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REVISÃO DE CASO

Diabetes mellitus e transtornos alimentares:


uma revisão sistemática
Diabetes mellitus and eating disorders: a systematic review
Marcelo Papelbaum1; Rodrigo O. Moreira1; Walmir F. Coutinho1; Vivian C.M. Ellinger2;
Rosely Sichieri3; Evandro Coutinho3; Leão Zagury2; Jose C. Appolinario1

Resumo Summary
O diabetes mellitus (DM) é uma doença caracterizada por hipergli- Diabetes mellitus (DM) is a disease characterized by persistent
cemia persistente relacionada a uma deficiência absoluta ou relativa hyperglycemia associated with an absolute or relative insulin deficiency.
de insulina. Hábitos alimentares saudáveis são importantes para Healthy eating habits are important to achieve an adequate control of the
o controle adequado dessa doença, o que aumenta a preocupação disease. Thus, there is an increasing concern with the presence of eating
disorders (ED) in DM. The objective of this review is to investigate the
com a presença de transtornos alimentares (TA) no DM. O obje-
literature on the association of ED and DM. An electronic search was
tivo deste artigo é investigar essa associação através de uma revisão
conducted in the following databases: MEDLINE, PsycINFO, LILACS
sistemática. Foi realizada uma busca eletrônica nas bases de dados
and Cochrane. Thirty-four articles fulfilled the inclusion criteria for
MEDLINE, PsycINFO, LILACS e Cochrane. Trinta e quatro artigos the review. The presence of an ED may be increased in diabetes, with
preencheram os critérios de inclusão para a revisão. A presença de prevalence rates between 6.7% and 20.9% in type 1 DM and 2.5% and
TA encontra-se aumentada no diabetes, com uma prevalência que 34.8% in type 2 DM, depending on the methodology utilized. Bulimia
variou entre 6,7% e 20,9% no DM tipo 1 e 2,5% e 34,8% no DM nervosa was the most observed ED in type 1 DM and binge eating
tipo 2, dependendo da metodologia aplicada. Bulimia nervosa foi disorder in type 2 DM. Besides, the presence of an ED was associated
o TA mais observado no DM tipo 1 e o transtorno da compulsão with a negative impact in diabetes control, specially in type 1 DM. It 163
alimentar periódica, no DM tipo 2. Além disso, a presença de um seems important to investigate the presence of an ED in patients with
TA associou-se a impacto negativo no controle do diabetes, prin- diabetes, above all in those that do not achieve an adequate metabolic
cipalmente no DM tipo 1. Parece importante investigar a presença control. The adequate treatment of an ED in diabetes could be associated
de um TA em pacientes com diabetes, sobretudo naqueles que não with a reduction in the clinical complications of this disease.
conseguem um controle metabólico satisfatório. O tratamento ade-
Uniterms
quado de um TA no diabetes poderia estar associado a uma redução eating disorders; diabetes mellitus; metabolic control; systematic review
das complicações clínicas dessa doença.

Unitermos
transtornos alimentares; diabetes mellitus; controle metabólico; revisão
sistemática
INTRODUÇÃO

O
diabetes mellitus (DM) é uma síndrome clínica ca-
racterizada por hiperglicemia inapropriada devido a
1) Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Instituto Estadual de Diabetes uma deficiência na secreção de insulina (tipo 1) ou a
e Endocrinologia do Rio de Janeiro (IEDE); Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). uma combinação de resistência insulínica e secreção inadequada
2) Serviço de Diabetes do IEDE. para compensar seu déficit (tipo 2) (Karan, 1999). O DM aco-
3) Instituto de Medicina Social (IMS) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). mete aproximadamente 7,6% da população brasileira entre 30
Recebido em 08/01/2004 / Aprovado em 22/03/2004 e 69 anos (Malerbi, Franco, 1992) e impõe custos elevados para
sua prevenção e tratamento. Apesar de todos os esforços feitos,
o diabetes é a principal causa de amputações não-traumáticas
Endereço para correspondência
Marcelo Papelbaum • Rua Barão de Jaguaripe 63, ap. 401 – Ipanema • CEP de membros, insuficiência renal crônica, além de ser a sexta
22421-000 – Rio de Janeiro-RJ • e-mail: mpapel@email.iis.com.br principal causa de morte (Musselman et al., 2003).

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Por ser uma doença crônica associada a elevadas morbi- BN e AN. Assim, hábitos alimentares inadequados poderiam
dade e mortalidade, vem crescendo o interesse em se inves- interferir diretamente no controle glicêmico e promover um
tigar a prevalência de transtornos psiquiátricos associados e aumento das complicações clínicas relacionadas ao DM.
suas possíveis relações com o DM. Alterações psiquiátricas Apesar do grande número de estudos sobre essa associa-
vêm sendo descritas no diabetes há pelo menos um século ção, ainda não podemos chegar a uma conclusão definitiva
(Maudsley, 1899). Vários estudos já documentaram aumento em relação ao aumento da prevalência de TA em pacientes
da prevalência de transtornos psiquiátricos, especialmente com DM e a sua influência no curso desta doença. Parte
de transtornos afetivos e ansiosos, em adultos com diabetes desses achados não-conclusivos deve-se à grande diversidade
(Grigsby et al., 2002; Musselman et al., 2003). A presença das amostras avaliadas e à heterogeneidade de instrumentos
do diabetes praticamente duplica o risco de depressão, que utilizados para a avaliação das alterações do comportamento
ocorreria em cada três pacientes com a doença (Moreira et alimentar nesses pacientes.
al., 2003). O risco potencial dos transtornos psiquiátricos O objetivo deste artigo é realizar uma revisão sistemática
em prejudicar o controle clínico do diabetes também vem para avaliar a ocorrência de TA em pacientes com diabetes,
aumentando a preocupação em se estudar a interface entre a além de investigar se a presença de uma alteração do com-
psiquiatria e a endocrinologia. Por exemplo, vários estudos portamento alimentar no DM associa-se à ocorrência de
têm demonstrado que a presença da depressão poderia estar complicações clínicas dessa enfermidade.
envolvida com o aparecimento mais precoce das complicações
do diabetes (Musselman et al., 2003).
METODOLOGIA
Os transtornos alimentares (TA) são síndromes psiquiátri-
cas relacionadas com a presença de perturbações do compor- Para a seleção dos artigos foi realizada uma busca eletrô-
tamento alimentar e da percepção da auto-imagem corporal. nica da literatura nas bases de dados MEDLINE, PsycINFO,
Na anorexia nervosa (AN), o indivíduo restringe, de forma LILACS, EMBASE e no The Cochrane Colaboration
164 voluntária, sua ingestão alimentar, no sentido de evitar ganho Controlled Trials Register. Foram utilizados os seguintes
de peso. No caso da bulimia nervosa (BN), os episódios de termos de procura: diabetes mellitus, eating disorders, anorexia
compulsão alimentar (ECA) são a base desse transtorno. Esses nervosa, bulimia nervosa e binge. Por fim, as referências biblio-
episódios são seguidos por atitudes compensatórias (vômitos gráficas dos artigos selecionados para possível inclusão neste
auto-induzidos, uso de laxativos, jejum ou atividade física ex- estudo também foram revisadas no intuito de encontrar artigos
cessiva) visando a evitar o ganho de peso conseqüente à grande não-localizados na busca eletrônica.
ingestão calórica associada aos ECA. Mais recentemente, o Foram incluídos estudos que avaliassem TA em pacientes
transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) tem sido diabéticos com data de publicação até dezembro de 2002.
reconhecido como uma forma de TA, de ocorrência bastante Quanto aos desenhos de estudos foram incluídos: estudos de
freqüente em indivíduos obesos (De Zwann, 2001). Nesse corte transversal e longitudinal, com ou sem grupo controle,
transtorno, os episódios recorrentes de compulsão alimentar revisões sistemáticas e metanálises, servindo artigos publicados
não são seguidos dos comportamentos compensatórios inade- em quaisquer idiomas. Além disso, para possível inclusão,
quados para o controle de peso observados na BN. os estudos deveriam conter amostras maiores ou iguais a 25
A observação clínica de diversos casos de pacientes diabéti- participantes. Essas amostras poderiam ser clínicas ou de base
cos com TA que exibiam um controle metabólico insatisfatório populacional com pacientes diabéticos, independente de sexo,
estimulou o melhor entendimento dessa co-morbidade. Vários tipo de diabetes e local de tratamento.
fatores poderiam ser responsáveis por esta associação. Primeiro, Foram excluídos estudos que investigassem outras formas
a preocupação persistente com a alimentação e a necessidade de alterações do metabolismo glicídico, como intolerância a
de uma restrição alimentar auto-imposta poderiam conduzir glicose ou diabetes gestacional, assim como foram excluídos
a uma conduta alimentar inadequada, assim como aos ECA. relatos de caso, cartas ao editor, revisões de experts e artigos
O ganho de peso associado ao tratamento insulínico aumen- cuja amostra avaliada fosse de pacientes psiquiátricos. Quando
taria a insatisfação corporal, o que poderia estimular práticas um artigo publicado em duplicata era encontrado, apenas uma
compensatórias freqüentemente observadas em pacientes com das versões era utilizada.

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Quanto aos instrumentos utilizados para o diagnóstico de até que um consenso final fosse obtido. Os revisores não
um TA, foram incluídos estudos que utilizaram entrevistas estavam cegos para os nomes dos autores, instituições e jornais
semi-estruturadas, como o Structured Clinical Interview for de publicação.
DSM (SCID)(Wing et al., 1996) e o Eating Disorder Exa- Foram coletados os dados de prevalência dos TA ou
mination (EDE) (Fairburn, Beglin, 1994). Adicionalmente de alterações do comportamento alimentar nos DM tipos
foram incluídos estudos que utilizaram diagnóstico baseado 1 e 2. Além disso, foram identificados dados referentes ao
na pontuação das escalas de avaliação do comportamento controle metabólico e à presença de complicações crônicas
alimentar, desde que tivesse sido estabelecido um ponto de do diabetes.
corte adequado. Por exemplo, diagnóstico do TCAP poderia
ser utilizada a Binge Eating Scale (BES) (Gormally et al.,
1982) quando o estudo usava como critério para o diagnóstico
RESULTADOS
pontuação maior ou igual a 17. Com relação à AN e à BN, era A Tabela 1 mostra o processo de seleção dos artigos nas
possível o uso de Eating Disorder Inventory (EDI) (Garner et diversas bases de dados utilizadas. Somente artigos a partir de
al., 1983), The Bulimia Test (BULIT) (Smith, Thelen, 1984), 1985 preencheram todos os critérios de inclusão. Foram encon-
The Bulimic Investigatory Test (BITE) (Henderson, Freeman, trados estudos nas línguas inglesa, francesa, alemã e japonesa.
1987) e o Eating Attitude Test (EAT) (Garner, Garfinkel, Entretanto apenas artigos em inglês e francês permaneceram
1982), todos com definições de critérios baseadas em pontos na seleção final. Dos 34 artigos incluídos nessa revisão, apenas
de corte padronizados. oito utilizaram amostra de pacientes diabéticos do tipo 2. Além
Os resumos dos artigos obtidos através da busca eletrônica disso, apenas dois estudos tinham como metodologia uma
foram examinados por dois pares de revisores independentes avaliação prospectiva de sua amostra. A heterogeneidade dos
(ROM e MP; JCA e IB). Primeiramente foi feita uma seleção métodos encontrados foi grande, porém a ausência de uma
através dos títulos dos artigos, excluindo-se aqueles que abor- classificação específica para o diagnóstico do diabetes foi um
davam temas claramente não-relacionados com essa revisão. consenso. A maioria dos estudos não utilizou um grupo con- 165
Logo a seguir, os resumos dos artigos selecionados após essa trole (64,5%), e os instrumentos utilizados para o diagnóstico
primeira etapa eram avaliados de acordo com os critérios de do TA foram diversos.
inclusão e exclusão. Caso não houvesse concordância entre Apesar de pertencerem a uma mesma síndrome clínica, os
os pares em relação à seleção de algum dos artigos, era feita diferentes tipos de diabetes apresentam aspectos específicos
uma discussão específica em relação ao estudo selecionado relacionados à sua fisiopatologia e ao seu tratamento. Em

Tabela 1 – Resultado da busca eletrônica nas diversas bases de dados


Base de dados MEDLINE PsycINFO LILACS Cochrane
Artigos identificados 342 88 1 0
Exclusão total
Artigos repetidos no MEDLINE NA 43 1 0
Livros 0 24 0 0
Revisões 33 5 0 0
Relatos de caso, cartas e abstracts 28 6 0 0
n amostral < 25 1 1 0 0
Não-relacionados ao tema 274 6 0 0
Não preencheram critérios de inclusão 5 3 0 0
Estudo com amostra duplicada 1 0 0 0
Total 34 0 0 0
NA = não-aplicável.

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função dessas características distintas, optamos por realizar 1989; Cantwell, Steel, 1996; Herpertz et al., 1998; Hudson
uma discussão específica acerca da presença de alterações do et al., 1985; Lloyd et al., 1987; Maharaj et al., 1998; Olmsted
comportamento alimentar para cada tipo de diabetes. et al., 2002; Pollock et al., 1995; Powers et al., 1990; Rodin et
al., 1991; Rodin et al., 1985; Stancin et al., 1989; Vila et al.,
Diabetes mellitus tipo 1 1993). Três artigos adicionais, que não definiram o diagnós-
A maioria dos artigos encontrados investigou a associação tico de TA, foram incluídos por usarem as médias de escores
entre TA e DM utilizando amostras de pacientes com DM1. dos instrumentos utilizados para fazer comparações entre os
O DM1 afeta uma população mais jovem, que, por conta grupos com relação a presença ou ausência de alterações do
dessa condição, necessita modificar seu estilo de vida de forma comportamento alimentar (Rydall et al., 1997; Takii et al.,
brusca. Assim, esses pacientes vêem-se obrigados a restringir 1999; Wing et al., 1986). Exceção para seis estudos (Fairburn
seus hábitos alimentares e a utilizar doses regulares de insulina, et al., 1991; Fukunishi, 1997; Herpertz et al., 1998; Peveler
justamente em um período da vida em que dificuldades de et al., 1992; Powers et al., 1990; Rosmark et al., 1986), foram
adaptação social são mais freqüentes. Alguns fatores poderiam utilizadas amostras exclusivas de mulheres, fato justificado pelo
predispor à ocorrência de TA nessa população: valorização aumento de alterações do comportamento alimentar observa-
exagerada da imagem e da forma corporal; faixas etárias de do nos indivíduos do sexo feminino em diversas amostras de
incidência de TA e DM1 semelhantes; e necessidade de con- populações não-diabéticas.
trole alimentar rígido pelos pacientes com DM1. As taxas de prevalência de TA no DM1 nos estudos que não
Além disso, a presença de um TA poderia repercutir no utilizaram grupo controle variaram conforme a metodologia
controle metabólico através do uso inadequado da insulina. A aplicada. Tendo em vista que os primeiros artigos avaliando
omissão das doses de insulina poderia ser um mecanismo com- essa associação apareceram na década de 1970, alguns trabalhos
pensatório utilizado para o controle de peso, freqüentemente selecionados utilizaram o sistema de classificação diagnós-
observado em pacientes com TA. Isso facilitaria a ocorrência tica Diagnostic and Statistical Manual of Mental Diseases
166 de complicações clínicas do diabetes, principalmente as com- (DSM-III) (American Psychiatric Association, 1980) para o
plicações agudas (hipoglicemia e cetoacidose diabética) e po- diagnóstico de TA. O DSM-III admitia o diagnóstico de TA,
tencialmente fatais. Nielsen et al. (2002), comparando grupos como o de BN, de forma menos rígida (não era exigida uma
de pacientes com DM1, AN e um terceiro grupo de pacientes freqüência mínima de dois episódios de compulsão alimentar
com ambas as patologias, observaram aumento significativo da por semana nem a sensação de descontrole associada a esses
mortalidade por complicações do DM em pacientes diabéticas episódios). Dessa forma, houve uma tendência a se superes-
que desenvolviam AN. timar a ocorrência de TA nesses estudos. O estudo de Rodin
et al. (1985), utilizando uma entrevista clínica baseada no
Prevalência DSM-III, encontrou taxas de 19,6% de TA em mulheres com
A Tabela 2 descreve os estudos que investigaram a presença DM1. O estudo de Stacin et al. (1989), também utilizando
de TA no DM1. Foram encontrados oito artigos com desenho o DSM-III, encontrou taxas de 11,9% de TA, todos os casos
de caso controle, com amostras exclusivas de pacientes com sendo de BN. Um terceiro estudo que achou valores elevados
DM1 sendo comparadas com grupo controle não-diabético de TA em mulheres com DM1 foi o de Hudson et al. (1985),
(Engström et al., 1999; Fairburn et al., 1991; Fukunishi, 1997; encontrando 35% de TA também com base no DSM-III
Jones et al., 2000; Peveler et al., 1992; Rosmark et al., 1986; (todas com o diagnóstico de BN). A faixa etária da amostra
Striengel-Moore et al., 1992; Vila et al., 1993). É importante avaliada também teve influência sobre as taxas de ocorrência
ressaltar que apenas um estudo controlado utilizou como grupo de TA. Birk et al. (1989) calcularam as taxas de alterações do
comparativo uma amostra de base populacional (estudantes, comportamento alimentar estratificando sua amostra em duas
pareadas por sexo e idade). Também apenas um estudo con- faixas etárias: observou-se maior freqüência de TA na faixa de
trolado avaliou, de forma longitudinal, a ocorrência de TA 13 a 25 anos do que quando se incluíram pacientes com idades
em indivíduos com DM1. Além disso, encontramos quinze entre 13 e 45 anos.
estudos não-controlados avaliando a ocorrência de TA no Houve uma tendência geral de taxas mais elevadas de
DM1 (Affenito et al., 1997; Biggs et al., 1994; Birk, Spencer, TA nos pacientes com DM1 do que aquelas observadas em

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Tabela 2 – Prevalência de transtornos alimentares no diabetes mellitus tipo 1


Tipo de Amostra Sexo Faixa etária n Prevalência Prevalência
estudo (anos) amostral de TA de TA (grupo
(%) controle) (%)
Olmsted MP; 2002 Transversal Ambulatorial F 12-19 212 61,3
Jones JM; 2000 Caso controle Ambulatorial F 12-19 356 10 4*
Bryden KS; 1999 Longitudinal Ambulatorial F/M 11-18 65 7,7/2,6#
Engström I; 1999 Caso controle Populacional F 14-18 89 6,7 0*
Herpertz S; 1998 Transversal Ambulatorial F/M 18-65 187/153 7,9/2
Maharaj SI; 1998 Transversal Ambulatorial F 11-19 113 50,4
Affenito SG; 1997 Transversal Ambulatorial F NI 90 15,5
Fukunishi I; 1997† Caso controle Ambulatorial F/M NI 130 10 1,6/1,9
Cantwell R; 1996 Transversal Ambulatorial F 17-30 147 8,8
Pollock M; 1995 Transversal Ambulatorial NI > 16 79 3,8
Biggs MM; 1994 Transversal Ambulatorial F 16-40 42 9,5
Vila G; 1993 Caso controle Ambulatorial F 12-19 52 7,7 0*
Peveler RC; 1992 Caso controle Ambulatorial F/M 11-18 33/43 9/0 6**
Striegel-Moore RH; 1992 Caso controle Ambulatorial F 8-18 46 0 0*
Fairburn CG; 1991 Caso controle Ambulatorial F/M 17-25 54/46 11,1/0 7,5*
Rodin GM; 1991 Transversal Ambulatorial F 13-18 103 13
Powers PS; 1990 Transversal Ambulatorial F/M NI 46/51 2,2/0
Birk R; 1989 Transversal Ambulatorial F 13-25 148 20,9
167
Stancin T; 1989 Transversal Populacional F 12-30 59 11,9
Lloyd GG; 1987 Transversal Ambulatorial F 16-25 208 7,2
Rodin GM; 1986 Transversal Ambulatorial F 15-22 58 20,7
Rosmark B; 1986 Caso controle Ambulatorial F/M ≤ 40 41/45 9,7/2,2 0**
Rodin GM; 1985 Transversal Ambulatorial F 15-22 46 19,6
Hudson JI; 1985 Transversal Populacional F 14-25 80 21
*Grupo controle com mulheres não-diabéticas; **grupo controle com amostra mista de homens e mulheres sem diabetes; †utiliza amostra de pacientes com DM1 e doença renal
terminal. Não estratifica resultados pelo sexo. Grupos controle (pacientes com nefrite/pacientes com doença do colágeno); NI = não-informado; #percentual de incidência.

estudos avaliando alterações do comportamento alimentar na Powers et al., 1990). No estudo de Powers et al. (1990), o
população geral. A maioria dos estudos em pacientes diabéti- instrumento utilizado para o diagnóstico de TA (Eating Habits
cos encontrou taxas de TA que variavam de 7,2% a 20,9%, Questionnaire – modified for DM) não foi encontrado em
mas Olmsted et al. (2002) encontraram uma prevalência de nenhum outro estudo semelhante. Além disso, o trabalho não
61,3% de TA em uma amostra de mulheres com DM1. Porém informa o tipo de diabetes avaliado. Supõe-se que pela média
o autor utilizou o EDI para o diagnóstico das alterações do da idade dos participantes ter sido muito baixa, a maioria
comportamento alimentar (o mesmo ocorreu com o estudo dos pacientes deveria ser portadora de DM1. Enquanto isso,
de Maharaj et al. (1998), que observaram uma prevalência de Pollock et al. (1995) também encontraram taxas menores de
50,4% de TA). Por apresentar critérios amplos e pouco espe- TA (prevalência de 3,8%). O fato de o autor não informar a
cíficos para o diagnóstico de TA, houve uma superestimação distribuição de sexo na sua amostra limita a interpretação dos
dos resultados. resultados, visto que a ocorrência de psicopatologia relacionada
Em contrapartida, dois estudos encontraram valores me- ao comportamento alimentar varia de forma distinta entre
nores para a freqüência de TA no DM (Pollock et al., 1995; homens e mulheres.

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Nos estudos com controles, a prevalência de TA em pacien- homem com DM1 apresentaram TA. Apesar de a incidência
tes diabéticas variou de 6,7% a 11,1%. De uma maneira geral, desta ter sido baixa nesse estudo, é importante ressaltar que
é importante ressaltar que a maioria dos estudos controlados o autor observou uma freqüência elevada de psicopatologia
encontrou prevalências semelhantes de TA. Apenas o estudo de relacionada ao comportamento alimentar entre os pacientes
Striegel-Moore et al. (1992) não observou a ocorrência de TA com DM1. Além disso, a ausência de outros estudos que
entre as pacientes com DM1. Além disso, mesmos os estudos avaliem a incidência de TA no DM1 e a falta de um grupo
que apresentaram taxas de freqüência de TA um pouco menores comparativo sem diabetes dificultam a interpretação desses
(6,7% e 7,7%, respectivamente) observaram, através do uso de achados. Herpertz et al. (2001) também realizaram uma
escalas dimensionais, uma elevada prevalência de psicopatologia observação prospectiva de pacientes com DM. Os autores
relacionada ao comportamento alimentar (Engström et al., 1999; encontraram que 61,1% dos pacientes diabéticos com TA
Vila et al., 1993). O fato de avaliarem pacientes em uma faixa avaliados no início do estudo mantiveram esse diagnóstico
etária inferior à de maior incidência dos TA poderia ter sido quando reavaliados após dois anos. O fato de os autores não
responsável pelo menor número de casos de TA diagnosticados. informarem o número de casos novos de pacientes com TA
Assim como observado em populações não-diabéticas, a pre- limita as conclusões desse estudo. Além disso, a utilização
valência de TA nas amostras de indivíduos do sexo masculino de uma amostra de indivíduos com DM1 e DM2 limita as
foram bem inferiores à observada entre as mulheres. Dos três conclusões desses achados, já que as características dos TA no
estudos controlados, dois deles não conseguiram observar ne- DM parecem ser específicas para cada tipo de diabetes.
nhuma alteração do comportamento alimentar entre os homens Entre os diversos fatores associados ao desenvolvimento de
com DM1 (Fairburn et al., 1991; Peveler et al., 1992). Além TA, a obesidade parece ter um papel importante no aumento
disso, todos os grupos controle evidenciaram menor ocorrência da preocupação com a forma corporal e na ocorrência do
de TA em relação aos indivíduos com diabetes. descontrole alimentar. Dessa forma, o aumento de peso po-
O estudo de Fukunishi et al. (1997) mereceu discussão deria ser um fator preditivo de um comportamento alimentar
168 isolada em função de ter investigado a presença de TA em uma alterado. Bryden et al. (1999) observaram que o ganho de
população de pacientes com DM1 graves com doença renal ter- peso concorrente com o tratamento do diabetes estaria asso-
minal. Foram utilizados, como grupos comparativos, pacientes ciado a uma maior preocupação com a forma corporal. Um
com nefrite e doença do colágeno. Diferentemente do padrão dos principais fatores relacionados ao excesso de peso seria
usual de ocorrência das alterações do comportamento alimentar a hiperinsulinemia associada a múltiplas doses de insulina.
no DM1, observou-se que a presença de nefropatia diabética Observamos então que, apesar de reduzir de forma significativa
grave atua como fator de risco para o desenvolvimento de as complicações associadas ao diabetes, o tratamento intensivo
TA, principalmente de BN, inclusive em populações de faixas do DM poderia ser um fator de risco para o desenvolvimento
etárias distintas das observadas na população geral (no estudo de alterações do comportamento alimentar através do ganho
de Fukunishi et al. (1997) todos os pacientes apresentavam de peso conseqüente ao melhor controle metabólico.
mais de 58 anos). Apesar de não podermos inferir possíveis Por fim, tendo-se em vista que aspectos socioculturais são
causas relacionadas a esses achados, o aumento da restrição importantes na gênese de TA, seria interessante avaliá-los no
dietética (principalmente relacionada ao conteúdo protéico aparecimento de TA em populações com DM. O estudo de
da dieta) imposta pela ocorrência de doença renal associada Hudson et al.(1985) foi o único que investigou a prevalência
poderia agir como fator predisponente adicional na ocorrência de TA em duas populações culturalmente distintas de pacientes
de transtornos do comportamento alimentar. com DM1: uma amostra urbana e outra rural. Não houve di-
Estudos longitudinais permitem um melhor entendimen- ferença nas taxas de TA encontradas nessas duas amostras. Esse
to da história natural das doenças, avaliando os fatores de trabalho sugere que a presença do DM1 poderia ser um fator
risco sugeridos pelos estudos transversais. Lamentavelmente de risco para o desenvolvimento de TA, independentemente
existem poucos estudos longitudinais investigando a presença dos fatores relacionados ao ambiente sociocultural.
de TA no DM1. Bryden et al. (1999), utilizando o EDE, De uma forma geral, o conjunto dos estudos analisados
observaram, em uma amostra de 65 pacientes com DM1 sem (controlados e não-controlados) descreve um aumento na
TA, que, após oito anos de seguimento, duas mulheres e um ocorrência de TA no DM1. Apesar de em menor quantidade,

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Diabetes mellitus e transtornos alimentares: uma revisão sistemática

praticamente todos os estudos que utilizaram um grupo com- com DM1 e com BN do que em indivíduos com TCAP.
parativo corroboraram a tendência sugerida pelos trabalhos sem Provavelmente, o uso inadequado e a omissão das doses de
grupo controle. A observação, em diversos estudos, de altas insulina (comportamento purgativo mais freqüentemente
taxas de TA subclínicos reforça a hipótese de um aumento encontrado entre os pacientes diabéticos com BN), por alterar
de psicopatologia relacionada ao comportamento alimentar de forma mais intensa os níveis glicêmicos, tenham melhor
no diabetes (Biggs et al., 1994; Engström et al., 1999; Vila se correlacionado aos elevados níveis de hemoglobina glicada
et al., 1993). Apesar de a BN ter sido o TA predominante no (HbA1c) do que os ECA.
DM1, os estudos também apontam uma freqüência aumen- Parece que o prejuízo exercido pela presença de TA sobre
tada de TA sem outra especificação. Seguindo as observações o controle metabólico segue um padrão de continuidade. Os
em populações não-diabéticas, alterações do comportamento artigos que incluíram na avaliação uma terceira amostra de
alimentar foram mais comumente encontradas em mulheres pacientes com TA subclínicos reportaram níveis de HbA1c
do que em homens. intermediários entre os pacientes com e sem TA (Engström et
al., 1999; Vila et al., 1993). Alguns estudos, como o de Wing
Controle metabólico et al. (1986), também puderam confirmar esse mesmo padrão,
Na Tabela 3 encontram-se algumas características dos evidenciando piora gradativa do controle metabólico conforme
artigos selecionados nesta revisão que avaliavam a influência a utilização de subamostras de pacientes com variações de
dos TA no controle metabólico e na ocorrência de complica- escores superiores nos questionários de avaliação dos hábitos
ções clínicas do DM1. Quatorze estudos avaliaram as reper- alimentares (BES, EDI).
cussões da presença de um TA no controle do DM1. Desses, Apenas um estudo avaliou o controle metabólico dos
nove evidenciaram pior controle metabólico nos pacientes pacientes com DM1 que apresentavam um TA de maneira
com DM1 que apresentavam algum TA. Takki et al. (1999) prospectiva. Herpertz et al. (2001) não conseguiram comprovar
comprovaram um pior controle metabólico em pacientes diferenças nos níveis de HbA1 em pacientes com DM1 que
169

Tabela 3 – Controle metabólico e presença de complicações clínicas do diabetes mellitus


tipo 1 em pacientes com transtornos alimentares em comparação com grupo controle

Controle metabólico Neuropatia Retinopatia Nefropatia


Herpertz S; 2001** −
Jones JM; 2000 ↓
Engström I; 1999** −
Takki M; 1999 ↓ + + NA
Herpertz S; 1998 −
Rydall AC; 1997 ↓ NA + +
Affenito SG; 1997* ↓
Cantwell R; 1996 − NA + +
Vila G; 1993 ↓
Fairburn CG; 1991 ↓
Rodin GM; 1991 ↓
Birk R; 1989 ↓
Rodin GM; 1986 −
Wing RR; 1986 ↓
↓ = pior controle metabólico; − = sem diferença estatística; + = presença aumentada; NA = não-avaliado; *o autor encontrou freqüência aumentada de qualquer tipo de
complicação clínica do diabetes no grupo que apresentava transtorno alimentar; **estudos longitudinais.

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exibiam alterações do comportamento alimentar após dois DM2, comparativamente ao DM1, torna mais difícil o estudo
anos de seguimento. da relação entre TA e DM2. Essas características da doença
são diferentes daquelas observadas em indivíduos com TA.
Complicações clínicas Entretanto, com a recente inclusão dos critérios diagnósticos
As complicações clínicas relacionadas à presença de um TA para o TCAP no DSM-IV (American Psychiatric Association,
dependem do tipo de alteração do comportamento alimentar 1994), observamos um aumento dos estudos que avaliavam
predominante. Por exemplo, na BN, a ocorrência de vômitos as alterações do comportamento alimentar relacionadas à
auto-induzidos pode levar a lesões dentárias ou a laceração obesidade. Dessa forma, o número de publicações avaliando
do esôfago. Já na AN, a restrição alimentar pode ter como TA no DM2 também aumentou.
conseqüência um quadro de desnutrição protéico-calórica.
Da mesma forma, o tipo de TA pode ter influências distintas Prevalência
sobre o controle clínico do diabetes. As taxas de prevalência de TA variaram de 2,5% a 34%,
Apenas três estudos investigaram a presença de complicações sendo o TCAP o TA de ocorrência predominante. Apenas um
crônicas do diabetes, como retinopatia e neuropatia (Cantwell, estudo observou o diagnóstico de TCAP em uma amostra de
Steel, 1996; Rydall et al., 1997; Takii et al., 1999), em pacientes homens com DM2 com uma taxa inferior à de BN (Kenardy
com TA. Além de serem poucos, esses trabalhos evidenciam et al., 1994). Nos dois estudos que utilizaram grupo controle, as
algumas limitações metodológicas. Isso ocorre devido à ausência taxas de TA foram baixas (Kenardy et al., 1994; Mannucci et al.,
de utilização de um instrumento adequado para o diagnóstico 2002). Kenardy et al. (1994) reportaram uma prevalência de 6%
dessas complicações. Na maioria das vezes, esses estudos uti- de TCAP em uma amostra de mulheres com DM2, enquanto que
lizam o relato de alguma complicação relacionada ao diabetes nenhum TA foi evidenciado no grupo de mulheres sem DM2.
descrita em prontuário médico. No estudo de Takii et al. (1999) Mannucci et al. (2002) encontraram 2,5% de TCAP em um
foi observada maior prevalência de neuropatia e retinopatia em grupo de obesas com DM2. O diferencial desse estudo foi o fato
170 pacientes com BN do que sem TA. Entretanto, assim como o de os autores analisarem amostras maiores de pacientes utilizando
evidenciado com o controle glicêmico, pacientes diabéticos com dois tipos de grupos controle: um grupo de obesas sem DM2 da
TCAP não exibiram tais complicações. Cantwell e Stell (1996) comunidade e um grupo de obesas que estavam em tratamento
encontraram aumento da presença de lesão retiniana conse- para emagrecer. No primeiro grupo, a prevalência de TCAP foi de
qüente ao DM nos pacientes com TA. Os autores observaram 2,1% e no segundo, de 4,2%. Os autores concluíram enfatizando
nefropatia com mais freqüência nesses pacientes. Apenas Rydall a influência da obesidade (mais do que a presença do diabetes)
et al. (1997) utilizaram critérios diagnósticos bem definidos como fator associado à ocorrência de TA. Outros três estudos sem
para que pudessem diagnosticar um aumento de retinopatia grupo controle, que avaliaram a ocorrência de TA em amostras
e nefropatia diabéticas em mulheres com DM1. Assim, de exclusivas de mulheres com DM2, encontraram prevalências
uma forma geral, todos os estudos evidenciaram associação elevadas de alterações do comportamento alimentar (34,8%;
positiva entre a presença de TA e a ocorrência de complicações 20,9% e 8,4%, respectivamente) (Crow et al., 2001; Herpertz et
crônicas do diabetes. Essa observação também foi comprovada al., 1998; Kenardy et al., 2002). Todos os estudos que incluíam
por Affenito et al. (1997), que encontraram aumento global homens em suas amostras observaram taxas de TA mais elevadas
de quaisquer tipos de complicações relacionadas ao DM em entre as mulheres.
pacientes com DM1 e TA ou TA subclínico. Quanto à seqüência temporal de aparecimento de psico-
patologia relacionada ao comportamento alimentar, Herpertz
Diabetes mellitus tipo 2 et al. (1998), em uma amostra grande de pacientes com
Embora 90% dos casos de diabetes sejam do tipo 2 (Karan, DM2, observaram que 89,3% dos TA tiveram início antes
1999), somente oito artigos avaliavam TA no DM2, com datas do diagnóstico de DM2 (diferentemente do que ocorre no
de publicação somente a partir de 1994. Um dos motivos desse DM1). Esse achado fala contra a existência de fatores de risco
pequeno número de estudos reside no fato de o DM2 ser uma diretamente relacionados ao diabetes como responsáveis pelo
doença muito associada à obesidade e acometer indivíduos em desenvolvimento de alterações do comportamento alimentar. A
idade mais avançada. Adicionalmente, o início insidioso do presença de um TA, principalmente do TCAP, poderia ampliar

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o risco de obesidade, aumentando a chance do indivíduo em de publicações que relacionem os TA com a ocorrência de
apresentar posteriormente o diabetes. O fato de Crow et al. complicações do DM2 a médio e longo prazos.
(2001) observarem um maior índice de massa corporal em De uma forma geral, ainda são poucos os estudos que
pacientes com DM2 e TCAP, quando em comparação com avaliam a associação entre TA e DM2. Esse fato se deve
pacientes com DM2 sem o TCAP, reforça essa hipótese. principalmente ao interesse relativamente recente em se
investigar as alterações do comportamento alimentar rela-
Controle metabólico e complicações clínicas cionadas à obesidade. As taxas de TA, principalmente do
Dos oito estudos que utilizaram indivíduos com DM2, TCAP, parecem elevadas. Nesse tipo de diabetes, a obesidade,
apenas dois avaliaram a influência da presença de um TA no muito mais do que o próprio diabetes, parece ser o fator mais
controle glicêmico do diabetes (Crow et al., 2001; Herpertz importante associado à presença de TA no DM2. Apesar de
et al., 1998). Entretanto nenhum desses artigos analisou o não se mostrar correlação entre a presença de um TA e a ocor-
efeito das alterações do comportamento alimentar sobre a rência de complicações clínicas do DM2, devem-se enfatizar
ocorrência de complicações crônicas do diabetes. Não foram o pequeno número de artigos que investigaram tal associação
encontradas diferenças estatisticamente significativas nos e a ausência de estudos que avaliaram complicações tardias
níveis de HbA1 entre os grupos de pacientes com DM2 com do diabetes. Além do mais, a incidência de um TA pode vir
e sem a presença de um TA. Além disso, em um estudo com a aumentar a predisposição individual ao desenvolvimento
tempo de acompanhamento mais longo, Herpertz et al. (2001) do diabetes através de seu favorecimento do sobrepeso e da
observaram que após 2,2 anos não houve diferenças nos níveis obesidade.
de HbA1 em pacientes com DM2 que apresentavam um TA.
Completamente diferente de todos os achados até então, o
COMENTÁRIOS
estudo de Mannucci et al. (2002) encontrou correlação entre
os níveis de HbA1 e os escores do EDE. Além disso, apesar ESSA REVISÃO EVIDENCIOU QUE SOM ENTE A P ARTIR DA DÉCADA DE
da ausência de diferença entre os níveis de HbA1, a presença 1980 HOUVE M AIOR P REOCUP AÇÃO EM SE INVESTIGAR, DE M ANEIRA 171
de um TA poderia dificultar o controle medicamentoso do ADEQUADA, A ASSOCIAÇÃO ENTRE O DIABETES E OS TA. COM ISSO, O
diabetes, exigindo o uso de um número maior de medicações NÚM ERO DE ARTIGOS SELECIONADOS QUE P REENCHESSEM OS CRITÉRIOS
por parte dos pacientes e uma maior percentagem de indivíduos DE INCLUSÃO FOI LIM ITADO. ALÉM DISSO, M ESM O ENTRE OS ESTUDOS
com DM2 em uso de terapia insulínica. SELECIONADOS, A GRANDE VARIAÇÃO NA M ETODOLOGIA UTILIZADA DIfi-

Diversos motivos poderiam explicar o pequeno número CULTOU A COM P ARAÇÃO DOS RESULTADOS. MESM O ASSIM , ALTERAÇÕES

de estudos que avaliam a influência dos TA na ocorrência DO COM P ORTAM ENTO ALIM ENTAR P ARECEM ESTAR RELACIONADAS AO

de complicações clínicas no DM2. Primeiro, o controle DM, SEJA P OR UM A M AIOR OCORRÊNCIA DE TA NESSES P ACIENTES,
metabólico dos pacientes com DM1 é bastante difícil, sendo SEJA P OR UM AUM ENTO DE P SICOP ATOLOGIA RELACIONADA AO COM -

necessário um esquema de insulinoterapia intensiva, o que P ORTAM ENTO ALIM ENTAR. É IM P ORTANTE RESSALTAR QUE A AUSÊNCIA

facilitaria a manipulação dos níveis glicêmicos pelos pacientes DE UM DIAGNÓSTICO DE TA EM UM P ACIENTE COM DIABETES NÃO

através do uso inapropriado da insulina. Nos indivíduos com EXCLUI A P OSSIBILIDADE DE EXISTIREM ALTERAÇÕES SUBCLÍNICAS DO

DM2, o controle clínico da doença depende menos do uso COM P ORTAM ENTO ALIM ENTAR QUE ESTEJAM P REJUDICANDO O CONTROLE

de diversas doses de insulina, sendo mais difícil conseguir ADEQUADO DA DOENÇA. DE FORM A INTERESSANTE, A FORM A COM O
alterações importantes nos níveis glicêmicos pela omissão das ESSA ASSOCIAÇÃO SE FAZ P ARECE DEP ENDENTE DO TIP O DE DIABETES

doses de insulina. Além disso, na história natural do TCAP INVESTIGADO. NO CASO DO DM1, AS DEM ANDAS DE M ODIfiCAÇÃO DOS

(principal TA no DM2) é freqüente a ocorrência de remis- HÁBITOS ALIM ENTARES RELACIONADAS AO TRATAM ENTO DESSA P ATOLOGIA

sões espontâneas. Assim, a influência desse transtorno sobre AGIRIAM COM O FATOR P REDISP ONENTE P ARA O DESENVOLVIM ENTO
o comportamento alimentar seria intermitente e, portanto, P OSTERIOR DE UM TA (P REDOM INANTEM ENTE BN). NO CASO DO
com menor potencial de influenciar o controle glicêmico. Por DM2, AO CONTRÁRIO, A P RESENÇA DE TA (P REDOM INANTEM ENTE
último, como dito anteriormente, foi recente a preocupação TCAP) P ODERIA FAVORECER O AUM ENTO DE P ESO E, P OSTERIORM ENTE,
em se estudar a associação de TA no DM2. Com isso, ainda O DESENVOLVIM ENTO DO DIABETES. OUTRO P ADRÃO OBSERVADO FOI A
não pudemos observar, no momento, um número considerável DIVERSIDADE DE ACHADOS QUE INDICASSEM UM A ASSOCIAÇÃO P OSITIVA

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entre TA e complicações clínicas no DM1, em contraposição possam corroborar essa hipótese. É fundamental que profis-
à ausência de evidência de que a presença de um TA prejudi- sionais que atendam diabéticos estejam atentos para quaisquer
casse o controle metabólico do DM2. A incidência de ambas alterações que possam sugerir um TA, principalmente naqueles
as desordens em populações mais jovens e o papel da insulina pacientes que, apesar do tratamento adequado, não conseguem
como instrumento de manipulação potente do metabolismo atingir um controle metabólico adequado. Perguntas simples
glicídico nos indivíduos com DM1 poderiam ser fatores como Você já apresentou episódios de descontrole alimentar? ou
associados a essa diferenciação de achados de acordo com o Você já omitiu alguma dose de insulina para que pudesse evitar ga-
tipo de diabetes. nhar peso? podem distinguir um grupo de pacientes suscetíveis
Os achados desta revisão reforçam a noção de correlação en- ao desenvolvimento de TA e, possivelmente, de complicações
tre TA e DM, servindo como um estímulo a novos estudos que do diabetes a médio e longo prazos.

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