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A POÉTICA DA NARRATIVA:
um estudo da obra de Ismail Kadaré
2013
Tese de Doutorado
Faculdade de
Diego de Figueiredo Braga Pereira
Letras
UFRJ
2013
A POÉTICA DA NARRATIVA:
UM ESTUDO DA OBRA DE ISMAIL KADARÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A POÉTICA DA NARRATIVA:
um estudo da obra de Ismail Kadaré
Rio de Janeiro
Agosto de 2013
FOLHA DE APROVAÇÃO
(COLAR ATA DE DEFESA)
Banca Examinadora:
Abordagem hermenêutica da poética da narrativa de Ismail Kadaré a partir de oito de seus romances
publicados em língua portuguesa, contendo uma elaboração propedêutica a respeito dos parâmetros
teóricos que devem fundamentar a leitura de um autor contemporâneo, pressupostos estes que devem
estar em correspondência ao próprio modo de composição e sentido da obra do autor em questão. A
investigação o sobre a poética que marca as linhas centrais dos romances de Kadaré aqui estudados
que conformam a poética da narrativa em questão atravessa quatro temas: a questão da imagem da
sistematização opressiva da realidade; a questão da relação estabelecida nos romances entre história,
memória e epopeia; o sentido que natureza e cultura ganham como mundo e terra no
desenvolvimento em sua poética; como o destino dos personagens tal como se consuma nas formas
do amor, da morte e da relação de amizade. Ao longo da tese, foi realizada também, uma discussão da
fortuna crítica sobre a obra de Ismail Kadaré.
Rio de Janeiro
2013
ABSTRACT
An hermeneutic approach to the poetics of Ismail Kadare's narrative based on eight of his novels
published in Portuguese, including a propaedeutical consideration on the theoretical foundations that
should ground the reading of a contemporary author, foundations which must correspond to the very
mode of composition and the general meaning of the work of that author. The inquiry about the
poetics outlining the novels by Kadare so studied and configuring the narrative poetics at issue here
examines four themes: the issue of the imagery for the opressive systematization of reality; the issue
of the relation stablished in the novels involving history, memory and epopee; the meaning that nature
and culture acquire within the development of such poetics; how the character's destiny is fulfilled in
the ways of love, death and friendship. Along this thesis, a debate with the criticism on the work of
Ismail Kadare was also brought about.
Rio de Janeiro
2013
Dedicado às 13 milhões de pessoas que, no
Brasil atual, são privadas do direito de ler esta
tese.
Há muita gente que merece meus
agradecimentos. Na impossibilidade de
mencionar todos, manifesto minha gratidão
àqueles a quem mais devo por este trabalho:
- Ernest Hemingway
INTRODUÇÃO 15
CONCLUSÃO 234
ANEXO III: Resumo das tramas dos romances de Ismail Kadaré estudados 243
Dossiê H 246
O Sucessor 251
BIBLIOGRAFIA 258
15
INTRODUÇÃO
Ismail Kadaré é um autor ainda pouco conhecido no Brasil. Apesar de já termos mais de uma
dezena de suas obras traduzidas para o português até agora, seu desconhecimento decorre não apenas
do fato de que se trata de um autor contemporâneo. É, além disso, um escritor de um país pequeno,
desconhecido e relativamente atrasado da Europa que, não bastasse, passou 40 dos últimos 60 anos sob
um regime ditatorial dos mais sangrentos e repressivos do século XX, que isolou o país não só do
mundo capitalista, mas também dentro do próprio bloco socialista. O decisivo, porém, é a densidade da
obra de Ismail Kadaré. Seus livros pouco têm em comum com os sucessos comerciais do mercado
literário e, tampouco, com os padrões já aceitos pela crítica literária oficial da “boa literatura”, o que
Esta tese se insere, assim, no contexto dos estudos literários e acadêmicos na área de letras,
como um trabalho pioneiro, sobre um autor de grande relevância e qualidade. A nosso ver, sua obra traz
questões decisivas e encerra uma poética capaz de articular caminhos de narrativa que se mostram
plenos de possibilidades e de empenhos fundamentais para arte. Nós constituímos nosso estudo da
poética do romance de Ismail Kadaré com base em oito de seus romances traduzidos para o português:
Abril Despedaçado, A Ponte dos Três Arcos, O Palácio dos Sonhos, O Dossiê H, Três Cantos Fúnebres para o Kosovo,
método é uma disposição que se dá pelo próprio caminho de pensamento. Constitui-se como método
na medida mesma em que prossegue a compreensão do questionamento articulado. O método não pode
ser prévio, embora tenha sido pensado de modo preparatório. O pensamento do método do capítulo
um, assim, se dá, na verdade, mas como uma observação acerca dos conceitos, metodologias, teorias e
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racional, afetiva ou sensível -, atentando para suas insuficiências e procurando estabelecer uma vigência
poética para orientar a caminhada constitutiva do método. Trata-se, a rigor, de uma contraposição às
abordagens humanistas do poético. A medida para essa contraposição é uma relação distintiva entre o
ontologicamente originário. Esta distinção não se constitui num pressuposto ad hoc, porquanto salta da
própria poética da obra, como se vê a partir do capítulo três, onde começamos propriamente nosso
obra estudada, mencionada no primeiro parágrafo desta introdução. Visa fornecer algumas informações
básicas acerca da literatura, da cultura, da história e da política albanesas. Situa, também, no horizonte
crítico mais geral, a obra de Kadaré, ao modo de uma ligeira revisão bibliográfica. No entanto, as obras
que tratam dos romances de Kadaré que se mostraram mais aprofundadas na percepção e compreensão
de suas questões centrais foram trazidas para o debate conforme o caminho de nossa interpretação foi
Assim, no capítulo três, tratamos da questão que talvez possamos dizer que é a central e que
atravessa o conjunto da obra do autor albanês: a contraposição entre a dimensão mitopoética do narrar
como épos e a dimensão do sistema em seus aspectos determinantes, conceitual, iluminista, tecnificante,
reificador, desumanizador e sangrento. À diferença da maior parte dos críticos que abordam a obra de
Kadaré, não consideramos essa questão como uma alegoria política ou referência historiográfica. Trata-
se, para nós, de uma vigência do narrar que chamamos de presentificação histórica.
histórica e em que medida ela é constitutiva da obra de Kadaré. O primeiro ponto do questionamento
articula a dimensão do épos a partir da patente presença que mitos e lendas têm, não somente como
temas, mas como vigor poético que instaura o próprio ritmo da composição do romance de Kadaré.
Pensamos esse vigor a partir de uma consideração do épos em âmbito mítico para, então, articularmos
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sua relação com a composição própria do romance. O nosso estudo nos levou para além da
identificação tradicional entre poesia oral e épos, por um lado, e entre romance e literatura, por outro.
Afinal, a palavra épica pode atravessar toda obra, independente de esta ser escrita ou oral. Ademais,
note-se: nem toda oralidade narrativa é garantia de epopeia. A questão da escrita e da oralidade, assim
considerada, traz a necessidade de se repensar a relação entre narrar e memória como agir inaugural do
humano do homem em que este instaura sentido de realidade. Assim, colocam-se as questões de lugar e
O capítulo seguinte aborda, a partir da urdidura realizada anteriormente entre narrar, memória,
épos e história, a questão de como mundo e terra podem ser pensados como vigência poética daquilo
que os diversos humanismos consideram como natureza e cultura. A insuficiência destes conceitos
impede de pensar como a unidade se dá entre forma e conteúdo numa obra poética. Como forma de
dizer esta unidade no horizonte poético de mundo e terra, abrimos dois excursos, um musical e outro
cinematográfico, onde procuramos pensar a poética de Kadaré para além dos limites da língua, rumo à
dimensão da linguagem. Cinema, música e literatura são línguas artísticas em que se dá a linguagem
poética. Atravessar as diferenças de suas fronteiras nos permite compreender a identidade de sua
origem. Assim, procuramos encaminhar a compreensão da poética de Kadaré desde o originário de sua
linguagem. Este originário é a tríade de dois em que o velado concede a reunião de ficção e verdade.
O capítulo final trata de três vias de consumação dos envios pelos quais uma obra, ao se fazer
obra, faz-se realidade e, por sua vez, o homem, seja autor ou leitor, na medida em que realiza a obra na
leitura e na escrita, realiza a si mesmo como homem em obra. Estas três vias, conforme o aceno que nos
vem dos romances de Kadaré aqui abordados, são eros como amor e paixão, morte como vigor de vida no
horizonte do sacrifício, e a questão do amigo ou, mais propriamente, do phílos, experiência daquilo que
nos é próprio e, por isso, a cada manifestação do que somos, permanece velado como o que não somos.
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no que se vela como incessante origem. De tal forma colocado, este dizer afirmativo é questionamento.
Assim é porque não se trata de uma proposição. Fora da estrutura propositiva, o sujeito já antes se
consuma humano. Neste consumar habita a possibilidade de que aquele que fala se apresente em fala
como aquilo que a linguagem fala. O humano – desimpedido pelo entrave da subjetividade entronada
como fundamento do real – é uma fala. Esta fala afirma a todo tempo um questionamento, por isso não
propõe. Reconhece no real não uma projeção de suas ideias expressas em códigos linguísticos, mas a
questão que é o campo na qual a fala se afirma em humanidade. O predicado, fora da estrutura
racionalidade do ente presunçosamente central – o ente racional -, se enleva para além da denominação
moralizante, pela qual se adjetiva a realidade propositivamente, ou seja, confunde-se o real (propositivo)
com a realidade (horizonte em que se pode enunciar qualquer proposição). Assim, o predicado é um
dizer de coisas com resposta a uma presença. Com isso, não queremos dizer que esta vigência de
Contudo, para que o desafio seja genuinamente desafiador, é preciso que se esteja atento, em
escuta, ao que a realidade apresenta como desafio. Assim, respondendo ao desafio como apresentação
desafiadora da realidade, um dizer já não pode caber na estrutura propositiva como predicado,
porquanto a ação já não é ação como decisão do sujeito. A ação, para o humano em escuta, é o
empenho de cuidado com o real que se apresenta, é acatar os desafios e lançar-se em desafio à realização
dos sistemas, da linguagem como código e conceito, da redução do humano ao sujeito entronizado
como fundamento do real e da redução do real à predicação emitida propositivamente pelo sujeito é,
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porém, totalmente outro. Nesta hegemonia o próprio mundo é conjunto de coisas, conjunto de
realizações. Não há sentido. O que concede haver cada uma das realizações, vale dizer, o que está entre
todas elas, diferenciando-as, portanto, ao mesmo tempo em que as identifica, está perdido, nesta
Imprescindível é o passo. Como dissemos, ocorre aqui, já, um primeiro óbice. Os desafios devem ser
realmente desafiadores, para que o passo seja ousado o suficiente a ponto de constituir, no pensamento,
pensamento que procura ser um cuidado com a realidade, ou seja, um método que parte daquilo a que quer
chegar, que parte, portanto da obra como mistério, para chegar ao mistério como obra. É o que diz
Heidegger, que chama este caminho de cuidado com a realidade de “caminho do campo”: “Do caminho
do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas
vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma sageza sutil. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a
literária, consiste em deixá-la operar para que dela se colha uma obra de pensamento, um diálogo de
interpretação. Então, quando dizemos “avanço”, não é avanço no sentido tradicional do progresso,
segundo o qual trata-se apenas de seguir um curso preestabelecido com a segurança esquemática dos
sistemas, com a precisão falsamente precisa – porque mediação do imediato – dos conceitos. Trata-se do
avanço no sentido radical: aquele em que não se pode medir a distância com qualquer bitola já existente
que, inevitavelmente, nos manteria presos ao já pensado como medida. Assim, os desafios desafiadores
não podem ser aqueles propostos por problemas surgidos como problemática de respostas anteriores.
Estes desafios são mera continuidade no sentido daquilo cujo questionamento originário já foi calado
há desafio genuíno quando a realização já parte dos moldes seguros para a reprodução do já produzido.
O desafio precisa ser escutado. O desafiador é, sempre, o produzir-se de uma obra, isto é, o operar que
leva adiante tanto o produzido como o que produz como aqueles que surgem como concessões da obra
em operação.
É neste ponto que se interpõe o aprendizado como questão. Porquanto o que se coloca para
nós, em vista do enunciado até aqui, é: 1) a necessidade do sentido como libertação das amarras da
subjetividade, dos conceitos, dos sistemas e dos códigos que reduzem a realidade ao conjunto das
realizações, limitando o pensamento a ser pensamento apenas quando pensa o já dado, ou seja,
limitando o pensamento a ser raciocínio; 2) que a vigência do que está entre as realizações,
sentido para aparecer no contexto da hegemonia descrita em (1); 3) que o desafio impõe que se parta
não de um modelo já dado (porque este modelo nos limita à obliteração dos sentido) e, assim sendo,
remete a uma composição em que o homem e sua produção aparecem ambos tanto como produtores
quanto como produzidos referenciados no operar de uma obra; 4) que posto desta maneira o desafio
pode nos levar adiante em caminho, no sentido pleno - e não ínfimo de metodologia – constituindo-se num
aprendizado (de fato, numa dinâmica verbal, não substantiva, vale dizer, não estática, conceitual e a-
histórica); podemos afirmar que o aprendizado do sentido requer o sentido do aprendizado e, assim,
trata-se, nessa requisição, de nos colocarmos em escuta diante da realidade apresentando-se como obra.
É nesta escuta que reside a incessante origem velada do sentido do aprendizado como aprendizado do
sentido.
correspondente à escuta da incessante origem do sentido, capaz de articular a linguagem como poiésis e
não como suporte conceitual, conduzindo a permanência no seio das mudanças ao modo de uma
compreensão da história como sentido de mundo, não como causalidade cronológica e historiográfica.
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Então, é preciso começar a pôr o passo no caminho pelo questionamento da obra não somente
como superação e oposição à redução sistemática da realidade, mas como o próprio horizonte originário
de onde podem surgir (e no qual tendem a moscar, a seu tempo) todos os inúmeros sistemas que se
dominante, hoje. Questionar a obra é, antes de mais nada, ouvir a obra, auscultá-la, porque se de
antemão nos colocamos discursivamente, apenas, cala-se a obra e o questionamento se torna afirmação
Antes de mais nada: não é uma posição de passividade e aceitação dócil. O que se aceita, na
escuta, é um desafio ao pensamento que convoca o próprio ao caminho do agir essencial, porquanto a
escuta nos empenha no caminho do que é constitutivo do que somos a cada momento de modo sempre
atual e, ao mesmo tempo, permanente: a linguagem. Essa congregação constitutiva articula a totalidade
da experiência de consumação do humano como dicção do sentido histórico. Assim, toda escuta é a
tomada de caminho no percurso de uma narrativa que transcende o indivíduo – sem aceder à alternativa
igualmente limitadora da dissolução do humano no coletivo – bem como o sujeito – seja agente ou
paciente – como fundamento do real. A narrativa consolida a linguagem em tempo e percurso, ou seja é
sentido enquanto caminho de consumação do humano. É como consumação do humano que a obra, no
horizonte da escuta, se faz imagem-questão na linguagem do pensamento que acata o desafio do agir
2 CASTRO, 2007.
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Desta forma, é como escuta que a obra convoca aquele que se coloca em escuta ao agir
essencial, no qual o operar da obra se dá. Na escuta, a obra repousa entre o ser escrita e o ser lida, e
assim se constitui como aquilo que se faz na medida em que o seu sentido acontece, inaugural e
originário, como caminho de sentido na consumação do que aquele que escuta é. Assim, esse agir da
escuta é tão essencial que, muito mais que um mero analista de obras, o leitor-em-escuta é aquele capaz
de ser criador, de deixar surgir um sentido inaugural na fala da obra, na medida em que concede lugar à
linguagem, pela escuta. Este sentido não é externo nem alheio ao que o leitor-em-escuta é. Antes, é o
acontecimento deste sentido que consuma o que este leitor-em-escuta é no seu caminho de
consumação. Portanto, na escuta, entre leitor e obra inaugura-se um diálogo. Na fala da obra, o leitor
está em fala. Na medida em que a obra fala, fala o leitor operando como sentido. A operação do sentido
se dá, porém, pela escuta. De onde se pode dizer que, no entendimento que procuramos encaminhar
aqui, o leitor fala na medida em que escuta: fala na medida em que se faz obra e conforme o sentido da
Essa é uma primeira indicação do caminho – método – que tentaremos trilhar neste trabalho.
como tempo ao longo do caminho. Este trabalho é a narrativa da constituição de uma fala em escuta. O
esforço de narrar é sempre o esforço de ouvir. Nenhum narrador pode levar a cabo o desafio de narrar
se não é capaz de ouvir a convocação do narrar. Esta convocação é o que os antigos gregos chamavam
de apelo musal, de função de musas que, abrindo o ensejo do narrar, permitida a constituição de
linguagem em mundo3. Esta tarefa não é simples e remete, em sentido poético, pleno, não a um atuar
humanista, mas sim ao agir essencial poético consistente na habitação de uma aprendizagem: morar na
linguagem como edificação da existência em casa. Realização da palavra que resguarda na sua pronúncia
o mistério daquilo que não é dito como fonte mais real de toda e qualquer realização. Toda palavra
como habitação de sentido é sempre um projeto de porvir colhido na escuta pensante do passado.
Assim, a articulação da escuta como apelo musal edifica mundo na medida em que abre a preservação
do seio do que é, em última instância, o abismo da linguagem: o silêncio como dobra de todos os
Obrar como erguer as paredes da casa para compreendermos o acolhimento possível apenas em
seu vazio. Escutar a obra é o trabalho, o esforço, acatar o desafio de caminhar nas vias indevassáveis do
sentido, romper o meramente dado. Escutar é compreender as paredes da casa como concessões do
aconchego em seu vazio. Neste edificar, surge e pode perdurar a obra. No perdurar da obra reside a
concessão de sentido, através da qual a humanidade chega a ser humana de forma inaugural em cada
um, sem nunca se resumir à afirmação de uma individualidade, nem à conformação a uma coletividade.
Para além da dicotomia aqui instaurada, na escuta, reúne-se o que escuta e o que é escutado num
diálogo criativo, de onde as diferenças são concessões de uma identidade que nunca é algo dado. A casa
O que tentaremos aqui é, portanto, edificar a morada para que um pensamento possa habitar na
fala de uma linguagem como escuta da obra. A medida desta casa é o vazio que concede o aberto de
suas paredes. Nesta abertura é que pode residir um habitante. Apenas enquanto habitantes é que
podemos edificar qualquer casa. Por isso, não se trata aqui de uma simples reedição do humanismo
milenar. Antes, trata-se do reconhecimento de que o ser habitante é já uma doação da possibilidade de
qualquer edificação. E que a edificação, em si, não edifica o vazio, tal como a fala não constrói silêncio.
Antes, o contrário. É neste horizonte que a obra pode operar como obra e o pensamento comparecer
do pensar.
Esta caminhada encaminha, então, o que provisoriamente chamaremos de a escolha de uma obra.
Provisoriamente porque, no rigor poético do pensamento, não se dá de fato uma escolha. Ao menos,
não no sentido tradicional de decisão subjetiva acerca de um dado objetivo. Na escolha da obra, somos
desafio. A seleção a partir da subjetividade, seja racional ou afetiva, apenas nos mantém vinculados a
uma representação de nós mesmos como condição prévia que assegura a certeza, mas não arrisca o
pensamento. O pensamento é risco, quando radical. Nesta segurança reside a falácia de que o que se tem
por pensamento não passa de representação. Então, somos escolhidos na escolha porque nesta ousadia
Destinar-se ao não realizado não é fugir da realidade, antes nos abrir à possibilidade da
continuação de seu acontecer Só como acontecer da realidade é que a obra, o lume que surge na noite
do silêncio como o trovão da palavra, pode novamente brilhar, iluminando cada coisa em seu lugar,
afirmando mundo e seus horizontes. Para isso, é preciso a coragem do acolhimento em ousadia ao
pensamento que busca a casa na tempestade desafiadora: o questionar. Não temer o destino, como
quem não teme o inesperado de um trovão na noite, é a realização nos consuma na escolha em que
somos escolhidos, afinal, “Destino são nossas possibilidades contínuas que nenhuma ação, nenhuma
escolha, nenhuma realização chega a cumprir e dissolver, a eliminar. Toda realização é retomar no
realizado o não-realizado. Eis a ventura e aventura de existir, sempre nova, sempre inaugural, sempre
superação dos humanismos que radicam a realidade na subjetividade em suas diversas formas epocais de
determinação. Num sentido tal que toda escolha recai sempre como subjetiva ou objetiva, variando os
critérios. Trataremos disso de modo mais aprofundado nos capítulos seguintes. Por hora, diga-se que
nunca é uma escolha de pensamento, a menos, é claro, que se trate de superar a disjuntiva estrutural de
sujeito-objeto para deixar aberto o espaço da escuta inaugural donde advém os desafios como risco.
A verdade só poder vir daí. A verdade é sempre um risco e, apenas a partir do risco corrido e
enfrentado que pode chegar a se consolidar em certeza. Na certeza, o risco da verdade já não acontece,
convertido em realização como já realizado. Edifica-se, assim, o que apenas parece ser uma casa inteira
só de tijolos, que em verdade não é senão uma sintaxe de tijolos cujo sentido e verdade não se dão ainda
como habitação. Não há o vazio da habitação como concessão de silêncio para a eclosão da linguagem
4 CASTRO, 2011, p. 30
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propícia para falar a escuta da obra. Portanto, a questão se o que fazemos aqui é ou não ciência – ou ao
menos um conhecimento válido – é totalmente descabida não pela afirmação do valor do saber, mas pela
o conhecimento já não comparece na compreensão como apenas uma manifestação do saber a qual
esquecemos que o é. Não se pode conhecer sem antes estar aberto ao saber, que sempre se articula com
o não-saber. É por isso que o conhecimento, neste confinamento da compreensão – do qual nossa tese
se esforça em se distanciar, conforme trilha o caminho próprio – não é possível conceber o conhecimento
Mais uma vez, coloca-se o caráter central da subjetividade como fundamento último da
constituição do mundo ocidental sistemático. Sempre remete-se ao sujeito, ao homem entronizado no palácio
do real, cujas muralhas deixam lá fora todo o risco, do rio, toda floresta e toda noite do possível
acontecimento inesperado, onde somos enredados pelas escolhas que fazemos, na medida em que
corremos o risco que nos é mais fundamental. O risco da verdade. Em última instância, um risco
tem nele o fundamento de sua existência. Ocorre que o sujeito é agora alocado no
interior do intelecto do homem, que se define como racional, isto é, que conhece
segundo o modo da razão que representa, calcula e determina. A forma do conhecer
toma predominância sobre o teor: na metafísica moderna, epistemologia se sobrepõe à
ontologia. Este será o molde pelo qual se formam as teorias modernas sobre o mito. A
partir de Kant, a essência que garante existência coincide com as faculdades intelectivas
do homem. Não consiste a existência mais numa propriedade das coisas, mas no modo
de conhecê-las. Existente é o que é racionalmente representável, isto é, passível de uma
medida, de cálculo, manipulação e controle. 5
Portanto, na hegemonia do conhecimento como paradigma, não acontece a verdade, mas apenas
se assinala uma relação a uma proposição acerca do verdadeiro. Uma crítica no sentido de um juízo, não
conhecimento moderno sói em reproduzir como garantia de segurança, contra o risco, nos fala
Heidegger:
essência da verdade, cuja escuta articula a condição de possibilidade até mesmo da ciência e dos
paradigmas e que, portanto, é o acontecimento sem o qual qualquer posição pode chegar a ter sua
medida. Disto, fica dito que o que não é medido nem mediado, ou seja, o imensurável e o imediato, são
as possibilidades que originam no ente do questionamento (o ser humano) a possibilidade de vir a se tornar
o ente da ciência do mero ente. Fica dito, também, que é sempre de uma posição oferta como eclosão
do ente em acolhimento de escuta que se pode dar qualquer decisão. Ainda mais profundamente: que é
na decisão, em sentido radical, que já estamos já desde sempre lançados, porquanto habitantes desta
pletora como horizonte de nosso acolhimento-em-linguagem, isto é, em escuta da obra. Portanto, não é
possível se consumar como humano sem a todo o tempo já decidir, não a partir das subjetividades
O saber, assim, é a habitação na eclosão ao modo da escuta que acolhe, como posição, a
facticidade de estarmos sempre em decisão, não importando qual seja nosso empenho de escolha numa
instância subjetiva. Isto implica que o saber seja – numa tentativa de aproximação com o vocabulário
vigente, para tentar melhor nos fazermos entender – um conhecimento que é sempre redivivo. Nunca
paradigmático, é infenso à doutrinação disciplinar pela conceituação de sua linguagem e pela objetivação
de seu vigor de realização (eclosão). A linguagem do saber é o esforço do propício, mediante o qual a
eclosão do real é sempre uma convocação ao nomear. Esta nomeação na linguagem propícia nunca
acontece por acaso, não obstante ser infensa à doutrinação disciplinar. Não é possível confundir rigor
pensamento com o acontecimento da verdade. Neste sentido, o maior rigor reside na escuta do vigor
que consiste no empenho de tentar falar a linguagem propícia. Por isso, este empenho nunca pode se
enquadrar paradigmaticamente, porque sua nomeação não apenas marca o limite entre as realizações,
mas também estabelece, nesta mesma limitação, a possibilidade de reunião, de onde, como vimos no
O saber redivivo é, portanto, o saber falado na linguagem propícia da obra. É preciso que o
saber redivivo seja, então, não apenas rejuvenescido e nascido de modo originário, mas redivivo também
como vivo na rede que, ligando todos os seus pontos uns aos outros, deixa claro, como imagem-questão
que a rede é, como as linhas e nós de uma rede são concessões do vazio. Então, se a própria ciência já
experiência arriscada da verdade, são todos como redes7, é preciso reconhecer que o desafio do
pensamento poético começa onde o da ciência termina8. O desafio do pensamento poético é, portanto,
ser capaz de articular o saber do questionamento no âmbito da verdade imensurável e imediata – o vazio
da rede – para então constituir no percurso de seu caminho não a segurança de um novo paradigma e de
um método, mas o risco de uma caminhada, de um saber redivivo. Porém, para que se possa sequer
começar a acatar este desfio, é preciso, como dissemos, que a escolha da obra cuja escuta será originária
assolada pela técnica e pela destruição das possibilidades de vida - já não pode mais confiar nos
humanismos que em essência delineiam a trajetória metafísica do ocidente sistemático. Voltaremos à questão
da escolha mais à frente, porque ainda é preciso pensar um outro aspecto da questão do saber.
O outro sentido em que a pergunta acerca da cientificidade ou validade (cuja equivalência, com a
citação acima, acreditamos desnaturalizar) nos alça uma possibilidade de nos remetermos a uma
experiência mais própria do saber que, então, abre a este trabalho uma possibilidade de seguir seu
caminho. Como afirmamos, não se trata de criticar e invalidar a ciência como conquista, mas de
conquistar o que está para além dos seus limites como desafio do pensamento poético. Afinal, a própria
ciência está ligada a uma experiência de pensamento que não é, no sentido moderno, científica. A
palavra grega para ciência é episteme. Sobre esta palavra, recorremos ao esclarecimento de Leão:
E o que diz e significa episteme? É uma palavra composta da preposição epi e do verbo
ístamai. Ístamai diz estar em pé, solidamente estabelecido e fundado. E a preposição epi
acrescenta-lhe a conotação de pôr sobre, em cima, a cavaleiro de, por cima. Da
integração de todas estas dimensões formou-se, então, a experiência de conhecimento
e ciência em sentido forte de e próprio de episteme. Episteme não diz apenas
conhecimento, mas todo o contexto em que se constitui conhecimento. Corresponde
mais ou menos à experiência originária da scientia medieval e à nossa experiência
espontânea de ciência, destituída naturalmente de qualquer conotação moderna que,
em sua essência, equivale à técnica, no sentido de uma armação que tudo controla e
tudo transforma em dispositivo de uma disposição ilimitada e autorregulável9.
Então, adiantando que não se pretende aqui nenhum tipo de regressão, seja à epistême grega, seja
à scientia medieval, pois o que almejamos é avançar no caminho do desafio colocado ao pensamento
poético, é preciso compreender a importante daquilo para que Leão chama atenção, na citação acima: o
contexto em que se constitui conhecimento. Como percurso que converteu o saber em conhecimento
sistemático consiste numa “(...) armação que tudo controla e tudo transforma em dispositivo de uma
e para o conhecimento, esqueceu-se, com isso, o fundamental: a realidade. Para que possa haver
Cabe observar que a realidade é não apenas o conjunto das realizações – isto é o real – mas
também o não realizado. O sentido e a verdade do agir essencial daquilo que entendemos por ficção
reside nesta diferenciação fundamental. A ficção é a única vigência onde a língua, no seio da porquanto
da linguagem, é capaz de dizer não apenas o real, mas a realidade plena. Só a ficção diz a realidade,
como veremos, ao longo deste trabalho. Ademais, para que possa seguir o conhecimento da realidade o
caminho próprio do sentido histórico da humanidade, a realidade se realizando pressupõe sempre como
seu horizonte o não-realizado como realização possível, que nunca se esgota em qualquer realizar-se.
Um rio, por mais que se origine da fonte, destina-se à foz. Nunca pode vir a ser fonte, no sentido de um
retorno, mas já é a todo tempo a própria fonte se consumando, na medida em que se oculta sob a terra,
dentro da rocha, como fonte, e aparece como rio a céu aberto. Da mesma forma, o saber que se
concatena como caminhada de acolhimento do risco da verdade no pensamento poético em que fala a
escuta da linguagem propícia é sempre um saber que remete à abertura e à claridade – não é
obscurantista – mas resguarda suas possibilidades no não-saber como horizonte possível de qualquer
Então, nossa referência, aqui reiterada, à escuta em que fala a linguagem propícia, nada tem a ver
com correção e armação conceitual específica, mas sim à palavra que articula a verdade como dizer do
inequívoco, daquilo que nunca diz a mesma coisa quando diz o mesmo. Este esforço distingue o que
tornar uma eficiente serviçal da ciência moderna acerca do julgamento das proposições e da correção
representação de uma realidade que apresenta apenas a parte presente daquilo que originariamente é
presença velada como universal concreto10. Numa ironia histórica da malfadada sistematização da
10 “O atual é sempre concreto, porque vigora no originário, no poético. As novas obras poéticas não são repetição das
anteriores, mas também não são evolução. As questões não evoluem, não progridem. Contudo, a cada obra poética
nova elas são experienciadas inaugural e originariamente. A vida é sempre experienciação originária, porque é
poética. É o universal concreto e, portanto, poético. O universal por ser originário é sempre atual”. (CASTRO, s.d.,
verbete: Universal [1])
30
filosofia platônica, a filosofia moderna se converte num afastamento três vezes distante da verdade,
exatamente à proporção de sua pesquisa pelo verdadeiro, pelo juízo proposicional correto.
representação da linguagem, parece conduzir a um enfrentamento com o que viemos afirmando. Isso se
dá porque sua teoria pictórica do significado interpõe a lógica formal como possibilidade de sentido a
partir da necessidade de confrontação com a realidade para que as sentenças não se constituam como
pragmático da representação. Neste sentido, o confronto com a realidade seria irrecusável e a linguagem
medida dos seus universais. Assim, ao menos, parece. Ocorre que a obra de Wittgenstein é mais do que
este manual, porque justamente o que não se vê em toda leitura que se faz o fato de que há uma
continuidade na obra do pensador Wittgenstein. Como forma de contornar esta dificuldade é que se
divide sua obra em duas, como se tratasse da obra de dois pensadores diferentes 12. Por outro lado,
sistematização de seu pensamento. Por isso, chega-se a uma conclusão errônea de que a linguagem
conceitual pode de fato vir a estabelecer uma referência genuína a realidade em sua dinâmica de
realização e a partir daí fica estabelecido em segurança que as representações devidamente expressas em
proposições poderiam de fato nos dar não somente o verdadeiro – juízo –, como também a verdade13.
Porém, não é isso que diz a obra de Wittgenstein, em nosso entendimento. Em primeiro lugar
porque o desdobramento do pensamento acerca da linguagem na obra do pensador não é uma simples
pretendeu ser científica no sentido moderno do termo. É por isso, inclusive, que independe de hipóteses
e busca questionar a linguagem até os limites de suas possibilidades de dizer. Com o rigor próprio do
pensador, chega a esses limites e daí é que surge o contexto do famigerado segundo Wittgenstein, das
invés de colocar a linguagem em uma posição instrumental representativa da realidade, de fato afirma a
representações de seu pensamento. Referimo-nos ao fato de que toda a sua análise do discurso já parte
das possibilidades da linguagem. É daí que chega a conduzir aos limites da lógica, justamente onde a
pode fazer em relação ao real. Neste sentido, cabe apontar a perspicaz observação de Stein:
Portanto, não se trata de interpor a uma suposta atualização da lógica como fundamentação da
linguagem enquanto representação do pensamento e referencial do real como tal a uma subscrição de
questionamento que aluda à investigação de uma obra literária a partir de uma linguagem que possa
representá-la. Isso é impossível enquanto o que se almeja é o questionar em busca de uma verdade
poética que seja capaz de articular – dita na linguagem propícia – um questionamento em que a própria
linguagem – enquanto vigor de operar da obra (não trabalho como fazer material) – instaura as
14 Não se trata aqui de fazer uma interpretação exaustiva da obra de Wittgenstein. No que concerne à nossa questão
em relação ao pensador, remetemos o leitor ao elucidativo artigo de Santos (2008), com o qual temos muitos pontos
de acordo e à excelente interpretação de Leão (2000), no ensaio “O contexto Problemático do Tractatus de Ludwig
Wittgenstein”.
15 Idem, pp. 86-93, 100-102, 108-113, passim.
16 STEIN, 1973, p. 286
32
do conjunto das realizações é, portanto, não uma deficiência da lógica, mas antes um empenho
sistematizador que necessita converter a lógica num instrumental de medida para dar um aspecto
objetivo ao teor ajuizante de toda proposição. Por isso, a realidade não comparece, uma vez que
entendamos que a lógica, em si, não é o obstáculo que se interpõe entre a realidade e a linguagem, mas
antes uma sistematização da lógica como aspecto discursivo, como forma de um conteúdo que é juízo,
que é julgamento, que é moral e, portanto, não nos confronta com a realidade, mas apenas com uma
subjetivação da mesma. É um ponto de vista da realidade, por mais que se almeje vê-la como mais que um
conjunto de realizações.
Permanece, portanto, uma realidade apenas parcialmente real. Por isso é que reivindicamos, aqui,
um outro método: a escuta como presença habitante na linguagem como deslocamento da verdade
adstrita ao juízo subjetivo acerca do verdadeiro. Esta reivindicação se sustenta não por ser este juízo
parcial. Antes, porque vamos em direção à colocação de uma possibilidade adrede arriscada, e por isso
justamente possibilitadora de pensamento. O risco de acatar a verdade que comparece com todo o
âmbito e vigor de seu velamento. Afinal, qual a representação que pode se arrogar – por mais correta e
Existe, ainda, um outro passo a ser dado no caminho que conduz à obra pela escuta que é,
propriamente, o questionamento acerca da dimensão em que se pode dar uma escolha de obra na qual
somos escolhidos. Como é possível a escuta da obra sem que tenhamos previamente decidido a partir
de nós mesmos? Em primeiro lugar, é necessária a colocação de que a linguagem propícia que fala na
escuta da obra não é o suporte, tampouco a matéria de que é feita a obra. A obra poética é feita de
linguagem, claro. Mas neste '‘de’' reside de modo eminente não algo como uma matéria, mas antes, a
origem originária. A obra é de linguagem na medida em que guarda, na linguagem, sua origem. Neste
33
Toda obra poética guarda na linguagem sua origem ao mesmo tempo em que guarda, na sua
poeticidade. Porém, esta medida não é estabelecida como um algo, isto é, como um ente, mas remete ao
velamento do ente no resguardo da possibilidade mesma do provir. Somente provindo é que pode a
medida se dar, a todo momento, na dimensão poética. Esta dimensão acerca o próprio da obra poética,
portanto, por um outro extremo, na diferença deste sentido em que a obra poética é de linguagem, o qual
acabamos de apresentar.
do que na obra se produz tanto como produto quando como produtor à linguagem. A obra é de
linguagem na medida do pertencimento do que em seu operar se referencia à linguagem, vale dizer, na
medida em que, por exemplo, numa obra de literatura, é o texto em obra e o leitor/autor em obra. O
operar da obra é que referencia o texto e o leitor/autor. Este é o horizonte em que opera o falar da obra
correspondente à sua escuta. Como veremos mais à frente, é esta escuta que constitui o fingir de toda
ficção poética.
A escuta da obra articula então duas falas referenciadas numa terceira. Há a fala do autor, a fala
do leitor, e a fala da linguagem enquanto operar da obra. Não pode haver autor, nem leitor, nem texto se
a linguagem não os concede como fala de seu silêncio. Nesta concessão a linguagem se resguarda nas
falas que referencia em seu operar. A escuta deste operar é que é capaz de colocar todas as possíveis
falas de uma obra em operação. Portanto, a escuta é o mais essencial agir no âmbito do compreender e
do empenho de fazer acontecer o sentido de uma obra poética. Isso só ocorre, note-se, quando tanto o
A partir daí se instala uma outra posição acerca da perspectiva, tradicionalmente pragmática,
mas intrinsecamente carregada de valor, acerca da referência apropriante entre trabalho humano e
realização da obra18. Porém, o valor não pode ser determinado como medida de um humanismo, seja ele
17 A palavra “configurar” remete, aqui, à questão da referência entre ficção e verdade (ver tópico 5.2)
18 MERQUIOR, 1972.
34
secular ou não. Afinal, entre o trabalho e a humanização do homem reside um ponto de tensão
irrecusável para o pensamento que não se encontra circunscrito nos humanismos da estética no que
tange a questão da obra, que tem sua contraparte no pragmatismo no que se refere ao trabalho. O valor
do trabalho não pode ser a medida da vida a menos que se tensione trabalho e obra. Neste sentido,
da realidade fundamentados como paradigmas. Este traçado da obra, frente ao trabalho, abre as cadeias
do ciclo que é simples alternância entre necessidade e repleção. Também retém na consumação do
humano – para além da satisfação de necessidades – uma falta, um velar-se, um retraimento – para além
da mera carestia – que é renúncia. Nesta, abundam as possibilidades de realização, posto que o libertar-
se é articulado como uma dimensão: empenha uma origem e um destino, vale dizer: libertamo-nos
genuinamente quando não apenas nos libertamos de uma limitação, mas também quando nos
De nada vale nos libertarmos de um sistema ou paradigma para nos aprisionarmos em outro.
Por outro lado, a liberdade não é uma questão de decisão ou vontade humana a partir do trabalho, visto
que, em conformidade com a citação anterior, ele é subserviente à vida. É importante para garantir as
necessidades vitais, mas isto ainda não faz dele a medida possível do tensionamento de morte e vida.
Para compreender a dimensão do que se diz com isso, para além do que pode parecer um mero
ascetismo monacal, é preciso escutar o que diz Castro: ““Viver é deixar-se libertar para e na poiésis, no
agir que dá sentido a toda ação de viver, pois viver é sempre um empenho de ser”20.
Apenas quando o trabalho é obra, quando opera, ou seja, quando é dinâmico e vivo, quando se
retrai ao dar-se, nunca se limitando a uma coisa, é que pode dimensionar vida e morte, justamente
porque neste resguardo do velamento enquanto dar-se é que o trabalho como obra pode ser um entre,
não um algo. Assim, a superação do humanismo como medida impõe o trabalho numa dimensão de
obra a partir do tensionamento fundamental de vida e morte, mas esta é uma questão que apenas
tocamos aqui pare melhor referencias a compreensão do que seja obra, para levarmos adiante o
questionamento da escuta como método (i.e., como caminho de trabalho-em-obra). Voltaremos a este
Por hora, o que se nos permite dizer, até aqui, é que a escolha do homem já não é uma decisão
do sujeito e o valor do trabalho é uma via em que se pode consumar a humanidade tendo a obra como
medida que não pode ser medida. Porém, não cabe aqui o entendimento do trabalho como fazer
material, mas sim como operar do pensar, no qual uma obra de arte se consuma enquanto pensar no
pensamento em que um leitor (no caso de romances) desvela em sentido não um produto de um autor
pode, no ponto fulcral do sentido e da verdade da obra, encontrar-lhe um fundamento segundo o qual
se dê a medida como critério da obra. Não apenas porque este critério remete em última instância ao
sujeito que julga, tornando-se assim a própria realidade um real subjetivo, dependente daquilo que está
anula a própria possibilidade de que seu agir se dê como consumar, na medida em que nesta dimensão
A obra é a medida imensurável. Imensurável, dado que em seu operar, nunca limitada às diversas
sistemático, a obra referencia o trabalho e o ser humano no operar da obra. Assim, a linguagem está
para além dos códigos linguísticos, visto que o operar da obra pode abranger, enquanto humanização
fundamental é que o trabalho permaneça, tal como o trabalhador, referenciado na obra, para que haja
O homem não escuta porque tem ouvidos; mas tem ouvidos porque ele é um ser cujo
modo de realização se dá na escuta. Neste sentido, talvez possamos dizer que a escuta,
como remissão obediente ao que nos vem ao encontro, e a espera do inesperado, são
dimensões de um pensamento que se coloca à disposição da força22.
Neste aspecto, em que é preciso para que se dê o pleno vigor de uma obra como acontecimento
poético o mais radical agir da escuta como deixar operar da obra, é que se pode começar a compreender
como ocorre a escolha da obra na qual somos escolhidos. Não se pode se deixar fazer no operar de uma
obra a menos que nela estejamos escolhidos. Nós somos a obra operando. Ser humano é ser-em-obra da
linguagem. Pôr-nos neste caminho é o princípio deste trabalho e também o seu começo.
colocando-nos em obra. Neste “colocando-nos” está presente tanto o sentido reflexivo – de colocarmo-
nos a nós mesmos – como o sentido objetivo, isto é, por assim dizer, “de objeto” – da linguagem
agindo e nos colocando em obra -, muito embora, como já observamos, a determinação de objetividade
não seja apropriada aqui. Seria melhor falarmos de um diálogo, de uma projeção-em-diálogo da
linguagem em obra, muito mais apropriadamente do que falarmos em “objetos”. Mas em que dimensão
isto que a linguagem coloca em obra e que se coloca em obra como linguagem se diferencia exatamente
de um objeto de ação? Esta é a consideração final acerca da escuta como nosso método (caminho) que
faremos por hora, antes de avançarmos para os questionamentos futuros conforme avançamos.
onde pode se dar a caminhada de consumação do sentido da humanidade para além dos humanismos.
No esquema da relação sujeito-objeto ocorre que este objeto pode ser qualquer coisa, até mesmo um
outro ser humano23. A teoria da comunicação reproduz este esquematismo sob a forma de emissor e
receptor, sempre, mesmo quando tenta entrever a comunicação dentro do espectro mais amplo da
arte24, porquanto mantém a linguagem como forma de suporte capaz de se converter em mensagem 25,
seja na forma do símbolo, seja na forma do conceito ou ainda considerando sentido como conteúdo de
informação diferencial26.
No sentido do diálogo poético, afirma-se não uma estrutura formal mas o real concreto na
presença de um '‘eu’' e um '‘tu’'. O diálogo em si é uma composição de linguagem que só pode aparecer
na medida em que comparece como '‘eu’' e como '‘tu’'. Neste comparecimento, a fala do 'eu' e do 'tu' é
sempre a escuta da fala do lógos que tensiona o diá-logo. Isso significa que a linguagem não pode estar, no
diálogo, de antemão dada como código e seus significados, suas possibilidades combinatórias de sintaxe
e coerência. Isso não implica que se fale, neste diálogo, uma língua de completa idiossincrasia. Uma
língua incompreensível. A língua é sempre universal. Sua singularização é que só é possível na medida
É a linguagem, não as subjetividades, que singulariza, no diálogo, o 'eu' o 'tu'. A identidade está
naquilo que é comum e que permanece, como tal, incomunicável. “Comunicar” já é tornar comum. Não
se pode 'tornar comum' o que já é por excelência o comum. A linguagem é o comum porquanto reúne
partir das relações inúmeras dos diversos códigos, a conjuntura só pode ser uma constante referenciação
naquilo que ainda não se deu mas já é desde sempre o comum de todo diálogo.
A referenciação dialogal, portanto, articula como conjuntura aquilo que no contexto só pode ser
reafirmado a partir do que já está dado, isto é, aquilo que é texto, tecido enquanto fios e nós de uma malha
comunicativa. Neste âmbito, as possibilidades de singularização do 'eu' e do 'tu' são – por mais amplas
que se tornem a cada dia – sempre e a todo momento finitas. Na medida em que o contexto depende de
relações codificadas para estabelecer a comunicação, a determinação das singularidades se impõe à fala
mais como limitação do que como possibilidades. É por isso que o valor prático do silêncio é nulo, tão
nulo como o do ruído, no contexto comunicativo. Essa limitação não é possível transpor dentro da
estrutura que a determina e pressupõe. Já no diálogo poético, o silêncio é originário e criador, de modo
que as singularidades de '‘eu’' e de '‘tu’' se referenciam no que não tem medida, no imenso. São mais
possíveis que limitações, ou seja, seus limites são não apenas onde terminam o '‘eu’' e o '‘tu’', mas onde
Espaço é algo espaçado, arrumado, liberado, num limite, em grego péras. O limite não é
onde uma coisa termina mas, como os gregos reconheceram, de onde alguma coisa dá
início à sua essência. Isso explica por que a palavra grega para dizer conceito é
horismós, limite. Espaço é, essencialmente, o fruto de uma arrumação, de um
espaçamento, o que foi deixado em seu limite27.
A referência ao espaço não é aleatória. Por isso começamos esta parte de nosso caminho de
questionamento afirmando que “Partindo da consideração acerca do humano como uma projeção-em-
para além dos humanismos”. Este espaço é, sobretudo, uma articulação da linguagem em seu
desdobramento temporal como proximidade em que a distância das singularidades de 'eu' e 'tu' podem
se encontrar. Para melhor compreender essa dimensão, cabe uma breve consideração acerca da
experiência enunciada na palavra grega péras, que está presente em nossas palavras 'porta', 'perímetro' e
nos dão a dimensão do que é este limite, em sentido pleno, como liminaridade do questionar e não
Uma questão (...) não é uma delimitação, mas a própria liminaridade que constitui,
possibilita e sustenta toda delimitação. Uma questão não é uma definição, um conceito,
um sistema, mas também não é algo vago, muito embora seja uma abertura. Abertura
diz de algo que no âmbito dos limites está aberto. Por exemplo, imaginemos uma porta
que separa o interior da casa do exterior da rua. Fechada, ela seria algo como um
conceito, um limite fechado. Aberta, ela já seria mais como uma questão, porque,
aberta – dando passagem – ela ainda preserva a marca de liminaridade entre a rua e a
casa. Ao passarmos pela porta aberta, podemos dizer quando ainda estamos na rua e
quando já estamos em casa. A liminaridade da questão diz isso, de modo ainda mais
pleno: diz que estamos sempre nesta abertura (aquilo que é, literalmente, limitado por
nada), nesta referência entre limite e não-limite, entre um saber (presença sem a qual
sequer nos perguntaríamos, nos empenharíamos na e pela questão) e um não-saber
(ausência sem a qual também não nos empenharíamos na e pela questão). A palavra
“pergunta” já traz neste “per-“ o sentido de porta, de perímetro (marca de um limite),
de perfeição (no sentido original de circularidade) e, do modo como entendemos esta
palavra, apesar do “campo semântico” remeter a coisas feitas e fechadas, bem sabemos
que a pergunta é sempre um caminho, uma passagem. É que os “campos semânticos”,
por si, pouco nos dizem das experiências originárias e próprias: pouco têm que ver
com pensamento. Na imagem da porta de casa, a questão nos remete para o retorno
àquilo a que pertencemos. 28
identidade da linguagem, a singularidade da fala pode constituir o que somos: diálogo em que vigora um
'eu' e um 'tu'. Num segundo movimento, o 'eu' se articula como identidade, como liminaridade 'interna'
à qual corresponde, como diferença, um tu, agora no sentido de uma referência à alteridade. Neste
movimento, dialogar é colocar-se na linguagem com referência à alteridade que nos identifica com o
Neste sentido, tanto o 'eu' como o 'tu' escutam. Não existe emissor e receptor porquanto cada
um só pode ser o que é na medida de sua identificação com a alteridade, isto é, sua outragem, que ecoa o
famoso dizer de Rimbaud30, não por acaso, numa carta a seu professor de retórica, onde o poeta lhe
afirma ser impossível aprender a originalidade da linguagem poética por meio dos esquemas da retórica.
psicológicas e linguísticas fica aquém do eu e, ao mesmo tempo além do tu. Não chega a compreender o
'eu', mas também acaba por extrapolar a liminaridade do tu, numa inevitável violência conceitual contra
a alteridade. Na escuta como constitutivo do que somos, toda identidade se dá como diferença, e a
diferença sempre se dimensiona pela identidade como o silêncio imensurável da linguagem, cuja escuta
eclode como fala poética, pois “A escuta é sempre escuta de mais de um no um. Por isso, é constitutiva
da escuta a associação, o eco, a ressonância, a repercussão. Todo som é uma série de sons e, por isso,
podemos sempre tanto ouvir diferenças no mesmo como ouvir semelhanças no diverso"31. É
velado, articulando na distância do espaço e no tempo a proximidade daquilo que permanece oculto em
toda fala. É nesta proximidade que o outro habita pleno de possibilidade de o sermos.
A colocação se faz necessária e pertinente: a escuta da obra se dá como escuta de um 'eu' que se
identifica na alteridade. O 'eu' torna-se e a obra escutada, no diálogo poético em que o operar os
referencia na linguagem. Nesta pertinência, o leitor e o autor fazem a obra tanto quanto a obra os faz.
Este é o sentido do diálogo poético num primeiro movimento. O segundo, que é ainda mais profundo, é
quando o próprio outro se faz um eu, em que o tu é o que sou, ou seja, o movimento em espelho do
primeiro.
um não como limitação e delimitação da alteridade, antes como diferença na identidade que é a
linguagem se dando como fala, a partir da escuta. Neste movimento, conforme demonstramos
anteriormente, não apenas o 'eu' passa pelo processo de outragem, mas também o 'tu', que na medida em
que fala é um 'eu'. Nesta identidade do outro, reside a possibilidade de que a linguagem em escuta,
composição.
A partir de e para este vigor de composição em pregnância poética faz-se a obra como diálogo:
compreensão e sentido para uma possível aprendizagem, um aprendizado do possível que somos, como
sentido e verdade do real. Desta feita, o diálogo é o acontecimento da identidade na alteridade que
somos. Esta dimensão edificante de habitação na obra-em-diálogo é uma potência de sentido para a
resguardo do próprio. Não podemos nos esquecer, aqui, que fora do domínio paradigmático da
epistemologia assegurada pela relação sujeito-objeto, a obra poética, a obra de linguagem, pode ser tanto
o 'eu' como o 'tu' no diálogo-em-escuta. Obra não é objeto e tampouco leitor ou autor são sujeitos,
Com isso, queremos dizer que a obra fala. Cabe a escuta de sua fala. Na fala da obra, soa o
silêncio da linguagem. Neste silenciar em que a fala a obra a escuta é um agir essencial no qual a espera é
a todo tempo um lançar-se. Neste lançamento, o encontro daquele que escuta a linguagem dialogando
com a obra, remete ao vislumbre do que em silêncio é abismo. No sem fundo desta queda arremetemos
para o caminho onde pisamos. Pisar o sem fundo em queda é alçarmo-nos à possibilidade de
consumação do humano. Nesta humanidade reside uma quietude diante da qual a realidade não se
determina porque quaisquer de nossos méritos, mas nossos méritos é que são habitação na medida em
que o real se oferece como casa. A casa que habitamos é a linguagem: habitamos por a ela pertencer.
Apenas por a ela pertencermos é que podemos já habitá-la. Habitar é entregar-se como quem recebe
daquilo a que se pertence a sua propriedade. Na entrega do que nos é próprio a habitação surge como
aquilo a que podemos pertencer. Nesta possibilidade reside o caminho: assim, a escuta em diálogo é o
método possível para o pertencimento àquilo donde provém o que nos é próprio. Esta proveniência é
que pode constituir uma aprendizagem da narrativa poética para além de qualquer sistema, paradigma
ou demais reificações do saber em entes. Esta é a nossa tese, a nossa posição. Defendemos aqui uma tese
segundo a qual toda tese possível já requer a possibilidade de nos posicionarmos. Onde quer que nos
estaremos já posicionados a partir de onde já habitamos. Não podemos nos posicionar sem que
pertençamos ao que concede toda possibilidade de posição. Assim, é a fala da obra que será o tu de
nosso diálogo. Escutaremos a fala da obra. Nela, a tentativa de apropriação do que nos é próprio.
42
Deixar entrever no dito de toda fala o não dito da linguagem que nos concede diálogo-em-escuta.
Já que a escolha na hegemonia da subjetividade, acontece e é pensada sempre como uma decisão
pensado – é preciso, então, fazer algumas considerações sobre a possibilidade de uma outra vigência do
escolher, que articule um questionamento como risco de caminho da verdade, ou seja, que se empenhe na
verdade como desvelo do que se vela, um pensamento que tenha como penhor uma aprendizagem
poética narrativa como consumação do próprio que aprende, não um aprendizado de um sistema de
O verbo 'escolher', que articula nossa experiência entendida humanisticamente como decisão
subjetiva do homem como conceito de humano, se origina do latim ex-colligere32. Este verbo, por sua vez, é
formado pelo prevérbio 'ex-', com sentido de 'origem', 'ponto de partida', 'movimento do interior para
fora', 'dentre' e pelo verbo composto 'colligere', que vale, semanticamente, por 'juntar', 'reunir', 'colher',
'conter', 'compreender. Este verbo, por sua vez, é composto da prefixo 'cum' – 'com', 'junto de' – e do
Assim, ainda que nos limites da gramática, em que a língua como código encobre a vigor da
linguagem, já temos um deslocamento importante, talvez simplesmente pelo fato de um latim ser uma
língua que floresceu quando a metafísica do fundamento ainda não identificava o sub-jectum com o
conceito de homem. Este sentido de 'ler' como seguir pegando, na medida em que se compreende o que está posto, se
apresenta, por exemplo, na expressão 'legere vestigia', com o sentido de decifrar para seguir as pegadas. Este
legere, esta experiência de tomar, colher o que se encontra posto como quem segue um caminho na medida em que
compreende o que colhe articula já um pensamento em que começa a poder se entrever um sentido pleno do
acontecimento da linguagem como diálogo em que aquele que escolhe é, de fato, escolhido. Aquele que
colhe, só pode colher o que se oferta e, na medida em que colhe e vai seguindo, atento ao que se oferta.
Conforme segue o rumo daquilo que se apresenta para ser colhido, o que escolhe, recolhe em si o que
se faz como o seu caminho. Destarte, colhe o que se oferta como o que é próprio.
Neste sentido, caminhando, é que pode seguir colhendo a possibilidade de seguir adiante. Num
caminho onde aquele que atenta ao que se oferta pode vir a ser o que é na medida em que faz no colher,
o seu caminho. Faz o caminho na medida em que compreende. Ou seja, faz o caminho entendendo que
sem a oferta para colher ele nunca pode escolher. Assim, quando escolhe, está sendo escolhido como
No entanto, o verbo legere ainda não nos dá a experiência específica da escolha, por mais que já se
delineie como aceno. Porque para o pensamento, o sentido de 'escolha' não é a simples soma etimológica, a
novo, porque aquilo que, no pensamento reúne e concede identidade nas diferenças se vela como
originário, isto é, como possibilidade sempre do advento criativo e dinâmico do nascimento. É fonte.
Pensando o próprio da questão, com ex-colligere, nomeia-se um “reunir juntando o que provém
da origem, compreende o que se dá como movimento de surgir desde um interior – desde o velado –
para o aberto”. Desde essa compreensão é que podemos entender o seu sentido derivado de 'provocar',
'incitar' e 'intensificar'34. A etimologia e a gramática, porém, ainda não nos dão acesso ao que é digno de
ser pensado nesta questão, porquanto já perfazem, no caminho, uma conformação isenta de todo risco,
operando na pretensão de que a palavra transporta como suporte o significado que comporta uma
referência a realidade entendido como aquilo em que apenas o conjunto do realizado importa. Então, é
Retomamos o dito acima para darmos um passo adiante em nosso caminho de questionamento,
que é também questionamento do caminho. Tratou-se, até aqui, de pensar o método - não a
34 GLARE, 1983.
44
paradigmas fundados no sujeito. No diálogo, a obra será escutada, para entrevermos o enigma que em
sua fala, fala: a linguagem como silêncio que concede dizer e escuta. A obra será o tu e, nós, o eu. Ocorre
que, conforme vimos, no diálogo vigente como poética de um sentido, onde comparece o entre da
linguagem-em-obra como tensionamento fundamental do que se constitui como o que somos, torna-se,
no e pelo diálogo, o tu, um eu, e o eu, um tu. Aqui, assim colocado, de modo breve e resumido o
do humanismo não impede a vigência do agir essencial do humano do homem fazendo-(se) obra,
(…) falar é ao mesmo tempo escutar. É hábito contrapor a fala e a escuta: um fala e o
outro escuta. Mas a escuta não apenas acompanha e envolve a fala que tem lugar na
conversa. A simultaneidade de fala e escuta diz muito mais. Falar é, por si mesmo,
escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. O falar não é ao mesmo tempo, mas
antes uma escuta. Essa escuta da linguagem precede todas as demais escutas possíveis.
Não falamos simplesmente a linguagem. Falamos a partir da linguagem. Isso só nos é
possível, porque já sempre pertencemos à linguagem. O que é que nela escutamos?
Escutamos a fala da linguagem35.
Neste ponto não somos sujeitos da escolha, tampouco objetos. A reunião entre leitor e obra se dá como
copertencer na linguagem.
diálogo, se abre para a fala da linguagem. Apenas assim o autor pode ser autor. Porque se é verdade que,
em certa medida, o autor faz a obra, pois não há obra sem autor, até certo ponto, também é verdade que
não há autor sem obra, pelo que podemos afirmar que a obra faz o autor. O fundamental é que tudo
isso ocorre como eclosão velada do mistério da verdade na abertura da linguagem que possibilita toda
fala e toda escuta de qualquer diálogo36. Tudo isso vale, também, para o leitor-em-diálogo, enquanto
aquele que deixa mais uma vez acontecer o sentido e a verdade da fala da obra como calar-se da
35 HEIDEGGER, 2003, p. 203.
36 Cf. HEIDEGGER. 2010.
45
linguagem e, neste acontecimento, o leitor também se deixa acontecer como leitor, consumando-se o
sentido de sua humanidade no acolhimento da linguagem. Nesta dialética entre leitor/autor e obra, não
A estética moderna é a forma humanista que a metafísica da arte toma, fundada no sujeito a
partir de sua sensibilidade e racionalidade. Essa disposição impossibilitaria o diálogo poético do qual
pode surgir uma aprendizagem como consumação do humano, conforme vimos. Portanto, assumindo o
desafio, como já desde o início nos propusemos, de pensar a poética na aprendizagem narrativa como
questão, de acatar e adentrar o caminho do risco da verdade – salto no abismo do sem fundamento não
como negatividade, mas como afirmação das possibilidades do pensar pela negação da fundamentação
que bloqueia o advento da questão que o concede – é preciso que se assuma o entre que reúne obra e
leitor-em-escuta como um nada fecundo: essência velada da linguagem em toda a fala. Assim reunidos,
leitor e obra se pertencem. Então, pode-se se dar a vigência plena do diálogo poético donde o leitor é
escolhido em sua escolha da obra, na medida em que seu escolher é um acolher o velamento da
linguagem. Ao longo desta tese o desafio será tentar entremostrar este acontecimento se dando.
A interposição, aqui, de uma observação pode reconduzir-nos ao princípio: o próprio que vige
no apelo do velado requer a cautela de um passo que se pensa a partir do não caminhando. Então, o
vigor recusa a importância de uma decisão como se escolher fosse mesmo um ato de afirmação do eu
ou uma imposição do outro. Importa, na verdade, na recusa do vigor que se faz presente no risco da
verdade o diálogo tal como pensado: o a se pensar no em se pensando. Entretanto, o condutor do método
como caminho é sempre a linguagem. A pressão para recusar sua condução – guia que é origem
acenando desde o fim (no sentido do télos, grego: consumação do próprio em destinar-se) – é grande,
da epistemologia. Já não pode ser risco: rio que enfrenta a planície do que se almeja saber e que melhor
desenha suas curvas e declives. A corredeira, por vezes caudalosa, requer cuidado, se o pensamento
almeja seguir com afinco as peripécias do acontecimento da verdade se desdobrando na realidade que
comparece como questão. Portanto, a pergunta, “como, então, foi escolhida a obra de Ismail Kadaré,
46
senão a partir de uma decisão subjetiva?” já pode ser colocada e respondida como questionar,
propriamente, à luz do exposto. Esta resposta é um questionar em dois movimentos, que nos obrigarão,
desde sua abertura, a 'encerrar', este primeiro questionamento – na medida em que se o pode encerrar –
autor e leitor fazem a obra e esta, por sua vez, os faz, a condução da linguagem torna-se inegável, se
mantivermos o cuidado na escuta do seu dizer e atenção focada nas margens apenas para mantermo-
nos no entre do caminho, em vez de ficarmos em uma ou outra margem. Neste sentido, a escolha como
acolhimento da obra, pela obra e na obra que é a linguagem operando, introjeta sempre em si mesma
para esta abertura a nós – nós, apenas porque podemos estar abertos ao sentido – uma irredutível
solidão. Solidão no sentido primeiro da demora: do tempo propício que requer a espera pela abertura da
obra em linguagem.
A espera, em sentido próprio, é sempre solidão, porquanto o que vem ainda reside velado como
aquilo que se aguarda presentificar. Isso se dá tanto com o leitor, quanto com o autor, tal como uma
mãe com sua criança. Ela não 'cria' o filho, num sentido de ação subjetiva. Ela vela e o resguarda no
aguardo de sua maturação e surgimento, para o qual é preciso cuidado, mas o cuidado não cria. O
cuidado prepara o acolhimento. No sentido segundo, a solidão é casa. Na casa, o essencial permanece
ausência que possibilita a habitação. Como habitantes, somos sempre solitários. Essa é a fronteira onde
acabamos e onde começamos, mais que qualquer subjetividade: a irredutível solidão do habitar, do
fazer-se acolhimento enquanto casa. Porque nas edificações, muda-se o estilo e os materiais, ao longo da
história e conforme a região e a cultura. O que permanece, sempre, é o vazio de toda a casa. É o vazio,
o entre as paredes, que nos acolhe e nos concede morada. Uma casa, todas as casas de todos os estilos,
formas e materiais, tem sempre o vazio que permanece em todas elas como possibilidade de morada.
Até mesmo os que não têm edificação, até mesmo os nômades, têm o vazio essencial.
A experiência originária da casa como abertura é o casamento da terra com o céu. Nesta
abertura de vazio imenso – sem medida – o ser humano se embrenha no mistério que reside em todos
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os méritos de suas diversas organizações e edificações, de seus empenhos e desempenhos. Esta solidão
é, em suma, presença do vazio. Não se pode sentir solidão sem a ausência. Nesta ausência é que a
presença de alguém pode ser sentida como falta. A rigor, portanto, nenhuma solidão é 'solitária'. Há
sempre uma companhia, uma presença, presente ao modo da ausência: uma doação do vazio. Na
habitação desta solidão irredutível, o outro se apresenta como possibilidade e, na vigência da solidão
como espera – tempo – o vindouro se faz a próxima aparição a surgir no horizonte, a tensão e a emoção
de cada passo, a máxima referência na pisada do passo na terra, os olhos no horizonte e a grande
intimidade, ao longe, da terra com o céu, concedendo, a cada vez, vazio. Até que se faz, como uma fonte
que eclode, o diálogo. Assim é uma obra poética acontecendo plenamente na vida de um caminhante.
O segundo movimento de abertura mostra a hermenêutica como diálogo em que o objeto não
pode se diferenciar do método. Essa diferenciação é metologia, ou seja, é o modelo de trabalho de fazer
acontecimento da realidade como sentido e verdade, ou seja, aquele desvelar autovelante em que o
Portanto, é apenas já adentrando na própria obra – vale frisar, mais uma vez, não como obra do
autor, tampouco do leitor, mas da linguagem, onde este 'da' remete tanto à origem (proveniente da
pode compreender em que medida se dá o escolher como acolhimento. Isso, em vista de quê se faz
presente um vazio concessivo, que reduz as fixações do dado a doações do que se pode fazer quando se
O propício, neste horizonte, não é o 'adequado', a orthótes37, mas o que é capaz de deixar fazer
37 Observe-se que, no mito platônico da caverna em que se narra a condução de um aprendizado, os cavernícolas
passam da apaideusia para a paidéia. Neste percurso, que é originariamente uma caminhada, conforme o mito, a
medida desta paidéia não é – e nem pode ser – o próprio cavernícola, uma vez que ele se referencia como aquele
que está entre a apaideusia e a paidéia. A medida para o caminhar do aprendizado, segundo Platão, não é o homem
que caminha, mas a referência entre o caminho e o passo. Esta referência entre o caminho e o passo, em que o passo
se faz como concessão do caminho e o caminho se faz como realização do passo, Platão chama de orthótes. Neste
sentido, orthótes não pode ter o sentido de correção a partir do juízo, isto é, de correção humanisticamente
relacionada e/ou fundamentada. Aproxima-se, em Platão, a orthótes de um passo como o passo do andamento de
uma música, ou o passo de uma dança, isto é, um passo cuja medida é dada como ritmo que a obra impõe enquanto
possibilidade de realização de si mesma. Quando mencionamos orthótes, implicamos no termo o sentido
corriqueiro, da tradição conceitual, tendo em vista o aspecto prescritivo e normativo do sistema que, como imagem-
questão na obra de Kadaré, se contrapõe à dimensão poética, como se verá adiante.
48
abrindo-se o acontecer, é o propiciar, como quem se empenha no aguardo do que vem. Que venha,
então a obra, o operar-se-da-linguagem. Ela que importa. Ela é o risco. Que nos acolha, em nossa escolha.
Sendo o escolher da obra pelo leitor um acolhimento do velamento da linguagem pelo qual o
leitor é acolhido em sua referência fundamental à obra, consideramos oportuno, agora, fazer algumas
considerações sobre as palavras, como um aclaramento prévio desta referência fundamental, antes de
passarmos ao próximo questionamento. Toda referência fundamental impõe-se como uma referência
originária, isto é, como uma reunião de copertencer criativo. Nesse copertencer, os reunidos são
originário, isto é, os reunidos podem chegar a ser plenamente o que são, consumar-se na medida em que
o que os une não é um fundamento ou um terceiro elemento, um ente pensado, conceitual, um universal
abstrato, mas antes um vigor de reunião concreto, que cresce junto porquanto concede vigência os
reunidos, no vir à luz de seu resguardar-se. Apenas assim, quando o que reúne não é um algo, pode a
Este, que reúne, sendo nada, une, essencialmente. Isto significa que, enquanto reúne na
identidade, confere consumação do próprio e na uberdade das suas muitas vias, a diversidade jamais é a
pletora do excesso de conceitos sobre as coisas. A pletora dos inúmeros sistemas de pensamento no fundo tão
unívocos quanto efêmeros. Na reunião originária não há ensejo para a pletora do excesso de coisas.
Palpita a feracidade. Esta é dimensão onde a reunião originária se dá como possibilidade de consumação
pelo velamento do que reúne. Porque o que reúne como escolha originária também, ao mesmo tempo,
separa. Nesta separação cada um dos reunidos aparece na plenitude de sua consumação porquanto é na
proximidade do outro. No diálogo em que nada separa 'eu' e 'tu', no diálogo em que posso me outrar é que o
que sou pode se dar completamente, com tudo aquilo que é próprio. Neste sentido, quando 'escolho' o
parceiro-em-diálogo, no caso, a obra, tanto 'eu' quanto a obra estamos, na verdade, sendo escolhidos
Assim, naquilo que se apresenta como escolha, somos acolhidos, concomitante ao festim em
que somos reunidos em diálogo como procura. A procura é resposta à provocação a partir da fonte:
escolha, ex-colligere. A fonte que pode nos dessedentar é velada como silêncio da linguagem. A linguagem
é a fonte em que, por nossas escolhas de diálogo, somos escolhidos como aqueles que se consumam em
caminho, justamente porque a linguagem fala como silêncio que concede todo dizer. Tal como uma
fonte, que se revela no rio, velando-se como fonte. Olhando para a nascente, desde o mais ínfimo
brotar, já temos um rio. A fonte é aquilo que continua brotando como rio, mas em si não é uma coisa
que aparece senão como rio, velando-se como fonte. Onde está a fonte? No rio. Mas este estar no rio
não é um “estar por baixo” (fundamento), nem um “estar antes” (causa), porque a fonte não cessa de
ser fonte para que haja rio, da mesma forma em que desde que há fonte, há rio. A fonte permanece na
A obra que escolhemos é a obra com na qual fomos acolhidos na medida em que o que se vela
como silêncio – linguagem – abriu-se concedendo fala e escuta (diálogo) como possibilidade de
caminho. No caminho deste diálogo (narrativa), fomos colhendo o que se amostrava no empenho de
manter o cuidado e o resguardo daquilo que se vela em tudo que se apresenta. Esse velamento remete
tanto à consumação como destino (aprendizagem), no qual o que se vela é eminente como falta em nós
– falta esta que é provocação para a procura da origem (fonte). A obra com a qual, em nossa escolha,
fomos escolhidos, foi, inicialmente, o romance Abril Despedaçado, de Ismail Kadaré, muito embora esta
não tenha sido a primeira obra sua que lemos. Entretanto, foi ela que se nos abriu em mundo todas as
demais. Esta escolha em acolhimento foi se desdobrando em questionamentos cujas trilhas nos
conduziram por diversos romances em que o diálogo se seguia. Muitas obras vieram, ou melhor, viemos
a ser muitas obras. Ou talvez ainda não seja essa a linguagem propícia. A tentativa e o esforço vão no
sentido de que tal linguagem possa, em algum momento, ser falada neste percurso que ora se faz tese.
Será um diálogo com obras, em obra, e para vir a nascer uma obra. Neste diálogo, autor, leitor e obra
linguagem. Assim, uma poética. Neste sentido é que a escolha é nossa. “Nossa escolha” é a escolha cuja
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princípio, mas não somos mais os mesmos. Isso quer dizer que o caminho é uma forma de deixar
aparecer o princípio. Por isso, esta tese é, não posição, mas um caminho que tem aqui seu princípio.
O princípio é o caminho. Então, seguindo a caminhando. Damos um passo adiante rumo aonde
já estávamos. Daremos, em seguida, mais um. Consiste no questionamento do que seja a obra e a
aprendizagem que nela se dá como narrativa, para recolhermos como próprio o que no parágrafo
apenas se mencionou, sobre a obra narrativa com a qual que fomos escolhidos, no caminho de escolhas
que nos conduziram pela caminhada desta tese que tem aqui o seu princípio.
51
fundamental para se conduzir de modo pleno o diálogo poético em que a obra que aqui se apresenta
como um conjunto de romances de Ismail Kadaré possa operar. A dificuldade, então, reside na
antecipação de uma questão que se insere no âmbito do argumento como uma problema. Não
podemos, contudo, tratar a questão como um problema. No problema o ignoto está dado nos termos
que se apresentam. Na questão, o dessabido permanece como horizonte do saber possível enquanto
mistério que concede re-velação, verdade como re-velação. No pensamento da questão, a temporalidade
eclode como questionar em que a questão se recoloca como resposta. Na solução do problema, o dado
obtido encerra a caminhada num conhecido. Distancia-se, assim, o humano daquilo que é conhecido. Já
Desta feita, será preciso não antecipar a questão e seguir o caminho pelo argumento que se
constrói não previamente, mas no próprio desdobrar do diálogo. Essa foi a importância do
questionamento chegamos a uma questão que se antecipou: como é possível escolher uma obra ou um
conjunto de obras para realizar uma interpretação (ainda que como diálogo poético) sem que se incorra
numa opção subjetiva e, assim, permanecer nos marcos de um humanismo que se mostrou mister
evitar? Nosso ensaio de resposta afirmou que esta escolha, em vez de opção subjetiva afetiva ou
racionalmente justificada, deveria se dar como um ser acolhido em que se assume que no diálogo poético,
quem abre o espaço da fala e da escuta é a linguagem, não o homem. Isso, porém, mais que “resolver” o
Assim, em vez de primeiramente demonstrarmos por que escolhemos a obra de Ismail Kadaré,
vamos dialogar com a obra para abrir ao leitor desta tese o âmbito do próprio diálogo em que os
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romances lidos, operando, se inserem na possibilidade de acolhimento, tando de leitor como da obra, na
verdade da obra. Afinal, não podemos justificar uma escolha sem antes já partir de um determinado diálogo
Qualquer pretensão de justificar de antemão uma escolha esconde o fato de que esta escolha já
está informada por um sentido prévio atribuído a obra como hipótese a ser confirmada em tese. Esta
informação prévia consiste no óbice principal que a epistemologia interpõe entre o leitor e uma obra
para a eclosão de sua verdade poética. A escolha como acolhimento surge, portanto, apenas por conta
da própria caminhada do diálogo poético e só adquire qualquer importância a partir dela. Não pode ser
uma exigência prévia, sob o risco de que a questão se trate como problema.
Entretanto, será necessário, por conta das exigências não apenas formais, mas de leitura desta
A Albânia, sua cultura, língua e história são muito pouco conhecidos fora dos círculos mais
internacionalmente. Sua obra está impregnada de referências à sua terra, a um modo próprio de
Essas, porém, não são meras informações, mas elementos poéticos de intensidade no conjunto
de sua obra. Embora, ainda, a distinção entre informação sobre a realidade e o sentido e verdade de
mundo e terra apresentados no fingir da ficção não tenha sido devidamente questionada, pensamos que
vale a pena começar essa propedêutica com uma passagem sobre a Albânia em suas origens selecionada
de um dos romances do próprio autor que, por hora, pode servir como uma primeira aproximação.
Afinal, trata-se, sobretudo, não de compreender uma unidade geopolítica e etnocultural real
“representada” na ficção, mas de conhecer o modo como uma unidade de mundo e terra surgem como
verdade pela poiésis de uma obra narrativa como conjunto. Diz-nos Kadaré, na persona do monge Gjon
53
Ele me interrogou sobre nosso país e logo me pareceu que ele só tinha conhecimentos muito
vagos a respeito. Expliquei-lhe que descendíamos dos ilíricos e que os latinos. Chamavam nosso
país de Arbanum ou Albanum, ou Regnum Albaniae, e seus habitantes de arbanenses ou
albanenses, o que dava no mesmo. Disse-lhe depois que, há alguns anos, o povo de nossa terra
deu um outro nome a nosso país. Chamava-o agora de Shiqpëri, da palavra, shqiponjë, que quer
dizer “tropa, comunidade de águias”, enquanto os habitantes do país eram designados sob o
nome de shqipëtarë, que tem a mesma origem.
Ele me escutava com muita atenção. Continuando minhas explicações, falei-lhe de uma antiga
lista sérvia de nações, com seus respectivos símbolos, que me foi envida por um monge
esloveno, e na qual o albanês era representado por uma águia (dabar), o sérvio por um lobo, o
croata por uma coruja, o húngaro por um lince e o romeno por um gato.
Ele balançava constantemente a cabeça e, quando eu lhe disse que nós albaneses éramos, com
os gregos, o povo mais antigo da península, ele ficou um momento com a colher erguida,
pensativo.
(...)
Eu compreendia perfeitamente que precisava lhe dar algumas provas do que eu estava contando
e citei-lhe a propósito da língua albanesa, dizendo que ela era contemporânea do grego, senão
anterior, e que havia um testemunho disso nas palavras que esta língua, segundo o que afirmam
nossos monges, tomou emprestadas à nossa.
- E não são palavras quaisquer – expliquei-lhe – mas sim nomes de deuses e heróis.
Seus olhos brilhavam. Citei-lhe as palavras Zeus, Deméter, Tétis, Odisseu, Caos, que derivam
das palavras albanesas ze (voz), dhé (terra), det (mar), udhë (estrada) e kaes (comedor), e vi-o então
largar a colher.
(…)
- O que acaba de me contar é realmente estranho!
- Tirar o nome das suas divindades é tirar uma parte da alma de vocês – disse-lhe eu pouco
depois. - Enfim, por enquanto, não fazemos essas contas. Hoje, nossas duas línguas, o albanês e
o grego, estão ambas ameaçadas pela língua turca como por uma nuvem escura39.
Sobre a língua e a cultura do país, numa perspectiva mais técnica, nos fala o albanólogo Robert
Elsie:
A língua albanesa, atualmente falada por cerca de seis milhões de pessoas nos Bálcãs, é
dividida em dois grupos dialetais básicos: Geg (ou Gheg) no norte e Tosk no sul. O rio
Shkumbrin na Albânia central, que passa pela cidade de Elbasan rumo ao Adriático, forma a
fronteira aproximada entre os dois grupos dialetais. O dialeto Geg é caracterizado pela
presença de vogais nasais, pela retenção do antigo [n] que variou para [r] em Tosk (por
exemplo, “venë” [vinho], é “verë” em Tosk e “Shpypnia” [Albânia] em Tosk é “Shqipëria”) e
por muitos traços morfológicos distintos. A língua literária moderna (guja letrare), constituída
por acordo, embora não sem pressão política, em 1972, é uma combinação dos dois grupos
dialetais, mas baseada em cerca de 80% no Tosk. É, hoje, um padrão amplamente aceito tanto
na Albânia, como no Kosovo e na Macedônia. Além dos três mil falantes da própria Albânia, a
língua albanesa é também falado por dois dos três milhões de indivíduos no que fora a
Iugoslávia, onde só é superada em número de falantes pelo servo-croata. A população albanesa
encontra-se sobretudo no Kosovo (em albanês, “Kosova”), em sua capital, Prishtinë40.
38 KADARÉ, 1999.
39 KADARÉ, 1999, pp. 63-4.
40 ELSIE, 1993, p.7 [traduziu-se: “The Albanian language, now spoken by about six million people in the Balkans, is
divided into two basic dialect groups: Geg (or Gheg) in the north and Tosk in the south. The Shkumbin river in
central Albania, flowing past Elbasan into the Adriatic, forms the approximate border between the two dialect
groups. The Geg dialect group is characterized by the presence of nasal vowels, by the retention of the older n for
Tosk r (e.g. venë 'wine' for Tosk verë, Shqypnia 'Albania' for Tosk Shqipëria) and by several distinct morphological
features. The modern literary language (gjuha letrare), agreed upon, though not without political pressure, in 1972,
is a combination of the two dialects groups, but based - about 80% on Tosk. It is now a widely-accepted standard
both in Albania, Kosovo and Macedonia. In addition to three million speakers in Albania itself, the Albanian
language is also spoken by two to three million individuals in what was once Yugoslavia, where it is second only to
Serbo-Croatian. The Albanian population is to be found primarily in Kosovo (Alb. Kosova) with its capital
54
importantes:
Os albaneses são um povo indo-europeu que habita o sudeste dos Balcãs. Encontram-se
principalmente na República da Albânia e no Kosovo, onde formam a maioria absoluta da
população, e na parte ocidental da República da Macedônia, onde formam cerca de um quarto
da população. Há também minorias albanesas nos países vizinhos como Montenegro e Sérvia,
bem como antigos assentamentos no sul da Itália e na Grécia. Territórios albaneses nos Bálcãs
formaram parte do Império Otomano por cinco séculos, durante os quais escrever e publicar
em albanês foi proibido. Em consequência, a literatura escrita [sic] desenvolveu-se tardiamente.
A literatura oral [sic], passada de geração a geração, foi, então, de enorme valor para os
albaneses, se comparada à de povos vizinhos. Foi aqui que, na forma oral, a riqueza de sua
cultura tradicional foi preservada, sem a necessidade de livros. Os albaneses são um povo
pequeno. Na época da declaração de independência em 1912, havia menos de um milhão de
pessoas no país. Impérios e ocupantes estrangeiros vieram e se foram, e os albaneses estiveram
sujeitos a muitas influências externas ao longo dos séculos. Sua literatura oral, em particular seu
folclore e poesia oral, refletem esta heterogeneidade41.
A cultura literária albanesa revela uma aparente contradição desde o início. Por um lado, a
Albânia, como entidade cultural - e por conseguinte a literatura albanesa como um produto
desta entidade – desenvolveu-se ao longo dos séculos em relativo isolamento. O terreno
inacessível e montanhoso que cobre a maior parte do país fez da Albânia virtualmente uma
terra incógnita até o final do século XIX, e mesmo a costa sul do adriático, pantanosa e
assolada pela malária, atraía poucos visitantes estrangeiros que pudessem ter o mínimo
estímulo para algum intercâmbio cultural. Com a exceção dos portos de Durras e Vlora, usados
para um módico comércio marítimo, e da Via Egnatia, que foi empregada desde a antiguidade
para ligar as cidades imperiais de Roma e Constantinopla, as rotas de comunicação
internacional tendiam a contornar a Albânia, condenando-a ao atraso econômico e cultural no
âmbito do decadente Império Otomano.
Entretanto, ao mesmo tempo, dificilmente alguma outra região da Europa esteve em
tão central encontro de rotas e sujeita a tanto controle e influência externos como a Albânia.
Por mil anos, desde a cisão do Império Romano em 395 até a queda de Constantinopla em
1453, o território albanês constituía o limite cultural, político e militar exato entre o império
ocidental e o oriental (ou seja, entre o ocidente de língua latina e helenófono Império
Bizantino). Mesmo posteriormente, desde a conquista otomana do sul dos Bálcãs no final do
século XIV virtualmente até o presente, a Albânia continuou a constituir um elo cultural na
Europa, ligando o ocidente cristão ao oriente islâmico. Em vista da completa – embora
altamente heterogênea – influência externa exercida sobre a Albânia, é um grande milagre que
esta pequenina nação tenha sido capaz de simplesmente sobreviver, consolidar sua cultura
nacional e enfim conquistar um lugar entre os Estados-nação da Europa
Do século XV em diante, a Albânia esteve dividida em três esferas culturais e
linguísticas distintas: a turca muçulmana, a grega ortodoxa e a católica “latina”. Apesar de as
tribos montanhesas terem sua própria cultura popular e rica literatura oral, elas não tinha
alfabeto e com isso nenhuma tradição escrita. Também não tinham acesso à educação formal e
cultura intelectual que pudesse ter estimulado a criação de uma literatura escrita. Estas
Prishtinë”]
41 ELSIE, 2008, p. 23 [traduziu-se: “The Albanians are an Indo-European people inhabiting the southwestern Balkans.
They are to be found primarily in the Republic of Albania and in Kosova, where they form the absolute majority of
the population, and in the western part of the Republic of Macedonia, where they form about one-quarter of the
total population. There are also Albanian minorities in the neighboring countries of Montenegro and Serbia, as well
as old settlements in southern Italy and Greece. Albanian territories in the Balkans formed part of the Ottoman
Empire for five centuries, during which writing and publishing in Albanian was forbidden. Accordingly, written
literature was late to develop. Oral literature, handed down from generation to generation, was thus of greater
significance to the Albanians than to many neighboring peoples. It was here in oral form that the wealth of their
traditional culture was preserved, without the need for books. The Albanians are a small people. At the declaration
of independence in 1912, there were less than one million people in the country. Empires and foreign occupants
have come and gone, and the Albanians have been subjected to many foreign influences over the centuries. Their
oral literature, in particular their folktales and oral verse, reflect this heterogenous background”]
55
instituições tiveram de ser importadas das três culturas vizinhas que repartiram o país cultural e
muitas vezes politicamente42.
Como vimos, o folclore e a poesia épica oral são vitais para a cultura albanesa de modo geral.
Citamos apenas a título de informação, sem que isso implique uma concordância teórica total acerca do
sentido que Elsie atribui à tradição poética albanesa. Sobre o folclore, nos diz Elsie que:
O folclore e as lendas são ainda muito vivos nas montanhas da Albânia, uma terra com uma
história cheia de espíritos. Recitadas à noite após o dia de trabalho ou nos campos, são
decoradas e passadas adiante, imortais, de uma geração para outra. Qual imaginação não seria
capturada pela sagacidade do Cabeça Escamada [personagem do folclore], pelas exigências da
Bela da Terra, pelos feitos heroicos de Mujo e Halil ou pela aparição de uma ardente Kulshedra
[serpente mágica folclórica] na floresta? O tema fundamental do folclore albanês, como
decerto em qualquer folclore, é a luta entre o bem e o mal, um reflexo dos valores sociais tal
como os percebemos. O leitor cauteloso pode ficar tranquilo desde o início, pois no mundo
fantástico do folclore albanês o bem sempre acaba vencendo.
Sabe-se que a literatura oral preserva elementos arcaicos. Os contos folclóricos
albaneses revelam não somente inúmeros traços orientais dos séculos em que a Albânia era
parte integral do Império Otomano, mas também o que com certeza são trações ocasionais do
antigo mundo da mitologia greco-romana. Pashas e dervixes abundam num contexto que,
entretanto, é eminentemente europeu43.
42 ELSIE, 2006, p. 283 [traduziu-se: “Albanian literary culture reveals an apparent contradiction from the very start.
On the one hand, Albania as a cultural entity, and thus Albanian literature as a product thereof, evolved over the
centuries in relative isolation. The inaccessible, mountainous terrain that covers most of the country made Albania a
virtual terra incognita until the late nineteenth century, and even the southern Adriatic coastline, marshy and
malaria-infested as it was, attracted few foreign visitors who might have stimulated a minimum of cultural
exchange. With the exception of the ports of Durrës and Vlora, used for a modicum of maritime trade, and of theV
ia Egnatia, which had been employed since ancient times to link the imperial cities of Rome and Constantinople,
the routes of international communication tended to skirt Albania, leaving it an economic and cultural backwater in
a decaying Ottoman Empire.
Yet, at the same time, hardly any other region of Europe has been so much at the crossroads and been subjected
to so much foreign control and in? uence as Albania. For a thousand years, from the division of the Roman Empire
in 395 to the fall of Constantinople in 1453, the Albanian territory constituted the immediate cultural, political, and
military border between West Rome and East Rome (i.e., between the Latin-speaking West and the Greek-speaking
Byzantine Empire). Even later, from the Ottoman conquest of the southern Balkans in the late fourteenth century
virtually to the present, Albania continued to constitute a cultural interface in Europe, linking the Christian West
with the Islamic East. In view of the thorough, though highly heterogeneous foreign influence exerted over Albania,
it is a miracle that this tiny nation was able to survive at all, to consolidate its national culture and finally, to take its
place among the nation-states of Europe.
From the fifteenth century onwards, Albania found itself divided into three distinct cultural and linguistic
spheres: that of the Muslim Turks, the Orthodox Greeks, and the Catholic “Latins.” Though the native mountain
tribes had their own folk culture and a rich oral literature, they had no alphabet and thus no written traditions. Nor
did they have access to formal education and intellectual culture that might have stimulated the creation of a written
literature. These had to be imported from the three neighboring cultures that had partitioned the country culturally
and many times politically”].
43 ELSIE, 2001, p. 5 [traduziu-se: “Folk tales and legends are still very much alive in the mountains of Albania, a land
of haunted history.They are recited in the evenings after a day’s work or out in the fields, are learned by heart and
pass, as if immortal, from one generation to the next. Whose imagination could not be captured by the cunning of
the Scurfhead, by the demands of the Earthly Beauty, by the heroic feats of Mujo and Halil or by the appearance of
a fiery Kulshedra in the forest? The fundamental theme of Albanian folk tales, as no doubt of folk tales everywhere,
is the struggle between good and evil, a reflection of social values as we perceive them. The cautious reader may
rest assured from the start that in the fantastic world of Albanian folk literature the good always win out.
Oral literature is known to preserve many archaic elements. Albanian folk tales reveal not only a number of
oriental features from the centuries when Albania formed an integral part of the Ottoman Empire but indeed also the
56
De certa forma, no contexto albanês, não podem ser separados do conjunto da literatura
propriamente dita, isto é, da tradição poética escrita. Esta tradição oral é tida por alguns estudiosos
como uma espécie de contraparte rica, que compensa o que Elsie identifica como uma eventual
“inconstância” na tradição poética escrita do país, que se explicaria pela tortuosa história albanesa44.
Neste sentido, para os próprios albaneses, é, sobretudo, a tradição oral de poesia épica que se
encontra no centro do sentido de mundo albanês. Não apenas dos albaneses, contudo, dada a ligação
inegável desta tradição com as próprias origens e centros pulsantes da cultura ocidental: as epopeias
homéricas. Esta ligação foi evidenciada principalmente pelo trabalho revolucionário e pioneiro de dois
homeristas de Harvard, Milman Parry e Albert Lord. Suas pesquisas os conduziram ao contato com
rapsodos no contexto da cultura ágrafa da Bósnia e da Albânia no início do século XX, rapsodos que
cultivavam – tal como se atribui aos recitadores de Homero – a capacidade de cantar épicos durante
horas, cujo estudo levou à compreensão do mecanismo da poesia oral épica, em que a interpretação não
Posteriormente, ambos voltaram aos Bálcãs para coletar material específico sobre a epopeia
local e descobriram que quatro dos cinco rapsodos que contataram não apenas eram albaneses como
também eram capazes de cantar as canções épicas tanto em sua versão bósnia (no idioma servo-croata)
como em sua versão albanesa (no idioma nativo)46. Uma outra mostra da centralidade da epopeia para a
O épico servo-croata, como tradição viva, desapareceu desde os dias de Parry e Lord. Não se
encontram mais cantores iletrados nas cafeterias de Novi Pazer ou Bijelo Polje e nhão não há
ninguém capaz de levar adiante a tradição do verso épico oral eslávico do sul. O épico albanês,
contudo, para a surpresa de muitos, ainda está vivo e impetuoso. Até hoje, nos primeiros anos
do século XXI, pode-se encontra um bom número de lahutas [alaúde albanês tradicional] no
Kosovo, em particular no planalto de Rugova a oeste de Peja, e no norte da Albânia
[ambientação de muitos dos romances de Kadaré], bem como algumas almas raras em
Montenegro capazes de cantar e recitar os feitos heroicos de Mujo e Halili e suas tritas Agas
[título de nobreza e posse de terra albanês, semelhante ao turco bej]. Há cantores que
herdaram seus repertórios como parte de uma tradição oral ininterrupta passada de geração em
geração. Pode-se afirmar com segurança que estes anciãos constituem os últimos
occasional trace of the ancient world of Greco-Roman mythology. Pashas and dervishes abound in an otherwise
eminently European context”]
imaturos. As primeiras manifestações literárias dos séculos XVI e XVII – com destaque para o Missal
de 1555 de Gjon Buzuku, que é o monge narrador de PTA – logo sofreram com o látego da invasão
otomana47. O ensino de albanês e a publicação de livros na língua nativa foram proibidos. Com a maior
fusão e adaptação cultural entre os dois povos, surge um movimento em que autores albaneses
muçulmanos voltam-se para sua língua nativa como meio de expressão literária48. Contudo, o árabe
ainda era o meio em que a maior e melhor parte da literatura aparecia em solo albanês, de modo que no
contexto da luta pela libertação do país do domínio do então decadente império otomano, apesar de
muitos dos escritores envolvidos serem albaneses com fortes laços com a cultura e até mesmo com o
Estado Otomano49. Mais uma vez, aqui, o folclore e a tradição épica são centrais, de modo que este
O despertar cultura e literário do povo albanês na segunda metade do século XIX não foi uma
simples questão de utilizar o albanês nas escolas e na produção e publicação de prosa artística,
poesia e jornalismo. Também incluía e dependia de um retorno às fontes e busca das raízes.
Embora a literatura em albanês fosse esporádica e, devido em grade parte ao tortuoso curso da
história albanesa, não tenha sido capaz de atingir seu pleno potencial, as tradições do folclore
albanês, isto é, a literatura oral, sempre compensaram essa deficiência. Elas constituíram um
rico acervo cultural à disposição dos ideólogos do período do despertar nacional da Rilindja. A
identidade nacional permaneceu adormecida no folclore do país, esperando ser redescoberta50.
46 ELSIE, 2003, p. 8 [traduziu-se: “The Serbo-Croatian epic, as a living tradition, seems to have died out since the
days of Parry and Lord. There are no more illiterate singers to be found in the coffee houses of Novi Pazar or Bijelo
Polje and there is no one able to carry on the tradition of southern Slavic oral epic verse. The Albanian epic,
however, to many people’s surprise, is still alive and kicking. Even in these early years of the twenty-first century,
one can still find a good number of lahutars in Kosova, in particular in the Rugova highlands west of Peja, and in
northern Albania, as well as some rare souls in Montenegro, who are able to sing and recite the heroic deeds of
Mujo and Halili and their thirty Agas. These are singers who have inherited their repertoires as part of an unbroken
oral tradition passed down from generation to generation. One can safely assume that these elderly men constitute
the very last traditional native singers of epic verse in Europe!”]
47 ELSIE, 1996, p.1
48 ELSIE, 2006, p. 287
49 ELSIE, 2006, pp. 290-2
50 ELSIE, 2007, p. 335 [traduziu-se: “The literary and cultural awakening of the Albanian people in the second half of
the nineteenth century was not simply a matter of using Albanian in schools and in the production and publication
of artistic prose, poetry and journalism. It also involved and depended upon a return to sources and a search for
58
Essa literatura relativamente autóctone que surge com a Rilindja, porém, logo é encoberta. No
início do século XX, entre o fim do Império Otomano e o início da Segunda Guerra Mundial, a cidade
de Shkodra torna-se o centro de uma literatura mais elaborada, porém desenvolvida sob a tutela do
Sejfullah Malëshova, um poeta 'rebelde' que adotava o pseudônimo de Lame Kodra, adotou uma
postura liberal e permissiva no âmbito da produção artística, mas foi logo politicamente acusado de
'oportunista' por Hoxha, sobrevivendo apenas por ter feito voto de eterno silêncio, e passou o resto de
sua vida como um humilde estoquista. Os escritores e intelectuais que não deixaram o país em 1944
tiveram todos destinos semelhantes ao do ministro: morte, trabalhos forçados e/ou exílio interno 52. A
liberdade era ainda menor do que na ditadura de Zog ou na ocupação italiana. Muitos autores, como
Petro Zheji, negando-se a praticar a literatura 'oficial', preferiram dedicar-se à tradução de clássicos para
o Albanês, uma vez que lhes era simplesmente negado o direito de publicar obras próprias 53. Outros,
como Sterjo Spasse, adaptaram sua obra às exigências do regime. Essa situação causou uma verdadeira
lacuna na produção literária do país. Nos anos 50, com a integração da Albânia ao bloco soviético, os
roots. Though written literature in Albanian had been sporadic and, due in great part to the torturous course of
Albanian history, had not been able to reach its full potential, Albania's folklore traditions, i.e. oral literature, had
always made up for the deficiency. These constituted a rich cultural asset at the disposal of the ideologists of the
Rilindja period of national awakening. National identity lay dormant in the country’s folklore, waiting to be
rediscovered”]
51 ELSIE, 1996, pp. 2-3.
52 ELSIE, 1996, p. 4
53 ELSIE, 1996, p. 5
54 ELSIE, 2006, p. 297 [traduziu-se: “The postwar persecution of writers, particularly severe for all those who had
ever been abroad, and the break with virtually all cultural traditions in Albania, created a cultural vacuum in the
country that lasted until the sixties, at least. The effects of this period of literary and cultural stagnation can still be
felt today. The vast body of writing churned out in revolutionary Tirana in the ? fties and early sixties proved to be
59
Neste contexto, surge uma série de autores adaptados ao regime publicando obras em albanês
que são plágios descarados de obras soviéticas. O didatismo e a filiação ideológica eram mais
importante que as qualidades literárias. Os temas recomendados eram a luta pela libertação nacional, a
Em 1961, com ruptura entre a Albânia e a URSS, um grupo de poetas (Ismail Kadaré, Dritëro
Agolli e Fatos Arapi) aproveitou a brecha para tentar superar as limitações impostas pelo realismo
forma se flexibilizaram, mas o regime ainda censurava de forma rigorosa toda a literatura 56. Talvez não
seja à toa que tenha surgido este movimento de renovação justamente na poesia, que é um 'gênero'
onde a 'mensagem' tende a ser mais metafórica, a linguagem, mais elaborada e o sentido, não muito
explícito.
No início da década de 70, pouco depois da ruptura com a China (país com o qual a Albânia se
aliou logo após romper com os soviéticos), o regime de Hoxha passou à contraofensiva, com uma
repressiva e sangrenta campanha contra as tendências 'liberais' e influências estrangeiras na cultura que
durou até cerca de 1978, com auge entre 1973-1975. O terror foi comparável ao das grandes purgas do
stalinismo nos anos trinta57. Então, mais uma vez, a literatura florescente na Albânia fora cortada
prematuramente, pois o medo impedia os autores de ousar, no mínimo, ou os levava a uma humilhante
exaltação do regime. “Cada exemplar de poesia passava pelas mãos de dez até quinze examinadores
politicamente vigilantes depois de publicados, cada peça de teatro por pelo menos trinta (o que ajuda a
explicar a ausência de bom teatro albanês).” 58 Proibiu-se o ensino de línguas estrangeiras e quem já as
dominava foi visto com suspeita. As amarras permanecem apertadas mesmo após a morte de Hoxha
sterile and highly conformist. The subject matter of the period was repetitive, and simplistic texts were spoon-fed to
readers time and again without much attention to basic elements of style. Political indoctrination and the fueling of
patriotic sentiments in the masses were considered more important than aesthetic values”]
55 ELSIE, 1996, pp. 6-7.
56 ELSIE, 1996, pp. 7-8
57 ELSIE, 1996, p. 9
58 ELSIE, 1996, p. 22 [traduziu-se: “Every volume of poetry went through the hands of ten to fifteen politically
vigilant reviewers before publication, every drama at least thirty (which helps explain the absence of good Albanian
theatre)”].
60
em 1985. Com a exceção de Ismail Kadaré – em virtude, provavelmente, de ser o único autor albanês
relação ao regime ou sair do país. A censura à produção literária só começa a esmaecer com a queda do
A situação das letras albanesas, na década de 2000, é ambígua, pois há farta produção de obras
literárias: “A paisagem outrora agreste e rochosa da cultura albanesa está agora desimpedida e fértil. A
tenra planta da literatura albanesa, cujos brotos e raízes foram arrancados do solo esparso tantas vezes
ao longo da história, está florescendo renovada”60. Por outro lado, parece haver poucas condições de
A academia albanesa não passa por bons momentos desde a queda da ditadura. O colapso da
estrutura do Estado na Albânia e no Kosovo resultaram em uma gritante escassez de
financiamento para pesquisadores acadêmicos e professores em todos os níveis da educação.
Com salários desanimadoramente baixos e condições de trabalho primitivas, os acadêmicos
não têm sido motivados a avançar em seus campos. Afinal, muito de seu tempo e esforço são
dedicados a encontrar outras fontes de renda para sustentar suas famílias. O que é mais
preocupante é que não há uma nova geração de acadêmicos jovens no campo dos estudos
albaneses para substituir a geração atual, que está envelhecendo. Assim sendo, há pouca
pesquisa erudita nova e original – as publicações mais recentes são reimpressões de trabalhos
mais antigos ou novas traduções de clássicos dos estudos albaneses em língua estrangeira. O
futuro não é brilhante para este campo61.
Entretanto, no campo da produção literária, a Albânia tem sido um dos centros mais criativos
da Europa atual, haja vista a importância e o valor que a obra de Kadaré (e, de fato, apenas ela, na
literatura albanesa) tem ganho internacionalmente. Com o fim do regime em 1990, para a surpresa de
muitos que o viam como um mero adversário do comunismo, Kadaré pede asilo político na França. Até
hoje, mesmo fora de seu país, ele reina absoluto na literatura albanesa moderna, obscurecendo outros
grandes autores, como seu contemporâneo Dritëro Agolli, o pioneiro modernizador Petro Marko, e
outros, influenciados pelo próprio Kadaré, como Skënder Drini, além das primeiras grandes autoras
59 ELSIE, 1996, pp. 10-1.
60 ELSIE, 2005, p. 3 [traduziu-se: “The once barren and rocky landscape of Albanian culture is now unfettered and
fertile. The tender plant of Albanian literature, whose stalks and roots have been torn out of the sparse soil so often
over the course of history, is blossoming anew”]
61 ELSIE 2009, p. 218 [traduziu-se: “Albanian scholarship has not had an easy time of it since the fall of the
dictatorship. The collapse of State structures in Albania and in Kosova resulted in a glaring lack of funding for
research scholars, teachers and professors. With dismally low salaries and primitive working conditions, scholars
were not motivated to advance in their fields. Therefore, much of their time and energy was devoted to finding
other sources of income to support their families. What is more worrisome is that there is no generation of new,
young scholars in the field of Albanian studies to replace the present, now aging generation. As such, there is little
new and original scholarship - most recent publications being reprints of older works or new translations of foreign-
language classics in Albanian studies. The future is not bright for this field”]
61
albanesas como Elena Çuli62. A prosa parece ser dominante desde 1970 até o fim da década de 80, mas
depois da queda do regime, a poesia albanesa recuperou força na obra de autores como Fatos Arapi,
dois milhões de falantes de albanês (a população da Albânia é de cerca de três milhões). Como as
relações da Albânia comunista com a ex-Iugoslávia sempre foram tensas, a manifestação cultural
albanesa sempre foi reprimida naquele país. Na região do Kosovo, desde a constituição de 1974 que lhe
garantia autonomia, os albaneses, que chegam a compor 90% da população, fizeram da capital, Pristina,
um centro de produção literária em língua albanesa, puderam desenvolver sua cultura em liberdade
relativamente maior que seus vizinhos na Albânia. Os principais autores do período são Sitki Imami,
com sua veia humorística e Hivzi Sulejmani, que trouxe ampla influência estrangeira. O dissidente
Adem Demaçi foi levado aos campos de concentração sérvios em 1978, para ser liberto apenas em
1990, enquanto Rexhen Qosja, além de romancista, é um dos principais estudiosos da literatura
albanesa64. Na década de 90, porém com a crise na Iugoslávia o parlamento kosovar é fechado e a
língua albanesa volta a ser proscrita. Apesar disso, a publicação de livros, inclusive como forma de
Consideramos importante, ainda que num sentido meramente propedêutico, levantar algumas
informações historiográficas sobre o período em que Kadaré viveu e escreveu grande parte de sua obra
e que, segundo a maioria dos críticos e estudiosos de seus romances e poemas, é parte fundamental do
sentido dos mesmos (como será discutido mais adiante, temos um posicionamento de certo modo
repudiado por toda a Europa em fins da Segunda Guerra –, a que se soma a situação até então
desconhecida fora da URSS a respeito do caráter brutal – política, social, étnica e culturalmente – do
stalinismo, as ideias socialistas (em sua vertente democrática na França, Itália e Finlândia, ou o
ocidental no imediato segundo pós-guerra, cuja expressão foi majoritariamente eleitoral, nos marcos da
democracia burguesa. Na Europa oriental, porém, este prestígio foi encoberto por uma verdadeira
ocupação militar por parte do Exército Vermelho sobre países fronteiriços à URSS que haviam sido
invadidos por Hitler. Nestes, implantou-se 'desde cima', vale dizer, não pela ação popular revolucionária
das massas, um regime político unipartidário de cunho totalitário regido por Moscou e uma economia
planificada com propriedade estatal de tipo comunista integrada ao bloco soviético. Houve, entretanto,
outros países no leste europeu onde o regime comunista – que por fim resultou muito semelhante ao da
URSS – se instaurou mediante um processo que correspondeu mais ao movimento de forças políticas
internas. Disso resultou, também, uma menor ou – em alguns casos e momentos – uma total ausência
de subordinação ao Kremlin. Entre estes países estão a antiga Iugoslávia, a antiga Checoslováquia e a
Albânia66.
O caso albanês tem a peculiaridade de, neste pequeno país balcânico, o movimento de
resistência ter sido capaz de derrotar o nazismo independentemente de qualquer ajuda militar direta da URSS 67.
A Iugoslávia contou com uma pequena ajuda da URSS e, por sua vez, apoiou organizativa e
ideologicamente o movimento comunista na Albânia. Neste país, a relativa facilidade expressa pela
tomada do poder de forma independente pelo Exército Albanês de Libertação Nacional (dirigido pelos
comunistas, mas que organizava todos os opositores do fascismo) se deveu ao fato de que o líderes do
antigo regime simplesmente abandonaram o país, enquanto na Iugoslávia Tito precisou lutar contra os
na mesma época das dissensões com Tito69 e consequente aproximação da URSS), fundado em 1941,
teve desde a origem, como líder, um ex-partisan que estudara na França, Enver Hoxha que, com a
comunista até sua morte em 1985. Foi, portanto, o chefe de estado que manteve o poder por mais
guerrilheiro liderado por Hoxha enfrentava não apenas os invasores alemães e italianos, mas também os
Hoxha na medida em que este – apesar de comunista – travava a luta contra o Eixo na Albânia.
Compostas por cerca de 50 mil pessoas, as forças lideradas por Hoxha tomaram o poder não como
parte de um processo revolucionário com mobilização de massas (a Albânia tinha menos de 3 milhões
de habitantes na época), mas como resultado da vitória numa luta de cunho nacionalista que deixou um
vazio de poder facilmente ocupado pelo pequeno grupo liderado pelo futuro ditador, que deixaria
como fruto político não apenas a censura intelectual, artística e cultural, mas também cerca de 5 mil
Nas primeiras eleições, realizadas logo em 1945, apenas a Frente de Libertação nacional
(rebatizada como Frente Democrática) pôde concorrer e, naturalmente, venceu com 93% dos votos,
segundo o próprio Governo Provisório71. Entretanto, apesar de os números serem do próprio governo eleito, é
bem provável que se aproximem da verdade, posto que, em 1945 o Governo Provisório fez a reforma
agrária, distribuindo terras dos latifúndios para os camponeses, a ampla maioria da população do país.
Isso certamente serviu não apenas como uma progressista reforma econômica, mas também como uma
maioria da população de um país até então paupérrimo e semifeudal são impressionantes. A reforma
agrária, feita ainda pelo Governo Provisório, reduziu a concentração de terra nas mãos de latifundiários
69 O'DONNEL, 1999, p. 22
70 cf. EVANS, 2005
71 JACQUES, 1995 p. 433
72 cf. VICKERS, 1999
64
de 52% para 16%73. Em apenas 10 anos a taxa de analfabetismo, próxima de 100% nas áreas rurais, foi
reduzida em 2/3 e, na época da morte de Hoxha, praticamente já não havia analfabetos na Albânia.
(vendeta de sangue) foi banida. A saúde pública era exemplar. A malária, doença que antes assolava o
país – que tinha o maior número de casos da Europa – foi totalmente extinta em 20 anos. Em 1961, no
isolada também da Iugoslávia. A partir de 1963 colabora estreitamente com a China, mas rompe
também se fazem sentir na Albânia, em virtude da crise econômica. Embora, o país ainda fosse
formalmente governado pelo PTA, já não era mais um país comunista, pois sua política econômica
sofria intervenção do FMI e do Banco mundial desde 1990. Em 1991, uma multidão derruba a estátua
Partido Democrático da Albânia (PDA) derrota o PTA nas eleições.75 Até 1998, época da Guerra do
Kosovo, uma série de reformas econômicas e políticas de cunho capitalista são realizadas no país que,
contudo, continua em forte crise econômica e social. De fato, com o fim do socialismo, a situação
material do país piorou: o desempregou chegou a incríveis níveis de 70% e quase todo o alimento
(praticamente inexistente, antes), tornou-se endêmica. Essa situação era agravada por escândalos de
corrupção, como o de 1997, em que o Estado beneficiava empresas em detrimento das necessidades da
população. Neste ano, o Partido Socialista da Albânia (o antigo PTA, rebatizado), vence as eleições e
lidera amplas manifestações, mas mantém o país nos marcos do capitalismo. Infelizmente, até hoje, o
capitalismo restaurado não conseguiu restaurar, porém, as condições de vida vigentes durante o regime
socialista76: o desemprego permanece altíssimo, a corrupção é escandalosa, o país não exporta nada e
importa muito, é dependente de ajuda financeira externa e tem grande parte de sua força de trabalho
vivendo no exterior, enviando dinheiro aos seus familiares no país. Há, contudo, um regime
Começou escrevendo poesia, nos anos 50, e sua obra, de qualidade reconhecida, tinha influência de
poetas russos como Yevgeny Yevtushenko e Andrey Voznesensky. Desde o início de sua carreira
Kadare pôde ousar mais que seus compatriotas colegas de pena, pois tinha uma relação mais próxima
Reconhecido como um dos maiores escritores da atualidade, em 1992, Kadaré recebeu o Prix
Mondial Cino Del Duca e, quatro anos depois, tornou-se membro vitalício da Academia de Ciências
Morais e Políticas da França. O Man Booker International Prize lhe foi concedido em 2005. Conquistou
em 2009 o Prêmio de Artes Príncipe das Astúrias. Além disso, foi diversas vezes indicado para o Prêmio
Nobel de Literatura e teve sua obra traduzida para mais de trinta idiomas.
O crítico literário albanês Arshi Pipa, por outro lado, contrastando a obra de Kadaré com a de
outro albanês, o poeta Martin Camaj, associa a relativa condescendência do governo para com Kadaré
ao fato de que o autor pode ser considerado um escritor do realismo socialista que, contudo, realizou o
estilo de forma muito criativa, com conflitos e resistências, mas em geral procurando fazer com que
alguns de seus romances, sobretudo os iniciais, fossem “aprováveis” pelo regime79. Em contraste -
dando a entender que esta relativa “boa situação” de Kadaré (comparada à de outros escritores) no
circunstâncias peculiares de Kadaré como autor albanês - Elsie afirma que: “Ele [Kadaré] foi
internacionalmente”80.
Foi sua obra em prosa que lhe conferiu fama internacional 81, com o aclamado O General do
Exército Morto82, que narra a incursão de um general italiano à Albânia do segundo pós-guerra,
acompanhado por um padre, para exumar e repatriar os restos mortais de soldados de seu país. Depois
do sucesso de sua tradução francesa, em 1970, o livro logo foi traduzido para mais de 13 idiomas. Com
o acirramento da perseguição aos escritores na década de 70, a tendência de Kadaré foi explorar o
romance histórico. Os Tambores da Chuva (O Castelo)83 nos leva ao século XV, à época do herói nacional
Scanderberg, em meio ao cerco de uma fortaleza medieval albanesa pelos otomanos. A crítica em geral
faz uma leitura alegórica das obras deste período da produção de Kadaré, mostrando que a fortaleza é
iminente de invasão soviética (que já havia ocorrido pouco antes, na Checoslováquia, em 1968)84. Nós,
porém, encaminharemos outra possibilidade de compreender estas imagens da obra de Kadaré como o
que chamaremos aqui de presentificação histórica, em vez de alegoria e simbolismo (ver capítulo 4).
As obras em que baseamos nosso estudo da poética da narrativa de Ismail Kadaré são Abril
Despedaçado, A Ponte dos Três Arcos, O Palácio dos Sonhos, O Dossiê H, Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, As
85.
Frias Flores de Abril, A Filha de Agamenon e O Sucessor Recomendamos que o leitor se familiarize ao
menos com os enredos de cada um destes romances, os quais resumimos e estão apresentados no
ANEXO III. Ao longo do texto deste trabalho, evitaremos reconstruir a trama dos romances cada vez
que os mencionamos. Então sugerimos que o ANEXO III seja consultado, sempre que um romance
80 ELSIE, 2005 (b), p. 167 [traduziu-se: “He [Kadaré] was privileged by the authorities, in particular once his works
became known internattionally”].
81 Demos preferência, nesta apresentação informativa inicial, à menção de romances não estudados a fundo neste
trabalho. O enredo resumido dos romances aqui estudados pode ser consultado no ANEXO III.
82 KADARÉ, 2005.
83 KADARÉ, 2003.
84 ELSIE, 2005 (c), pp. 14-5
85 Estes dois últimos foram publicados num único volume.
67
Estas obras encaminham questões centrais da poética de Kadaré e cobrem diversos momentos
de seu percurso de produção. Quatro das obras aqui estudadas tiveram grande repercussão na crítica: A
Ponte dos Três Arcos, O Palácio dos Sonhos, O Dossiê H, Três Cantos Fúnebres para o Kosovo. Duas delas são do
período da grande perseguição, dos anos setenta: Abril Despedaçado e A Ponte dos Três Arcos que, além
disso, são ambas um retorno às origens míticas e lendárias de seu país, com um dos temos mais
recorrentes nas lendas balcânicas: o emparedamento. Já Dossiê H e O Palácio dos Sonhos (neste último, o
Império Otomano aparece como um gigantesco e opressor sistema de dominação) são do período de
transição rumo a uma maior liberdade de criação, nos anos oitenta. A Filha de Agamenon, Três Cantos
Fúnebres para o Kosovo e O Sucessor são obras posteriores à queda do regime que, surpreendentemente,
ainda mantém a questão central da contraposição poética à sistematização da realidade, que atravessa
toda a obra de Kadaré, como veremos. Estas obras mostram que esta questão não é simplesmente uma
crítica ao regime, com fins políticos. Afinal, que sentido faria escrever um livro engajado contra um
regime que já não existe? Este debate será desenvolvido nas páginas que se seguem, de modo mais
aprofundado. Por hora, fica dita a importância enorme que a obra de Kadaré tem no contexto da
Kadaré fez de tudo para emancipar a literatura albanesa, sobre a qual – graças a seu talento e,
necessário dizer, ao substancial apoio das autoridades comunistas – ele reinou como um
monarca absoluto nos anos setenta e oitenta. Durante as longas décadas de ditadura, ele usou
sua liberdade, ainda que limitada, e seu talento inato para lançar muitos ataques contra o regime
na forma de alegorias políticas que atravessam suas obras. Quando a ditadura finalmente
entrou em colapso e uma primeira brisa de liberdade chegou em 1990, Kadaré decidiu seguir
seu sonho e mudou com sua família para a França86.
tentativa de determinar que tipo de relação – de dissidência ou conivência – o escritor teria com o
regime de Enver Hoxha como um desvio da compreensão do sentido e verdade que se dão como obra
em seus romances, que acaba por dirimir a linguagem na subjetividade, vale a pena, para os fins da
discussão propedêutica que aqui se trava, uma consideração. Uma evidência importante acerca do tipo
86 ELSIE, 2006, p. 298 [traduziu-se: “Kadare has done his utmost to emancipate Albanian literature, over which —
thanks to his talent and, it must be said, to substantial support from the communist authorities — he reigned as an
absolute monarch in the seventies and eighties. Throughout the long decades of dictatorship, he used his freedom,
limited as it was, and his innate talent to launch many attacks against the regime in the form of subtle political
allegories throughout his works. When the dictatorship finally collapsed and an initial furry of freedom arrived in
1990, Kadare chose to fulfill his dream and moved to France with his family”].
68
de envolvimento que Kadaré teve com o stalinismo albanês foi dada por Shaban Sinani, ex-diretor dos
arquivos do Estado da Albânia. Ele publicou em 2005 documentos de Estado acerca do seu mais
famoso escritor87. Nestes documentos, ficam claras uma série de acusações e ameaças contra o escritor
que, por exemplo, ficou um tempo em “internação” (isolamento no interior) por conta da publicação
de um poema intitulado “Pashallarëve të Kuq” (Os Pashás Vermelhos). Mas as acusações não são
apenas de cunho ideológico, mas também estético, uma fiscalização sobre a implementação dos padrões
As pesquisas começaram isoladamente, num primeiro momento, todos os dossiers dos órgãos
da direção do partido comunista que estiveram ocupados com literatura e arte, e em particular
os dossiês repletos de expressões tais como “desvios ideológicos na literatura e nas artes”,
“influência decadente e manifestações estrangeiras no desenvolvimento da literatura”,
“problemas preocupantes concernindo à aplicação da linha do Partido no domínio da cultura”,
“o estágio de evolução da literatura e demais problemas quanto à sua fidelidade aos preceitos
do Partido”. Na realidade, quase toda vez em que tais questões foram debatidas em alto nível,
havia alguma coisa envolvendo Kadaré. Assim, pouco a pouco, graças à benevolente ajuda de
alguns arquivistas experientes, a quem eu expresso aqui meu reconhecimento, pudemos, através
de indicações periféricas, chegar aos documentos que refletem a supervisão política sobre a
obra de Kadaré, ou mais exatamente a uma parte dela88.
Ou seja, quase sempre o nome de Kadaré esteve sob suspeita. Como, então, estando
frequentemente na linha de frente da suspeita sob o regime stalinista que mais durou na Europa, ele
sobreviveu? Kadaré, entrevistado pelo historiador Stéphane Courtois89, fala de sua convivência com o
regime e de sua intimidade pessoal com o próprio Hoxha. Sua fama internacional precocemente
adquirida parece ter sido o principal fator a explicar sua sobrevivência em tais circunstâncias. Afinal,
fica evidente que logo no início de sua carreira, além do poema pelo qual foi punido com autocrítica
acima mencionado, seu primeiro romance escrito enquanto ainda completava os estudos em Moscou é
retirado de circulação logo após a publicação de suas trinta primeiras páginas num jornal albanês90.
87 SINANI, 2006.
88 SINANI, 2006, p. 25 [traduziu-se: “Les recherces débutèrent em isolant dans un premier temps quasiment tous les
dossiers dans lesquels les organes de la direction du parti communiste s'étaient occupés de littérature et d'art, et en
particulier les dossiers semés d'expressions telles que “déviations idéologiques em litérature et dans les arts”,
“influence décadentes et manifestations étrangères dans le développement de la littérature”, “problèmes
préoccupants concernant l'application de la ligne du Parti dans le domaine de la culture”, “l'état de l'évolution de la
littérature et quelque problèmes quant à sa fidélité aux préceptes du Parti”. En réalité, quasiment chaque fois que de
telles questions avaient été débattues em haut lieu, il y avait eu quelque chose concernant Kadaré. Ainsi, peu à peu,
grâce à l'aide bienveillante de quelques archivistes experimentés, auxquels j'exprime ici ma reconnaissance, nous
pûmes, grâce à des indications périphériques, atteindre les documents témoignant de la surveillance politique sur
l'oeuvre de Kadaré, ou plus exactement, une partie de ceux-là”].
89 COURTOIS, 2006.
90 cf. SINANI, 2004.
69
Entre a cooptação pelo regime e a dissidência: esta tem sido a limitada enantiodromia na qual se
move a crítica ao interpretar o sentido geral da obra de Kadaré. Indiscutivelmente, os adeptos da tese da
Tomaremos aqui um caminho que, embora considere estas referências, procurar ir mais
profundamente no sentido das obras individualmente e como conjunto. Por ora, propomo-nos
examinar algumas colocações que manifestam a tese da dissidência considerando o significado político
como o núcleo de valor da obra de Kadaré, para em seguida contrastar com outras opiniões que
parecem indicar que a referência política, embora esteja presente, não é o sentido central (muito menos
único) da obra do romancista albanês, de modo a abrir possibilidades de leitura e interpretação mais
amplas.
Não encaminharemos nossa reflexão aqui a partir do pressuposto subjetivista que toma a
opinião do autor como regente do sentido da obra. Afinal, tal pressuposto se baseia numa noção de
conceito iluminista em geral do sujeito autônomo plenamente consciente. Segundo esse modo de
pensar, um autor, pela sua consciência e autonomia, tem pleno domínio sobre o sentido da obra.
Partimos, aqui, não de um outro conceito de subjetividade, mas de uma vigência poética da obra, em
que a obra acontece, isto é, em que a obra, tanto para seu autor como para seus leitores, eclode como uma
doação da própria realidade enquanto sentido e verdade não através do autor/leitor, mas sim em uma
Neste horizonte de consideração, atentamos para o que diz Kadaré em relação à censura de seu
romance O Palácio dos Sonhos: “Eles viram claramente que eu estava aludindo ao império Comunista,
razão pela qual eles baniram O Palácio dos Sonhos”92. Claramente, aqui, o próprio autor não nega a
alusão a uma contingência política relativa ao momento da composição e publicação da obra, embora
91 ESCUDIER, 1993; CHAMPSEIX, 2000; MORGAN, 2010; AJAZAJ, 2007, além das já mencionadas
anteriormente.
92 KADARÉ, 2013 [traduziu-se: “They saw clearly that I was alluding to the Communist empire, which is why they
banned The Palace of Dreams”]
70
nada afirme sobre o modo como se dá a alusão, isto é, o Império Otomano. Na referida obra é evidente,
também, que esta alusão constitui uma imagem extremamente negativa daquilo a que alude.
Ele ainda estende a declaração de que sua escrita tem força política à sua obra como um todo:
“Desde o começo tive reservas ao regime, ainda que elas não fossem tão conscientes. Se você ama a
literatura, não pode amar o regime comunista. Não pode amar ao mesmo tempo Macbeth e a direção do
comitê central de Stalin”93. É neste tipo de alusão que se baseia grande parte da crítica que sustenta a
interpretação do sentido geral da obra de Kadaré como uma dissidência política em relação ao
comunismo albanês.
Na mesma entrevista, concedida a Susha Guppy, porém, levanta-se uma outra possibilidade.
Vou fazer o papel do advogado do diabo, se me permite, e sugerir que numa sociedade deste
tipo a própria sobrevivência é motivo de suspeita, como na Rússia de Stalin. Podemos
mencionar os que pereceram, como Mandelstam, ou que cometeram suicídio, como
Tsvetayeva, ou pararam de escrever, como Pasternak – limitado a traduzir Shakespeare – e
tantos outros. Em 1970 você escreveu um romance de seiscentas páginas, “O longo inverno”
[sem edição em língua portuguesa até o momento], que não era baseado num mito ou evento
histórico mas na atual situação política em seu país. Seu livro parecia um ataque ao
revisionismo e por conseguinte uma defesa de Hoxha. Que motivo o levou a escrever o livro?
Afinal, você poderia simplesmente ter continuado a escrever o tipo de estória encoberta e
alegórica que já havia escrito.94
Aqui, menciona-se, mais uma vez, o conteúdo alegórico ou a referência direta a contingências
política. Entretanto, tais referências parecem agora sustentar a tese da colaboração com o regime. A
De 1967 a 1970 eu estava sob a vigilância direta do próprio ditador. Lembre que, para a
desgraça dos intelectuais, Hoxha considerava-se um autor e um poeta e portanto um “amigo”
dos escritores. Como eu era o escritor mais conhecido do país, ele estava interessado em mim.
Em tal situação eu tinha três escolhas: conformar-me com minhas próprias convicções, o que
significaria a morte; o completo silêncio, o que significaria outro tipo de morte; ou pagar um
tributo, um suborno. Escolhi a terceira solução ao escrever “O Longo Inverno”. A Albânia
havia se tornado aliada da China, mas havia atritos entre os dois países que posteriormente
levaram a uma ruptura. Como Don Quixote, eu pensei que meu livro poderia acelerar esta
ruptura com nosso último “aliado”, ao encorajar Hoxha. Em outras palavras, eu pensei que a
literatura poder realizar o impossível – mudar o ditador!95
93 KADARÉ, 2008.
94 GUPPY, 2013 [traduziu-se: “I’m going to become the devil’s advocate, if I may, and suggest that in such a society
survival itself becomes suspect, as in Stalin’s Russia. We can mention those who perished, like Mandelstam, or
committed suicide, like Tsvetayeva, or stopped writing, like Pasternak—reduced to translating Shakespeare—and
endless others. In 1970 you wrote a six-hundred-page novel, “The Long Winter”, which was not based on a myth or
a historical event but on the current political situation in your country. Your book seemed to be an attack on
revisionism and therefore a defense of Hoxha. What reason did you have for writing the book? After all, you could
have just gone on writing the sort of covert, allegorical stories you had written.”]
95 KADARÉ, 2013 [traduziu-se: “From 1967 to 1970 I was under the direct surveillance of the dictator himself.
71
A resposta não apenas recoloca a questão nos trilhos da tese da dissidência, mas expressa
claramente que a oposição de Kadaré ao regime era parte de suas convicções, apesar de a obra em si ser
uma espécie de tributo ao ditador que visava influenciá-lo politicamente. Essa opinião de Kadaré
fundamenta a posição de Robert Elsie, que o enxerga como um dissidente que teve de fazer concessões
por razões pragmáticas96. Ou seja, aqui, Kadaré, em suas intenções, parece se endossar o engajamento
literário. Este intenção de que sua obra possa ter o efeito político de abalar o regime fica também
O decisivo em termos hermenêuticos, porém, não entabula relações ônticas. Não se entenda,
porém, que negamos aqui que uma obra pode ou não ser um elemento de força numa contingência
política determinada. O próprio Kadaré menciona o caso de Ésquilo 98, em relação aos persas, para
mostrar como a literatura pode confrontar-se com a opressão (e pode fazê-lo, inclusive, à revelia das
intenções de seu autor). O que pretendemos colocar aqui é que esse tipo de efetividade sobre a
contingência é, também ele, contingencial. Vale dizer: a remissão política musca conforme o
desenvolvimento do diálogo hermenêutico. Não apenas porque seria óbvio que, fosse diferente o
sentido da declaração de dissidência política do autor (ou caso ele não tivesse dado qualquer declaração,
ou fosse uma obra de autoria desconhecida), isso em nada mudaria o sentido da obra99. O fundamental
é ainda mais propriamente poético: porque a obra não guarda em si nenhum sentido estabelecido e fixo,
porquanto ela é uma obra na medida em que opera, em correspondência à proveniência de sua essência.
Uma vez que esta essência não é um ente, mas o seu ser no sentido originário, implicamo-nos,
Remember that, to the great misfortune of the intellectuals, Hoxha regarded himself as an author and a poet and
therefore a “friend” of writers. As I was the country’s best-known writer, he was interested in me. In such a
situation I had three choices: to conform to my own beliefs, which meant death; complete silence, which meant
another kind of death; or to pay a tribute, a bribe. I chose the third solution by writing “The Long Winter”. Albania
had become an ally of China, but there were frictions between the two countries that later led to a break. Like Don
Quixote, I thought that my book could accelerate this break with our latest “ally” by encouraging Hoxha. In other
words, I thought that literature could accomplish the impossible—change the dictator!”]
96 ELSIE, 1996, p. 106 e 112.
97 “Every time I wrote a book, I had the impression that I was thrusting a dagger into the dictatorship, while at the
same time giving courage to the people” (BELLOS, 2005).
98 KADARÉ, 1998.
99 cf. McROBBIE, 2009.
100 CASTRO, 1982;
72
dizer, como acontecimento da verdade na linguagem101. O sentido da obra, a partir de sua essência
originária como operar, se dá sempre na tensão de uma permanência e atualidade, em que a contingência
ocupa um lugar redundantemente contingencial. Aprofundaremos mais nossa reflexão sobre a questão
da obra a partir do próprio diálogo hermenêutico com as obras de Kadaré. Por hora, basta colocar
desta forma nossa posição para que fique claro em que medida nos diferenciamos da maior parte da
Entretanto, existem ainda aqueles críticos que, mesmo operando ainda no âmbito da
expandir esse escopo de leitura levando em conta elementos como a questão da linguagem do mito e da
metáfora. Entre estes, encontra-se Cox102 e sua abordagem que classifica a obra de Kadaré segundo os
Cox classifica uma parte da obra de Kadaré como sendo constituída do que o crítico denomina
escritos comunistas (communist writings): obras cujo teor ameaçam os métodos de governo, a ideologia
dos governantes e o efeito de ambos sobre o povo albanês. Estes escritos comunistas são por sua vez
(Metaphoric).
1. O modo realista-socialista: embora este período também seja o de produção de alguns textos
irreverentes de vanguarda. Segundo o autor, esta alternância entre o modo realista socialista e o modo
mais experimental como forma de desviar o excesso de atenção crítica sobre sua obra por parte do
regime. Nas obras que são classificadas nesse “modo” predominam atitudes de indiferença em relação
ao socialismo (ao contrário do louvor prescrito pela estética oficial) ou de direta ou indireta ao regime e
seus líderes.
Seria notável, porém, uma transformação de sua posição em relação ao socialismo. Passa de
uma atitude mais tolerante e ambígua, como em Dasma, de 1968 (“O Casamento”, obra não traduzida
para o português) - onde se mostra como o socialismo gerou condições materiais de emancipação da
mulher em relação à antiga sociedade albanesa, que aparece como sendo mais opressiva em relação à
comunista – a uma atitude mais crítica, como em A Filha de Agamênon103, onde os padrões impostos pela
ditadura de Hoxha valem como uma espécie de imolação à força vital de Suzana.
2. O modo mítico: refere-se aos romances onde se destaca não a alegoria, mas os ecos clássicos ou
folclóricos, compondo uma espécie de realismo mágico: os mitos, para Kadaré, surgem a todo tempo,
inclusive no presente. A obra até agora mais recente de Kadaré, Spiritus (sem edição em português),
3. O modo metafórico: são romances onde o interesse genuinamente histórico de Kadaré sobre seu país e os Bálcãs,
como o episódio da conquista otomana, se funde com a composição de alegorias sobre a repressão, ocultando assim,
também, uma crítica ao regime da Albânia de seu tempo. O palácio dos sonhos104 é um exemplo do modo
metafórico, onde se constrói uma alegoria orwelliana sobre o poder totalitário. A ênfase no indivíduo
oprimido, aprisionado em uma atmosfera de pesadelo, por sua vez, remeteria a Kafka. Este modo é
questão da representação para os modos que ele denomina metafórico e mítico, não chega a questionar em
que medida se trata de uma simples representação, ao modo da teoria do reflexo de Lukács 105. Esta
teoria está desacredita dentro da própria tradição marxista em que se insere, uma vez que é
completamente incapaz de dar conta do modo como a verdade da realidade se produz na obra, em vez
de apenas se reproduzir.
Neste horizonte, a metáfora torna-se um tropos retórico que mantém a linguagem poética como
expressão do pensamento ou indicação de uma realidade cujo sentido lhe é anterior. O mito, por sua
vez, não pode ser tratado de outra maneira que como um conjunto de narrativas sobre a vida dos deuses
e dos heróis.
O mito, entretanto, só pode viger como força poética de uma obra se considerado não como
uma estória já contada, mas como a força de um dizer poético em que a presença da palavra não pode
ser separada do acontecimento da criação da narrativa. Criação esta em que o “cantor” do mito, tanto
quanto o “ouvinte”, são criados na mesma medida em que se cria, pelo narrar, a narrativa do mito 106.
Em outras palavras, o mito, que ocupa um lugar fundamental na obra de Kadaré, não é uma “coisa
verbal” determinada, mas o vigor de onde pode se originar o verbo como narrar inaugural. Apenas
O mesmo tipo de tratamento do mito como alusão intertextual encontra-se, também, entre os
críticos para os quais a questão da dissidência política não é central para o vigor e o sentido da obra de
Kadaré. Numa consideração a nosso ver ainda muito superficial, Lasdun107 afirma que Kadaré não era
um dissidente simplesmente porque a menor dissidência não seria tolerada num regime como o de
Hoxha, um dos mais repressivos de toda a história. Este motivo, porém, mantém a abordagem da obra
Na já mencionada entrevista a Susha Guppy, Kadaré, ao falar sobre o valor literário das alusões
políticas, afirma que: “[...] eu me preocupava em não usar recursos banais. Eu tinha de estar convencido
de que seria literatura “de verdade”, numa visão global. Neste sentido, “O palácio dos sonhos” é um
sucesso”108. Ou seja, na obra que muitos dos críticos consideram ser a mais clara e totalmente alusiva,
consistindo inteiramente numa alegoria da opressão URSS sob o disfarce da referência histórica ao
Império Otomano, Kadaré diz que se tratava, principalmente, de tentar fazer com que o alcance da obra
fosse mais amplo, para além dos industriosos recursos formais e das artimanhas políticas, por
Em entrevista à imprensa suíça citada por Flood, Kadaré vai ainda mais longe ao contradizer a
“Na minha opinião eu não sou um escritor político, e, além disso, no que diz respeito à
literatura, na verdade não há escritores políticos”, disse Kadaré em uma entrevista à imprensa
Suíça no Sábado. “Eu acho que minha escrita não é mais política que o antigo teatro grego. Eu
teria me tornado o escritor que sou em qualquer regime político”109
Esta opinião é repetida na declaração de Kadaré citada por Henley e Scott:
Apesar de ter passado metade de sua vida denunciando o regime repressivo de Enver Hoxha
em sua obra, o autor de 69 anos insiste em dizer que não é um escritor político.
“Ser crítico de um regime é normal para um escritor”, ele disse. “O único ato de
resistência possível num regime stalinista clássico era escrever – ou você poderia ira a uma
reunião e dizer algo muito corajoso, e então ser fuzilado. Eu acho que tive muita sorte de ser
capaz de publicar regularmente. Muitos escritores foram simplesmente esmagados”
(…)
“Estes rótulos não fazem sentido”, ele disse. “Todos os escritores vêm de um país, de
uma região, um continente, mas sua obra não pode ser reduzida a isso.
“Meu país era difícil e isolado, sim, ditatorial. Mas é um lugar que é apropriado à
literatura. É uma zona épica. É onde a grande poesia épica nasceu. E eu acho que remeto a
alguns temas universais”110
Há uma aparente contradição aqui. Em afirmações citadas anteriormente, Kadaré declara que
seus escritos teriam uma força política grande. Aqui, afirma que não é um escritor político. Que sua
obra seria a mesma, não importa em que sistema vivesse. Que podemos concluir disso? Que sua obra,
tendo efeitos políticos, enquanto obra verdadeiramente literária, (“(...) as far as true literature is concerned
(...)”), independe destes efeitos. Que a crítica ao regime e ao sistema enquanto contingências políticas
existe (ele mesmo afirma), mas que ela não é central para sua obra na medida em que se a considera
como verdadeira literatura, nas palavras dele, como uma literatura de proveniência épica, uma literatura do
epos. O sentido, portanto, do que a crítica entende por alusões políticas e historiográficas contingenciais
Este pensamento permite ser encaminhado, a partir da segunda declaração, assim: uma vez que
todo escritor é contra o regime, e que no que tange a verdadeira literatura a alusão contingencial não é
fulcral, então podemos dizer que sua obra, tratada como verdadeira literatura, não é uma obra contra
109 FLOOD, 2009 [traduzir: “I am of the opinion that I am not a political writer, and, moreover, that as far as true
literature is concerned, there actually are no political writers," Kadare said in an interview with Swiss press on
Saturday. "I think that my writing is no more political than ancient Greek theatre. I would have become the writer I
am in any political regime.]
110 HENLEY & SCOTT, 2005 [traduzimos: “Despite spending half a lifetime denouncing the repressive regime of
Enver Hoxha in his work, the 69-year-old author insists he is not a political writer.
"Being critical of a regime is a normal state of affairs for a writer," he said. "The only act of resistance possible
in a classic Stalinist regime was to write - or you could go to a meeting and say something very courageous, and
then be shot. I think I was very lucky to be able to publish from time to time. A lot of writers were simply crushed."
(…)
"These labels make no sense," he said. "All writers come from a country, a region, a continent, but their work
cannot be reduced to that.
"My country was difficult and isolated, yes, dictatorial. But it is a place that is appropriate to literature. It's an
epic zone. It's where great epic poetry was born. And I think I address some universal themes." ]
76
um regime específico, nem tampouco contra regimes políticos em geral. Além disso, todo escritor é
contra qualquer sistema, diz Kadaré. Parece, então, que está na própria força da verdadeira literatura ser
contrária ao sistema, mas não a um sistema específico e/ou contingencial. A literatura é, enquanto
verdade do epos, não-sistemática. Opera, como obra, de modo diametralmente oposto ao funcionamento
dos sistemas e, assim, independente de “conter” ou não alusões políticas por meio de metáforas ou
representações, ela é sempre política e, sempre, uma ameaça à solidez impositiva e dominadora dos
Kadaré desde uma posição hermenêutica que situa a leitura no horizonte do diálogo poético, vamos
tecer ainda algumas poucas considerações propedêuticas finais. Trataremos da recepção da obra de
Kadaré no Brasil como forma de concluir essa breve revisão bibliográfica, lembrando que alguns
trabalhos sobre a obra de Kadaré que merecem uma discussão melhor ou que tratam de algum ponto
mais específico de sua obra serão debatidos ao longo de nosso trabalho. Embora vários de seus
romances já tenham sido traduzidos para o português e publicados em nosso país, seguidamente, há
mais de uma década, a recepção crítica da obra de Kadaré ainda não recebeu no Brasil a atenção que
merece. Os estudos acadêmicos que tocam em sua obra o como referência intersemiótica do filme de
Walter Salles Jr., Abril Despedaçado, baseado no romance do escritor albanês traduzido com o mesmo
título. Por este motivo, vamos apenas reportar muito resumidamente o conteúdo de cada trabalho.
comparação do modo como a tradição da vendeta de sangue se apresenta no romance albanês, no filme
discurso cinematográfico. Por fim, Lima114, também em coautoria com Pompeu115, estuda as relações
entre o coro trágico tal como se apresenta na realidade albanesa da obra de Kadaré e a sua adaptação ao
Não podemos deixar de mencionar aqui a coincidência de que estes trabalhos também parecem
tratar a obra literária a partir de um conceito metafísico de representação da realidade. Há, ainda,
diversos trabalhos que tratam apenas do filme de Salles, mencionando o romance apenas de passagem,
REAL
Uma primeira aproximação do sentido que eclode na questão que atravessa toda a obra de
Kadaré e que a crítica trata como alusão política vem de uma colocação de Faye, ainda que o autor
frequentemente escolheu como o ângulo de visão os olhos daqueles que são mantidos sob opressão: os
turcos sitiaram a cidadela de Os Tambores da Chuva, Mao investe contra a Albânia em Concerto no
Fim do Inverno”116. A questão não será por nós tratada desde uma noção de ponto de vista, mas sim do
sentido que a dicção de uma narração pode vir a ter a partir de sua fonte de emanação. Falando desde
quem é oprimido pelo sistema totalizante, a própria obra eclode como voz que a ele se opõe e cujo
na obra de Kadaré, apenas uma alusão historiográfica e política, mas uma questão que dimensiona a
oposição radical entre o vigor poético e a hegemonia dos sistemas como um todo. Como afirma
Kadaré:
O cerco dos otomanos [em Os Tambores da Chuva] é muito semelhante a um outro cerco, o
dos países comunistas. Cada capítulo contém detalhes que evocam a nossa época e o leitor não
tem dificuldade de ver, por trás da multitude de sitiantes otomanos, por vezes, os soviéticos, por
vezes, os chineses e de modo mais geral os países do leste” 117
116 FAYE, 1991, p. 45 [traduziu-se: “Ismaïl Kadaré choisit fréquemment comme angle de vision le regard de ceux qui
sont tenus en échec: les Turcs assiègent la citadelle des Tambours de la pluie, Mao fulmine contre l'Albanie dans Le
concert”]
117 KADARÉ, 1995, pp. 92 [traduziu-se: “Le siège des Ottomans [dans Les Tambours de la pluie] ressemble à s'y
méprendre à un autre siège, celui des pays communistes. Chaque chapitre comporte des détails qui évoquent notre
époque et le lecteurs n'a aucum mal à voir, derrière la multitude des assiègeants ottomans, tantôt les Soviétiques,
tantôt les Chinois, tantôt plus généralement les pays de l'Est. Le communisme, l'Est, l'Asie finissent par se
confondre.”]
79
Não se trata de uma obra política no sentido de ser anticomunista, antimaoista, antiasiática. Ela
é política num sentido muito mais profundo e, ao mesmo tempo, elevado. Profundo, porque concreto,
remete a todo tempo ao homem imerso nas representações humanistas da modernidade como sucessão
de sistemas racionalizantes da realidade em uma jornada de retorno ao próprio. Mais elevado porque
abre, na imagem-questão dos diversos sistemas que figuram nos romances, a questão essencial de que a
vigência poética da obra – e por extensão, o humano do homem – é infenso e irreconciliável com
Vejamos como essa questão se encontra nos romances de Kadaré. Tal preparação hermenêutica
teoria que aqui comparece se dá naquilo que colhemos na obra. Para esta colheita, a teoria remete
sempre ao pertencimento à obra. Por isso, segue como diálogo a necessidade de sua escuta. Nesta
medida, apenas a obra de Kadaré pode nos dar a relação entre poiésis e realidade para além da dimensão
abertura. A questão não é a de uma forma múltipla de remeter a um mesmo conteúdo (as diversas
formas com que a alegoria se apresenta), mas sim um envio multívio do mesmo. Kadaré, então, não
constrói as imagens-questões de sua obra como referência ao real, mas antes faz eclodir o real em seu
sentido pelas imagens-questões. Assim, as imagens que elabora são sentidos de mundo. A principal, que
atravessa sua obra e pela qual começaremos, é a multívia questão do sistema totalizante em
Uma possível primeira indicação de que a questão do sistema é multívia, isto é, diz-se de muitas
maneiras, na obra de Kadaré, vem no romance A Ponte dos Três Arcos118. O livro, como todos os outros,
encaminha uma grande crítica aos sistemas opressores. O Império Otomano, aqui, mais que uma
referência historiográfica e cultural, é uma imagem-questão: nele, claramente, podemos ver não apenas a
opressão sobre a Albânia de Kadaré pelo espectro totalitário do stalinismo, mas algo que se dá como
um desafio ao pensamento: o projeto de sistema totalizante do real que ameaça toda a diversidade e a
Elsie119 mostra que o principal ciclo da tradição épica albanesa, “A Canção dos Guerreiros da
Fronteira”, tem como seus heróis muçulmanos, precisamente guerreiros otomanos cujas proezas
consistem em batalhas contra os soldados cristãos de um rei eslavo. Estes soldados muçulmanos são
albaneses, ou seja, de nacionalidade albanesa, numa Albânia que era parte do Império dos turcos. Desta
feita, seria absurdo atribuir a Kadaré - baseando-se no modo como o Império Otomano figura como
imagem-questão do sistema opressor e, consequentemente, como algo a que a própria dimensão poética
construída no romance como consumação do próprio se contrapõe ou, melhor dizendo, com a qual
contrasta diametralmente - uma atitude 'anti-ontomana' ou mesmo 'anti-islâmica' ou, mais amplamente,
'anti-oriental' (esta última, por meio de uma somatória das figurações do Império Otomano e da China
maoista). Afinal, antes de mais nada, se considerarmos que a obra de Kadaré se constrói como uma
reencenação do sentido épico, suas referências à tradição poética albanesa não são acessórias e,
sobretudo, a experiência que o épico albanês traz como sentido próprio de mundo, como constituição
de mundo, é central a tal ponto que, neste sentido, a obra de Kadaré é uma espécie de continuação desta
tradição.
Em O Palácio dos sonhos, uma passagem aproxima o sentido que ganha o Império Otomano na
Os Estados mortos e descidos ao inferno não eram alvo de castigos do gênero dos que
geralmente se imagina serem aplicados aos homens [a identificação de um Estado com um ser
humano já é uma referência ao totalitarismo: um homem=ao Estado]. Além disso, tal inferno
tinha a particularidade de se poder escapar de lá e regressar à terra. Assim, um belo dia, Estados
mortos desde há muito e que toda a gente julgava reduzidos a esqueletos, podiam reerguer-se
devagarinho e reaparecer à superfície do globo. Simplesmente, a exemplo dos actores que se
caracterizam antes de reentrar em cena num novo papel, era-lhes forçoso sofrer alguns retoques
indispensáveis; mudavam de nome, de insígnia e de bandeira, mas mesmo assim, lá no fundo,
permaneciam iguais a si próprios120
Esta indicação parece acenar para que as imagens do Império Otomano, do regime comunista
ou, ainda, do Kanun (que comparece, em Abril Despedaçado, como uma vigência atemporal, mais que
uma instituição local e historicamente referenciada121), sejam compreendidas como figurações de uma
questão, mais do que remissões a fatos/discursos dos entornos imediatos ou mediados para além do
romance A Ponte dos Três Arcos. Não é apenas uma contraposição ao capitalismo/stalinismo, mas a todas
as formas de sistematização da realidade, as quais se opõe o poético. Gjon conversa com o engenheiro
à beira do rio:
Enquanto conversávamos assim, num estado de semi-sonolência, tive de repente uma vontade
louca de pegá-lo pela gola da capa, de colá-lo ao pilar da ponte e gritar-lhe na cara: esta nova
ordem de que você me falou um dia, esta sua ordem, de bancos e juros, que supostamente devia
fazer o mundo dar um salto de um milênio, também está banhada em sangue. Pensei de novo
nisso, e até na resposta que viria: sim, como todas as ordens, ó monge!122
Se pelo oriente chega o Império Otomano, pelo ocidente, outrossim, o capitalismo e o reino do
Dentre os muitos prazeres que nos traz a escrita do Sr. Kadaré está seu toque extremamente
sutil, mais aparente no substrato histórico que ele cria para sua história. Com algumas
pinceladas precisas ele traz a amplitude das mudanças políticas e econômicas que ocorriam na
Europa no fim da Idade Média: o colapso de Bizâncio, a expansão de uma moeda internacional
e a formação de grandes conglomerados comerciais, alguns dos quais cúmplices com o advento
da expansão imperial turca.
(…)
É um livro profundamente atmosférico. Uma comunidade medieval na mais remota
origem do capitalismo tenta compreender a acelerada transformação histórica que se contrapõe
à desolada paisagem repleta de sapos, chuvas congelantes, o grande rio e a ponte de pedra. O
romance é uma reflexão sobre as complexas interações entre mito, riqueza e poder num tempo
de fragmentação e instabilidade políticas. Ao mesmo tempo, é um estória absolutamente
cativante: estranha, vívida, ominosa, macabra e sapiencial123.
De fato, A Ponte dos Três Arcos mostra como, sob as leis do mercado, tudo se compra. Esta
observação está de acordo com Ardian Klosi (crítico albanês que se debruça sobre a obra de Kadaré e
cujo trabalho vamos debater melhor mais adiante), quando diz que “Nota-se, também, o lugar que a
lenda do Emparedado ocupa no romance de Kadaré: no jogo dos poderosos o mito usado e distorcido
firma, que vivia em condições miseráveis125. Ele torna-se “o emparedado”, mas era um pedreiro que
trabalhava na construção em que acabou morto, talvez por dinheiro, talvez assassinado. Trata-se de uma
reflexão sobre a alienação126: o trabalho do trabalhador, nos limites do mercado, é algo estranho a ele, o
domina, aparece como uma ameça, como uma força que o priva de sua humanidade 127. A sede de lucro
corrompe tudo, fomentando a alteração das lendas subvencionada segundo os interesses da sociedade
indivíduos129 e o sacrifício foi, para “Pontes e Estradas”, uma relação comercial, uma quantia em
dinheiro seria paga à família da vítima como indenização130. O mundo do épos é ameaçado pelas disputas
comerciais da burguesia nascente: "Em seu duelo feroz, os dois adversários usaram a lenda antiga. Os
primeiros, através dela, haviam fomentado a destruição da ponte. Os segundos, pelo mesmo meio,
Se por um lado esta duplicação da imagem do sistema opressor impede a visão redutora de que
a obra de Kadaré é simplesmente uma obra anticomunista, por outro lado, é preciso dizer que, ao
mesmo tempo, na imagem das sociedades comerciais em disputa que se constrói no mesmo romance,
para além de uma contextualização cronológica do surgimento da burguesia e do mundo regido pelo
mercado, está também uma crítica mordaz ao outro grande espectro com que se encaminha a mesma
segunda fronteira, o outro lado. A Albânia, neste sentido, também se encontraria entre, fronteira entre o
mundo stalinista e o mundo capitalista. A ameaça das sociedades comerciais em disputa construída no
romance, que corrompe as lendas e mitos bem como a humanidade como referência de mundo e terra,
Kadares Roman einnimmt: im Spiel der Mächtigen wird der Mythos verwendet und mißbraucht, um aus ihm
materiellen Profit zu ziehen”]
125 KADARÉ, 1999, p. 12 -13, 17
126 MÉSZÁROS, 2006.
127 KADARÉ, 1999, p. 102
128 KADARÉ, 1999, p. 70
129 KADARÉ, 1999, pp. 91-2
130 KADARÉ, 1999, pp. 96-7
131 KADARÉ, 1999, p. 109
83
tudo a serviço da busca de lucros e vantagens econômicas, poderia ser entendida como uma
representação desta ameaça vinda do oeste, tal como o totalitarismo é a ameaça vinda do leste.
Ocorre que, em poética, a geopolítica nos dá apenas a espacialização que já pressupõe um lugar.
O lugar é, originariamente, o sentido do habitar que se instaura na poiésis como linguagem, isto é, na
realização do humano do homem. Nesta dimensão, todo o espectro de densidade existencial da questão
da ponte, do sacrifício, da vida e da morte, da obra, do mundo e da terra são questões fundamentais.
Para essas sociedades comerciais com seus homens técnicos, são uma mera questão pragmática de
esta dicotomia, para a poética ele só pode ser homem se estiver e se mantiver no entre. Isso significa,
também, uma espécie de sacrifício num mundo onde os sistemas totalizantes, tanto coletivistas quanto
Contudo, não é apenas em A Ponte dos Três Arcos que se pode notar que o sistema em suas
diversas configurações é não uma remissão historiográfica ou alegoria política, mas sim uma imagem-
questão multívia. Também em As Frias Flores de Abril132 isto fica claro. No romance, logo após o fim do
comunismo na Albânia, a “liberdade” conquistada não parece ser algo realmente libertador. O
protagonista, Mark, em determinada passagem, entra num café na pequena cidade onde mora. As
conversas no café discorrem, fazendo críticas ridículas ao regime comunista, aos dentes podres dos
albaneses e a uma guerra no Kosovo, de modo que a liberdade atual se mostra para Mark tão opressiva
quanto a ditadura: “Mark sentiu que devia se levantar e deixar imediatamente o café maléfico. Não, meu
Deus, pensou, não fiz nada para merecer isso...! De fato, não merecia que a liberdade que havia
esperado com tanto fervor, durante tantos longos anos, lhe chegasse sob a forma de demência"133.
Numa outra passagem em que, ao saber que sua família devia sangue, Angelin executa um
assassinato, conta-se que ele se arrepende logo depois, pois havia posto em movimento as imparáveis
engrenagens do Kanun. Então, Angelin, Mark e sua namorada elaboram um plano para tentar impedir
que aquele assassinato, segundo as antigas leis do Kanun, transforme-se numa cadeia interminável de
mortes. O plano que têm consiste em parar o mecanismo do Kanun levando Angelin à pena capital pelo
Estado, de modo que este se tornasse o devedor do sangue, e não a família a que cabia a vingança134.
Então, o Estado é colocado como um sistema, tanto quanto o Kanun: o Estado moderno é tão
mortífero quanto a lei antiga. A violência degradante é própria aos sistemas em geral, não apenas a este
ou àquele.
Também nos Três Cantos Fúnebres para o Kosovo135 encontramo-nos diante de uma manifestação da
questão do sistema como algo ameaçador, destrutivo. Não se trata de uma crítica ao islã ou ao Império
Otomano, simplesmente, mas a toda sistematização uniformizante e totalizante 136. Isso é sugerido no
momento em que, fugindo dos Bálcãs, o rapsodo Gjorg e seus companheiros de viagem adentram as
terras da cristandade e o seu companheiro turco – um homem em quem conviviam duas religiões em
luta, além do interesse pelo judaísmo - é pego pela Inquisição, que o condena e queima, por ter três
religiões e isso, claramente, ser obra do diabo. Ou seja, não se tolera a pluralidade – encarnada de modo
exemplar no turco muçulmano-cristão – e a descrição de sua morte é sugestiva, forte e trágica a este
respeito:
- Pobre turco -, disse um bósnio a um dos companheiros. - Está chamando pela mãe.
Você se lembra de que ele nos disse que na sua língua mamãe é abla?
(...)
Os gritos do turco se transformaram num simples estertor abafado e logo em seguida,
bruscamente, soltou em latim um NON! Assustador. Foi um grito único, sem nada a ver com
os outros gemidos, ou pelo menos pareceu assim por ter sido a única palavra em latim que
pronunciou. Provavelmente era a primeira palavra do mundo cristão que havia aprendido e,
provavelmente, ao deixar este mundo que o rejeitava, decidira exprimir através dele seu
arrependimento137
se narra que o interesse da grande dama que recebe os rapsodos em seu salão pelas tragédias gregas é
condenado pela igreja138. Levando isso em consideração, pela lógica da alegoria e da remissão
Em A Filha de Agamenon139, também, Kadaré parece lançar a imagem das engrenagens para
sugerir por metonímia o sistema inexorável, desumano e reificante. Aqui, a via da imagem é, de fato, o
sangrento regime comunista de Hoxha, na Albânia. Quando o narrador conta o episódio em que foi
interrogado com dois colegas de trabalho pelo secretário do Partido a respeito de alguns boatos que
publicara, resultando na sua absolvição e na punição dos amigos (em seu depoimento ele tentara salvar
os amigos atribuindo os boatos a uma leitura que tinha feito sobre a Checoslováquia, e não à boca de
um dos amigos), afirma: “O realmente lógico teria sido o Estado fechar os olhos e eles não sofrerem
punição alguma. Mas sabe-se lá qual engrenagem continuara a girar por conta própria, numa direção
Nesta imagem, o sistema comunista aproxima-se do Kanun de Abril Despedaçado, código cujos
costumes sangrentos, inclusive, o comunismo aboliu. Esta manifestação retorna, por exemplo, no
retrato que o narrador faz do pintor Th. D., muito condecorado pelo Estado, embora não por fazer
Era, com certeza, depois da minha, a única fisionomia tristonha naquela solenidade. Era assim
que eu o via habitualmente em diferentes cerimônias que a tevê transmitia. Ao que parecia,
conquistar havia muito o direito de ser triste, por certo um bem mais valioso que os honorários que
recebia141.
Quando até o direito de ser triste torna-se um privilégio a ser conquistado dentro dos
mecanismos e determinações de uma realidade sob o julgo de uma total sistematização, já não podemos
pensar que este sistema compareça na obra poética em questão como a representação de uma
contingência (de qualquer tipo). De fato, a própria tendência a se apoderar do todo da realidade permite
que avancemos mais na compreensão da questão do sistema, tal como comparece na obra de Kadaré.
Em A Ponte dos Três Arcos esta questão é um dos eixos de tensão pensamento poético que a obra
encaminha, e a imagem do sistema se configura na ameaça Otomana sobre o conjunto de feudos que
corresponderia aproximadamente ao que hoje é a Albânia142. A ameaça Otomana aparece como a mais
abrangente e terrível (embora não a única, como veremos mais adiante), sobretudo nesta passagem,
onde a ameaça do sistema em sua dinâmica totalizante e dominadora parece querer confundir-se com a
Nenhum império até hoje encontrou emblema mais dominador para seu estandarte. Quando
Bizâncio escolheu águia, esta era evidentemente mais altiva que a loba de Roma. Mas eis que
este novo império adotou um emblema que se ergue mais alto nos céus do que qualquer
criatura alada. E não tem a menor necessidade de ser desenhado ou pintado como nossa cruz.
Nem de tremular, costurado na tela, no topo de torres e cidadelas. Levanta-se sozinho no céu
para aparecer ao conjunto do gênero humano sem que nada possa ofuscar-lhe a visão. Sua
mensagem é das mais claras: os otomanos pretendem atacar não um ou dois Estados, mas o
mundo inteiro.144
Este sentido também é encaminhado em Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, na passagem em que
se comenta que o novo sultão, Bajazet, adotara o título de yaldrem (“trovão”, em turco):
Antes assujeitar o mundo inteiro sob suas botas, os turcos conquistariam o céu. Depois de ter
feito da lua crescente o seu emblema, apropriavam-se dos relâmpagos e amanhã, só Deus sabe
o que tentariam submeter às suas leis: as estrelas, as nuvens hibernais, ou quem sabe o curso do
Tempo?145
A imagem do sistema na ameaça Otomana é assinalada por um signo, uma linguagem que
impõe o ferrenho jugo de um significado certo, cujo fechamento impõe não apenas uma determinação
a um ente, ou a um conjunto de entes. O signo como emblema do sistema impõe o jugo de sua
determinação sobre toda a realidade. Sua ambição é sempre a totalidade. Sua natureza é sempre
significada num significante que em última instância instaura o conjunto da realidade como um
O Império Otomano também figura como imagem da questão da contraposição entre vigor
poético e hegemonia do sistema de modo central em O Palácio dos Sonhos. Desta obra, afirma Elsie que
“Es el mundo de Kafka y el de 1984, la novela de Orwell, trasladado al ambiente sibarítico, aunque un tanto
aletargado, del Imperio Otomano”146, encaminhando que o sentido bélico do Império como ameaça se
completa, aqui, com a experiência imediata de existir já dentro de seus domínios assoladores e desoladores.
Este romance, denso e tenso, constitui-se numa grandioso epos em que a articulação da questão
todos os aspectos da vida humana. Por outro lado, tece-se a narrativa em torno do modo como as
intrigas políticas e os jogos de poder enredam os seres humanos como se fossem forças estranhas,
superiores e misteriosas, sobre-humanas, quando de fundo são engendradas pelas próprias ações das
pessoas. No seu agir não essencial, isto é, no agir que opera na lógica da dominação sistemática, os seres
Num nível mais profundo, a questão se mostra como uma contraposição entre o vigor de vida e
o empenho de dominação tecnológico e racionalizante de coisas que deveriam ser resguardadas como
informação. A este encaminhamento, a obra ainda sobrepõe uma sombria reflexão sobre a obsessão de
tudo prever que está associada com o tal impulso de dominar. Aqui, o sistema em sua imagem de
Império Otomano nos faz experienciar como o pensamento que domina, arquiva, registra, conceitua,
racionaliza e pretende tudo prever é opressivo para a própria humanidade, em vez de ser emancipador
como se crê, desde o empenho modernizador. Mostram-se as fragilidades humanas na medida em que
seu esforço para tentar controlar e prever tudo é, em certo sentido, vão.
Este horizonte de tensionamento pode ser percebido na passagem em que se fala sobre o
Palácio dos Sonhos, uma instituição central do império em que trabalha o protagonista, cuja função
consiste em coletar, classificar, decodificar, hierarquizar e arquivar todos os sonhos numa ritmo de
O papel do nosso Palácio dos Sonhos, criado directamente por iniciativa do Sultão reinante,
consiste em classificar e examinar, não os sonhos isolados de alguns indivíduos como aqueles
que, por uma ou por outra razão, se viram outrora beneficiados com este privilégio e detinham
na prática o monopólio da predição pela leitura dos sinais divinos, mas o Tabir total, melhor
dizendo, a totalidade dos sonhos do conjunto dos cidadãos, sem excepção. É uma empresa
grandiosa, ao lado da qual os oráculos de Delfos, as castas de profetas ou os mágicos de
antanho parecem irrisórios. A idéia que ocorreu ao Soberano de criar o Tabir total assenta no
facto de Alá lançar um sonho anunciador à superfície do globo com a mesma desenvoltura que
desfere um relâmpago, desenha um arco-íris ou aproxima subitamente de nós um cometa que
Ele vai buscar ninguém sabe a que misteriosas profundezas do Universo. Lança então um sinal
sobre esta terra, sem cuidar do lugar onde ele vai cair, pois, distante como está de nós, não
pode ocupar-se de tal gênero de pormenor. É a nós que nos cabe descobrir onde pousou este sonho,
desencantá-lo entre milhões de biliões de outros, como quem busca uma pérola perdida num deserto de areia.
Em verdade, a explicação deste sonho, caído como uma centelha extraviada no cérebro de um dos milhões de
indivíduos adormecidos, pode ajudar a evitar a desgraça do país e do seu Soberano, esconjurar a guerra ou a
peste, e até mesmo engendrar idéias novas. Eis por que o Palácio dos Sonhos nada tem de uma fantasia, antes
constituindo um dos pilares do Estado147.
informações úteis para fins mundanos. A fantasia é banida em nome das instituições e possibilidade de
que o novo figure é obliterada pelo empenho de tudo prever. O Palácio dos Sonhos nos apresenta na
Pois o certo é que no nocturno reino do sono se encontram quer a luz quer as trevas da
humanidade, o seu mel e o seu veneno, a sua grandeza e a sua aflição. Tudo o que é turvo ou
nefasto, ou que o será dentro de alguns anos ou alguns séculos, surge primeiramente nos
sonhos dos homens. Toda a paixão ou ideia malfazeja, todo o flagelo ou crime, toda a rebelião
ou catástrofe projecta necessariamente a sua sombra durante muito tempo antes de se
manifestar na vida real.148
O que se coloca, então, como uma reclusão que, em vez de renunciar, procurar apossar-se de
uma dimensão imprópria à pura representação do ente (tal como, no dito Palácio, os funcionários
classificam, arquivam, hierarquizam aquilo que provém do velamento, os sonhos), aparece como uma
Este âmbito corresponde a uma outra linha de força que atravessa e também compõe um outro
ocidente: o ocidente poético, das obras de arte. Diz Castro que “O conceito é a tentativa constante e
necessária de o conhecimento anular o paradoxo da realidade em sua manifestação poética. Ele não
consegue porque a todo conceito subjaz sempre um interstício, um vazio, um silêncio, um velar-se”149.
Neste sentido, pela linguagem que se instaura ao modo da poiésis na medida em que se responde a seu
apelo, resguarda-se o essencial como velamento. Não se procura entificar o essencial. Por isso, não se
epistemológica.
No romance Concerto no Fim do Inverno, a questão do sistema que tudo entifica e quer dominar se
projeta na imagem da China sob Mao Tse-tung. Nesta obra, também, mostra-se a invasão dos domínios
ocultos por parte do homem dominador que busca tudo clarificar. Em Concerto no Fim do Inverno, Mao
Tse-tung, nos momentos decisivos – em que se vê diante de grandes dúvidas -, entra em cavernas,
como para extrair das entranhas da terra as certezas de que necessita para levar adiante a tendência cada
vez mais totalizante e totalitária da sistematização tal como se apresenta no estado sob seu governo:
“Os relatórios davam conta de muitas explicações religiosas ou mitológicas para sua atitude. Diziam que
Mao Tse-tung já sabia o que falavam dele nesse mundo e agora queria saber o que se cochichava
traços constitutivos do humanismo que se torna hegemônico na modernidade. Conforme uma reflexão
de Eudoro de Sousa: “No trânsito da Antiguidade para a modernidade, o “mistério” perdeu o elemento
vital de sua significação”151, de modo que “mistério” passou a ser, para nós, sinônimo de “enigma”, algo
Noutra forma de pensar, afirma o helenista português, mistério é o que – por jamais ter sido
cognitiva, mas a um determinado modo de ser da realidade que se impõe como limitação a uma
determinada forma de conhecimento, pois, de certa forma, “sabemos” o mistério, do contrário, sequer
o nomearíamos. “O homem conhece o mistério, não sabe é dizê-lo na linguagem em que diz o não-
mistério”154.
É assim que, para os antigos, a linguagem para o mistério era o silêncio. É neste sentido que a
poesia é um mistério: seu encantamento “cria uma realidade” pelo arrebatamento, pelo enredar aqueles
que a escutam nesta percepção de participar do mistério do real. Esse enredamento se dá por aquilo
que não se diz no dizer do poema. O mistério-silêncio só se mostra como uma palavra que – para
Voltamos, agora, ao romance O Palácio dos Sonhos para prosseguir com nosso diálogo. Não
classificar, interpretar e hierarquizar os sonhos é uma imagem-questão na qual a obra encaminha uma
reflexão profunda sobre a vigência dos sistemas em oposição ao vigor do poético. Também a tarefa do
daquilo cuja proveniência é o velamento em algo estático e, por conseguinte, acumulável. No romance,
interpretados:
Nenhuma história, nenhuma enciclopédia, nem tão-pouco todos os livros sagrados e similares
em conjunto, nenhuma academia, nenhuma universidade ou biblioteca estão em condições de
fornecer a verdade do nosso mundo de modo tão condensado como ela ressalta destes
Arquivos.
– Mas essa verdade não estará um tanto desnaturada? – arriscou-se a objectar Mark-Alem156.
A própria verdade assim posta como uma coisa dada não é propriamente verdade. Esta
desnaturação da verdade pelo arquivamento do que provém do velado (no romance, a imagem é o
sonho) pode ser compreendida em sua envergadura própria a partir da unidade que o pensamento
originário tece entre verdade e memória. A conversão da memória em registro é parte do processo pelo
qual, no advento da sistematização da realidade (qualquer uma delas), a verdade poética em que se
resguarda o velado se torna a representação propositiva que se baseia na pressuposição do real como
pura presença, isto é, como presença sem proveniência no velado. A obra de Kadaré também abre
caminhos por este modo de colocar a questão da unidade entre verdade e memória. Abordaremos este
modo também no próximo capítulo. Neste capítulo, por uma questão de organização que se impõe
albanês.
Que a vigência do poético seja radicalmente oposta a esta sistematização, também está colocado
na obra de Kadaré. Em Concerto no Fim do Inverno, a encarnação do sistema, Mao só consegue pensar nas
grandes obras de arte enquanto sistemas, elas mesmas. Essa vocação totalizadora da vigência sistemática
projeta sua imagem e semelhança sobre toda a realidade. Mao pensa consigo mesmo:
Os tronos de soberanos como Shakespeare e Beethoven oscilavam pela primeira vez. Alguém
já sugerira que se cortassem as mãos do pianista chinês que interpretara a Nona Sinfonia.
Parecia uma barbaridade, mas não era nada. Cervantes, Beethoven, Shakespeare eram monstros
piores que os czares e imperadores. Reinavam com selvageria, com poderes ilimitados, era
autênticos tiranos do espírito, colonizadores de mentes. Um monarca você derruba, degola e
esquece facilmente, enquanto aqueles pestes atravessavam os séculos sem perder seus poderes.
Mas agora o reinado deles ia acabar. Mao Tse-tung viera ao mundo e os desafiava. Eles que
tremessem. Haveria de pô-los abaixo um a um, aos poucos, tal como os reis e czares. O
presidente Cervantes, o príncipe Beethoven, o generalíssimo Shakespeare, o conde Tolstoi e
assim por diante157.
Logo depois, Mao lembra-se de uma noite em que passara com sua esposa conversando sobre a
Limpar o planeta daqueles falsos enredos e pesadelos malsãos, meu Deus, que maravilha, dizia
ela, estalando os dedos, na expectativa. Sabia que seria tarefa dificílima e, como alguém que
busca garantias suplementares para um sonho desmedido, interrogava-o com insistência sobre
as possibilidades de êxito. Ele a tranqüilizava e então ela balbuciava como um ébrio: numa
noite como esta, suprimiremos também a música; o globo ficará surdo; surdo. Assim,
acabariam o teatro, o romance, a poesia, até que não restasse outra fantasia exceto a deles (isso
ela não dizia mas deixava entrever), a vida deles. E por que isso seria um delírio? Qual mulher,
ao longo dos séculos, desde a criação do mundo, tiver por marido o condutor de um bilhão de
seres?158
Projetando sobre as obras de arte sua imagem e semelhança, o sistema projeta-se sobre a
própria realidade e se impõe sobre ela, como se a pudesse substituir. Nada menos que tudo é o que lhe
é necessário. Neste sentido, na vigência do sistema totalizante não se pode considerar o velamento
senão como algo a ser clarificado, conceituado, reificado e incluído como mais uma realização.
Albânia comunista, após ser expulso do partido na reunião do Comitê Central, é interceptado pelo
Não entendeu o que ele dizia, nem o gesto que fez com a mão, dirigindo-a ao lado esquerdo de
seu peito, onde fica o coração. Em sua mente bestificada, raciocinou que, por mais afiadas que
fossem as unhas do outro, não conseguiriam arrancar seu coração com as mãos nuas. Mas a
mão do presidente já se introduzira em seu paletó, bem perto do coração, para retirar do bolso
interno de Hassobeu sua carteira de membro do Partido. (…) Depois de lhe tirarem a carteira
do Partido, metade de sua morte já lhe parecia consumada159.
sistema reduz toda a vida a um pertencimento a ele – a apropriação do próprio não pertence à
dimensão em que a pura identidade não consegue arrancar do princípio a propriedade de ser. Limitada à
ipseidade da mesma coisa, o mesmo velado não comparece na linguagem convertida em língua. No
mesmo romance há uma passagem em que se narram as investigações sobre o assassinato do Sucessor
por parte das agências internacionais de notícias. Busca-se uma resposta nos dossiês sobre a Albânia e
fica evidente que o mistério – o assassinato, como veremos, neste romance, evoca o mistério da questão
do sacrifício - é insolúvel para aqueles que buscam acumular informações 160. Outra é a linguagem
poética.
A vigência poética em que se resguarda o velado como saber no sabor de ser interstício e
paradoxo – o silêncio do não-dito em cada dizer -, de estar além do controle e da manipulação, de ser a
fronteira do humanismo, opõe-se, claramente, ao que é a proposta do Palácio dos Sonhos a serviço do
Império Otomano que compõe a imagem do sistema no romance de Kadaré: “E existe outra indicação
classificação e do estudo dos sonhos de cada dia, de cada semana ou de cada mês, seja de uma exactidão
O furor classificatório não vê limites. Quer tudo abarcar. Por isso o sistema conduz a si mesmo
sempre rumo à totalização. Este empenho pela totalização e racionalização inclusive do que está para
além da razão, de entificar o não-ser assinala o percurso da metafísica desde o platonismo até Hegel. E
dele podemos também sentir as garras se abrindo no romance, pois para o Tabir Sarail (O Palácio dos
Sonhos) nem mesmo os sonos considerados manifestações de loucura ou delírios escapam da ânsia de
Em Abril Despedaçado, a questão do sistema que tudo define, classifica e determina, prevê e
controla está posta na imagem do Kanun (ver “ANEXO I: glossário de termos albaneses”). O Kanun
prevê os sentimentos humanos que acometeram o protagonista do romance, Gjorg, após ter cumprido
os ditames do próprio Kanun, que regia as tradições de sangue das vendetas entre famílias, e matado o
Zef Kryeqyq. Nesta previsão impositiva, porém, a compaixão de Gjorg é tratada mecanicamente como
um simples percalço ao qual se oferece uma solução163. Esta desumanizadora onipresença do Kanun que
‘Uma casa é qualquer tipo de construção, desde que tenha fogo e solte
fumaça.’ Gjorg não sabia dizer porque repetia consigo aquela definição do Kanun, que
sabia desde menino. ‘Não se entra numa casa sem chamar o dono e esperar a
resposta’.164
remoer mais esta regra, Gjorg se deu conta de que havia tempo rememorava, ainda
que a contragosto, as definições do Kanun sobre caminhos e caminhantes. ‘Pela estrada
passa gente, passa gado, passam os vivos, passam os mortos’.
Sorriu. Por mais que fizesse, não se libertaria daqueles cânones. Seria inútil se
enganar. O Kanun era mais poderoso do que parecia. Estendia-se por toda a parte,
deslizava pelas terras, pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das
casas, nos túmulos, nas igrejas, ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes
alpinos, talvez ainda mais alto, até o próprio céu, de onde caía em forma de chuva para
encher os cursos de água que eram o motivo de um terço dos assassinatos.165
Gjorg passou por eles sem sequer virar a cabeça, o que não o impediu,
contudo, que lhe viessem à lembrança as partes do Kanun que tratam de moinhos,
rebanhos, igrejas e cemitérios.166
semelhança de proposições e rituais cujo sentido se esqueceu, pois, conforme se diz em Abril
Em Concerto no Fim do Inverno, a personagem do militante político Juan Maria Krams mostra o
homem empedernido pela visão sistemática de mundo, num retrato aterrorizante. Krams só enxerga
política e teorias, sistemas e organizações, linhas e desvios por toda a parte. Enquanto Krams lembra de
(…) todo um universo, até então desconhecido, começara a sugar lentamente cada gota de sua
vitalidade. Esmaeceu e mais tarde apagou de vez não só as paixões, mas até os atrativos da
vida: as coleções de adolescente, o esqui, a praia, as estréias teatrais, as meninas, os livros, a
música, a nostalgia dos outonos, os deuses gregos, a astronomia, a história, o país. Tudo se
tornou em parte estranho, em parte absurdo. Outras coisas preenchiam sua existência. Um
desvio na linha política de um partido ou grupo parecia-lhe mais atraente que a lembrança de
todas as suas férias de verão. Passara a viver de congressos dos numerosos partidos, grupos e
facções nascidos do desmembramento dos partidos comunistas e marxistas-leninistas, de
seções plenárias, proclamações de plataformas, flexões na linha geral, choques internos entre
duas ou três linhas, concepções reformistas, tendências sindicais, vias para o socialismo, teses
sobre a violência e o caminho pacífico, o terror, o anarco-sindicalismo, o compromisso
histórico, o Terceiro Mundo...168
E quando discute com um companheiro seu, este lhe diz: “-Sabe o que você é, Krams? A
antivida, o diabo em pessoa”, ao que Krams responde: “- Sim, de certa maneira eu sou mesmo, nego
esta vida em nome de uma outra que há de vir” 169. Mais adiante na conversa, o amigo completa: “(...)
mude de rumo enquanto é tempo, Krams, um canto fúnebre de carpideiras dos Bálcãs tem mais
165 KADARÉ, 2001, p. 26-27.
166 KADARÉ, 2001, p. 29-30
167 KADARÉ, 2001, p. 48
168 KADARÉ, 1991, pp. 160-1
169 KADARÉ, 1991, pp. 161
95
história, mais filosofia e, quem sabe, mais economia política que todas essas suas reuniões plenárias e
Ali nada ameaçava seu universo. Milhares, centenas de milhares de fórmulas o cercavam e o
defendiam do assédio trivial do que chamam vida. Frente a expressões aparentemente
inofensivas, hoje está frio, que tarde chata, queridos e tantas outras, lá estavam de sentinela as novas
locuções, palavras de ordem, autênticas patrulhas duplas, triplas, quádruplas: as duas coisas justas
e três injustas, as quatro recomendações principais, os sete defeitos, cinco virtudes e dez vícios, velando para
que o apetite vital não o infectasse171
Esta vida contra a vida, esta biografia contra a essência de vida, contra o vigor de vida, ecoa em
que, dada a patente vizinhança da obra de Kadaré em relação à vigência mitopoética grega, confessada
pelo próprio autor, inclusive, vale a pena mencionar aqui uma reflexão de Carl Kerényi sobre a questão
de vida como biografia e vida como potência de vida na experiência grega. Esta reflexão deve ser lida
questionamento que encaminharemos no capítulo final desta teses sobre vida e morte como
consumação do destino.
Kerényi abre sua obra afirmando que mais do que expressão do pensamento, a língua é uma
experiência de pensamento e uma forma de compreender o mundo. É assim que as duas palavras que a
língua grega desenvolveu para dizer “vida”, bíos e zoé, acabam por “ressoar” experiências e
compreensões diversas do mesmo fenômeno172. A partir daí é que aprofunda sua reflexão sobre a
questão da potência de vida (zoé) em relação à vida como biografia (bíos) e sua referência à morte
(thanatos):
A palavra zoé adquiriu essa ressonância em um período arcaico da história da língua grega: sua
“ressonância” alcança a vida de todos os viventes. Estes são designados em grego como zôon
(pl. Zôa). O significado de zoé é vida em geral, sem caracterização ulterior. Quando a palavra
bíos é pronunciada, outra coisa ressoa; ela toca os contornos, por assim dizer, os traços
característicos de uma vida específica, as linhas de fronteira que distinguem um vivente de
outro. Ela tange a ressonância de “vida caracterizada”. Consoante com isso, bíos é o termo
grego original para “biografia”. Este uso é sua aplicação mais característica, porém não é o uso
primitivo. Também se atribui bíos a animais, quando se quer distinguir o seu modo de existência
Sem sugerir que tal distinção era consciente, no grego de Homero, afirma Kerényi que:
Esta experiência da vida que ressoa em bíos não é a mesmo que tomamos como objeto de
estudo da Biologia. Bíos não exclui thánatos. “Ao contrário: a uma vida característica corresponde uma
morte característica. Uma tal vida de fato se caracteriza pelo modo como deixa de existir” 175. Já zóe
exclui thánatos e, no sentido de não ser uma vida caracterizada, aproxima-se mais do conceito biológico
de vida, mas em todo caso diferencia-se desta na medida em que zoé evoca, ao mesmo tempo, como
vida indiferenciada, uma força vital, um “mínimo de vida”, que é condição de possibilidade de qualquer
Então, zoé é vida enquanto uma “não-morte” a que os gregos denominavam khrónos toû einai,
“tempo de vida”, no sentido não de uma duração preenchida por um bíos, mas o contrário: como um
“ser contínuo” que perpassa um bíos, uma “zóe de bíos”, ou uma força da qual este ou aquele bíos é uma
manifestação, um “bíos de zoé”. Assim, “(...) zoé é o fio a que cada bíos individual se pendura; (…) em
Então, pode-se perceber como e em que medida, a partir do pensamento grego sobre a vida e a
potência de vida, a vigência sistemática que reifica, conceitua e delimita, no esforço de entificar o
próprio ser do ente, só pode estar limitado a conceber a vida como vida biográfica. Afinal, “(...) a
experiência de vida sem caracterização (…) vem a ser indescritível. Não é produto de abstrações a que
se possa chegar apenas pelo exercício lógico de pensar a vida excluindo todas as caracterizações
possíveis”178. Motivo pelo qual neste contexto hegemônico do ocidente sob a vigência dos sistemas
perdeu-se o pensamento acerca de zoé-vigor-de-vida. É assim que Kerényi conclui: “Zoé não admite a
experiência de sua aniquilação. É experimentada como sem fim, uma vida infinita. Nisso ela difere de
todas as outras experiências que nos sobrevêm no curso de bíos, na vida finita”179.
É apenas a partir desta consideração de vida fora do vigor de vida que o homem dominado pela
visão sistemática de mundo pode pensar em edificar o próprio homem, moldá-lo segundo seus planos,
transformá-lo segundo seus objetivos, concebê-lo segundo sua racionalidade. O militante Juan Maria
Krams, em Concerto no Fim do Inverno, pensa, assim, no “homem novo” que deverá surgir como elemento
O homem novo era o alicerce, a chave, o alfa e o ômega de toda a grande obre. Se
conseguissem formá-lo, o socialismo podia ser considerado vitorioso; do contrário, tudo irá
por água abaixo. (…) era inútil tentar erguer o edifício do socialismo usando tijolos velhos. (…)
com novos tijolos, a construção, mesmo que revestida das formas antigas, seria nova em sua
própria essência e portanto imune aos fantasmas do velho mundo. (…) Esse tijolo é o homem
novo.180
lo”181. E Krams segue refletindo sobre o projeto de consertar o homem (em vez de concertar, como sugere
(…) havia muitas outras coisas por aniquilar: cerimônias, maneiras de pensar, de viver, uma
infindável coleção de costumes, até esses antares entre amigos, que ele abominava em especial.
Estudara o assunto por algum tempo. Descobrira, por exemplo, que o hábito de fazer as
refeições conversando, sobretudo à noite – ou seja, o jantar, em sua acepção atual, que segundo
Krams era um dos maiores males da humanidade -, fora invenção dos gregos antigos. Estava
convencido de que sem suprimi-lo seria impossível o que chamava criação do homem novo.
Antevira até um projeto de monografia, O jantar, último obstáculo ao novo mundo. Nela, mostraria
que as festas de aniversário, os comes e bebes nos velórios, as ceias de natal, páscoa e ano-
novo, as conversas à mesa e quejandos não passam de variantes de uma mesma instituição
decadente (não por acaso, observaria, o jantar é um hábito noturno); quanto mais depressa a
humanidade se livrasse dela, mais impetuosamente haveria de progredir183.
O romance ainda estende a questão a uma clara contraposição entre o consertar sistemático da
China maoista narrando como foi convocada uma comissão para elaborar o novo homem184. Este
concepções do regime maoista, a imagem do sistema no romance. Assim, corrobora o próprio modo
como o sistema, apoderando-se do real e convertendo a própria literatura em uma função de si mesmo,
acaba por produzir um homem cuja humanidade já não pode ser senão a reprodução da negação do
Em Abril Despedaçado, como vimos, a imagem para o sistema é o rigoroso código de leis do
Kanun, que impera na região selvagem e montanhosa da Albânia chamada de Rrafsh. O Kanun, com suas
regras, desumaniza a persona, personificando as coisas, sobretudo quando tais coisas são as ferramentas
das engrenagens da morte que o sistema faz girar. Na cena do funeral da vítima de Gjorg, este sabe que
é a próxima vítima, pois tornara-se um gjaks, tal como sua vítima antes dele. Gjorg sabe que já é um
morto a partir do momento em que matou. Enquanto ele olha os homens armados na procissão
Alguns passos adiante, um cano velho de fuzil de guerra se movia a todo instante como que
para se distinguir dos demais. Outro cano, curto, despontava à sua esquerda. E outros os
cercavam. Qual deles... Em sua mente, as palavras ‘vai me matar’ se converteram enfim,
tornando-se um pouco mais leves: ‘vai atirar em mim’185.
A desumanização dos que são tragados pela roda de sangue do Kanun faz com que não apenas o
matar e o morrer se banalizem, mas também iguala a todos, converte morte e vida em fatos genéricos.
Instrumentalizam todos os homens enredados em suas engrenagens. Os que estão na külle de Orosh
junto com Gjorg, por terem cumprido a vingança e, deste modo, por estarem já a espera da morte,
parecem desfigurados:
Gjorg sentiu necessidade de contar alguma coisa. Mas o que o assombrou foi outro fenômeno:
ele tinha a impressão de que o queixo dos homens em torno se transfigurava lentamente.
Assim como o gado, nas noites frias de inverno, traz o alimento de volta à boca para ruminá-lo,
aqueles homens traziam suas histórias na boca. E elas começaram a sair, a gotejar. ‘Quantos
dias faz que você matou o seu?’ ‘Quatro. E você?’186
A desumanização do homem é tamanha que as histórias parecem ser contadas por roupas,
184 KADARÉ, 1991, pp. 250-6
185 KADARÉ, 2001, p. 17
186 KADARÉ, 2001, p. 58.
99
atravessando o cômodo escuro como insetos mudos. Os homens são reduzidos às suas vestes e suas
palavras – que não são exatamente proferidas por eles, mas escapam, gotejantes. São como a anulação
tão indiferenciadas, são indiferentes, como se nada daquilo – matar e morrer – tivesse realmente sendo
dito: “Lentamente as narrativas escapavam daquelas vestes de lã grossa, como baratas pretas,
entrecruzando-se em silêncio: ‘O que você vai fazer com a bessa de trinta dias?’.187 Por outro lado, é do
fogo do aposento que se nos manifesta uma nesga de humanidade: “A porta se abriu, e entrou um
vulto. Via-se logo que vinha de longe. O fogo lançou meia dúzia de faíscas de desdém (...)”188, enquanto
as estórias de vida e morte dos homens se dão como uma espécie de refeição indigesta, algo como um
regurgitar fisiológico: “Percebia-se que sua história [a do homem que acabara de entrar] ainda estava nas
profundezas, longe da boca. Talvez até aquele momento nem tivesse penetrado seu ser, permanecendo
Esta mecanização do homem, porém, não é oposta ao humanismo, como se possa talvez pensar.
Antes, coirmana-se do humanismo, tendo suas raízes no iluminismo e, daí, desdobrando-se em diversas
tanto pela linhagem que toma o caminho da esquerda, como a da direita, como demonstra Rouanet190.
Entretanto, o mesmo sistema cujo fado sangrento pesa e oprime, acaba por conferir uma
aparência de segurança, com suas regras estabelecidas, sua determinação total da realidade. Isso é
notável na passagem em que se diz que os aldeões, logo após o enterro de Zef Kryeqyq, lembram os
casos em que as vendetas não se realizaram conforme as tradições e declaram, aliviados, que "(...) fazia
tempo que nenhuma daquelas sem-vergonhices acontecia na aldeia deles"191. A brutalidade das leis do
sangue do Kanun é tamanha que, em suas regras, há casos em que aldeias inteiras são punidas pela
A reificação do humano se mostra quando, pelas leis do Kanun, o sangue e a morte podem ser
No fim do segundo outono ele [Gjorg] tinha atirado em Zef dos Kryeqyq, mas não o matara;
só o ferira no pescoço. Os clínicos do Kanun, entendidos na definição da multas que deviam ser
pagas em tais casos, dirigiram-se á aldeia. Como o ferimento fora na cabeça, estimaram a multa
em três bolsas de groshë, ou o equivalente a meia vendeta. Isso significava que os Berisha
poderiam escolher: ou pagavam a multa, ou consideravam o ferimento como metade da
vendeta; nesse último caso, não teriam mais o direito de matar um dos Kryeqyq, já que metade
da dívida de sangue fora saldada. Teriam somente o direito de ferir alguém.
Os Berisha não quiseram aceitar o ferimento como meia vendeta. Embora a multa fosse
pesada, reuniram parte de suas economias e a entregaram, para que a contabilidade do sangue
permanecesse impecável193.
"Sangue dado, sangue tomado", repetiu Diana. "Você fala dessas coisas como se fossem
operações financeiras."
Bessian sorriu.
"E de certa maneira é isso mesmo", disse. "Todo o Kanun é percorrido por um frio
calculismo."194
Esta reificação está no coração do sistema na imagem do Kanun. Mark Ukacjerra, o feitor do
sangue, encarregado de cuidar das vendetas em todo o Rrafsh, pensa nas mortes como números, valores
O número de mortes vinha caindo de ano para ano, porém a última estação fora especialmente
catastrófica. Ele já o pressentia, e aguardara com o coração nas mãos as conclusões da
contabilidade que seus assessores haviam realizado poucos dias antes. (O resultado tinha sido
ainda pior do que se esperara: chegara às suas arcas menos de setenta por cento da soma da
mesma estação no anterior. E isso quando a contabilidade geral acusava grandes somas
auferidas pelo feitor das terras e por todos os demais servidores do príncipe, como o feitor do
gado e dos pastos (...). Ao passo que as rendas dele, o principal dos feitores (...) que outrora se
equiparavam à soma de todos os outros, agora mal alcançavam a metade195.
cruenta das relações economicistas. O sistema, tal como comparece na obra de Kadaré, não é apenas o
sistema político dos países socialistas, mas todos os sistemas que esvaziam o real exatamente na medida
cuidar do vazio essencial, ventre do velamento donde nasce toda realização, e para onde todo o
realizado se destina. Diferente é a vigência da morte, nos limites do sistema racionalizante. Diz o
médico auxiliar de Ali Binak, cujo pensamento é inteiramente tomado por esta vigência:
"Os senhores possivelmente sabem" (...) "que, conforme o Kanun, caso duas pessoas se
confrontem e uma delas morra, enquanto a outra sai ferida, a ferida é que paga o excedente de
sangue. Em suma, como eu dizia no início, por trás do meio mítico se encontra com frequência
a economia. Pode parecer cínico, mas nos nossos dias a vingança, como tudo o mais,
converteu-se em mercadoria" [180]
Bessian, que percebe o vigor do mito como originário de qualquer possibilidade de realização,
em vez de ver a economia por trás do mito (ou então o mito como uma essência abstrata por trás da
economia, ao modo idealista), contrapõe-se à colocação do seu interlocutor, o médico, afirmando que
tal explicação para as mortes seria cínica e ingênua, de tão simplificada. Não à toa, este médico, per-sona
na qual ressoa a voz do homem econômico, que enxerga, na vida, as formas tecnificadas, contrapõe-se à
Os livros do senhor, a arte do senhor, cheiram a crime. Em vez de fazer alguma coisa por estes
montanheses desgraçados, o senhor assiste à morte deles, busca nessa morte temas ardentes,
encontra nela a beleza para alimentar sua arte. Não vê que essa beleza mata, como, aliás, já
disse um jovem escritor que o senhor certamente não aprecia. O senhor me traz á lembrança
aquelas salas de teatro dos palácios dos nobres russos, em que o palco é amplo a ponto de
permitir apresentações com centenas de atores, ao passo que a platéia é tão pequena que só
comporta a família do príncipe. O senhor se assemelha a esses aristocratas. Leva um povo
inteiro a representar uma tragédia sangrenta, enquanto assiste de camarote e faz pilhérias, junto
com sua dama196
Ao homem que está tomado pelo conhecimento sistemático, técnico, representado pelo médico
que se dedica a auxiliar Ali Binak, exegeta do Kanun, o conhecimento como saber como nascer, um
saber que incorpore como seu o não-sabido, horizonte de sua possibilidade. Um saber sobre a vida
como bíos é epistemológico. Com ele, muitas coisas úteis e importantes podem ser feitas e realizadas.
Reconhecer esta importância devidamente, porém, implica garantir seu lugar, isto é, seus limites. Da
liminaridade com que se instauram os limites da episteme é que pode eclodir o conhecimento poético
do narrar.
Sobre esta experiência fundamental do conhecer como saber que é o narrar, diz-nos Castro que:
O verbo narrar se formou da palavra latina gnarus, aquele que conhece, pela queda do g- com o
acréscimo da terminação verbal. O radical gn- ainda se conserva na palavra portuguesa
ignorante. O verbo latino narro significa: fazer conhecer e contar, com sentido causativo. Na
linguagem familiar: dizer. Por ter as propriedades causativas de fazer conhecer através do dizer,
recebeu a denominação retórica diegesis. Da raiz gn- também se formou o verbo nosco. Como
incoativo significa propriamente no infectum: Eu começo a conhecer, eu tomo conhecimento.
Os dicionários etimológicos dão como sendo homônimas as raízes de conhecer e nascer (em
Refletindo sobre essas denominações e processos, podemos notar que há uma estreita relação
entre: conhecer, nascer e eclodir como palavra. O incoativo, ou começo de ação, instaura o
eclodir do conhecimento como Linguagem, vir à Linguagem e nascer como Linguagem. 197
anterior sobre a tríade vida, vigor de vida e morte em dimensão poética. Correspondendo ao modo de
questionamento que concatena como narrar, esta colocação precisa da essência originária do narrar a
partir do eclodir, nascer e vir à Linguagem se dá, na poética de Kadaré, em duas vias. A primeira delas,
Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é
totalmente igual a uma outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de
uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável,
como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma forma
primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem tecidas198
A questão que viemos pensando, na obra de Kadaré, como o sistema, tem uma linguagem
própria, também. É o que veremos a seguir: a via que logo acima chamamos de “um pórtico”,
porquanto desemboca em outra: a questão do nomear concreto, o nomear que corresponde ao vigor
Se por um lado se articula na obra de Kadaré, pela imagem-questão do sistema, uma encenação
de como, oprimidos pelos ditames deste sistema desumanizador que reduz a realidade ao conceito das
coisas (entifica o ser), os homens são por sua vez coisificados em seu ser, por outro lado, há também
uma possibilidade de pensar como essa proximidade entre o homem e a coisa pode ser poética. Essa
proximidade entre o homem e a coisa, não mediada pelos conceitos das coisas, corresponde à
possibilidade de compreensão do universal como concreto. Viemos até agora concatenando uma
dialética em que contrapusemos um modo em que o sistema na obra de Kadaré é tratado como alusão
à realidade contingencial (a crítica de sua obra) e um modo em que o que é próprio ao poético – o
pensamento – indica que este sistema comparece como uma imagem-questão que permite pensar a
realidade e a humanidade em âmbito muito mais concreto e, ao mesmo tempo, mais universal.
Em geral, para explicar concreto, é necessário ver com clareza a formação da palavra. Cum-
cretum, do verbo latino cum-crescere, o con-crescer. Mas só em parte fica explicado, pois não fica
claro a questão que se coloca. Trata-se do universal concreto em oposição ao universal
abstrato. O que aí se faz presente é a essência da ação implicando o aspecto cognitivo, a
vontade e o sentimento, e também um ponto de partida que está para além do próprio homem,
mas não partindo imediatamente de um princípio transcendente. No fundo, o concreto é a
duplicidade inerente ao ser humano como Entre-ser. Está em jogo a questão da finitude e da
não-finitude199.
obedientes à verdade paradoxal, a verdade como re-velação. Nesta medida, nosso pensamento não pode
ser confundido com um obscurantismo. Não podemos habitar apenas o velamento. Resguardamos o
velamento apenas quando nos abrimos ao que dele provém como re-velado. Nosso pensamento,
portanto, é o pensamento que procura nos lançar não na obscuridade total, nem na clareza total (ambas
são formas de cegueira), mas sim no entre. É como entre que se pode entender a menção do método
próprio vigor de vida. Em outro de seus romances com o qual dialogamos, Três Cantos Fúnebres para o
Kosovo, também é o Império Otomano que se apresenta como imagem da questão do sistema. Desta
vez, sua força é colocada em contraposição ao Bálcãs. Os otomanos aparecem como idênticos, em
Império, aparece como homogêneo, que iguala tudo a si mesmo, e que necessita igualar, ignorando as
diferenças, para dominar200. Este procedimento de subsumir as diferenças como forma de identidade é
A denominação das terras onde se encontram Albânia, Grécia, etc, como “Balcãs”, o conjunto
da península, diz-nos a narrativa de Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, é uma denominação dada pelos
turcos, homogeneizando antes de invadirem-na, conforme narra o romance. A contradição parece ser
uniformizante, mas ao mesmo tempo é sua vida, sua força, de modo que o Império lhes dá uma
Em outra passagem, narra-se a conversa entre o príncipe turco Bajazet e o seu preceptor grego.
-O que antes de tudo chocou você, meu príncipe, foi a diversidade deles. A multidão de
estandartes e de ícones, de cruzes e de emblemas acompanhados de trombeta, de títulos de
condes e de duques, de nomes tão intermináveis quanto sonoros, mais os músicos e os poetas
que se preparam para cantar a glória de cada um deles para as gerações por vir... Compreendo
você, meu príncipe, sobretudo quando compara essa mistura de cores à uniformidade cinza de
nosso exército. Compartilho seus sentimentos, mas espere até amanhã. Amanhã, você verá que
a verdadeira máquina de guerra é a nossa, e não a deles. Este exército negro de poeira, morno
como a lama, com uma única bandeira, um só comandante, sem emblemas nem poetas
jactanciosos nem chefes sedentos de glória, com nomes, prenomes e títulos em série; este
exército obediente, estranho a caprichos, surdo e anônimo como a gleba, é o exército do
futuro, meu príncipe. Na véspera de nossa partida, tive a oportunidade de consultar a lista de
nossos soldados. Na maioria, estão registrados apenas com o prenome, sem nem sequer um
patronímico. Mais de mil e trezentos Abdullah, perto de novecentos Hassan, um milheiro e
tantos de Ibrahim, etc. São essas sombras – assim podem ser considerados – que enfrentarão
os balcânicos fanfarrões para, sucessivamente, corta-lhes nomes e títulos semelhantes à cauda
do pavão, e acabar por cortar-lhes a vida. Eis, meu príncipe, o que de fato é202.
mesma coisa. O anonimato das coisas é sempre a contraparte da pretensão de nomear o mesmo. Nesta
dimensão da questão, o mesmo, em sentido poético, isto é, o vigor que atravessa a totalidade do ente,
não é um algo, permanece inominado: mistério. Velamento. É este mesmo poético – um não-
fundamento – que funda toda identidade. Porque apenas a diferenciação da eclosão dinâmica da
realidade como acontecimento é capaz de identificar sem homogeneizar. Para tanto é preciso calar
acerca do mesmo. Calar acerca do mesmo é a única forma de nomear a coisa na qual fala o silêncio. O
silêncio nomeia o próprio e opõe-se à sistematização que busca manter sob controle das classificações e
arquivos aquilo que é próprio ao velamento. O silêncio não é anonimato e homogeneidade. O silêncio é
a força que atravessa o nome próprio em que o mesmo, pela diferenciação, identifica o próprio.
3.6.2. O nome poético como identidade nas diferenças e a identificação sistemática pelo
anonimato
homogeneização perpetrada pela identificação pelo anonimato própria à vigência totalizante do sistema à
máquina da morte. Não se trata aqui, de uma morte como consumação e destinação, mas de uma morte
como negação da vida como vigor de vida. Antes de seguirmos, vejamos como em Três Cantos Fúnebres
Após a vitória otomana na batalha fatídica do Kosovo contra os exércitos balcânicos, o Sultão,
indiferente ao desejo das tropas de vê-lo, vai dormir, mandando, em seu lugar, o seu sósia, que inclusive,
parece 'melhor' que o próprio sultão, na medida em que tem olhos brilhantes e não marcados pela
insônia203. Entretanto, seu sósia é morto por um balcânico e, quando o corpo é trazido para dentro da
tenda do sultão, este o olha e vê sua morte, fora de si, como se estivesse tendo uma visão. Porém, o
sultão trata o sósia como um objeto, não como um ser humano. Logo em seguida, diante da perda de
consciência de Murat e do chamado do grande vizir pelo filho mais velho do sultão, dá-se a entender
que o sultão fora, também, assassinado. Na morte do 'outro' estava a sua própria [do sultão] morte:
da vigência sistemática em que o ente é anônimo na medida em que se pretende nomear o ser se opõe à
vida não de qualquer forma, mas à vida como potência de vida. Neste sentido e assim limitada, ele se
converte em potência nefasta, destrutiva. O sósia é a representação da vida, que o sultão envia como se
fosse ele mesmo. O próprio sultão, o homem entronizado no centro do sistema totalizante é vítima de
sua própria dinâmica de reificação pela identidade abstrata. Na passagem, é como se um outro ser
humano se torna a representação. O Sultão, no entanto, morre junto com seu sósia. A imagem elaborada
na narrativa do episódio é brilhante: traz a referência do uso frequente de sósias por governantes (em
Concerto no Fim do Inverno também se dá o mesmo sentido de perda da verdade a partir da representação
representação. Nesta vigência, mesmo aquele que se arvora como senhor da realidade acaba se
Os empenhos de sistematização do real, ainda que sejam aqueles perpetrados a partir da égide
dos humanismos, por um lado, parecem constituir um movimento no qual o homem se arvora como
centro e fundamento da realidade. Assim se dá na medida em que a elaboração da ação mediante a qual
se instauram as vigências sistemáticas processual iza o pensamento e codifica a linguagem para que
prática se dissocia da teórica num primeiro nível. Em um nível mais denso do pensar, a própria prática
diverge da ética como habitar essencial e a teoria torna-se abstração conceitual. Em um segundo
movimento, a representação do real nesta prática e nesta teoria tomam o lugar da própria realidade
ser manifesto na poética do romance de Kadaré, a respeito da imagem-questão do sistema, em suas vias
totalizantes, determinantes, que obliteram o velamento como dimensão originária, donde a verdade só
pode ser a adequação entre a proposição e a realização e, também, como isto se opõe à vigência do
Contudo, encerramos o tópico anterior refletindo sobre uma dimensão da questão do sistema
tal como aparece, especificamente, em Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, segundo a qual mesmo aquele
que se arvora como senhor da realidade acaba se tornando um refém de seus próprios poderes. Vimos
consegue, de fato, pelo simples fato de que esta dimensão não é um dado que se possas obliterar. Não é
uma realização que se possa negar. É necessário, então, compreender como a dialética própria da
realidade conclama o sistema como uma concessão sua e insere, no seio do mesmo, não apenas o aceno
de sua proveniência, mas também o caminho para a consumação do humano que transcende a própria
sistematização.
Desta forma, esta dialética se impõe como uma dialética poética. Chamamo-la poética porque
nela o télos encontra-se com a arché, o fim é o princípio. Um princípio que é fim é um princípio que é
originário, origina sem cessar de originar. Não é um ponto de origem, do qual o fenômeno se distancia
em seu desdobramento. Antes, realizando-se, o fenômeno remete a todo tempo à oculta origem de sua
possibilidade de vir a ser. Esta dialética, portanto, não nos encaminha para um fim segundo uma
linearidade lógica. Ela se caracteriza, antes, por manter a tensão do que se pensa. Esta tensão, cabe
observar, não pode ser compreendida como a tensão entre dois dados, ao modo da teoria da
real. A tensão fundamental é entre o dito e o não-dito, a realidade em sua realização, o ente e o ser
Uma primeira movimentação precisa ser feita, para que possamos tocar o ponto em que a
sistematização que racionaliza a realidade acaba por se converter, pela dinâmica dialética própria da
realidade que, mostrando-se, oculta-se, nos mesmos absurdos e arbitrários que deseja superar, controlar,
Em O Palácio dos Sonhos, a lógica e a sistematização dos sonhos que se tentam, metodicamente,
no Tabir Sarail, se revelam absurdos206, em essência são manifestações do acaso e do caos. Em parte
porque, em última instância, estão a serviço e sob o controle do dirigente do próprio Palácio. Ele pode
usar arbitrariamente seu poder para influenciar todo o mecanismo. É o que sente Mark-Alem ao ser
promovido para o mais alto cargo do Palácio: “(...) Mark-Alem tinha o sentimento de segurar de algum
modo nas suas mãos a noite ainda há pouco terminada de milhões e milhões de indivíduos. Ora, quem
reinava sobre as zonas obscuras da vida dos homens dispunha sem contestação de um imenso poder” 207
(e esse poder é ilusório, como as oscilações de sua própria influente família mostram). Ao se arvorar
como centro da realidade, sistematizando-a segundo sua razão (ou suas razões), o homem não
entroniza a si mesmo porque se torna função de uma de suas funções. Esta, não cinge o todo que o
homem é. Deste modo, a razão como função do homem torna o homem uma função da razão, como o
Barão de Münchausen que tenta retirar-se a si mesmo da água puxando-se pelo cabelo. O
de sua entronização.
Ademais, nem todo o poder é capaz de pôr sob seu controle a dinâmica do real. Diz-nos o
Sabia muito bem que ali por trás, a dois passos, havia o desabrochamento da vida, as nuvens
agora cálidas, as cegonhas e o amor, tudo o que ele fingira ignorar com receio de ser arrancado
ao ascendente do Palácio dos Sonhos. Tinha a noção de que ao alapar-se ali, o mais fundo
possível, o fazia justamente para se proteger, e que no momento em que, cedendo ao
chamamento da vida, abandonasse este refúgio, por conseguinte no momento da traição, o
encantamento se desvaneceria e justamente então, numa tardinha como aquela, quando o vento
já não soprasse de feição para os Quprili, o viram buscar, tal como haviam feito a Kurt, talvez
com mais deferência, a fim de o conduzirem ao sítio donde nunca mais se volta. (...) ‘Não me
importava nada de encomendar desde já ao gravador um ramo de amendoeira em flor para o
meu túmulo’ pensou ele208
A força do destino se impõe, apesar do poder do homem. A vida se opõe a sua reificação e
inaugura repetidamente o elo luminoso daquilo que é linguagem. Penetrando no seio das
determinações, o indeterminado reside onde todo termo termina. No término dos termos, começa a
liberdade interminável do porvir. O que já não é liberta-se das garras do ser passado, para eclodir
apenas e sempre como presença. A remissão ao não ser preside o horizonte daqueles que se encontram
homem (um homem ou cem homens) só consegue escravizar a humanidade. O homem humanista
opõe-se ao homem humano. O senhor escraviza justamente aquilo que não é alheio, aquilo que, no
outro, não é alteridade: a humanidade, que nunca é algo dado. A essência de quem vive é um epitáfio
A morte, assim, ressurge das sombras como algo que é pertinente à dimensão da realidade
enquanto nesta reside o vigor de vida a que se opõe a sistematização. No poético, a morte é sempre um
convite a que vivamos. Dentro de um sistema, encerra-se num fato último da vida. Em As Frias Flores de
Abril, no contracapítulo II, onde se narra a história do homem que ludibriou o mensageiro da morte,
faz-se uma ligação entre a morte e a burocracia socialista, quando o mensageiro, desbaratado pelo
expediente do homem decide, então, comunicar o ocorrido ao seu chefe. Este último, confuso, consulta
outro dirigente, evidentemente superior hierarquicamente, antes de os dois, reunindo toda a sua
Este último não acredita no que ouve. Exclama: 'Estão com o juízo perfeito?'
Um momento depois acrescenta: 'Basta! Tudo tem um limite!' E decide imediatamente
acordar o grande chefe, Hades.
Ao chegar, Érebo encontra todo o estado-maior da Morte reunido. As fisionomias
poucas vezes se mostraram tão sombrias. As cavidades escuras dos olhos de Hades atestam
melhor que qualquer pupila viva a gravidade do que aconteceu. Suas palavras, dispersas,
apresentam uma estranha semelhança com esse vazio. (...)
Em sua carruagem, atravessando a Terra e o Céu, voa em direção ao Olimpo para se
encontrar com Zeus, deus dos deuses.
(...)
As residências e escritórios das divindades se iluminam um por um. As carruagens vão
e vêm na noite. Despertam-se as diversas categorias de inquiridores, os investigadores secretos,
os que espionam os investigadores, os que suspeitam dos que espionam e, sem interromper a
marcha, os denunciadores, os informantes epiléticos, os delatores em que acreditamos uma vez
a cada mil anos, os vigilantes que se fazem passar por, os fiscais supostamente cegos, os que
declararam que se matariam se fossem proibidos de espionar e, em seguida, os intermediários,
o vigias hermafroditas, os decifradores de mensagens post-mortem, os que têm bom faro, os
lunáticos, os polidores de correntes etc. Etc. Nesse meio tempo, são reabertos dossiês, homens
e divindades são submetidos à tortura, cava-se, sabe-se lá por que, um grande buraco bem no
meio do Olimpo, enfia-se aí, de imediato, uma coluna, empreendem-se outros atos
incompreensíveis aos quais se assiste pela primeira vez (...)209.
Essa comparação entre os mitos e a burocracia volta, mais adiante, inversamente, quando se fala
do porão que conduzia ao subsolo, à casa do Outro, o Grande Chefe, comparando-o ao reino da
morte210. O absurdo impera onde o acaso se encontra encoberto pela causalidade que se assenhora da
realidade. O mito não é causal, não se explica: narra-se. No narrar que vigora em cada narrativa reside
um mistério que apenas a escuta é capaz de tornar próprio. Um diálogo possível espera onde as falas
Convertida no seu oposto simétrico pela dinâmica dialética da realidade – que concede até
mesmo a dialética do pensamento sobre a realidade – a sistematização que toma como centro o homem
acaba por lançar o homem na afirmação de sua própria impotência. Destituído do empenho de procura
do próprio como eclosão do sentido da realidade pela linguagem, o homem transforma o mistério do
narrar numa pergunta a ser respondida. Em toda pergunta a ser respondida, o erro precisa ser evitado,
enquanto uma questão a ser pensada só se realiza enquanto questionamento no vigor da própria
errância do caminhar. A sistematização do real sucede, assim, de realização em realização, tal como de
sistema em sistema, incapaz de superar os limites que ela mesma se impõe (acreditando que os impõe à
realidade da qual eclode). É incapaz de superar os limites que se impõe porque compreende apenas o
O romance O Sucessor se fecha com uma fala do personagem chamado “Sucessor”. Discursa
depois de morto, dizendo que não busquem solucionar o mistério de seu assassinato, uma vez que:
“Nós [os homens do sistema, sucessores e condutores] somos engendros de um erro na grande ordem
do mundo”211. Também recomenda que não se os prateie, pois seria melhor rezar para que, um após o
outro, numa sucessão, os sistemas opressores, com seus condutores e sucessores, não voltem,
eternamente, sobre diversas formas, ameaçando distanciar-nos, cada vez mais, até a perdição, da força
originária da vida:
Melhor que rezem por outra coisa. Rezem para que não chegue o dia em que, ao
redemoinharmos perdidamente em meio à noite escura do universo, distingamos ao longe as
luzes do globo terrestre e digamos, tal como assassinos que o caminho por acaso conduz à
cidade natal: Ah, ali está a Terra!212
Cabe notar aqui que o tal globo não é uma referência geográfica, ou seja, uma referência que se
aloca a partir de um mapeamento epistemológico, já que é para esta Terra que o acaso e não a causalidade
reconduz até mesmo o criminoso, e reconduz não ao espaço, mas à origem, à cidade natal. E continua,
dizendo que o caminho de volta pode ser obstruído pelo retorno dos Condutores e Sucessores, sob
diversas formas: “E [rezem] para que não troquemos de caminho e para a tragédia de vocês tornemos a
aparecer, com máscaras sobre as faces e mãos ensanguentadas como outrora, sem remorso, sem
Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, encerra-se quando o sultão Murat, cujo sangue e vísceras foram
deixados nos Balcãs e a corpo vazio levado para a Turquia, nos fala, no canto final, que está esquecido.
Toda a glória e poder se dissipam, e a fugacidade dos sistemas com pretensão de eternidade se revela,
conforme o sultão morto diz que os mongóis, sob Tamerlão, atacaram o Império Otomano e
Se não é uma referência historiográfica nem uma alegoria política, mas justamente a imagem-
questão que se contrapõe à vigência poética da realidade, o sistema remete então a uma dimensão da
qual eclode, mas sobre a qual procura se impor. Nesta forma de compor o conjunto de sua obra, que é,
por ela mesma, pelo modo como articula a linguagem como poética e não como representação, uma
manifestação desta dimensão, Kadaré nos coloca já dentro da questão. O sistema com todos os seus
de sentido instaurada pelo narrar em cada narrativa. Por isso o sistema é multívio. O sistema está dentro
dos romances, não o contrário. Então, como vimos acima, de nada adiantam as tentativas (e já foram
tantas!) de superar um sistema pelo outro. O que se encaminha na poética do romance de Kadaré é que
a plenitude da verdade da realidade como sentido, a linguagem se manifestando como homem humano,
se envia pelos caminhos do poético, que é sempre inaugural. Romper os limites só pode ser um adentrar
a liminaridade: a linha inexistente onde se encontram o não-limite e o limite. É lá onde nós, seres que
Neste ponto, para nós, que nos lançamos no diálogo com a obra, fica extremamente difícil
desta questão de forma a não dar a entender que estamos oferecendo mais uma solução ao modo de um
programa a ser instituído como versão determinante da realidade, o que equivale a dizer: oferecer mais
um sistema como solução. É como se a poética da narrativa da obra declarasse: “não adiro a nenhuma
Chamamos, portanto, em nosso auxílio o romance Abril Despedaçado. Nesta obra, narra-se as
peripécias de Gjorg, o personagem cujo percurso consiste em cumprir com os ditames do sistema, reproduzi-lo
e reencená-lo (de fato, Gjorg é um exemplo de virtude, desde a perspectiva da moral implementada pelo
Kanun215). Não obstante, Gjorg é, contudo, marcado por um empenho de não seguir nenhuma daquelas
Ouvira o pai de cabeça baixa, sem dizer nada. E nos dias que se seguiram, enumerava
inconscientemente os castigos que incidiam sobre aqueles que não obedeciam à família. Não
ousaria confessar nem a si mesmo que não tinha vontade de matar. O ódio aos Kryeqyq, que o
pai havia tentado acender naquela manhã de janeiro, dava a impressão de se apagar com a luz
do dia217
escapar dos sistemas. Não apenas porque estes, em sua dinâmica, se arvoram sobre o todo da
realização, do qual, enquanto serem em obra, em realização, não podemos escapar. Mas sim porque não
no seio da própria realização sistematizada, que se pode chegar a compreender a dimensão da eclosão
do que chamamos de próprio. Nesta dialética poética, este empenho ruma para a direção que não se
pode apontar. Ruma para onde já desde sempre estamos. Ruma para de onde veio.
racionalização do sistema: o gjaks deve ir imediatamente após realizada a morte até a kullë de Orosh
para pagar o tributo do sangue, mas a kullë pode deixá-lo esperando em seus salões o quanto julgar
necessário, sem pressa218. É apenas no caminhar como rumo à origem que é possível estar livre deste
jogo de sucessões que se anulam como superposições da mesma coisa. O libertar-se genuíno reúne o
“de” ao “para”, tal como o arché e o télos da dialética poética, não teleológica.
No caminho que decide tomar, andando no limiar entre vida e morte, Gjorg lembra-se da
história que muito cedo lhe fora contada, sobre como sua família – outrora pacífica – fora envolvida na
cadeia infindável da vendeta com os Kryeqyq, vendeta que já durava setenta anos e custara vinte e dois
mortos de cada lado. Por um acaso, um dia, um hóspede bate à porta do avô e é acolhido como amigo,
sob proteção da família. Este hóspede é morto como vingança por um membro do clã dos Kryeqyq
nos limites da aldeia. A posição do corpo e o fato de que não havia ninguém para testemunhar que o
irmão do avô, que acompanhava o morto, dele já havia se despedido, somam-se como outros golpes do
acaso para incluir os Berisha numa vendeta que lhes era alheia. Afinal, conforme manda a tradição, a
O acaso se reveste, ademais, da faceta do inesperado. Como Gjorg, além do pai, era o último
homem do clã dos Berisha, continuar a vendeta significaria em breve o fim da família. Deste modo,
decidem pedir aos Kryeqyq a pacificação da vendeta. Em meio aos procedimentos e fórmulas
prescritos pelo Kanun, um ancião da família, de quem jamais se esperaria tamanha imprudência, decide
O inesperado assim se mostra como a única via possível na qual se pode manifestar as
rementem sempre ao encobrimento de si mesmas. Por isso, para a racionalização e a causalidade que se
transmutam no seu oposto simétrico pela dialética da realidade, parecem sempre haver uma condenação
ao arbitrário e ao acaso. É que, à luz da razão e sob a fundamentação das causas, o extraordinário no
ordinário sempre parecer ser apenas o caos e o acaso. O inesperado é o arbitrário. Acaso e
arbitrariedade são, portanto, apenas formas humanistas de se ver a contraparte que a dialética da
realidade impõe à razão e à causalidade. Na dimensão poética, ambos são concessões do que
permanece velado, inacessível ao conceito, porquanto permanece dentro de casa, no vazio da linguagem
Abril Despedaçado nos mostra como todo o destino de uma família fora determinado pelas regras
ferrenhas de um sistema que se mostra profundamente racional, coerente e coeso, mas que não é capaz,
ele mesmo de fugir dos interstícios indeterminados que eclodem por entre as grades de ferro que
procuram aprisionar, sempre em vão, as possibilidades do real (do ser) sempre tão maiores – porquanto
ilimitadas – do que o que é mera realização (os entes). O acaso, a falta de causa, porém, deve ser
pensada de outra maneira. Não é apropriado pensá-la como a-caso, como ausência de causa, isto é,
pensá-la a partir da causa. O que a passagem parece indicar é que o realizado, o causal e o determinado
causal e o determinado (as injunções de qualquer sistema) é que devem ser pensados à luz do que se vela,
Podemos, então, afirmar que a imagem-questão do sistema, não sendo uma representação,
remete a uma contraposição à dimensão poética apenas no sentido em que é dela uma concessão, uma
O realizado no poético é a narrativa. Toda narrativa fala a partir do vigor de um narrar. O narrar
é a poiésis de toda narrativa. Um agir essencial que nos coloca a caminho do originário. Um rio, para fluir
e ter correnteza, e chegar a consumar-se, desaguando no mar, não pode deixar em momento algum de
corresponder ao impulso das águas de sua nascente. Continuar nascendo é a forma de chegar a ser o
que se é. Esta dinâmica própria da realidade não é passível de representação. Por isso, apenas a arte nos
realizado.
Esta maneira de considerar representação e realidade a que nosso questionamento nos levou
recoloca a questão outra vez. Desta vez, ela se enuncia por duas vias. Uma é: como a realidade se faz
verdade e sentido no narrar das narrativas? A outra: como, nesta vigência poética de realidade em que a
verdade da realidade não é produto do pensar humano, mas antes uma correspondência ao
entende por “natureza”, a que se opõe a realização humana da “cultura”? É o que pensaremos nos dois
próximos capítulos.
116
Em uma nota introdutória ao seu romance A filha de Agamenon222, escreve Ismail Kadaré: “Os
acontecimentos descritos no díptico A filha de Agamenon e O Sucessor são parte de recordações eternas da
humanidade, revisitadas, como frequentemente acontece em nossos dias. Por isso, a semelhança com
cenas e pessoas da atualidade é inevitável”223. A narrativa não remete a contingências, mas a recordações
Esta conformidade melhor se compreende, como vivos, se, pela expressão “da humanidade”,
entendermos não somente as recordações que a humanidade tem, isto é, as lembranças de que a
trazer à lembrança a humanidade ela mesma. Aquele que recorda é aquele que é recordado, conforme a
dinâmica poética do diálogo. Esta recordação, em que aquele que recorda é o que é recordado,
pensar as duas questões que foram colocadas no fim do capítulo anterior. A primeira delas era: “como a
Na nota do autor, citada acima, vimos que este recordar próprio da vigência da memória
As semelhanças entre as cenas e as pessoas da atualidade é inevitável, diz a nota. São semelhantes.
Abril224, esta diferença pela semelhança está na própria composição da obra, como muito bem observa
Elder:
É como se o passado – não apenas a apavorante ditadura de Hoxha, mas as rixas de sangue
entre famílias e a miséria dos séculos passados – tivesse sonhado o presente e agora
estivesse despertando. Entre os capítulos que tratam da vida atual Kadaré inseriu
contracapítulos repletos de lendas, alucinações e fantasias. Não apenas estes parecem ser
mais reais que o presente como também começam a se infiltrar nele. (…)
E assim, ao longo de capítulos e contracapítulos, a duplicidade de vida presente e
maldição passada do príncipe-serpente está em todo lugar. A liberdade desordeira eliminou
o comunismo, mas o que ressurge daí é o Kanun, o antigo código das vendetas de sangue
que o comunismo suprimira. As simpatias do escritor – ou melhor, seus sofrimentos – são
ambíguos.225.
De forma muito perspicaz o crítico faz uma breve observação (ele não aprofunda, em seu texto,
que é uma crítica publicada em jornal) acerca de como a arte de composição de Kadaré, neste romance
presença com o que se oculta (como futuro ou passado) faz eclodir a história como presentificação, em
vez de representação. A visão 'historicista' da questão, assim, implica uma compreensão instrumental de
mítica operacionaliza a ficção em nosso tempo de modo a torná-la capaz de instaurar mundo num tempo
Um texto ou ficção literária, embora faça uso de diversos recursos referenciais ou descritivos
de nossa linguagem ordinária, não os utiliza, entretanto, de modo referencial ou descritivo. Sua
função é, ou nós devemos lidar com ela como se fosse, inteiramente expressiva ou criativa, ou
(…) gestual226
Nós encaminharemos aqui, segundo a experiência de nosso diálogo com as obras que, de
diversos modos, os romances de Kadaré todos fazem eclodir o tempo como essa experiência de
presentificação histórica. Nesta experiência, o narrar e o narrado não reúnem realidade e narrativa como as
mesmas coisas. Não sendo as mesmas coisas, a realidade e a narrativa em sua configuração, cabe
Alketa Spahiu227 aborda a obra de Kadaré como um ponto de articulação entre a epopeia e o
romance. A influência dos mitos gregos na obra do albanês seria um dos pontos a partir dos quais se dá
compreendido a partir da diferença entre a epopeia e o romance quando este par é transposto para a
antinomia teórica entre oralidade e escrita no âmbito da literatura. Kadaré, assim, emularia, com sua
escrita, os mecanismos criativos da poesia oral. Desta última, seria próprio uma mistura entre história e
lenda, de um modo tal que a história se situa na temporalidade eviterna das lendas e estas, por sua vez,
Embora procure não tratar a história nos limites da historiografia, esta tese, que muito
como presentificação histórica, encontra alguns limites. Começam pela problematização do épico como
gênero, um gênero “oral” de literatura que seria “preservado”, na medida em que “escrito” no romance
de Kadaré. É preciso ir além disso, para compreender em que medida o epos da presentificação histórica
cuidadoso se impõe por duas vias do mesmo, que foram apenas brevemente enunciadas acima: 1) a via
Pensada – como anteriormente - a escrita na sua ligação com a memória, fica impensada a sua
importância para o surgimento e afirmação do modo de vida da pólis grega a partir da qual se
desenvolve o núcleo que veio a gerar a experiência da modernidade, a que corresponde o surgimento
Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política; é a escrita que
vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma
completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos (ligados aos ritos
227 SPAHIU, 2004.
119
míticos e religiosos, onde a palavra era poder). Tomada dos fenícios e modificada por uma
transcrição mais precisa dos sons gregos, a escrita poderá satisfazer a essa função de
publicidade porque ela própria se tornou, quase com o número direito da língua falada, o bem
comum de todos os cidadãos (...) Ao lado da recitação decorada de textos de Homero ou
Hesíodo - que continuava sendo tradicional - a escrita constituirá o elemento de base da
paidéia grega228
Portanto, se é verdade que a escrita se configura no quadro de uma cultura grega que já deixava
o epos como gênero de transmissão e composição poética e passava, propriamente, com o perdão do
pleonasmo, à literatura escrita (ainda que fosse para ser recitada), por outro ela opera desde uma
outro sentido, ainda que remetendo ao mesmo. Esta remissão ao mesmo reside no que demonstramos
em nossa dissertação de mestrado229: a distinção entre mythos e lógos não pode ser feita desde uma
perspectiva poética, apenas desde uma perspectiva da história das ideias ou da história da filosofia, ou
seja, uma perspectiva historiográfica. Assim, sendo escrita corresponde (ou melhor, pode corresponder)
à escuta do lógos e ao narrar do mythos tanto quanto a oralidade. Afinal, por outro lado, nem toda
oralidade corresponde, necessariamente, à vigência do épos como mythos e lógos. Por vezes, a oralidade é
Damião Berge230 mostra que, além do sentido de discurso, oração e palavra, épos, em Homero,
remete à unidade da língua dos deuses e dos homens. Esta unidade converge o dizer dos mortais e dos
âmbito deste nosso trabalho, a sistematização) da mitologia homérica como religião da pólis, argumenta
Berge, que o pensamento crítico acerca dos poemas homéricos – possibilitado pela escrita – vai
operacionalizar uma cisão entre o épos do narrar em que a narrativa é presença, e o lógos do pensar em
que a verdade é ausência (a ideia, em Platão, a enérgeia, em Aristóteles, etc.). Esta cisão se consolida
apenas com o platonismo, isto é, a partir de uma série de interpretações que erigem o diálogo do
Mas assim ainda estamos pensando o épico como um gênero historicamente determinado e
oral. A nosso ver, não é como uma transcrição deste gênero que o épico comparece na obra de Kadaré,
embora sejam evidentes as ligações que sua obra mantém com a tradição “épica” albanesa e grega.
Pensamos, porém, que esta é mais que uma ligação intertextual, mais que a reprodução e transcriação
de histórias e personagens. É uma ligação poética, uma referência que se dá a partir do que é vigente no
épico como epos. O epos precisa ser pensado em relação à oralidade e à escrita, mas não como aquilo que
Tanto o som como a letra em relação à phýsis são já manifestação do que em si se oculta. Mas
como lógos e poiésis, tanto o som e a letra só o são na tensão linguagem/língua. O que nos pode
fazer perceber o caráter originário ou não tanto de som como de letra é pensar o que significa
etimologicamente o verbo latino fingere. Os seus cinco significados principais: fingir, dissimular,
educar, formar e imaginar devem ser lidos no dar figura a algo pelo qual o vazio se dá como
limite e muro e figura, nisso consistindo o radical de fingere. Mas, então, aí temos a tensão
radical da phýsis como desvelamento e velamento. A questão central tanto do fonema como da
letra se dá na exata extensão e profundidade da acolhida e recolhimento no lógos/poiésis como
alétheia de éthos e sophía, ou, então, no seu caráter restrito à tékhne sem poíesis.231
Como vimos, a questão do épos está vinculada nas dobras da questão da realidade para além da
antinomia entre natureza e cultura, isto é, da realidade em seu vigor de presença como phýsis. Castro,
aqui, considera, apropriadamente, que tanto letra como som podem enredar o caráter o originário da
linguagem na língua. Este enredar se compreende no sentido da experiência do fingere, cujos sentidos
remetem, todos à experiência plena da ficção como colocação de mundo, educação e aprendizagem,
ficção e verdade.
Assim, é preciso ter em mente, aqui, as reflexões anteriores que nos conduziram pelo caminho
da verdade como re-velação (alétheia), isto é, como possível correspondência à verdade da realidade em
que vigora o ocultamento. É justamente no resguardo do mistério do velado que se pode instaurar a
vigência poética da narrativa a que se contrapõe (como manifestação dela, porém) a vigência sistemática
dos conceitos.
Na vigência poética, o habitar consolida-se no dizer em que uma narrativa se coloca como
mundo e terra (phýsis). Enquanto, para a vigência sistemática, o habitar (ethos) distancia-se do épos, torna-
se um habitar impróprio, que instaura a hegemonia da epistême em lugar da sophía. Todo este palavreado
grego, porém, pode confundir mais que radicalizar o pensamento. Em todo caso, não é um elemento
Ou seja, a nível da língua, o grego e o albanês se aproximam. Esse nível é, ainda, não
propriamente poético, mas técnico, instrumental, em certo sentido. Cabe compreender o sentido pelo
qual a língua remete ao vigor da linguagem e, assim, se faz poiésis, isto é, pode acontecer como obra.
Tanto que Kadaré fala de Shakespeare, que escreveu numa língua sem grande parentesco linguístico com
o grego e o albanês, mas que, pela vigência poética da linguagem, nas suas tragédias, é capaz de encetar
uma fala originária acerca da experiência trágica das obras, de modo semelhante às tragédias gregas.
Dito isto, seguiremos o que foi enunciado acima na discussão das palavras fundamentais gregas por
outros caminhos, que tentam pensar o que nos diz a linguagem no âmbito da língua portuguesa.
Seguiremos utilizando a palavra épos como forma de escapar ao entendimento cristalizado em teoria
O habitar impróprio constituiu o contexto dos sistemas e da técnica. É neste contexto que o
épos, dissociado da essência originária do habitar, figura como gênero, enquanto a escrita é considerada
como registro e suporte. Isso ocorre porque, na indistinção entre língua e linguagem, incorre-se na
equivalência entre essência da língua e gramática. E a gramática, por sua vez, lida com a língua sempre
como língua escrita, em que a oralidade, quando comparece, se dá como registro escrito de discurso
oral.
Então, o elementar, nesta questão, é que a escrita, em sentido poético, não pode ser entendida
232 KADARÉ, 2013 [traduziu-se: “For me as a writer, Albanian is simply an extraordinary means of expression—rich,
malleable, adaptable. As I have said in my latest novel, Spiritus, it has modalities that exist only in classical Greek,
which puts one in touch with the mentality of antiquity. For example, there are Albanian verbs that can have both a
beneficent or a malevolent meaning, just as in ancient Greek, and this facilitates the translation of Greek tragedies,
as well as of Shakespeare, the latter being the closest European author to the Greek tragedians”].
122
escrita alfabética e do silabário – e tampouco de sua abstração semântica – como no caso das escritas
ideogrâmicas. É preciso entender a escrita como presentificação da linguagem, vale dizer, como
nomeação do ser. Essa de fato, parece ter sido a nutriz para o surgimento da escrita:
“Escrever/desenhar” - a etimologia da palavra grega graphein bem o diz – são uma única coisa. O
desenho é uma magia, visto que ele representa: ele guarda a memória não apenas das palavras, mas do
“rumor anterior às palavras”, da força das coisas e dos seres, traz a marca de nossos corpos” 234 Ou seja,
embora aqui se fale de “representação”, esta representação erige uma concretude na coisa que nela se
apresenta, tal como uma representação teatral representa apenas na medida em que apresenta a própria
coisa.
Destarte posteriormente, com a sua consolidação, é que a escrita tal como hoje a entendemos
vem a surgir como forma de representar conceitualmente a realidade 235. Ainda assim, é discutível se o
surgimento específico da escrita propriamente alfabética na Grécia antiga serviu como pressuposto
escrita alfabética já surge como parte de um processo conjunto de desenvolvimento, processo este que
incluiria o pensamento conceitual já a partir dos pré-socráticos como parte, e não como consequência.
O decisivo, neste pormenor, parece ser que, nas tradições de pensamento e cultura onde o
pensamento conceitual no esteio da filosofia só se impôs com a dominação global ocidental moderna, a
escrita permaneceu como uma espécie de conjunção arte e epos mítico, tal como mostram os diversos
autores236 a respeito das mais variadas formas de escrita já criadas. À luz destas afirmações é que se faz
possível adir que “A escrita é magia visual, milagre que doa corpo ao silêncio e aos sons, figuras ao
pensamento. Mas pela operação alquímica da leitura, ela se enraíza de novo na palavra, reconduzindo-a
Portanto, a escrita pode ser, tanto quanto a oralidade, a fala do épos na medida em que seu corpo
in-corpora o silêncio essencial no dito manifesto (que na oralidade é som). O pensamento, que na
escrita também não necessariamente se distingue da vigência poética da linguagem (esta distinção não é
universal, mas contingencial, como vimos acima), reúne como lógos o pensamento originário, em figura,
fingere. Reconhece-se, assim, a destinação ao diálogo como movimento essencial da escrita que galga as
veredas do épos. É pela leitura que ela ressurge numa anábase que a lança no imediato vigor do diálogo
em que a voz é mais que som238. Traz consigo a presença da imagem que se perde quando, infensa ao
apelo hermenêutico da leitura como escuta-em-diálogo, a escrita pretende-se grafema alheio à sua
É portanto, no diálogo poético que reside o ponto em que oralidade e escrita se tocam como
dimensões do épos. Isso não significa uma indiferenciação, que fique claro. Afirma-se, antes, um ponto
de encontro que implica, sempre, um tensionamento. Este tencionamento, é decisivo, afirma Ismail
Kadaré:
Eu acho que na história da literatura houve apenas uma mudança decisiva: a passagem da
oralidade para a escrita. Por muito tempo a literatura foi apenas oral e, então, subitamente, com
os babilônios e gregos, veio a escrita. Isto mudou tudo, porque antes, quando o poeta recitava
ou cantava seu poema e podia mudá-lo no momento mesmo da performance, conforme
desejasse, ele era livre. Por esta mesma característica ele era efêmero, já que seu poema se
alterava na transmissão oral de uma geração à outra. Uma vez escrito, o texto era fixado. O
autor ganha algo por ser lido, mas ele perde algo – a liberdade. Esta é a grande mudança na
história da literatura. Pequenos acréscimos como a divisão em capítulos e parágrafos,
pontuação, são relativamente insignificantes; são detalhes. 239.
237 ZALI, 1997(b), p. 153 [traduziu-se: “L'écriture est magie visuelle, miracle qui donne corps aux silences et aux sons,
figures à la pensée. Mais par l'operátion alchimique de la lecture, elle s'enracine à nouveau dans la parole,
redonnant vie et souffle au texte mystérieusement pétrifié, lui rendant les couleurs de la voix”]
238 Essa maneira de considerar aproxima-se da visão de ISER (1978) porquanto entende a leitura como um processo de
criação, algo como uma coautoria sem o qual o texto não chega a se realizar plenamente. Diferencia-se, porém, da
ênfase no papel do leitor como sujeito agente da leitura, porquanto aqui consideramos que é a linguagem que abre o
espaço de diálogo em que eclode a criação em que o homem se faz autor e/ou leitor.
239 KADARÉ, 2013 [traduziu-se: “I think that in the history of literature there has been only one decisive change: the
passage from orality to writing. For a long time literature was only spoken, and then suddenly with the Babylonians
and the Greeks came writing. That changed everything, because before when the poet recited or sang his poem and
could change it at every performance as he pleased, he was free. By the same token he was ephemeral, as his poem
changed in oral transmission from one generation to the next. Once written, the text becomes fixed. The author
gains something by being read, but he also loses something—freedom. That is the great change in the history of
literature. Little developments such as division in chapters and paragraphs, punctuation, are relatively insignificant;
they are details”]
124
Essa tensão, assim sendo, se dá pela questão decisiva de que a oralidade elimina a noção de um
original fixo, uma vez que o poema do poeta oral não “existe” em lugar nenhuma na sua memória
como algo pronto que o poeta apenas repete, mas o próprio momento da récita é o momento da
“criação” do poema. Por causa de sua falsa reiterabilidade240, a oralidade, também, enquanto não é
registrada em nenhum tipo de suporte (gravações, transcrição, etc), é infensa à análise. Não se faz a
análise no momento da fala. É preciso converter a fala em suporte, o qual se pode controlar, manipular,
parafrasear, enfim, analisar. Além disso, o registro cria uma fixidez à obra que, em sua vigência oral, é
Neste sentido, pela incompatibilidade irredutível à análise, a palavra oral é epos. O que
argumentamos aqui é que a escrita pode não ser. Desde que ao ser escrita e/ou lida, seja, ela também
marcada pelo epos. Há que se que considerar que nem toda oralidade é epos, tal como nem toda escrita.
Não é, portanto, o suporte (e por este viés a oralidade pode ser um dentre outros suportes), seja ele
escrito, oral, audiovisual, ou qualquer outro, que confere o épos à palavra. O épos não é uma palavra que
outrora vigeu, como se pudesse haver narrativa em sentido poético – e não apenas um relatar
discursivamente – sem aquilo que vige em cada dizer como o histórico de toda história.
Na vigência do épos, não existe um modelo fixo para criação, tampouco um original. Entretanto,
não se pode compreender esta “criação” à maneira moderna, como oriunda da subjetividade ou do
gênio emotivo, estético ou intelectual. Porque esta criação não é uma novidade, mas sempre uma
resposta já encetada na tradição do mito, em correspondência ao mito 241. Ou seja, a “criação” poética se
dá apenas (e a todo momento) quando a palavra poética se apresenta. Numa obra escrita, isso significa
que é uma obra que não vige como écriture242, mas justamente como seu oposto, como fala. Como se
trata de um texto escrito, óbvio fica que não nos referimos aqui à fala do tipo da parole saussureana243 ou
dos atos de fala244, antes, remetemo-nos ao mito em sua força inaugural (portanto, não como um ou mais
registros de uma determinada história do conjunto de histórias entendido como mitologia) que “(...) é,
assim, o vigor de todo vigente no espetáculo de sua vigência. Por isso, todo mito se torna um apelo que
nos chega e nos atravessa com a força de um princípio de transformação”245. A fala aqui é uma fala
mítica e, neste sentido transformador, criativo, em que a presença é originária, a fala de um épos, ou seja:
Gesto de mundo, o gesto que coloca mundo, que recolhe e produz, que cria recriando, o gesto
próprio, concreto, em que não há a noção de um original que esteja sendo executado nem de
um real externo ao próprio gesto que esteja sendo indicado – a este gesto de mundo que
responde a um aceno telúrico chamamos mito246
A obra de Kadaré reencena este gesto pela narrativa, ainda que, por ela o épos se nos apresente
como escrita. Deve, não obstante, eclodir como sentido pela leitura-em-diálogo, escuta possível do mito
que ressoa no dizer calado do texto da linguagem. Encena, então, justamente porque em sua obra o
mito é presente não como uma referência intertextual, mas uma referência de diálogo, vale dizer,
referem-se ao mistério da linguagem. Este é o sentido da presença do mito na obra de Kadaré, a nosso
ver, e nisso tomamos um caminho diferente dos demais críticos ao abordarem sua obra.
O mistério que se vela pela linguagem do mito é a via a que nos destinamos para chegar a
compreender a questão que enceta em sua obra e conduz ao próprio. Neste conduzir ao mais íntimo de
nós, atingimos a distância a que se destina o narrar inaugural: não tanto decifrar o enigma, mas antes,
enxergá-lo, a lição de Édipo. Enxerga o enigma apenas quando não mais vê (a resposta ao enigma
sempre remeteu ao ele mesmo, ao próprio). Enquanto crê que o decifrou, ainda é incapaz de ver que
244 SEARLE, 1981 (na questão que tratamos aqui, a Teoria dos Atos de Fala é diametralmente oposta ao pensamento
da écriture de Derrida – embora tenham seu ponto de encontro no tratamento da língua a partir do significante, do
qual Derrida dispensa o significado como elemento “metafísico”. O trabalho de Searle limita a fala, não a escrita,
ao momento de sua enunciação, de modo que sua teoria impossibilita pensar a reverberação do épos como fala
poética que se desdobra em memória e criação).
245 LEÃO, 2003, p. 145.
246 PEREIRA, 1998, p. 61
247 LEÃO, 2010, p. 43
126
sua resposta apenas recoloca a questão: o homem, ele mesmo, Édipo. O mistério é o conhecimento do
que fala no silêncio, é compreender que o extraordinário não é simplesmente fora da ordem, mas, de
modo próprio, é a condição de possibilidade de toda ordem. O mito, na palavra do épos que vigora em
Quando a Ilíada era recitada, não se tratava do relatório de um fato que se passara e tinha
acabado. Era a 'reencenação' desse fato: a guerra acontecia de novo, e a Grécia novamente era
inventada. A potência da linguagem era portanto um elemento de desestabilização do ser. O
extraordinário estava sempre presente ali, e agindo248
Não se dá, entretanto, este modo próprio de vigor do mito apenas na récita da epopeia. Kadaré
mesmo, na passagem supracitada, alude ao trágico como uma linha de força que enseja a referência da
Uma pergunta se coloca: como a presentificação histórica na linguagem do épos pode se dar no
romance, para que, assim, possamos pensá-la em sua articulação própria na obra de Kadaré?
investigação sobre a gênese do romance249. Assumindo a essência da questão, Marthe Robert desvincula
o romance de sua delimitação literária, abrindo um campo de vigência poética para pensá-lo, isto é,
pensá-lo enquanto verdade de uma poiésis, de uma instauração de realidade como sentido, indiferente ao
modo estético de classificação genérica. Entende que o essencial é a referência fundamental entre
romance e vida.
Entretanto, ela busca essa referência fundamental num quadro teórico freudiano que, a nosso
ver, para além da crítica à subjetividade como fundamentação já abordada no capítulo 1, conduz a um
mapeamento de outra ordem. O mapeamento das categorias do romance acaba sendo sistematizado
num quadro composto em torno das temáticas associadas à teoria freudiana, no que tange ao conteúdo,
romanesca – portanto, não em sua eclosão poética na leitura como escuta – subdivide, assim, os
romances em dois tipos, nomeados segundo realizações exemplares: Robinson Crusoé e Dom Quixote. No
primeiro tipo encaixam-se os romances que elaboram um distanciamento da realidade como forma de
lidar com o conteúdo inconsciente e reelaborá-lo (a autora tem o mérito de não converter a literatura
numa forma de terapia, negando-se a afirmar a função do romance como sublimação). No segundo
tipo estão aquelas obras que reencenam a realidade por meio de sua negação, convertendo as forças
latentes em expressões que acabam por expandir seu sentido meramente individual: a ficção como
verdade essencial para além do indivíduo, mas experienciada essencialmente por este.
Ora, outra questão que vem aos olhos é o fato de que nos parece um apego excessivo a um
modelo teórico continuar reivindicando a experiência da verdade da ficção como algo que se dá no
âmbito individual, mesmo que ao se apresentar na obra literária ela transcenda claramente a dimensão
do eu – e esta transcendência, tal como aqui a pensamento, é não-dicotômica, isto é, inaugura sempre a
palavra poética como diálogo, na dialética do eu-tu. Esta experiência da verdade da ficção, ao nosso ver,
embora seja uma experiência do próprio, do inalienável, não é individual, mas situa-se no que está entre
narrativa romanesca entre Robinson Crusoé e Dom Quixote, distanciamento e negação da realidade
simplesmente não se aplica. Em maior ou menor grau, a intimidade com a realidade é que vem à tona
nos romances de Kadaré, um empenho pela aproximação máxima expresso, antes de mais nada, na
atenção ao detalhe mínimo, sem que se constitua numa descrição do real. A realidade comparece como
uma ação, não como coisas. A impressão de dinamismo que muitos críticos manifestam em relação à
leitura de suas obras decorre daí, mas esta impressão precisa dar lugar à compreensão de que o
essencial, a questão posta nesta tékhne narrativa é a da realidade como agir. Sem essa compreensão tudo
que se pode fazer com essa tékhne é pensá-la como procedimento, como instrumental produtivo.
intimidade da realidade como agir. A presentificação histórica, mediante a qual o mito é reencenado como
128
atualidade e permanência da re-velação poética, coloca este distanciamento como parte do movimento
de procura do íntimo. Por isso preferimos aqui a palavra 'íntimo'/'intimidade', em vez de 'proximidade'
realizar que nega seu estatuto de mero realizado. Em outras palavras, o mito nega-se a ser verdadeiro, a
ser uma correspondência correta entre o pensamento e a coisa. Nega-se a ser verdadeiro porque insiste
em ser verdade. O mito é a essência originária da ficção. Por isso mesmo pode, também, nomear o
íntimo: aquilo que só se afirma em direção à - e a partir da - sua própria negação. Não existe uma
'versão correta' do mito. Não se lhe pode imputar uma 'versão oficial'. Todas as ditas variantes de um
mito são, de fundo, o mesmo mito em sua própria variedade. O ser se diz de muitas maneiras – já disse
Aristóteles.
para compreendê-lo não como gênero literário (origens do romance), mas como eclosão do sentido da
realidade em linguagem (romance das origens), nos remete novamente à questão do universal concreto
tratada no tópico 3.6 como o próprio do narrar. É partir deste próprio que vamos remeter à
presentificação histórica no romance de Kadaré como narrar inaugural em vez de como gênero
literário.
O modo de composição romanesco de Kadaré é estudado por Ardian Klosi numa perspectiva
em que a história não se apresenta como referência contingencial250. Ele estuda a obra de Kazantzakis,
Andric e Kadaré a partir de temas, na tradição alemã do Stolfgeschichte. Centraremos no seu estudo sobre
Kadaré, que nos interessa mais diretamente, deixando a parte comparativa de lado. Klosi identifica
cinco eixos temáticos – sem pretensão universalizante - na obra em prosa de Kadaré: 1. História da
O tema da resistência política, por si, já vinha sendo desenvolvido pelo viés da afirmação da
identidade e idealização de uma Albânia independente desde o período final do domínio otomano por
escritores do período do renascimento nacional como De Rada e Naim Frashëri, mas a história da
resistência à ameaça externa remonta à Idade Média, sob a figura do herói nacional Skanderberg, que
liderou a luta contra a invasão turca253. Por ocasião da ruptura com a URSS, durante o regime de Hoxha
na Albânia, o estado viu neste tema tão forte na tradição albanesa uma forma de trabalhar a propaganda
do Estado apoiando-se nos escritores254. Este seria o ensejo para a publicação de O General do Exército
Morto, o primeiro romance de Kadaré, que reencena a derrota do nazifascismo na Albânia narrando a
história de um general italiano que vem ao país recuperar os corpos de soldados mortos, e um exemplo
do primeiro eixo temático estudado por Klosi255. Porém, de semelhante (mas não idêntico) ao
encaminhamento que pretendemos dar aqui, Klosi percebe que na obra de Kadaré há, mais do que uma
Este humor negro mistura-se muitas vezes com a seriedade do escritor, porque ele está
preocupado não apenas com o conflito na Albânia – grandes potências, mas também com a
guerra como um todo, com as situações absurdas e grotescas que invariavelmente surgem em
uma guerra agressiva. Isso pode explicar a imediata recepção que o romance encontrou
também entre os leitores estrangeiros, que não estavam familiarizados com a história da
Albânia. Kadaré soube desde muito cedo como extrair, a partir do material da “História da
Albânia” - evitando o complexo e a retórica nacionais -, verdades abrangentes válidas e ao
mesmo tempo atuais256.
Klosi percebe, muito apropriadamente, como a presença daquilo que a crítica trata como
referência historiográfica e política é, na verdade, a corporificação de questões. Além disso, entende que
é próprio da linguagem do romance tornar esta presença histórica sempre algo atual, concreto e,
portanto, verdadeiro. Ocorre, porém, que esta universalização da verdade não pode ser semelhante aos
modo como as lendas e mitos presentificam a história como sentido e verdade na obra de Kadaré,
253 KLOSI, 1991, p. 84
254 KLOSI, 1991, p. 85
255 KLOSI, 1991, p. 87
256 KLOSI, 1991, p. 87-8 [traduziu-se: “Dieser schwarze Humor vermischt sich oft mit dem Ernst des Schriftstellers,
denn es geht ihm nicht ausschließlich um die Auseinandersetzung Albanien - Großmächte, sondern auch um den
Krieg im allgemeinen, um die absurden und grotesken Situationen, die aus einem agressiven Krieg unvermeidlich
entstehen. Dies vermag die schnelle Aufnahme zu erklären, die der Roman auch bei ausländischen Lesern, die mit
der Geschichte Albaniens nicht vertraut sind, gefunden hat. Kadare verstand es sehr früh, aus dem Stoff
"Geschichte Albaniens" - indem er nationale Komplexe, Rhetorik, etc. vermied – allgemeingültige und aktuelle
Wahrheiten herauszufiltern”].
130
Em A Filha de Agamenon, Kadaré entretece em seu narrativa a fábula albanesa de Calvo. A fábula
recontada por Kadaré termina mostrando que o personagem principal, Calvo, de tanto alimentar a
águia que o conduzia com sua própria carne, acabou chegado ao seu destino somente como um
esqueleto257. Esta brilhante parábola presentifica um sentido histórico na medida em que reúne o tempo
mítico – o poético, essencial, originário – ao contingente como identidade e diferença, como sentido e
verdade de um mesmo que afirma o destino. Afinal, o narrador do romance afirma que todos nós
Além disso, na discussão entre o narrador e seu tio, noutra passagem do romance, o povo
albanês e a própria Albânia aparecem como aqueles que são sacrificados 259. Este sacrifício não é
apresentado como uma questão abstrata, ética ou cultural. É uma questão mítica: o narrador imagina a
cena do sacrifício de Ifigênia enquanto está no palanque das solenidades do 1º de Maio Albanês:
Eu perdera Suzana para esta tribuna. E as flores, as músicas e o solene veludo escarlate podiam
se harmonizar perfeitamente com o fim. O sacrifício. (…) Dois mil e quinhentos anos
atrás, tal como hoje, grandes multidões, como aquela que ainda havia pouco acorria à tribuna,
moviam-se rumo ao altar, talvez vestindo veludo vermelho
(...)
Os guerreiros, misturados aos civis de Áulis, rumavam para o lugar onde fora erguido o altar.
Para evitar confusão, talvez também existissem convites260
adivinho que fala a Agamenon sobre o sacrifício como forma de aplacar os ventos. Essa comparação
faz o narrador ficar furioso com o velho assessor, como se o mito de Ifigênia estivesse se realizando ali,
na Albânia moderna261. Por outro lado, ele começa a elucubrar sobre as razões políticas ocultas por trás
do mito (Calcas seria um agente duplo, troiano traidor ou infiltrado fiel a Príapo? Agamenon teria
arquitetado o sacrifício por si mesmo e usado a figura de Calcas para desviar de si a fúria da opinião
pública?), mostrando o movimento da dobra entre presença (não presente cronológico) e ocultamento
(não passado ou futuro no sentido cronológico) da presentificação histórica, pois a vida na Albânia
moderna é vivida no tempo do mito, tanto quanto o mito no tempo moderno 262. O mito é a atualidade
de sua presença que se vela no mistério de seu sentido. Cabe a nós, presentes da realidade, experienciar
este mistério. A presença histórica como mito enuncia a dobra na medida em que a narrativa passa
O sacrifício aparece, assim, em dimensão mítica, numa passagem onde o narrador reflete se
talvez esteja exagerando na comparação entre mito e 'realidade' como uma referência ao próprio autor e
sua obra: “Eu partira de uma palavra, 'sacrifício', e tecera uma analogia, levando-a às mais extremas
consequências, tal como um jovem poeta que concebe a duras penas uma figura poética e logo se
enamora dela, a ponto de usá-la como base de toda uma obra (...)” 263. Tentamos, aqui, escutar
rigorosamente o que está dito na obra, e não considerar a linguagem da obra subsumida numa estrutura
teórica. Procuramos a linguagem propícia, falar a mesma língua que a obra, para que haja diálogo e,
nele, a eclosão da verdade na linguagem. Seria, então, a referência entre a vigência mítica e a palavra
caminhando até aqui logo em seguida, no referido romance. Imediatamente após a passagem citada, o
narrador, em suas reflexões sobre o sacrifício, desdiz o que apenas afirmara: não fora a palavra
'sacrifício' que sugeriu a analogia, mas a própria realidade: Stalin sacrificou seu filho para poder dizer
que ele teve o destino de todo soldado russo. O que Agamenon e o pai de Suzana buscavam? 264 Atentar
à realidade em seu acontecimento, para que o sentido histórico possa ter lugar. É a palavra que instaura
a realidade como sentido histórico, mas não como sinal do realizado. Antes, como o movimento de sua
própria realização. É exatamente isso que liga o dizer do épos estudado ao mo(vi)mento em que a
dinâmica do real comparece, um mo(vi)mento que é também a manutenção do que nesta dinâmica
permanece velado.
Assim, no capítulo final, abre-se então, pleno, o mistério do sacrifício de Suzana. Era o pior dos
sacrifícios, pior do que a morte, pior do que todos os sacrifícios sangrentos que a máquina de destruição da
vida e preservação do sistema foi capaz de realizar265. Atinando-se à vida, o mistério se mostra sempre como
mistério. Por isso, na vigência sistemática, por mais totalizante que esta seja, comparece como o não
iluminado de todo iluminismo. No romance a manifestação do enigma nos vem em outro momento de
presentificação histórica, quando o narrador vê, nas pessoas voltando para suas casas depois da
passeata do 1º de maio albanês, também, os guerreiros gregos retornando do local onde Agamenon
acabara de sacrificar Ifigênia266. Ou seja, a história como presença de sentido, não como linearidade de
significado, é que dá os contornos próprios da questão do sacrifício, que permanece sendo um mistério
mesmo quando todas ações do homem parecem reguladas por desumanos mecanismos humanistas:
Não se tratara da crença de que o sacrifício aplacaria os ventos que detinham a frota, tampouco
de um princípio moral sobre a igualdade dos filhos da Rússia. Era simplesmente o cínico
cálculo dos trianos. (…) O que seu pai exigia dela parecia o de menos, mas era de mais. Ainda
que sem sangue, era digno de comparação com o mais sanguinário sacrifício. Sem dúvida mais
monstruoso que todos os ataúdes (…). Pois uma secura cada vez maior aguardava a vida de
Suzana. Aquela vida que, como um cacto do deserto, a custo preservara seu derradeiro sumo.
(…) E nenhum Calcas dera conselho algum, nem o pai de Suzana o arquitetara. Fora
seguramente o grande Dirigente, que o designava como seu sucessor, quem o exigira (…)
Quem sabe o Dirigente compreendera aquela natureza [a natureza de Suzana, erótica, no
sentido de que dá a eminência própria ao amor como sentido de vida] e de alguma forma
dissera: Escolha um dos dois machados. Caso não seja capaz de empunhar o ensangüentado,
escolha o incruento. (…) aquele segundo machado se anunciava a Suzana. O país, cansado do
outro, o sangrento, submetia-se a um novo golpe267
O sacrifício, em seu mistério, tem vigência no frio cálculo dos tiranos. Persiste até onde se
instaura o discurso da sua inexistência. A potência da palavra como épos recupera em vigor histórico
aquilo que se perde no horizonte da cronologia das realizações. Recupera como presença velada por trás
do sentido funcional – referenciado no homem, para o homem e através do homem – como aquilo que
Quando o romance nos diz “Quem sabe o Dirigente compreendera aquela natureza (...)”, evoca
a natureza de Suzana, personagem atravessada pelo vigor de eros, no sentido de que dá a eminência
própria ao amor como vigor de vida, onde o amante e o amado, o buscador e o buscado, só podem se
referenciar um no outro, ser um para o outro, a partir do que em sua referência se vela, nesta tríade de
dois, o que separa é nada ("O Um mais o Um gerado por ele e o amor que os une formam a tríade
265 KADARÉ, 2006, pp. 84-5
266 KADARÉ, 2006, p. 84
267 KADARÉ, 2006, pp. 84-6
133
pitagórica', simbolizada pelo triângulo sagrado de lados iguais"268). Apenas estando separado pelo nada
pode se dar a unidade. A unidade, é claro, pressupõe dois. Com apenas um, não se faz unidade.
Da mesma forma, o sacrifício impõe sempre o vigor de vida como dimensão em que a vida
individual encontra seus limites, na medida em que (conforme já foi aqui pensado), os limites, em
sentido pleno, são a liminaridade onde “um algo” acaba, mas também onde começa. É originário, de
modo que este um algo, a vida individual sacrificada, recuperar sempre historicamente pelo narrar do
épos o vigor velado do mito em que este sacrifício remete à vida originária, ao vigor de vida. Este vigor,
não se opondo à morte, conduz-se como aquilo que está entre vida e morte, mas sem ser “alguma coisa”.
A compreensão desta dimensão da realidade só é possível mediante o narrar do épos que impõe o
sentido como questão do qual, pelo diálogo e no diálogo, cada um e a cada momento nos apropriamos,
como o que nos é próprio. Fica óbvio que “algo” assim apropriado não pode ser “alguma coisa”.
então primeiro-ministro albanês Mehmet Shehu, encontrado morto em seu quarto com um tiro na
cabeça em dezessete de dezembro de 1981, esta visão, embora válida, em todo caso, não remete a um
referencial seguro, objetivo, como quer fazer parecer. Afinal, as analogias historiográficas podem ser
estendidas conforme a subjetividade, conforme o leitor, conforme, por exemplo, Thomsom, em relação
a O Sucessor: “Neste sombrio thriller político, Nexhmije Hoxha é uma cinzenta eminência com “olhos estreitos e
sarcásticos”. Seu marido, anônimo e apenas chamado de “O Condutor”, é retratado como um figurão ex-muçulmano com
interesse em egiptologia e o poder sem limites dos faraós”269, ou ainda, Lasdun: “A história albanesa (ou ao menos
a versão de Kadaré para ela) apenas reflete o presente lúgubre com um passado igualmente lúgubre de
vendetas intermináveis sem sentido, sacralizadas no código macabro, o Kanun, que vigia até que Hoxha
o suprimir, e ameaça preencher esse vazio com novos horrores” 270. A pretensa objetividade escamoteia a
incapacidade de lidar com uma vigência – a poética – da linguagem que não é nem objetiva e, tampouco,
subjetiva. Inclusive a própria narrativa passa a ser considerada dentro do quadro representacional em
que não remete a um narrar inaugural, mítico, mas apenas a mais uma versão da historiografia, a do
próprio autor.
Uma das linhas de nossa argumentação visa justamente mostrar que este modo de considerar –
que, com suas ligeiras variações, é hegemônico, no estudo da obra de Kadaré - é insuficiente para a
compreensão da poética do escritor, que sempre remete ao épos quando retoma o mythos enquanto
Eu via paralelos entre a tragédia grega e o que estava acontecendo nos países totalitários,
sobretudo a atmosfera de crime e a luta pelo poder. Pegue a Casa de Atreu, onde cada crime
leva a outro até que todos estejam mortos. Houve crimes horríveis no círculo em torno de
Hoxha. Por exemplo, em 1981, o primeiro-ministro, Mehmet Shehu, cometeu suicídio,
assassinado por Hohxa271
É preciso, então, trazer para o horizonte de questionamento o sentido do trágico enquanto épos
narrativa. Que as referências históricas apareçam como presença do sentido da história, tal como as
referências míticas às tragédias comparecem como a atualidade do mito em sua permanência originária,
é algo próprio do processo de gênese da dobra em que se articula a tragédia grega. Essa é observação
Esta pode ser considerada a prerrogativa fundamental do gênero trágico, muito menos
comprometido com a originalidade ou o ineditismo dos enredos do que com a captação de
aspectos neles rostos [sic] em segredo, em estado de latência, à espera do resgate poético272.
A tragédia, por cuja força e espírito os críticos, por unanimidade, sentem-se impactados ao ler a
obra de Kadaré. É neste sentido, da evocação de uma força compositiva da tragédia de atualização das
estórias mitológicas, onde o enredo conhecido é um véu diáfano que recobre o mistério da questão que
fala em cada mito, que falamos em presentificação histórica na obra de Kadaré. Prosseguindo com sua
271 KADARÉ, 2013 [traduziu-se: “I saw parallels between Greek tragedy and what was happening in totalitarian
countries, above all the atmosphere of crime and the fight for power. Take the House of Atreus, where every crime
leads to another until everybody is killed. There were horrible crimes in Hoxha’s circle. For example, in 1981 the
prime minister, Mehmet Shehu, committed “suicide”—murdered by Hoxha”]
272 NUÑEZ, 2000, p. 20
135
argumentação, Nuñez ainda lança outra luz sobre um aspecto muito visado na obra de Kadaré:
Para além da dimensão trágica, vista pela crítica na obra de Kadaré sob o espectro
ressaltado comumente nos romances do albanês são as ditas “menções” a mitos e lendas gregos e
albaneses. Ora, o encaminhamento que damos aqui é de que não são simples menções, referência no
sentido do comparativismo literário, mas reencenações próprias, donde o sentido não vem de uma
processo de diálogo que acontece na leitura, portanto uma atualização poética. Ora, a vigência do
mito mencionada por Nuñez como própria da poesia trágica grega é também constituinte da prosa
trágica de Kadaré. É nesta e com esta vigência que sua elaboração poética se contrapõe ao paradigma
apresentou, historicamente, através das dicotomias com cujos termos sempre se procura fundamentar o
realidade.
português e que teve certa repercussão nos estudos literários, no qual Jean-François Courtine 274, associa
processo de selbsterklärung colhido de Schelling. Não apenas porque Courtine compreende esta revelação
mitológica como um fenômeno real que, em última instância, se manifesta como consciência
(diferenciando-se, portanto, sutilmente do idealismo de Schelling, que não incorpora essa visão mais
Outro ponto divergente é que a realização histórica do mito como circularidade não comporta
nem cronologia nem teleologia, que são influências de uma cristianização do mito e da história que é
sustentada por Schelling e renovada por Courtine em bases existencialistas. A realização histórica do
mito tem como fundo uma unidade originária de permanência e atualidade que não pode ser subsumida
em nenhuma fundamento, mesmo que esse fundamento seja uma abstração conceitual de limites muito
imprecisos como a experiência religiosa a partir de uma noção de divindade nada universal, como o
Deus de que fala Courtois. Afinal, é uma noção de divindade que não é em nada mítica, mas
aristotélico. Mais especificamente, poderíamos mencionar as leituras das escolas filosóficas helenistas
que segmentam a unidade das questões em disciplinas. No entanto, não se trata de transigir numa fácil
divindades para alguma religião. À imagem e semelhança do sistema totalizante, cada disciplina tem o
momento, lembra-se que, depois da ofensa que lhe fizera o Sucessor num jantar, ele sentiu como se
todos os arquitetos do passado e do mito, desde os das pirâmides ao próprio arquiteto de Ceausescu,
todos os que foram mutilados ou mortos pelos que usufruíram de suas obras, clamassem por vingança
para ele, “(...) em um país onde o velho código consuetudinário acabara de ser enterrado após mil anos
de vigência”275
Aprofundando a dimensão desta evocação mítica para realizar – no próprio narrar – o sentido
da história, o romance se fecha com uma fala do Sucessor, depois de morto, dizendo que não busquem
solucionar o mistério276, uma vez que “Nós [os homens do sistema, sucessores e condutores] somos
engendros de um erro na grande ordem do mundo”277. Até os tiranos, que se assenhoram da realidade,
são, de fato, suas concessões, são erros na ordem do mundo justamente porque se pretendem –
enquanto homens – a ordem do mundo. O Sucessor também recomenda que não se prateie os tiranos,
pois seria melhor rezar para que, um após o outro, numa sucessão, os sistemas opressores, com seus
condutores e sucessores, não voltem, eternamente, sobre diversas formas, ameaçando distanciar-nos,
Melhor que rezem por outra coisa. Rezem para que não chegue o dia em que, ao
redemoinharmos perdidamente em meio à noite escura do universo, distingamos ao longe as
luzes do globo terrestre e digamos, tal como assassinos que o caminho por acaso conduz à
cidade natal: Ah, ali está a Terra!278
Cabe notar aqui que o globo mencionado não é uma referência meramente geográfica, ou seja,
uma referência que se aloca a partir de um mapeamento epistemológico, já que, para esta Terra, é o
acaso e não a causalidade que reconduz até mesmo o criminoso, e reconduz não ao espaço, mas à origem,
à cidade natal. E continua, mostrando que este caminho de volta pode ser obstruído pelo retorno dos
Condutores e Sucessores, sob diversas formas: “E [rezem] para que não troquemos de caminho e para a
tragédia de vocês tornemos a aparecer, com máscaras sobre as faces e mãos ensanguentadas como
outrora, sem remorso, sem piedade, sem hosanas” 279. Então, o mito é o vigor da própria história que se
encena no romance como presença, e não como representação (no sentido tradicional).
O retorno daquilo que está encoberto entretece na narrativa a presença do não-dito como uma
imagem que se constitui em mito. Até mesmo presença constante de fantasmas, de retorno dos mortos,
etc, na obra de Kadaré pode ser entendida como uma maneira em que esta presença se manifesta: o
“passado” é vivo, nunca passa, é presente, fala com os vivos, enquanto os vivos são presentes,
porquanto são presença do que se oculta como morte. A linguagem do mito se mostra, aqui, capaz de
Estrella Bohadana consegue, de forma magistral, sintetizar num dizer conciso esta reflexão
acerca do romance como épos e, ainda, abrir-nos uma outra dimensão de questionamento. Ela nos fala
sobre a palavra que representa como uma palavra suficiente. Portanto, uma palavra sem falhas, que não
está aberta ao erro e, com ele, não está aberta à errância. Bastando-se a si mesma, a palavra que
representa dispensa o diálogo que faz surgir a obra no encontro de leitor e autor (e que também os
enseja, como tais). Dispensando o diálogo, dispensa, também a implicação nos interstícios do sentido
278 KADARÉ, 2006, p. 217
279 KADARÉ, 2006, p. 217
138
em-se-fazendo, retendo-se nas linhas discursivas do enunciado. Assim, afirma, sobre essa palavra que
representa, que:
Contida, limitada, estímulo em meio a outros que lhe dão vigor, a palavra vive, e viva, faz.
Imaginada só, em plena autonomia, e assim, sem território, será ela sempre um elo imperfeito
para dizer a realidade. Fingindo-se o avesso do divino aedo, rebelando-se contra o
assujeitamento deste, que se afirmava instrumento em mãos das Musas e porta-voz de
Mnemósyne, é ele próprio, o poeta, surpreendido pela palavra que pretendia ser sua e que o
derruba. O sentido afinal não é obtido, o enigma não é domado, e mais do que poeta o poeta
se descobre poetado. Pasmo, verifica que a insuficiência que adquire a palavra quando se a
destaca do seu lugar, o existente, e se a põe na vã tarefa de significá-lo, é a mesma imperfeição
que atropela o pensar quando, solitário, gravitando na imaginação, malogra ao pretender prever
o não-realizado280.
O romance é capaz de articular o épos não quando procura ser uma ponte entre a “literatura”
oral e a escrita, tampouco quando representa mitos ou quando utiliza mitos como analogias da história
“presente”. O romance fala a língua do épos na medida em que o poeta-do-romance não toma para si a
palavra, antes, a recebe do vigor Musal que anima a epopeia como dom de memória. Assim, o poeta é
tomado pela palavra que recebe, na medida em que esta palavra é linguagem, isto é, é mais que linha:
concede humanidade. Isso significa conceder enigma e mistério ao que declara, ou seja, escurecer o que
declara. Frustrando o significado, no romance como épos, o sentido eclode, porquanto só pode ser a
atualidade de uma presença, sempre inaugural. Na medida em que se apresenta, a presença é histórica
porquanto articula a realidade como narrar que resguarda o velado como a origem de seu destino. Esta
origem velada de todo narrar inaugural é a potência da memória, evocada pelos poetas épicos na
imagem-questão da musa. Como ela comparece na obra de Kadaré? É sobre isso que nos
debruçaremos a seguir.
Desde que a escrita possibilitou que a linguagem se transformasse em suporte de ideias, o ser
humano já foi considerado ‘animal político’, ‘animal racional’ e até mesmo ‘animal sentimental’.
Atualmente é mero animal consumidor. Mas vigência da linguagem como presença de sentido e não
como invólucro de significado não é sinônimo de contexto ágrafo nem de oralidade por si sós. Nesta
pode fazer o contrário sem o incômodo de mentir para si mesmo. É o que vemos hoje, depois da
invenção da memória eletrônica. Acredita-se e divulga-se, de modo mais ou menos patente, que a
memória digital é a panaceia para o esquecimento que nos abre definitivamente as portas para o paraíso
terrestre da memorização total. Atualmente, qualquer texto, qualquer imagem, qualquer balbucio se
transforma num documento que pode ser acessado livremente pelo globo, ao menos em tese.
Tal como o phármakon grego, porém, essa panaceia pode ser tanto um útil instrumento a serviço
importantes como as que hoje se dão na Primavera Árabe, mas também um veneno letal para toda
compreensão do que seja ciência e arte, cultura, pluralidade e revolução. Não apenas porque no exato
fomentação de revoluções atinge um grau de possibilidades técnicas de divulgação nunca antes visto, no
mesmo momento, aprofunda-se o movimento que limita cada vez mais informação, ciência, arte,
cultura, pluralidade e revoluções à forma de mercadorias em âmbito global. Mas também porque
através dessa perigosa ilusão pela qual se celebra a era da memória total, adrede se corre o risco de
memória digital nos leva a correr este risco tanto ao confundir memorizar com a anacrônica imagem do
disquete do ícone ‘salvar’, como ao criar a ilusão de que ‘deletar’ as coisas é sinônimo de condená-las ao
Em A Ponte dos Três Arcos, Kadaré põe o personagem-narrador Gjon em conversa com o
colecionador de lendas que vem visitá-lo: "Como ele me perguntasse se as baladas cantadas eram todas
antigas, respondi-lhe que, ao longo dos anos, certamente foram compostas coisas novas ou, antes, que
isso era o que as pessoas achavam, mas que, na verdade, apenas eram ressuscitadas lendas caídas no
140
que abre a possibilidade de criativa rememoração. Diferente do registro, memória é aquilo que, em se
Em O Sucessor, Kadaré claramente satiriza o cul-de-sac a que conduz a noção de memória como
paroxismo é evidente:
movimentos e denominações que são acontecimentos vivos e únicos, cuja verdade empenha-se mais
naquilo que guardam do que naquilo que podem caracterizar, acaba fazendo com que tudo pareça a
enfadonha cantilena de um moinho que sempre mói o mesmo trigo. O saber é substituído pela
informação, a compreensão, pelo esquema, o tempo, pela concatenação de fatos. A tese que tentamos
encaminhar aqui, a partir da poética da narrativa de Kadaré, em linhas gerais, é a de que, na vigência
Porém, é necessário, para que se entenda o que isto implica, que, ao mesmo tempo, se faça uma
recolocação da questão do esquecimento em outros termos, diferentes daqueles pelos quais vem sendo
pela escrita alfabética. Neste percurso, também a vigência poética da memória poderá ser compreendida
de maneira apropriada. A diferença entre esquecimento e registro pode ser vista, de modo breve, numa
‘olvidar’, ‘obliterar’ e da forma substantiva ‘oblívio’. Os primeiros termos são cooriginados do latim
‘ob-littare’, que quer dizer literalmente ‘apagar as letras’, donde deriva o sentido secundário de ‘fazer
esquecer’. Então, referem-se à vigência do registro, àquilo que permanece sem ser memória,
prescindindo da ação renovadora e criativa da rememoração. É, também, aquilo que pode ser destruído,
‘oblivisci’, remete a uma outra experiência do esquecimento. ‘Oblivisci’ é um verbo depoente, o que as
gramáticas explicam como sendo uma forma verbal passiva com sentido ativo. Porém, a dicotomia
saussureana que cinde a língua em significante e significado não nos permite aproximação da
experiência concreta deste tipo de verbo como linguagem. Essa dicotomia se insere como parte de
modelo de pensamento que já trabalha com as categorias estanques de ‘agente’ ou ‘paciente’. Numa
ação, ou se é autor da ação, ou se sofre a ação. A voz média das línguas antigas, como o grego e o latim,
adquiriu uma compreensão reflexiva, neste horizonte de pensamento. Reflexivo é o verbo em que o
agente age sobre si mesmo – ou seja – a ação ainda é compreendida nos limites da dimensão ‘agente-
paciente’. Por isso, nos verbos depoentes é tão difícil para nós compreender o que de fato se evoca
porque pensamos exatamente nos limites destas categorias. Pensamos a estrutura da proposição a partir
da categoria do sujeito. Entretanto, os verbos depoentes evocam – fora desta dicotomia – uma
experiência em que tanto o ‘sujeito’ como o ‘predicado’ são projeções do verbo. De certa forma, para
tentar explicar, é como se o verbo fosse o agente de si mesmo, enredando e engendrando sujeito e
Dito isto, podemos considerar o verbo depoente latino ‘oblivisci’. Ele tem o sentido de
‘esquecer’284, mas de um esquecer que não é ação do sujeito, porquanto o sujeito não esquece por uma
decisão sua. Isso é diferente da experiência do esquecer evocada no verbo anterior, oblittare, em que
fica claro que o apagamento da letra decorre de um empenho expresso, onde o sujeito tem o papel de
agente. Também, no verbo depoente ‘oblivisci’, não há simplesmente um sentido passivo tal como o
entendemos, porque o ‘sujeito’ que esquece, na experiência evocada neste verbo, não é passivamente
esquecido por um agente qualquer. Seria mais apropriado dizer que o verbo evoca a experiência do
esquecimento que lhe vem e que, em vindo, o projeta como aquele que esquece, ocultando a coisa
esquecida. A coisa esquecida, o ‘objeto’, desaparece para que o esquecimento propriamente dito possa
aparecer como tal. É uma experiência difícil de compreender imediatamente para nós, justamente
porque trabalhamos com categorias estanques de ‘atividade’ pura e simples como oposta à ‘passividade’,
O verbo ‘esquecer’, por sua vez, origina-se do latim ‘ex-cadere’285. É um verbo composto pelo
prefixo ex-, que indica um movimento de saída, de fuga, de expulsão a partir de uma origem. Já o verbo
cadere tem o sentido de ‘cair’, ‘repousar’, ‘pôr-se’, ‘sucumbir’286. Assim, a experiência nomeada no verbo
origem em que o que salta se põe em repouso. Mas o que exatamente é esta experiência enquanto
poética do romance?
Em Dossiê H, as fronteiras entre forma e conteúdo são definitivamente atacadas por Kadaré.
Neste romance curto e objetivo, narram-se as peripécias de dois pesquisadores homeristas em busca de
desvendar o segredo da epopeia na Albânia. O romance se perfaz não numa simples narrativa,
atingindo também o âmbito do narrar originário que evoca a questão do poético-literário. A construção
em torno da metalinguagem, porém, encerra uma definição insuficiente para o modo como o romance
se apresenta, uma vez que o conflito entre o que o romance coloca como “tema” e aquilo que ele
propusesse como uma confissão de sua constituição enquanto obra literária da época do
‘desencantamento’, da perda da aura, da morte da epopeia, como uma assunção de sua incompletude
diante daquilo que, enquanto reflexão sobre a essência da obra ‘literária’, ele reconhece como o poético.
A própria narrativa se constitui numa espécie de pesquisa, no sentido de pensar a essência da poesia, ou
A obra urgiu uma referência entre o esquecimento e a criação fundamental para a epopeia em
sua plenitude de vigor poético, em contraste com o registro que nada deixa esquecer, mas que por isso
mesmo não abre espaço para a eclosão da criação. O registro tanto dos pesquisadores com sua gravação
e com seu diário, como dos informantes que os espionam e produzem relatórios detalhados. A
epopeia, gravando cada detalhe para decifrar-lhe o segredo, são por sua vez investigados pelo Estado
O fato de que este registro total, misturado à tentativa de tudo decifrar e saber – ou seja, o
esquecimento que é essencial à epopeia e da cegueira que acomete Willy (o ‘ver’ está em oposição à
opressivo que configura a atmosfera de Dossiê H, fica insinuado em outro aspecto da personagem Dull
Baxhaj.
Dull Baxhaj é um excelente escritor, um talento latente de poeta. Empregado numa função
desígnios políticos e burocráticos das mesmas. Sua escrita coaduna-se no mundo sufocante das pessoas
287 KADARÉ, 2001(b), pp. 47; 50 (comparação entre criação e produção industrial); 94 (tratamento quantitativo da
criação/cálculo); 121; 129-30; 146
288 KADARÉ, 2001(b), pp. 29-30; 55; 102; 139;
144
da cidadezinha de “N”289.
sugerida, aparece quando o narrador onisciente, em sua linguagem seca e objetiva, se aproxima dos
relatórios de Dull Baxhaj, como se estivesse limitado e observar os estrangeiros e relatar o que vê e
ouve290. Estes relatórios também se coadunam com os registros dos pesquisadores sobre a epopeia e,
nestas passagens, o romance se constitui numa reflexão sobre o poético. A narrativa dos rapsodos se
transforma em registro dos pesquisadores291 e este registro, por sua vez, se transforma na narrativa de
Kadaré292. Assim, os registros operacionalizam uma narrativa em que a própria memória se coloca em
questão como aquela dimensão que é muito mais ampla que um arquivo de informações293.
Igualmente, a questão central do sistema de dominação para tudo conhecer como elemento de
humana está presente também no brilhante desfecho do romance. Willy, um dos pesquisadores,
mistério da epopeia’, justamente quando, junto com seu companheiro de pesquisa, chega à conclusão
de que ‘a epopeia morreu sem que sua verdade aparecesse’. Neste momento, voltando para casa, ele
começa a cantar a epopeia, tal como os rapsodos que passara tanto tempo gravando, mas sem dar
memória é maior que o homem, embora só possa acontecer como homem, enquanto poesia. Esta só
pode surgir como memória desde a dimensão originária do esquecimento, tal como do não-dito é que
pode eclodir o dito. Nas passagens em que a narrativa se coaduna com a pesquisa de Willy e Max,
lemos que:
Uma coisa ficou clara para nós. A pergunta que antes nos parecia fundamental no
deciframento do enigma homérico: quantos versos um rapsodo consegue saber de cor (alguns
falam em seis mil, outros em oito mil e até doze mil versos)?, precisa ser complementada por
289 KADARÉ, 2001(b), pp. 16-17; 64-65; 66; 68; 70; 123-4; 128-9; 140; 143;
290 KADARÉ, 2001(b), pp. 36-37; 123-124; 128-9
291 KADARÉ, 2001(b), pp. 20; 40; 46
292 KADARÉ, 2001(b), pp. 43-54; 87-92
293 KADARÉ, 2001(b), pp. 87-88; 104-5
145
outra: quantos ele deseja esquecer? Ou melhor: pode-se conceber um rapsodo sem
esquecimento? (…)294
que fizeram e, ademais, um deles fica cego, devido à catarata. Retornando para os EUA, tudo que lhes
resta é cantar as epopeias que tantas vezes ouviram em gravações no intuito de decifrá-la, submeter-lhes
o mistério. Um mistério que se mostrou terrivelmente maior que eles, ao qual eles é que são
submetidos. O esquecimento, portanto, nada tem a ver com a destruição. Para ser memória, é preciso
estar vivo. Estar vivo é estar no horizonte da morte. É ter o esquecimento como horizonte. O registro,
esteja ele arquivado em segredo ou em disponibilidade, não nos dá enquanto tal nem memória, nem
esquecimento.
O esquecimento é, para o registro do texto, a página em branco. Ela é que possibilita o texto e
que, depois de escrita, permanece na forma de entrelinhas. Sem entrelinhas, uma página escrita não
passa de um borrão sem sentido. O esquecimento permanece como entrelinha em tudo que se escreve.
Estas entrelinhas são não apenas o sentido que se oculta, mas a possibilidade do sentido que se mostra.
O contrário do registro, que acaba por enrijecer, congelar, conter, controlar, guardar e tornar estático,
No mito do esquecimento, Lethe, o véu do oblívio, era, também, o nome de um dos rios que
corria no Hades, o submundo para onde iam os viventes depois de mortos, no mito grego. Os mortos
bebiam de suas águas para se esquecerem da vida anterior. Quando o geógrafo Pausânias tentou
localizar precisamente de onde o famoso rio corria para o Hades, chegou a conclusão de que sua fonte
ficava na Boécia, ao lado da fonte de outro rio chamado Mnemosyne, que é também o nome da deusa
Memória296. Ou seja, os mortos bebem da água do esquecimento para que possam voltar a viver, para
que a vida possa seguir seu curso. A Memória acompanha o curso do Esquecimento. Esquecer não é
um acidente, portanto. Tanto quanto o cantar, é uma arte. Da mesma forma que a arte do calar rege a
arte do dizer, e a música só pode se soar porque nela ressoa o silêncio como origem originante.
Em Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, no canto final, o sultão Murat, morto, assiste, durante
séculos em sua tumba, as infindáveis disputas pela terra do Kosovo entre albaneses e sérvios. Ele, que
esteve no topo de um Império com pretensão de dominar o mundo e durar uma eternidade, agora, sob
a terra, implora a deus para que lhe conceda o esquecimento, limpando seu sangue do solo de Kosovo.
nos apropriar pela renúncia de o ter como um ente. Nos contos de fadas, mitos e romances de aventura,
os maiores tesouros sempre estão velados, nunca ficam à mostra, No mito, os tesouros estão ocultos,
dentro das cavernas aonde deve ir o herói, não para platonicamente tirar de lá os cavernícolas e
conduzi-los até a verdadeira luz, mas descer sozinho para enfrentar seus dragões e encontrar seu
tesouro próprio. O que é inalienavelmente seu. Sai de lá trazendo o que lhe é próprio, como quem
O sentido de uma obra poética é o sentido que se faz presente a cada tempo. Ler é colocar-nos
(a nós e ao texto) em presença, entregando-nos ao esquecimento que possibilita novas leituras a leitores
presentes e vindouros. Para que uma obra seja memória, é preciso que se esqueça na estante como que
Ardian Klosi dedica uma parte de seu estudo sobre Kadaré à compreensão dos processos artísticos
(Die künstlerischen Verfahren) com os quais o romancista elabora esse eixo temático da resistência pela
não como código racional correspondente à consciência. Além disso, partimos, de modo muito
semelhante a Klosi, de uma consideração muito diferente do que é o poético – não como arte de fazer
versos que se oporia à prosa – mas como arte em que a vigência da linguagem anteriormente
298 KLOSI, 1991, p. 88 [traduziu-se: “Kadares "Stärke". Sie ist meist assoziativ, d.h. sie wird spontan und
überraschend eingesetzt und hat oft einen "unlogischen" Anschein. Diese Metaphorik besteht aus Tropen,
Sinnbildern, Symbolen, Parallelismen, Vergleichen, Phantasiegebilden (meist des Typs "als ob" ), usw. Einige
Kritiker haben behauptet, daß die metaphorische Sprache bei Kadare den eigentlichen Poeten hinter dem Prosaautor
verriete; dieser Standpunkt geht aber von der falschen Überzeugung aus, Metaphorik sei vor allem von der Poesie
zu erwarten. Bei Kadare ist die Bildlichkeit der Sprache seine Art der Annäherung an den dargestellten Gegenstand,
ja sogar der natürlichste Ausdruck seiner kreativen Persönlichkeit”]
148
diferença da citação acima. Por isso, não nomearemos como metáfora, uma vez que essa denominação
guarda em si uma ideia de representação pela qual o sentido da realidade é um processo anterior à
rigor, a ideia de representação no poético “Desenvolveu-se a partir de uma ideia equivocada de mímesis
(mímese). Mímesis (mímese) vem de mímos (mimos), gesto. Gesto criador, como o do ator, ou do
bailarino, jamais um gesto imitativo. Sempre um gesto inaugural, poético” 299. A ideia de representação
acompanha, necessariamente, a ideia de metáfora e nestes dois pontos nos distanciamos de Klosi. Em
vez de metáfora, linguagem como sentido, em vez de representação da realidade (melhor chamado
seria, neste caso, o real, conjunto de realizações), realidade como manifestação da verdade da ficção:
poiésis.
conotações, palavras, construções é, mais que um recurso estilístico, uma forma de fazer o leitor sentir a
narração, vale dizer, de apelar a um sentido concreto (daí a palavra Sinnlichkeit, tão usada nas resenhas
alemãs das obras de Kadaré, segundo o Klosi)300. Para nós, o decisivo parece ser. mais que identificar a
construção das atmosferas, diferenciar este sentido concreto do sentido estético (formal), o que Klosi parece
não fazer senão muito implicitamente. Esse encaminhamento da questão do sentido concreto com
ligado à sensibilidade estética provém de uma longa tradição do pensamento ocidental, que remonta a
que ele consegue enxergar uma dimensão mais ontológica que se abre a partir do pensamento de Kant,
mas que o próprio filósofo de Königsberg não explorou. Afirma o filósofo da Floresta Negra que, para
Kant, a realidade corresponderia à sensação, no sentido daquilo que comparece numa duração de
tempo. Assim, “Lo compareciente, lo real, es lo que colma el tiempo” 303. Entende-se, a partir daí, que o
tempo por sua vez depende de uma referência à realidade, porquanto é duração, é acúmulo de uma
multiplicidade de ‘agoras’, e os ‘agoras’ só se diferenciam entre si a partir daquilo que neles se mostra a
cada hora: todo agora é um ‘agora-isto’. Este ‘-isto’ é a sensação, o dado primeiro que Kant chama
também de ‘matéria transcendental’. Por sua vez, todo ‘-isto’ tem uma duração no tempo, ou seja, todo
Neste sentido, o acumular tempo em que consiste o real é deixar vir ao encontro uma série de
‘agoras’ em que ‘istos’ se manifestam, cuja a enumeração não é o importante, mas sim o acúmulo, isto é,
o realce do agora. Neste sentido é que Kant diz que o esquema da qualidade é a síntese da sensação
com a representação do tempo: o agora tem que ser realçado para que haja o sentir e o sensível. “La
sensatio como esquema de la realidad es el dejar estar compareciendo algo realzando el tiempo y
simultaneamente contando el tiempo de modo sucessivo: la condición de posibilidad de que haya tal
Por outro lado, é apenas mediante o ‘-isto’ da sensação como esquema da realidade que se
determina o ‘agora’ e, por conseguinte, é apenas partir do esquema da qualidade (i.e. da realidade) que
se pode dar o esquema da quantidade, do número, visto que a enumeração dos diferente ‘agoras’ só é
possível desde a sua determinação. Porém, isto não significa que para Kant o esquema da quantidade
esteja fundado sobre o da qualidade. Ambos seriam ‘cooriginados’, no esquema da substância, isto é, da
perdurabilidade306.
essência da temporalidade a partir da sensação – seja pela qualitas (isto é, na estética) ou pelo quantum
(ou seja, na ciência), ambos caminhos modernos de se considerar o tempo fundados por Kant –
depende de uma compreensão apropriada do modo em que a temporalidade se faz pelo diálogo entre
espera e procura – entre espera como procura e procura como espera. Nesta forma de vivenciar o
tempo, que habita a intimidade do aceno de um destino próprio a cada ser humano, a temporalidade se
espaço – se deve não apenas ao predomínio do paradigma cartesiano, mas também ao passo
fundamental que o pensamento de Kant representou para efeito de reflexão sobre a arte a partir da
sensibilidade. Ainda que numa forma discursiva constituída em torno de uma historização da questão
senão o mesmo, que o poético, trazendo à tona as vigências gregas de tempo, anteriores à submissão do
tempo à técnica e do esvaziamento desta de sua dimensão ontológica de pro-ducere, reduzida ao âmbito
dos procedimentos. Três destas vigências gregas são bem conhecidas: âion (o tempo como jogo,
brincadeira, tal como aparece em Heráclito); kairós, o tempo oportuno, propício; khronos, o tempo como
duração307. Mas ele não se limita ao dicionário, às palavras para “tempo” num dicionário de grego. Ele
escuta a linguagem. Isso lhe abre uma dimensão propriamente grega, isto é, abre-lhe o mundo como o
sentido de um pensar. É assim que ele articula ainda uma outra temporalidade, a partir da palavra grega
ethos, que pode ser compreendida como morada e habitação num encaminhamento meramente lexical.
“'Morada' para nós designa espaço, o lugar onde uma pessoa habita. Em francês há uma
palavra para indicar o endereço da pessoa, a sua morada: demeure, que também quer dizer
'demora', ou seja, o lugar onde uma pessoa fica, permanece; portanto, seu endereço é sua
demora no lugar que é seu. (…) Essa palavra deixa-nos entrever que habitação, e portanto
demora no lugar próprio, é também uma compreensão da temporalidade”308
E vai ainda mais profundo com outra experiência de espacialização do tempo e/ou
temporalização do espaço:
Os gregos não tinham uma palavra para dizer 'espaço' . Hôra, o termo mais próximo, indicava
mais ou menos 'território', mas não um território geométrico. Era um todo até onde alcançava
a proteção de um deus. Isto era uma hôra, que podia ser medida. Talvez fosse equivalente, por
exemplo, a um dia a cavalo, ao tempo que se levava para chegar ao termo. Termo era o nome de
um deus que marcava o início e o fim da proteção, por exemplo, de Netuno e de Palas Atena
sobre a cidade de Atenas. Os marcos eram deuses, assinalavam o início e fim do vigor da
proteção. O tempo que se levantava entre um marco e outro, o inicial e o terminal da vigência
da proteção do deus, isso era um território.
(…) A geometria era a neutralização do volume da hôra, que deixava de ser o território
segundo a vigência da proteção de um deusa para ser algo semelhante ao que chamamos de
'espaço', nas suas três dimensões mensuráveis e, portanto, inteiramente neutralizadas,
continente para qualquer conteúdo309
Portanto, a experiência do tempo como espaço, de fato, nos faz abandonar a palavra carregada
de significado geométrico, ligada à medida e ao quantum, rumo à adoção da palavra lugar, isto é, espaço
como sentido na medida em que nele moramos. A morada não é simplesmente uma construção, mas
um lugar onde nos demoramos – e esta demora se revela no horizonte do mito pela égide do sagrado,
Este limite pode ser entendido de modo moderno, mas o pensamento não-humanista é o
caminho que seguimos aqui. Diz Heidegger que “O limite não é onde uma coisa termina mas, como os
gregos reconheceram, de onde alguma coisa dá início à sua essência. Isso explica por que a palavra
grega para dizer conceito é horismós, limite. Espaço é, essencialmente, o fruto de uma arrumação, de um
Então, como espaço, os limites lançam a compreensão para dentro, vale dizer, os limites, para
espaço, assinalam onde ele termina. Onde termina o espaço e começa o lugar, entre um e outro, dá-se o
habitar. O habitar é a liminaridade entre o espaço e o lugar. Que a insistência no limite como
liminaridade seja aquilo que nos abre a mais própria compreensão de uma questão tão complexa pode
parecer absurdo, uma vez que se entende que compreender seja abolir os limites. Este, é, porém, um
entendimento limitado. Continuando no sentido grego acima mencionado por Heidegger, Leão observa
que
Os limites não apenas nos retiram e recusam alguma coisa. Os limites, quando o fazem, só o
fazem para nos conceder e pôr nas possibilidades que somos e por isso mesmo temos.
Pretender eliminar obscuridades tão criadoras equivaleria à impotência de poder tudo, de saber
tudo, de fazer tudo. Pretender esclarecer tudo é não ver nada. Para o homem finito, definido
pela mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece, cega311.
É justamente porque o sentido do habitar como liminaridade entre espaço e tempo foge à
compreensão humanista de saber que se instaura a habitação como temporalidade em que a morada é a
Na idade média, o homem via-se como parte do cosmo. Somente no início da era moderna, ele
foi deslocado para a posição excêntrica de um observador dos fenômenos – sem que, pare ele,
pudesse se tornar evidente o estado paradoxal da exigência que se encontrava no fato de querer
ser observador e, ao mesmo tempo, parte deste mundo 312.
Se se confiar nas análises de Michel Foucault, então somente depois da virada do século XVIII
para o XIX surgem finalmente indícios de que os homens começam a observar-se enquanto
observam – e, na medida em que tal posição secundária de observador foi institucionalizada,
estabeleceu-se também a convicção de que aquele conhecimento depende do ponto de vista do aparato
cognitivo do observador313.
Ou seja, a visão contemporânea, cuja gênese remonta ao século XIX, ao compreender naquilo
que se observa aquele que observa, não retirou do âmbito da subjetividade a compreensão do mundo.
Ainda havia a noção central de visão de mundo, só que agora, pretendia-se enxergar, no mundo, os
próprios olhos do observador. De certa forma, portanto, aprofunda-se ainda mais, numa reificação às
avessas, em que o mundo/coisa torna-se imagem daquele que o reflete e, na medida em que reflete,
mundo concebido à imagem e semelhança das ideias sobre o mundo, o morador é aquele que estabelece
a relação com a verdade do mundo não a partir dos juízos. Livra-se, portanto, da qualitas, da percepção
nem quantitativa, nem qualitativa – mas poético-ontológica da compreensão da sensibilidade como uma
doação do tempo, isso é, como algo que acessa uma experiência verbal, não substantiva, pois a qualitas é
El estar a la espera es, como el hacer presente, um modo de ser de la existência, y todo
estar a la espera entiende aquello a lo que se refiere em tanto que se estar a la espera como
compareciente posible. Se entiende a si mismo como estar a la espera de um hacer presente.
Estar a la espera como dejar-advenir-a-si, a si, como un posible hacer presente del cual todo
estar a ala espera de algo está expectante además e igual de originalmente.
Pero el estar a la espera, em tanto que estar a la espera para un estar presente, al igual
que este se refiere primeramente y la mayoría de las veces al mundo circundante disponible y
procurado. La existência se mantiene primeiramente en el procurar saliendo al encuentro
aquello que es producible, disponible, lo que es procurable, lo que, en el sentido más amplio, es
algo que se puede procurar. Pero procurar en tanto que volcarse al mundo procurado siempre
es esencialmente como antes mostramos, um coprocurar la própria existência. En todo
procurar, la própria existência en cuanto a su poder ser no es lo procurado, sino lo preocupado.
En el estar a la espera, a partir de donde se realizan las formas de hacer presente que son el
encargar, el hacer disponible, el tomar posesión y el conservar, lo que importa primariamente,
aunque no expresamente, es la própria existência em su poder ser. Estando a la espera, la
existência está ya respectivamente em el ser respecto de su más próprio poder ser. Estar a la
espera es el modo de ser su poder ser.314
atmosfera específica” no âmbito das representações históricas – se mostra propriamente como uma
história ficcional, a história como atualidade de um sentido cuja verdade é permanente (porquanto se
oculta ao se mostrar) se apresenta como linguagem. Nesta apresentação a história não pode ser
enunciação, pois ela traz consigo o ser humano em sua existência, que se articula no diálogo entre
espera e procura. Aí reside a possibilidade de realizar plenamente o seu poder ser, isto é, dizer o próprio
– dizendo-se próprio -, fazer-se história por habitar a história, não por representá-la. A confluência
deste fazer almeja consumar-se no fim do qual se origina – ou seja, no horizonte pelo qual se empenha
A partir desta consideração é que podemos voltar a algo que aludimos anteriormente e melhor
compreendê-lo. Trata-se da passagem citada onde D'Amaral pensa o espaço como proteção divina
como uma experiência de tempo. Chamaremos para este pensamento o dizer de Heidegger: “Habitar é
bem mais um demorar-se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva a quadratura naquilo
junto a que os mortais se demoram: nas coisas”315. O que Heidegger chama de quadratura remonta a
uma referência fundamental de força mítica entre os mortais e imortais, o céu e a terra: "Salvando a
terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece
propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo de quatro faces da quadratura" 316. À luz do
que foi desenvolvido acima, podemos compreender agora que esta questão do divino, mais que uma
relação teológica, impõe articular a reunião originária entre o sagrado e o profano, dimensionados pelo
sacrifício, donde surge o sentido de ser mortal, isto é, o próprio do humano, pois Experienciando a
destino, o sacrifício como “ponte”, como “entre” de sagrado e profano instaura uma dimensão humana
A referência entre o divino e o sagrado, então, torna-se mais clara, contanto que atentemos para
O termo latino sacer encerra a representação para nós mais precisa e específica do “sagrado”.
É em latim que melhor se manifesta a divisão entre o profano e o sagrado; é também em latim
que se descobre o caráter ambíguo do “sagrado”: consagrado aos deuses e carregado de uma
mácula indelével, augusto e maldito, digno de veneração e despertando horror.317
Assim, o sagrado está, em sua ambiguidade, ligado à macula indelével. Mácula, em sentido
próprio, não é uma coisa má, nem vergonhosa. Significa sinal, mancha, marca, e apenas em sentido
derivado, desonra. Mácula é aquilo que marca, que mostra e dá sinal. Aquilo que ressalta a presença de
algo, mostrando, marcando. O sagrado articula então os deuses em sua divindade que se retrai, e a
mácula que mostra, sinalizando a presença. Mas Benveniste fala de uma divisão entre sagrado e
profano. Vejamos isso um pouco mais à frente, quando, a partir de uma outra observação, poderemos
entender melhor. O sagrado, conforme a citação, remete tanto ao augusto, ao querido e beneficiado
pelos deuses, quanto ao maldito. Este caráter de maldição ou dádiva, se articula a partir do
sacramentum:
Como se vê, o estado de sacer a que se chega pelo empenho da palavra é exatamente este
“entre” que pode ser augusto ou maldito, provocar a benção ou a ira divina, conforme o compromisso
com a palavra. O sagrado é propriamente este “entre” que abre toda e qualquer decisão. O sacramento
testemunham o empenho da palavra no sacramento que declara sagrado. Assim, homens e deuses se
Contudo, ainda que na mais íntima vizinhança, dimensionados pelo sagrado, os deuses e os
homens não são a mesma coisa, nem tampouco se pode identificar uns ou outros com o próprio
sagrado, na medida em que o sacramento marca a presença do sagrado no juramento empenhado pelo
homem na testemunha dos deuses. O sacramento, o sagrado empenho da palavra, reunido mortais e
imortais, evocando pela palavra o âmbito do sagrado, corresponde – numa tensão poética - ao
No esteio deste modo de ver, somos levados a discordar de Eliade, quando afirma um estatuto
ontológico superior do sagrado em relação ao profano, a partir de uma ligação do mito apenas ao
âmbito do sagrado, ao dizer que “Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto
que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar.” 319. Além disso,
a diferença entre sagrado e profano não se dá como dois modos de existência, em que o primeiro
corresponderia a uma vigência de verdade do mito, e o outro a um percurso histórico marcado pelo
Mesmo assim, compreendemos que o sagrado e o profano são diferentes. Mas esta diferença é
di-ferença, só pode ser compreendida a partir do “entre” originário do qual divergem na medida em
que para ele convergem. Portanto, embora sagrado seja realmente diferente de profano, está com ele
intimamente ligado, numa convergência opositiva, numa contradição originária. O sacrifício também
assinala esta vizinhança. No sacrifício, torna-se a vítima sagrada. Para isso, ela deve deixar de viver, o
que significa igualmente deixar de realizar a possibilidade das possibilidades que é a morte, conforme
vimos.
algo, de modo que no sacrifício, a vítima, pela consumação do sacrifício, máxima sinalização da
sagrado. Por esta liminaridade assinalada no sacrifício, em que a presença do sacrificado se retrai,
Continuando a discussão com Klosi, seguimos para o próximo “modo” que o crítico identifica:
3) Utilização de Símbolos Místicos: uma constante que se destaca na obra de Kadaré, com figuras
oriundas da tradição albanesa e dos mitos gregos. Os símbolos comparecem, porém, não como
referências parciais, alusões ou referências, mas constituem a estruturação da própria obra 322. De fato,
os símbolos não são alusões ou referências. Pensamo-los, aqui, como presentificação mítica, como um
sentido que não se depreende da mente consciente/inconsciente, mas sim do diálogo poético, por isso
os denominamos imagens, como forma de nos diferenciarmos do termo “símbolo”, ligado à tradição da
psicologia analítica. Em todo caso, concordamos com Klosi no que tange a estes “símbolos” (imagens,
para nós) como forças constituintes da obra de conjunto. O autor centra-se sobre O General do Exército
Morto, obra sobre a qual não nos aprofundaremos aqui. Nós, porém, trouxemos para nosso diálogo as
obras A Filha de Agamenon e O Sucessor, onde se evocam a presença dos mitos de Ifigênia e Agamenon,
respectivamente. Poderíamos ainda mencionar A Ponte dos Três Arcos como um romance aqui estudado
em que a narrativa se compõe a partir da evocação da lenda popular albanesa do emparedado, ou ainda,
O eixo temático seguinte chama-se O Império Otomano, modelo de um superestado totalitário. Sobre ele,
afirma Klosi:
A liberdade em relação ao discurso historiográfico é muito bem assinalada aqui. Diante do que a
crítica empenhada numa paradigma teórico humanista afirma sobre os romances históricos e a
representação da realidade na obra de Kadaré, aqui fica marcada uma diferença. É esta, contudo, ainda,
uma diferença modal. O modo como Kadaré representa a história seria apenas uma forma de “(...) von ih
nur den Anstoß für einen freien Spielraum der Fiktion zu nehmen”, ou seja, obter a partir dela [da história]
um ímpeto em direção a um espaço livre onde se desenrola a ficção. Klosi compara, ainda, essa remissão histórica
de Kadaré à que ocorre nas obras de Kazantzakis e Andrić, mostrando que nos romances destes dois
últimos “(...)o material e a reflexão históricos são determinantes” 324, ao passo que, em relação a Kadaré
“Muitos não também não perceberam que o autor não se ocupa tanto assim da história, antes, estava
interessado na reformulação e interpretação livres desta história, para atualizá-la”325. Ainda mais
importante, Klosi identifica que esta representação histórica não toma apenas a forma de uma
que, para Kadaré, “Canções, Histórias, lendas são tão realidades tão importantes para Kadaré quanto os
Esta é uma percepção importantíssima, uma vez que mostra claramente a associação entre
verdade histórica e criação poética na obra do romancista albanês. Nossa abordagem, entretanto, trará
uma outra dimensão desta peculiaridade da obra de Kadaré. Discutiremos adrede como é a ficção que
323 KLOSI, 1991, p. 91-2 [traduziu-se: “Es gibt typologisch zwei polare Arten, die Geschichte literarisch zu
verarbeiten: sie entweder so weit wie möglich zu respekttieren oder von ihr nur den Anstoß für einen freien
Spielraum der Fiktion zu nehmen. In dieser groben Einteilung, wobei es zwischen den beiden Extremen gewiß
hunderte andere Möglichkeiten der freieren oder der weniger freien Gestaltung der Geschichte gibt, bewegt sich
Kadare eher in die zweite Richtung”]
324 KLOSI, 1991, p. 92 [traduziu-se: “(...)ist der historische Stoff und die Berücksichtigung der Geschichte
maßgebend”]
325 KLOSI, 1991, p. 92 [traduziu-se: “Viele erkannten also nicht, daß der Autor nicht so sehr an der Geschichte
arbeitete sich, sondern, um der Aktualisierung willen, an der freien Gestaltung und Interpretation dieser Geschichte
interessiert war”]
326 KLOSI, 1991, p. 94 [traduziu-se: “Lieder, Geschichten, Legenden sind für Kadare eine ebenso bedeutende
Wirklichkeit wie historische und politische Ereignisse”].
158
compõe, em sua obra, o sentido da história – porquanto ocasiona a história como presença – em vez de
se lançar a partir da historiografia rumo às alturas da ficção. Ou seja, não é a ficção “histórica” que é
uma reelaboração “elevada” - mais imaginária, mais sublime, ainda que menos verdadeira - do discurso
historiográfico. O que mostra a obra de Kadaré é que a historiografia é que é uma forma de discurso
onde a linguagem da história ficcional se concentra numa correspondência entre o real e a ideia, num
discurso propositivo cuja veracidade é aferida pelo juízo acerca de tal correspondência e que, portanto,
faz com que a ficção, a partir desta noção moral de verdade – porquanto dependente de um juízo -, seja
considerada como mentira. Ou seja, ao sentido da história ficcional é que é originário – que origina
sempre e a todo momento – justamente porque renuncia à noção de um original, de um texto fixo, de
um passado estabelecido. O “passado”, na história ficcional, só pode ser o seu sentido, isto é, só pode
ser presença, portanto, não passado. Isso vai ao encontro do que diz Heidegger, acerca da linguagem da
poesia, ao afirmar que o poema não é um falar elevado, mas o falatório é que é um poema esquecido e
desagastado, que quase não mais ressoa327. Então, no encontro originário de poema e história ficcional,
podemos falar de uma história poética na obra de Kadaré. Será este o sentido da palavra “história”,
aqui.
Ademais, Paul Ricoeur328 mostra que, mesmo na narrativa histórica, não é o arcabouço
histórica entendida enquanto gênero literário que conferem compreensão da dimensão própria da
temporalidade ao presente, ou seja, não é a historiografia ou a forma estética do romance histórico que
revela o tempo como forma de narrativa. Antes, é o tempo que – na narrativa, pela narrativa e como
sentido presente. É somente dentro desta dimensão concedida pelo tempo como narrar que pode se
Klosi argumenta que a história, tal como se apresenta em Kadaré, não se trata tanto da remissão
atualizados, cujo exemplo principal é o tema do superestado totalitário, que aparece reencenado como
Para Klosi, esta atualização da experiência faz com que as ambientações dos romances no
Império Otomano feitas por Kadaré sejam capazes de fazer o leitor sentir de modo muito mais pleno o
terror de um Estado totalitário330. Esta verdade como experiência de uma presença, como atualidade de
um horizonte de compreensão está completamente de acordo com o encaminhamento que demos aqui.
Contudo, para nós, mais do que a construção de referencias temáticos atualizados, que ainda mantém
uma noção de cronologia como trilho que corre ao longo da recorrência dos temas, trata-se de um
constante recolocar – e repensar – as questões fundamentais. É neste questionar, neste habitar as questões,
seguir-lhes a trilha é que o sentimento do leitor não será um sentimento subjetivo, mas uma sentimento de
estar no sentido, de procurar o sentido. Ou seja, buscamos aqui um modo de leitura em que o leitor não
seja passivo, afetado pelo impacto dos romances. Buscamos aqui a possibilidade de que não apenas o
romance se construa no leitor, mas também que o leitor se construa como o que ele é no romance.
viagens, Kadaré articula um eixo temático, magistralmente realizado em Crônica na Pedra, onde desta vez
são o registro subjetivo da memória em vez da documentação objetiva da história que é transmutada
livremente segundo a linguagem das lendas, dos mitos e metáforas. Talvez por retratar algo da própria
329 KLOSI, 1991, p. 92 [traduziu-se: “Aktualisierung ist eigentlich eine auffallende Tendenz im Gesamtwerk von
Kadare, in den genannten Texten entwirft er darüber hinaus allmählich das Modell eines Superstaates, das sich
gleichzeitig auf die historischen Reiche, auf die modernen totalitären Staaten aber auch auf andere Muster bezieh.
Der Schriftsteller bildet ein eigenes "Reich", einen bekannten und doch neuen Ort, der sich einerseits an die
Geschichte anlehnt, sich aber andererseits von ihr unterscheidet.”]
330 KLOSI, 1991, p. 97
160
vida poeta em sua infância é que Crônica na Pedra traga esta temática de modo tão bem elaborado, uma
vez que parece bastante propicio ao olhar da criança que a realidade se transmute em algo fantástico331.
5) Mitologia na estrutura da obra: neste tema, Klosi centra sua análise em dois romances: Quem
resgatou Doruntinë e A Ponte dos Três Arcos. Este último é o que nos interessa aqui, pois também foi por
nós abordado. Em sua leitura deste romance, Klosi mostra que não se trata de um romance que
pretendesse transmitir uma representação fiel ao leitor. Antes, o foco se dá no modo como a lenda é
apropriada, por um lado, pela própria narrativa, que reencena a lenda do emparedado no destino de
Murrash Zenebisha e, por outro, pelo interesse financeiro e pela agenda política, que submetem a lenda
Uma outra forma de desencantamento do mito identificada por Klosi no romance em questão
parte dos personagens. Tanto o Colecionador de Lendas como o Monge Gjon. No caso deste último,
que é o narrador da história, Klosi argumenta que, dada sua proximidade com o escritor, essas
hipóteses interpretativas são uma forma com que a escrita ensaística de Kadaré se inserem em sua
ficção. Porém, não se pode simplesmente identificar autor e narrador333. Estas elucidações do mito que,
tomando a forma de um romance policial imiscuído numa narrativa mítica, contrastam fortemente com
o discurso ficcional de Kadaré seriam, segundo Klosi, algo particular à Ponte dos Três Arcos, uma vez que
não aparecem, por exemplo, no outro livo por ele estudado, Quem resgatou Doruntinë.334
emparedado que transcende este desencantamento e constrói uma âmbito poético, por meio da série de
imagens negativas, acidentes, visões apocalípticas e sentimento de medo que cercam sua construção335.
Porém, o fundamental na reapropriação da lenda ao longo do romance se daria na questão não apenas
331 KLOSI, 1991, pp. 99-101
332 KLOSI, 1991, pp. 110-112
333 KLOSI, 1991, pp. 112-3
334 KLOSI, 1991, pp. 115
335 KLOSI, 1991, pp. 113
161
sacrificada para sustentar as muralhas, enquanto no romance de Kadaré é um homem, que se sacrifica
por um fim ordinário não exatamente para que a ponte fique em pé, mas para amedrontar os
adversários políticos e econômicos à sua construção. O essencial da presença do mito na estrutura da obra
seria o modo como a verdadeira interpretação da lenda do emparedado e da construção da ponte são
mantidas em mistério, deixando claro que nenhuma das explicações parece dar conta da lenda336.
presentificação histórica e eliminar as possíveis confusões que ainda podem surgir, uma vez que, feita a
confundir com a crítica que o niilismo pós-moderno realiza à mesma tradição, faremos ainda uma
diferenciação entre a colocação poética da presentificação histórica e a tese pós-moderna da história como presença.
Esta crítica pós-moderna, embora aparentemente parecida com nossa colocação, é completamente
diferente daquilo por que nos empenhamos em pensar, como mostra Schuback:
Foi Jacques Derrida quem cunhou a expressão “métaphysique de la présence” para descrever a
ontologia tradicional como esquecimento de ser. Para Heidegger, o esquecimento de ser se dá
na determinação metafísica de ser como ser simplesmente dado, de substância, e com isso de
uma muito determinada incompreensão e negligência do sentido do tempo. Para Heidegger, o
problema não está propriamente no presente da presença nem na presença do presente e sim
na cegueira e surdez para distinguir a atualidade num aqui e agora de um fazer-se e tornar-se
presença para o seu tempo, para o seu presente, deixando o próprio tempo advir na pulsão
concreta das realizações finitas da vida337.
diferentes acerca do que vem a ser a questão da presença. Ambos se propõem uma crítica pensante, no
identifica a essência da realidade – e de cada uma de suas realizações – com um algo, uma coisa pensada,
vale dizer, um conceito. Pensa, enfim, o ser como ente. Este ente pode ser o Deus teológico, a razão
este pensamento de metafísica. Derrida inclui como parte desta metafísica o pensamento de Heidegger,
Assim, o pensador francês parte desde uma profunda (e às vezes, parece, até mesmo proposital)
dimensão fundamental com a qual Heidegger pensa o Dasein (normalmente traduzido como presença): a
correspondente do tempo enquanto advento da abertura do sentido como sentido do ser e, portanto,
completamente diferente do tempo pensado como o agora, que pretende superar a cronologia
fundamental da diferença entre os dois pensadores aparece aqui: o tempo pensado como mera
atualidade e agora, para Derrida, é entendido a partir do homem, de modo que a crítica derridiana à
subjetividade metafísica encontra aqui o seu limite. Para Heidegger, o homem – com todos os seus
empenhos e desempenhos – é que é uma concessão do tempo, na medida em que este é abertura da
possibilidade de sentido como sentido do ser, a que o homem corresponde na medida da sua
compreensão possível e histórica. É assim que Schuback prossegue explicando a questão fundamental
historiográfica:
Reiteramos: não confundir vigência histórica com historiografia moderna (metafísica da história) e,
do passado e projeção racionalizante de futuro. Essa representação desvincula o tempo do seu possível
sentido e, neste sentido, o tempo desprovido de personalidade não se referencia mais na vida concreta,
mas no conceito abstrato de vida enquanto ideia de existência individual, social, biológica e, enquanto
Portanto, chega a ser uma redundância nomearmos o modo como a vigência histórica
comparece como sentido na obra poética narrativa de Ismail Kadaré, uma vez que neste modo de
narrar histórico poético, a história é sempre presença no sentido pleno que a palavra portuguesa guarda,
com exclusividade:
Soando na palavra portuguesa presença, está o termo “presente”, que possui um sentido
exclusivo, quando comparado com os seus equivalentes em outras línguas neolatinas. Em
português, presente é dádiva, a palavra do oferecer, da doação, do presentear. Muitos são os
presentes, as doações da presença339
Aristóteles já havia dito que o ser se diz de muitas maneiras. O pensamento que outrora vibrou
como uma grandeza com a qual se pode medi-la. A experiência da presentificação história na poética da
que, contudo, não pode ser entendido humanisticamente como um agora vivenciado a partir do
homem. Eis a dimensão histórica do narrar, que é a dimensão da história como presença:
Em Poética se dá e acontece a tensão ontológica entre mito e história, sem nenhuma oposição,
porque mito não é estático, mas acontecer histórico do que se dá como questão e narração do
rito do mito. É a historicidade pela qual a vida se torna uma obra de arte. Dessa tensão surge a
narração como chegar a dar a conhecer o que se é na experienciação das questões. Toda e
qualquer vida é narração, mas a medida desta narração não é a sucessão de fatos, mas o sentido
que eles trazem e dão ao viver, pois não basta viver, é necessário ser o que vive. A vigência das
questões se perfaz no sentido, verdade e mundo. A concreticidade das questões diz da vigência
do próprio. A narração poética é a historicidade do viver a vida no pensar340.
história comparece como aquilo que concede vigor ao vigente e, na medida em que o vigente responde
ao próprio deste tempo como linguagem, dá-se a obra. Assim, a história aparece como obra, como
doação histórica de um sentido em que a palavra narrada oferta-se em linguagem: mundo e terra
NARRAR
A obra de Kadaré nos conduziu, por meio do diálogo hermenêutico pelo qual nos
empenhamos, a questionar a referência entre o narrar da narrativa e a realidade que nela se faz obra.
Compreendemos que o modo como a realidade se realiza como sentido e verdade na obra é sempre
articulado de modo dinâmico, visto que não se trata de representar a realidade, em sentido clássico, e
que a realidade, tampouco é equivalente ao realizado, porquanto em dimensão propriamente poética ela
é, sempre, também, o vigor do seu velamento. Por isso essa realização da realidade se dá como
presentificação histórica. A história, neste sentido, remete à vigência do romance como épos que articula
mythos e lógos numa tensão que conduz a obra ao âmbito da realização de tempo e lugar. Estas questões
foram tratadas imediatamente acima, de modo que, em virtude da compreensão própria da dimensão
épica de tempo e lugar, possa encaminhar o segundo questionamento dos dois questionamentos que
foram deixados em aberto ao final do capítulo três. O primeiro deles: como a realidade se faz verdade e
sentido no narrar das narrativas?foi pensado no capítulo quatro. Agora, passamos ao próximo: como,
nesta vigência poética de realidade em que a verdade da realidade não é produto do pensar humano,
mas antes uma correspondência ao acontecimento dinâmico de re-velação da própria realidade, pode-se
pensar o que tradicionalmente se entende por “natureza”, a que se opõe a realização humana da
“cultura”?
É dominante, em nossa tradição de pensamento, sob diversas formas, a noção geral de que o
que se faz “por si mesmo” (natureza) é diferente do que se produz (artifício). Esta distinção
fundamenta uma consideração depreciativa da ficção como artifício de que resulta uma falsidade. Como
165
afirma Rosset: “(...) lo fictício, antes de ser falso, es simplesmente algo al que se le reprocha acontecer
en el tiempo, el que sólo represente um puro y simple acontecimiento” 341. Negando o acontecimento, isto
é, a realidade como presença, o pensamento que opõe natureza e ficção só consegue pensar o tempo como
Entretanto, se é verdade que a noção segundo a qual o fazer humano é distinto da phýsis
acarreta uma compreensão dicotomizada do tempo e, por conseguinte, do espaço e do próprio habitar
humano, por outro lado, não se pode postular como oposição ao naturalismo desta visão um elogio do
artifício como essência da realidade, como faz Rosset343. Afinal, isso significaria uma compreensão do
tempo como uma grandeza determinada a partir do desempenho humano. Assim, por contrapartida,
converteria o tempo numa medida dada pelo homem a partir da qual o passado e o futuro não são
tempos “isentos” de artifício, como no naturalismo. Torna-se, para o artificialismo de Rosset, o passado
futuro, por sua vez, converte-se no conjunto das projeções e probabilidades cujas variáveis residem nas
ações do homem. Em última instância, para compreender o habitar, este pensamento artificialista toma
o habitante pela casa. Nisso é uma visão míope do processo poético da travessia humana na verdade de
seu ser.
Afinal, o habitante pode levantar as paredes e construir um telhado, abrir portas e janelas, mas
só pode habitar justamente aquilo que não fabrica: o vazio. Não pode morar dentro das paredes. As
paredes apenas marcam um lugar no âmbito daquilo que já lhe foi concedido: o vazio em que a casa se
faz, em que o teto se sustenta e no qual a casa, pelo morar, manifesta na de-mora o sentido do tempo e,
pelo éthos, o espaço como assinalar dos limites entre o sagrado e o profano de um habitar. Por
conseguinte, podemos dizer que o problema com a distinção entre natural e produzido, que condena a
ficção ao estatuto de artifício de falsidade, reside num entendimento humanista – e não poético - do
ecocrítica, Greg Garrad observa a necessidade que o pensador ecológico Daniel Botkin realça acerca da
humanista da relação entre cultura e natureza. A cultura, como discurso, fundamenta-se no sujeito que
discursa. Assim, como não-cultura, a natureza é não discurso e, como tal, supostamente alheia à
linguagem. Como discurso, portanto, como não-silêncio, a cultura é pura emissão, é o dito e escrito, o
colocado e realizado, é não-natureza, que é idêntica, sempre, a mesma, nesta visão. Por isso, a natureza
é objeto da representação. Em última instância, o que é dinâmico, neste modelo de relação, é apenas a
A visão dinâmica sobre a Terra em lugar de “natureza” estática permite compreender o quanto
a colocação de Goethe sobre a questão (embora este seja cronologicamente anterior) é ainda mais
radical. O sábio alemão identifica nesta vigência da 'natureza' – que em nosso vocabulário é a 'natureza'
como eclosão do sentido de terra e mundo – o vigor originário da obra de arte na medida em que ela
manifesta o que é próprio de cada um, isto é, se o poeta (Goethe fala sobre a tarefa de escrever poesia,
especificamente) procura a 'natureza' não como algo a ser preservado da ação humana (ainda que não
seja considerado estático), mas como a própria dobra cuja unidade consiste na condição para que o agir
seja essencial, opere, seja poiésis. Diz Goethe que “(...) daí surge, de certo modo, uma poesia da natureza,
e só assim é possível ser original”345. O próximo passo consiste em compreender como, na unidade
Em O Palácio dos Sonhos, os fluxos de sonhos obedecem aos fluxos da natureza: mais sonhos no
Outono até o fim do ano, após o qual havia um refluxo até a primavera346. Por outro lado, os sonhos
relação de causalidade entre o sonho dos homens e a natureza, mas uma dialética. Esta confere uma
corresponde ao sonhado. O romance aprofunda o tensionamento da questão que, aqui, apenas começa
a se anunciar.
Neste romance, em que a imagem do sistema comparece na figura do Império Otomano, com
sua opulência e controle de toda a realidade, consciente, natural e sonhada, a contraposição a esta
hegemonia sistemática é arquitetada na figura dos rapsodos. O enredo do romance mostra o Estado
imperial turco como um inimigo dos rapsodos que se apresentam, em determinada altura da narrativa,
no salão da família Quprili. De aparência simples, pouco monumental e imponente (o oposto do Tabir
(...) tal como o som de seu instrumento, a voz do rapsodo tinha qualquer coisa de inumano.
Dir-se-ia que, mercê de uma singular operação, ela fora despojada de todas as entoações
quotidianas, para só conservar as eternas. Era uma voz onde a garganta do homem e a garganta
da montanha pareciam ter-se demoradamente harmonizado a fim de abolirem entre si qualquer
distinção. E também se deviam ter entendido com outras vozes cada vez mais longínquas para
se fundirem com o lamento das estrelas. Além disso, quer a voz quer as palavras eram de tal
ordem que davam a impressão de tanto poder sair da boca de vivos como da de mortos. Tinha
igualmente sido firmado um acordo com as sombras e este entendimento parecia o mais
estreito, o mais consumado347.
A voz inumana, mas não desumana, reata a unidade fundamental: parece vir tanto do homem
como da montanha, a voz da canção. Sua harmonia é demorada. É uma harmonia em que o tempo se
faz morada, habitação, ethos. É como se na presença do épos da canção, phýsis e lógos estivessem numa
condição de dobra cujo sentido é justamente o que se dobra entre os dois, uma vigência que podemos
chamar de physiológica: a reunião originária de phýsis e lógos, superação da antinomia entre “natureza” e
“cultura”.
A celebração desta unidade também é articulada em O Sucessor, onde se abre com maior clareza
como essa unidade se reúne numa tríade de dois a partir do mistério. A vigência physiológica como fonte
originária do mistério que o silêncio resguarda e ao mesmo tempo revela se mostra numa história que, no
346 KADARÉ, 1992, p. 37
347 KADARÉ, 1992, p. 144
168
romance, a esposa do arquiteto lhe conta, como que para acalmá-lo da angústia de que descubram o
Trata-se da fábula albanesa do barbeiro que, ao cortar os cabelos do nobre Gjork Golem, vira-
lhe no crânio dos chifres. O nobre o ameaça, para que jamais revele o segredo. Voltando para casa,
atravessando um local ermo, o barbeiro não se contém: ele precisa dizer o segredo, mas não pode dizê-
lo para alguém. Eis que decide revelá-lo à beira de um poço abandonado, rodeado de juncos agitados
pelo vento, em forma de verso: “O que sei / Sabe ninguém. / Gjork Golem / Chifres tem.”348. Parte,
então, aliviado. Então um pastor passa pelo poço, corta um junco para fazer uma flauta e, terminado o
instrumento, ao soprá-lo, o que escuta não é melodia, mas as palavras que revelam o segredo do
barbeiro. O segredo ficara guardado no silêncio, e o mesmo silêncio revelara o segredo349. O encontro
de phýsis e lógos, de poiésis com “natureza” (conforme os termos usados inicialmente), remete ao original
ao modo do mistério. O mistério é não somente a origem do enunciado poético, mas também aquilo a
Portanto, o decisivo para a vigência de realidade que o agir essencial realiza não é uma questão
dos termos envolvidos. Entre phýsis e lógos a referência que instaura a vigência poética (considerando-se
o narrar inaugural como um empenho de agir essencial) é o “e”. Isto remete à experiência grega do
heideggeriano sobre o acontecimento do próprio (Ereignis), que ele traduz como evento criptofânico,
evidenciando o aspecto dinâmico da re-velação poética do real tantas vezes aqui enunciado:
O evento criptofânico (das Ereignis) é, por assim dizer, um neutrale tantum (simplesmente
neutro), o neutrale (neutro) 'e' no título Tempo e Ser. No jogo alethopoético, a alétheia
(Ereignis) se fundamenta na léthe (Enteignis). No krýptesthai de Heráclito, pronunciou-se pela
primeira e última vez o que é a retração (léthe) do ser350.
Léthe, o véu do esquecimento, é, também, aquele véu que recobre o mistério do qual eclode a
dispensa no discurso poético a verdade possível da realidade que se apresenta como renúncia de que se
represente. Nesta forma de presença, então, o presente não se repete, o passado não nos abandona e o
futuro nunca deixa de ser possível: reúnem-se num todo que condensa a experiência humana naquela
A arte não “imita” a phýsis, não apenas porque a arte é, também, um modo de se dar da própria
phýsis. Mais ainda, neste acontecimento poético da phýsis, ela comparece velando-se como phýsis para
aparecer como arte. Esse é o sentido do pensamento de Heidegger, que retoma a questão da phýsis à luz
de zoé, como tratamos nos subtópicos 3.5.1. e 3.5.2.: “O traço fundamental da phýsis e da dzoé é o
surgimento que se dá a partir de si mesmo, que é ao mesmo tempo um retorno para si mesmo, um
fechamento”351. Criar consiste na ação paciente de ser espicaçado pelo que já é linguagem sem ser,
ainda, enunciado. A linguagem nasce como questão e espanto. Escrevêssemos esse surgir, seria, talvez,
Como se dá, então, a consumação do humano do homem nessa vigência physiológica em que, ao
que parece, seu agir essencial é sempre uma colheita do que se realiza na medida em que se deixa
acolher pela realidade que assim se faz acontecimento próprio? A experiência grega de Heráclito pode
ainda dar conta do que é vigente como narrar de uma narrativa da contemporaneidade? É justamente aí
que se dá o nó central que impede a compreensão da medida do consumar poético do homem como
phýsis: o humanismo que alinhava o conjunto do pensamento metafísico do ocidente dos sistemas, dos
conceitos e das técnicas. Buscando auxílio no pensamento oriental do Tao (como uma via de pensar a
realidade em sua realização), para fugir a esta tradição, Pasqualotto consegue compreender a medida da
Portanto, a realização humano tanto mais consuma como poiésis quanto mais se deixa acolher
como realização da phýsis. Este é o sentido aristotélico da famoso relação entre phýsis e tékhne,
desdobrada no ocidente como a antinomia de natureza e arte, em que a primeira imita a última. Na sua
Physiké akroasis, o título do tratado aristotélico sobre a phýsis, a arte, tékhne, tem sua vigência enquanto
realização, enquanto fenômeno – phôs, a palavra grega para luz, e phaino, o verbo grego “aparecer”, têm
a mesma raiz que phýsis. Não simples natureza oposta à cultura, a phýsis grega abrange toda a realidade
fenomênica, o âmbito de tudo que vem à luz e se manifesta. Esta manifestação será escutada neste
tratado aristotélico. Isto porque o verbo akroao, donde se forma o substantivo akroasis, significa “escutar
com atenção”, no sentido médico do termo, que aponta para a aproximação cuidadosa, em que se
encosta o ouvido no corpo para escutar-lhe a saúde e a doença, a vida e a morte. Esta escuta cuidadosa
é que está no cerne do pensamento aristotélico sobre a phýsis. Não pretendemos nem de longe esgotar a
Na sua Física, Aristóteles nos dá a seguinte passagem sobre a arte: “hólos te he téchne tà mèn epiteleî
353
hà he phýsis adynateî apergásasthai, tà dè mimeîtai.” Esta passagem pode ser traduzida assim: “De fato,
como uma proposição geral, as artes ou desenvolvem as coisas a partir da natureza para além da
capacidade desta, ou imitam a natureza”354. De acordo com a tradução apresentada, a atividade própria
da arte seria, portanto, a imitação da natureza. É este o entendimento que, em geral, se tem da arte
grega.
Quando se analisa rigorosamente esta formulação de Aristóteles, em cada palavra que compõe a
passagem citada, começamos a desconfiar não tanto do entendimento de arte como imitação, mas do
entendimento do que seja arte e do que seja imitação, no horizonte do pensamento grego. Assim, de
passagem de Aristóteles e para isso, para podermos compreender o que aqui se traduziu, faremos
referência a algumas palavras gregas fundamentais presentes na passagem citada. Neste percurso, vamos
desenvolvendo uma compreensão do pensamento aristotélico sobre a arte, tal como ela se apresenta na
Física.
adjetivo. Hólos significa inteiro, mas não é inteiro no total, no sentido da reunião de todos os votos, de
todos os indivíduos, nem no sentido de conjunto de unidades. A inteireza a que hólos remete é a da
plenitude, da intensidade e da compreensão. Hólos aponta para o âmbito do real em sua inteireza como
plenitude, como plena realização e manifestação, como intensa experiência da realidade articulada na
compreensão. Então, com este primeiro advérbio, Aristóteles já está dizendo que arte articula realidade
como plenitude de realização, como intensidade de compreensão. Neste sentido, a ciência, em sua
maneira de se relacionar com o real, visa alcançá-lo através do realizado, e obter controle sobre ele. A
arte, tal como pensada por Aristóteles, em princípio parece já se articular com a realidade em sua
plenitude, não apenas com o conjunto do realizado. Portanto, traduzir, hólos como “proposição geral”,
“de modo geral”, reduz a intensidade da palavra para uma remissão redutora do real ao conjunto do
realizado reduzido, por sua vez, num entendimento nivelador das diferenças.
Aristóteles não diz, com hólos, que a arte, como fazer humano, é um meio de se chegar a um
ponto, mas é um agir que já nos situa na plenitude do real em sua realização. Isto se confirma com o
termo fundamental seguinte: epitelei. Este verbo surge por prefixação. O substantivo télos junta-se à
preposição epi, que opera como prefixo. Télos é um substantivo antigo que remete ao superlativo de uma
ação ou realização, a completa realização ou ação. Combinado ao prefixo epi, forma um verbo que quer
dizer “consumar”, que é levar ao sumo. Com o consumar, Aristóteles caracteriza a arte como agir e
plenitude. Em vez de mera fantasia imaginativa, a arte comparece aqui como o mais alto grau de
realidade do real. Aqui é que entra o sentido próprio de epi, que remete ao destino, ao movimento de
Este âmbito do hólos passa pela phýsis, que já comentamos anteriormente, tentando reconduzi-la
172
a uma vigência em que concatenasse sentido. A arte, com epiteleo, conduz à plenitude aquilo para o quê
realidade fenomênica é sem dýnamis. Isto é que se diz com o verbo adýnateî: é sem dýnamis, o que se traduz
comumente por “é impotente”, “não pode”. Sabemos que dýnamis já exige todo um aprofundamento da
termo grego. A realidade fenomênica, a phýsis, é sem dýnamis para aquilo que a arte consuma. Contudo,
ao realizar isto para o quê a phýsis é sem dýnamis, a arte parte da própria phýsis no hólos.
É isto que se diz com a outra palavra fundamental: o verbo epergadzomai. Erga, a raiz semântica
desse verbo, aponta para “obra”. Epergadzomai é composto não com epi, mas com a preposição apo. Esta
indica derivação, advento, proveniência, origem. Epergadzomai significa “pôr em obra”, obrar a partir de
uma origem. Trata-se de um verbo depoente, também chamado de médio. A voz média, no grego, não
é ativa, nem passiva. Costuma-se traduzi-la por formas reflexivas, mas em sentido próprio um verbo
depoente manifesta uma ação que em si constitui tanto o sujeito quanto o objeto. Isto significa que, ao
contrário do que se pensa na reflexão, a ação não é realizada por um sujeito que já se constitui sujeito
independentemente da ação e, na medida em que age, age sobre si mesmo. A voz média manifesta, de
modo próprio, o sujeito que se constitui sujeito na medida do agir: o sujeito não é a origem do agir,
porque é também seu objeto. Se o sujeito é o objeto, não há, a rigor, nem sujeito nem objeto, mas uma
ação constituinte. É a partir da ação que tudo se dá. Castro afirma que:
Ao vigor vigente como tal os gregos denominavam phýsis e ao acontecer dessa vigência: a-létheia
ou poíesis, isto é, des-velamento, na medida em que este é a essência da verdade. O des-
velamento, essência da mudança, é a verdade enquanto o poético do real, da phýsis. Este mudar
originário é a essência da História, ou seja, é o próprio acontecer poético do real, da phýsis
enquanto natureza E cultura355
Portanto, a téchne não é o sujeito deste agir de epergadzomai, mas ela como que surge enquanto
téchne desta própria ação de pôr em obra aquilo para o quê a phýsis é sem dýnamis. Porém, é a partir da
origem (prefixo apo) que esta ação de obrar em que a arte acontece como arte se dá. Esta origem não é
outra senão a própria phýsis em seu ser sem dýnamis. Esta relação de plenitude de realização a partir da
origem em que phýsis e téchne não são uma sem a outra é o âmbito e o modo de vigência que Aristóteles
chama de hólos. Por isso, arte e “natureza” não se opõem no pensamento grego.
À luz do que foi pensado anteriormente, acreditamos que agora podemos tratar um pouco da
téchne poética do romance de Kadaré, sem que incorramos num tratamento processual, reificante e,
sobretudo, humanista do agir em que a criação opera como narrar. Começaremos, no ensejo do que
viemos desdobrando em nosso diálogo com as obras, por observar a referência entre a téchne e a phýsis
romances com os quais dialogamos aqui, em Três Cantos Fúnebres para o Kosovo, Abril Despedaçado, As Frias
Flores de Abril e em A Filha de Agamenon – além de em diversos outros romances sobre os quais não nos
debruçamos demoradamente qui, como Concerto no Fim do Inverno – a primavera comparece como o
tempo propício, o kairós, o tempo oportuno aberto pela phýsis em que ela se dá como eclosão de
acontecimento poético, acontecimento que não apenas é narrado pelo romance, como também é o
acontecimento do próprio romance surgir, como romance. É nesta direção que vamos buscar aqui
musal e esquecimento (ver tópico 4.3.), convidamos A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, para um
breve diálogo, com fins de que se nos delineie, assim, o sentido da primavera como ensejo kairótico da
phýsis eclodindo como romance na obra de Kadaré:. Vejamos como a poética musical se dá na Sagração
da Primavera.
compassos. Impõe o ritmo ou através de uma contraposição entre uma voz ritmada com a regularidade
do compasso e outra voz irregular, ou através de uma alternância entre um ritmo regular e um ritmo
escrita, ou seja, no que está posto na partitura, não condiz com a regularidade do que se escuta. Este é
um primeiro ponto de compreensão. Stravinsky procura fazer com que a regularidade seja não o
princípio a priori, aquilo que está dado, mas submetida ao horizonte da escuta. Na Sagração da Primavera,
com sua construção centrada na liberdade imposta pelo ritmo, a escuta, na escuta e pela escuta é que
podemos chegar a reunir numa regularidade não dada aquilo que está sendo tocado em notas irregulares.
Ou seja, a regularidade não é o som, a melodia, mas o silêncio, uma vez que a regularidade não se
percebe em nenhuma parte da partitura, das notas, mas apenas quando estas notas se tornam música
pela escuta. O que, então, os musicólogos chamam de regularidade, em Stravinsky, talvez, em nosso ver,
seja melhor chamar de reunião originária, ou sentido, ou silêncio, para diferenciar-se da noção
Essa ênfase no ritmo é percebida como um retorno à origem, no caso, a uma música
cronologicamente classificada como pré-harmônica, embora esta cronologia em nada ajude aqui. Afinal,
da mesma forma, nos romances de Kadaré, o que muitos críticos chamam de um retorno ao mito,
querendo dizer com isso que a história presente é interpretada à luz de estórias passadas, será aqui
apresentado como presentificação histórica, ou seja, a história como presença, como confluência de
O sentido da história, tal como comparece nos romances de Kadaré, não se dá por uma
história como narração. O mito só faz sentido como presença, não é uma evocação do passado. Por isso, nas
narrativas de Kadaré, é como se a história que se desenrola, por exemplo, na Albânia comunista, fosse
ao mesmo tempo a história do Império Otomano e, ao mesmo tempo, a história do tempo mítico. Por isso é
que não podemos dizer apenas que sua obra é uma crítica ao Estado Totalitário, pois isso implica fazer
que nesta obra os mitos gregos e estórias ambientadas na época do Império Otomano sejam alegorias,
ilustrações indiretas do que se passaria na Albânia comunista. Isto implicaria uma delimitação de sua
obra nos marcos de uma crítica contingencial. A obra de Kadaré, porém, trata, pela presentificação
histórica, de questões da realidade em sua dinâmica. Esta dinâmica se dá sempre historicamente como
questionar. O tempo, em Kadaré, é presença. Isso, porém, está manifesto não apenas nos romances
primaveris de Kadaré, pode ser compreendido a partir do que explicita Candé 357: “Esses 'Quadros de
uma Rússia pagã' [que compõem a obra], segundo uma ideia de Stravinsky, inspiram-se numa crença
milenar, segundo a qual a vida nasce da morte: a primeira parte é consagrada à Adoração da terra, a
segunda ao Sacrifício de uma jovem ao deus da Primavera”. Ambas as partes são descritas por
Berthoumieux358:
ADORAÇÃO DA TERRA
Uma Introdução lenta abre caminho a duas melopeias de apelos, uma meditativa, a
outra mais rápida. Já aqui o ritmo começa a impor-se; impulsos subtis, acariciadores, passam
através de todos os desenhos orquestrais; poder-se-iam escrever páginas inteiras sobre esta
sequência, de tal forma o espírito é absorvido pelos dados da linguagem e da forma,
conduzidos com uma segurança soberana e com uma firmeza peremptória. Os augures da
primavera e a Dança das adolescentes: Um Staccato admiravelmente construído anuncia-
nos que o dia está a nascer. Um motivo ligeiro, se não mesmo etéreo, faz nascer três outros
desenhos que encontram em si mesmos o seu significado. Um quadro que nos prende é o do
Rapto: sonoridades assustadoras provocam o terror; é então que aparece, em rápidas
incursões, toda a desenvoltura da escrita. Pelo contrário, as Rondas primaveris oferecem-nos
um momento de meditação sobre tudo o que nos surpreendeu até então. Estamos nesse
momento prontos a receber o motivo único que preside aos Jogos das Cidades Rivais. Neles
Stravinsky, nas sucessivas apresentações desse motivo, faz nascer das notas principais novas
melodias. A nossa compreensão ver-se-á tomada e elevada até ao aparecimento do Cortejo do
sacerdote; sons profundos parecem sair das entranhas da terra, precipitando-se no meio de
um tam-tam obstinado e incisivo. Esta sequência domina-nos de tal forma que ficamos
maravilhados pelo seu sentido de equilíbrio estrutural.
O SACRIFÍCIO
Uma introdução majestosa visa colocar-nos num clima estranho; aqui as harmonias
são elaboradas com uma substância que é sempre sensível no mistério que as envolve. E então
que aparece a cena dos Círculos misteriosos das Adolescentes; este Andante é de certo
modo uma via sacra. O destino impõe-se pouco a pouco e o avanço das adolescentes impõe a
sua passividade aceite. A dança interrompe-se. Uma das adolescentes é designada pela sorte
para o sacrifício. Até à dança sagrada a Eleita permanece imóvel. A atmosfera é entrecortada
por acordes desiguais e estranhos. A Glorificação da Eleita contém ritmos muito variados,
pondo em primeiro plano um desenho dominante que abrirá as portas à Evocação dos
antepassados, quadro que, na sua simplicidade, faz ressaltar todos os recursos preciosos de
uma orquestra em constante evolução. Após o Lento da Acção ritual dos antepassados
surge finalmente a Dança sagrada; de novo um quadro espantoso em que a juventude retoma
os seus direitos, após se ter retido momentaneamente pelo temor dos Deuses mortos. Mas
tudo se transforma em brilhantes correntes sonoras que fazem jorrar a seiva primaveril
enquanto os augures reencontram a vida através da morte da Eleita.
Em todos os três romances primaveris de Kadaré, fala-se desde uma forte evocação telúrica.
Abril Despedaçado pode ser lido como um grande canto de louvor ao terrível mistério do Rrafsh. Já os
Três Cantos Fúnebres para o Kosovo constituem uma elegia, o grito da própria terra por meio de seus
soldados massacrados pela máquina de guerra otomana. Na narrativa, porém, a própria dinâmica dos
acontecimentos históricos parece corresponder aos ritmos da terra. A Filha de Agamenon é, também, não
apenas uma crítica ao regime de Hoxha, mas um chamado de volta à vida para a Albânia e seu povo, ou
seja, um chamado de uma terra esmagada pela máquina do sistema para que frutifique. Na passagem em
Essa fora nossa penúltima querela. A última tivera como causa um lema do Dirigente:
'Defenderemos os princípios do marxismo-leninismo mesmo que sejamos obrigados a nos
alimentar de ervas'. Eu disse a meu tio que não podia imaginar um lema mais incompreensível
e até ofensivo à dignidade de um povo. Que princípios seriam esses pelos quais deveríamos nos
transformar em gado? E para que nos serviriam? Para a glória do pastor?
(...) Por que precisaríamos de princípios que nos obrigassem a virar animais, como a
feiticeira Circe? Enquanto pensava comigo: quem sabe não seria esse o desejo secreto dele,
rebaixar as pessoas à condição de comedoras de capim? Submissão, emburrecimento. E tudo
em nome dos princípios do marxismo. Oh, Deus, que comédia!359
Ou seja, enquanto se faz uma forte crítica ao regime como manifestação do sistema opressor
que tudo planifica e controla, da racionalidade instrumental que instrumentaliza o homem e converte-
Chega, interrompera-me ele por fim. Você está podre até o tutano, não consegue
entender essas coisas. Não pode compreender que, mesmo que a Albânia seja varrida da face
da Terra, não importa, desde que vivam as idéias do nosso Dirigente!
(...)
É você que, ao falar assim, faz a acusação mais pesada ao Dirigente.
Eu? Acusar o Dirigente?, zombara ele. Aliás, quem falou do Dirigente?
Você, exatamente você, prosseguira eu. O simples fato de colocar o dilema, ou a
Albânia ou o Dirigente, é a mais grave acusação contra você. Significa que, na sua concepção,
ou é uma ou o outro, não há lugar no mundo para os dois. (…)
Não seria precisamente esse o sonho secreto do Dirigente, varrer da face da Terra a
Albânia, esse país incômodo, com esse povo pobre que se põe de pé, que precisa ser
alimentado, governado? Se ele fosse varrido, aniquilado, que belo trabalho seria. Morto, é certo,
mas redivivo nas idéias do guia. E como tudo seria mais cômodo: sem realidade a expressar o
contrário, sem manchas, sem o testemunho dos crimes. Apenas os livros, as idéias, a luz360
Na figura do dirigente, faz-se uma contraposição entre terra e ao povo albanês e o sistema, o
Estado encarnado na figura do Dirigente. Na mesma medida em que este é criticado, aquele é evocado
Da mesma forma que os romances de Kadaré são uma crítica à máquina/sistema (o Kanun, em
Abril Despedaçado; o Regime Comunista, em A filha de Agamenon e o Império Otomano em Três Cantos Fúnebres
para o Kosovo) e também uma evocação da terra, A Sagração da Primavera, de Stravinsky, é também uma
manifestação do absurdo do mundo da técnica e, ao mesmo tempo, uma reencenação das origens –
A imagem-questão do sacrifício do jovem, que ainda não conhece o amor e se enfrenta com a
morte (Gjorg em Abril Despedaçado e Suzana em A Filha de Agamenon) reconduz à questão da unidade
entre consumação e amor no âmbito da phýsis como sagrado. Em contrapartida, a questão da unidade
de vida e morte também se constrói: em A Filha de Agamenon, pela presentificação histórica, voltam à
vida o Camarada Agamenon Atrid e Calcas, além de diversos heróis gregos. Já em Abril, por exemplo, há
uma passagem em que o escritor Bessian Vorps comenta com sua esposa Diana sobre um montanhês
com tarja preta no braço (que é Gjorg, marcado para morrer) que avistam enquanto viajam pelo Rrafsh:
Será necessário, então, a partir deste ponto em que a realização poética da phýsis, ou realização
da phýsis como homem, atinge sua plenitude quando se compreende que a consumação do humano
requer uma renúncia mediante a qual se resguarda o velamento originário em si mesmo. Isto, porque,
como dissemos, o homem se faz humano na medida em que se deixa ser e se empenha em ser eclosão
da própria phýsis. Este velamento no homem, ao que indica a poética de Kadaré, remete a três questões
centrais, que se desdobram a partir daí. A primeira delas é a consumação poética como amor, vigor de
eros ao modo do deixar-se tomar, vale dizer, vigor de eros como pathos, paixão. A segunda – e esta ordem
não é hierárquica - é a consumação como morte, como ser mortal que conduz a própria possibilidade
de que sejamos abertos ao sagrado em que a realidade como mito pode vir à fala do epos. A terceira, a
questão do amigo, como articulação de referência do philós, que deve ser, juntamente com as duas
Antes, porém, de abordarmos esta duas vias de questionamento, precisamos seguir pensando a
unidade originária physiológica como habitar. Isto nos leva à questão do fingir da ficção narrativa como
encontro terra e mundo. Numa colocação concisa: Mundo e Terra são palavras que evocam o mistério
da unidade entre o sentido do habitar poético e a poética de habitar o sentido. O sentido já nos vem
desde muito antes do entendimento racional. Ele é posterior, também. E concomitante. Sentido se abre
no dizer cujo “significado” não aponta o realizado, mas abre a realização, ou seja, o sentido se distingue
rigorosamente de significado, por um lado. Por outro lado, no entanto, o sentido vibra, ainda, em todo
significado, embora o significado por si se constitua numa barreira ao apelo do sentido. Não
intransponível, porque esse apelo é silencioso. Em suma, não há significado humano sem que antes já
não se dê a realidade como sentido. Portanto, o que chamamos na tradição de pensamento metafísico
de “natureza”, só pode ser destituído de sentido, uma vez que o sentido pressupõe, também, aquele
ente cujo ser consiste em ser aberto para o envio do sentido: o homem, o ser que é ao modo da
linguagem.
A “natureza” em que se dá o sentido chamamos de Terra. “Cultura” por sua vez, remete ao
âmbito do agir humano. Mas o agir consiste, conforme lhe é próprio, em agir não na realidade, mas de
agir a realidade. Agir a realidade é realizar a realidade e ser uma realização da realidade. O agir essencial
age a realidade e, portanto, os limites do termo “cultura”, se dão conta da ação humana, não
compreendem a inteireza da essência originária do agir. O agir originário em que se age a realidade
chamamos de Mundo. Nesta dimensão, ficção se pensa sempre em unidade com a verdade.
Lembramos, mais uma vez, a vigência poética com que a questão da téchne é aqui tratada, em
referência à phýsis em sentido próprio. Neste horizonte é que tentamos uma outra aproximação da téchne
A composição por montagem, que no cinema já foi considerada como sua propriedade, aquilo
179
que diferenciava o cinema das demais artes, na verdade é uma forma de compor que se vincula às
a montagem como uma parte de um processo de pós-produção, a edição, seleção e junção das partes
para formar o todo, conforme o projeto do diretor ou produtor de um filme. A montagem pode ser
assim entendida como um conjunto de procedimentos operacionais que variam conforme a tecnologia
disponível, mas independente do sentido e até mesmo do formato do filme (documentário, longa-
metragem, comercial, tanto faz). Pode ser entendida, também, como uma técnica, um know-how que é
independe do tipo de tecnologia empregada, sendo uma forma de reunir as tomadas e o áudio de modo
Porém, uma terceira possibilidade de entender a montagem é como uma composição poética.
Esta ação de montagem com Eisenstein363, no caso do cinema, é não um procedimento de pós-produção,
mas o princípio, aquilo que já está presente antes mesmo de se começar a filmar as cenas, isto é, aquilo
que – sem constituir nenhuma cena específica, nenhum dado específico, mas o princípio, a unidade não dada
que articula o conjunto de cenas – é o sentido mais próprio do filme, o silêncio da imagem que deixa
ver a questão364.
Decorre que essa ação de unir, tecendo num conjunto os diversos takes, ou seja, os diversos fios,
fios (e os desenhos de teia são virtualmente infinitos, em suas possibilidades) e mostrar a questão, mostrar
o não dito, ou seja dizer o questionamento, cuja imagem se dá nos vazios que sempre se dão em meio aos -
e para além dos - fios de toda teia. O cineasta Eduardo Escorel, inclusive, já reconhece que a montagem
É neste sentido, como composição que deixa ver o não-dito, portanto, uma composição poética,
que nomeamos a composição própria dos romances de Kadaré como uma composição por montagem. Na
obra de Kadaré, a forma de composição do romance por montagem é fundamental para a construção
de seu sentido. Compreender as articulações e tensões que são próprias desta forma de composição é
de primeira monta. Versátil, Kadaré emprega em sua obra três modalidades de composição por
montagem.
sem um nexo explícito. Não há linearidade, o nexo não está nos episódios, ele como que se esconde na
referência entre os episódios entrelaçados por meio da convergência à ação essencial, que não é narrável.
Esta ação essencial atravessa os diversos episódios, como em Abril Despedaçado, Concerto no Fim do Inverno
e Dossiê H, e assim os diversos 'fios' da narrativa se encontram, sem que haja um episódio ou uma
passagem que explicite este encontro. O encontro dos fios da narrativa, nestes romances, fica no plano
Uma outra composição, a da montagem por mosaico de cenas, recorre à sucessão mais linear (em
comparação com os episódios) no âmbito das cenas, mas estrutura uma totalidade mais imagística do
que narrativa, como um mosaico (esta montagem é também identificada por Klosi 366 em sua abordagem
do romance Crônica na Pedra, de Kadaré). As cenas se distinguem dos episódios porque não se
estruturam em torno do agir, mas em torno de imagens que vão compondo o mosaico total do romance,
onde o sentido eclode de um quadro mais consistente, porém mais fragmentário, mais difuso.
O sentido fica mais disperso num conjunto de cenas do que em um não dito que alinhava os
episódios, mas estas cenas só fazem sentido como um conjunto que tem o caráter de mosaico, isto é, uma
tela que deixa à mostra suas fissuras, o entre de seus pedaços. Diferencia-se claramente da continuidade
de um afresco, por exemplo. Esta composição Kadaré utiliza em A Ponte dos Três Arcos ou Três Cantos
Fúnebres para o Kosovo e, de modo mais misto, em As Frias Flores de Abril (pois neste romance os
movimentos narrativos imagísticos – cenas - se alternam com diferentes 'fios' narrativos – episódios -,
constituindo uma montagem mais híbrida, com tendência predominante para a montagem por mosaico de
cenas).
Em A Filha de Agamenon, a composição por montagem é outra. Há uma linha direta que segue
do início ao fim do romance: o narrador em seu apartamento, seu caminho até o palanque, de onde ele
personagem. Nos dois primeiros capítulos, temos, porém um interessante contraponto, pois o
personagem está sozinho, consigo mesmo, pensando em Suzana, sua 'amante'. Em seu caminho para a
festividade, seguem-se os encontros, que compõe um álbum de retratos da sociedade albanesa sob a
ditadura comunista.
Há os perseguidos pelo regime: o cientista brilhante arruinado por uma risada em função da
morte de Stalin; B.L., o dramaturgo proscrito pela contabilidade dos desvios ideológicos de sua peça; R.
Z., o lacaio partidário carreirista que, após cair em desgraça pela prisão do primo, faz qualquer tipo de
serviço sujo para voltar a subir na hierarquia do partido, e que reencena, com sentido oposto, a fábula
de Calvo. Há, também, os celebrados: Th.D., o pintor famoso e sempre presente no alto escalão do
Estado que, contudo, é alvo de muitas suspeitas e envolto em mistério: não se sabe porque ainda não
foi desgraçado, ou se sua desgraça já é permanecer sendo condecorado pelo Estado (pois exibe um
semblante sempre triste). Esse pintor pode ser uma projeção de Kadaré; O quadro médio do partido,
tão anônimo que sequer se mencionam suas iniciais; finalmente, os dirigentes, ovacionados pela
multidão, dentre os quais está o pai do Suzana, e cujos rostos só são discerníveis nos retratos
carregados no desfile, como os homens reais fossem apenas sombras difusas das imagens idealizadas; o
próprio narrador, o trabalhador comum que se vê agraciado com um convite de honra, sem nunca ter
Por fim, há aqueles que parecem escapar a essa dinâmica alternante de destruição e glorificação
pelo sistema: Suzana, a moça em que tem viço uma potência de vida – a imagem é eros – que destoa
mecanismo, é desumanizador. É a figura que precisa ser sacrificada por vontade do Dirigente.
Este romance, portanto, é montado como um duplo movimento de anábase e catábase, uma
reencenação de um modo mítico de narrar a descoberta do sentido dos mistérios, também utilizada por
182
Kadaré em O Palácio dos Sonhos. O percurso da narração segue de encontro em encontro. Este encontros
se apresentam como uma sucessão ascendente. Em A Filha de Agamenon, esta sucessão ascendente se
apresenta como a escala social dos personagens encontrados, dos arruinados aos glorificados pelo
sistema do Estado Totalitário. Já em O Palácio dos Sonhos, a sucessão ascendente se dá pela subida do
narrador na hierarquia da burocracia do Tabir Sarail, o palácio onde funcionários do Império Otomano
coletam, classificam e interpretam, todos os sonhos dos habitantes do Império. Assim, esta composição
por montagem anabatico-catabática conduz, num primeiro movimento a uma imensidão totalizadora
(utilizamos a expressão 'segundo' não como referência a um movimento sucessivo, posterior, mas sim a
sentido de que nos leva às profundezas tanto do sentido dos encontros, quanto do horror que deles
emana. Fato, o horror está ligado à grandiosidade, ao insuportável, àquilo que escapa à racionalização e
mesquinhez mais baixa. Este fundo da degeneração humana, então, como catábase, leva a ver o enigma,
Estado, ao mesmo tempo, ele vai descendo nas profundezas da degeneração da humanidade. Quanto
mais alto, mais degenerado, a ponto de os crimes dos dirigentes – que, logicamente, para terem chegado
onde chegaram, segundo o mecanismo da recompensa por serviços sujos explicitado no romance,
devem ter cometido muitos, e mui bárbaros – não serem pronunciados, permanecerem envoltos em
sombras, incompreensível, mas grotescos de se imaginar (como na cena em que o narrador lembra da
sua discussão com o tio e tem um insight sobre as intenções veladas do Dirigente).
Em O Palácio dos Sonhos, quanto mais o narrador sobe na hierarquia do funcionalismo, mais ele
vê o absurdo assustador do mecanismo do Tabir Sarail, uma instituição cuja função é controlar o
183
transformando os próprios sonhos em mercadorias e formas de se ganhar prestígio social, mas que
também podem destruir aleatoriamente ou ter um preço alto demais. Porém, é contemplando o fundo
absurdo e destrutivo deste mecanismo que Mark-Alem consegue compreender o sentido da história de
sua própria família que, inicialmente, parecia tão incorporada ao sistema, mas que por fim também
revela-se resistente a ele (um de seus tios é o Vizir, enquanto o outro é um nacionalista albanês).
formam a teia da narrativa, evidencia o não-dito, o vazio que concede a possibilidade da teia (e que
nenhuma teia consegue cobrir totalmente). Enquanto isso, a montagem por mosaico de cenas, compõe o
sentido numa unidade mais simultâneas, porém mais fragmentária. Realiza-se uma imagem em que a
relação entre o todo e as partes é um movimento de encobrir as fendas - os vazios entre os pedacinhos
do mosaico – formando um todo, mas que ao mesmo tempo não faz senão mostrar o vazio (e por isso
é que é mosaico e não, por exemplo, um afresco). Já a montagem anabático-catabática privilegiada uma
maior evidência da ambiguidade como sentido (e não como sentido da ambiguidade, que é uma forma
retorno do personagem para casa e neste retornar é que ele vê o mistério da questão do sacrifício, central
na obra; 2) o retorno dos manifestantes à casa, que reencena, nas palavras da narrativa, o retorno dos
guerreiros gregos do local onde Ifigênia fora sacrificada; 3) a menção de que “A campanha de Tróia
começara”367, a expressão clara de que este 'fim' é um início. Em O Palácio dos Sonhos: 1) Mark-Alem
volta para casa depois de um dia de trabalho; 2) esta volta é a própria experiência do incompreensível,
pois ele se perde na imensidão do Tabir Sarail onde trabalha, como em um labirinto borgiano, cujo
seja, de que a única certeza está numa experiência sobre a qual nada sabemos antes de tê-la e, ao tê-la,
Então, o 'fim' da narrativa impõe sempre uma abertura para o retorno. Deste modo, o 'fim' da
narrativa deixa do ser o 'encerramento' do narrado (pelo qual, de fato, a narrativa seria delimitada como
uma mera realização), e passa a ser o 'télos' do narrar (o télos é o fim que é um princípio, de modo que a
narrativa vige poeticamente como ação, como narrar, ou seja, a ficção narrativa é verbal, dinâmica, é
(Teseu não experimenta o labirinto como labirinto, devido ao artifício do Fio de Ariadne, que soluciona o
mistério. Já para Astérion, o labirinto é a própria casa); a partida para a guerra onde se ceifarão vidas já
pressupõe o mais cruel dos sacrifícios; retornar à sua casa é, enfim, compreender que ela, ainda que
Também no romance A Ponte dos Três Arcos, construído como o relato de um monge que
uma construção em torno da dinâmica de tensionamento entre estes dois pólos/questões: a obra
(ponte) e o sistema (ameaça otomana), como oposições. O livro se desenvolve por blocos de capítulos
cujo enfoque se alterna entre a ponte e a ameaça otomana. Constrói-se o auge da tensão conforme, no
fim do livro, a alternância entre um foco e outro vai se tornando mais rápida, até que se encontram os
dois questionamentos nos capítulos finais, da batalha sobre a ponte, e da identificação final desta
diferença, de que o emparedado, que se confundiu com a obra, é o próprio Gjon, que se sacrifica ao
redigir seu registro, o que remete ao próprio Kadaré escrevendo romances sobre censura e – em vista
também este estatuto do 'sacrificado na obra' a todo leitor e a todo ser humano em geral, que vive
apenas na medida em que opera, mas que também se vela para que possa consumar o destino e, neste
O mito é o horizonte em que a arte é verdade. É no horizonte do mito que se deve pensar a
poética do romance de Kadaré. Mariam M'Raihi368, inspirada pela mitocrítica de Pierre Brunel369, faz um
tratamento do mito que o distingue do simples “tema” (distinção que parte considerável da crítica de
Kadaré não faz devidamente). Diferentemente do tema, o mito não pode ser reduzido a um esquema
abstrato geral, válido para todas as narrativas de um “tipo”. Nesta sua irredutibilidade, porém, o mito se
diversifica e reapresenta-se sempre como uma especificidade concreta, pelo que não se opõe à criação
literária. Antes, a compõe, sobretudo na literatura moderna e evoca, assim, em cada sua atualização,
uma narrativa do passado imemorial, das origens e começos370. É neste sentido que é lida a obra de
Ismail Kadaré, escritor, poeta e dramaturgo consagrado, não escapa à tentação de tirar a seiva
de suas obras de um passado arcaico e mítico. Se parece situar-se nesta linha de escritores, ao
mesmo tempo, está à margem. A literatura karadeana é de fato uma literatura da mitologia e do
lendário, mas Ismail Kadaré não se contenta em apenas retomar os mitos para reescrevê-los,
como em seu romance Mal-estar no Olimpo [não traduzido para o português]: ele ele vai se
apropria dos seus fundamentos e dos seus mecanismos para recriar uma poética do mito 371
Esta colocação desenleia M'Raihi do rol da crítica superficial da obra de Kadaré nesta questão:
consegue enxergar a presença dos mitos na obra de Kadaré como algo além de uma menção. A crítica
superficial insiste sobremodo na reelaboração dos mitos como essência da poética de Kadaré. Já
M'Raihi, noutra via, mostra que o próprio Kadaré faz dos mitos a sua poética, não os reelabora
segundo uma poética não-mítica. Não obstante, ela ainda vai além.
A autora ainda diferencia lendas e mitos. As primeiras seriam canções e narrativas sobre o
cotidiano e a vida imediata, enquanto os mitos fundamentam um sentido mais universal de vida. Assim,
a obra de Kadaré seria propriamente mítica, porquanto “Para escrever suas obras, ele se remete à uma
realidade atual, depois ele catalisa o que ela contém de mítico, e este processo lhe permite transcender
esta realidade para criar uma outra, à parte” 372. É por isso, então, que, escrevendo uma obra mítica que
fundamenta o sentido universal da vida no contexto de uma ditadura sanguinária que a própria estética
de Kadaré, segundo a autora, seria uma figuração do mito de Prometeu. O próprio autor se investe de
um mito, para vir a ser autor mítico. Kadaré seria um Prometeu moderno, e apenas por isso chega a
Este entusiasmo, no sentido grego de manifestar em si a presença dos imortais, comparece como
travessia em que se configura a trajetória das personagens de Kadaré. Queremos abordar, em especial, a
personagem Bessian Vorps, de Abril Despedaçado, que é um escritor que, no desdobramento da narrativa
do romance, torna-se, ele mesmo, um personagem do mundo e da terra em que decorrem suas próprias
histórias. É, portanto, a realidade se realizando no agir essencial do homem como poiésis que se encena
O Rrafsh, norte montanhoso albanês onde se passa a estória de Abril Despedaçado, é não apenas o
lugar ferreamente regido pelos ditames do sistema do Kanun. Lá, também, ao menos para os habitantes
das cidades, como o escritor Bessian Vorps, sua esposa Diana e seu círculo de amigos, é a própria terra
onde o epos, o mito em sua força plena, ainda é vivo. Lembra-se Diana de que:
Nos dias que precederam o casamento, nos círculos meio mundanos, meio artísticos de Tirana,
só se falava do plano da viagem. A maioria se inflamava: "Você vai sair do mundo das coisas
comuns para o das fábulas, um mundo épico como é raro se encontrar hoje em dia na face da
terra". E fervilhavam os comentários sobre fadas e ninfas dos bosques, rapsodos, Homeros do
fim do mundo, e sobre o Kanun, terrível porém grandioso como nada no mundo373.
Enquanto Bessian, por sua vez, declara, ao entrar com sua esposa no Rrafsh e avistar os
montanheses com a tarja negra no braço – sinal de que procuram cobrar o sangue derramado em suas
372 M'RAIHI, 2004, p. 11 [traduziu-se: “Pour écrire ses oeuvres, il prend donc appui sur une réalité actuelle, puis il
catalyse ce qu'elle contient de mythique, et ce processus d'accélération lui permet de transcender cette réalité pour
en créer une autre, à part”]
373 KADARÉ, 2001, p. 62
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famílias ou que estão marcados pela vendeta para morrer por terem, antes, matado: "(...) 'entramos no
reino dos mortos, como Ulisses. Mas, para entrar nele, Ulisses desceu, enquanto nós estamos
subindo'."374. O Rrafsh, nesta medida, é um mundo velado, como que separado do mundo
horizonte do epos, porém, parece também terrível, na exata medida em que se contrapõe à agitação da
(...) ela [Diana] se defendeu da melancolia que brotava de toda aquela extensão agreste
trazendo à memória fragmentos de sua vida com Bessian Vorps, desde o dia em que se
conheceram e as primeiras semanas de noivado. Os castanheiros ao longo do grande bulevar,
as portas dos cafés, o brilho de seus anéis durante o primeiro abraço, um piano a tocar na casa
vizinha na tarde em que ela perdera a virgindade e dezenas de recortes de lembranças que ela
lançava generosamente pelo descapado sem fim, na esperança de, desse modo, povoar seus
ermos. Todavia, a terra agreste permanecia a mesma. Sua nudez encharcada se mostrava pronta
a devorar num instante não só todas as reservas de felicidade de Diana, mas talvez a felicidade
acumulada por dezenas de gerações da humanidade. Diana nunca vira uma vastidão assim
desesperançada. Não por acaso se tratava dos contrafortes dos montes Malditos375.
A compreensão deste aspecto terrível do mundo do épos não impede Bessian de lançar o olhar
de romancista sobre o sistema do Kanun que vige no Rrafsh, a terra onde ele também enxerga a
pregnância do vigor mítico. Neste sentido, o escritor parecer reconhecer o sistema do Kanun como
extremamente violento, mas, em essência, não seria muito diferente de qualquer sistema376.
Ou seja, o escritor, aquele que atenta para uma vigência da realidade como narrativa, enxerga,
no sistema, além do sistemático. "O amigo, a palavra empenhada e a vendeta são as rotas e os
mecanismos da tragédia antiga – e enveredar por eles é divisar a possibilidade da tragédia" 377 - diz
Bessian à sua esposa. Ele parece entrever a ambiguidade que atravessa o âmbito sistemático. O
encaminhamento que demos anteriormente a esta questão conduziu à percepção deste âmbito como
uma concessão do velamento. O mesmo velamento que o sistema pretende dominar e determinar. É
assim que, levando a discussão sobre o Kanun entre seus pares citadinos, Bessian Vorps conduz o
É com o olhar sensível ao poético que Bessian consegue, portanto, compreender o sentido da
instituição central do sistema do Kanun, a instituição do amigo. Percebe como, no seio do mais rígido,
abrangente, sangrento, desumano e inexorável sistema – como é o Kanun – eclode sempre, em meio à
profano. O mistério numa realidade que se pretende imune ao insólito 379. Aprofundaremos nossa
No entanto, cabe mencionar ainda uma outra percepção que nos advém da personagem Bessian
Vorps, que olha para o Rrafsh sempre atento à força do epos que ali vigora, e não simplesmente para o
Kanun e o modo de vida dos montanheses como algo negativo e exótico. Quando ele e sua esposa
avistam pela primeira vez Gjorg, quando este voltava da kullë de Orosh, a presença pálida e a tarja negra
de gjaks no braço do jovem impressionam tanto Bessian quanto Diana. Então ele fala que o espectro da
vingança que assolara aquele camponês era comparável e até mesmo mais terrível que o que perturbou
Hamlet. Este viu o fantasma de seu pai algumas vezes, clamando por vingança, enquanto aquele via,
todo dia, a camisa ensanguentada de quem deveria vingar, e a mudança de cor do sangue indicavam,
Nenhum sistema, por mais que se imponha, consegue obliterar completamente o vigor poético,
ou seja, de que toda tentativa de determinar o ser como um ente está sempre fadada ao fracasso pelo seu
próprio empenho. Mais que isso: o velamento, ainda que encoberto pela vigência de sistematização da
realidade, permanece velado e eclode como inaudito, como extraordinário no ordinário. De fato, todo
sistema não é senão uma concessão do velamento que se esqueceu que o é, tal como, segundo
Assim, em Abril Despedaçado, a külle de Orosh, o centro de onde emana toda a autoridade do
Kanun, é, ela mesma, um espaço livre de seu jugo. É uma imagem brilhante que Kadaré nos dá para a
diferença entre o fundar do epos pelo narrar, que é sempre originário, e o fundamentar dos sistemas:
"Eu disse que interpretam o Kanun", prosseguiu Bessian em sua explicação, "pois até hoje o
379 KADARÉ, 2006, pp. 75-81
380 KADARÉ, 2006, pp. 106-7
381 NIETZSCHE, 2008
189
A kullë de Orosh era morada do príncipe cuja família, durante eras, ao longo da história,
"exterior". Servido por seus familiares, o príncipe delegara o serviço mais importante a seu primo mais
próximo, Mark Ukaçjerra, o feitor do sangue. Este homem duro, rude, fiel, implacável e desumano como o
próprio Kanun pelo qual velava, estava encarregado das vendetas de sangue. O romance nos mostra, na
questão deste personagem, o homem atormentado e degenerado em sua humanidade, cuja única
obsessão é manter as engrenagens sangrentas do Kanun bem lubrificadas e girando. Desconfia de tudo
que é estranho ao Rrafsh e odeia tudo que é contra o Kanun, o qual é, para Mark Ukaçjerra, uma lei a
ser seguida e cumprida, a determinação de toda a realidade, jamais devendo ser questionada ou
primeira vista dos hóspedes do príncipe, Diana e Bessian. Destes, pensa Mark Ukacjerra:
Pelo que Mark entendera da conversa à mesa, o hóspede escrevera sobre aquelas montanhas de
tal maneira que ninguém sabia se falara bem ou mal delas. Era, em suma, um tipo de
hermafrodita (...)
Para ele, Mark, aquele sujeitinho da cidade não merecia muita confiança. Não se tratava apenas
do impreciso sentimento de hostilidade que o assaltara desde o primeiro instante em que vira o
casal, subindo as escadas com sua maleta de couro nas mãos. Era algo mais, algo que até
mesmo dera origem à antipatia. Era uma espécie de medo deles, sobretudo da mulher. (...)
Uma parte do que seu senhor, o príncipe, dissera, e que para ele eram leis eternas, perdia a
força, desmoronava de manso, arruinava-se assim que deparava com aqueles olhos. (...)
Os aposentos de hóspedes do príncipe já haviam abrigado visitantes importantes, desde
enviados do papa, ou homens da intimidade do rei Zog, até aqueles sábios barbudos que se
diziam filósofos ou eruditos, e nenhum deles despertara em Mark tal temor 383
rei Zog) ou epistemológicos (filósofos e eruditos), não causam tanto temor a Mark Ukaçjerra, o feitor
do sangue, como um escritor, atento ao vigor poético por trás das regras e tradições, e uma mulher
homens das cidades, que não observam o Kanun, como "hermafroditas": estes não são realmente
homens e aquelas são meretrizes por não aceitarem sua condição submissa de mulher 384. Para o homem
assim dominado pela sistematização da realidade, a morte tornada regra, matéria de legislação, tanto
quanto a vida em seu vigor, não pode ser senão fatos opostos, que cabe medir e comparar. Assim pensa
Mark Ukaçjerra:
Em rígida formação, desfilavam por sua [de Mark] imaginação todas as terras aráveis do
Rrafsh. Elas se dividiam em duas grandes categorias: terras cultivadas e glebas abandonadas
por causa de vendetas. Tudo obedecia a um regulamento muito simples: as pessoas que tinham
vinganças a executar lavravam seus campos, já que cabia a elas matar e nada as ameaçava.
Inversamente, as pessoas a quem tocava ser mortas abandonavam suas lavras, pois precisavam
se trancar numa kullë de enclausuramento. Assim permaneciam as coisas até a morte seguinte.
Nesse momento, invertia-se tudo (...)
Toda vez que Mark Ukaçjerra atravessava as montanhas, seus olhos sempre reparavam nas
proporções entre as terras lavradas e as incultas. Os campos abandonados eram a sua alegria.
(...) Clãs inteiros aceitavam passar forme para escapar da vingança, assim como outros tantos
faziam o contrário, adiando a vingança estação após estação e ano após ano. "És livre para
sustentar tua hombridade ou para te infamares", dizia o Kanun. Entre o pão e o sangue, cada
um escolhia o que mais lhe convinha. Alguns ficavam com o sangue, outros, para sua
vergonha, optavam pelo pão385
Depois do pernoite na kullë de Orosh, Bessian e Diana continuam sua viagem pelo Rrafsh.
Ocorre que, em virtude do encontro arrebatador com Gjorg, Diana não tira dele seus pensamentos.
Bessian, percebendo o alheamento da esposa, começa a indagar o motivo de tal frieza e a elucubrar
hipóteses desconfiadas sobre o esvaecimento do amor que ela sentira por ele. Busca, então, convidá-la
para almoçar numa estalagem bem modesta, mas típica do Rrafsh, como se ali, numa daquelas tantas
estalagens lotadas de montanheses marcados para morrer, estivesse, de certa forma, a força mágica
daquele lugar de mitos e lendas. E buscando essa força como uma tábua de salvação, o escritor acredita
A narrativa de Bessian se encerra como uma tragédia, ao adentrar, com sua esposa, o reino dos
mitos do Rrafsh, aberto ao seu vigor. Não é possível, na vigência da verdade da realidade como épos, ser
espectador. A mímesis387 é a dimensão de realização do próprio pelo epos, não uma ideia abstrata de
imitação de uma realidade dada. Pela mímesis, todo aquele que escuta o epos já é dele uma persona, já é
um ser humano atravessado pelo epos, per-sona através do qual ressoa o sentido do epos. Todo ouvinte da
poesia originária da realidade é um personagem. Não poderia ser diferente com Bessian. Enredado nos
dobras da uma realidade que, para além do sistema totalizante que a restringe como realização,
apresenta ao escritor o vigor do épos na presença do mito, Bessian encena e é encenado numa tragédia.
A sua esposa foi tomada pelo pathos do homem no penhor da morte, o homem dos caminhos, o
montanhês Gjorg. Assim, Bessian sente que "perdeu" Diana, como se esta fosse o sacrifício que o
escritor teve de oferecer no altar dos deuses vivos na terra dos mitos, o Rrafsh, que "(...) não fora criado
para os simples mortais"388. Na terra dos mitos todas as rotas se fazem caminhos de realização do
poético389.
Nesta obra, toda história se passa como uma grande farsa, um teatro – no sentido pejorativo do
encenados como uma grande mentira a serviço das intenções do Condutor, que personaliza o sistema
opressor na sua imagem específica neste romance. Em contraposição, todo a verdade vem não da
mentira, da farsa, do teatro no sentido pejorativo, mas da poiésis: a ficção, a criação, o fingere de um
arquiteto que não quer desgraçar nem ajudar ninguém, mas apenas corresponder a um apelo que lhe
O arquiteto sabe que fui o 'culpado' pelo assassinato de Hassobeu, mas não por sua intenção, de
um modo tal que a própria palavra 'culpado' não é adequada. Foi uma decorrência de uma manifestação
originária de linguagem que fez eclodir uma obra-prima por meio de sua correspondência ao apelo
desta linguagem, na arquitetura. O próprio povo vê a obra – a casa do Sucessor – como uma
socialista. Se no âmbito do sistema essa poiésis vai ser convertida em causalidade, em álibi ou motivação
para assassinatos políticos, isso não é um problema da arte, mas do próprio sistema e do que ele faz
com a arte. A ficção manifesta a verdade, enquanto o sistema converte a ficção em reles mentira, em
farsa, em representação390.
Na manhã em que a população é chamada aos diversos auditórios da cidade para ouvir a
pétrea relação hierárquica: cidadãos comuns são alocados em assentos junto a altos funcionários e
pessoas importantes recebem convites para auditórios desprestigiados, enquanto gente simples tem, no
seu convite, a convocação para importantes locais. Além disso, não há a pompa de costume no
palanque, mas apenas uma mesa, com uma cadeira e um gravador. Isso indica uma quebra do sistema, e
discurso teria sido proferido no dia seguinte à morte do Sucessor. Ocorrera na terça-feira, 14 de
das intervenções dos diversos membros, o Condutor declarara que, pelo avançado da hora, preferiria
deixar sua intervenção para o dia seguinte. Entre aquela noite e o dia seguinte, porém, ocorrera a morte
do Sucessor. O discurso do Condutor fora um discurso para perdoar o Sucessor, lamentando por sua
ausência na reunião, mas como se não soubesse que o Sucessor estava morto, pois o Condutor também
declarava a esperança de que “(...) amanhã, quando nos reunirmos outra vez nesta sala, você terá
compreendido melhor o seu erro e estará de novo entre nós (…)”392. O Condutor demonstra afeto pelo
sucessor.
Há todos os elementos possíveis de uma farsa montada para livrar o Condutor de qualquer
suspeita em relação à morte do Sucessor: o adiamento de um único discurso para o dia seguinte é
inverossímil; a coincidência de a morte acontecer naquele dia, também; o fato de o discurso ter sido
mostrado num gravador abre a possibilidade de que seja uma gravação forjada (ou talvez que já tenha
sido feita com essa intenção); o modo teatral como esta revelação é feita ao povo (de modo a mexer
com suas emoções e assim, nublar o raciocínio e facilitar a aceitação da versão oficial); o fato de toda a
ocasião apontar para uma quebra do sistema, dos hábitos, como para confundir as pessoas – que ficam
realmente confundidas, como nunca antes, gente comum com eminências, gente simples com gente
importante393.
Ou seja, na vigência do sistema totalizante, a ficção é uma farsa, uma mentira, criada com o
intuito apenas de reproduzir e assegurar o sistema. A ficção não é, aqui, o sentido da realidade, a
verdade como re-velação, mas uma invenção, uma farsa, uma enganação que oculta a realidade (porém,
ao ocultá-la, mostra-a? Pode o sistema, ao elaborar uma ficção para se reproduzir e assegurar, livrar-se
do caráter revelador da ficção? A obra de Kadaré não responde, mas é um sonoro não).
Então, ao contrário do que possa parecer, o que a questão da referência fundamental entre
ficção e realidade encaminhada na obra de Kadaré tensiona é justamente que apenas pela ficção a
do velamento, fala o mistério de toda poética: ser a obra que opera na leitura. Se, dela, uma per-sona,
uma pessoa na qual ressoa a fala da linguagem em obra. Assim a realidade se realiza como obra na
medida em que o leitor se deixa tomar pelas questões que velam a verdade da realidade, tal como o
autor atenta sempre para o cuidado de que sua obra opera na medida em que é realidade. O
distanciamento impossível entre obra e realidade é, portanto, uma forma de enunciar a unidade de dois
determinismo, isto é, à necessidade frente a qual o homem é impotente. Porém, o próprio humanismo
que informa essa associação estabelece o determinismo como o resultado do conjunto de leis naturais.
Nesta dimensão, o destino aparece como justamente o oposto: o não-determinismo, algo que contraria
as leis e probabilidades. Este sentido de destino, orientado em torno da ideia de Providência, por outro
lado, conduz o homem a um elemento passivo dentro da realidade. É o Destino como fatalismo.
Encontramo-nos, assim, diante de uma contradição: o Destino entendido como determinismo funda-se
num humanismo que só pode aceitar a determinação como leis e probabilidades naturais e, assim, só
pode aceitar o destino como algo que contraria estas leis: “O homem é o animal que se conscientiza do
Destino; ou melhor, de ter Destino, mas aqui o objetivo e o subjetivo praticamente se confundem. Em
outras palavras, o Destino é aquilo que, conscientizando, torna um animal humano” 395. Por isso, o
humanismo exclui o destino ou o considera sob a ótica da mística ou da teologia, como 'ruptura das leis
naturais', como milagre e providência divina que ligam o destino a um fatalismo que apassiva o agir do
homem.
O Destino não julga, age. Não estamos falando do karma. A harmonia do mundo e do pensar
é um problema que sempre cativou os filósofos, prontos a oferecer uma escolha de
interpretações. Mas a desarmonia entre o pensar e o mundo, entre o projeto e a história, não é
fonte de preocupações menores. Daí precisamente o surge o Destino, deusa cega e irreverente,
às vezes perversa396
Esta resposta apenas parece resolver a questão, superando o humanismo. Porém, constitui-se,
na verdade, de sua outra face: tudo o que não é racional, determinável, controlável e planejado segundo
a consciência do homem, é o acaso, a cegueira, a vontade e o irracional. Ou seja, é ainda uma visão que
toma como perspectiva a razão, as causas, o ver como certeza de ter à luz (como se tal fosse possível
sem a sombra, já que a luz plena nos cega), da consciência e da teleologia. Trata-se de uma tradição de
pensamento que pretende se opor à metafísica, quando na verdade faz parte dela, que vai de
Schopenhauer a Nietzsche. É preciso, então, recolocar a questão desde um ponto de vista originário. É
aparece, contudo, como senhor de seu destino. O narrador, ligando o absurdo de ter sido apenas ele o
perdoado num episódio em que, junto com alguns colegas de trabalho, fora interrogado pelo Secretário
do partido ao absurdo de ter recebido um convite de honras do Estado para o palanque no 1º de Maio,
fica se questionando se não teria sido um instrumento cego do sistema que, na medida em que serviu
personagem fabuloso Calvo – que fazia carreira no partido até que foi arruinado porque seu primo fora
preso398. Calvo faz um sacrifício para garantir a segurança do caminho até seu destino, mas chega ao
destino já morto. Alimenta com sua própria carne a águia que o transporta do submundo até o mundo
dos vivos. O sacrifício faz o caminho ser o destino399. Então, o narrador afirma que todos nós temos
que alimentar nossa águia400. O destino parece não apontar, poeticamente, para o fim como um ponto
Em diversos momentos ao longo do livro, fica sugerida uma oposição. De um lado, a busca
pelas causas, um impulso racionalizador e sistematizador oriundo da vocação opressora para o poder
inerente a todo sistema, bem como de uma necessidade de reduzir a realidade a causas, a fundamentar
controle do mundo como forma de – supostamente – superar um destino cego, tão irracional quanto
inescapável, que acomete a humanidade quando esta não se põe a sistematizar a experiência de vida de
De outro lado, a obra parece colocar a ideia de que não é ao Destino como consumação da
existência humana que este empenho da razão instrumental hegemônica quer superar. Antes, mostra-se
que o império da racionalidade, a substituição do télos do sentido pelo das causalidades é que converte-
se, numa inversão dialética, no seu oposto: instaura o reino da arbitrariedade, da violência irracional, da
destruição sistemática, de um sistema que destrói a vida para se preservar como sistema. Este oposto da
Tal oposição e encaminhamento ficam muito evidentes na passagem do capítulo 10, em que o
narrador se põe a recordar o processo inquisitorial que desabara sobre a Rádio-Tevê onde trabalhava,
por ocasião da campanha contra o liberalismo na cultura levada a cabo pelo regime:
Na vigência da fundamentação pela hegemonia da causalidade, não basta que se chegue a uma
causa, dentre outras. É preciso sempre encontrar a causa última, a causa de todas as causas, o
fundamento absoluto e universal – a negação da própria dinâmica viva da realidade como eclosão
physiológica (phýsis na vigência do lógos). Esse empenho se impõe sobre a própria vida: “E aquela fora
apenas a primeira de uma série de reuniões, pelas quais todos passariam como em um calvário, saindo
narrativa como uma máquina de tortura, onde não apenas o mal, mas a totalidade da experiência humana
é macerada:
O mecanismo era realmente diabólico: depois que alguém se violentava, ficava mais fácil
conspurcar tudo em volta. Os valores morais empalideciam a cada dia, a cada hora. (…) À
primeira vista parecia que tudo não passava de uma engrenagem de ódios, acionada pela
maldade, pelo carreirismo, pelo ajuste de contas. Mas quando se examinava melhor, as coisas
eram mais complexas. (…) ali se associava o que parecia inassociável: fúria, compaixão,
arrependimento, o doentio júbilo de quem escapou da pancada, o medo supersticioso de
perder essa alegria403.
libertador acaba por se tornar o seu oposto, uma arbitrariedade fatalista completamente desprovida de
sentido: “Aquilo que ontem parecia ilógico, inacreditável e impossível amanhã deixava de sê-lo, e depois
de amanhã avançava para uma fronteira mais temível”404 [71]. A simples oposição entre lógico e ilógico
não dá conta do Destino enquanto consumação poética do humano. Tampouco a fatalidade, como
oposição ao planejado:
Na busca pela causalidade final que instaura o reino da arbitrariedade destrutiva, o próprio
questionamento é obliterado: “Ninguém perguntava o que estava acontecendo nem por quê. Tampouco
se cogitava indignar-se, tal como não faz sentido encolerizar-se contra um raio que cai”406. Assim, a
calculadores da racionalidade instrumental causal, que não pode ser erroneamente entendida como uma
metonímia para afirmar que a ação do mecanismo de tortura reproduz a vigência da própria natureza (phýsis)
que, aqui, viemos apresentando em um entendimento physiológico como uma terceira via – como Destino
dialeticamente equivalentes.
Este entendimento é, a nosso ver, errôneo, não apenas porque o narrador do romance fala do
processo como um mecanismo de negação da vida, mas porque não se trata de metonímias, mas de
metáforas, de imagens capazes de concretizar com força de evocação o conjunto de sentido que uma
linearidade narrativa pura (e não poética) não conseguiria mostrar plenamente. Tanto assim que,
imediatamente depois, o narrador continua pensando sobre o que fora aquele terror:
O mecanismo funcionava assim por algum tipo de cálculo, segundo algum princípio que
espalhava a confusão e sobre a qual se erigira o Estado, intangível como o Destino em pessoa?
Ou uma misteriosa casualidade é que regia seu funcionamento? Ao que parecia, o inopinado
do golpe, a imprevisibilidade da origem e a direção do raio, e principalmente a escolha às cegas
das vítimas despertavam, com o terror, uma lânguida admiração pelo Estado407
Ou seja, ele coloca uma opção. De um lado, o Estado – neste romance, uma imagem para o
Dirigente, um homem, que conduz toda a humanidade a partir de seu plano, do objetivo, da manutenção do
Antes de prosseguirmos, é preciso uma breve observação sobre o 'casual'. O 'casual' não é
simplesmente o mesmo que 'desprovido de causa', pois a própria palavra 'casual' já remete a 'caso',
'coisa' e 'causa'. O 'casual' chega a ser confundido com o 'desprovido de causa' porque, originariamente,
se refere ao caso específico, isto é, ao acontecimento concreto, não a uma causa universal. Para o pensamento
fundamentador, a única causa verdadeira é aquela que tem caráter universal, é causa de todas as causas.
Busca-se, neste pensamento, sempre, e em todo âmbito, a causa primeira e última do conjunto dos
fenômenos. Assim se procede porque se busca fundamentar o pensamento como sistema. Como
sistema todo abrangente, o pensamento abstrato pretende poder se fundir com a realidade. Já o 'casual'
remete para o fundar, e portanto não é simplesmente o 'desprovido de causa'. Para o casual, uma causa
não é e nem pode ser a subsunção do conjunto da realidade num ente do pensamento. Não importa o
quão magnânima possa se considerar tal causa. Para o 'casual', a realidade se dá como acontecimento
concreto específico, como dinâmica de desvelamento da coisa na qual cada caso é um caso. Em respeito
a esta especificidade, aquiesce acontecimento do próprio em sua renúncia de abarcar como pensamento o
conjunto da realidade.
misterioso, não o desprovido de causa. Esta diferenciação que aqui tratamos brevemente reduplica
aquela outra, antes mencionada: o Destino não é a irracional ausência de projeto existencial, tampouco
homem, ou seja, como se fosse uma posse do homem, em vez seu próprio. O determinismo arbitrário e
homem.
Então, retomando nosso diálogo com A Filha de Agamenon, vimos que o narrador nos coloca
diante de uma disjunção. De um lado, o Estado – neste romance, uma imagem para o sistema opressor
homem, que conduz toda a humanidade a partir de seu plano, do objetivo, da manutenção do sistema; de
outro lado uma misteriosa casualidade. A resposta dele, citando as forças da natureza metaforizadas (o raio)
– que agora podemos compreender como metáforas do processo humanista de humanização da phýsis
no conceito de 'natureza' -, mostra que o terror gerado pela conversão dialética do causalismo racional
em determinismo arbitrário faz com que aqueles que são enredados em seu mecanismo destrutivo sejam
tomados por “(...) uma lânguida admiração pelo Estado”408. Ou seja, é o próprio sistema racional
(Estado) que se apresenta em sua contraparte dialética (mecanismo destrutivo) como uma forma de
Desta forma, a questão do Destino é, assim, uma enunciação da liberdade para além da
causalidade. Assim compreendida, fica aberta a questão de ser a liberdade uma espécie de causalidade
ou de ser a causalidade uma questão de liberdade. Sendo a causalidade o traço fundamental da essência
do ente como presença constante, se consideramos a segunda possibilidade – causalidade como uma
questão de liberdade –, resulta que a essência do ente como presença constante é uma questão de
liberdade409.
Por que tomar a segunda via da questão da liberdade, em vez da via tradicionalmente tomada
pelo pensamento metafísico? É preciso pensar o que é causalidade, para chegar à maneira certa de
colocá-la em relação à liberdade. Será ela determinante da liberdade, como se pensa normalmente, ou
será o contrário? A causalidade é uma das categorias dos entes que, como ob-jetos, isto é, como aquilo
que vem ao encontro da experiência humana, só podem se manifestar a partir da compreensão do seu
ser. Esta compreensão, portanto, precisa viger como um deixar vir ao encontro. Neste deixar vir ao
encontro a compreensão abre-se para o que no ente é a vinculação com o ser. O decisivo é que, para
deixar a o ente em sua vinculação com o ser vir ao encontro, a compreensão – seja teórica ou prática –
A causalidade, por sua vez, é apenas uma das determinações ontológicas dos entes, dentre
liberdade e não o contrário”411. Disso se conclui que a compreensão da questão da liberdade “(...)
sempre e necessariamente inclui aquele que realiza a apreensão, convocando-o à raiz de sua existência, e
de tal modo que ele se torne essencial em conformidade ao apelo de sua essência própria”412.
remete à posição mesma do homem na realidade. Não sendo prévia ao homem – porque é sentido –
tampouco por ele determinada – porque seu sentido não é conceitual – a realidade impõe uma dinâmica
poética própria à obra em que ela se realiza. Próprio é, também, na obra, o autor/leitor fazendo-se obra
na medida em que a obra mesma opera e realiza. Este agir essencial concretiza o humano como diálogo
poético. Esta é a posição que, de fato, é uma composição. Leva em conta sempre a tríade de dois
reunidos no seio do que se vela. É portanto, a questão do Destino, assim pensada, a mais radical
oposição ao humanismo. A obra de Kadaré nos permite pensar este acontecimento do próprio, esta
apropriação do humano em homem em três vias, que concretizam em narrativa a poética do Destino:
Dizemos a questão por meio da palavra grega eros não por nenhum fetiche com a língua. Nossa
atenção é para a Linguagem que nesta palavra se fala. Eros é dito como forma de enunciar a unidade
410 HEIDEGGER, 2005, p. 207 [traduziu-se: “Freedom is the condition of the possibility of the manifestedness of the
being of beings, of the understanding of being”]
411 HEIDEGGER, 2005, p. 207 [traduziu-se: “Causality is grounded in freedom. The problem of causality is a problem
of freedom and not vice versa”].
412 HEIDEGGER, 2005, p. 208 [traduziu-se: “(...)always and necessarily includes the one who does the grasping,
claiming him in the root of his existence, and so that he may become essencial in the actual willing of his ownmost
essence”]
201
mítica de amor e paixão, isto é, entre doar-se e ser capturado. No segundo capítulo de A Filha de
como presença de mito no sacrifício que Suzana faria para ficar com seu amado, o narrador do
romance:
Não se tratara da crença de que o sacrifício aplacaria os ventos que detinham a frota,
tampouco de um princípio moral sobre a igualdade dos filhos da Rússia. Era simplesmente o
cínico cálculo dos trianos. (…) O que seu pai exigia dela parecia o de menos, mas era de mais.
Ainda que sem sangue, era digno de comparação com o mais sanguinário sacrifício. Sem
dúvida mais monstruoso que todos os ataúdes (…). Pois uma secura cada vez maior aguardava
a vida de Suzana. Aquela vida que, como um cacto do deserto, a custo preservara seu
derradeiro sumo. (…) E nenhum Calcas dera conselho algum, nem o pai de Suzana o
arquitetara. Fora seguramente o grande Dirigente, que o designava como seu sucessor, quem o
exigira (…) Quem sabe o Dirigente compreendera aquela natureza [a natureza de Suzana,
erótica, no sentido de que dá a eminência própria ao amor como sentido de vida] e de alguma
forma dissera: Escolha um dos dois machados. Caso não seja capaz de empunhar o
ensangüentado, escolha o incruento. (…) aquele segundo machado se anunciava a Suzana. O
país, cansado do outro, o sangrento, submetia-se a um novo golpe413 .
Ou seja, o sacrifício de Suzana é pior porque não a mata, ao tirar-lhe a vida. O machado
incruento tira-lhe a vida sem matá-la, reduz a vida ao bíos, uma vida sem potência de vida, uma bíos sem
zoé. A morte, como sacrifício é, pelo menos, algo humano. Só o ser humano dá sentido para a morte
como o mistério, o-além-do-qual-nada-se-sabe. Já ter uma bíos que não encontra mais correspondência
com a zoé é condenar o homem a uma vida não-humana, condenar a viver o tempo como mera
duração. Afinal, trata-se de secar o viço de Suzana, de aprisioná-la num ascetismo em nome das ideias
constitutivas do sistema (o Estado), tirando-lhe a potência de vida – que nela (e no próprio humano,
como veremos) é a potência erótica, eros como articulador de empenho, como a mais séria – e prazerosa
– de todas as questões.
Que esta seja a essência originária de Suzana em oposição ao sistema opressor fica dito, também, em O
Sucessor, quando se comparam os membros do governo, os chefes do sistema, à jovem: “Eles tinham
outros vícios na vida, tinham os congressos, as bandeiras, os hinos, os sepulcros dos mártires, ao passo
que ela tinha apenas aquele... seu corpo... sem limites...”414. Porquanto é a questão do querer e a própria
palavra questão liga-se, etimologicamente, ao querer. Trata-se do pior sacrifício, que é aniquilar a fonte
da vida. Isso fica claro nas palavras com que, pouco depois da passagem citada acima, encerra-se o
romance:
Aqui, a narrativa faz um salto brilhante do sacrifício da existência amorosa de Suzana, da zoé de
sua bíos, para o sacrifício da própria natureza, ao converter a imagem do amor na origem física da vida,
na fonte de toda a vida, a natureza. A natureza foi uma construção que se opôs ao lógos quando este foi
entendido como racionalidade, discurso e, atualmente, cultura. A imposição humanista do sistema sobre
a realidade, ao tentar revolucionar pela racionalidade a realidade que, na verdade, concede suas
condições de existência, empertiga o viço da própria phýsis o vigor de eclosão como sentido, convertendo-a
numa natureza oposta ao lógos (entendido como racionalidade, discurso, cultura), desprovida de sentido.
Nas palavras finais do brilhante romance A Filha de Agamenon, onde o narrador, após descobrir
o sentido do sacrifício, pensa, finda a passeata do 1º de maio: “Tudo se ia sucedendo como outrora,
talvez ainda mais cruelmente. No porto de Áulis, os navios gregos zarpavam, um após o outro, rumo a
Tróia. (…) A campanha de Tróia começara. Nada mais detinha o ressecamento da vida” 416. O mito, a
Guerra de Tróia, colocado no fim do romance, diz que a destruição da vida é o início. Mas este, porém,
travessia da existência, chega ao fim. A narrativa, em sentido originário, não é nem natureza, nem
Este modo como o sacrifício se refere ao conjunto da poética do romance de Kadaré aqui
pensada nos remete a uma experiência de entrega de si ao destino. Entretanto, isso ainda não dá conta
do todo do vigor de éros como consumação poética. É verdade que o romance A Filha de Agamenon
415 KADARÉ, 2006, p. 86
416 KADARÉ, 2006, p. 87
203
coloca de modo muito claro a oposição radical entre os sistemas de dominação e conceituação do real e
o acontecimento da realidade como destino humano pelo sacrifício no horizonte de éros. O romance,
porém, ainda não nos mostra como eros se dá na dimensão do diálogo, que, reunindo dois destinos,
inaugura a possibilidade de que o que “está” entre dois destinos se mostre como o vigor velado de eros,
que é amor, mas também paixão, é tanto entregar-se como ser entregue. “Um destino humano entrega-
se a um destino humano e o serviço do amor puro é manter desperta essa entrega exatamente como no
primeiro dia”417. Esta belíssima colocação de Heidegger nos mostra como a dobra inaugura o pleno
vigor de eros, como o amor de entregar-se e a paixão de ser entregue. Vejamos como esta dinâmica se
A certa altura da narrativa de Abril Despedaçado, Gjorg se vê envolvido nas regras inexoráveis da
vendeta regida pelo Kanun quando ainda não conhecera o amor. Sua noiva prometida falecera antes de
se casarem418. Porém, a partir desta falta, desta retração da possibilidade de vigência do amor no destino
de Gjorg, o romance abre algo ainda mais originário: a possibilidade de realizar éros não apenas como
entregar-se, mas como ser entregue ao destino para além de qualquer determinação subjetiva. Afinal, é
quando decide aceitar o extraordinário e a incerteza dos caminhos que Gjorg vem a encontrar Diana.
Desde a primeira vez em que se veem, um encantamento mútuo se apodera de Gjorg e Diana. Para ela,
"Nunca um olhar de homem a perturbara daquela maneira. Talvez fosse pela presença da morte,
pensava ela, ou quem sabe pela compaixão que ele despertava por ser tão belo"419.
Tal como a atenção ao poético faz com que Bessian perceba o vigor da realidade no Rrafsh
assolado pelos ditames do Kanun (cf. Tópico 5.2), para Diana, este vigor se abre a partir de um encontro
fundamental, com Gjorg, em que se instaura uma dinâmica de paixão . Esta dinâmica também a lança
no aberto do sentido próprio em meio à realidade desolada do sistema, de modo que é capaz de
compreender no ordinário, o extraordinário. À noite, pouco antes de dormir, durante o pernoite que ela
tem com seu esposo na kullë de Orosh, Diana olha para a "antecâmara dos gjaks", onde os montanheses
Nesta bela e intensa passagem, já se antecipa que será esta instauração da dinâmica da paixão
que colocará Diana no caminho da consumação de si. O romance encaminhará a transmutação deste
personagem-questão, de uma mulher reclusa, passiva e tímida, à sombra do esposo, um famoso escritor,
numa pessoa disposta a se entregar à plenitude do sentido do sacrifício para consumar aquilo que ela é:
"(...) entendeu que estava disposta a muita coisa por aquele reencontro"421.
A entrega de si, para Gjorg e Diana, lançados na dinâmica de eros articulada na narrativa, como
veremos logo a seguir, vai convocá-los a reconhecer, nesta entrega, a renúncia do ser entregue ao
mistério, ao que falta e se oculta. Entretanto, é oportuno fazer uma breve observação sobre éros em
sentido não humanista, isto é, não como sentimento, como tendeu a ser entendido desde o platonismo
de Plotino. Vamos retomar o pensamento de Platão, de modo muito sucinto, apenas para abrir um
pouco mais nossa situação hermenêutica da questão acerca da dobra de eros, como amor (entregar-se) e
como páthos (ser entregue). A primeira face da dobra é relativamente fácil de compreender, porque é
mais próxima da experiência comum (embora não exatamente igual, pois não se trata simplesmente de
como vigor velado da realidade do amor. Deste vigor do amor nos fala Platão no Fedro422, a partir do
mito da queda da alma, que a faz buscar um retorno à origem que não é experienciado como uma
ausência, uma falta. Também no Banquete423, quando nos fala de éros, diz-nos que seu pai é o Ganho
(Pónos) e sua mãe, Penúria (Penía), e que éros é como a mãe, por isso, sente falta do pai e aspira o ganho.
O que Platão encaminha, belamente, aqui, é que éros, para ter, precisa renunciar, ou seja, que a busca
pelo que falta é o próprio ganho que vigor éros. Por isso, éros é tanto amor como paixão. Por que
dizemos paixão?
“Paixão” é uma palavra cuja raiz está presente tanto no grego (path-) como no latim (pati), de
onde derivam também as palavras: passivo, paciência. Opor o páthos à vigência do agir reconduz esta
discussão para o âmbito da subjetividade, para fora da poética. Aristóteles contrapõe ação e paixão, mas
de uma maneira que não os referencia no sujeito. A palavra que Aristóteles usa para dizer “agir”, nesta
contraposição, é sugestiva: poieîn. É a ação como poiésis que se contrapõe ao páskhein, a “não-ação” da
paixão, segundo Aristóteles424. Portanto, não é qualquer agir, mas o agir essencial, de tal modo que a
“não-ação” da paixão é a não-ação essencial, que consuma a realidade se realizando como homem não
Assim, a dobra de eros constitui na busca em que o amor procura a si mesmo, e na paixão em
que se entrega ao que procura, na medida em que o que se procura se mantém velado como ausência.
Não tenta fugir pelo caminho que lhe afastaria daquelas terras, daquelas montanhas, do Rrafsh onde o
habitar circunscrevia a existência no dizer do epos. Ele prefere continuar lá e ter o seu Abril dividido em
uma metade branca e outra negra, seu Abril despedaçado, a tornar-se um lenhador ambulante nas cidades
apenas para escapar da morte425. O que o move, parece-lhe, a princípio, é um desejo de não abandonar
sua terra: "Pai, nestes dias que me restam eu queria sair para ver mais uma vez as montanhas"426. No
entanto, ao partir, ao tomar caminho, acatando o destino como mistério – não sabia quando a morte
viria, mas era sua maior certeza – não apenas o Rrafsh que há tantos anos habitava se lhe abre com toda
a sua vida427, mas também o próprio sentido, enquanto penhor de sua caminhada, visita seu
pensamento:
toda teimosia, que tinha esmagado e pensara haver sepultado bem fundo, mas que estava ali,
bem no centro do seu ser: ele partira em viagem não para ver a s montanhas, e sim, antes de
mais nada para ver de novo aquela mulher. Procurar, sem nem saber por quê, aquela carruagem
(...)428
fundamental ao impulso da paixão coloca-se de modo pleno para Gjorg enquanto anda pelas
montanhas em busca da carruagem em que viaja Diana: "Por duas ou três vezes deparou com seu
rastro, mas o perdeu novamente. A proximidade da morte, bom como os caminhos percorridos,
aumentava o desejo de encontrá-la. Agora ele já não escondia: estava encantado com aquela mulher" 429.
Ele sabe que, andando pelas estradas, finda a sua bessa [ver ANEXO I], está andando pelos caminhos da
própria morte. Para ele (e para Diana também, como veremos adiante), no entanto, esta diferenciação
entre morte e éros já não cabe, porquanto acatou, de éros, tanto a procura, quanto o páthos.
Diana, por sua vez, faz da viagem - que antes lhe parecera um tanto enfadonha (mais uma
forma de saciar as curiosidades e veleidades intelectuais do esposo do que algo prazeroso para si
mesma), uma busca, uma procura, já tomada pela paixão. Busca, na sua carruagem que cruza o Rrafsh,
rever aquele montanhês marcado para morrer, Gjorg.430 Após visitarem o belo sítio lacustre de Água
Branca de Cima, Diana e Bessian dirigem-se a uma aldeia próxima. Lá estão Ali Binak e seus auxiliares.
Há, na aldeia, também, uma kullë de enclausuramento, onde os gjaks cujo período de bessa já expirara se
lugar, apresenta o homem que, ao escapar da morte como mistério do destino, escapa também da vida.
Qualquer ação, em sentido essencial, é uma realização do destino, portanto. Neste agir, o homem não é
sujeito do destino. Tampouco seu objeto. Lançado entre as malhas com que a poiésis de sua travessia se
entretece nos interstícios do não decidido, o homem se humaniza no aconchego do aberto que o
encerra. Cercado por essa abertura, o encobrimento está posto como imagem nestas kullë, que são
como que vazios, espaços de ocultamento no seio do próprio sistema, uma fenda de vazio no muro da
onipotência das determinações absolutas da realidade. É um lugar onde, também, o agir é uma espera e
a espera se dá como ser aguardado, se procurado, ser buscado. É a este lugar que Diana se dirige,
tomada pelo vigor do pathos, procurando Gjorg 431. Ela caminha para o lugar do encobrimento.
Muito magistralmente, o romance deixa ver este misterioso enigma como o mistério que é. Não
nos diz claramente o que aconteceu dentro da kullë. Diana encontrou Gjorg? Fora violentada por
montanheses? Vira o rosto da própria morte estampada nos homens que se entregaram ao
silêncio que se lança sobre Diana, após a moça sair da kullë. Depois deste episódio, o casal decide
abandonar o Rrafsh. No silêncio e na visão do mistério do encoberto, o epos chega a consumar o seu
sentido, no dizer que permanece por ser dito e que só pode ser na medida do narrar432.
Gjorg, também, erra pelas estradas do Rrafsh à procura de Diana. Tomado pelo pathos,
atravessado pelo empenho da busca, o homem se lança nos caminhos como indicação daquilo que não
tem e, portanto, lhe é próprio. Gjorg caminha os caminhos da morte, em busca daquilo que move sua
vida, então: a paixão que surgira, incontrolável, contra seus planos e à revelia de sua consciência.
Encontra na morte a união com a busca por essa falta que o pôs a caminho, à procura de, no outro,
pela paixão, encontrar a si mesmo. Buscando aquilo que lhe falta, Gjorg encontra apenas a própria falta,
o retraimento da morte. Neste momento, encerra-se a narrativa e o sentido se abre no silêncio que rege
todo narrar433.
Mark, o protagonista do romance As Frias Flores de Abril, encontra-se no limitar entre o sonho e
vida “real”. O romance deslinda um horizonte que pouco a pouco constrói a unidade entre sonho e
realidade onde o sonho remete à experiência da morte, do que está encoberto, submerso e permanece
assim, e o viver manifesto à luz da realização deste encoberto, como uma consolidação das próprias
lendas das quais a realidade parece (apenas) se distinguir. Esta duplicidade da experiência da realidade
articula uma visão geradora, “positiva”, feraz e profícua deste lado “morte” da vida que preside a
narrativa.
Durante o delírio sobre o canal de Otrante, no contracapítulo VI, lemos passagens como:
"Nessa não-vida, parece que tudo acabou, que não se passa mais nada. Ora, é exatamente o contrário.
Não existe o fim, tanto quanto não existe um verdadeiro começo" 434 e "Um espelho de prata polida,
jogado ali não se sabe de onde, talvez pela própria Morte que, na nossa cegueira, vemos como invisível, e
que erra no meio de nós"435. Esta experiência da visão do invisível que o romance fornece por meio da
narrativa da unidade entre velamento e manifestação como sonho e experiência desperta articula uma
possibilidade de compreensão da consumação da morte não como fim ou escatologia, mas como uma
fala em que ressoa o vigor do mito. Em sentido próprio, isso quer dizer que
Retomar o que articulamos nos capítulos 4 e 5 como dizer mítico no narrar do épos, acerca das
questões de história, verdade, mundo e terra, remete, então, como dimensão própria do
questionamento da consumação como morte. Já vimos que como éros essa dobra se articula no
romance como a essência ambígua do agir consumador. Em relação à consumação como morte, o mito
retorna não apenas porque as narrativas míticas não raro nos conduzem por catábases e anábases, mas
também porque é a linguagem em que o duplo da realidade se mostra e, assim, podemos compreender
como advém essa duplicidade da morte como fim e origem, como arché e télos do Destino.
Em Abril Despedaçado há como que uma identificação imediata entre Gjorg e sua vítima. Ao
matar Zef Kryeqyq, Gjorg torna-se ele mesmo um gjaks, aquele que cobra o sangue devido em
conformidade com o Kanun. Nos intermináveis giros deste férreo sistema de morte, o gjaks, ao cumprir
sua tarefa de matar, torna-se a próxima vítima. Como estes mecanismos são irrefreáveis, é certo que ele
virá a morrer. É como se, então, já estivesse morto. Enquanto frequenta o almoço fúnebre de sua
vítima, pensa em como será o seu próprio. Enfim, quando Gjorg é morto, o romance manifesta esta
identidade nas diferenças entre vida e morte de modo lapidar: "Por um instante perdeu a consciência,
depois voltou a ouvir os passos e voltou a pensar que eram os seus, que era ele e ninguém mais quem
fugia assim, deixando para trás, estendido no caminho, seu próprio cadáver que acabava de matar"437.
A presença velada da morte como desencadeadora do destino pode ser dita na linguagem das
imagens-questões, de modo tal que a narrativa inaugura o horizonte próprio para o pensamento do
vigor velado. No romance em questão, é a necessidade de vingar o irmão conforme as leis do Kanun
que leva Gjorg a se lançar nos caminhos da morte onde se vê tomado por éros. Esta presença velada do
apelo da morte como desencadeador aparece na passagem em que a camisa de seu irmão, pendurada no
telhado da casa com a mancha de sangue por um ano, à espera da vingança, pode finalmente ser
lavada438.
Não é somente o promissor que eleva o mistério a ser o ponto de fuga de um destino traçado
no invisível. O ominoso também faz arremeter contra o desconhecido a certeza. A morte é a maior
certeza e a maior incerteza. Dela nada sabemos, mas é o mais certo. É o próprio horizonte onde se
desenvolvem as certezas. A certeza da morte divide sua vida em duas: uma, a anterior à sua entrada nas
engrenagens sangrentas do Kanun, sem muito sentido, a outra, marcada pelo sinal da morte, parece ser
vigorosa. Gjorg sente que sua vida está dividida em dois a partir da morte de Zef, e a parte que tem
pela frente é, ao mesmo tempo, já uma espécie de morte e também a parte mais intensa de sua vida439.
Este pensamento se aprofunda, conforme trilha os caminhos da Estrada Grande e "(...) lembrou do pai
e de suas palavras: "Enquanto não vingar a morte de seu irmão, não tenha outra vida nem pense noutra
coisa". Sorriu. Não ter outra vida até o dia de matar. Depois, logo depois, assim que ele próprio fosse
designado para morrer, aí começaria sua vida"440. Noutra passagem, enquanto espera para pagar o
tributo do sangue, na kullë de Orosh, Gjorg conversa com um outro montanhês que também aguarda:
"Quando aconteceu?"
"Anteontem."
"Quando aconteceu..." Repedida em voz baixa, a pergunta subitamente revelou que poderia se
referir ao término da construção de uma casa, a um casamento ou ao nascimento do primeiro
filho.
Nunca fizera nada daquilo, só construíra uma morte, sua única propriedade neste mundo441
Ainda assim, é preciso, contudo, acolher a morte como o mistério velado da vida. Isso é, entregar-
se à vida como quem se destina ao recolhimento. O contrário é a atitude de fazer do risco de morte um
meio de vida, no qual a vida se entende como subsistência material e miséria existencial. O repúdio
diante do desumano pela reificação da tensão entre vida e morte aparece, por exemplo, na passagem em
que o médico auxiliar do famoso exegeta do Kanun, ali Binak, fala sobre a banalização da morte que o
sistema sangrento faz surgir, como forma de sustento, a contraparte desumanizadora da vigência do
"O senhor talvez saiba que, de acordo com o Kanun, uma ferida que não seja compensada com
multa passa a ser equivalente a 'meio sangue', meia morte. Portanto, no entendimento do
Kanun, um homem que foi ferido está meio morto, é... como explicar... um semi-espectro.
Conseqüentemente, dois ferimentos não saldados se igualam a uma morte. Assim, se alguém
fere duas pessoas de outro clã ou provoca dois ferimentos no mesmo indivíduo, a não ser que
pague a multa por isso, passa a dever uma vida."
O médico se calou outra vez por um momento, para lhes dar tempo de digerir suas
palavras.
"Tudo isso gera problemas complicadíssimos, especialmente econômicos", prosseguiu.
"Vocês olham para mim com espanto, mas eu repito: especialmente econômicos. Há famílias
que não pagam as duas multas e aceitam entregar uma vida humana. Outras estão prontas a
enfrentar a ruína, a pagar mesmo que sejam vinte ferimentos, apenas para ter o direito de,
depois que a vítima estiver curada, volta a atirar nela. É assombroso, mas ainda há mais.
Conheci um sujeito em Lugjet e Zez que por anos a fio sustentou a família com o dinheiro que
recebia pelos ferimentos provocados por seus gjaks. Ele escapou de várias tocaias e meteu na
cabeça que, graças às artimanhas que inventara, era capaz de escapar para sempre dos tiros,
criando assim o ofício de viver às custas das próprias feridas.”442
retrai como o que não é mais presente, relacionada com a memória, estando sempre presente como
lembrança no seio de uma família, na medida em que esta morte está nos contornos das regras do
Kanun mostra como a própria vigência de memorização e repetição de suas proposições tem como
originário, como referência fundamental, o vigor velado daquilo que se retrai ao modo da ausência. É
preciso, então, aqui, diferenciar memória de lembrança, bem como esquecimento da simples falha de
memória, para compreender em que medida, mesmo sendo o Kanun lembrado e relembrado, repetido
do que se vela e retrai e, tratando-se de linguagem, daquilo que não é dito em tudo eu é dito.
A morte está como uma chama brilhando na vida do clã – morte que, a uma leitura desatenta,
se escuta, pode ser entendida como o cumprimento de uma lei racionalmente minuciosa e prescritiva
que tudo abrange aprisionando o homem. Ocorre que o sentido de desdobramento da obra em questão
se abre como que a mostrar que é pelo vigor do inaudito e do desconhecido – manifesto como acaso,
como inesperado – que a morte se dá não como cumprimento de proposições, mas como consumação
do Abril despedaçado nos fala, assim, de como, mesmo quando todas as possibilidades estão previstas e
calculadas, todas as ações e pensamentos prescritos – rito cujo sentido se perdeu – por leis e
proposições de uma racionalidade que de tão absurda é inexorável, tal inexorabilidade não é senão uma
concessão do não-dito, do silêncio em cada fala, do desconhecido em tudo que está definido, da
inaudito em cada previsão, do extraordinário. Concessão que se esquece quando a lei propositiva é
tomada em si, confundindo-se com o real – tornando-o opaco à compreensão – arvorando-se como se
fosse o fundamento de mundo e terra, do homem e de todas as ações. Ao realizar a morte e todas as
leis do Kanun e em verdade apropriando-se daquilo que lhe é próprio, Gjorg, em sua caminhada de
consumação do Destino reconduz o dito e lembrado à dimensão de memória, na qual tudo que é dado
é acolhido como uma concessão do que se renuncia – a imagem poética para isso é esta referência entre
vida e morte, tal como magistralmente narrada na obra: Gjorg morre, está no caminho da morte, para
encontrar o sentido e consumar a plenitude da vida. Vive e caminha como aquele que vive na medida
em que aceita e se dispõe – na liminaridade de ação e não-ação – a estar lançado no horizonte da morte.
Nesta referência fundamental entre vida e morte encontra-se o sentido do que se diz com a palavra
Destino. Não um determinismo que nos faz passivos – atendendo docilmente a um chamado -,
tampouco uma escolha que nos faz ativos – colocando-nos não em questionamento, mas proferindo
respostas. A passagem de grande densidade poética que responde, sem definir, esgotar e controlar a
questão, isto é, que responde questionando a questão, questionamento que tenciona destino e determinação
em sua dimensão poética, para nós, parece se apresentar quando a obra nos diz, de modo simples e
212
Já em A Ponte dos Três Arcos, a questão da consumação como morte se desdobra a partir da
imagem do sacrifício em sua relação fundamental com o eclodir da obra. É pelo sacrifício do
Emparedado – o homem que se deixa fundir com a obra, ou seja, que se sacrifica, sendo emparedado
num dos pilares da ponte, para que esta possa ficar erguida – que se compreende como, também, a obra
é colocada como uma captura do leitor que deve inevitavelmente se deixar enredar pelas questões da
obra para que possa eclodir e acontecer a dimensão poética. Esta dimensão instaura um horizonte em
que o próprio leitor se faz obra na medida em que, na sua leitura, a obra se faz. Mas é o modo e a
linguagem com que o romance abre a compreensão desta questão em sua concretude que é, de fato, o
indispensável, na medida em que apenas o narrar inaugural concede espaço para que o leitor se faça
A lenda do emparedado torna-se, em A Ponte dos Três Arcos, uma parábola sobre a condição
humana enquanto travessia de consumação do que é. O homem faz a obra, por um lado e, embora
possa se acreditar 'cheio de méritos' (os construtores, envolvidos apenas com o aspecto técnico da
construção), na verdade o homem também se faz homem pela obra: o que fica claro na passagem em
que se faz referência ao emparedado como se nascendo da ponte. Por outro lado, é preciso sacrifício
para que a ponte se erga, não importando os méritos dos homens e, para haver esse sacrifício, já se deve
partir da vida, e isso não é obra do homem, já tem que se dar. Da mesma forma, é preciso que haja rio e
margens (terra), para que possa haver ponte (obra e mundo). É justamente o sacrifício (renúncia,
retraimento a partir do que se dá, a a vida) que pode reunir a terra (rio) e o mundo (ponte), que antes,
diante da técnica, não se conciliavam, impedindo a construção da ponte. Não há, nesta obra em sentido,
pleno, separação entre natureza e cultura (rio e ponte antagonistas), mas uma unidade de mundo e terra.
Assim, o homem acaba se tornando parte da ponte, fundindo-se com a ponte (isso também está na
figura do emparedado). Nesta fusão, ele aparece como aquele que está entre: entre as margens, sobre o
rio que é fluxo contínuo (a realidade verbal e não substantiva), na ponte, ou seja, no caminho, e também
entre a vida e a morte. Neste retraimento em que se coloca no 'entre' é que ele permanece.
Tal como a construção da ponte se deixa ver em seu processo de produção, o autor 'deixa
aparecer' o processo de feitura do romance numa passagem em que ele 'registra' textualmente um
processo de escolha da melhor expressão. Isso, porém, está como um fingimento, afinal, não é por
acidente que tal processo aparece. Este processo é fingimento. Um fingimento que deixa ver a realidade
adivinhou-se ou, melhor ainda, sentiu-se, naquela manhã, que a barraca não estava mais vazia"444.
Diversas vezes, como de propósito, o autor nos deixa ver, como na passagem anterior, a escolha de
palavras, como se estivéssemos ali, no momento da leitura, vendo o romance em construção, tal como
vemos a ponte sendo erguida ao longo do romance. Esta téchne apresenta de modo brilhante a
referência entre a obra narrada (ponte) e o narrar da obra (romance) como sendo, fundamentalmente,
É nesta dimensão em que o romance que narra uma obra (a construção da ponte) é uma obra
anteriormente como âmbito em que se pode compreende a consumação como morte no horizonte do
sacrifício poético. De fato, o romance nos fala da identificação de Gjon com a ponte e o emparedado
em seus sonhos445.
Mas fica dito, também, que não é pelo conhecimento técnico da obra que se pode chegar a
compreender como ela opera e se faz obra: no romance, o engenheiro responsável pela ponte fala a
Gjon das pontes sem abismo, as pontes que não cruzam, que não ligam margens, mas feitas segundo o
prazer, o capricho, como sendo aberrações446. O engenheiro, o homem da episteme, não compreende a
ponte senão a partir dos termos que ela liga. Não compreende que o vão é que concede elevação e
altura, que é o vazio que se cruza que concede lugar e sentido à ponte. Tanto que este engenheiro fala a
Gjon sobre a ponte em termos de fórmulas que, para o monge, fica claro, não tocam no mistério da
obra447.
sacrífico, na qual a consumação como morte faz surgir o homem como obra, e a obra como homem. O
Agora, os rapsodos da Dois Robert [nome de uma estalagem] já não eram os únicos a fazer
previsões mais sombrias. Não, atualmente falava-se disso em toda parte e, o que era mais
estranho, evocava-se este sacrifício como a coisa mais natural do mundo, como quem fala da
chuva ou do bom tempo. O sacrifício que, até a véspera, fora uma verdade de baladas,
subitamente fugira de sua fôrma rígida para dissolver-se e circular agora entre nós, vivo, na
mesma qualidade dos demais elementos da nossa existência448.
Murrash Zenebishe, aquele que se sacrifica como o emparedado, era um homem comum. No
ordinário de sua vida, vai se manifestar o extraordinário de uma poética erguida em obra sobre o vazio.
Quando a obra dá origem ao homem do qual ela se origina, a vida e a morte se irmanam no mistério do
Eu não conseguia desgrudar os olhos do emparedado. Por toda parte viam-se vestígios de
cimento fresco.
Um lanço de alvenaria fora acrescentado para envolver a vítima (um corpo emparedado nos
próprios pegões da ponte diminui sua solidez, dissera o colecionador de contos). Dois
pranchões fixados abaixo do morto servia de fundação ao lanço acrescentado.
Inchado, dir-se-ia que o muro estava grávido, e até pior: já em trabalho de parto. O
emparedado parecia ter crescido dentro da pedra. Suas raízes, sua barriga, suas pernas, seu
tronco estavam lá dentro. Só emergia uma pequena parte do seu corpo.
(...) O muro parecia realmente grávido... Exceto que o sentido da gestação estava subvertido...
Este ventre não supunha dar à luz uma criança, mas sim encerrar um ser humano... Mas isso
era mais ainda que um processo invertido.
(...)
Ouvi um soluço perto de mim. Reparei então na presença de sua mulher. O rosto inchado
pelas lágrimas, ela segurava nos braços uma criança de no máximo um ano, que pedia para
mamar. Sem se preocupar com os homens presentes, ela havia descoberto um seio intumescido
de leite. Suas lágrimas caíam neste grande seio branco e quando o mamilo escapava dos lábios
da criança, elas se misturavam às gotas de leite (...)
Um pedreiro que se encontrava por perto aspergiu o emparedado com leite de cal. O líquido
esbranquiçado escorreu-lhe dos cabelos duros até a testa, deu a seus olhos abertos um brilho
súbito que logo se apagou, desfigurou-lhe os traços em alguns pontos, depois escorreu-lhe para
o pescoço e perdeu-se na parede449.
leite/criança/vida, aparece de novo na página 103 e, logo depois, diz-se que a pedra usada no
447 KADARÉ, 1999, p. 122
448 KADARÉ, 1999, p. 95
449 KADARÉ, 1999, p. 100-1
215
revestimento da ponte exsudava um líquido "(...) semelhante ao leite, como um seio materno" 450. Então,
em vez de encerrar a vida, o mistério do sacrifício que consuma a morte deixa ver a morte como vigor
velado em que se suspende a força da vida. Na unidade poética de vida e morte, o romance nos dá,
Era algo que transgredia tudo o que conhecemos em matéria de fronteira entre a vida e a
morte, que se acavalava entre os dois, como uma ponte, sem pender mais para um lado que
para o outro. Um homem havia sido enfiado no não-ser deixando sua forma como uma roupa
esquecida aqui, na superfície.
Consumada a morte como sacrifício em obra, Murrash Zenebishe não aparece nem como vivo,
nem como morte. Está, de fato, entre vivo e morto, como está entre as duas margens do rio, num dos
pilares da ponte451. Ecce homo: todos estamos, na verdade, entre vida e morte. Apenas a linguagem
O emparedado, que se fez obra, identifica-se, também, com o próprio Gjon, que se sacrifica ao
redigir seu registro, o que também remete ao próprio Kadaré escrevendo romances sobre censura e –
estender também este estatuto do 'sacrificado na obra' a todo leitor e a todo ser humano, que vive
apenas na medida em que opera, mas que também se vela para que possa consumar o destino e, neste
Eu tinha a impressão de que, de uma hora para outra, o véu calcário de seus olhos cairia para
transmitir sua mensagem. E esta mensagem, eu quase a adivinhava. Seus olhos pareciam me
dizer: 'Nós dois, ó monge, estamos tão perto um do outro. Você não sabe o quanto?'
Na verdade, era exatamente o que eu sentia (...) os tempos estavam muito tumultuados,
porque logo seria tarde demais para tudo e porque, então, quem quer que registrasse
testemunhos por escrito poderia pagar por isso com a vida. Esta crônica, assim como a ponte,
exigiria talvez um sacrifício, e quem poderia ser a vítima, senão eu (...)452
A questão da amizade encerra uma aproximação com o diálogo decisivo para a poética da obra
que se instaura como diálogo. Somos esse diálogo. O diálogo é o próprio. Émile Benveniste 453 estuda o
pensamento em que a linguagem que fala na palavra grega phílos. De modo adstrito o seu estudo nos
abre uma dimensão a partir da qual podemos realizar uma redução fenomenológica – rumo a uma
poética da presença – com a qual concatenarmos o pensamento na poética do romance que aqui nos
interessa. O linguista pensador parte do sentido derivado de amigo, para philos. Identifica, nesta palavra,
também, o sentido da relação de hospitalidade para com os estrangeiros e entre membros de uma
comunidade. Buscando a vigência mítica da palavra em Homero, chega, também, a estabelecer a philótes
como a relação que se instaura com juramentos sagrados, presentes e sacrifícios, nas quais os mortais se
referenciam em philótes com os imortais. Este compromisso entre desiguais, também pode se dar entre
inimigos. Deste modo, philótes começa a ser questionável quanto à sua equivalência ao que atualmente
entendemos por amizade. Por outro lado, a palavra também marca a relação assinalada com um beijo,
isto é, instaurada com afeição e, daí é que provavelmente se desenvolve o valor sentimental de philótes.
Mas este valor não dá conta do todo da experiência evocada na palavra em sua vigência mítica. Afinal,
referindo-se ao mais íntimo, próprio e inalienável de cada um, phílos é também o vigor da terra natal a
Retomando o argumento de Benveniste, podemos dizer que a questão do amigo, tal como
ressoa na palavra phílos/philótes, insatura: uma relação de reciprocidade pelo pertencimento à palavra
pertencem não um ao outro, mas pertencem a si mesmos, ao que lhes é mais próprio. Este
quanto ao ser consigo mesmo (ao afeto, ao querido, ao cuidado). Por fim, este pertencer remonta
sempre às origens, à terra natal, ao retorno. A reunião destes pertencimentos articula a amplitude do
Este próprio ganha, na obra de Kadaré, sua manifestação como poiésis. Não apenas na própria
obra que se constitui num grande pensar do próprio por diversas vias de questões, mas também porque
a própria canção, em suas obras, comparece como imagem desta questão do próprio. Um exemplo é
esta passagem de O Palácio dos Sonhos, um diálogo entre Mark-Alem e sua mãe acerca da gesta de sua
217
família:
‘Mas por que não havemos de oferecer a nossa gesta ao Sultão para escapar de uma vez para
sempre a todas estas desgraças?’ sugerira um dia o pequeno Mark-Alem depois de ter ouvido
suspirar os adultos. ‘Cala-te!’ respondera-lhe a mãe. ‘A gesta não é uma coisa que se possa fazer
presente, compreendes? É como as alianças ou as joias de família, algo que não se pode dar,
mesmo que se queira.’454.
Mas é, dentre todas as obras de Kadaré que estudamos, em Abril Despedaçado que esta questão se
mostra em sua plenitude. É com ela que encerraremos nosso retorno ao princípio ao longo do qual
dialogamos com a obra de Kadaré. O tratamento da questão, na medida do possível, reouve as linhas
A questão do amigo se dá no romance no âmbito de uma outra – que de certa forma permeia
toda a obra -: a questão do destino. É impossível tocar nesta questão mais ampla nos limites desta tese.
Então, é óbvio que nosso encaminhamento terá limites que não se colocariam de modo tão evidente
num trabalho de maior fôlego que pudesse abarcar a leitura da obra em sua inteireza.
Na obra em questão, Gjorg, como montanhês do Rrafsh, vive sobre a vigência do Kanun, um
sistema de leis que tudo prevê e prescreve, define todas as coisas. Eis um exemplo de como essa
‘A largura do caminho deve ter as dimensões da haste de uma bandeira’. Ao remoer mais esta
regra, Gjorg se deu conta de que havia tempo rememorava, ainda que a contragosto, as
definições do Kanun sobre caminhos e caminhantes. ‘Pela estrada passa gente, passa gado,
passam os vivos, passam os mortos’.
Sorriu. Por mais que fizesse, não se libertaria daqueles cânones. Seria inútil se enganar. O
Kanun era mais poderoso do que parecia. Estendia-se por toda a parte, deslizava pelas terras,
pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das casas, nos túmulos, nas igrejas,
ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes alpinos, talvez ainda mais alto, até o
próprio céu, de onde caía em forma de chuva para encher os cursos de água que eram o
motivo de um terço dos assassinatos.455
Diante de uma total sistematização discursiva do real, parece que os homens estão todos
condenados a simplesmente agir e pensar, sobre todas as coisas e em todos os casos, apenas
obedecendo ao Kanun. O próprio percurso mediante o qual Gjorg acaba por consumar sua humanidade
no horizonte do destino se dá mediante o cumprimento dos ditames do Kanun. Contudo, destino não
pleno, o destino é o apelo que convoca o homem à apropriação daquilo que é próprio e, portanto, o
Kanun acaba por se mostrar, para aquele que está – como Gjorg – aberto à escuta deste apelo, como um
envio a partir do qual o desconhecido, o mistério, pode se dar mesmo naquilo que é amplamente
Gjorg na verdade consuma em sua caminhada o destino como apropriação do que lhe é próprio.
Sob a vigência totalizante de um sistema – tal como é característico de todo sistema – não há
espaço para o novo, o advento daquilo que não está previamente definido, conceituado e controlado
discursivamente. Assim, o sistema se confunde com o próprio real, na medida em que o reduz à
Toma-se então por pressuposto que toda e qualquer ação no âmbito de controle de um sistema
realize apenas o sistema, operacionalizando-o e dando a ele a continuidade na medida em que reafirma
seus preceitos e segue suas prescrições. Contudo, a obra poética Abril Despedaçado nos mostra algo de
precioso diante de uma tal situação de domínio total da sistematização, ao reconduzir ao âmbito do
originário esta articulação entre o sistema da realidade e o real em sua realização. Este é sempre mais. E
menos, pois afinal não se trata de um real com “mais coisas”, e sim um real cujo vigor permanece como
aquilo que está velado e não está dado, o horizonte de toda e qualquer realização e definição.
Como parte deste envio misterioso originário de toda e qualquer possibilidade de realização,
temos no romance justamente a questão do amigo. Num primeiro encontro, o amigo aparece também
como uma instituição do Kanun, o código de lei que tudo dá a conhecer, controlando as ações de todos
os homens. Porém, quando Bessian Vorps, o culto escritor erudito acerca das coisas do Rrafsh, fala à sua
esposa sobre a instituição do amigo, mesmo que o fale como uma elucubração conceitual, cultural e
esteticizante, o sentido que se encaminha numa leitura do papel que este escritor manifesta dentro da
tensão de questionamento da obra é mais aprofundado. Constrói-se uma relação entre o amigo e o
desconhecido, o amigo e o acaso, o não previsto – em suma, tudo que é contrário à essência prescritiva
e determinante do Kanun – que é poderosíssimo, quiçá até mais poderoso que o Kanun – mesmo que
este defina e prescreva regras para o amigo – uma vez que é a origem da lei:
‘O amigo é mesmo um semideus’ (...). ‘E o fato de qualquer homem comum poder se erguer
de repente a tais alturas não esvanece sua divindades; ao contrário, a acentua. A possibilidade
de se adquirir esses poderes súbita e casualmente, numa noite, apenas batendo a uma porta, só
torna as coisas ainda mais perturbadoras. No momento em que o viajante mais ordinário,
trazendo as grossas alpercatas nas mãos, bate à porta e se entrega como amigo, metamorfoseia-
se num ser extraordinário, soberano, inviolável; aquele que faz a lei, a luz do mundo. Mas esse
inesperado da transformação está inteiramente de acordo com a vida dos deuses. Não era
assim que as velhas divindades gregas se apresentavam, de modo inexplicável, como criaturas
das brumas? Pois é da mesma forma que o hóspede aparece à porta do albanês. Como
qualquer divindade, ele vem cheio de enigmas, recém-chegado do reino da boa sorte, ou da
fatalidade, como você preferir. Suas batidas à porta têm um condão capaz de fazer gerações
inteiras viverem ou deixarem este mundo. Eis quem é o amigo.’457
O amigo “vem cheio de enigmas”. Para a racionalidade do sistema, trata-se sempre de decifrar,
conceituar e assim controlar o enigma que, naturalmente, deixa de ser o que ele é. Para o pensamento
poético, por outro lado, “Está longe a pretensão de resolver o enigma. Permanece a tarefa de ver o
enigma”458. Ver o enigma não é uma atitude passiva, tampouco niilista, diante do mistério do
desconhecido. Trata-se, sim, da capacidade de falar a linguagem propícia para deixar falar o sentido do
mistério enquanto velamento que ilumina o que se apresenta à luz da compreensão. Trata-se de, no dito,
escutar o não-dito e na resposta, corresponder ao apelo da questão. É por isso que a obra poética tem
uma força capaz de deixar dizer o mistério – sua fala não é a dos conceitos e definições, tampouco a da
simples representação -, sua fala é a fala do silêncio, em que quem fala não é propriamente o homem, o
autor ou intérprete, mas a própria linguagem, a linguagem própria: “A linguagem fala. O homem fala à
medida que corresponde à linguagem. Corresponder é escutar. Ele escuta à medida que pertence ao
chamado da quietude”459.
Assim sendo, a linguagem propícia em que se dá a fala do romance enquanto obra é muito
distinta da fala humanista das proposições sistematizantes do real que constituem o Kanun. Por fala
humanista indicamos todo e qualquer assenhoramento da linguagem pelo homem e, por meio dela, um
domínio e delimitação do real em realidade. Os enigmas de que o amigo vem cheio falam na linguagem
que mantém o enigma como enigma, por mais que a visita do amigo se dê num mundo dominado
discursivamente pelo sistema. Pode o Kanun determinar quem é o amigo? Não, embora possa
conceituar o que é o amigo e como se age no caso de sua visita. Essa conceituação contudo, é sempre
uma conceituação em geral. Está para além de qualquer discurso e sistema nomear a visita do mistério.
Da mesma maneira, as prescrições de ações jamais podem dar conta do sentido de caminhada de
consumação do destino que pode se dar a partir da visita do mistério. Quando se abre a porta para o
mistério, na figura do amigo, “Suas batidas à porta têm um condão capaz de fazer gerações inteiras
viverem ou deixarem este mundo”460. A vida e a morte são postas em jogo como o que é constitutivo
da humanidade do homem. No chamado do desconhecido, no mistério que chama nas batidas de uma
porta que se abre, o homem pode vir a se consumar como humano, entre a vida e a morte. Abrir a
porta ao mistério é deixar falar a possibilidade de realização histórica dos homens em suas gerações,
deixar falar a possibilidade de surgir a saga cujo sentido, como memória, é originário das possibilidades
de sentido do que se é e não se é, mediante a escuta do que na memória permanece velado e aberto à
fecha a possibilidade ao mistério. O que a obra Abril Despedaçado nos coloca é uma compreensão
fundamental: a de que na verdade todo sistema não é senão uma concessão do mistério. Uma concessão
que, por esquecimento do caráter poético do projeto de mundo que se dá como concessão do mistério,
acaba por se converter num projeto humanista, como se o homem por si só fosse capaz de se
assenhorar do real em sua realização. Como se o homem já não necessitasse antes da realização do real
e seu resguardo no velamento para que possa se dirigir – sistemática ou poeticamente – às coisas como
um todo. Desta feita, o mundo que parece ser na verdade uma projeção do sistema do Kanun adquire,
sentido originário de projeto. Heidegger nos ajuda a compreender propriamente esta articulação:
(...) projeto é projeto de mundo. O mundo vigora em e para um deixar viger que possui o
caráter do projetar. (...) por ‘projeto’ não se tem em vista nenhuma sequência de ações, nenhum
processo que seria composto a partir de fases singulares. Ao contrário, o que se tem em vista
aqui é a unidade de uma ação. No entanto, esta ação é de um tipo originariamente próprio. O
que há de mais próprio a este agir e a este acontecer é o que ganha a expressão
linguisticamente no ‘pro-‘: o fato de no projetar este acontecimento do projeto levar e
continuar levando de certa maneiro o projetante para longe dele.461
Entretanto, a negação do humanismo num projeto originário de mundo não implica a anulação
A questão é que, levado efetivamente para o cerne do projetado, ele não é nem perdido, nem
largado. Ao invés disto, neste ser levado pelo projeto acontece justamente uma virada peculiar
do projetante para si mesmo. (...) Porque este levar adiante inerente ao projetar tem o caráter da
colocação em suspenso em meio ao possível; e, em verdade, é preciso que se note, no possível
em sua possibilidade possível, a saber: em um possível real. 462
Isto quer dizer não apenas que é justamente o mistério no projeto de mundo que confere à
mistério, sendo a possibilidade mais possível, é também o mais vigoroso real em sua essência de
realização e não-realização. Como diz Kadaré, em um outro romance: “Durante muitos anos, fizeram-
se pesquisas para esclarecer o mistério. Muitas hipóteses, aliada a explicações de todo tipo, foram dadas,
mas, depois, contudo, tudo tornou a cair no esquecimento e só resta a lenda” 463. Assim, o mistério se
impõe de um modo tão vigoroso que é precisamente, por outro lado, que a afirmação do sistema, por
maior que seja sua pretensão totalizante e atemporal, acaba por desencadear a negação do mistério, em
sentido pleno. Negação do mistério, em sentido pleno, é o comparecimento do mistério como aceno
manifesto na figura do amigo que bate à porta, mantendo sua identidade de amigo velada para além das
possíveis para a projeção de mundo à medida que o homem é capaz de corresponder ao chamado do
mistério, abrindo a porta para o amigo entrar. Nesta abertura de porta, não somente está posta a
possibilidade de o amigo entrar, mas também a de - porta aberta - o anfitrião acolher o destino que o
leva pelos caminhos de sua consumação. E é assim mesmo que se dá em Abril despedaçado, com Gjorg.
O amigo é, desta feita, e antes de mais nada, não o contrário do inimigo, mas o desconhecido
abrigado sob a bessa, a palavra empenhada que concede trégua temporária. Disso, uma estória contada
‘Alguém fora morto’ (...) ‘e não numa tocaia, mas em plena feira.’
(...) Bessian contava que a morte acontecera à luz do dia, em meio ao burburinho da feira, e os
irmãos da vítima, que se encontravam ali, haviam saído em busca do matador, pois ainda
ninguém pedira bessa e a vingança podia ser imediata. O matador escapara a duras penas da
perseguição, porém o clã inteiro do morto, em pé de guerra, procurava-o por toda a parte. Caía
a tarde, e o gjaks chegara a outra aldeia. Sem conhecer bem o lugar e temendo ser descoberto,
bateu à primeira porta que apareceu e pediu bessa. O dono da casa abriu a porta para o
desconhecido e lhe ofereceu sua hospitalidade.
‘Você tem idéia de quem morava naquela casa?’ (...)
‘A vítima.’
(...) no início nenhuma das partes compreendera o que estava acontecendo. O gjaks se dera
conta de que alguma fatalidade tinha se abatido sobre a casa (...). Por sua vez, o dono da casa,
apesar da dor pela perda do filho, havia acolhido o amigo conforme o costume, ainda que
tivesse entendido que ele vinha de matar alguém e estava sendo perseguido, mas sem saber que
o morto era justamente o seu filho.
‘Assim, os dois ficaram em frente à lareira, jantaram e tomaram café. O morto, segundo o
costume, jazia noutro aposento.’
Diana chegou a abrir a boca para dizer algo. Desistiu ao perceber que apenas repetiria as
palavras absurdo e fatal.
‘Tarde da noite, os irmãos da vítima retornaram à kullë, exaustos da perseguição. Assim que
entraram e deram com o hóspede diante da lareira, reconheceram nele o gjaks.’
(...)
‘Os irmãos sacaram as armas, num impulso de raiva, porém bastou uma frase do velho pai para
que se aquietassem. Acho que você já adivinhou qual foi a frase.’
(...)
‘Ele é amigo, não toquem nele’, foram as palavras do velho.’
(...)
‘Depois eles hospedaram o inimigo-amigo pelo tempo que o costume determinava.
Conversaram com ele noite adentro, ofereceram-lhe um leito, e na manhã seguinte o
acompanharam até a divisa da aldeia.’ 464
Esta passagem revela uma outra faceta do sistema, que não é o seu aspecto determinante
restritivo. Há uma faceta concessiva nas determinações de todo sistema, que é fundamental para que ele
possa exercer controle sobre a realidade e os homens. Desta face nos fala Foucault:
(...) a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de
produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma
concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não.
O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e
esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente
repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O
que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só
como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer,
forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa
todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.465
isto é, restringe delimitando, mas também é em si mesmo concessivo, isto é permite. Não obstante,
permite dentro das prescrições e determinações que correspondam à sua funcionalidade enquanto
sistema. Mas ainda assim permite, faz concessões. O sistema do Kanun institui o amigo como uma
grande eminência, uma presença extremamente valorosa, fundamental para a vida e o funcionamento
do próprio Kanun. Concede ao amigo abrigo na casa de um hóspede que lhe é também, desconhecido.
Dá a este hóspede o direito de realizar sobre um homem a vendeta, mas não enquanto este estiver
sobre sua bessa como amigo. Como pode então ser o mistério a concessão fundamental para a libertação
do homem para o seu destino se também o conhecido e dado tem uma faceta concessiva, que abre
possibilidades? Para seguir adiante em nosso diálogo com esta questão, é fundamental meditarmos
sobre o caráter essencial da libertação e, para isso, faz necessária uma consideração prévia sobre o
conhecimento é fundamental para abertura dos caminhos em que se consuma a existência no horizonte
do destino. Ou seja, em sentido próprio, o conhecimento não fecha, mas abre a possibilidade de
enxergarmos e nos enviarmos nas vias da compreensão do apelo do mistério que se manifesta e
entendimento de que é preciso nos libertarmos do conhecimento para sermos livres para nos
sistema faz, e que são, por excelência, o conhecido, desde que não se as compreende sistematicamente,
vale dizer, desde que nosso pensamento não se oriente – limitando-se a conceitos – por uma
sistematização dos desafios que o conhecimento impõe, porquanto é ele mesmo que os permite
enfrentar, são também condição fundamental para a abertura do mistério. Ou seja, no âmbito do
romance, isto está posto na medida em que a obra aponta que é apenas pela instituição do amigo, pelo
que é dado e conhecido acerca do acontecimento da visita do amigo é que se pode chegar a receber o
amigo como aquilo que ele é, como o mistério. Nesta colocação está posta uma verdade fundamental
acerca da libertação, da qual trataremos mais adiante neste ensaio. Antes, é preciso considerar, visto que
correspondência ao mistério que liberta o homem para o destino, que o amigo se articula também
Não basta uma compreensão formal, objetiva ou subjetiva, para estar lançado na dinâmica de
velamento de desvelamento das questões. O questionar não é simplesmente uma atividade intelectual,
mas uma experienciação, no sentido da habitação da liminaridade, entre o limite e não-limite do real que
se apresenta e convoca ao questionamento, como chamado e como resposta. Afinal, o próprio Bessian
Vorps tem um interesse intelectual, uma curiosidade estética de escritor pelo exótico mundo do Rrafsh
sobe o qual manifesta uma admiração discursiva, mas se mostra incapaz de experienciá-lo radicalmente,
porquanto tenha uma compreensão formal – objetiva, distanciada - do que seja o amigo como o
extraordinário no ordinário e sua força avassaladora. Quando se pergunta pela origem da instituição do
‘É difícil explicar. Talvez fosse a única maneira de um servo da rotina, em meio a tantos dias e
noites rotineiros, se erguer de repente a alturas vertiginosas. Ao que parece, o povo das
montanhas às vezes sentia essa necessidade.’ E prosseguiu: ‘Aqui, o vulto do amigo se iguala ao
de um soberano. Mas não é preciso lançar mão do punhal ou do veneno para empunhar o
cetro. Basta bater a uma porta’.467
escapismo, uma variação para a repetição cansativa, como uma mudança de ambientes, quase como
uma ida ao cinema na sexta-feira para relaxar em vez de ser uma correspondência a um vigor
fundamental, em suma, como uma característica e não como o originário. Imbuído desta compreensão
parcial, diz Bessian: “ ‘(...) tornar-se um amigo, ainda que por vinte e quatro horas, ou mesmo por
quatro horas, não é uma espécie de descanso, uma pausa, um cessar-fogo, um armistício e, por que não,
cotidiano gerido pelo sistema pode se consumar à luz do extraordinário, e não como afirmação do
sistema, mas como sua negação, o que não implica dizer sua anulação. A linguagem propícia para
assim que fazermos menção ao dizer de uma poetiza da prosa sobre esta questão, para nos auxiliar no
De algum modo já aprendera que cada dia nunca era comum, era sempre extraordinário. E que
a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela queria o prazer do extraordinário que era tão
simples de encontrar nas coisas comuns: não era necessário que a coisa fosse extraordinária
para que nela se sentisse o extraordinário.469
Assim, não existe uma oposição entre o extraordinário do amigo e o cotidiano das vidas dos
montanheses, tal como se mostra nas palavras de Bessian Vorps. Esta compreensão que cria uma
O mistério habita a intimidade do mais próximo. Nisto consiste seu aparente distanciamento. A
distância do mistério se apresenta como a maior distância, exatamente porque nos dista conforme nos
distamos de nós mesmos. É preciso realizar uma longa caminhada de consumação do que somos para
chegar onde já estamos. Nessa ambiguidade de ser o mais próximo e o mais distante o mistério se
articula com o extraordinário no ordinário. Isto é, o mistério não é uma outra palavra para o
extraordinário, mas a menção da pleno pertencimento comum entre o ordinário e o extraordinário. Daí
o sentido que a palavra tem, mencionado por Leão, de concentração. Não se trata de um extremo do
realização, um centro que, porém, não é uma coisa ou um ponto, algo que se possa determinar e
controlar471.
Assim, o mistério do amigo não consiste a bem dizer “no” amigo em si. O mistério do amigo é
o modo como este se anuncia – na medida em que a linguagem poética é que o apresenta – entre o
desta forma transitaremos ou pelo ordinário e conhecido – que pode ser aceito pelo sistema – ou pelo
extraordinário e desconhecido – que pode ser concedido pelo sistema como afirmação de si mesmo.
Que seja esta a vigência da imagem-questão do amigo no romance Abril despedaçado, a passagem abaixo
‘Hoje estamos aqui, todo-poderosos como divindades’, disser ele [Bessian]. ‘Podemos cometer
qualquer loucura, podemos até matar alguém, e quem assumirá a responsabilidade por tudo
será o dono da casa, pois ele nos deu de comer’ (‘Pão me deste para cear’, rezava o Kanun),
‘porém há um limite mesmo para nós, divindades. E qual é o limite? Podermos fazer o que
bem entendemos, exceto uma única coisa: mexer na panela que está no fogo’. 472
Os mais amplos poderes e concessões encontram a mais corriqueira e pequena limitação: não
poder mexer na panela que está no fogo. O maior poder refreado pela mais ínfima barreira. Diante
desta coisa mais ordinária, uma panela no fogo, o extraordinário que se assemelha à divindade refreia e
retrai. No retraimento que acontece neste encontro o extraordinário se resguarda como o que é, com
isto dizemos, afirma e confirma o lugar de sua eminência: poder tudo que é grande, menos o que é mais
ordinário, este aparece e se torna grandioso como aquilo que é mais próprio, é posto em evidência
como o pequeno, exalta-se a sua pequenez e ordinarice como aquilo que é digno da vizinhança e
intimidade do que é eminente e poderoso. O mistério, portanto, consiste não em obscurecer e falsear,
mas em afirmar e manifestar o sentido de cada coisa naquilo que ela é, ou seja, é o advento do próprio.
Mistério remete, em toda experiência, para o que se diz e reconhece fora das possibilidades de ser,
conhecer e dizer. Para se dar e acontecer mistério é indispensável morar e descobrir-se no âmbito da
ao não-ser que se vela como o que é, como aquilo que se abriga e, abrigando-se, abarca e concede
morada às coisas, uma morada em que elas podem chegar a ser e comparecer como o que são. Esse
vigor da Linguagem, que concede morada na medida em que se abriga, refere-se ao sagrado, num
sentido poético. É fundamental pensar o amigo como o sagrado, tal como comparece no romance, e
Em que consiste o sagrado? Este, se formos à etimologia, mostrará uma outra realidade
diferente daquela apreendida pelo religioso. O sintoma maior desta outra realidade está na não
separação, no âmbito do sagrado, entre mal e bem. O sagrado diz do lugar de abertura da
realidade, onde tal separação e divisão não existe. O criminoso, por exemplo, que entrasse num
templo, passava a fazer parte de um lugar onde não mais poderia ser perseguido nem punido.
O âmbito do sagrado não comporta as dicotomias metafísicas. 474
Como vimos, na história contada por Bessian Vorps em Abril despedaçado citada
anteriormente, é exatamente assim que se dá com o amigo. Mesmo que ele tenha sido o assassino de
alguém de sua família, quando ele bate à porta, deve-se abrir e abrigá-lo. Diz a obra que “O amigo é
sagrado. Desde a infância todos haviam aprendido que o lar do montanhês, antes de pertencer aos que
o habitam, pertence a Deus e ao amigo”475. Levando em conta, sobre estas prescrições e definições, o
que foi dito anteriormente sobre a relação do sistema com o mistério, e deste com o ordinário no
extraordinário, é preciso compreender aqui o que se diz com o sagrado. “O amigo é sagrado. Desde a
infância todos haviam aprendido que o lar do montanhês, antes de pertencer aos que o habitam,
pertence a Deus e ao amigo” (ibidem). O montanhês habita em sua kullë. Esta habitação pertence a
tem posse da casa, mas ela pertence ao amigo e a Deus. Neste pertencimento é que a casa se dá não
como objeto sobre o qual se tem posse, mas como coisa lançada como sentido, isto é, como um gesto
de mundo. No pertencer ao amigo e a Deus, a casa comparece na plenitude de seu sentido. Assim, o
sentido da casa se revela no abrigar o desconhecido. Abrigando o desconhecido, a casa deixa de ser uma
divisão entre o mundo lá fora de propriedade comum, e o mundo do lado de dentro, de propriedade
pessoal. Isso porque, para abrigar, a casa precisa abrir suas portas àquilo que comparece como digno de
ser abrigado. O que é digno de ser abrigado é o sagrado, que bate à porta como o amigo, o que é
desconhecido nos limites do que se conhece, o mistério que concede a cada coisa se lugar e velando-se,
desvela o sentido de cada coisa em sua plenitude, no que é próprio do extraordinário no ordinário.
recorrente dizer de Heidegger: “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem” 476.
todo dizer pode fazer sentido e chegar a se consumar como palavra. Um dizer para o qual não há escuta
não encontra seu lugar na linguagem, permanecendo mudo e distante do sentido como mero discurso.
A escuta essencial é aquela que se dá, por outro lado, como correspondência ao silêncio que concede
lugar ao dizer. Este silêncio já é, em sentido essencial, linguagem. “A possibilidade do silêncio é, pois, a
origem e o solo da linguagem. Toda fala é mera interrupção do silêncio, mas que não precisa ser
entendida negativamente”477. A fala, interrompendo, não nega o silêncio, afirma a sua presença como
vigor velado de sentido, como mistério acolhido na casa em que se habita. No acolhimento deste
relações. O sagrado sabe chegar, preservando-se na retração relacionadora” 478. No abrigo da habitação
corresponda ao apelo da linguagem. Corresponder a este apelo, para um pensador, é escutar a questão e
respondê-la ao modo do questionamento; para o poeta, significa reconduzir a linguagem ao seu vigor
originário como poiésis, como acontecimento que na referência entre agir e não-agir inaugura a abertura
de mundo e terra em cujos caminhos o homem se realiza como caminhante. Caminhando, o homem se
Isso não implica, entretanto, que todos os montanheses tenham essa compreensão do sentido
pleno do amigo em relação ao destino e à lei do Kanun, já que as proposições deste código, tomadas em
si, alheias ao originário, embrutecem e desumanizam, aprisionam à determinação de vingar e ser objeto
de vingança em vez de libertar para o destino de consumação de vida e morte. Como e em que medida
Retomemos, à luz do que se desenvolveu até agora, a questão do amigo como mistério do
extraordinário no ordinário, enquanto acolhido como o sagrado e sua relação como sistema totalizante
do Kanun¸ que não somente define e restringe, mas também prescreve e recomenda, fazendo
concessões: como Gjorg e sua família vieram a ser tragados pelo sistema de leis da vendeta que é parte
do Kanun? Seria isso também algo previsível, já prescrito, definido e dado? Ou o acontecimento que deu
origem à possibilidade de que, num âmbito superficial, o Kanun se cumprisse por Gjorg na medida em
que ele consuma o destino é, na verdade, um acontecimento extraordinário no ordinário das definições
e prescrições?
Quando Gjorg lembra da história da vendeta entre a sua família – os Berisha – e a dos Kryeqyq,
que já durava setenta anos, custando vinte e dois mortos de cada lado, ele se questiona acerca do
suposto homem que batera à porta dando início à trágica cadeia de morte:
Porque tudo havia começado setenta anos antes, naquela fria noite de outubro, quando alguém
batera á porá da kullë dos Berisha. ‘Quem foi esse homem?’, indagara o pequeno Gjorg ao
ouvir pela primeira vez a história. A pergunta já fora repetida muitas vezes naquela casa, antes e
depois disso, sem que ninguém jamais a tivesse respondido, pois ninguém chegara a saber
quem tinha sido aquele homem. Às vezes Gjorg até duvidava de que alguém batera de fato à
porta. Seria mais fácil acreditar nas batidas de um fantasma, do Destino em pessoa, do que nas
de um viajante anônimo.479
É por causa do amigo que a família de Gjorg se encontra em vendeta. Esse amigo é o
desconhecido. Contudo, não podemos, para compreender a referência entre o mistério e o aceno do
A essência do mistério se tornou estranha ao homem desde o momento em que ele ‘esclarece’
o misterioso imediatamente como o ‘que não se deixa explicar’. O mistério se torna o ‘resíduo’,
ainda esperando para ser explicado. Mas dado que o esclarecimento técnico e a possibilidade de
explicar providenciam o critério para o que pode valer como real, o resíduo inexplicável,
remanescente, torna-se o supérfluo.480
A indicação desta citação aponta para o mistério como o essencial, e não o supérfluo.
Repetimos: isto não quer dizer que se instaura, com a questão do amigo, uma supremacia do
desconhecido sobre o conhecido. Assim, retomamos a faceta de concessão do sistema Kanun como
instância fundamental em que se dá a recepção do amigo. É pela visita do amigo que comparece o
mistério, e esta é uma questão que conduz ao destino. Viemos falando até aqui da linguagem em relação
à fala e ao silêncio. Por isso, cabe uma última observação: amigo é alguém que se vê. É possível que se
pense, dada a concepção hegemonicamente materialista de realidade, que aquilo que se pode ver está
completamente destituído e distante do que chamamos de mistério. Porém, a este respeito, vale
mencionar não só que o mistério comparece como referência entre o extraordinário e o ordinário, mas
também que o ver e não-ver, assim como a escuta, tem um vigor fundamental, também, como
linguagem:
(...) do mesmo modo como o genuíno nomear aproxima de fato a compreensão do evocado,
mas sempre de maneira tal que este se resguarda na sua distância e assim permanece velado e,
além disso, do mesmo modo como a escuta em todo som e em cada tom corresponde não ao
que ressoa imediatamente, mas sim ao soar calado do silêncio, inaudível ao mero ouvido –
também o que se vê por meio do olhar correspondente no pensamento poético é plenamente
revelado e manifesto e, mais ainda, coberto e ocultado. Em seu mostrar-se o olhar que se
manifesta resguarda e abriga simultaneamente em si o que não se manifesta 481
O amigo olhar que olhar para o amigo e vê nele o sagrado resguarda, assim, nele o mistério que
pelas determinações do Kanun – que o mistério acerca do amigo se torna, ele mesmo, visível. Se assim
fosse, este mistério não poderia se constituir como chamado para a procura daquilo que permanece
velado e que, no homem e pelo homem, consuma o humano como destino. O amigo, que pode ser
definido pelo sistema do Kanun, mas não nomeado, ao ser nomeado na poética de Abril despedaçado
como o amigo o entrega como aquele que é desconhecido. Isto quer dizer que o nomear poético
manifesta a plenitude do sentido daquilo que se nomeia à medida que mantém resguardada a sua
identidade originária. É com o nomear poético que a vista do amigo evoca a presença velada do
mistério. Aquele que escuta as batidas da presença velada do mistério na porta da sua casa, abriga o
sagrado. Abrigando o sagrado por meio da escuta da visita da presença velada do mistério, deixa sua
casa no pertencimento do sagrado e, assim, ela aparece como habitação. Habitação não é uma
construção, mas a abertura a vista da presença velada do mistério que abre ao mesmo tempo a porta
para os caminhos em que se pode consumar a humanidade no destino. Assim, é pela visita do amigo
que Gjorg, embora preso aos ditames do Kanun, cumprindo suas prescrições e sob a égide de todas as
suas definições, é deixado na liberdade da caminhada em que se consuma como humano, isto é, põe-se
no caminho como aquele que corresponde ao apelo do destino. Como pode alguém que se encontra
aprisionado, afirmando e confirmando o sistema que o aprisiona, libertar-se para apropriação daquilo
em suas concessões, deve ser uma libertação em sentido pleno, isto é, uma libertação na verdade.
Quando dialoga com o mito da caverna de Platão, pensando a liberdade e a verdade, Heidegger
considera dois tipos de libertação. A primeira corresponde ao segundo estágio do mito, e a segundo
O segundo estágio propicia uma espécie de libertação, o terceiro estágio, outra. A libertação no
segundo estágio não é mais do que soltar as amarras do pescoço e das coxas. Libertação,
portanto, diz aqui apenas mera retirada de alguma coisa, libertar-se de algo, já não estar preso a
e por alguma coisa. O segundo estágio, pois, significa soltura, desligamento, algo, portanto,
negativo, livre de. Quem assim está libertado cai em confusão e desnorteamento; tão logo deve
olhar o fogo, sente-se alheado e quer voltar a ficar preso às amarras. Ele procura propriamente
apoio, segurança e constância, tudo de que sente falta na pretensa liberdade do segundo
estágio. 482
como pode haver libertação, se a possibilidade de ela acontecer se dá dentro das concessões do sistema?
Neste sentido, estamos pensando a liberdade exatamente como aquela do segundo estágio do mito da
caverna. Pensamo-nos num libertar-se do sistema, abandonar suas definições e prescrições, transgredir.
Liberdade, neste ponto, confunde-se com ruptura e transgressão. Este tipo de liberdade, a liberdade de,
ocorre com uma libertação que mantém como sua referência aquilo de que se libertou. É liberdade
apenas na medida em que se liberta de, daquilo que era sentido e conhecido como aprisionador,
limitador, determinante e opressivo. Mantendo sua referência naquilo de que se libertou, é natural que
esta liberdade conduza simplesmente para uma necessidade daquilo de que se libertou, porquanto
aquilo é a referência fundamental da libertação que a instaurou. Não é raro que a ruptura e transgressão
de sistemas conduzam a novos sistemas, porque mantém sua referência, enquanto libertação, naquilo de
que se libertou. É, por exemplo, o caso das vanguardas modernistas, que acabaram por instituir a
Assim, Heidegger continua seu diálogo com o mito de Platão e, no terceiro estágio, compreende
O terceiro estágio já não é a mera retirada de algemas, mas a condução do homem de dentro
da caverna para cima, para a luz. Ser livre, agora, não é estar solto de alguma coisa, mas ser
levado para algo. Já não se trata de estar livre de, mas libertar-se para alguma coisa, para a
luz!483
Em sentido pleno, libertar-se é ser livre para. A liberdade assim tem sua referência no que não
está dito nem determinado, no que não é conhecido e tampouco meramente desconhecido. A liberdade
para necessariamente articula-se com o conhecido e dado de que se liberta, mas mantém e resguarda no
desconhecido sua referência e, assim, liberta-se para o aberto do mistério que se manifesta. A luz é, no
mito da caverna, a vigência do aberto da verdade do ente à luz do ser. Em Abril despedaçado, imagem
desta questão se dá como o destino que se vela à medida que comparece como o amigo, que é abrigado
como o sagrado velado em seu mistério. O amigo, assim, liberta não porque nega o sistema,
simplesmente. Tanto é assim que, no caminho de sua consumação, Gjorg cumprirá todos os ditames do
Kanun. Sua libertação não é uma libertação do sistema do Kanun, mas uma libertação para o que se abre
para ele como destino conforme ele acata o caminho como caminho. No caminho dá-se um outro
encontro extraordinário: uma mulher numa carruagem desperta nele uma paixão. Esta paixão vai se
consumar como procura. Como aquele que procura é que o homem pode ser plenamente caminhante
nas vias do destino. Liberto para procurar, e não esta ou aquela coisa. O sentido poético do amigo nos
mostra como todo e qualquer sistema é uma concessão do mistério, de um mistério que se esqueceu e
que não se pensa. Este mistério nos liberta para ele mesmo, quando nos deixamos tomar pelo apelo do
CONCLUSÃO
Toda obra poética inaugura o questionamento do que ela é. Esta obra, questionando o
humanismo com que se abordam não somente as obras poéticas em geral, mas a poética da obra de
Kadaré, colocou a si mesma em questão. Como se deu a escolha da obra de Kadaré? Como é possível
escolher uma obra para se estudar, ainda que como diálogo poético, sem que se parta de uma posição
subjetiva ou objetiva e, em última instância, humanista? Este questionamento, com que se encerrou o
primeiro capítulo, não poderia ser respondido de forma genérica, se o que pretendíamos fosse uma
Apenas a própria obra seria capaz de mostrar o “motivo”, a “causa” da sua escolha, numa
dimensão não-humanista. Mas a obra não conseguiu mostrar isso. O que se nos revelou na poética do
romance de Kadaré, é que a obra, de forma alguma foi escolhida. A questão da causalidade, isso sim, já
pressupõe a liberdade em que se dá toda e qualquer compreensão. Assim, a obra é que se realiza em
nós, conforme nos realizamos como obra. É o sentido do diálogo poético. Portanto, a obra não é, a
rigor, obra, sem operar, isto é, antes de sua leitura em diálogo poético. Ocorre que a ideia de que
escolhemos uma obra traz, justamente, consigo, este pressuposto velado. A ideia de escolher uma obra
Assim, a “demonstração” do porquê da escolha da obra de Kadaré só poderia ser um deixar ver
a poética da própria obra. Deixar-nos no acolhimento que a obra nos abre como possibilidade de
diálogo em que nós nos fazemos obra. O pensamento vigente, no modo de conformação do mundo da
técnica, dos conceitos e dos sistemas, é infenso ao poético. Isso, contudo, não significa dizer que o
poético não vigore até mesmo na mais rigorosa sistematização do real. A poética de uma obra encontra
seu vigor naquilo que se vela, em toda manifestação. Resguarda, assim, sua força inaugural como um
dizer que reconduz o homem à possibilidade de realidade, apesar dos sistemas de realizações.
235
A vida, então, consuma-se como realidade em seu vigor pleno através da palavra. Em um
mundo cada vez mais sistematizado, a poética de uma obra permite que a realização deste sistema seja,
mais uma vez, vista como uma doação originária daquilo que se resguarda como realidade de todas as
narrativa de Ismail Kadaré. A compreensão da imagem assim mediada não acusa um esgotamento da
contemporaneidade como um todo, uma vez que ampliá-la para além das fronteiras deste trabalho seria
No capítulo quatro, o modo como a palavra eclode de volta para o poder a que se destina já
desde sempre foi nomeado como épos. O épos não é uma vigência poética do passado ágrafo, tal como a
poética do romance não é uma manifestação cultural letrada da modernidade. Ambos, em sentido
pleno, são um narrar inaugural que, em muitas narrativas, articulam o habitar histórico do homem em
lugar e e tempo. O habitar humano eclode pela reunião originária de Mundo e Terra. No encontro de
mundo e terra o poético se encontra com a própria realidade. A ficção é a verdade da realidade
resguardada no seu velamento. A verdade da ficção, e apenas ela, convoca para a verdade o enigma do
tratadas, abrem a possibilidade de construir uma teoria acerca da narrativa. No entanto, o esforço
encontra-se, atualmente, senão em profunda crise, ao menos sobremaneira fragmentário, no campo dos
Estudos Literários. A possibilidade de constituir teoria parece não apenas uma riqueza - sobretudo se
esta possibilidade advém da obra de um autor contemporâneo que recoloca questões centrais para a
romance e do épos, por um lado, e da natureza, da cultura e da ficção, por outro, apesar de abrir a
possibilidade de teorização, não instaura esta mesma teorização somente como uma afirmação dos
próprios limites deste encaminhamento que abriu esta mesma possibilidade. Se for realmente assim,
este trabalho mostrar-se-ia, neste sentido, como parte da crise e/ou fragmentação teórica presentes,
O capítulo final tratou da questão a que formos reconduzidos pelo próprio esforço de renúncia
ao humanismo, mas já no horizonte do mistério de sua plena realização, ou seja, de sua consumação,
não de um simples ente determinado. Apenas na medida em que procuramos compreender o mistério
neste enigma, e não decifrá-lo, retornamos à possibilidade de voltar à origem e encontrar, lá, nosso
destino. São várias as vias. A obra de Kadaré as anuncia como eros, o entregar-se e ser entregue, o
procurar e ser procurado no horizonte da falta que permanece. A presença desta falta faz do procurar e
As implicações da profunda negação do humanismo que aqui se realizou, a partir do que se nos
mostrou pela leitura hermenêutica da obra de Ismail Kadaré, tem implicações éticas e políticas que
ainda precisam ser pensadas em desdobramentos futuros de uma pesquisa de cunho mais teórico e
reflexivo. Não sabemos quais são suas exatas dimensões e nem se, em todo caso, compreendendo-as,
A principal descoberta, a nosso ver, advinda desta tese, foi a apreensão dos limites do método,
em que a própria hermenêutica se mostrou insuficiente para responder uma série de questões decisivas,
como as enumeradas acima, que são apenas as que parecem mais importantes, por hora. Com sua
proposta de permanecer sempre em questionamento, levou-nos a ver apenas outras questões grandes e
quiçá maiores que as iniciais. O que, neste desenvolvimento, se nos foi permitido afirmar, porém, não
pode ser mantido como afirmação, uma vez que isso implicaria sempre uma relação entre o conhecer e
a subjetividade do que conhece a partir de uma série de conteúdos positivos, o que seria nada menos
Ficou claro, também, as limitações que aqui se impuseram a partir de uma necessidade de
compreender mais e melhor o histórico e, assim, a própria história como referência fundamental de
uma obra literária. A falta desta compreensão impôs limites visíveis ao trabalho aqui realizado: uma vez
que renunciamos a referência histórica como contingência, trouxemos a reflexão acerca das imagens-
questões para o âmbito do pensamento, mas fomos incapazes de redirecioná-las à história, para melhor
compreendê-la. A obra literária se mostrou, no tratamento dado aqui, incapaz de remeter à história com
a mesma intensidade com que se mostrou capaz, pelo tratamento dado, de trazer para si uma dimensão
Por outro lado, a reflexão sobre a consumação do humano no capítulo final remeteu toda
discussão de volta para pensar o homem. A poética da narrativa esquivou-se do humanismo para ser
atingida pela questão do homem na medida em que, ao procurar o sentido da poética, acabamos por
nos encontrarmos procurando o sentido do que somos. Quando, ao mesmo tempo, procuramos e
somos procurados, na verdade, procuramos a nós mesmos. É apenas para encontrar a si mesmo,
portanto, que se chega a compreender o sentido de uma obra poética. Não há aí, então, nenhuma
escolha. Porque não escolhemos jamais sermos o que somos. Somos o que nos é dado para ser.
238
Amigo: “(...) o termo amigo (mik) diz respeito não à amizade como a entendemos usualmente, mas à
complexa etiqueta da hospitalidade albanesa. Pode se referir, como no caso, a um desconhecido.”
(KADARÉ, 2001, p. 32 – nota do tradutor).
Bessa: “Palavra empenhada, noção fundamental do código de honra albanês, no caso para indicar uma
trégua antes da retomada da vendeta” (KADARÉ, 2001, p. 15 – nota do tradutor).
Dorërasë: aquele que, numa relação de vendeta entre famílias, é por excelência um bom atirador e por
isso geralmente é tanto o assassino quanto a vítima preferencial. Em albanês, “Literalmente, ‘a mão do
golpe’”. (KADARÉ, 2001, p. 48 – nota do tradutor).
Flamur: “(...) ‘bandeira’, em albanês – era também, desde o século XVIII, uma divisão administrativo-
militar local cujo potentado, o bajrak, tinha um estandarte como símbolo de poder.” (KADARÉ, 2001,
P. 19 – nota do tradutor).
Gjakupës: “Do albanês gjak, ‘sangue’, e hup, ‘perder’, isto é, anos em que o sangue ‘se perdia’, sem ser
‘recuperado’ pela vendeta”. (KADARÉ, 2001, p. 132 – nota do tradutor)
Gjaks: “O termo, derivado de gjak, ‘sangue’, designa o matador que vinga os seus conforme os
costumes da vendeta albanesa.” Apesar disso, “A palavra gjaks não tem o sentido depreciativo de
‘assassino’ (em albanês, vrasë)” (KADARÉ, 2001, p. 16 e 118 – notas do tradutor)
Groshë: “Antiga unidade monetária da Albânia.” (KADARÉ, 2001, p.22 – nota do tradutor)
Kanun: lei tradicional dos montanheses do norte da Albânia. A palavra Kanun é um empréstimo turco da
palavra grega para “estatuto”, “código de lei”, e se relaciona com a palavra inglesa cannon (cânone, em
português). A maior parte das leis do Kanun tratava da propriedade, desde a demarcação de terras até as
mulheres, cuja única liberdade na sociedade dos montes no norte da Albânia consistia no fato de que
estavam livres da vendeta. De resto, eram consideradas propriedade dos pais ou dos maridos. O mais
marcante aspecto do Kanun, porém, é a legislação dura sobre a obrigatoriedade da vendeta de sangue.
Sempre que alguém é morto, os familiares homens da vítima tem a obrigação de matar alguém da
família do assassino. De preferência o próprio. Sendo morto, a família do assassino que passa a ter a
obrigação de cobrar a 'dívida de sangue'. Assim, por diante, por várias gerações, até que a causa original
das mortes tenha sido esquecida, e mesmo assim a vendeta continuará, para sempre. Curiosamente, há
uma relação bastante íntima entre a prática Católica – religião majoritária nas montanhas do norte – e
os costumes do Kanun. Mesmo após ter sido proscrito durante os quase cinquenta anos de regime
comunista, até hoje o Kanun é, ao menos parcialmente, observado pelas populações das montanhas do
norte da Albânia [cf. ELSIE, Robert. “Northern Albanian Culture and the Kanun”, trabalho
apresentado no simpósio: Albanian Language and Culture: 100 Years of Independence. University of Leiden,
10 de novembro, 2012.]
Krushq: “No caso, a palavra designa os parentes que conduzem a noiva ao casamento. Mas também
pode se referir à relação social muito estreita, entre duas famílias albanesas, que se origina do casamento
239
de seus filhos, a qual guarda alguma semelhança com o compadrio brasileiro.” (KADARÉ, 2001, p. 28 –
nota do tradutor)
Kullë: “Residência camponesa fortificada, construída em pedra, com janelas muito estreitas, típica das
montanhas do norte da Albânia” (KADARÉ, 2001, p. 13 – nota do tradutor);
Lahutë: “Espécie de alaúde, de uma corda só e tangido por um arco, com que se fazem acompanhar os
cantadores do norte da Albânia.” (KADARÉ, 2001, p. 142 – nota do tradutor);
Rrafsh: Região da Albânia onde se desenrolam os acontecimentos narrados no romance Abril despedaçado.
“A palavra albanesa quer dizer ‘liso’, ‘plano’. Porém, o topônimo aqui mencionado designa um planalto
extremamente acidentado cujo nome só se explica em contraste com as montanhas ainda mais
escarpadas que o rodeiam”. (KADARÉ, 2001, p. 25 – nota do tradutor)
240
484 Em itálico, entre parênteses, o título das obras editadas em língua portuguesa até o momento da realização deste
trabalho. Os títulos originais em francês se referem às obras publicadas exclusivamente na França, até o momento.
As obras foram agrupadas em ordem cronológica conforme suas edições albanesas.
241
ANEXO III: Resumo das tramas dos romances de Ismail Kadaré estudados.
torno da construção de uma ponte sobre um rio, que envolve a disputa entre duas sociedades
comerciais, uma que administra balsas e jangadas, contrária à construção da ponte, e outra que
administra pontes e estradas, dirigindo a obra. Enquanto se edifica a ponte, espalham-se rumores de
uma iminente invasão Otomana. A construção da ponte parece estar em desacordo com as forças da
natureza, de modo que a correnteza do rio, aparentemente, faz ruir a obra antes de terminada. Ainda
assim, os construtores insistem. A população, em virtude das circunstâncias misteriosas que parecem
Gjon recebe a visita de um colecionador de lendas, com o qual conversa. O monge lhe conta a
Lenda do Emparedado, que narra a história de uma mulher que foi sacrificada, colocada viva dentro de
uma das paredes de uma fortaleza, como forma de garantir a solidez da obra. Pouco tempo depois,
surgem rapsodos cantando uma versão da lenda que parece estar ligada à ponte que se está construindo.
Enquanto isso, turcos e dervixes começam a ser avistados nas cercanias. O sacrifício em nome da ponte
cantado pelos rapsodos começa a ser aceito pela população. Então, um homem comum, Murrash
Zenebishe, aparece uma manhã emparedado na ponte. Suspeita-se de assassinato. Em breve, a notícia
se espalha ao mesmo tempo em que vai ganhando contornos de lenda. A ponte, então, fica pronta e
parece logo se harmonizar com o lugar. Um longo silêncio toma o local, até que uma caravana
carregada de material bélico cruza a ponte e chegam as primeiras notícias da invasão Otomana.
monge pressente uma atmosfera letárgica e desolada. Começa-se a cobrar pedágio na ponte que, dada a
fama do emparedado em um dos seus pilares, atrai pessoas de todos os lugares. O emparedado ganha
contornos de mito: parece não estar nem morto, nem vivo, mas entre a vida e a morte, como entre as
duas margens de um rio. Sete cavaleiros turcos tentam atravessar a ponte a despeito da guarda montada
244
por sentinelas albanesas. Na luta, um turco é morto e seu sangue escorre pela ponte. A guerra se
aproxima. Enquanto Gjon passeia pela ponte, começa a ter um diálogo com o emparedado, em que este
lhe diz que estão muito próximos. Identifica-se Gjon com o emparedado, a ponte com a crônica que o
monge escreve e, por extensão, com Kadaré e seu romance e, de fundo, com todo ser humano.
A história se passa no início dos anos 2000, pouco depois da queda da ditadura socialista na
Albânia, ambientada num pequeno povoado ao pé dos Montes Malditos (estes formam o cenário de Abril
"realidade" (as aspas se justificam porque a dicotomia é desfeita ao longo do romance). A trama é muito
complexa.
O jovem pintor Mark Gurabardhi e sua amante, que lhe serve de modelo, conversam sobre as
mudanças recentes na Albânia. No contracapítulo, narra-se a lenda da Noiva da Serpente: uma jovem,
como forma de punição à sua família, é obrigada a se casar com uma serpente. Consumada a união, a
jovem parece mais feliz que nunca, até que fica viúva e, com febre, revela que a serpente transformava-
se em homem à noite, voltando à pele ofídica no raiar do dia. Mark Gurabardhi pensa no mistério desta
lenda e lembra do pai, que queria que ele fosse policial em vez de artista.
O tédio da vida provinciana entre o ateliê e o trabalho na Casa da Cultura é quebrado com a
notícia do assalto a um banco na cidadezinha. Sinal dos novos tempos. Mark manda reforçar a
fechadura de seu ateliê, enquanto pensa nos roubos mitológicos, de Prometeu a Tântalo. Refletindo
sobre ambos, conclui que o roubo da imortalidade é muito mais misterioso que o do fogo. Lembra-se
de um amigo pintor que fora perseguido pelo regime e desproporcionalmente punido, tal como o
mitológico rei da Frígia. O contracapítulo narra a lenda do homem que enganou o mensageiro da
morte, dizendo não temê-la. O mensageiro recorre a Zeus e à hierarquia divina. Descobre-se o crime de
Sua amante aparece com um corte de cabelo moderno, mas angustiada pelo envolvimento de
245
sua família com o retorno da antiga lei do Kanun. Todos parecem especular sobre o paradeiro do Livro
do Sangue, onde se registravam as vendetas proibidas pelo comunismo. A fechadura do ateliê de Mark
reforçada pelo chaveiro traz uma sensação de inviolabilidade e imortalidade ao pintor. Neste contexto é
que a provinciana "B" recebe uma delegação estrangeira interessada no Kanun. Mark e os funcionários
da casa da cultura acompanham o grupo numa expedição aos Montes Malditos. Um dos amigos de
Mark então o leva para reunião secreta e sombria, onde se discute a atualidade do Kanun. No
contracapítulo, Mark, delirando de febre, se vê descendo aos infernos, depois, como o iceberg que
afunda o Titanic e se funde com o navio, tal como o homem se funde com a serpente na lenda. A
serpente torna-se o marido de albanesas que fogem do país para a Itália, onde se prostituem. Enfim,
Desperto por uma sirene no meio da noite, Mark fica sabendo que seu chefe – homem afeito às
coisas modernas e estrangeiras – fora morto em conformidade com as regras do Kanun. O assassino
seria o irmão de sua amante. O chefe é enterrado num local remoto, nos Montes Malditos, com
funerais cujos cantos incorporam os hábitos modernos que tivera em vida com as tradições. Na volta
para casa, entre as fendas da montanha, Mark imagina onde o líder comunista teria escondido os
arquivos do regime, entrando na terra tal como Édipo no sexo de sua mãe. No contracapítulo, numa
espécie de devaneio, Mark vai trabalhar à noite, não na Casa da Cultura, mas numa Delegacia investigar
um assassinato. Suas investigações o levam até a sala do Grande Chefe, semelhante ao Hades.
Interrogando o suspeito sobre um suposto crime político do Grande Chefe, comparável do de Édipo.
Daí, passa a desconfiar de sua amante e, tal como o homem serpente, pela manhã, veste seu sobretudo
Mark tenta pintar um iceberg, mas não consegue representar sua parte submersa. Vai ao café e
ouve as críticas ridículas que se fazem ao regime comunista e à guerra no Kosovo. A liberdade parece
para Mark tão opressiva quanto a ditadura. Ao ler um obituário, descobre que várias pessoas vivas estão
se declarando mortas, como se fosse tão fácil assim ludibriar a morte. O contracapítulo traz um novo
delírio: o canal de Otrante aparece como uma caótica mistura de pessoas, povos e objetos e como o
246
O irmão de sua amante, Angelim, chega à casa de Mark e a moça explica que ele cometeu o
crime inspirado pelo idealismo do retorno às antigas tradições como forma de salvar a Albânia. Os
jovens então pensam em parar o mecanismo do ciclo de vinganças que acionado por Angelim levando
seu caso à justiça do Estado, para que Angelim seja executado pelo Estado como pena capital, de modo
que o Estado cumpra as leis do Kanun. No dia seguinte, Mark pede ajuda ao comissário local. Vão até
os montes malditos e contemplam, de longe, uma inusitada reunião dos líderes do regime na qual está
presente o próprio Édipo, cego, tateando a terra com o cajado. Então, Mark recebe a resposta de seu
Dossiê H
Willy Norton e Max Roth, dois homeristas irlandeses fazendo doutorado nos EUA, veem, na
invenção do magnetofone, uma primeira espécie de gravador de voz portátil – no início do século XX -,
a grande oportunidade de escreverem seu nome na história dos estudos clássicos, usando o aparelho
Para isso, decidem viajar para a Albânia, estabelecendo sua base de pesquisas numa de suas
regiões mais remotas, onde poderiam gravar as canções dos rapsodos, várias versões da mesma cantiga,
cantada pelo mesmo rapsodo, comparando com versões anteriores e de outros rapsodos. Assim,
da epopeia.
A escolha do local não se dava por acaso. Na região montanhosa da Albânia estava o último
reduto onde a epopeia se mantinha viva, com rapsodos atuantes e ouvintes cotidianos. Além disso, a
proximidade da cultura albanesa com a cultura grega seria outro fator de relevância. Ocorre que a vinda
de dois pesquisadores estrangeiros de um país tão avançado a um país tão periférico, sobretudo para a
área mais recôndita deste país, causaria furor na pequena cidade de ‘N.’, onde se situa a administração
247
da região.
fantasiar relações amorosas com os visitantes, enquanto as autoridades ordenam que se os investigue,
por suspeitarem de que se trataria na verdade de espiões a serviço de seus rivais, os eslavos. Assim, o
subprefeito põe Dull Baxhaj, o seu melhor informante, na cola dos pesquisadores que, logo depois de
chegarem à cidadezinha, partem em direção à sua base de operações: uma das estalagens mais antigas
O zeloso informante nada consegue descobrir e, muito cioso de seu trabalho, com o qual jamais
cometeu um deslize, decide, ao fim, demitir-se, porque, pela primeira vez, pegara no sono durante um
momento em que os pesquisadores foram visitados por uma mulher. A mulher do subprefeito, que fora
avisá-los de que estavam sendo vigiados. Ela se envolvera com um outro espião, anglófono, vindo da
acontecimentos com o registro de pesquisa dos irlandeses. Suas pesquisas despertam a curiosidade de
um monge eslavo que, atacado por inveja de a pesquisa ser feita com base nos poemas do povo rival, o
albanês (os eslavos também tinham uma tradição épica e a disputa política entre os povos se refletia
numa disputa poética486) decide atacar os visitantes e destruir seu aparelho e suas gravações.
Assim, os irlandeses voltam de mãos vazias para os EUA, tendo virado notícia de jornal.
Durante sua estadia, Willy Norton tem um sério agravamento de sua capacidade de visão, tornando-se
quase cego e, no desfecho do romance, entrega-se a cantar, tal como os rapsodos, a epopeia cujo
485 ELSIE, Robert. Studies in Modern Albanian Literature and Culture. New York: East European Monographs, Boulder Columbia
University Press, 1996, p. 100, sugere que Daisy seja uma reminiscência de Diana de AD. Acho que não. Parece-me que se
relaciona com a coadjuvante de AD mais pela inversão simétrica. Diana é a moça refinada da cidade que se apaixona pelo
selvagem Gjorg, ou seja é a moça educada na capital, cheia de influências e referenciais europeus, que se encanta pelo 'nativo',
pelo tipicamente albanês. Daisy, ao contrário, é a típica provinciana que tem fetiche pelo estrangeiro, desprezando tudo que é
nativo, a vida simples do interior. Ambas, é claro, tem um casamento que não as satisfaz, enfadonho, mas não ruim a ponto de
exigir uma ruptura. A diferença é que Diana arrisca a própria vida para ter o que deseja, enquanto Daisy contenta-se com um
'substituto', um espião albanês anglófono.
486 Robert Elsie [ESLIE, Robert. “Some Observations on Albanian and Bosnian Epic Traditions”, trabalho apresentado na conferência
albonológica internacional 50 Jahre Albanologie an der LMU München, Wessobrunn, Alemanha, 23-25 de junho, 2011] fala que as
tradições de poesia oral da Bósnia (Servo-Croata) e da Albânia tem muitos traços em comum, tanto em personagens, como em
enredos e localizações (LORD inclusive, mencionam bardos albaneses capazes de cantar a mesma canção nas duas línguas [ver
The Singer of Tales]). Elsie inclusive atribui esta unidade cultural – atualmente fragmentado pelos conflitos - ao fato de que o
Império Otomano foi uma força unificadora em todo a região e conclui seu trabalho dizendo que as disputas em torno das origens
do épico – se são eslavas ou albanesas – apenas refletem as disputas violentas em todos os terrenos entre estas duas
populações.
248
desenrola-se a estória em torno de Mark-Alem, da influente família albanesa dos Quprili, que é
convocado a trabalhar num dos setores baixos da burocracia do Tabir Sarrail, o Palácio dos Sonhos, no
Império Otomano. Trata-se de uma repartição pública no mínimo inaudita: um aparato de coleta,
império. Portanto, o lugar está envolto em mistério e poder, sendo um ponto nevrálgico para intrigas
É tão prestigioso quanto perigoso ser um funcionário do Tabir Sarrail, duas qualidades que se
precisamente isso o que se passa com Mark-Alem, o protagonista. Por influência de seu tio, o Vizir, ele,
que começou como funcionário do setor de seleção - onde meramente se classifica sonhos segundo seu
provável tema, descartando-se aqueles sem sentido ou identificando-os como sonhos delirantes – passa,
em seguida, ao prestigiado setor da interpretação, onde os sentidos dos sonhos se estabelece e o que
pode ser um ‘sonho-mor’, sonho de grande importância para o Estado e/ou para o sultão, é
identificado antecipadamente. Acima desta seção está aquela dos encarregados dos sonhos-mor, que
uma vez por semana é escolhido e apresentado diretamente ao sultão, sendo portanto uma posição de
A descrição da atmosfera tão misteriosa quanto opressora, ao mesmo tempo tediosa e tensa, do
até para o terreno do inconsciente e a ânsia de tudo saber, controlar e prever, converte o sonho dos
homens em um gigantesco trabalho burocrático que resulta em eventuais tragédias estatais ou, no mais
das vezes, num poeirento ficheiro de um imenso e surreal arquivo de sonhos classificado segundo os
mais rigorosos critérios. A realidade torna-se fantasmagórica quando os próprios sonhos se tornam a
249
rotina tediosa de um trabalho metódico e, neste processo, Mark-Alem, procurando sempre trabalhar
conforme as regras e sem se intrometer em negócios políticos, se vê enredado nas teias das intrigas. Por
‘distração’ sua – na verdade, o imenso acaso que rege toda aquela metodologia e aquele rigor fica
patente – ele deixa passar como desimportante, quando ainda trabalhava na seção de seleção, um sonho
que liga sua família a uma intriga de Estado. Quando na interpretação, não consegue lhe atribuir o
sentido ‘correto’ – como se tal objetividade fosse realmente possível no âmbito do sonho e do sentido
-, mas o tal sonho acaba sendo pego escolhido pelos encarregados do sonho-mor e decifrado segundo
Segue-se, durante um jantar na casa do Vizir, em que outro tio seu, o nacionalista albanês Kurt,
convida rapsodos albaneses para cantar. Sem saber da suposta intriga em que a família estaria envolvida,
a presença de rapsodos albaneses (a Albânia seria então parte do Império Otomano) só parece
confirmar a participação dos Quprili em uma conspiração. Agentes do Império invadem a casa,
chacinam os rapsodos e prendem Kurt. Para surpresa de Mark-Alem, ele se descobre, em seguida,
promovido ao posto mais alto do Tabir Sarrail, o de diretor, e conclui que o Vizir, com sua influência,
também manobrou ‘por trás dos panos’ para revidar o ataque que se lhe infringira à família por uma
facção rival. O acaso se mistura às forças políticas que parecem com correntes submarinas a conduzir o
iceberg do mundo dos homens em direção contrária aos ventos da superfície. Uma história que se passa
no onipresente inverno do universo albanês de Kadaré, onde a única coisa que o homem pode esperar,
1. A velha guerra
Ano de 1389: com a primavera e o degelo, um anúncio da paz é seguido por boatos de guerra, a
ameaça Otomana e o projeto de mudança da capital turca da Ásia para a Europa. Enquanto os
'balcânicos' continuam alimentando suas rixas, o Império unificado os uniformiza sob a denominação
batalha, o príncipe turco Bajazet conversa com seu preceptor grego, que contrasta a uniformidade do
exército turco à variedade viva do exército balcânico. Vencida a batalha, o sultão se retira para dormir e
manda seu sósia exibir-se para as tropas no campo de batalha. Este sósia é assassinado e, logo depois, o
Lê-se um relatório de um enviado secreto do papa à planície do Kosovo que explica e elucubra
que a morte do sultão por um suposto balcânico seria inverossímil e que a execução de seu filho mais
velho, Jakub Tchelebi, a mando dos vizires logo depois deixa uma pista: seria um complô político que
assinalaria o fim de uma disputa no seio do império otomano entre aqueles que desejavam que o eixo
imperial permanecesse na Ásia (Murat e Jakub) e aqueles que apoiavam a transposição para a Europa.
mensagem otomana, utilizando a simbologia balcânica entre o sangue e a eternidade, seria de que o
A batalha de Kosovo é narrada desde o ponto de vista do rapsodo albanês Gjorg. Durante o
massacre, nota-se uma solidariedade entre ele e o rapsodo sérvio Vladan, que se chamam de irmãos.
Após a derrota na batalha, Gjorg vaga semiconsciente ouvindo fragmentos de conversas que tratam da
disputa do Kosovo entre albaneses e sérvios, até que passa por uma aldeia onde vê um grupo de sérvios
e um húngaro ao qual os aldeões albaneses negam qualquer hospitalidade, apesar de terem lutado
juntos contra os turcos. Gjorg reconhece Vladan, do qual se perdera. Sentam-se para conversar à noite.
Vladan pede a lahouta de Gjorg emprestada e canta cantigas que exaltam os sérvios contra os albaneses
libertarem daquela 'tradição' de cantar as disputas, que é uma felicidade e uma infelicidade, ao mesmo
tempo.
Notícias falam da intolerância religiosa e linguística do turcos. O turco Ibrahim que acompanha
os rapsodos em fuga, porém, deseja tornar-se cristão, mas ainda reza como turco, porque diz que tem
251
as duas religiões brigando dentro de si. Gjorg e seus companheiros de viagem adentram as terras da
cristandade e o turco é pego pela Inquisição, que o condena e queima, por ter três religiões (interessara-
se, durante a viagem, também pelo judaísmo) e isso, claramente, ser obra do diabo. Nestas terras, Gjorg
e seus companheiros ora fazem queijo, ora fazem iogurte – utilizando sua cultura balcânica, exótica por
aquelas terras, para sobreviver. Esta cultura, no entanto, lhes rende desconfiança e ameaça de
perseguição.
Gjorg e Vladan são chamados a cantar numa corte cristã, mas são ofendidos pelos presentes,
indignados por seus cantos falarem da disputa pelo Kosovo entre cristãos, quando vinham de uma
derrota para o islã. Uma culta dama diz que não os critiquem e pede que contem algo, se não quiserem
cantar. É de fato um esforço muito grande para os rapsodos, relatar coisas corriqueiras, curiosidades
sobre suas terras, quando soem cantar os épicos. Ouvindo seus relatos, a dama compara suas histórias
às tragédias gregas. Os balcânicos aparecem irremediavelmente ligados à tradição: quando a dama pede
que cantem os casos que contaram, afirmam que são rapsodos militares e, para contar outras coisas,
precisam da tradição, consultar os anciãos e os mortos. A grande dama reflete sobre a submissão dos
Balcãs aos turcos como a submissão da própria origem da Europa enquanto fim do mundo clássico e
seus mitos. Então, ela morre, e os rapsodos balcânicos cantam sobre seu túmulo, incorporando sua
3. Prece Real
O sultão Murat, cujas vísceras e sangue foram inumados em solo cosovar, fala, morto, da
fugacidade do poder e do império, assiste em sua tumba as infindáveis disputas pela terra do Kosovo
entre albaneses e sérvios e implora, ao fim, a deus, pelo esquecimento, que lave seu sangue do solo do
Kosovo.
O Sucessor
que haveria de substituir O Condutor quando este morresse, fora encontrado morto em seu quarto.
252
Todos ficam muito perturbados com as circunstâncias do crime ou do suicídio. A filha do Sucessor,
Suzana, é uma figura profundamente perturbada, oprimida demais em sua vida espontânea, livre e cheia
de amores pelas regras rígidas de conduta do regime, sobretudo as que recaem sobre a filha de um
ilustre dirigente.
A casa do Sucessor fora reformada pouco antes de sua morte, por ocasião da festa de noivado
da filha. O noivo da filha era de uma família de origem burguesa e, portanto, aparentemente,
desagradava ao Condutor aquele casamento. O arquiteto responsável pelo reforma está entre os
suspeitos. Outro dos suspeitos é Adrian Hassobeu, Ministro do Exterior. Ambos ficam sabendo, depois
da morte, de uma passagem secreta que havia na casa da vítima e que levava direto à residência do
Condutor. No entanto, quando vão à casa do Sucessor para chegar a tal passagem, descobrem que ela
fora tapada.
Quebra-se, então, o protocolo do regime: pessoas comuns se misturam às sumidades para, nos
vários auditórios e teatros da capital, ouvirem a gravação de um discurso que o Condutor supostamente
gravara antes de saber da morte do Sucessor, em que demonstrava grande respeito e afeição pelo
Suzana começa a lembra do amor que abandonara por conta da pressão do regime. Lembra de
como sua mãe fora cúmplice em sua tentativa de viver aquele amor. Logo depois, Suzana, a mãe e o
irmão são condenados pelo Estado a uma internação, isto é, a um "exílio" forçado no interior do país.
Vem à tona, então, uma acusação do Condutor sobre o Sucessor que teria, segundo o primeiro,
articulado um golpe de Estado. A tentativa de casar sua filha com um inimigo de classe comprovava sua
Todos acham que o Ministro do Exterior, Adrian Hassobeu, será o novo Sucessor. Narra-se
como, na noite da morte do Sucessor, Hassobeu fora mandado à casa do Sucessor para checar como ele
estava. Hassobeu nem chega a entrar na casa. O Condutor sugere, sutilmente, que Hassobeu cometa
suicídio, mas ele parece não compreender a vontade do líder. Para a surpresa de todos, porém, numa
O arquiteto, então, fica pensando em que medida ele, que reformara a casa do Sucessor
realizando uma obra-prima da arquitetura, não fora responsável pela morte do Sucessor. Teme que a
casa magnífica tenha despertado a inveja do Condutor ou, então, levantado nestas suspeitas de que o
Sucessor, querendo, através de sua moradia, parecer superior ao líder, planejava tomar-lhe o poder.
Lembra, porém, de que decidira realizar aquela obra-prima como rebeldia contra os ditames da arte
oficial do realismo socialista, que não o deixava se realizar plenamente como arquiteto.
O Sucessor fala para os médiuns a serviço das agências de notícias internacionais. após a queda
do regime comunista. Afirma que sua condição de 'alteridade infindável' torna impossível a
compreensão entre ele e os demais. Explica, então, que no mundo dos mortos avistara o que pensara ser
um semelhante seu, o corpo carbonizado sucessor de Mao Tsé-Tung, Lin Piao. Ele afirma que apenas
com outro sucessor poderia se comunicar, e que por isso os enigmas em torno de sua morte
perdurariam para sempre, mesmo depois de caído o regime da Albânia que se cria eterno.
A Filha de Agamenon
Desfile de 1º de Maio na Albânia comunista. Cartazes com rostos dos dirigentes desfilam
assombrosos. O narrador é convidado, surpreso, para o palanque da festa pela alta cúpula do partido.
Sua namorada não o encontra a tempo de acompanhá-lo à solenidade. No caminho para o palanque,
em meio aos transeuntes na festividade, fica evidente que na sociedade 'sem classes' há um grupo
privilegiado: aqueles que gozam dos favores da cúpula do Estado. A atmosfera de repressão é evidente,
tanto como as lutas para ascender, as traições, as falsas acusações, o prestigiosismo e a inveja. Ao longo
do caminho, encontra diversos tipos da sociedade socialista: o vizinho cientista arruinado por suas
que busca ascender na hierarquia a todo custo, o tio, fiel e cego adepto do regime, o pintor consagrado
e tristonho e, por fim, o alto clero, os altos cargos, os dirigentes, como que divindades encarnadas entre
meros mortais.
O narrador sabe que seu romance com Suzana, filha de um importante dirigente do partido,
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não era bem visto, e poderia representar perigo para a moça e sua família. Ele imagina que Suzana se
sacrificaria para ficar com ele, porque para ela o amor sempre fora a coisa mais importante. O narrador
imagina a cena do sacrifício de Ifigênia enquanto está no palanque das solenidades do 1º de Maio
Albanês.
Começa o desfile e o narrador fixa seu olhar na foto do pai de Suzana, dentre as fotos dos
dirigentes exibidas em passeata. Durante o desfile, lembra das campanhas de depuração arbitrárias e
repressão ideológica realizadas em defesa do Estado e pelo Estado. Toda a passeata parece um ritual,
mesmo quando as divergências políticas se manifestam. Tudo parece acontecer sempre do mesmo jeito
desde o início dos tempos, sem que nada se transforme. Assim, ele fica pensando nas mudanças no
jeito de vestir e se comportar a que Suzana teria sido submetida por seu pai. Pensa no sentido de tal
sacrifício. Começa a imaginar quando surgirá no desfile, entre as fotos dos dirigentes, a foto do
camarada Agamenon Atrid, o inaugurador da tradição dos sacrifícios, para elucidar esse mistério
Enfim, quando os manifestantes voltam para as suas casas cansados, o narrador novamente
volta a pensar na Albânia moderna em presença do passado grego mítico, com os guerreiros voltando
do local do sacrifício de Ifigênia por Agamenon. Entende, então, o sentido do sacrifício de Suzana: fora
uma exigência do próprio grande Dirigente, uma exigência do próprio sistema que, para preservar a si
mesmo – como em todas as suas ações – precisa destruir o vigor de vida erótico de Suzana, pois este é
Abril Despedaçado
Gjorg dos Berisha espera Zef Kryeqyq numa tocaia. Precisa cumprir os férreos ditames do
Kanun. Cada aspectos da vida dos montanheses da Albânia é controlado, previsto, determinado e
prescrito por esta lei, especialmente a tradição da vendeta. Morto Zef, Gjorg recebe a bessa – um
"perdão" temporário para ir aos funerais de sua vítima e, depois dos funerais, a família Kryeqyq lhe
concede a bessa de trinta dias. Tudo conforme a tradição do Kanun. Todos no pequeno vilarejo
comentam o ocorrido, por corriqueiro que seja na vida daqueles aldeões. Gjorg sente que sua vida está
255
dividida em dois a partir da morte de Zef, e a parte que tem pela frente é, ao mesmo tempo, já uma
espécie de morte e também a parte mais intensa de sua vida. A camisa de seu irmão, pendurada no
telhado da casa com a mancha de sangue por um ano, à espera da vingança, pode finalmente ser lavada.
Gjorg então é enviado por seu pai para a kullë de Orosh, para "pagar o tributo do sangue", uma
Gjorg parte – em conformidade com o Kanun – em direção à kullë de Orosh para pagar o
tributo do sangue. É um longo caminho pela Estrada Grande, durante o qual rememora, quase que
involuntariamente, as definições e regras do Kanun sobre praticamente todas as situações, coisas e ações
possíveis. Todo o mundo parece governado pelas suas sentenças. No meio do caminho, cruza-se com
um cortejo nupcial e lembra-se da sua noiva, que morrera antes de se casarem e de como foi que por
uma infelicidade do acaso sua família se vira enredada numa vendeta que já durava setenta anos. Chega
a uma estalagem, no meio do caminho e para para comer. Ali, depara-se com Ali Binak, um famoso
exegeta do Kanun, que estaria naquelas paragens provavelmente para tratar de algum assunto muito
complexo. Voltando à estrada, lembra-se de como fora difícil cumprir sua parte na vendeta e de que,
agora, sua vida, ao mesmo tempo que já era uma espécie de morte, era, também, mais viva que nunca.
Chegando à famosa kullë, Gjorg descobre que apenas os homens é que devem se apressar para pagar o
tributo. A kullë de Orosh – espécie de sede secular do Kanun – pode deixá-los esperando por dias até
receber o pagamento do sangue. Gjorg, então, deve esperar, junto com outros gjaks.
Acompanhamos, em seguida, o contato de Bessian Vorps e sua esposa Diana Vorps com o
Rrafsh. Eles são refinados moradores da capital. Ele, um famoso escritor. Ela, uma jovem à sombra do
esposo. Recém-casados, decidem visitar o Rrafsh por ocasião de sua lua de mel, fomentados, também,
pelo interesse extremo que Bessian tem pelo lugar – a terra onde os mitos estão vivos, segundo ele –
que é tema e ambientação de muitas de suas histórias. Durante a viagem, eles conversam muito sobre o
Kanun e os costumes daquela parte selvagem, misteriosa e terrível da Albânia. Enquanto almoçam,
deparam com Ali Binak e seus assessores e decidem acompanhar o grupo que se encontra ali para
resolver um conflito de demarcação de terras. O casal fica impressionado com a autoridade de Ali
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Binak e com o respeito que todos os montanheses têm pelo Kanun. Antes de chegarem à kullë de
Orosh, aonde foram convidados para pernoitar a convite do príncipe de Orosh, eles avistam Gjorg, que
voltava da famosa kullë, após ter pagado o tributo do sangue. Este encontro mexe profundamente com
Mark Ukaçjerra, primo mais próximo do príncipe de Orosh e feitor do sangue, encarregado de
cuidar dos negócios da vendeta para o soberano do Rrafsh, é um homem que desconfia de tudo que é
alheio àquelas montanhas e odeia o mínimo questionamento e desvio em relação às leis do Kanun. Sua
vida é cuidar para que a morte continue rendendo dinheiro ao príncipe, que os mecanismos da vendeta
continuem girando e o sangue correndo por todo o Rrafsh. A chegada dos citadinos Bessian e Diana
como hóspedes do príncipe desperta ódio e desconfiança em Mark. A número de mortes anda
diminuindo no Rrafsh, para a tristeza e desespero de Mark. Ele associa esta "desgraça" à influência
negativa das modas vindas da cidade, onde os homens não são homens e as mulheres não sabem o seu
lugar.
Ao voltar para casa, Gjorg manifesta ao pai o desejo de rever as montanhas, nos dias que lhe
restam. O pai consente e o jovem parte. Desta vez, o caminhada, tendo como horizonte a morte, revela
o sentido da vida da própria terra em que caminha. Descobre, inclusive, que acatou a morte, aceitando
ficar no Rrafsh em vez de fugir, e colocou-se a errar pelas montanhas, não por outro motivo que
reencontrar Diana, a mulher que vira de relance através do vidro da sua carruagem.
Bessian e Diana, após o pernoite na kullë de Orosh, continuam sua viagem pelo Rrafsh. Diana
pensa no montanhês que vira – Gjorg – enquanto seu marido estranha o alheamento da mulher.
Parando para almoçar numa estalagem, ficam sabendo que o famoso e belo sítio lacustre de Água
Branca de Cima fica próximo de onde estão. Bessian decide que irão até lá, na esperança de tentar
superar a frieza que se instalara entre ele e Diana. De lá, partem para uma pequena aldeia vizinha ao
local. Na aldeia encontram Ali Binak e seus auxiliares. Bessian conversa com eles. Enquanto isso, Diana,
sem que ninguém veja, vai até uma kullë de enclausuramento que havia nas imediações da aldeia. Tem
esperança de que dentro dela pode encontrar Gjorg. É algo totalmente arriscado, uma vez que lá dentro
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não valem as leis do Kanun. A atitude da moça causa um alvoroço em todos e Bessian não se recupera
do choque nem mesmo depois que Diana retorna da kullë ilesa. Regressam à estalagem onde
almoçaram. Ali acabava sua viagem pelo Rrafsh. Gjorg, segue à procura de Diana pelo Rrafsh. Caminha
os caminhos da morte, em busca daquilo que move sua vida, então, a paixão que surgira, incontrolável,
contra seus planos e à revelia de sua consciência. Encontra na morte a união com a busca por essa falta
que o pôs a caminho, à procura de, no outro, pela paixão, encontrar a si mesmo.
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