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(PUC-Rio)
Departamento de Psicologia
Especialização em Gestalt-Terapia
Rio de Janeiro
2022
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Monografia apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Psicologia da PUC-Rio como
requisito parcial para a obtenção
de título de Especialista em
Gestalt-terapia, aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo
assinada.
RIO DE JANEIRO
2022
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Resumo:
Sumário:
1 – Introdução
1 - Introdução:
Iniciando a aula pelo fim, levamos para casa a tarefa de nos filmar durante 10
minutos, sem a incumbência de apresentar nada e nem tampouco causar qualquer
emoção. Não havia na verdade, nem prescrição nem proibição. A tarefa era
simplesmente se postar diante da câmera e botar pra gravar sua existência, durante 10
minutos, com a consciência de estar sendo observado. Havia uma clara desincumbência
da tarefa de performar, criar, surpreender ou mostrar algo. E ao mesmo tempo, nada
disso estava exatamente proibido. Em meio à mil interrogações, assim foi feito. Sem
entrar nos fundamentos que levaram a esta proposta, assunto que será abordado ao
longo do trabalho, digo apenas que na semana seguinte estávamos vendo sob orientação
do olhar treinado da professora, uma quantidade enorme de coisas que aconteciam em
cenas que até então nosso olhar viciado em histórias só conseguia ver vazio e
neutralidade. Sessões, variações, repetições, pontos de ruptura com mudanças bruscas
na cena aconteciam naquilo que há pouco era um nada. Aulas depois, já jogando em
conjunto com os colegas, estávamos imersos em séries de improvisos já com o breaffing
de alguns aspectos a serem privilegiados (‘Viewpoints’). E também foram coletadas dos
alunos, frases que resumissem temas de interesse para que servissem de mote para os
improvisos.
A clássica justificativa encabulada, “eu não sou ator”, ali perdia o sentido. Não
estava sendo exigida nenhuma habilidade especial, senão aquela tão falada em Gestalt-
Terapia: esteja presente e vivo no aqui e agora. Dilate os poros da sua superfície de
contato com o outro e esteja vivo no campo! Não que isso fosse fácil ou desprovido de
constrangimentos para nós, alunos na maioria inexperientes, da especialização. Mas não
podíamos nos esconder por detrás da desculpa de nos estar sendo exigida uma
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habilidade na qual não havíamos treinado nossos talentos. Para o exercício da Gestalt-
Terapia, é nos exigida presença viva e aberta. Muitas vezes os improvisos caíam no que
chamamos de ‘conversa de bar’, designando certa estagnação no registro da fala. Mas
aos poucos, aqueles primeiros exercícios tímidos e ‘super-empalavrados’, foram
absorvendo as inspirações dos Viewpoints, que justamente abriam a percepção para
registros outros que não a fala, e geraram divertidíssimos improvisos com ações
inusitadas, coincidências incríveis e muita diversão e engajamento da turma.
Por fim, percorrendo o caminho que Anne Bogart e Tina Landau propõem em
seu trabalho “O Livro dos Viewpoints”, farei observações da relação entre os exercícios
propostos e a Gestalt-Terapia.
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Mas, voltando para o mundo do lado de fora, não só as fronteiras entre as artes
foram borradas neste período, mas a própria concepção do que é arte foi posta em
xeque. O tradicional entendimento da obra de arte como fruto de um trabalho especial
que exige burilamento e habilidades específicas foi sendo corroído com a entrada do
cotidiano e do ordinário. A arte que até então era da esfera do extraordinário e do
sublime e exigia habilidades incomuns para merecer a alcunha de grande arte, começava
a ser questionada em todas as linguagens. E ao se questionar o que é arte, questiona-se o
que é um artista. Conta-nos Miriam Rinaldi:
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Tomando mais uma vez a música como exemplo, vejo no atonalismo (música
serial ou dodecafônica) um exemplo perfeito de proposta ‘não hierárquica’. O tonalismo
elege uma nota como ‘centro gravitacional do sentido musical’. Chamada de tônica é
nesta nota que a melodia ‘descansa’, e a ideia se conclui. E se não volta no fim da
música para a tônica, temos uma sensação de ‘não conclusão’, que a melodia ficou
suspensa no ar, demandando conclusão. Se temos intuitiva capacidade de apreender o
‘discurso’ lógico de uma melodia, é por termos a tônica como expectativa tácita, mesmo
nos momentos em que a melodia está se desdobrando em outras paragens. E só há a
possibilidade de falarmos em ‘outras paragens’ porque, no contraste, existe a tônica. No
atonalismo, no entanto, essa hierarquia é quebrada e uma nota só pode ser tocada
novamente depois de todas as outras serem tocadas. Há uma franca manipulação nos
procedimentos composicionais para que esse ‘centro gravitacional do sentido musical’
seja implodido.
Abrindo um pequeno parêntese, me parece que toda vez que a organização dos
parâmetros de uma linguagem estiver muito condicionada em nós, quando nosso
‘patrimônio afetivo’ está construído sobre essas bases, desconstruí-las, é, pelo menos
em um primeiro momento e de algum modo, decepcionante ou desconfortável. Não é à
toa que esses momentos de desconstrução tenham acontecido sempre sob fortes forças
de oposição e resistência. O velho e o novo sempre se alternaram sob fortes fricções.
Um colega certa vez comentou falando de sua sensação ao ouvir música atonal: “É
como se estivessem destruindo a casa da minha infância e, erguendo no lugar, uma
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E para concluir a exposição deste contexto histórico, digo que esta atmosfera de
renovação e quebra de paradigmas tomava conta, não só das artes, mas de todas as áreas
da sociedade. Comenta Miriam Rinaldi (p.26):
Para ilustrar, pensemos antes em uma cena de Romeo e Julieta nos moldes de
uma encenação clássica: temos um elemento principal que toma a frente e organiza toda
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a cena: a história que está sendo contada. E todos os outros aspectos se colocam para
confirmar, complementar e corroborar a contação desta história. Não é à toa que o texto
teatral muitas vezes é chamado de ‘peça’. Como se denunciasse um entendimento tácito
de que o texto detém, em sua essência, o fenômeno cênico completo. Esta ideia parece
sugerir que os outros elementos da cena, são ‘perfumaria secundária’ para dar mais
veracidade, realismo ou beleza à cena. Mas, que não estão ali com voz própria e não
têm autorização para tomar o sentido do fenômeno e interferir ou mudar o rumo da
história. Nenhum elemento tem essa autorização: os cenários, por exemplo, serão
aqueles previstos no texto (salão do baile, a sacada, a caverna mortuária da cena final); a
música será mais dançante no baile, mais lírica e introvertida na cena da sacada e,
espera-se, que esteja carregada de terror e drama na cena das mortes. Todos os
elementos da cena estarão em sincronia e direcionados para criar a atmosfera
psicológica da cena e entregar uma carga de emoção ao espectador, de acordo com as
palavras e rubricas de Sheakespeare, com seus contextos e épocas fictícias, genialmente
descritas na grande bula que chamamos de ‘peça’. E assim será com os figurinos, com o
uso da luz, dos adereços, com a modulação emocional dos atores, com a intensidade e
amplitude dos gestos e todos os parâmetros da cena. Mesmo que adaptações de época e
outras sejam feitas, serão feitas no texto, que carregará todo um universo vassalo de
elementos para revelar a releitura.
Mary Overlie busca categorias primárias como foco de atenção, pois ali está a
‘matéria prima’ da cena. Abrindo mão desta submissão e com esses elementos em
mente, cria-se um campo de interação livre das categorias hierarquizadas das
encenações clássicas. Mas como seria então uma cena não hierarquizada e livre da
hegemonia do texto? Como é possível trabalhar os elementos da cena sem que nenhum
deles ganhe status de liderança? Como manejar uma “cena atonal”? Faremos adiante na
parte prática deste trabalho, uma exposição de exercícios práticos propostos para
trabalhar cada Viewpoints. Mas por ora adianto que qualquer ânsia por ‘formas de se
fazer alguma coisa’, será frustrada. O manejo desta cena está, paradoxalmente em não
manejar. Ao invés de nos ensinar a fazer, nos prepara a disposição para receber o que já
existe. Fazer é em alguma parte, não atrapalhar a abertura.
Segue abaixo, a descrição dos seis Viewpoints elencados por Overlie que, com
suas iniciais, formam o hexagrama SSTEMS:
Um marco definitivo para a técnica foi quando a diretora teatral Anne Bogard,
descobriu que ela poderia ser de grande valia para o treinamento do ator de teatro, e
passou a adaptá-la para a realidade de suas produções teatrais e experimentações.
Expandiu seu uso, modificou o hexagrama de Mary Overlie e abriu um caminho de
pesquisa próprio junto à sua companhia de teatro Siti Company.
Anne Bogart e Tina Landau estabelecem dois parâmetros principais: Espaço e
Tempo. E reestrutura a partir deles, nove Viewpoints. Daqueles originais de Mary
Overlie saem três: Emoção, História e Movimento. Dos três originais que sobraram,
acrescenta outros seis: Repetição, Topografia, Arquitetura, Duração, Gesto e Resposta
cinestésica, ficando assim:
VIEWPOINTS DE TEMPO
- Tempo/ritmo: “A velocidade com que um movimento ocorre; o quão rápido ou
devagar algo acontece no palco.”
- Duração: “Por quanto tempo um movimento ou uma sequência de movimentos
continua/ dura.
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VIEWPOINTS DE ESPAÇO
- Forma: “O contorno ou limite que um corpo, ou corpos, traçam no espaço.”
- Gesto: “Um movimento envolvendo uma parte, ou partes do corpo; o Gesto é forma
com um começo, meio e fim”
- Arquitetura: “O ambiente físico no qual você está trabalhando e como a consciência
dele afeta o movimento.”
- Relação espacial: “A distância entre coisas no palco, especialmente (1) de um corpo
para outro; (2) de um corpo (ou corpos) para um grupo de corpos; (3) do corpo para a
arquitetura.”
- Topografia: “A paisagem, o padrão de chão, o design que criamos em movimento
através do espaço.” (BOGART, LANDAU, 2005, p. 8 a 12 - apud BOND).
método de memória afetiva, que o ator traga para sua atuação memórias da sua vida real
que tenham paralelo com a emoção exigida pelo personagem, me parece uma tentativa
de conciliação deste impasse: trazer emoção real, através da memória, para dar presença
e verdade aqui e agora para o personagem na ficção. Esta habilidade de se entregar
como ‘cavalo’ de uma emoção alheia, é o que definiu e de certo modo define ainda hoje
em muitos círculos, o ofício de um ator. O bom ator como aquele ser humano com a
habilidade de ter a ficção tão bem incorporada, que não aparece o artifício. Consegue
uma mistura tão bem sucedida do ‘phatos’ do outro no próprio corpo e sentimentos, que
se ‘torna’ o outro na licença poética da ficção. O melhor ator sheakespereano como o
médium mais capaz de incorporar aquela ideia poética e comunicá-la ao mundo. E
aquilo chega na plateia com tônus de verdade, evocando, como não poderia deixar de
ser, emoção verdadeira.
Mas sempre em uma camada anterior ao artifício existe alguém que decide
entrar neste parêntese no mundo real, proposto pelo texto. Decide abrir mão do aqui e
agora radical, fenomenológico e concreto que o permitiria sentar caso tivesse vontade,
ou calar. Não há dúvidas de que mesmo com todas as marcas e textos a cumprir, um
bom ator pode, com seu talento camaleônico, tocar aspectos da verdade humana
universal e plasmá-la no próprio corpo, entregando ao público paixões verdadeiras em
essência. Mas, estas serão sempre expostas nas regras e nos limites da ficção.
muitas coisas que estão acontecendo do lado de fora desses parâmetros, não são
reconhecidas” (BOGART e LANDAU, p.51,52).
2.4.1 – Entrega
Fazendo alusão à pressão do ator tradicionalista de ter que cumprir um roteiro
predeterminado, as autoras citam como benefício imediato, o alívio que é não se sentir
preso à obrigação de performar, não ter que ser criativo e nem ter que entregar um
resultado previsto. Aqui vale um parêntese: será que grande parte do nervosismo, tão
presente nos bastidores do mundo cênico, não é exatamente essa cangalha de
expectativas e ‘afazeres’ que pesa nos ombros do artista e enche sua fantasia de medos e
inseguranças? Aqui a aventura é outra, e o ator aprende a contar com muito mais do que
sua performance. Nesse sentido, exercita sua entrega ao, reiteradas vezes, constatar em
jogo, que pode contar com o campo. Como nos explica Bogart e Landau:
Os Viewpoints aliviam a pressão de ter que inventar tudo por si
mesmo, de gerar tudo sozinho e de forçar a criatividade. Permitem
que nos entreguemos, que possamos cair em um espaço criativo vazio
e confiar que há algo lá, outra coisa além do nosso próprio ego ou
imaginação para nos captar. Os Viewpoints nos ajudam a confiar em
deixar algo acontecer no palco, em vez de fazer acontecer. A fonte
para a ação e a invenção vem até nós a partir dos outros e a partir do
mundo físico ao nosso redor. (BOGART e LANDAU, 2005, p.37)
2.4.2 - Possibilidade
Os autores entendem que alargamos o leque de possibilidades quando nos vemos
livres da hierarquia que submete uma linguagem à outra.
“Os Viewpoints nos ajudam a reconhecer as limitações que impomos a
nós mesmos e à nossa arte quando habitualmente nos submetemos a
uma presumida autoridade absoluta, seja ela o texto, o diretor, o
professor. Ele nos liberta do enunciado: “Minha personagem nunca
faria isso”. Nos Viewpoints não há bom ou mau, certo ou errado – há
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2.4.4 – Crescimento
As autoras explicam que nesse ambiente de possibilidades várias, diversos
aspectos são colocados em jogo. O que nos possibilita, se avaliarmos o que fazemos ou
o que não fazemos com nossa liberdade, acessar informações sobre pontos fortes e
fracos de nós mesmos.
Os Viewpoints se tornaram um teste pessoal, um medidor de suas
próprias forças e fraquezas, para a descoberta do quanto você está
livre ou do quanto está inibido, quais são seus próprios padrões e
hábitos. Novamente é a atentividade que nos dá esse presente – a opção
de mudar e crescer (BOGART e LANDAU, 2005, p.38)
2.4.5 – Inteireza
A sobrecarga da visão e da fala não faz jus ao imenso potencial de contato,
expressão e coleta de informações de que é capaz o ser humano. Com a prática dos
Viewpoints, alargam-se as possibilidades de apreensão e entramos em sintonias mais
sutis de comunicação.
Os Viewpoints despertam todos os nossos sentidos, deixando claro o
quanto e o quão frequentemente vivemos somente “em nossas cabeças”
e vemos somente através dos nossos olhos. Por meio dos Viewpoints,
aprendemos a ouvir com todo o nosso corpo e a ver um sexto sentido.
Recebemos informações de níveis que não estávamos cientes que
existiam e começamos a nos comunicar com mais profundidade
(BOGART e LANDAU, 2005, p.38)
É nesse ambiente — que muito se parece com a Berlim dos anos 1920
— que Perls mergulha, passando a frequentar, os ‘‘meios artísticos e
boêmios, os ‘‘intelectuais de esquerda’’ do pós-guerra, anarquistas e
revoltados: escritores, pintores, músicos, bailarinos e, sobretudo, os
atores do Living Theater’’. (apud GINGER e GINGER, 1995, p.55,
apud HELOU, 2015, p.66)
começou a botar luz no ‘como’ se fala e não apenas no ‘que’ se fala. Agora não só a
palavra escolhida pelo cliente, mas sua postura, suas contrações musculares, o não dito,
jeitos de se postar vão importar. Abre-se aí um campo alargado de fontes de
informações que por vezes comunicam mais do que o cliente é capaz de entregar nas
suas falas. Entre o que ele diz e o que faz, vale o que faz. Se alguém diz “estou bem”
com a cara pálida, trêmulo e olhar perdido, não convence.
E a lente dos parâmetros se abre ainda mais quando a própria relação e os afetos
que ela move são fontes fidedignas de informações sobre o outro. A forma como sou
afetado por uma presença me fala dela. A própria relação passa a ser parâmetro,
categoria primária e instrumento. O foco sai da doença e se estende ao ser integral do
outro e, como a soma dos elementos, reverbera no campo. A relação vira não apenas
fonte de coleta de informações, mas também de ‘cura’. Coloco aqui a citação de E.E
Cummings que Gary Intef e Talia Levine Bar-Yoseph elegeram como prólogo do
capítulo sobre Relação dialógica do Lvr. Manual de teoria, pesquisa e prática em
Gestalt-Terapia, de Phillip Brownell:
Não acreditamos em nós mesmos até que alguém revele que bem dentro
de nós há algo valioso, que valha a pena ouvir, digno de nossa
confiança, sagrado para o nosso toque. Quando acreditamos em nós
mesmos, podemos arriscar curiosidade, admiração, prazer espontâneo
ou qualquer experiência que revele o espírito humano (apud
CUMMINGS)
Como sempre disse a professora Sandra Salomão, “é nas relações que a gente
adoece e é também nas relações que a gente se cura”. Aqui está previsto o ser integral
do psicólogo, e não apenas a sua capacidade analítica. Aqui palavras consagradas na
literatura das relações de ajuda como ‘remédio’, ‘diagnóstico’ paciente’, cura’ parecem
começar a exigir aspas, pois o paradigma que as elegeu como significante, já não é mais
o fundo de onde emergem essas novas concepções.
Na prática dos Viewpoints, como vimos, tem-se o Soft-Focus como uma postura
de apreensão mais larga e atenta do que a atenção focada em um aspecto principal. O
treino desta habilidade é importante para o Gestal-Terapeuta, pois entre a relação
terapeuta x cliente se estabelece um campo. A consciência de que informações valiosas
estão espalhadas por todo o campo, e não apenas em aspectos como a fala, nos faz olhar
o todo com mais cuidado. Incluiria nessa disposição prévia toda possível suspensão de
valores e preconceitos para poder apreender o outro em seus termos e valores.
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O olhar aqui, deve ser revestido de certa ‘passividade’ para deixar-se afetar.
Olhar bem é, antes, desobstruir do que inserir novas lentes. Nessa disposição de maior
abertura temos algumas desconstruções históricas: a da hegemonia da palavra,
desconstrução do entendimento de que entre terapeuta e paciente existe um vazio estéril
de significados, desconstrução do conforto do entendimento de que existe bula capaz de
me guiar na relação com o outro. E diante disso desconstrói a estratégia: dá um passo
atrás e exercita princípios, deixando os resultados para o indizível do campo.
3.3 - O campo
Quando comentei sobre o benefício da entrega que nos lega o trabalho com
Viewpoints, esta entrega era fortalecida pelo exercício de se buscar “em um espaço
criativo vazio e conferir que há algo lá’, outra coisa além do nosso próprio ego ou
imaginação para nos captar (...) A fonte para a ação e a invenção vem até nós a partir
dos outros e a partir do mundo físico ao nosso redor” (BOGART e LANDAU, 2005, p.37)
Quando Overlie propõe a retirada do texto como lente que se impõe ao olhar e
exercita a amplitude do olho e do olhar, abre-se para o campo (“totalidade de fatos
coexistentes”). E só se lança a ele para além do próprio ego, porque sabe, na prática, que
ele é dinâmico. É capaz de enxergar o ‘vento invisível’ que sustenta o sentido das
movimentações de quem se coloca ‘aerodinamicamente’ vivo em seu caminho. Não há
abismo pois o campo é fonte de propostas o tempo todo. Parece que aprender a jogar, e
aqui como metáfora para vida, para o jogo terapêutico e para os improvisos de
Viewpoints, é, em algum grau, se munir das asas possíveis e se lançar no abismo do
campo acreditando que há vento e sustentação onde o olhar descuidado e viciado nas
amarras da bula, diz que não há nada.
De que modo a abolição das hierarquias, base como vimos da perspectiva dos
Viewpoints, se relacionam com a Gestalt-Terapia? O estudioso e o objeto estudado
sempre foram, na história da ciência, personagens distintos. E não foi diferente na
história da psicologia. Essa relação de quem detém o saber X quem necessita deste
saber, permeia as relações de ajuda e impõe uma hierarquia muito clara. Na medicina
tradicional, como o foco está exclusivamente na fisicalidade, temos esta hierarquia em
seu grau máximo: chegamos à consulta muitas vezes sem fazer a menor ideia da
enfermidade que temos, recebemos a prescrição de um remédio que não sabemos o que
contém, tomamos em quantidade e horários que não saberíamos prescrever e, se tudo
der certo, temos uma melhora do quadro sem saber exatamente por quais processos
químicos. Ali o médico é a única voz autorizada e falar sobre os processos necessários
para a cura. Do paciente, espera-se boa descrição dos sintomas e obediência às
prescrições. Estão muito claros, nesta relação, quem sabe e quem não sabe, ainda que o
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Mas, conforme foi dito, o olhar foi ampliado com a Gestalt-Terapia e muitas
outras correntes humanistas. E uma consequência natural e de enorme relevância desta
ampliação, me parece ser, a quebra da hierarquia entre analista X analisado. Com as
novas perspectivas do que está em jogo, já não sou autorizado a estabelecer uma relação
unilateral de promotor de cura nos moldes antigos. Vamos encontrar nos estudos sobre a
‘relação dialógica’, de Martin Bubber, uma poderosa fonte de aprofundamento sobre as
relações, suas características e consequências. É sobre sua luz que se desfazem
quaisquer resquícios de hierarquia possível na relação terapeuta-cliente.
Outro cenário: e quando temos uma relação aluno x professor? Temos que
admitir que demos passos largos em direção à pororoca dos mares. Já não temos uma
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máquina, que de forma tão eficiente, possa substituir o mestre (neste caso, a máquina
poderia ser o computador que dá acesso a um curso pré-gravado online). Os livros
tampouco são capazes de substituir sem implicações. Isso porque em uma relação aluno
x professor, já temos a possibilidade do envolvimento afetivo e apreensão mútua dos
universos subjetivos. Esses interesses 'secundários' de bem querer, transcendem a
simples comunicação x apreensão de conteúdo. Nessa relação já vamos encontrar com
frequência, um interesse genuíno em relação ao outro. Isso sem falar da vivência do
mestre sobre os conteúdos, que em uma aula ao vivo, estará presente em todo o
processo. Aqui, tanto a experiência pessoal quanto a afetividade, vão interferir
positivamente (espera-se!) na apreensão do conteúdo pelo aluno. Mas, ainda assim,
temos ali um 'contrato' onde se espera algo do mestre e este recebe, em contrapartida,
uma remuneração. Ou seja, estamos, ainda que de forma mais difusa e menos radical,
estabelecendo condições para uma relação EU-ISSO, ainda que possa, nessa fronteira,
ser também outra coisa, dependendo de como cada relação se desdobre.
Outro cenário ainda: pensemos em uma relação marido x mulher. Aqui, supõe-se,
não há interesse prático algum que seja o grande mediador do encontro. Aqui não
damos passos, mais um salto em direção ao encontro dos mares. Trata-se de uma
relação cuja razão de ser é pura afetividade, no caso, o amor entre as partes. E todos os
interesses que naturalmente possam existir fora do afeto, são, em tese, secundários.
Inclusive veremos casos em que o amor representa um verdadeiro 'desserviço prático'.
Por amor, tolera-se prejuízos financeiros, viagens exaustivas e diversas atitudes que, se
não estivessem embebidas no sentido supremo desse afeto avassalador que se justifica
em si mesmo, seriam inconcebíveis! Essas atitudes não são serviços, não têm paga e
ainda exigem muitas vezes da vida prática o que ela não tem para dar. Aqui chegamos
ao que Buber chamou de relação EU-TU, uma experiência de verdadeiro encontro e de
conexão natural, “uma experiência de apreciar a ‘alteridade’, a singularidade, a
totalidade do outro, enquanto isso também acontece, simultaneamente, com a outra
pessoa”. Nela, atravessamos a arrebentação e adentramos, com todos os riscos que isso
implica, na vastidão imprevisível do mar aberto do outro, sem saber com precisão onde
esse encontro vai dar, mas com a certeza de que a mistura das águas necessariamente
nos tornará outro. Não o outro, mas outro-eu.
Coloquei estes três cenários para pensar o paradoxo que existe entre as dimensões
objetiva e subjetiva nas relações. Temos no primeiro exemplo, quase uma ausência
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desse paradoxo, pois somos como que 'desumanizados' já que o que nos é demandado,
não passa de uma faceta radicalmente objetiva do que somos. Do lado oposto, no
terceiro exemplo (marido-mulher), não há nenhum 'serviço' a ser prestado, não existe no
contrato fundamental essa entrega objetiva prevista. Mas aqui é preciso esclarecer que
existem duas coisas diferentes: uma atitude EU-TU e o momento EU-TU. Quando
falamos de uma relação marido-mulher, estamos supondo que se trata de uma relação
em que as condições gerais estarão mais propícias para o acontecimento da relação EU-
TU do que o são as condições relacionais da compra de um refrigerante. Mas, toda
relação carrega sua dinâmica de alternância entre essas duas dimensões e o mundo real
do aqui-agora não pode ser congelado em uma ou outra categoria. Em toda relação, há
uma tensão entre o quanto a pessoa precisa se ocupar das suas questões individuais, e o
quanto deve se ocupar das questões da relação. Na relação marital, por exemplo, vamos
ter variáveis que frequentemente suscitam essa discussão pelo seu grau de objetividade
e demanda de esforço, como lavar as louças, buscar os filhos na escola, pagar contas e
tantas outras situações que são grandes desafios que puxam a relação para um
estacionamento na dimensão EU-ISSO. Como assiná-la Buber, "essa é a extrema
melancolia de nosso destino: de que todo TU em nosso mundo precise se tornar um
ISSO".
mostra muito pertinente, pois um professor que não sabe o conteúdo que vai ensinar, ou
uma birosca com propaganda da Coca-cola que não vende refrigerantes, não podem ser
entendidos como paradoxo. São antes uma contradição, uma enganação, uma mentira.
Mas não é o nosso caso. Nós temos que aceitar a metáfora do 'curador ferido', do
contrário, não daremos um passo sequer, pois temos que admitir que muito além de
objetividades, nosso instrumento é nosso ser inteiro, e nos entregamos nessa relação
como humanos que somos, com nossos pontos cegos, nossas próprias feridas abertas e
fechadas, dificuldades e habilidades relacionais e, sobretudo, não temos controle da
demanda do lado de lá! Se forçássemos a barra para nos comparar a um vendedor,
seríamos um vendedor que não sabe se pedirão refrigerante ou um coelho rosa. E seria
igualmente inadequado nos compararmos aos amantes, apesar de termos o objetivo
claro de adentrar o mar aberto de nosso cliente – porém de outra forma. Nós nos
formamos, fazemos supervisão, especialização, lemos incontáveis livros, nos
preparamos, temos subsídios embasados em séculos de entendimento sobre o ser
humano em geral, sobre as disfunções e psicopatologias, pensamos 'cientificamente' até
onde a ciência é capaz de nos dar as mãos, mas na hora, somos lançados na natureza dos
encontros. E quando falo 'natureza dos encontros', temos aí uma incógnita pois essa
natureza é pura abertura e será preenchida de presenças em um tempo específico, com
disposições específicas "insimuláveis". Não há estudo de caso que resolva cabalmente
minha vida naquele momento. E nesse mundo real dos encontros, terei que usar toda a
flexibilidade existencial de meu espírito para manter o setting na configuração que se
espera para essa relação (não virar amigo, carrasco, conselheiro, amante ou paciente de
meu paciente) e ao mesmo tempo, a despeito do distanciamento crítico e awareness do
todo da relação que conduzo, não conduzir, exatamente como o faz aquele que carrega
um roteiro pré-estabelecido. Como denominou Buber, o terapeuta deve caminhar pela
'vereda estreita' entre a objetividade e a subjetividade, em que há suporte, mas nenhuma
segurança garantida. Conduzir, interferir e ao mesmo tempo deixar-se levar e ser
afetado pelo outro. E nessas considerações, vemos que, além de profundamente
paradoxal nos âmbitos da objetividade e da subjetividade, nossa matéria-prima é a
própria relação.
fronteiras de contato que posso apreender quem sou. Estamos sempre buscando o ponto
de equilíbrio entre nossa separação e conexão com o outro. E vamos, no trabalho
terapêutico, encontrar pessoas cujos contatos estão interrompidos ou se dão de forma
insatisfatória, muitas vezes com concepções de si mesmas e do mundo 'vencidas' e sem
validade atual para vida presente daquele paciente. O ser humano, ao contrário dos
outros animais, se torna humano na relação com os outros de sua espécie, e neste
processo de individuação, vai sentindo necessidade de confirmação pelo outro do que se
é. Hycner chega a afirmar em seu livro De Pessoa a Pessoa que "a base subjacente da
maior parte da psicopatologia não-organicista é a falta de confirmação que todos
sofremos no esforço de nos tornarmos seres humanos". E que Buber poeticamente
arremata com a belíssima frase "é de um homem para o outro que é passado o pão
celestial de ser o seu próprio ser"
É por razões como essas que, ao contrário de outras abordagens, entende-se que o
que chamamos de 'cura' está na própria relação, no 'rastrear' no fluxo da 'dança dialógica
curativa' o entre que se estabelece entre nós, e não nas descobertas que faço sobre o
funcionamento da psique do meu cliente. Entende-se que no 'entre' está o objetivo
maior, pois ali então também os maiores problemas da vida. A própria relação é o
objetivo último e a fonte da cura. Como diz Sandra Salomão, "é nas relações que a
gente adoece e é nas relações que a gente se cura"
A citação acima esclarece mais um ponto importante: algo que a princípio pode
parecer uma faculdade espontânea e natural, pode e deve ser treinada. É claro que a
capacidade de se afetar e estabelecer reações dialógicas em bases não hierárquicas, é
uma capacidade do ser humano e vamos encontrar muito bem desenvolvida em algumas
pessoas, mesmo sem treinamento. No entanto, para todos aqueles que têm nestas
capacidades suas ferramentas e tem intenção de aprimorá-las, o treinamento existe e é
sempre bem-vindo. O treinamento também é salientado por Anne Bogart quando cita
como um dos problemas do Teatro Contemporâneo, a ‘falta de treinamento contínuo do
ator’. Comenta Bogart e Landau: “o treinamento forja relacionamentos, desenvolve
habilidades e oferece uma oportunidade para o crescimento contínuo” (BOGART e
LANDAU, p.35)
Como vimos no item 2.3.1, o trabalho no aqui e agora é uma das mudanças mais
radicais de perspectivas que caracteriza os Viewpoints. É justamente o abandono do
texto e a entrada no aqui e agora radical do jogo com os elementos da cena que vamos
encontrar sua força. E assim é também na Gestalt-Terapia.
que faremos com o que a vida fez de nós'. Essa mudança de perspectiva não é um
detalhe. Ela representa na verdade uma mudança de perspectiva com implicações
enormes na visão de ser humano e consequentemente em toda a prática clínica. Traz
novo objetivo e método, diferente do método regressivo freudiano, que buscava a
elaboração de traumas da infância e propunha um mergulho no passado, como se o
terapeuta fosse um escafandrista atrás de traumas e situações que só poderiam ser
acessadas através do mergulho no passado. Não seria esse escafandrista um correlato na
psicologia, daquele ator que se colocava como ‘cavalo’ buscando incorporar um
personagem, e que também, a seu modo, entregava o aqui e agora radical do encontro,
por uma outra qualidade de presença, regida por parâmetros estabelecidos previamente?
3.7 – Awareness
Awareness é um problema central na GT. Awareness é como como aquela
consciência de si, capaz de modificar comportamentos. Isso não é possível sem perceber
o que está automatizado. Tomar decisões exige capacidade de fazer escolhas e muitas
vezes, contrariar velhos hábitos. Queremos, através da awareness, restaurar a
capacidade que todos temos, mas muitos não exercem, de fazer escolhas próprias. E
aceitar perdas, está necessariamente neste pacote, já que os velhos hábitos nos garantem
certa segurança e memória, familiaridade. Aqui vale uma observação: é preciso ter
respeito com as possibilidades do cliente. A insistência no abandono dos hábitos pode
ser algo muito violento. O abandono dos hábitos e da memória requer um 'ato de fé'. É
necessário um ato de fé para 'descartar o chiclete sem gosto': pode-se perder tudo, ou
pode-se encontrar alimento mais farto. E para um cliente com liberdade muito atrofiada,
aquele hábito, ainda que insuficiente, pode ser o que é possível no momento. Neste
ponto, não é diferente de qualquer outro sintoma em GT: entende-se que há um
ajustamento criativo possível, ainda que não satisfatório.
Mas, mesmo que estejamos vivendo no automatismo, SEMPRE fizemos uma
escolha lá atrás, ainda que não tenhamos consciência disso. Escolher não escolher, já é
uma escolha. Muitas vezes não nos damos conta, mas não escolhemos apenas entre
objetos, mas modos de vida. E esse dar-se conta é o que chamamos de awareness.
Quando nossas escolhas estão pautadas no desejo do outro, vivemos uma vida
inautêntica. A inautenticidade consiste na incapacidade de fazer escolhas - essas
escolhas são feitas pelo mundo, pelos outros. Mas, temos a angústia como sentimento
norteador da 'propriedade' de nossas escolhas, clamando sempre pelo que nos é mais
próprio. Tudo o que depende de mim, posso escolher. Mas não escolho a ação do outro.
A escolha modifica meus hábitos e estes, demandarão novas escolhas.
Outro ponto importante para falarmos de awareness, é o aparelho do arco reflexo,
onde, entre o sensório e o motor, temos o intervalo de indeterminação. Awareness é, em
última instância, a tomada de consciência do Intervalo de Indeterminação. Mas não é
algo simples, pois existe muito assunto entre o perceber e o agir! Temos a dimensão da
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4 – Proposta Prática:
De início, imaginei estruturar uma proposta prática que deveria ser algo pensado
exclusivamente para este trabalho. A criação de uma série de dinâmicas e exercícios
baseadas na técnica dos Viewpoints, que de algum modo trouxessem mais de perto a
realidade da psicologia, para ser aplicada a um grupo de Gestalt-Terapeutas. O que
significava isso, não sabia dizer. Mas acreditava que a própria feitura do trabalho me
traria pistas. Mas no decorrer da escrita, percebi que os princípios que nos interessam
enquanto Gestalt-Terapeutas, estão plenos no simples jogo como estão propostos por
Bogart e Landau. Compreendendo a dinâmica que elas propõem em O Livro dos
Viewpoints, a vontade de mudar era nenhuma. Estava tudo ali. E não tive como não
pensar se não estava eu, no afã de fazer, propor, assinar autoria e entregar resultado,
acabando por tirar o foco do que importa – o jogo. É claro que se pode, por exemplo,
como sugestão de gesto, propor ‘gesto cliente atrasado’, ou qualquer outro relacionado à
realidade do terapeuta, mas, como algo secundário. Cada um que salpique a gosto seu
tempero. Mas aqui, o que nos importa, é a imersão no jogo dos Viewpoints pelos
princípios que treinam e as reflexões que alargam. E isso Bogart e Landau o fizeram
com grande êxito como resultado de anos de pesquisas que culminaram no livro. E
também não faz sentido aqui, refazer a proposta já feita por Bogart e Landau. Por mais
detalhado que eu fosse, seria redundante uma vez que a proposta delas se encontra
pronta e inteiriça no livro dos Viewpoints. Para um grupo de terapeutas que queira
trabalhar na prática, sugiro a fonte original.
O que nos interessa aqui verdadeiramente, é aproveitar os exemplos práticos nos
esclarecimentos que trazem quando saímos da descrição de conceitos e passamos para a
prática. Bogart e Landau já alertavam para o fato de que os princípios apresentados nos
exercícios de Viewpoints, “são mais bem compreendidos através do fazer do que do
descrever” (ANNE e Bogart, 2005, p.40). E citava a frase de Ludwig Wittgenstein
como conselho: “Se você não pode dizer, aponte” (p.40). Portanto, ainda que a ideia de
uma proposta prática estruturada de aplicação dos Viewpoints para um grupo de
Gestalt-Terapeutas tenha sido abandonada, acredito que mesmo a simples narrativa das
propostas práticas, lance luzes sobre como funcionam, na prática, o trabalho com os
Viewpoints.
Proponho, portanto, neste capítulo, seguir parte do caminho de prática sugerido
por Anne Bogart e Tina Landau no trabalho O Livro dos Viewpoints para esclarecer
pontos da técnicas e tecer relações com a Gestalt-Terapia. Elas propõem, através de
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vínculo poderoso como o de mãe e filho, por exemplo, suporta sem arrebentar as fibras
da relação, os contrastes de uma surra física e um “dengo de boa noite”. E é este
vínculo, informação de amor e bem querer que paira soberana em camada superior a
todo desprazer, que bota as almas em uníssono no jogo das relações podendo se valer de
uma ‘elasticidade’ bem lubrificada e potente que garantirá resistência nas alturas e
precipícios das emoções. O mesmo princípio se dá em uma relação terapêutica: o
vínculo, que aqui relaciono com este ‘uníssono’ dos Viewpoints, é o que garantirá a
permissividade e autorização por parte do meu cliente, para minha entrada no seu
mundo íntimo e pessoal, incluindo aí a possibilidade de mexer em suas feridas, e
angústias. Relações íntimas (EU-TU) parecem carregar este poder de explorar as
extremidades do prazer e do desprazer, pela informação tácita de amor e segurança na
qual se baseiam.
Um segundo aspecto que Bogart e Landau levantam, é a possibilidade de
trabalhar dois polos de experiência e energia que precisam ser calibrados: feedfoward e
feedback. O primeiro é a energia dinâmica externa, que antecipa o agir, e o segundo, a
sensação que alguém recebe como resultado de uma ação. “O teatro se torna um espaço
de aguçada vivência tanto em relação à ação que aconteceu, como àquilo que
acontecerá em seguida” (ANNE e Bogart, 2005, p.53)
Este reconhecimento de situações externas que antecipam nossa ação são
frequentes e necessárias em terapia – faz parte da awareness, o conhecimento dos
sentimentos que efetivamente movem nossas ações. Que ‘traçantes’ de desejos e
necessidades me atravessam sem que eu me dê conta? Assim como o feedback de como
verdadeiramente está nosso sentimento diante das respostas do mundo. Esse
treinamento de ver, ser visto, perceber-se, perceber o outro, é precioso para qualquer
pessoa e muito particularmente, para quem tem nessas percepções, seu instrumento de
trabalho.
Feitas as considerações iniciais e os 8 exercícios preliminares que trabalharão
basicamente o uníssono grupal, as autoras começam a apresentar os 9 Viewpoints
separadamente, um por um de forma gradativa e cumulativa. Para cada Viewpoint
apresentado, propõe alguns exercícios. Frisa que é importante avaliar se o Viewpoint
anterior está bem absorvido (leia-se: dentro de nosso espectro de atenção e
entendimento) antes de inserir um novo. Iniciarei agora um passeio por alguns
Viewpoints e o que me fazem refletir sobre o trabalho do terapeuta.
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importa não apenas o “quão rápido você pode ir, mas por quanto tempo pode
permanecer em cada velocidade”.
Já a resposta cinestésica “é sua reação física espontânea ao movimento que está
fora de você (...) ao focar na Resposta Cinestésica, você estará trabalhando no
‘quando’, em vez de no quão rápido (andamento) ou por quanto tempo você se move
(duração)” (p.63). Anne e Bogart chamam a atenção para o fato de que aqui, pela
primeira vez, a ideia é que não tenhamos exatamente ‘escolha’. Os alunos estavam
livres para propor seus andamentos e durações nos exercícios anteriores. Mas aqui, a
ideia é reagir compulsoriamente! “Não cabe mais a você escolher o que está certo ou
errado, o que é bom ou mau – mas, sim, fazer uso de tudo. Se alguém passa correndo
por você – use isso” (p.63). Esclarecem as autoras que é exatamente neste ponto que se
retira do sujeito o ônus de ter que ser inventivo, criativo, interessante, etc. A ideia é que,
se o sujeito está aberto aos estímulos do mundo através do Soft-Focus , basta reagir a
ele.
Abriria um parêntese especial para a importância para o terapeuta do trabalho
com Resposta Cinestésica, pelo mesmo motivo que também ganhou destaque na
descrição de Bogart e Landau. Porque é precisamente na postura de crença no campo,
de que a partir de uma postura atenta e responsiva, é confiável e lícito contar com o
campo, que também o terapeuta se liberta da necessidade de ‘fazer coisas’, performar.
Acreditar que não precisa estar munido de uma alegoria premeditada e genial de
recursos prontos, falas e conduções saturadas de expectativas, libera o terapeuta para
estar diante do seu cliente e apreendê-lo a partir do que se mostra, podendo responder à
‘respiração’ viva da relação como propõe a relação dialógica. E ainda, numa implicação
bem direta e física, me parece que um terapeuta treinado e disponível para reações
cinestésicas, pode gerar intervenções físicas de grande espontaneidade e impacto. É
parte da prática em Gestalt-Terapia, compartilhar fantasias que se tem a partir de como
reverberam em nós, os relatos do paciente. E esse compartilhamento pode se dar através
de reações diversas e não apenas exposição oral. Reações faciais, corporais ou verbais
espontâneas, diretas e reativas, me parece ser algo aperfeiçoado no treino prático e nas
reflexões sobre Reações Cinestésicas.
Pode ser o caminho, a direção, velocidade, etc. Pedem que não se fixe em uma pessoa,
mas possa alternar entre pessoas que estão mais longe, ou mais perto. Indicam ainda a
possibilidade de repetir certo aspecto de uma pessoa e outro aspecto, de outra:
“repetição do padrão de postura no chão de uma pessoa e o Andamento de
outra”(p.65). E a todo tempo reitera a necessidade do Soft-Focus que nos permite
repetir padrões não apenas daqueles que estão à nossa frente, mas exercitar uma
consciência de 360 graus.
As autoras começam chamando a atenção para o fato de já estarem, desde o início,
trabalhando com topografia, sendo esta toda delimitação física ou imaginária do
espaço, não há como não se trabalhar em um espaço, seja ele qual for. A própria
proposta inicial de se pensar uma grade no chão, é um trabalho com topografia.
Propõem como exercício deste Viewpoint que transforme a topografia imaginada da
grade por círculos e outros padrões. Propõem também que imaginem seus pés como
pincéis embebidos em tinta vermelha e pintem padrões no chão. E depois manipulem os
tamanhos destes padrões.
As considerações iniciais acerca do ambiente de trabalho e preparação do Set,
eram de natureza topográfica. No caso, a ideia era pensar o nespaço ‘antes’ do inicio do
trabalho. E aqui, já como um Viewpoint a ser trabalhado, aspectos do set terapêutico
serão utilizados como fontes e recurso do campo.
Vamos encontrar benefícios para o trabalho em terapia de se treinar um olhar
para as Repetições, vejo ganhos no modo de se pensar o espaço terapêutico à luz da
Arquitetura, questões de Forma vão sugerir ideias para trabalho do terapeuta e
merecem atenção. Mas, para finalizar, coloco luz em mais dois Viewpoints por suas
relações mais instigantes com o trabalho do terapeuta: Gesto e Relação Espacial.
A Relação Espacial coloca o foco no espaço que há entre as pessoas e objetos no
espaço. Bogart e Landau chamam a atenção novamente para certa tendência de nos
aproximarmos de uma ‘media’ confortável. E quando se trata de Relação Espacial, esse
princípio se mostra bastante vivo, pois trazemos vários condicionamentos sociais acerca
das aproximações. Aproximações com espaço menor do que 1 metro, tendem a criar por
si só, “dinâmica, evento, relacionamento (...) e algo começa a acontecer no espaço
quando lhes prestamos atenção”(p.65). Propõem então, que os atores tomem decisões
por si próprios acerca de seus movimentos, porém, mantendo aguda percepção do
espaço. E pedem que cuidem para que suas decisões sejam baseadas em onde as outras
pessoas estão. Incentivam a provocar extremos de distanciamento e aproximação.
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5 – Conclusão:
Desde o início, as diferenças de ‘natureza’ entre uma exploração de
possibilidades no campo do teatro e no campo de uma sessão de terapia, me pareceram
muito claras. O ator não tem, como temos muitas vezes, um ser humano em estado de
sofrimento diante dele, necessitando de cuidados. Nós, terapeutas, não temos na
proposição estética, o fim último do nosso trabalho. A habilidade de um ator se colocar
em Soft Focus para os objetivos da cena, se assemelha em quê, àquela habilidade de
olhar ampliado exigida do Gestalt-Terapeuta nos objetivos do processo terapêutico?
Podemos dizer que ao relaxar o olho e ampliar o ângulo da visão física, estejamos
trabalhando a amplitude também do ‘olhar’? Em suma, poderia ser objetado: em que
medida é possível chegar, no setting terapêutico, reverberações das descobertas e
experiências angariadas nos treinamentos em Viewpoints como proposto acima? Me
parece que esta é a pergunta chave. E creio que o princípio que me faz crer que sim, que
tem efeito possível na atuação de um terapeuta o treinamento em Viewpoints, é porque
estamos trabalhando com princípios. Princípios para os quais se prepara o corpo para
que sejam cada vez mais disponíveis e capazes de expressá-los, mas princípios que vão
alimentar também a inteligência e a intuição ao debruçarmos nossa inteligência sobre
eles.
Me parece que a ampliação do olhar, o gosto pela curiosidade de quais outros
aspectos e ângulos temos para trabalhar, o hábito de questionar parâmetros, a liberdade
de fazê-lo, o costume de contar com o campo improvisado, a consciência cada vez
maior do corpo e pensamento, a memória do que é exatamente estar no aqui e agora em
estado de abertura porque já se experimentou este estado várias vezes. Tudo isso são
treinamentos de base, que enriquecem as habilidades da presença. E quando falo
presença, incluo qualquer habilidade física adquirida, mas também a amplitude de
insights e relações desta presença. O ator de Viewpoints é não apenas um corpo capaz,
mas um ser inteligente e as propostas estimulam esta inteligência. Ademais, por uma
questão de lógica simples, para uma proposta terapêutica que prevê o ser integral do
terapeuta em relação, tudo o que acrescente a este ser, acrescenta ao terapeuta. E não
estamos falando de qualquer coisa. Estamos falando, retomando o termo de Bogart e
Landau, de cinco ‘presentes’ valiosos que acredito ter podido demonstrar o porque e
como são entregues aos terapeutas no Jogo dos Viewpoints. São eles: ‘Entrega,
Possibilidade, Escolha e liberdade, Crescimento e Inteireza.
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6 - Referências Bibliográficas: