenta que o jogo de Viewpoints serve como um excelente teste pessoal para se
sondar forças e fraquezas. A já comentada awareness.
Para trabalhar o Gesto Comportamental, pedem para a turma que façam um
gesto expressivo se transformar em comportamental. “Isso significa tirar algo
relativamente abstrato, que você normalmente não vê ninguém fazer, e transformá-lo
em algo relativamente concreto, que você pode ver alguém fazendo na rua, em casa ou
no escritório” (p.71). Na sequência, propõem que se vasculhem uma série de variações
de tipos identificáveis de gestos comportamentais que expressem ideias ou situações,
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como corpo e saúde, período do tempo e culturas, idiossincrasias (tiques e outros


hábitos pessoais), gênero, conotação (fale ‘vai se ferrar’ gestualmente).
Não tematizado necessariamente como ‘gesto’, os movimentos que o cliente faz
(ou não faz), a qualidade dos movimentos (fluidos ou rígidos), o que contém de ideia, a
que necessidade serve, tudo isso sempre foi de interesse direto da Gestalt-Terapia como
já comentei. Então, a inserção deste parâmetro nos jogos, exercita a autoconsciência
gestual do terapeuta em relação a ele mesmo e ao cliente. Pensar nos gestos pode ser
ainda uma excelente fonte de inspiração para se pensar experimentos. Pedir que o
cliente crie um gesto para determinada fala, pedir que encontre o sentimento de
determinado gesto. Quando as autoras citam as Idiossincrasias, temos aí uma fonte farta
de material de apreensão em terapia – (...) tiques, forma de se coçar, aprumar a cabeça,
morder os lábios, franzir o nariz, bater o pé, uma forma estranha de dobrar o cotovelo”
(p.72)
Para finalizar, pede que trabalhem em ‘Open Viewpoints’, incluindo todos
(Arquitetura, Forma, Gesto, Topografia, Andamento, Resposta Cinestésica, Repetição,
Duração e Relação Espacial), lembrando-os caso haja algum que pareça cair no
esquecimento. Este espaço de Open Viewpoints deve durar em torno de 10 a 15
minutos. Pedem então que parem. “Solicite que parem onde estão, que respirem, que
fiquem atentos à energia em seu redor, que fiquem atentos aos Viewpoints, a sua
própria Re lação Espacial, Forma, etc. Diga-lhes: ‘Fechem os olhos. Fiquem atentos a
tudo que vocês sentirem pelo olfato, som e energia’. Faça-os reconhecer o quanto os
olhos são naturalmente dominantes e o quanto mais de informação há para ser
absorvida quando eles não mais se apoiam na visão. E diga-lhes que relaxem” (p.76)
Todas as propostas feitas neste capítulo, foram pensadas por Bogart e Landau,
para ser realizadas em apenas um encontro com possível intervalo no meio. Não se
espera que ao fim desta primeira experiência o trabalho esteja concluído, entendendo
aqui conclusão como a absorção eficiente de todas as ideias e liberdade no trato com
elas. Mas as autoras entendem que seja útil, antes do aprofundamento, expor no
primeiro encontro todos os Viewpoints para que os participantes tenham uma ideia geral
da técnica. Porém, na sequência, não só cada um dos 9 Viewpoints de base são
explorados individualmente e em combinações em muitos outros exercícios, como
novos parâmetros são colocados, como música e fala.
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5 – Conclusão:
Desde o início, as diferenças de ‘natureza’ entre uma exploração de
possibilidades no campo do teatro e no campo de uma sessão de terapia, me pareceram
muito claras. O ator não tem, como temos muitas vezes, um ser humano em estado de
sofrimento diante dele, necessitando de cuidados. Nós, terapeutas, não temos na
proposição estética, o fim último do nosso trabalho. A habilidade de um ator se colocar
em Soft Focus para os objetivos da cena, se assemelha em quê, àquela habilidade de
olhar ampliado exigida do Gestalt-Terapeuta nos objetivos do processo terapêutico?
Podemos dizer que ao relaxar o olho e ampliar o ângulo da visão física, estejamos
trabalhando a amplitude também do ‘olhar’? Em suma, poderia ser objetado: em que
medida é possível chegar, no setting terapêutico, reverberações das descobertas e
experiências angariadas nos treinamentos em Viewpoints como proposto acima? Me
parece que esta é a pergunta chave. E creio que o princípio que me faz crer que sim, que
tem efeito possível na atuação de um terapeuta o treinamento em Viewpoints, é porque
estamos trabalhando com princípios. Princípios para os quais se prepara o corpo para
que sejam cada vez mais disponíveis e capazes de expressá-los, mas princípios que vão
alimentar também a inteligência e a intuição ao debruçarmos nossa inteligência sobre
eles.
Me parece que a ampliação do olhar, o gosto pela curiosidade de quais outros
aspectos e ângulos temos para trabalhar, o hábito de questionar parâmetros, a liberdade
de fazê-lo, o costume de contar com o campo improvisado, a consciência cada vez
maior do corpo e pensamento, a memória do que é exatamente estar no aqui e agora em
estado de abertura porque já se experimentou este estado várias vezes. Tudo isso são
treinamentos de base, que enriquecem as habilidades da presença. E quando falo
presença, incluo qualquer habilidade física adquirida, mas também a amplitude de
insights e relações desta presença. O ator de Viewpoints é não apenas um corpo capaz,
mas um ser inteligente e as propostas estimulam esta inteligência. Ademais, por uma
questão de lógica simples, para uma proposta terapêutica que prevê o ser integral do
terapeuta em relação, tudo o que acrescente a este ser, acrescenta ao terapeuta. E não
estamos falando de qualquer coisa. Estamos falando, retomando o termo de Bogart e
Landau, de cinco ‘presentes’ valiosos que acredito ter podido demonstrar o porque e
como são entregues aos terapeutas no Jogo dos Viewpoints. São eles: ‘Entrega,
Possibilidade, Escolha e liberdade, Crescimento e Inteireza.
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E para concluir, reitero que a prática de Viewpoints me parece claramente um


grande benefício a qualquer pessoa. Mas, àqueles que precisam muito destes presentes,
torna-se um recurso ainda mais precioso.
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6 - Referências Bibliográficas:

RINALDI, M. – Teoria e Prática do Viewpoints – São Paulo – 2016 - Tese de


doutorado - Universidade de São Paulo - São Paulo

BOND, F. Coutinho - Os Viewpoints e seus múltiplos olhares: as pesquisas cênicas de


Mary Overlie, Anne Bogart e Christiane Jatahy – Rio de Janeiro – 2014 – Tese de
doutorado - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro.

NASCIMENTO, J. - O Corpo do Palco à Clínica: Uma Compreensão Relacional Entre


a Técnica do Viewpoints e a Gestalt-terapia – Rio de Janeiro – TCC Especialização em
Gestalt-Terapia – 2020 – PUC- Rio – Departamento de Psicologia – Rio de Janeiro
BOGART, A. e LANDAU, T. – O Livro dos Viewpoints – Um guia prático para
Viewpoints e Composição. Organização e tradução: Sandra Meyer – 1 ed. – São Paulo:
Perspectiva, 2017.
BROWNELL, P. – Manual de teoria, pesquisa e prática em Gestalt-Terapia – ed.1 –
tradução de Maria Oneide Willey – Petrópolis: Vozes, 2014.

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