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"Imitação, cópia e simulacro"

Não é segredo: a condenação platônica da pintura pesou de


forma considerável sobre toda a história das artes visuais; nesse
contexto, seria difícil não começar este volume com alguns dos
trechos mais representativos da obra do filósofo. O ataque mais
violento foi desenvolvido em A república, que leva à exclusão do
pintor- e do poeta dramático - da cidade. A cidade ideal, aque­
la onde os filósofos serão reis ou os reis filósofos, não inclui nem
pintores nem autores de teatro. Com efeito, a pintura só diz res­
peito à aparência das coisas, não à sua essência. Diz Platão que
ela está afastada da verdade em três graus, uma vez que o -pintor
imita um objeto que já é por sua vez uma imitação, uma imagem
da Idéia (é o célebre exemplo das três camas: a Idéia da cama, a
cama fabricada pelo artesão que contempla a Idéia, e a cama do
pintor que imita a do artesão). Ao mesmo tempo mentirosa e se­
dutora, a pintura é portanto uma atividade inútil e perigosa, em
todos os pontos semelhante à dos retóricos e dos sofistas. Essa con­
denação da pintura como prática sofística é longamente desenvol­
vida em O sofista. Da mesma forma que o sofista pretende falar
de tudo, isto é, db que ele ignora, o pintor pretende fabricar imagens
de todo tipo. Contudo, a mimese pictórica, constata Platão, apre­
senta a particularidade de não ser uma cópia fiel, uma imagem pa­
recida com a coisa, mas sim um simulacro enganador. Com efeito,
o pintor é forçado a se afastar das proporções reais para produzir
-·uma imagem que pareça verdadeira, isto é, que dê ao espectador
a ilusão de ver a própria coisa.

17
Platão "Imitação, cópia e simulacro"

É possível detectar neste trecho os efeitos das controvérsias pintor, tendo pintado um carpinteiro e mostrando-o de
causadas, naquela época, por certas inovações artísticas. Transfor­ longe, poderia enganar crianças e homens tolos, levando­
mando-se por influência do teatro, a pintura havia descoberto a
os a crer qtie seja um carpinteiro de verdade." [ ..] .

arte da perspectiva enganosa, procedimento este que consiste em


criar de longe a ilusão da realidade, por meio do jogo de sombras
[600e-60 1 a]
e cores. É esta arte: conhecida como "skiagrafia", introduzida por
Sócrates: "Não devemos então afirmar que todos os
Apólodres o Skiágrafo no século V, e depois desenvolvida com no­
poetas, a começar por Homero, imitam simulacros da vir­
tório talento por Zêuxis e Parrásio, que Platão condena aqui. Es­
sas imagens fabricadas pelos pintores são duplamente enganadoras
tude, e das outras coisas que produzem, e não apreendem
na medida em que elas não são simples cópias, análogas às sombras
a verdade? Mas, como dizíamos há pouco, não fará o pin­
projetadas sobre a parede da caverna, mas sim invenções, obje­ tor o que parece ser um sapateiro, sem conhecer ele próprio
tos de um verdadeiro teatro de. sombras sem relação com a natu­ a arte da sapataria, assim como aqueles para os quais ele
reza ou com a estrutura do mundo original. pinta e que julgam a partir de cores e formas?" [.. ] .

"Assim também, creio que diremos que o poeta- ele


Bibliografia: Pierre-Maxime Schuhl, Platon et l'art de son temps, próprio não sabendo �ais do que imitar- reveste de cores,
Paris, PUF, 1952. com palavras e frases, cada U!J1a das OUtras arteS de modo a
parecer a outros tais, que julgam a partir dos discursos, fa­
lar muito bem, quando fala da arte do sapateiro, da estra­
A república tégia, ou de qualquer outra coisa com ritmo, metro e har­
monia. Tamanho é o encanto que esses, por natureza, pos­
Livro X suem. Pois, despidas das cores da música e proferidas por
[598b-c] si só, creio que sabes como se parecem essas obras dos poe­
Sócrates: [ . ] "Agora observa isso. Com relação a cada
.. tas. Certamente as observaste."
coisa, a pintura se faz tendo em vista o quê? Ela imita tendo Glauco: "Sim".
em vista o que é, tal como é; ou aquilo que aparece, tal co­ Sócrates: "Não se assemelham às faces dos que são jo­
mo aparece; é a imitação [mimesis] de um fantasma [phan­ vens,- mas não belos, quando a flor da juventude as aban­
tasma] ou de uma verdade?" dona?"
Glauco: "De um fantasma".

sofista
Sócrates: "Longe então da verdade está a arte da imita­
O
ção. E se isso tudo produz, é, ao que parece, porque apreen­
de apenas um pouco de cada coisa, e esse pouco é um si­ [233d]
mulacro [eidolon]. Assim como, digamos, o pintor nos pin­ Estrangeiro: "[. . ] se alguém dissesse não saber falar e
.

tará um sapateiro, um carpinteiro e outros artesãos, sem co­ �· refutar, mas, por meio de uma arte, saber fazer e produzir
nhecer nenhuma dessas artes. Mesmo assim, se for bom absolutamente todas as coisas."

18 ORtGtNAl. 19
Platão "Imitação, cópia e simulacro"

Teeteto: "Como assim, absolutamente todas as coisas?" passar por alguém que pode fazer o' que quiser, sendo de fa­
Estrangeiro: "Não compreendes logo o princípio do to capaz de realizar isso." [ .. ]
.

que eu disse, pois não pareces entender o que são 'absolu­


tamente todas as coisas'." [235d]
Teeteto: "De fato, não." Estrangeiro: "De acordo com o modo anterior de di­
Estrangeiro: "Com 'rodas as coisas' quero dizer tu e eu visão, parece que agora veJo também duas formas de arte
e, além de nós, todos os outros animais e as plantas." da imitação." [... ]
Teeteto: "Como?" "Uma arte, que vejo na da imitação, é a de fazer có­
Estrangeiro: "Se alguém dissesse fazer a mim e a ti e a pias [eíkastike]. E essa ocorre, no mais alto grau, quando al­
todas as outras criaturas." guém i:êãliza a produção da cópia conforme as mesmas me­
Teeteto: "Que fazer é esse de que estás falando? Cer­ didas do modelo, em comprimento, largura e profundida­
tamente não dirás que ele é um agricultor, pois dizes que de e, além disso, confere a cada uma das partes as cores
também faz animais." apropriadas."
Estrangeiro: "Sim, e além disso o mar, a terra, o céu, Teeteto: "Mas não é isso o que tentam fazer todos os
os deuses e todas as outras coisas. E, ainda, depois de fazer que imitam?"
cada uma delas rapidamente, as entrega por uma soma bem Estrangeiro: "Não os que modelam ou pintam obras
modesta." grandes. Pois, se a essas conferissem a verdadeira medida das
Teeteto: "Estás brincando." coisas belas, sabes que as partes de cima pareceriam meno­
Estrangeiro: "É? E quando alguém diz que sabe todas res do que deveriam e, as de baixo, maiores; porque umas
as coisas e que poderia ensiná-las a outro por pouco e em são vistas por nós de longe e as outras, de perto."
pouco tempo, não se deve considerar isso uma brincadeira?" Teeteto: "É certo."
Teeteto: "Certamente." Estrangeiro: "Não é que agora os artífices, renuncian- 1 •

Estrangeiro: "E conheces forma de brincadeira mais do à verdade, conferem aos simulacros [eidola] não as me­
engenhosa e graciosa do que a da arte da imitaÇão [t�mime­ didas que de fato existem, mas as que parecem belas?"
tikon]?" Teeteto: "É certo."
Teeteto: "De modo algum. Pois, compreendendo tu­ . Estrangeiro: "E o que é outro, mas semelhante [eikos],
do em uma só coisa, falas de uma forma freqüente e, tal­ não é justo chamar de cópia [eikon]?"
vez, a mais variada." Teeteto: "Sim."
I
'
Estrangeiro: "Assim, quanto ao que professa ser capaz Estrangeiro: "E da arte da imitação, a parte que a isso
de fazer todas as coisas por meio de uma arte, reconhece­ diz respeito não deve ser chamada, como dissemos antes, de
mos que, produzindo por meio da arte da pintura imitações arte da cópia?"
e homônimos das coisas que existem e, mostrando os de­ Teeteto: "Deve."
senhos de longe, a meninos jovens e tolos ele será capaz de Estrangeiro: "E então? De quê chamaremos o que, em

20 21
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Platão

(
Aristóteles
(384-322 a. C.)

Poética ·

Ao contrário de Platão, Aristóteles não dedicou análises es­


pecíficas à pintura. Abundantemente citada na Poética, a pintura,
contudo, não é objeto de nenhum tratamento teórico particular.
Enquanto há uma teoria aristotélica da poesia dramática, não há
teoria aristotélica da pintura. No entanto, a maior parte das teo­
rias da pintura que irão se constituir no Renascimento tomará como
referência Aristóteles, particularmente sua Retórica e sua Poética.
Com efeito, a filosofia do Estagirita permitia suspender a condena­
Font�s: Platão, A república, 598b-c e 600c-60 1b, edição do ção platônica da pintura sem contudo renunciar às exigências da
texto grego in Platon, La république, Paris, Les Belles Lettres, Idéia, do saber e da verdade; permitia, enfim, conciliar a arte da
1965. X; O sofista, 233d-236, edição do texto grego in Pla­ mimese com a abordagem intelectual, que Platão havia colocado
ton, Le sophiste, Paris, Les Belles Lemes, 1950. em oposição de forma tão radical. A esse respeito, a análise do
capítulo IV da Poética constitui, indiretamente, um momento es­
sencial na história das idéias sobre a arte. Ao definir a imitação
como uma tendência natural, como um instrumento de conheci­
mento e um meio de prazer, Aristóteles salva literalmente a mimese
artística de todas as acusações que Platão havia feito contra ela.
Longe de ser uma atividade mentirosa e sofística, a arte de pintar
tem sua origem na natureza humana e participa das finalidades
mais nobres da natureza humana. Ao contrário do que pensava
Platão, o prazer que o homem tem com as imagens não o desvia
nem da natureza, nem da verdade.

Bibliografia: Ver as notas e os comentários que acompanham


a nova tradução da Poética, de Aristóteles, por R. Dupont-Roc
e J. Lallor, nas edições Seuil, Paris, 1980.

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Jf.,l.,.a-f . deve testemunhar a um homem maior consideração do que à
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.... verdade 4 e, como acabo de dizer, é um dever falar.

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- Certamente.

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����ç v - Ouve portanto, ou melhor, responde-me.
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LIVRO X ·'J ,tiJ - Interroga-me. �

"' - Poderias dizer-me o que é, em geral, a imitação?


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. Pois eu mesmo não. concebo muito bem o que ela se propõe.
.
")

- Então como iria eu concebê-lo ?


·

Est. I I 595 a
J-. · �. . .. .
p. c - Nada haveria de espantoso nisso . Muitas vêzes os
·

·
f pl:)tk que têm vista fraca percebem os objetos antes dos que a têm
-
E POR CERTO - reiniciei - embora tenha muitas outras
razões para crer que a nossa cidade foi fundada da maneira
penetrante.
- Isto acontece. Mas, em tua presença, nunca ousarei
mais correta possível, é pensando principalmente em nosso declarar o que me poderia parecer evidente. Vê, pois, tu
regulamento sôbre a poesia 1 que o afirmo. próprio.
_ Que regulamento ? _ perguntou. - Pois bem! queres que partamos dêste ponto , aqui, em
nossa indagação, conforme o nosso método costumeiro ? Te­
- O de não admitir em caso algum a poesia imitativa.
A absoluta necessidade de recusar a admiti-la é, suponho,
mos, com efeito, o hábito de colocar uma certa Forma,. e uma .\
só, para cada grupo de objetos múltJplos aos quais atribuímos
o que aparece com mais evidência, agora que estabelecemos ' ·,
o mesmo nome. Não estás compreendendo ? iiP
nítida distinção entre os diversos elementos da alma.
- Compreendo, sim.
- Como entendes isso?
- Tomemos, pois, aquêle que te aprouver dêsses grupos
- Cá entre nós, pois não ireis denunciar-me aos poetas de objetos múltiplos. Por exemplo, há uma multidão de camas
trágicos e aos outros imitadores, tôdas as obras do gênero e mesas.
arruínam, segundo parece, o espírito dos seus ouvintes, quando - Sem dúvida.
não possuem o antídoto 2, isto é, o conhecimento do que elas - Mas, para êstes dois móveis, há apenas duas Formas,
são realmente. urna de cama e outra de mesa.
- Que razão te leva a falar dêste modo? - Sim.
- Cumpre explicar-se - repliquei - embora certa ter- - Não costumamos também dizer que o fabricante dos
nura e certo respeito que, desde a infância, dedico a Homero, me dois móveis dirige seus olhares para a Forma, um a fim de
impeçam de fala r ; pois êle parece realmente ter sidõ'O'iiiestre fazer os leitos e, outro, as mesas de que nos servimos, e
e o chefe de todos êsses belos poetas trágicos 3• Mas não se assim quanto aos demais objetos? pois, a Forma mesma· nenhum
·
11 Jzo../ .L?rO
operário a modela, não é?
- Não, sem dúvida.
1. V. livro li, 337 b, e livro III, 403 c. Mas vej a agora que nome atribuirás a êste artífice ?
2. A poesia foi excluída da cidade por razões práticas. Como - Qual? .,

agora justificar, no plano teórico, a condenação proferida no livro III.


estas razões podem parecer insuficientes aos olhos de alguns, importa
- O que faz tudo o que fazem os diversos artífices, cada
um em seu gênero.
contra os prestígios desta senhora das
O conhecimento do vício profundo da poesia constituirá, aliás , o
melhor antídoto ( <páQf.La><O'V)
ilusões.

Criticando Platão, Aristóteles sê· lembra desta passagem e invoca


3. A qualificação é ligeiramente irônica, pois, se Platão sente uma .
4.
ternura filial por Homero, apesar da severidade que manifesta a seu a mesma
(Bt. a Nic. I, 6, 1.)
desculpa: "Pôsto que somos ambos amigos, é justo honrar
respeito, dedica muito menos simpatia aos poetas trágicos, antes de tudo a verdade".
.. .

220 P L ATA O A REPÚBL<CA 221

596 c • e 597 • • c
Falas de um homem hábil e maravilhoso! - E o marceneiro ? Não declaraste há pouco que êle
- Espera, e logo mais" ·o dirás com maior razão . tste não fazia a ou, segundo nós, aquilo que é a cam
Ll'õüiiã;J á3)
artesão a que me refiro não é unicamente capaz de fazer tôda mas uma cama parhcular?
� de móveis, como produz ainda tudo o que brota da - De fato declarei.
- Ora pois, se êle não faz o que é, não faz o objeto
·

terra, plasma todos oP. sêres vivos, inclusive a si próprio, fabri·


cando, além disso, a terra, o céu, os deuses, e tudo o que há �. porém um objet<' que se a ssemelha a êste, sem tera&uã
no céu, tudo o que há debaixo da terra, no Hades. realidade; e, se alguém dissesse que a obra do marceneiro ou
- Eis um sofista 5 realmente maravilhoso! de qualquer outro artesão é perfeitamente real, haveria posai·
bilidade de que dissesse algo falso, não é?
- Não acredita11 em mim? Mas responde-me: pensas
- Seria ao menos a sensação dos que se ocupam de
que não existe de modo algum semelhante obreiro ? ou que só
semelhantes questões.
se pode criar tudo isso de uma certa maneira, e que, de outra,
- Por conseguinte, não nos surpreendamos que esta obra
não se pode? Mas não reparaste que tu próprio poderias
seja algo obscura, comparada à verdade.
criá-lo, de uma certa maneira.
- Não.
E qual é esta maneira ? - replicou.
- Queres agora que, apoiando-nos nesses exemplos, pro·
Não é complicada - respondi; - é posta em prática
curemos o que pode ser o imitador?
amiúde e ràpidamente; muito ràpidamente mesmo, se quiseres
- Se quiseres - disse êle.
1 JeJ
apanhar um espelho e apresentá-lo de todos os lados; farás logo
oül asl1 u.. .;.;u, l�u a, iU�tiU..lU, ut� o ult'uli
- Assim, há três espécies de camas: uma que existe
u <: u" J., a a Li c::
na natureza das coisas· e da qual podemos afirmar, penso, que
sêres vivos, e os móveis, e as plantas, e tudo quanto meneio·
'beus é o-autor, de contrário quem seria? ...
namos há pouco.
� a,- . .:1.
Ninguém mais, a meu ver.
- Sim, mas serão aparências e não realidades.
- A segunda é a do marceneiro.
- Bem - disse eu - chegas ao ponto pretendido pelo -Sim.
discurso: pois, dentre os artesãos dêste gênero, imagino que
se deva incluir o pintor 8, não é?
- E a terceira, a do pintor, não é?
3 ar' 2
-Sej a.
- Como não?
- Assim, pintor, marceneiro, Deus, são três que presidem
- Mas tu me dirás, penso, que o que êle faz não tem a a fatura das três espécies de camas.
- Sim, três.
menor realidade; no entanto, de certo modo, o pintor também
faz uma cama. Ou não?
- E Deus, quer não tenha desej ado agir de outra maneira,
- Sim - redargüiu - ao menos uma cama aparente. quer alguma necessidade o haja obrigado a fazer apenas �
cama na natureza, fêz só aquela que é realmente a cam� A�-
mas duas camas dêste gênero, ou várias, Dêus jamais produziu
5. Sofista, i. e., "homem de uma habilidade extraordinária".
e tampouco produzirá.
Platão emprega aqui o têrmo para sugerir uma aproximação entre
o artista destro, o poeta, e o sofista , os quais praticam, todos, artes - Por que não? - indagou.
entranhadamente enganadoras.
6. Na discussão a seguir, Sócrates irá encarar o pintor como um
simples imitador. No entanto, êle dissera no livro V, 4 7 2 d:
ote� llv oõv fin6v 't� àya{tbv !;royQácpov dva� 8, llv YQCÍ'Ijla, naoáôELYJ.IO. 8 ecr't�V xÀ(VTJ.
7. É preciso entender "a cama em si mesma". O texto traz
Traduú� por "a essência da cama" é não dar o
o!ov &v etTJ 8 xáÃÀLcr'to' ãv&orono, ... 11-1! líxn cLtoôd�a� oo, xat ôvvtt'tbv matiz exato,
yevé0'11u1 'tO�OÜ'tov ãvôoa; - Oil llij'tcx. - Cf. sôbre êste ponto Aris­ 8. JL(av cp'ÚGEI au'to/)V lícpucrev. - A cama real (8 eG'tLV xÀ(VTJ)
Poética, 26, 6.
é de
tótales, tal ordem, por natureza, que só pode existir uma.
.

o
"
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� 222 f--o-1 P LA T ÃO A R E P "OBLICA 223

597 c • e 597 e • 598 c


- Porque se fizesse apenas duas, manifestar·se·ia nelas - Perfeitamente - confirmou.
uma terceira, cuja Forma as duas reproduziriam, e seria ela - Logo, o fazedor de tragédias, se é um imitador, estará
por natureza afastado de três graus do rei e da verdade 10,
. . ..

a cama real, e n ão as duas outras.


- Tens razão. assim corno todos os outros imitadores.
- Deus, sabendo disso, suponho, e querendo ser o � - É provável.
de uma cama real, e n ão o fabricante particular de uma cama - Estamos pois de acôrdo sôbre o imitador. Mas, a
particular, criou esta cama única por natureza. propósito do pintor, responde ainda ao seguinte: tenta êle, na
É d que parece. tua opinião, imitar cada uma das coisas mesmas que existem
� v. Queres, portanto, que concedamos a Deus o nome de na natureza ou as obras dos artesãos?
l. criador natural dêste objeto, ou algum outro nome parecido? - As obras dos artesãos - respondeu êle.
(
VI-'V'
• L0.. r:J-_ú - Será j usto - disse êle - pois Deus criou a natureza - Tais como são, ou tais como parecem;. procede ainda
a esta distinção.
dêste objeto e de tôdas as outras coisas.
- E o marceneiro? Chamá-lo·emos o artífice da cama, - O que pretendes dizer?
não é? - Isto : uma cama, conforme a olhes de vws, de frente, pio j11>·Y,fq
- Sim. ou de qualquer outra maneira, é diferente de si mesma, ou,
- E o pintor, denominá·lo·ernos artífice e criador dêste sem diferir, e..arece d�? e acontece o mesmo com ou-
objeto? tras coisas? - ·

De nenhum modo. - Sim - disse êle - o objeto parece diferente, mas não
O que é êle, pois, dize·me, com respeitq à cama? difere em nada.
Parece·me que o nome que melhor lhe conviria é o - Agora, considerà êste ponto ; qual dêsses dois obj etivos
de imitador daquilo que os outros dois são os artífices. se propõe a pintura relativamente a cada objeto : o de repre­
- Sêjã. Chamas portanto de imitador o autor de uma sentar o que é tal como é, ou o que parece tal corno parece?
produção afastada de três graus 9 da natureza. É ela imitação da aparência ou da realidade?
- Da aparência.
- A imitação está, portanto, longe do verdadeiro, e se
9. Em tôda essa passagem, cumpre não entender, segundo Proclo, ela: modela todos os obj etos, é, segundo parece, porque toca
a palavra Forma (ou Idéia) no sentido metaf ísico que Platão habi­
apenas uma pequena parte de cada um, a qual não é, aliás,
tualmente lhe co nfere. O que Sócrates designa por Forma da cama,
é a noção de cama que o marceneiro possui - noção cujo autor é senão uma sombra. O pintor, diremos nós, por exemplo, nos
Deus: "'fOV Év 't'[í õuxvo� 'fOÍÍ nxvC'fou /..óyov tõiav éxáÀtae, xat 'tOÍÍ'tO'V representará um sapateiro, um carpinteiro ou outro artesão


f<pa'tO 'tOV ÀÓyov dvaL iteoii yÉVV1J!-LU, ÔLÓ'tL xat U'Ô'tO 'tO 'tE)(VLXOV 'tOÍÍ'fO qualquer sem ter nenhum conhecimento do ofício dêles ; entre-
iteóitev o!tmL õeõóO'itaL ,;are; 'ljlu)(arc;. ;> ( Comm. in Parm., 5 7). Por tanto, se fôr bom pintor, tendo representado um carpinteiro e .o.....;.--.­
isso, Platão, não admite a ex 'st• ia de I déias dos objetos f abricados.
A prova é que, acrescenta rodo êle coloca o poeta no terceiro mostrando-o de longe, enganará as crianças e os homens pri-
grau a partir da verdade. ra, se existem Formas dos objetos fa· vados de razão, porq� dado a sua. pintura a aparência
bricados, o poeta - ou o imitador em geral - viria tão-somente de um autêntico carpinteiro 11•
em quarto lugar, pois o operário, ao criar o objeto material, não
segundo a própria Forma, mas segundo uma imagem desta For­
ma que há em seu espírito - "uma noção no devir" - estaria
em terceiro: � tEX!-LlÍQLOV ÔE 'tOV yàQ :n:OLlJ'tlJV 'tQ('tO'V MO tijç ÚÀlÍitELUÇ 389 a - 390 a, trata-se de Formas de objetos fabricados. Para
:n:Q0<1ELQ1JXE . • . xa('foL, et ye lí.};i.o �oLÉv É<1'tL ,;o iterov dôoc;, lí.i.i.o õe ó f.v
mais pormenores, veja-se Beckmann, Num P/ato artefactorum ideas
,;éji yLyvo�oLÉVqJ ÀÓyoç (Ô1J!-LLOUQYOV .YàQ Myet. 'toii 'tE)(YlJ'tOii dllouc; ,;ov iteóv,
statuerit ( Bonn, 1889 ) .
:t 10. Comp. com Dante, Inferno, 11, 1 05: "Si che vostr'arte a Dio
quasi e nipote".
Ólc; 't0\1 'tE)(v(-cov 'tOÍÍ ILEQLÀOÍÍ l'COLlJ'tlÍV) 'tÉ'CUQ'tOÇ I'J.v tl11 OU 'tQhoç.
Cf. ibid. § 58 e 59. - A interpretação é sutil, mas é quase inad·
missível que exprima exatamente o pensamento de Platão. Com 11. Cf . Sofista, 234 d: "Assim o homem que se apresenta como
efeito, em muitas passagens dos Diálogos, e particularmente no Crátilo, capaz, por uma arte única, de tudo pro duzir, sabemos, em suma,
Pl,AT Ã O A REPOBLJCA 2215
�98 c • �99 a �99 a • d
- Certamente. consagrar a sua atividade ao fabrico das imagens, e poria esta
- Poia bem I amigo, eis, .a. meu aviao, o que cumpre ocupação no primeiro plano de sua vida, como se para êle
.
penaar de tudo isso. Quando algu!Sm nos vem anunc1ar que nada houvesse de melhor?
encontrou um homem instru[do em todos 011 misteres, que - Não, por cerro.
conhece tudo o que cada um conhece em sua parte, e com - Mas se fôsae realmente versado no conhecimento das
mais precisão do que qualquer pessoa, é preciso responder-lhe
que é um Ingênuo, e que, aparentemente, encontrou um �­
coisas que imita, suponho que se aplicaria muito mais a criar
do que a imitar, que procuraria deixar atrás de si grande
latão e um imitador, que o iludiu a ponto de lhe �r nÚ!llero de belas obra!, como outros tantos monumentos, e que
�lente, porndo ser êle próprio capaz de distinguir a �a, desejaria muito mais ser louvado do que louvar os outros 14•
a Jgnorancia e a imitação. - Assim o creio - respondeu - pois não há, nesses
- Nada mais verdadeiro reconheceu. dois papéis, igual honra e proveito.
agora a tragédia e Homero - Logo, para uma porção de coisas, não exijamos contas
..,__::-·:- ---.: certas pessoas declarar a Homero, nem a qualquer outro poeta; não lhes perguntemos
tôdas
� s, em se um dentre êles foi médico, e não apenas imitador da lin­
de e o lÚcio e até guagem dos médicos, quais as curas atribuídas a um ·poeta
mesmo nas CqJSQI djxinas; na verda , ' ecess
·

· , irmam, qualquer, antigo o-u moderno, como as de Asclépio, ou quais


bom poeta, se quiser criar uma bela obra, conheça os discípulos sabedores em medicina deixou êle, como Asclépio
/ que trata, pois de outra forma não seria capaz de deixou os seus descendentes. Do mesmo modo, a propósito de
. t preciso pois examinar se tais pessoas, tendo-se depa·
t
outras artes, não os interrop;uemos, que fiquem em paz. Mas
om imitadores dêste gênero, não foram
;� �
da� pela sôbre os temas maia importantes c mais belos que Homero
as suas obras, não se dando conta de qu e as se acham empreende tratar, sôhre as guerras, o comando dos exércitos,
ata�� terceiro grau do real, e de que, sem conhecer a administração da cidade, a educação do homem, é talvez
� fácil realizá-las com êxito 13 (pois os poetas criam justo interrogá-lo e dizer-lhe: "Caro Homero, se é verdade
fantasmas e não realidades), ou se a asserção que fazem tem que no concernente t\ v�e não estás afastado em terceiro
algum sentido, e se os bons poetas sabem verdadeiramente grau da �. artífice da 1magem, como definimos o imitador
aquilo de que, no julgamento da multidão, falam tão hem. se estás "no segundo grau 15 e se alguma vez fôste capaz de
- Perfeitamente - disse êle - é o que cumpre exa·
mmu. '
14. Em outros têrmos, todo homem sensato preferiria ser Aquiles
- Ora, crês que, se um homem fôsse capaz de fazer
t lícito supor que julgavam antes, com Píndaro, que só
a ser Homero. Era esta realmente a opinião dos concidadãos de
indiferentemente o objeto a imitar e a imagem, optaria por Platão?
a poesia é capaz de assf.>surar a imortalidade aos heróis mais ilustres:
"A palavra, diz o poeta tebano, vive mais tempo que as ações, quando,
pelo favor das Graças, a língua a tira das profundezas do espírito
que fabricará apenas imitações e homônimos da realidade. Seguro
(Nemeanas, IV, 6 ) ". E em outra parte: "Convém a nobres heróis
de sua técnica de pintar, poderá, exibindo de longe os seus desenhos
ser muitas vêzes celebrados com o brilho da poesia, pois é o único
aos mais inocentes dentr� os jovens rapazes, dar-lhes a ilusão que, de
meio de lograr as honras dos imortais; uma bela façanha perece
tudo quanto deseja fazer, está perfeitamente em condições de criar
se fica amortalhada no silêncio ( Frag. '86 ) ". Ou ainda: "Repete-se
a verda-deira realidade".
12. Cf. Ion, 538 segs.
bastante entre os homens que, se conhecemos Nestor e o lício Sarpedon,

os artistas hábeis; o valor necessita dos cantos ilustres para alcançar ·à


é graças aos versos sonoros, como sabem dispô-los harmoniosamente
13. No Banquete (296 d-e ) , Agaton sustenta que um· homem
_pode fazer-se poeta, sem nenhum n:térito pessoal, de�d� que tocado imortalidade" (P!ticos, I I I, 112). ( Passagens citadas por G. Colin
pelo Amor: "Para honrar a minha arte, como Enx1maco honrou em seu excelente estudo "Platon et la Poésic" in Revue des Etudes
a sua, o Amor, diria eu, é um poeta tão hábil que pode tornar Grecques, janeiro-março de 1928, pág. 21.)
igualmente poeta não importa quem; com efeito, todo homem torna-se 15. Desta passagem podemos inferir que o legislador está afas·
poeta desde que tocado pelo Amor". tado em segundo grau da verdade.
lS
226 P LAT Ã O A R E P'O B LI C A 227
599 d - 600 b 600 b - e
conhecer quais práticas tornam os homens melhores ou piores, ainda hoje de pitagórico o modo de existência pelo qual parecem
�.,�,
I na vida privada e na vida.· .pública, dize-nos qual, entre as distinguir-se dos outros homens ?.
cidades, graças a ti se governou melhor, como foi o caso da - Não, ainda aí, ninguém relata algo semelhante; pois
Lacedemônia, graças a Licurgo, e de inúmeras cidades grandes Creófilo 20, o companheiro de Homero, incorreu talvez em maior
e pequenas, graças a muitos outros ? Que Estado reconhece iidículo pela educação do que pelo seu nome, se fôr verdade o
que fôste para êle um bom legislador e um benfeitor 16 ? A que se conta de Homero. Diz-se, com efeito, que êle foi
Itália e a Sicília tiveram Carondas 17 e nós, Sólon, mas tu, estranhamente descurado em vida por esta personagem.
.que Estado te pode citar'?" "Podem êle nomear um ao menos? - É o que se diz, de fato. Mas pensas, Glauco, que se
- Não creio - respondeu Glauco - os próprios Homé­ Homero estivesse realm�nte em condição de instruir os homens ��J...t!l,
ridas nada dizem quanto a isso. e de torná-los melhores, possuindo o pod�Ú;Qnhecer e �a h�
- Mas menciona-se, na época de Homero, alguma guerra não o 'de CiDiitar, pensas tu que não teria feito. numerosos
O quê! Protá- � (i)(..o
J-
que tenha sido bem conduzida por êle, ou por seus con­ discípulos< que o teriam honrado e prezado?
selhos? goras de Abdera, Pródico de Ceos e uma multidão de outros �rXIJ..alàP
- Nenhuma. conseguem persuadir os contemporâneos, em conversações pri-
- Atribui-lhe alguém, como a um homem hábil na prá- vadas 21, que não pode1·ão administrar-lhes a casa nem a cidade,
tica, muitas invenções engenhosas concernentes às artes ou se não lhes fôr dado presidir a educação dêles, e, se fazem
às outras formas de atividade, assim como se faz em relação amar tão vivamente por essa sabedoria que seus discípulos os
a � de Mileto e a Anácarse, o Cita 18? carregariam quase em triunfo sôbre os ombros 22, e os contem­
- Mas, se Homero não prestou serviços públicos, relata-se porâneos de Homero, fôsse êste 'poeta capaz de ajudar os
ao menos que tenha, em vida, presidido a educação de alguns homens a ser virtuosos, tê-lo-iam deixado , a êle ou a Hesíodo,
particulares, que o tenham amado a ponto de se afeiçoarem errar de cidade em cidade recitando os seus versos!,�se
à sua pessoa, e que hajam transmitido à posteridade um plano lhes apegar mais do que a todo ouro do mundo!, sem forçá-los
de vida homérica, como foi o caso de Pitágoras, que inspirou a permanecer j unto dêles, em seus países, ou, se não .lograssem
profunda afeição dêste gênero 19, e CUJOS sectarios chamam convencê-los, sem segui-los por onde quer que fô�sem, até
que houvessem recebido dêles suficiente educação ?
� O que dizes aí, Sócrates, me parece inteiramente cor·
1 6 . Platão mostra-se aqui mais severo do que no Banquete, 209 d
reto.
onde associa os nomes de Hesíodo e Homero aos de Licurgo, Sólon
e dêstes "homens que realizaram grandes e belas·· obras e deram - Assim, pois, estabeleceremos como princípio que todos
origem a tôdas as formas da virtude". os poetas 23, a começar por Homero, são simples imitadores das
!7. Carondas de Catânia foi o legislador das colônias de Cálcis
na Itália e na Sicília. Viveu provàvelmente no século VI a. C. V.
o artigo de Niese na Real-Encyclopãdie de Pauly-Wissowa. de seus adeptos, Pitágoras tornou-se um santo, um deus em figura
18. Sôbre as invenções de Tales, v. Zeller, Phil. der Gri'ech., I, ·humana, de que a lenda relatava milagres". ( Psyché, trad. A. Rey­
pág. 183, n. 2. Alguns autores atribuem a Anácarse a invenção da mond, pág. 395.) V. igualmente as págs. 394-403 da mesma tradução
âncora e da roda de oleiro. - Nota de Adam. (págs. 430-464 da ed. alemã de 1894) .
19. E. Rohde observa, justamente, que se Pitágoras conseguiu 20. Certos autores, diz o Escoliasta da República, narram que
impor uma regra de vida a numerosos discípulos, que formaram, Creófilo era genro de Homero. Seu nome, cujo ridículo Glauco
salienta aqui, significa amigo da carne.
21. Em 4 1 0 a. C., data suposta do colóquio, Protágoras de
como se sabe, uma espécie de confraria, êle o deveu menos ao
prestígio de suá filosofia - a mística dos números - que não era
absolutamente nova, do que a seu vigoroso ascendente pessoal : Abdera já estava morto. Mas Pródico, que só faleceria em 399,
__foi,..paza_os. seus,
"Ele
ainda ensinava.
22. Em grego: lnl ,;ai; KE<paÀaiç : "sôbre suas cabeças" .
um modêlo, um exemplo, um guia que os forçou
a segui-lo e a se tornarem seus êmulos. Personalidade central em
tôrno da qual tôda uma comunidade se congregou como por uma 23. O texto traz ,;ouç no�rrnxoúç, em vez de 1:ouç noiYJ'tà.ç, o que,
necessidade íntima. Desde cedo, ·êste fundador de religião surgiu como nota G. Colin ( op. cit., pág. 20 n. ) , implica um matiz · de
...-eomo um super-homem, único, incomparável . . . E na lembrança desdém.

ORiGiNAl
se
228 PLATlO A R IIP'O B L I O A 229

e • e c •

;, """"·;�� aparências da yirtudo o doa outros temas que tratam, mas que,
) 600 601 601 602a
�·I.
- Ora, é o pintor que sabe como devem ser feitas as c:::.
I rédeu e o freio? ou é mesmo aquêle que oe fabrica, ferreiro
·

quanto A verdade, não chegam· .... atingi· la: semelhantes, niuo, �

ao pintor de que falamos há pouco, o qual desenhara uma ou eoleiro? não é antes aquêle que aprendeu a utilizá-los,
aparência de sapateiro, sem nada entender de sapataria, para· só o cavaleiro?
pessoas que, não entendendo mais do que êle, julgam as coisas - t verdade.
segundo a côr e o desenho? - Não diremos que sucede o mesmo com respeito a tôdas
-Perfeitamente. as coisas?
-Diremos do mesmo modo, penso, que o poeta aplica -Co �� ssim?
a cada arte côres con\'enientes, com suas palavras e frases, de - Há ê artês\
que correspondem a cada objeto: as
tal modo que, sem entender de outra coisa exceto de �sQ.. da �ricação e da J!!titação.
imitar, perante os que, como êle, só vêem as coisas conforme -S1m.
as palavras, êle passa - quando fala, observando a medida, -Mas ao que tendem a qualidade, a beleza, a perfeição
o ritmo e a harmonia, seja de sapataria, seja de arte militar, de um móvel, de um animal, de uma ação, senão ao uso em
seja de qualquer outro objeto -êle passa, digo, por falar muito vista do qual cada coisa é feita, quer pela natureza, quer pelo
bem, tão naturalmente e por si próprios possuem encanto êstes homem?
ornatos! Pois, despojadas de seu colorido artístico, e citadas -A nada mais.
pelo sentido que encerram, bem sabes, suponho, que figura -Por conseguinte, é totalmente indispensável que o usuário
fazem as obras dos poetas 2', porque também lhes viste o de uma coisa seja o mais experimentado, e que informe o
espetáculo 25• fabricantes sôbre as qualidade e os defeitos da obra, no atinente
-!;im - disse êle. ao uso que dela faz. Por exemplo, o flautista informará o fabri·
-Não se parecem aos rostos de certa gente que não conta cante sôbre as flautas que lhe poderão servir para tocar;
outra beleza além de a flor da mocidade, quando esta já dir·lhe-á como êle deve fazê-las e êste lhe obedecerá.
passou? -Sem dúvida.
- É absolutamente exato. -Logo, aquêle que sabe pronunciar-se-á sôbre• as boas
-Ora hem! considera pois o seguinte: o criador de e más flautas, e o outro trabalhará à fé do primeiro.
imagens, o imitador, dizemos, nada entende da realidade, co· -S ' im.
nhece apenas a aparência, não é? -Assim, com referência ao mesmo instrumento, o fabri·
-Sim. cante disporá, sôbre a perfeição ou imperfeição, de uma fé
-Pois bem! não deixemos a questão tratada pela metade, que será justa 26, por estar relacionada com aquê.le que Mhe, P.
examinemo·la como convém. por ser obrigado a ouvir os seus conselhos, mas o usuário é
-Fala - replicou. que possuirá a ciência.
-O pintor, dizemos nós, pintará rédeas e um freio. -Perfeitamente.
-Sim. - Mas o imitador, obterá êle, do uso, a c1encia das
- Mas o seleiro e o ferreiro é que hão de fabricá-los. coisas que repres:entã,' saberá se elas são belas e c �
as ou
-Certamente. não, ou fará a respeito uma opinião reta p õr'(j'
ue sera obrigado
a entrar em relação com aquêle que sabe, e receber suas
instruções, quanto à maneira de representá-las?
24. Cf. Apologia 22 b·c, e Isócrates, Euagoras, 1 1: "Se, de

pen-do a sua medida, descobrimos que são muito inferiores à opin.Kio


poemas célebres, _guardamos as P!llavras e os pensamentos, rom·

26. :t!tTtw llQ�v. A :tlcmç bQ�, que se liga à 6Q� M!;a.


·

que dêles fazíamos".


25. No decurso mesmo da conversação. V. notadamente o livro
-
vem, na escala do conhecimento, imediatamente após a ÕL6.voLa..
IU, 393 b segs. V. liv. VI in fine.
230 P LAT Ã O A REPÚBLICA 231
602 a- d 602 d - 603 b
- Nem uma coisa, nem outra. sombreada não deixa sem emprêgo nenhum processo de �
-0 imitador não possui. portanto ctencia nem opinião como é também o caso da arte do charlatão e de muitas outras
reta 27 quanto à beleza ou aos defeitos das coisas que imita. invenções do gênero.
- t '

��
- Não, ao que parece. verdade.
- Ora, não se descobriu na medida, no cálculo e na
�·
- Será pois encantador aquêle que imita na poesia, por sua
inteligência dos assuntos tratados! pesagem 29, excelentes preventivos tra tais ilusões, de tal fo
•�
- Nem tanto! modo que o que prevalece em nós e a aparência de grandeza
- Contudo, não deixará de imitar à larga, sem saber ou de pequeneza, de quantidade ou de pêso, mas antes o jul-
pelo que uma coisa 'é boa ou má; mas, provàvelmente, imitará gamento de quem contou, mediu e pesou?
o que se afigura belo à multidão e aos ignorantes. - Sem dúvida.
- O que mais poderia fazer? - E tais operações são da alçada do elemellto racional
- Eis portanto, parece, dois pontos sôhre os quais estamos de nossa alma.

I
realmente de acôrdo: em primeiro lugar, o imitador não tem ne­ - Dêste elemento, com efeito.
nhum conhecimento válido do que êle imita, sendo a imitação ·- Mas não lhe acontece muitas vêzes, quando mediu e
apenas uma espécie dP. jôgo de criança, despido de seriedade; quando assinala que determinados objetos são relativamente a
em segundo, os que se �aphcam a poesia trágica, componham outros, maiores, menores ou iguais, receber simultâneamente
êles em versos jâmbicos ou em versos épicos, são imitadores a impressão contrária 30 a propósito dos mesmos objetos?
ao supremo grau. -Sim.
- Certamente. - Ora, não declaramos ser impossív.el que o mesmo ele-
- Mas, por Zeus! - exclamei - esta imitação não se mento tenha, sôbre as mesmas coisas, e simultâneamente, duas
encontra afastada ao terceiro grau da verdade? opiniões contrárias?
- Sim. - Declaramos, c com razão.
- De outra parte, sôbre qual elemento 28 do homem exerce - Por conseqüência, o que, na alma, opina contràriamente
ela o poder de que dispõe? à medida, não forma, com o que �
conformemente à me­
Do que queres falar? dida, um só e mesm0 elemento.·
Do seguinte: a mesma grandeza, encarada de perto .:._ Não, na verdade.
ou de longe não parece igual. - Mas sem dúvida o elemento que se fia na medida e
Não, por certo. no cálculo é o melhor elemento da alma.
E os mesmos objetos parecem quebrados ou retos con­ - Sem dúvida.
forme os olhemos dentro ou fora da água, ou côncavos e con- - Logo, aquêle qull lhe é oposto será um elemento inferior
vexos, dev1'do a' 1'1,...
usa o.__ VISual plodu•'J
�a fl8las cõres · de nós mesmos.
' e é
evidente que tudo isso lança a perturbação em nossa alma. Necess,àriamente.
Ora, dirigindo-se a essa disposição de nossa natureza, a pintura É
a esta confissão que eu pretendia conduzir-vos quando
dizia que a pintura e, em geral, tôda espécie de imitação,
realiza sua obra longe da verdade, que ela tem comércio com
27. A imitação e, de uma maneira geral, a arte enquanto um elemento de nós próprios distante da sabedoria, e não se
tmttativa, procedem, portanto, dêste poder d'alma que Platão deno·
minou dxaa(a.

Cf. Eutlfron 7 b-c, Pr.otágoras 356 b Filebo 55


28. Na disclLisãn subseqíiente, .Platão substitui a divisão tripartite
d� al ma, estabelecida no livro IV ( 436 segs . ) , por uma divisão 29. e e.

Esta impressão é produzida pela aparência dos objetos sôbre


_
btparttte, a fim de opor mais nitidamente ao i.oyLCI'tLXÓv sob a 30.
'
denominação comum de cil..óyLa'tov, os dois elementos inferiores
tuJ.l06LÔéÇ ··-e ÉmtuJ.lTJ'tLXÓV,
o elemento _inferior da alma. - Poder-se-ia traduzir mais literal­
mente: "ver-se apresentar a aparência contrária".
282 PLATAO A R II P 'O B L J O A 238.

60!1 b • e e 604 c
propõe, nesta ligação c neeta amizade, nada de são nem de
60!1 •

- Dizíamos então 36 que um homem de caráter mode·


verdadeiro. . rado, a quem ocorra alguma desventura, como a perda de um
- t exato - confirmou Sle. filho ou de algum outro obj eto muito querido, suportará a
.. . � ..

- Assim, coisa medíocre acasalada a um elemento me· perda mais fàcilmente que um outro.
díocre, a imitação não engendrará senão' frutos medíocres 3 1 . - Certamente.
- Parece. -Agora examinemos o seguinte : ficará absolutamente
-Mas trata-se somente - indaguei - da imitação que acabrunhado, ou então, sendo impossível tal indiferença, e mos·
se dirige à vista, ou também da que se dirige ao ouvido, e que trar-se-á moderado, de alguma forma, na sua dor?
chamamos poesia? - A segunda alternativa -replicou -é a verdadeira.
- Provàvelmente, desta também. -Mas dize-me ainda : quando, crês tu, que há dei lutar
- Todavia, não nos reportemos unicamente a esta seme· contra a dor e de lhe resistir? quando observaQO por seus
lhança da poesia com a pintura ; sigamos até o elemento do semelhantes ou quando sozinho, à parte, em face de si próprio ?
espírito com o qual a imitação poética tem comércio, e vejamos - Dominar-se-á bem mais respondeu - quando oh·
se é vil ou precioso. servado.
-:- É preciso, com efeito. -Mas quando se achar só, ousará, imagino, proferir
- Formulemos o problema da seguinte maneira. A imi - muitas palavras de que sentiria vergonha que fôssem ouvidas,
tação, dizemos, representa os homens atuando voluntàriamente e fará muitas coisas que não suportaria que o vissem fazer.

ou por coação, pensando, conforme o caso, que agiram bem -t verdade.


ou mal e, em tôdas estas conj un.turas, entregando-se à dor ou à -Ora, o que lhe ordena que se enrije, não é a . razão
alegria 32• Haverá algo mais no que ela faz ? e a 5 e o que o indua: a afligir-se, não é o próprio silil:­
-Nada mais. menfo't
- Ora, em tôdas essas situações, está o homem de acôrdo - É verdade.
consigo próprio? ou então, tal como estava em desacôrdo com -Mas, quando dois impulsos contrários se. produzem
respeito ao modo de ver, tendo simultâneamente duas opiniões simultâneamente no homem, a propósito dos mesmps objetos,
contrárias do mesmo objeto, está similarmente, no tocante à dizemos que há nêle necessàriamente dois elementos.
conduta, em contradição e em luta consigo mesmo? Mas vem· - Como não dizê-lo?
·me ao espírito que não pr-ecisamos ficar de acôrdo sôbre - E um dêsses elementos está disposto a obedecer à lei
êste ponto. Com efeito, em nossas considerações 33 anteriores, em tudo o que ela prescreve.
conviemos suficientemente sôbre tudo isso, e reconhecemos que -Como?
nossa � lma está cheia de contradições do gênero, que nela
se mamfestam ao mesmo tempo.
-A lei reza que nada há de mais belo do que guardar 1
a calma, dentro do possível, na desgraça, -.:;-não se afligir de
- E tivemos razão -disse êle. modo algum, porque não vemos claramente o bem ou o mal
-Com efeito, tivemos razão. Mas parece necessário que ela comporta, porque não ganhamos nada, por conse·
examinar agora o que então omitimos. qüência, em indignar-nos, porque nenhuma das coisas humanas
- O quê? -perguntou. merece ser tomada com grande seriedade 35, e porque o que
deveria, nestas conjunturas, vir assistir-nos o mais depressa
possível, é obstado de fazê-lo pela tristeza.
3 1 . Cf. livro VI, 496 a: �tot' lÍna oõv dxÔ�õ ytvvã.v 'touç 'tOLOÚ· -De que falas tu? - perguntou.
'touç, oô vóitct xat <paüÀct; ....--- --
32. Cf. a definição da tragédia na Poética de Arist6teles
---

( 6,
1449 b ) . 34. No livro III, 387 d-e.
33. No livro IV, 43_9__c_&.eiL- _ 35. Esta idéia é desenvolvida nas Leis, liv. VII, 803 b segs.
. :·ó.

234 PLATÃO A R E PÚB L I C A 235

604 c 605 a
-
605 a - e
- Da reflexão sôhre o que nos aconte<'eu - respondi. - Podemos, pois, com j ustiça censurá-lo e considerá-lo
- Como num lance de dados, · devemos, confonne a sorte que
nos toca, restabelecer nossos negócios pelos �· que a razão
como o par do pintor; assemelha-se-lhe, por produzir apenas
obras sem valor do ponto de vista da verdade, e assemelha-se-lhe
nos prescreve como os melhores, e, quando nos machucamos ainda, por ter comércio com o elemento inferior da alma . e n ã o
,
em alguma parte, não proceder êômo as crianças que, segurando com o melhor. Assim, eis-nos bem fundamentãdos para não
a parte magoada, perdem o tempo gritando, mas ao contrário recebê-lo em um Estado que deve ser regido por leis sábias,
acostumar incessantemente a nossa alma a ir tão logo quanto já que acord�, nutre e fortalece o mau elemento da alma, e
possível cuidar do que está ferido , levantar o que tombou e arruína, destarte, o elemento razoáveLcomo acontece numa e/_ ro.. ;z
silenciar as queixas pela aplicação do remédio. cidade que é entregue aos malvados, ao se lhes permitir que
- Eis, por certo, o melhor que temos a fazer no:: acidentes fiquem fortes e ao fazer que pereçam os homens mais estimáveis ;
que nos sobrevêm. do mesmo modo, do poeta imitador, diremos que, introduz
mau govêrno na alma de cada indivíduo, lisonjeando o que
- Ora, é, dizemos nós, o melhor elemento de nós próprios
que desej a seguir a razão. há nela de irrazoável, que é incapaz de distinguir o maior d o
menor, que , ao contrário, encara os mesmos objetos, ora como
- Evidentemente.
grandes ora como pequenos, que produz apenas fantasmas, e
- E aquêle que nos leva à recordação da desdita e aos está a uma in finita distância do verdadeiro.
lamentos, dos quais não consegue fartar-se, não diremos que é um
- Certamente.
elemento irrazoável, preguiçoso, e amigo da frouxidã o ?
- E no entanto não acusamos ainda a poesia do mais
- É o que diremos, seguramente. grave de seus malefícios. Que ela sej a, com efeito, capaz de
- Ora, o caráter irritável presta-se a numerosas e va- corromper até as pessoas honestas, afora um pequeno número,
riadas imitações 36, ao passo que o caráter prudente e tranq!Üilo, eis o que sem dúvida é realmente temível.
sempre igual a si mesmo, não é fácil de imitar, nem, uma vez - Seguramente, se ela surte tal efeito.
feito, fácil de compreender, sobretudo numa assembléia em - Ouve, e considera o caso dos melhores dentre nós.
festa, e para os homens de tôda espécie que se encontram Quando ouvimos Homero o u qualquer outro poeta trágico •

reunidos nos �s ; pois a imitação que se lhes ofereceria imitar! um herói na dor, o qual, em meio de seus lamentos,
assim seria a de sentimentos que lhes são alheios. se estende em longa tirada, ou canta, ou se golpeia no peito,
- Certamente. sentimos, como sabes, prazer, abandonamo-nos para acompa­
- Neste caso, é evidente que o poeta imitador não é nhá-lo com nossa simpatia e, em nosso entusiasmo, louvamos
levado por natureza a semelhante caráter da alma, e que seu como bom poeta aquêle que, no mais alto grau possível,
talento não se einpenha em lhe agradar, visto que desej a provocou em nós taia disposições.
ilustrar-se entre a multidão 37 ; ao contrário, é levado ao caráter - Sei disso ; como poderia ignÇJrá-lo.
irritável e diverso, porque é fácil de imitar. - Mas, quando um infortúnio doméstico nos fere, J a
- É evidente. reparaste sem dúvida que temos como ponto de honra manter
a atitude contrária, isto é, permanecer calmos e corajosos,
porque assim age wn homem e porque a conduta que há
36. As tragédias de Eurípides ilustram notàvclmente esta ver­ pouco aplaudimos só convém às mulheres 38•
dade.
3 7. Para agradar a multidão, é mister rebaixar-se a seu nível.
É pois quimérico contar com a arte para el�L...ª-.ilª

! j
ll�.!!J licl-ª.c;le do
Cf. livro VI, 493 d. - Aos olhos de Platão, n
38. O modêlo de vida que o homem de bem deve imitar nada
povo. � ero e tem em comum com os modelos que a tragédia nos propõe. Por isso,
qualidade são, com efeito, coisas incompatíveis. É entranha amente o Ateniense das Leis dirá, dirigindo-se aos poetas trágicos que dese­
aristocrata, não por preconceito de nascimento, como · alguns preten- jariam ser admitidos na cidad e : "Estrangeiros excelentes, n6s � esmos
deram, mas pela razão. somos autores de uma tragédia que pretendemos, na medida de

ORiGH\iAl
se
236

60� e • 606 c
- Já reparei.
PLAT 1 0

- Ora, é bonito aplaudir quando se vê um homem ao


qual não gostaríamos de nos parecer - enrubesceríamos mesmo,
606 e
A

-
R ll P 'O B L I C A

- Ora, o mesmo argumento nao se ap1'1ca ao r1• so ?


• 607 a

.
muito embora tenhas tu próprio vergonha de fazer flr, colhes
Se,

vivo prazer na representação de uma comédia, ou, na intimidade, � o. �


,
237 c;)
4)1 r

em palestras burlescas, e se não detestas essas coisas ,..como bai· _ _ �-


por isso - e, em ver. de sentir fastio, experimentar prazer
li \..o.. _
neste espetáculo e elogiá·lo ? xas não te comportas do mesmo modo que nas emoç5es patê'· ,_,.., ,._, --:J
- Não, por Zeusl não me parece razoável. ti�? Pois, esta vontade de fazer rir que sofreavas pela razão,
no temor de granjear uma reputação de bufonaria, tu a expan·
- Sem dúvida, sobretudo quando examinas a coisa dêete
des então, e quando lhe infundiste vigor, escapa-te às vêzes que,
ponto de vista.
entre teus familiares, te abandones a ponto de te tornares autor
- Como?
cômico 41•
l
- Se consideras que o elemento da alma ue, em nossos ....l9 - Jr: verdade - disse êle.
- E com re�peito ao amor, à �a e a tôdas as outras
próprios infortúnios, contemos ã fôrça, que tem sêde de lá­
grimas e gostaria de saciar-se à vontade com lamúrias, pois
paixões da alma, que, dizemos nós, acompanham cada uma de
que está em sua natureza desej á-las, é precisamente aquêle
-> nossas ações a imitação poética não produz sôbre nós efeitos
'
que os poetas se dedicam a satisfazer e a rej ubilar; e que, de similares? Ela as nutre, regando-as, quando cumpriria res·
� outro lado, o melhor elemento em nós mesmos, não sendo
suficientemente formado pela razão e pelo hábito, relaxa o
secá-las ; com que faz reinar sôbre nós, quand � dev;ríamos rei·
nar sôbre elas, para nos tornar melhores e ma1s fehzes, em vez
_ <;J � seu papel de guardião para com êste elemento atreito às lamen­
tações, a pretexto de ser mero espectador das desgraças de
de sermos mais viciosos e mais miseráveis.
- Só posso concordar contigo.

· .� outrem, de não haver para éle vergonha, se um outro, que se


diz homem de bem, derrama lágrimas fora de propósito, em
- Assim pois, Glauco, quando te deparares com pane- �f_,_
giristas de Homero, afirmando que êste poeta efetuou a edu·

J,'�·C-0
· .

louvá-lo e lastimá-lo, de j ulgar êste seu prazer um lucro do


qual não suportaria privar-se menosprezando a obra tôda. Pois
cação da Grécia e que, para administrar os negócios humanos ou s.-o'
a poucas pessoas é dado, imagino, fazer a reflexão de que o
ensinar o seu manej o, é j usto tomá-lo em mão, estudá-lo e
fo�
viver regulando por êle tôda a existência, deves por cer!o
que experimentamos a propósito das desventuras alheias, expe·
rimentamos a propósito das noPsas próprias desventuras 39 ; tanto
saudá-los e acolhê-los amigàvelmente, como homens que sao
tão viituosos quanto possível, e conceder-lhes que Homero é
mais que, após nutrir nossa sensibilidade nesses infortún ios,
0 príncipe da poesia e o �
� r meiro do � po :tas trágicos, ��s �· �
saber outrossim que, em matena de poes1a, nao se d eve a dmi���
não é fácil contê-la nos nossos 40,

(
••.

�'a..

- _
- Nada mais verdadeiro. .
na cidade senão os hinos em honra dos deuses e os elogtos a

gente de bem 42• Se, ao invés, admitires a Musa voluptuosa, o

Parece-nos inútil fo��ar p sentido �o t��o,


nossas fôrças, a mais bela e a melhor possível. Tôda a nossa
constituição é combinada como uma imitação do gênero de vida
mais belo e melh r ; e é isso, dizemos, que é realmente a tragédia
o 41. xro).lq>ÔonoLÓç.
. é simples·
como fazem certos tradutores, vertendo-o por fars1sta de profJSs�o ou

,
mais verdadeira. Sois portanto poetas . . . mas nós também somos . . . qualquer outra expressão semelhante . O xro).lq>.Ô�nm?ç
ora, só a lei ve rdade ira está destinada, por natureza, a alcançar tal
somos vossos rivais neste concurso para produzir a peça mais bela ;
mente o autor cômico e, para Platão, esta quahftcaçao Importa tal
desprêzo que é supérfluo acrescentar algo.
42. O A ten iense rlas Leis admite as mesmas exceções ( liv. VII,
objetivo" ( Livro VII, 817 b ) .
39. Cf. livro III, 395 c segs.
40. Arist6teles sustenta como sabemos, opinião co trá ia. �.------t n r República, i nd ica como �e deve efetuar a escolha dos poetas: .
801 c) . Porém, mais preciso neste ponto do que o S6crat�� da
será
tima que a tragédia, pelos sentimentos rle piedade e terror que
inspira, opera uma l'Spécie de purgação : côl' lMou xal QJóPou
preciso, em primeiro lugar, que não contem menos d; cmquet;ta
..
.
e os dons das Musas não os escolheremos, se J. amais reahzaram um
anos; depois, por mais que possuam excelentem ente o ge�10 poético
� .
belo e notável feito . :
neQaívouO'a ( 'Í} TQayq>ô(a) 1:-/jv Tõiv TOLOÚtrov naihw.chrov xá�a{IOLV.
(Poét. 6, 1449 b ) . A escolha caberá ao magistrado preposto à
.
238 A 239

-
P LA T Ã O R E P ÚBLI C A

607 a - d 607 d
- É
608 b
portanto j usto que possa retornar com esta con-
..,
�� -,
�oa-.ÍL
prazer e a dor serão os reis de tua cidade, em lugar da lei
e dêste princípio que, por cÕmum acôrdo, sempre foi consi­ dição : depois de haver-se j ustificado, seja em ode, seja em
derado o melhor, a razão. versos de qualquer outro metro.
- É muito certo. - Sem dúvida.
- Seja dito isto, portanto, para nos j ustificar, já que - Permitiremos mesmo a seus defensores que não são
tornamos a falar da poesia, or têrmos banido de nosso Estado poetas, mas que amam a poesia, falar por ela em prosa, e nos
uma arte desta natureza : a razao no· o rescrevia. E digamos·lhe mostrar que não é somente agradável, mas ainda útil a o go­
ainda, a fim de que ela nao nos acuse e dureza e rusticidade, vêrno dos Estados e à vida humana ; e haveremos de ouvi-los
com benevolência ois ara nós será proveitoso que ela se
. ....;._
.!.. .f
que é antiga a dissidência entre a filosofia e a poesia. Teste.
munham-no as seguintes passagens : "a cadela mordedora que
revele tão ' quanto agradável.(
·
- .f ..,.1�1 a,
late contra o seu dono 43", "aquêle que passa por grande homem - Mas se, meu caro camarada, ela não nos surgir sob esta
na tagarelice vã dos loucos", "o bando de cabeças demasiado
luz, faremos como os que se amaram, mas que, tendo reco-
sábias 44", "as pessoas que se atorment<Jm em sutilizar por·
que estão na miséria 45" e mil outras que marcam a velha
)
nhecido que o seu amor já não era proveitoso, dêle se desprendem,
forçados é certo, mas dêle se endem, a sar de tudo f Nós
tam e , por e e1 o o amor que engendrou em nos or t · oesia a
) �a,

oposição de ambas. Declaremos, todavia , que, se a poesia


educação de nossas belas repúblicas 46, aremos todos dis- �� '

imitativa pode provar-nos com boas razões que ela tem o seu
p er mam es ar-se sua exce encra e sua altíssima verdade ;
lugar numa cidade bem policiada, recebê-la-emos com júbilo,
mas, enquanto ela não puder j ustificar-se, ouvi-la-emos, repe-
pois temos consciência da sedução que ela exerce sôbre nós,
tindo para nós, qual um encantamento que nos premuna contra
mas seria ímpio trair o que se considera como a verdade.
ela , as razões que acabamos de enunciar, pelo receio. · de
,Aliás, meu amigo, ela não te seduz também, sobretudo quando
recair nesse amor de infância que ainda é o da maioria dos
a vês através de Homero?
homens. Repetiremos 47 para nós, portanto, que não se deve
- Muito. tomar a sério uma tal poesia, como se, séria por. sua vez,
ela tocasse a verdade, mas que se deve, ouvindo-a, ,manter-se
em guarda, caso se tema pelo govêrno da própria alma e
educação da juventude e aos guardiães das leis ; concederão êlcs aos enfim· observar como lei tudo o que dissemos acêrca da
autores assim designados o merecido privilégio de cultivar as Musas sem
poesia.
exame prévio, sem a aprovação dos guardiães das leis, e só a êles . . .
- Estou perfeitamente de acôrdo contigo.
sem aprovação dos guardiães das leis, ainda que tenha mais encanto
Ninguém mais ousará ressoar um canto das Musas sem exame prévio,
- Pois é um grande combate, amigo Glauco, sim, maior
do que os hinos 'Cie Tàmiras e de Orfeu". (Leis, liv. VIII, 829 do que se pensa, aquêle em que se trata de vir a ser bom
c-d.)
o u mau ; por isso, nem a glória, nem a riqueza, nem as dig­
43. Cf. Leis, liv. XII, 967 c-d.
nidades, nem mesmo a poesia merecem que nos deixemos levar
44. Adotamos a conjetura de Adam e lemos : ó ,;&v l.lav aocp&v
õxl.os l<Qá'twv. Esta cxp1essão lembra certos versos de Eurípides (Me­ a negligenciar a j ustiça e as outras virtudes.
déia 305, Hipólito 4 1 8, Electra 296 ) .

nas Nuvens (J.tEQlJ.IVO<JO!pl<J'ta( ÀE1t'toi,óyol, etc. ) . A segunda sugere mais


45. "A primeira parte da frase lembra as expressões de Aristófanes
46. Platão é aqui meio 1romco, meio sincero. Não esquece que
un; gênero de gracejo corrente na comédia média; cf., por exemplo, as Musas de Hesíodo e de Homero foram as primeiras a despertar-lhe
Anstofon nos Poet. com. gr. fragm., Didot, pág. 508 ( frag. 3 do a j ovem inteligência. E, embora condenando uma educação e ins·
I1 uítayOQlCJ't�Ç) : "Pelos deuses, pensamos que os velhos pitagóricos tituições cujos defeitos mostrou, empenha-se em render-lhes a home-
de outrora eram sujos por prazer e gostavam 'Cie usar vestimentas -----..nagelll- que um filho bem nascido não poderia negar aos protetores
de sua infância.
�ise�áveis. Não é por isso, creio : era por necessidade. Nada tendo,
1magmaram um belo pretexto para a simplicidade de suas vidas e 47. A conjetura de Madvig q.aóJ.ttila ( em vez de atcritól'tila, mss.
AFDM) nos parece a mais satisfatória, apesar das observações de A'Ciam
( II, pág. 4 1 9 n . ) e de L. Campbell ( III, pág. 459 ) .
colocaram solidamente princípios cômodos para os pobres . . . " (Nota
de G. Colin, op. cit .• págs. 2 7-28 ) .
240 P I, A T Á O A. R BI P "O B L J C A 241

608 b - e 608 e • 609 d


- Concordo com isso pelo que foi dito, e creio que todo - O que destrói e corrompe as coisas é o mal; o que
mundo concordaria igualme&te. as conserva e beneficia é o hem.
- Entretanto - repliquei não falamos ainda das - Sim.
maiores recompensas e dos prêmios reservados à virtude. - Mas então ?, não afira1as que há um hem e um mal
- Devem ser extraordinàriamente grandes, se ultrapassam para cada coisa, como, por exemplo, para os olhos a oftalmia,
os que já enumeramos! para todo o corpo a moléstia, para o trigo a alfôrra, para
- Mas qual é a grande coisa que po de ocorrer num a madeira o apodrecimento, para o bronze e o ferro a ferrugem,
curto espaço de tempo ? Com efeito, todo êsse lapso de tempo e, como j á disse, para quase tôdas as coisas um mal e uma
que separa a infância da velhice é hem curto em comparação doença ligados à natureza de cada uma?
com a eternidade. - Sim.
- Não é mesmo nada - acrescentou êle. - Ora, quando um dêstes males se prende � uma coisa
- Mas como ! achas que um ser imortal deva inquietar-se não estraga essa coisa e não acaba por dissolvê-la e arruiná-la
com um período tão curto quanto êste e não com a eter· totalmente ?
nidade 48• - Como não?
- Não, por certo ; mas ao que tende êste discurso ? - Portanto, o mal e o VICio próprios por natureza a
- Não observaste - respon di que a nossa alma é cada coisa é que destroem a coisa, e se êste mal não a destrói,
imortal e que ela nunca perece ? não há outro capaz de decompô-la, pois o hem nunca destruirá
A estas palavras, fitou-me con1 um ar surprêso e depois o q ue quer que seja, assim como aquilo que não é nem um
Pu! Zc:: u.. ! uítu , ll41.,, lu, Je lt:u l.;Ju, püdedas
wc:: Ji.,.,c:: ; - bem nem um mal.
prová-lo 49? - Como, com efeito, seria isso possível ?
- S im, se não me engano ; creio mesmo que poderias - Se encontramos pois, na natureza, um ser cujo mal o
fazê-lo do mesmo modo, pois não é nada difícil. faz vicioso, sem poder todavia dissolvê-lo e perdê-lo', não sabe·
- Sim, para mim é; mas teria prazer em ouvir-te de· remos j á, que, para um ser assim constituído, não . há' destruição
monstrar essa coisa tão fácil. possível ?
- Escuta - disse eu. ..:._ Sim, aparentemente.
- Basta que fales. ...... - Mas quê? - perguntei o que torna a alma má
- Reconheces - indaguei - que existe um hem e um não é nada?
mal? - Mas sim - respondeu - há todos os vícios que enume·
- Sim. ramos: a inj ustiça, a intemperança, a covardia, a ignorância.
- Mas tu os concebes como eu? - Ora, será que um dês!:les vícios a dissolve e a perde?
- Como ? Cuidado para que não nos enganemos crendo que o homem
injusto e insensato, colhido em flagrante delito de crime, é per·

107 c :
dido pela injustiça, constituindo esta o mal da alma. Considera
48. Cf. Fédon dzteQ i) ..pux_-1) àiM.va>oç, �ltL!le)..e(a.ç ô� A moléstia, que é o
ÔEL"tO.L oõx ilzttQ "tOÜ XQÓvou "tOÚ'tou jlÓvov, EV <$ xa.ÀOÜjltV -ro tfiv, Ô.ÀÀ'
antes a questão da seguinte maneira.
vneQ !,_oii na.V"tóç.
vício do corpo , o mina, o destrói, e o reduz a n ão ser mais
um corpo ; e tôdas as coisas que mencionamos há um instante
apenas, devida a�sel). ·dci o.. inerente, que nelas se estabelece
49. O espanto de Glauco, observaram os comentadores, é difícil
de explicar. Mas Platão talvez queira simplesmente, por meio dêsse
espanto fingido, intensificar o interêsse da discussão e aumentar a permanentemente e as destrói, acabam levadas ao aniquilamento,
impaciência e a curiosidade no tocante à demonstração que se seguirá. não é?
A bem dizer, não é o interlocutor de Sócrates, mas antes o leitor da
República que é suposto ignorar que a alma é imortal.
_ _ Sim.
18
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P LA T Ã O A RE P Ú B L ICA
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242 243
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609 d 610 c 610 a - 61 1 a
Ii
É

- Pois bem ! , considera a alma do mesmo modo. - Seguramente observou - ninguém nos provará
l i verdade que a inj ustiça ou qual11uer outro vício, estabelecendo-se j amais que as almas dos moribundos se tornam mais injustas
nela de maneira permanente, a corrompe e a emurchece até con­ por efeito da morte.


,_ ·•I
.
I
'. .' duzi-la à morte, e separá-la do corpo 50 ?
- De forma nenhuma.
- De outro lado, seria absurdo pretender que um mal
- E se alguém - continuei - ousasse combater o nosso
raciocínio e pretender, a fim de não ser forçado a reconhec.er
a imortalidade da alma, que o moribundo se torna mais
l ;
I
estranho destrói uma coisa que o• seu próprio mal não pode
destruir.
perverso e mais injusto, concluiríamos que, se disse a verdade,
a injustiça é mortal, como a moléstia, para o homem que a traz
'i I
I
Sim, absurdo. · ·

- Preste atenção, Glauco, que a má qualidade dos ali·


em si, e que é dêste mal, mortífero por natureza, que morrem
aquêles que o recebem, os mais injustos mais cedo, os menos
l mentos, que é o vício inerente a êles, seja ela falta de fres­ injustos mais tarde, ao passo que, na realidade, a 'Causa da
I
' "" cura, ou apodrecimento, ou qualquer outra avaria, não é, se· morte dos malvados é o castigo que lhes é cominado devido a
gundo nós, o que deve destruir o corpo ; se a má qualidade
·

suas injustiças.
dos alimentos engendra no corpo o mal que lhe é próprio, - Por Zeus ! - exclamou - a injustiça não se apresen­
i
i diremos que, por ocasião da nutrição, o corpo pereceu pela taria como algo tão terrível, se fôsse mortal para quem a
.� doença, que é propriamente o seu mal ; mas que tenha sido
' recebe em si, pois constituiria uma libertação do mal; creio
_
.: '
destruído pelo vício dos alimentos, que são uma coisa enquanto
I

antes que se verificará, ao contrário, que ela mata os outros,


I
.I
o mal lig;do à sua natureza, eis algo em que j amais acredi­
êle é outra isto é, por um mal alheio que não teria engendrado tanto quanto está a seu alcance, mas dota de muita vitalidade
'
I ' e vigilância· o homem que a traz dentro de si 51, tão distante
taremos.
·

está ela de ser uma causa de morte.


i - Muito bem - disse êle. - Dizes bem; pois se a perversidade própria da alma, se
'
- Pela mesma razão - prossegui - se a moléstia do seu mal inerente não pode matá-la nem destruí-la, um mal
corpo não engendra na alma a moléstia da alma, j amais acre· destinado à destruiçãü de algo diferente gastará um• bocado
' . ditemos que a alma seja destruída por um mal alheio, sem a de tempo para destruir a· alma ou qualquer outro obj eto, além
intervenção do mal que lhe é próprio, como se uma coisa daquele ao qual está ligad o !
pudesse ser destruída pelo mal de uma outra. - Sim, gastará u m bocado de t�mpo, a o que parece !
- Teu raciocínio é justo. - Mas quando não há um único mal, próprio ou estranho,
- Assim, refutemos estas provas como falsas, ou então, capaz de destruir uma coisa, é evidente que esta coisa deve
enquanto não forem refutadas, evitemos dizer que a febre, existir sempre ; e se existe sempre, é imortal 52•
' I ou qualquer outra doença, ou o ferro, ainda que o corpo fôsse
todo retalhado em diminutos pedaços, possam contribuir para a
ruína da alma; a menos que nos demonstrem que o efeito 5 1 . A observação é bastante superficial ( V. liv. I, 352 c ) . Por
dêsses acidentes do corpo é tornar a alma mais injusta e mais isso Pia tão não a põe na bôca de Sócrates.
ímpia ; mas quando um mal estranho aparece em uma coisa, 52. Quando escreveu a República, Platão já afirmara sua fé na
imortalidade da alma, no mito do Meno11 ( 8 1 a-b) ; mais tarde,
apresentara, no Fédon, as três seguintes provas da imortalidade :
sem que se lhe. j unte o mal particular, trate-se da alma ou
do que quer que seja, não deixemos dizer que esta coisa
1° Se cada coisa nasce de seu contrário - como o mais do
po11sa por isso perecer. 1!. mister,
portanto, que, após a morte, as a lmas permaneçam em um lugar
menos, a posse da privação - a vida nasce da morte.

de onde, após certo te�o retornem à vi d a : ó.vayxa�ov "'àç


50. Para bem compreender essa argumentação, cumpre recordar-se "'éiiv nitveómov \jluxà; dvarttõ tS�ev ô-/j mii..w"" y(yveoita� ( 7 l c 72a) ;
� •

que' de acôrdo com Platão, a alma é essencialmente princípio de vida


(v. nota 52, pág, 243, 3.• prova do Fédon ) . Seu vício próprio não pode,
2• As coisas compostas dissolvem-se, de acôrdo com o próprio
modo que presidiu a agregação de suas partes. Ora, a alma, sendo
pois, destruí-la, nem, com mais razão, um vício alheio. s imples, escapa- à--deco1nposição..---- �- portanto imperecível. (Nesta

r., .

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R l!l P O B L I C A
611 a • b 611 b • d
- Neceeaàriamente -: confirmou. - Efetivamente, não é provável.
- Tomemos poie isto por- ..assentado ; mas se aesim é, ·
- O argumento fJUe acabo de expender, e outroa, nos
concebes que sejam sempre aa meemas almae que existem, obrigam portanto a concluir que a alma é imortal. Mas, para
poie o número delas não poderia diminuir, porquanto nenhuma conhecer bem sua verdadeira natureza, não devemos consi·
perece, nem, de outra porte, aumentar ; com efeito, se o núme�o derá·la, como fazemos, no estado de degradação em que a
doe eêrea imortais viesse a aumentar, sabes que aumentana colocam sua união com o corpo e outras misérias ; cumpre
com o que é mortal, e, ao íim, tudo seria imortal. contemplá-la atentamente, com os olhos do espírito tal como
,
- � certo o qut'! dizes. ela é quando é pura 04• Vê-la·emos então infinitamente mais
- Mas - prossegui - não acreditaremos niuo - a razão bela e discerniremos mais claramente a j ustiça e a injustiça,
não noe permite - nem, ademais, em que, na eua natureza e tôdas as coisas de que acabamos de falar. O que dissemos
essencial, a alma sej a plena de diversidade, dessemelhança e da alma também é verdadeiro com referência a seu estado
diferença consigo mesma. presente. Tanto é que, se a vissemos no estado em que se
O que queres di:r:er ? - perguntou. poderia ver Glauco, o marinheiro n, teríamos grande difi­
- t difícil que sej a eterno - como a ahna acaba de culdade em reconhecer sua natureza primitiva, porque as partes
se nos afigurar - um composto de muitas partes, se tais antigas de seu corpo foram, umas quebradas, outras desgastadas
partes não formam uma reunião perfeita 03• e totalmente desfiguradas pelas ondas, e porque delas
se for·
maram novas, compostas de conchas, algas e seixos. Assim, ..,..��...,,.
a alma se nos mostra desfigurada por mil males.
demonstr!IÇii" S(.rr!ltP! im•nrA "'''""" '1""1ir!Arl�• nn pntlllr"• �� AlmA : Gbuco, o que é preciso considerar 11d...
Mas eis,
v. g. , ela comanda, ela não muda, ela � aparentada ao dwmo etc . '
- 78 b-c, 80 a-81 a ) ; - O quê? - indagou.
3• Tôda coisa existe por sua participapção em uma Id�ia. �la
não pode existir e participar . ao �esmo t� mpo em.• du �s Idé1as

de dois contrários. · O ra, a alma � o principio da vida do corpo. cJliVitiasL ) . Ora, a imortalidade s6 pertence às substâncias simples.
contrárias. Nenhuma coisa admite, p0111 em 11, a reuruao Simultânea de modo algum, um conjunto perfeito (14� � "KaÀÀLC7't'tl �<e"QTJ�tévov
Enquanto princípio de vida, nã.o po� eria pa!ticipar da Idéia �a
morte · � imortal e por consegumte, mcorruptJVel: :tEQi 'tOU_ cHto:va·
Trata-se, p ortanto , de explicar como semelhante reunião pode ser
'tOU �l J'�V 6J40ÀOy;L'taL 11a.i dVIDÀEitQOV dvaL, \j)UX� lJ.v E['IJ, :tQbÇ 't�
imortal. l. o que S6criltes tentnrá na passagem que segue.
Certos comentadores relacionam oo0 vüv tcpávTJ i) �uxi) a I'� 't
dit�va'toç; s[vaL, xat dvtb>..sitQoç;. ( I 00 b segs. .e not. W� b e ,16� d ) .
Esta conclusão � a reciproca da prova do hvro X da Repubhea.
xaULC7'tn 'K'tÀ. Traduz-se então : �

St"m dis�utir o valor dP.ssas provas, cabe notar que Platão estava
"1!. difícil que seja eterno um ser
fonnado de várias partes, a menos que a reunião seja perfeita, como
acaba de nos parecer a da alma" . Mas esta interpretação defronta-se
convencido da imortalidade da alma antes de descobri-las. 1!. con·
"
com duas objeções:
vicção determinada e profunda em Platão, escreve E. Rõhde (.op. cit.,
trad. Reymond, pâg. 493), que a alma é uma substância independente 1 .9 Não está demonstrado que a alma seja uma reunião per­

2. • Se estivesse, não se explicaria que Sócrates, um pouco mais


que, do além do mundo sensível, onde o espaço não exist_e, ent�a· . no feita ;
espaço e no tempo; que não tem, com o corpo, uma relaçao orga.ruc� ,
mas se lhe vincula apenas exteriormente; que se mantém como esse �c1a adiante, compare a alma tal qual ela é na vida presente, e tal como
imaterial ou espiritual ao meio do escoamento e da ruma , das co1sas êle a estudou, ao deus marinho Glauco, mutilado e desfigurado pelas
sensíveis, não sem experimentar, nesta união, uma alteração e um ondas.
obscurecimento de sua luz pura, mas que pode, e deve, trabalhar a 54. Parece realmente que Platão identifica a alma pura ao
noções fundamentais; mas coloca-o em estreita relação com sua pr6pria
fim de se livrar disso. . . Platão toma aos teólogos o principal destas }.oyla'ttx6v. 56 o elemento racional da alma seria, pois, imortal.
Observar-se-á, entretanto, que esta imortalidade é pessoal, no que
filosofia . • • "
53. t preciso, ao que parece, c�nstruir : o'Ô 6q.ô1ov ... dtô1ov elvaL, 3, 1 0 . )
difere da que Aristóteles concede ao VOiJs...,!tOI!)'tiX6ç. _.LY._ Met., XII , )
.
dlç vüv Tti'LV lcpttV'IJ TI �UX� K'tÀ. A alma, com efeito, acaba de �e
depois de comer uma erva maravilhosa ; foi transmudado em deus
55. Glauco, pescador de Antedon na Be6cia, j ogou-se no mar
(� mormente no livro IX, 588 b segs . ) , que suas partes não formam,
.
m arinho e recebe\l o dom de · ptofecia,
nos apresentar imortal (ou eterna) ; mas vrmos no curso do colóqu1o
I

246 PLATÃO A REPÚ B LICA 247

61 1 e - 6 1 2 c 612 c • 613 b
60
- Seu amor pela verdade. É mister considerar quais e o malvado por j usto ; exigistes com efeito que, embora
objetos ela atinge, quais companhias ela procura, em virtude fôsse impossível enganar os deuses e os homens, isso vos
- de seu parentesco com o divino, o imortal e o eterno ; o que fôsse concedido, a fim de que a pura j ustiça fôsse julgada
ela se tornaria, se se entregasse inteiramente a esta busca, se, em relação à pura injustiça. Não te lembras?
solevada por um nobre impulso, surgisse do mar, onde ora se - Estaria por certo errado se não me lembrasse.
encontra, e sacudisse as pedras e as ·Conchas que a cobrem
- Pois hem ! , uma vez que foram j ulgadas, peço de nôvo,
presentemente, porque ela se sustenta de terra, crosta espêssa
em nome da j ustiça, que a reputação de que ela goza j unto
e áspera de areia e cascalho que se desenvolveu à sua super·
aos deuses e aos homens lhe sej a reconhecida por nós, a fim
fície nos festins que dizem bem-aventurados :;e, Então é que
de que obtenha também os prêmios que recebe da aparência
se poderia ver a sua verdadeira natureza, se é multiforme
ou uniforme, e corno é constituída. Quanto ao presente, descre­
e · que concede a seus partidários; pois mostramos que ela
dispensa os bens que procedem da realidade, e -que ela não
vemos assaz bem, parece-me, as afecções que ela experimenta
engana os que a acolhem realmente na alma.
e as formas que assume no curso de sua existência humana.
- Não pedes senão o j usto.
- Com tôda cerieza - disse êle.
- Ireis pois, em primeiro lugar, conceder·rne o seguinte
- Ora - continuei - não afastamos da discussão tôda
ponto : que os deuses, ao menos, não se equivocam sôhre o que
consideração estranha 57, evitando louvar a j ustiça pelas recom­
são o j usto e o injusto.
pensas ou pela reputação que proporciona, como fazem, dizeis
- Nós to concedemos.
vós, Hesíodo e Homero ? E não descobrimos que ela é o bem
supremo da alma tornada em si própria, e que esta deve - E se nãO< se equivocam, o primeiro lhes é querido e
6
cumprir o que é j usto, possua ou não o anel de Giges, e, o segundo odioso, como conviemos no comêço 1 •
além de semelhante anel, o capacete de Hades 58? - É exato.
- É muito certo - respondeu. - Mas não reconheceremo! que tudo o que vem dos
- Agora, Glauco, podemos, sem que sejamos censurados deuses será, para quem êles prezam, tão excelente quanto pos­
por isso, restituir à j ustiça e às outras virtudes, independen· sível, a menos que haj a atraído sôbre si, por 'urna falta
temente das · vantagens que lhes são próprias 59, as recompensas anterior 62, algum mal inevitável ?
de tôda natureza que a alma daí aufere, da parte dos homens :_ Sim, certamente.
e dos deuses, em vida e após a morte? ..._ - É preciso pois admitir, quando um homem justo está
- Com tôda certeza - disse êle. exposto à pobreza, à doença, ou a qualquer dêstes pretensos
- Então me devolvereis o que vos emprestei na discussão? males, que isto acabará volvendo em sua vantagem, em vida
ou após a morte; pois os deuses não poderiam descurar de quem
- O quê, precisamente?
quer que se esforce por tornar·se j usto e chegue a ser, pela
- Eu vos concedi que o justo podia passar por malvado,
prática da virtude, tão semelhante à divindade quanto é pos·
sível ao homem 63•

56. Literalmente : "pelo efeito dos festins que dizem bem-aventu­


rados".
5 7 . "Tôda consideração estranha" subentende-se "ao fim que nos 60. Lemos com Burnet: Vjl.EÍÇ yàQ Tjnt� ( Par. A e Stobée ) em
propusemos". Sabemos que êste fim era mostrar que a justiça em vez de i)yErcrl}e (mss. FD ) .
si mesma é o maior bem da alma. · 6 ! . No livro I, 352 b.
58. Sôbre o anel de Giges, v. livro I I , 359 e ; sôbre o capacete 62. Isto é, uma falta cometida no decaiSO de uma vida-·- ante•
de Hades : Homero, Illada V, 844-45, e Hesíodo, Escudo, 227. rior.
59. O texto traz simplesmente ltQOc; lxdvo�c;. :e preciso suben­ 63. Sôbre o Ôjl.O(<llmç 'ti!l itr.q,, objetivo do homem virtuoso, ci.
tender 'tOÍ$ àyatotc; o[� a1h� naQE(xno Tj lhxa�oa\mj. V. 6 1 4 a. supra li, 383 c., VI, 500 c-d, e o_JJiJ.,J:I4_j]fj .b-1 7 7 a.
r
P L A T A. O A R Fl I' O 11 t.I C A 249

613 b d

6 13 e • 614 c
- Por certo - anuiu 8le - é natural que tal homem não que qualificavas com razão de atrozes - e em seguida, "serão
seja descurado por seu semelhante. torturados, queimados com ferros quentes ea "; numa pa·
. • .

- Mas, no atinente ao injusto, não cumpre penaar lavra, suponha que me ouviste enumerar todos os suplícios que
contrário ? padecem, e vê se podes permitir que eu fale assim.
- Mas sim. - Certamente - respondeu - pois falas com j ustiça.
- Tais são portanto os prêmios que, da parte dos deuses, - Tais são portanto os prêmios, as recompensas e os
cabem ao j usto. presentes que o j usto recebe dos deuses e dos homens durante
Pelo menos é como eu sinto. a vida, afora os bens que a própria j ustiça lhe proporciona.
- E da parte dos homens? - indaguei. - Não é assim - São seguramente belas e sólidas recompensas. e
i
que as coisas se passam, se é preciso dizer a verdade ? Os - Entretanto - reatei - nada são, nem pelo número I

hábeis patifes não procedem como êsses atletas que correm nem pela grandeza , em comparação com o que aguarda, após
bem ao subir o estádio, mas não quando tornam a des· a morte, o j usto e o injusto. t o que se deve entender, a
cê-lo 64? Lançam-se primeiro com rapidez, mas ao fim a fim de que um e outro receban1 até o fim o que lhes é devi
gente se ri dêles, vendo-os, de orelha caída, retirar-se precipi· pela discussão.
tadamente sem ser coroados ; ao passo que os verdadeiros cor· - Fala ; pouquíssimas coisas eu ouviria com mais praz
redores chegam à mela, arrebatam o prêmio e recebem a coroa. - Não é de modo algum -- disse eu - o relato d
Ora, não acontece o mesmo, de ordinário, com os j ustos? Ao Alcínoo que vou fazer-te, mas o de um homem valente 66,
têrmo de tôda emprésa, de todo comércio que mantêm com Er, filho de Armênio, oriundo da Panfília 67• Foi morto numa
os outros, e de suas vidas, não adquirem êles bom renome batalha ; dez dias depois, como fôssem retirados os cadáveres
e não conquistam os prêmios que os homens conferem '( já pulrdalu�, u sc::u fui dt�Scuhc::rlu inlalo. Transportaram-no à
- Sim, por certo ! casa para o amortalhar, mas, no décimo segundo dia, quando
- Aceitarás pois que eu aplique aos j ustos o que tu j azia sôbre a pira, voltou à vida ; ao retomar os Sentidos,
mesmo afirmaste dos perversos. Pretendo, com efeito, que os contou o que vira no além. Tão logo, disse êle, a sua alma
j ustos, chegando à idade madura, obtenham em suas cidades as saíra do corpo, caminhara com muitas outras, e elas• chegaram
a um lugar divino 68, onde se viam na terra duas aberturas
magistraturas que desej am obter, que escolhem a mulher que
queiram e dêem os filhos em casamento a quem lhes aprouver ; e situadas lado a lado e, no céu, no alto, duas outras que lhes
faziam face. No meio estavam sentados j uízes que, após
tudo o que disseste dos outros, digo agora dêstes. E direi
também, quanto aos malvados, que na maioria;" ainda que escõn· proferir as sentenças, ordenavam aos j ustos de tomar, à direita,
dam o que são durantfl a j uventude, deixam-se apanhar ao fim o caminho que ascendia através do céu, depois de lhes prender
da carreira, e convertem-se em objeto de derrisão ; chegados à na frente um escrito contendo o j ulgamento ; e aos malvados
velhice, são insultados na sua miséria pelos estrangeiros e
pelos cidadãos, são fustigados· e submetidos a êsselil castigos 65. A mudança de tempo, no texto, é muito difícil de explicar; por
isso, alguns eoitôres, com Ast e J. Adam, suprimem d,;a <TtQ26ÂÓIO'O'V't!ll
xal lxxauihíaov'taL. Mas pode-se, parece, considerar esta parte da frase

Glauco no comêço do diálogo, Ih·. II, 361 e : O''tQE6/,ÓIO'E't!ll, ôaô1\0'B'tllL,


como uma citação incompleta, e feita de mem6ria, das palavras de
sistia em percorrer o estádio até o extremo ( xaiiJtTIÍQ ) , e, depois de
64. Comparação tomada ao ô(auÂo�, ou dupla corrida, que con·

dada a volta, retornar ao ponto de partida. O primeiro trajeto era


�xxau�ae'taL ,;oocpitaÂJ.LÓI.
chamado M:b 'tíiív xá,;ro, e o segundo M:b 'tíiív lJ.vw. No pensamento 66. Há no texto um jôgo de palavras entre 'AÃx(vou, Alcínoo, e

67. O mito de Er, o Panfiliano, não é pura invenção de Platão.


de Platão, o extremo simboliza o meio da vida. Até aí o malvado dÃXLJ.LOU, homem valente.

O
triunfa, pois o aprendizado da, virtude não é tão fácil, como o do
vício ; mas quando termina - na idade madura - o homem de filósofo colheu os seu� principais elementos nas ttad1çÕes órhcas e

livre. V. Proclo, C.omm . Í1l Remp. I I , 1 1 0, ed. Kroll.


bem adianta-se ràpidamentc sôjne o malvado, qual uma espécie de pitag6ricas; mas, conforme o seu costume, utiliza-os de maneira muito

68. Sôbre êste -r6noç llaLJ.I.ÓVLO� v. Fédon --IOJ_ d, e- O--Górgias, 524 a.


vencedor da competição, e recebe as justas recompensas de sua
virtude.
250 PLATÃO A REPÚBLICA 251
I'

I
614 c - 615 a 615 a• e

de tomar, à esquerda, a via descendente, portando também recebia , para cada falta, por seu turno, dez vêzes a sua pumçao,
mas atrás, um escrito em . q»e constavam tôdas as ações que e cada punição durava cem anos, isto é, a duração da vida
praticaram. Como êle se aproximasse, por seu turno, os J mzés humana, de modo que o resgate fôsse o décuplo do crime.
disseram-lhe que devia servir aos homens de mensageiro do Por exemplo, os que haviam causado a morte de muitas pessoas,
além e recomendaram-lhe que ouvisse e observasse tudo quanto · seja atraiçoando cidades ou exércitos, sej a reduzindo homens à
se passava naquele lugar. Viu pois as almas que se iam, uma escravidão, seja prestando ajuda a qualquer outra malvadez,
vez j ulgadas, pelas duas aberturas correspondentes 69 do céu eram atormentados ao décuplo por cada um dêsses crimes.
e da terra ; pelas duas outras, entravam almas, que por um lado Os que, ao contrário, haviam feito o bem em redor dêles, q �e
subiam das profundezas da terra, cobertas de imundície e pó tinham sido justos e piedosos, obtinham na mesma proporçao
e, por outro, desciam, puras, do céu ; e tôdas essas almas que a recompensa merecida. No caso das crianças mortas desde
afluíam incessantemente pareciam ter feito longa viagem ; ga· 0 nascimento, ou que viveram apenas poucos dias, Er fornecia
nhavam com júbilo a pradaria e nela acampavam como em outros pormenores 71 que não merecem ser descritos. Para a
assembléia de festa. As que se conheciam se desejavam mutua­ impiedade e a piedade no tocante aos deuses e a os pais, e
mente boas-vindas e se inquiriam, as que vinham do seio da para o homicídio 72, havia, segundo êle, salários ainda maiores.
terra, do que se passava no céu, e as que vinham do céu, do - Estivera de fato presente, dizia, quando uma alma
que se passava debaixo da terra. Aquelas narravam suas aven· perguntou a outra onde se achava Ardieu, o Grande 73• €ste
turas gemendo e chorando, à lembrança dos males sem número Ardieu fôra tirano de uma ciCiacle da Panfília mil anos antes
e de tôda espécie que haviam sofrido ou visto sofrer, no dêsse tempo ; matara o velho pai, o irmão primogênito, e per·
decurso de sua viagem subterrânea - viagem cuj a duração petrara, diziam, muità� outras ações sacrílegas. Ora, a alma
é de mil anos 70 ' - enquanto estas, que procediam do céu, interrogada respondeu : "�!e não veio e j amais virá aqui.
falavam de prazeres deliciosos e de visões de extraordinário Pois, entre outros espetáculos horríveis, vimos também êste.
esplendor. Contavam muitas coisas, Glauco, que exigiriam muito Como estivéssemos perto da abertura e a ponto de tornar
tempo para ser relatadas. Mas aqui está, segundo Er, o a subir, depois de têrmos sofrido nossas penas, percebemos
resumo. Por determinado número de injustiças que cometera de súbito êste Ardien com outros - a maioria se compunha
em detrimento de uma pessoa e por determinado número de de tiranos como êle, mas havia também particulares que eram
pessoas em cujo detrimento cometera a inj ustiça, cada alma culpados de grandes crimes ; acreditavam poder subir, mas a
abertura lhes recusou passagem, e ela bramia cada vez que
69. Isto é, pela abertura direita do céu e pelà' abertura esquerda tentava sair um dêsse::- homens que se haviam votado irreme·
da terra. Acêrca do s�ntirlo simbólico da passagem, cf. Aristóteles diàve!mente ao mal, ou que não haviam suficientemente expiado.
( Frag. 1 95 ( 1 5 1 3 a 24 segs. ) : "tles ( os pitagóricos) denominavam Então, dizia êle, sêres selvagens, de corpo todo abrasado 7', que
bom o que está à direita, no alto, em frente, e mau o que está
à esquerda, embaixo, atrás". Uma inscrição descoberta num túmulo,
perto de Túrio, termina por estas palavras : xniQE, xniQe, ôe!;u1v 7 1 . Alusão aos limbo� que constituem provàvelmente uma invenção
óôoutoQíiív ÀEtJLtiíváç te leQoi•ç x�tt llÀoen q>eQOEq:>ovdnç (lns. gr. Sic, dos órficos. V. Dieterich. Nek)·ia, pág. ! 58 ( Leipzig, 1 893 ) . Cf.
et lt., 642 ) . "Reencontramos aqui, escreve E. Rõhde ( op. cit., pág. igualmente Virgílio, En. VI, 426, e, para a transposição cristã desta
444, n. 4 ) , numa época relativamente antiga, a lenda rlas vias de crença, Dante, Inferno IV, 30.
entrada do mundo subterrâneo, uma que se dirige à direita ao XOOQ OÇ 72. o texto traz nutÓ)(.ELQOÇ <pÓV0 \1, A expressão nutÓ)(;!LQ cpóvoç
euoe6tiív, e outra à esquerda, ao lugar onde são punidos os líôtxot, significa "assassínio que se perpetra com as próprias mãos" e não
Sua origem talvez estej,, em fantasias rlas seitas místicas da Itália "suicídio", como entenderam certos tradutores.
Meridional: ôe!;t6v e UQtOtEQÓV significam, na tabela pitagórica
73. Segundo J. Adam, trata-se de personagem puramente fie·
das oposições - como, aliás, desde há muito na arte da adivinhação
tícia.
pelos pássaros - a mesma coisa que àynMv e xnxóv.
74. !.stes sêres de corpo todo abrasado são os prot6tipos dos
70. Cf. Virgílio, Eneida, VI, 748-49 :
xoÃátovteç Õ.yye'J..o1 rla literatura apocalíptica. V. o Apoc. de Pedro,
Has omnes ubi mil/e rotam volvere per annos v. 2 1 , 23, e cf. Eusébio, Praep. Evang. XIII, 1 3 , 5. - Nota de
Lethaeum ad fluvium deus evocat agmine magno. Adam,

OR!G\N�l
se
252 P L ATÃ O A R JD P 'O B L I C .A 258

6U e - 616 e 61 6 e - 6 1 7 b
ae mantinham por perto, ouvindo o bramido, agarraram algune mando uma superffcie continua de um só pêlo em t&-no da
e 01 levaram embora ; quanto a Ardieu e aos outros, depoie de haste, que paaaa pelo centro do oitavo. O bordo circular do
lhes prender as mãos, os pée e a cabeça, derrubaram-!nos, esfo· primeiro pêao, o pêao extemo, é o mais largo ; seguem-se,
laram·nos, arrastaram-nos à beira do caminho e obrigaram-nos sob êste aspecto : em segundo lugar, o do sexto ; em terceiro
a ajoelhar-se sôbre giesta espinhosa, declarando a todos os lugar, o do quarto, em quarto lugar, o do oitavo, em quinto o
passantes por que os tratavam assim, e que iriam precipitá-los do sétimo, em sexto, o do quinto, em sétimo, o do terceiro e
ao Tártaro 70", Neste lugar, acrescentava, tinham sentido real· em oitavo o do segundo 78• O primeiro circulo, o círculo. do
mente terrores de tôda sorte, mas aqueloutro superava a todos: maior, é palhetado, o sétimo brilha com o mais vivo fulgor,
cada um temia que o bramido se fizesse ouvir no momento em o oitavo ae colore com a luz que recebe do sétimo, o segundo
que subisse, e constituiu para êles viva alegria subir sem que e quinto, que possuem qua·se o mesmo matiz, são mais amarelos
êle rompesse o silêncio. Tais eram pouco mais ou menos as que 011 precedentes, o terceiro é o mais branco de todos, o
penas e os castigos, assim como as recompensas correspon· quarto é avermelhado, e o sexto tem o segundo lugar quanto
dentes. à alvura 80• O fuso. inteiro gira com um mesmo movimento
Cada grupo passava sete dias no prado ; depois, no circular, mas, no conjunto arrastado por êste movimento, os
oitavo, precisava decampar e pôr-se em marcha para alcançar, sete círculos interiores realizam lentamente revoluções em sen·

I
quatro dias depois, um lugar, de onde se descortinava, esten· tido oposto ao do todo 81 ; dêstes círculos, o oitavo é o mais
dendo-se desde o alto, através de todo o céu e de tôda a terra, rápido, depois vem o sétimo, o sexto e o quinto que são do
urna luz reta qual uma coluna 16, muito semelhante ao arco-íris, mesmo grau quanto à velocidade; sob êste mesmo aspecto,
porém mais brilhant!J ç mais pura. Aí chegaram, após um o quarto lhes pareceu ocupar o terceiro lugar nesta rotação
dia de caminhada ; e lá, no meio da luz, viram as extremidades
das amarras do céu 77, pois esta luz é o laço do céu: como as
armaduras que cingem os flancos das trirremes, ela mantém o estrêlàs fixas e as órbita� doa sete planêtas, dispostos, a partir dêste
círculo, na seguinte ordem : 2. Saturno (l)a(vrov) ; 3. Júpiter (l)aéit(l)v) ;
4. Marte ( ll uQÓEI�) ; 5. Mercúrio (:E,;tk&rov) ; 6. Vênus (l) roocp6ooç) ;
conjunto de tudo o que o céu arrasta em sua revolução ; nestas
extremidades fica suspenso o fuso da Necessidade, que faz
7. Sol (�HM.oç) ; 8. Lua CEtkT}VT)) . V. Timeu, 38 c-d.
girar tôdas as esferas; a haste e o gancho são de aço, o pêso,
79 Parece que as larguras dos bordos circulares representam as
de uma mistura de aço e outros materiais. Eis qual a natureza
. •

distâncias entre as circunferências concêntricas percorridas pelos se.te


do pêso : quanto à forma, assemelha-se aos desta terra ; mas, planêtas. Se admitinno8 tal hipótese, a maior distância é a que
pelo que dizia Er, cumpre representá-lo como um grande pêso separa Saturno do circulo das estrêlas fi�as ; seguem-se, por ordem
completamente ôco por dentro, ao qual se aj usta outro pêso de grandeza decrescente, as distâncias : 2. Sol-Lua ; 3. Mercúrio-Vênus;
4. Marte-Mercúrio ; 5. Lua-Terra (a Terra é considerada o centro
similar, porém menor, à maneira dessas caixas que se aj ustam do sistema planetário) ; 6. Vênus-Sol ; 7. Júpiter-Marte ; 8. Saturno­
umas às outras, e, an àlogamente, um terceiro, um quarto e ·Júpiter.
mais quatro outros. Pois, ao todo , há oito pesos inseridos uns 80. As côres dos diferentes planêtas são aqui atribuídas às suas
nos outros, exibindo no alto seus bordos circulares 78, e for· respectivas órbitas.
8 1 . Cf. Timeu, 36 c·d : "O movimento do círculo externo êle
(Deus) o denominou movimento da natureza do mesmo (,;Tjç ,;ail,;o\i cpú­
75. Cf. Fédon, 1 1 3 e. oeroç) , e o do círculo interno movimento da natureza do outro
(-rijç itCldoou) , O movimento da natureza do mesmo, êle o dirigiu
com a Via-láctea (yaka.!;!a.ç úxkoç ) , V. Proclo, Comm. in Remp.
76. Certos comentadores antigos identificaram esta coluna de luz
x segundo o lado de um paralelogramo, para a direita, e o movimento
da natureza do outro, segundo a diagonal, para a esquerda. !le
1 30, 4, 1 94, 19 segs., e Cícero, De Rep. VI, 9 (Sonho de Cipiiío) .
7 7. Literalmente: "E.les irám, estendendo-se desde o céu, as extre·
atribui o poder ao movimento do mesmo e do semelhante, ao não
v' dividi-lo ; ao contrário, dividiu em seis 'partes o movimento interior
midades de suas amarras". e fêz assim sete círculo' desigua.is . . . " Nesta passagem, para a direita
78. Os bordos circulares dos oito pesos - ou mais exatamente as segnifica do oriente para ocidente, e para a esquerda do ocidente para
circunferências externas dêstes bordos - simbolizam o círculo das o oriente.
···-···- �- .. �--�----

254 PLATÃO A REP Ú B L IC A 255


617 b - d 61 7 d - 6 1 8 a

3I inversa, o terceiro o quarto lugar e o segundo o quinto 82• O � 1 .
- "Declaração da virgem Láquesis, filha de Necessidade. "'
próprio fuso gira sõbre os · 'juelhos da Necessidade. No alto de Almas efêmeras 83, ides começar nova carreira e renascer na �

I
. �: cada círculo, fica uma Sirene que gira com êle fazendo ouvir condição mortal. Não será um gênio que há de vos sortear, .,/l-:1�
um único som , uma só nota ; e as oito notas compõem j untas sois vós mesmas q u e escolhereis vosso gênio. Que o primeiro


; .
uma só harmonia. Três outras mulheres, sentadas em re�or, designado pela sorte escolha, em primeiro lugar, a vida à qual ()

·

' a intervalos iguais, cada uma sõbre um trono, as filhas da estará unido pela necessidade. A virtude não tem mestre : cada 'iJ
:11 ' Necessidade, as Parcas, vestidas de branco e com a cabeça
: :·
um de vós, conforme a honre ou a desdenhe, terá mais ou
coroada de fitas, Láquesis, Cloto e Atropos, cantam, acom­ menos virtude. A responsabilidade cabe a quem escolhe. Deus
panhando a harmonia das Sirenes : Láquesis o passado, Cloto o não é responsável 84".
presente, Atropos o futuro. E Cloto toca de tempos em tempos - A estas palavras, lançou as sortes e cada um apanhou a
com a mão direita o círcu lo externo do fuso para fazê-lo girar, que caiu perto dêle, salvo Er, a quem não foi permitido fazê-lo.
enquanto Atropos, com a mão esquerda, toca similarmente os Então cada um soube que lugar lhe coubera na ordem da
círculos internos: Quanto a Láquesis, toca · alternadamente o escolha. Depois disso, o hierofante desdobrou diante dêles mo·
primeiro e os outros com uma e outra mão.
- Portanto, quando chegaram, tiverám que se apresentar
imediatamente a Láquesis. E primeiro um hierofante os alinhou Juntando os têrmos cuja soma é igual a 9, teremos a seguinte figura
simétrica:
em ordem ; a seguir, apanhando sôbre os j oelhos de Láquesis 2 3 4 5 6 7 8
sortes e modelos de vida, galgou um estrado elevado e falou 8 7 3 6 2 5 4

........- ........-
assim :

Tomemos, agora, a ordb das côres; escrevamos em baixo os


82. o conjunto das indicações precedentes pode resumir-se no números de ordem dos pesos correspondentes e juntemos do mesmo
quadro abaixo : modo os · têrmos cuja soma é 9. Teremos duas simetrias :

Lugar das 1 4 6 7 5 8 2 3


Lugar das 5 3 4 6
Ordem dos distâncias Lugar
velocidades �
à int.)
cfrculos ou órbitas (da ext. das côres
de revolução
E Ófim, consideremos a ordem das velocidades ; teremos as três
I '' lugar
figuras seguintes :
1. Estrêlas fixas . . . . ! .• lugar i • lugar


2.
3.
4.
Saturno
Júpiter
Marte
a•
7•
3•
4•
6•
7•
6•
5•
4•
1

=9
8
........-
C�D
= 9 X 2
4 + 3 + 2
...__..
= 9
5. Mercúrio 6• 5• 3•
6. Vênus 2• e• s• :e permitido supor que, por meio dessas combinações simétricas,
7. Sol . ......... 5• 2• s• Platão quisesse mostrar que, no sistema celeste, tudo está pautado
8. Lua ..... .. ... 4• 3• 2• segundo uma ordem e um equilíbrio perfeitos. Que êle se inspira,
no caso, em doutrinas pitagóricas, mal é necessário assinalar. Mas está
É certo que Platão tomou a maioria dêstes dados aos astrônomos plenamente de acôrdo com os princípios que forn10lou no livro VII e
da época. Mas êle os combina, parece, de maneira muito livre, a fim o método a priori que aplica é efetivamente o que deve seguir, segundo
de obter certas relações numéricas. Em um estudo muito engenhoso Platão, o verdadeiro astrônomo ( T(ii lívTt d<TCQOVO!ttxóç, 530 b ) .
( Classical Review, XVI, pág. 292 segs . ) , o Prol. Cook Wilson mostrou
que a ordem respectiva das di:;tâncias, das côres e das velocidades, foi
8 3 . De acôrdo com Proclo (In Remp., 2 7 0 ) , essas almas se
denominam efêmeras porque vão renascer na condição mortal.
estabelecida de tal modo que a soma de certos têrmos simétricos seja 84. A alma é absolutamente livre na escolha de seu destino, mas
sempre igual a 9. a sua decisão é irrevogável. Deus não é responsável pelo mal que
Escrevamos, com efeito, os números de ordem dos oito pesos e, ela possa infligir ou sofrer, porque êle só quer o bem,. Cf. Timeu,
por baixo, o lugar que ocupam, pelo que tange à largura dos bordos. 30 a.

- ·· · -·----'
- ---....
·.. ' ,1
·<;
266 PLATÃO A R E I' O D L I C A 257

618a • e 6 1 9a • e
deloa de vida em número muito superior ao das almas preeentee. descer ao Hades, a fim de não ficar deslumbrado, lá tampouco,
Havia de tôdae as eapécies t- · tôdas as vidas doa animais e tôdae com as riquezas e os miseráveis objetos desta natureza ; de
aa vidas humanas ; encontravam-se tiranias, umas que duravam
a causar ma es ae� número e sem remédio, e a sofrê-lo, por
não se expor, j ogando-se sôbre tiranias ou condições semelhantes,
até a morte, outras interrompidas ao meio, que findavam na _l .
pobreza, no exílio e na mendicidade. Havia também vidas de sua vez,. maJores amda ; a f1m de saber, ao contrário, eleger
homens afamados seja pelo aspecto físico, pela beleza, pela sempre uma condição média e fugir aos excessos nos dois sen·
fôrça ou pela aptidão de luta, sej a pela nobreza e pelas grandes tidos, nesta vida dentro do possível, e em tôda vida vindoura

qualidades de seus antepassados ; achavam-se igualmente outras, pois é a isso que se prendeu a máxima felicidade humana.
obscuras sob todos êsses aspectos, e para as mulheres sucedia - Ora pois, consoante o relato do mensageiro do
o últi� o
além o
o mesmo. Mas tais vidas não implicavam qualquer caráter hierofante dissera ao lançar as sortes : "Mesmo para
determinado da alma e&, porque esta devia necessàriamente mudar chegado, se efetuar uma escolha sensata e perseverar
com ardor
segundo a escolha que fizesse. Todos os outros elementos da na existência escolhid a, trata-se de uma condição agradáv
el e
existência estavam misturados, e com a riqueza, a pobreza, nada má. Que o primeiro a escolher não se mostre negligen
te,
a enfermidade e a saúde ; entre êstes extremos existiam par· e que o último não perca a coragem". Quando acabava de
tilhas médias. t aí, parece, amigo Glauco, que reside, para pronunciar estas palanas, disse Er, aquêle
a quem coubera a
o homem, o risco capital ; eis por que cada um de nós, pondo primeira sorte veio diretamente escolher a maior
tirania e
de lado qualquer outro estudo, deve preocupar-se sobretudo
em buscar e cultivar aquêle, em ver se está em situação de
arrastado pela loucura e pela avidez, tomou-a sem
suficiente�tente o que fazia ; não viu que nela estava
examina ;
conhecer e (lpqrnhrir n homem que lhe dará a capacidade . e a pelo deshno que o seu possuidor devoraria os filhos
implicado
e co·
ciência de discernir ae boas e as más éondições, bem como meteria outros horrores ; nias depois de examiná-la
com vagar
do as adver:
escolher sempre, e em tôda parte, a melhor, na medida do golpeou-se no peito e deplorou a escolha, esquecen
possível. Calculando qual o efeito dos elementos de que aca­ tências do hierofante ; pois, em vez de se acusar
bamos de mencionar, tomados em conjunto, e depois separada· por seus
males, atribuía-os à fortuna, aos demônios a tudo
mente, sôbre a virtude de uma vida, saberá o bem e o mal , exceto a si
mesmo. Era um dos que vinham do céu : passara
que oerta beleza proporciona, unida, quer à pobreza, quer à a \rida ante­
rior numa cidade bem policiada, e aprendera a
virtude pelo
riqueza, e acompanhada desta ou daquela disposição de alma ;
quais as conseqüências de um nascimento ilustre ou obscuro,
� !
há ite e sem fi osofia 86• E pode-se dizer que,
entre as almas
ass1m surpreendidas, as procedentes do céu não eram
de uma condição privada ou pública, da fôrça ou da fraqueza, as menos
numerosas, porquanto não haviam sido provada
da facilidade ou da dificuldade de aprender, e de tôdas as s pelos sofri­
mentos ; ao contrário, a maioria das que chegava
qualidades semelhante:; da alma, naturais ou adquiridas, quando m da terra,
tendo elas próprias sofrido e visto outros sofrer, não
mescladas umas às outras ; de sorte que, comparando tôdas estas efetuavam
a sua escolha às pressas. Daí decorria, assim como
considerações, e não perdendo de vista a natureza da alma, dos azares
do sorteio, que a maior parte das almas trocavam
poderá escolher entre uma vida má e uma vida boa, chamando um bom
por um mau destino ou inversamente. E tanto mais que, se
de má a que terminasse por tornar a ahna mais injusta, e de
cada vez que um homem nasce para a vida terrena,
boa a que viesse torná-la mais justa, sem se preocupar com êle se
aplicasse sadiamente à filosofia, e se a sorte
todo o mais; pois já vimos que, durante esta vida e após a não o chamasse
a escolher entre os últimos, parece, ao que se
morte, é a melhor escolha que se possa fazer. E cumpre relata do além
guardar esta opinião com uma inflexibilidade adamantina ao que não só êle seria feliz neste mundo, como
sua viage �
86. Trata-se de uma id éia à qual Platão volta amiúde
: a prática
tanto, ind5.cados nas sortes. E segundo isso ó que as almas deviam
85. 86 os acontecimtntos e as circunstâncias da vida eram, por­
da virtude, se não fôr esclarecida pela filosofia, não basta
gurar a nossa salvação eterna.
para asse·
julgar os destinos que lhes eram ofertados.
"
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PLATÃO

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REPÚBLICA

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dêste ao outro e seu retôrno se fariam, não pela áspera senda
num canto, desdenhada pelos outros; e, ao percebê-la, declarou
subterrânea, mas pela via.·phma do céu 87 •
que não teria agido de outro modo, se a sorte a tivesse chamado
- O espetáculo das almas escolh�ndo sua co ção, a;res­
.
n�li em primeiro lugar e, alegre, escolheu-a. Os animais, similar­
centava Er, valia a pena ser visto, pors era deploravel �rdrculo mente, passavam à condição humana ou à de outros animais,
!
e estranho. Com efeito, era de acôrdo com os habrtos da os inj ustos, às espécies ferozes, os j ustos às espécies domesticadas ;
vida anterior que, na maior parte do tempo, faziam a escolha. efetuavam-se assim misturas de todo gênero.
Vira, dizia, a alma que foi um dia a de Orfeu- escolher a
- Depois que tôdas as almas escolheram as respectivas
vida de um cisne, porque, com ódio do sexo �ue lhe dera a
vidas, adiantaram·se na direção de Láquesis, na ordem que a
morte não queiia nascer de uma mulher ; vrra a alma de
;
Tâmi as escolher a vida de um rouxinol, um cisne trocar sua
sorte lhes determinara. Ela deu a cada uma o gênio que
preferira, para servir-lhe de guardião durante a existência e
condição pela do homem, e outros animais cantores p� o;�der
cumprir a destinação. O gênio a conduzia prillleiro a Cloto
do mesmo modo. A alma chamada a escolher em VIgesrrno
e, fazendo-a passar soh a mão desta e sob o turbilhão do fuso
lugar assumiu a vida de um leão : era a de Ajax,. filho e � em movimento, ratificava o destino que ela elegera. Após ter
Télamon que não queria renascer no estado de homem, pms
tocado o fuso, a levava até a trama de Atropos, a fim de tornar
não esquecera o j ulgamento das armas. A seguinte era a alma
irrevogável o que fôra fiado por Cloto ; então, sem se voltar, a
de Ao-arnenon
b sentindo também aversão pelo gênero humano,
por causa de suas desventuras passadas, trocou � sua c? nd'rçao
alm·a passava debaixo do trono da Necessidade ; e, quando
·
'

-
tôdas se encontraram do outro lado, dirigiram-se à planície do
pela de urna águia . Chamada entre as que havram obtido um
grau médio, � alma d(; Atalanto, consideran o as gran es honras
� �
. Lete, em meio de um calor terrível que queimava e sufocava :
pois esta planície é desnuda de árvores e de tudo quanto
prestadas aos atletas, não pôde pa�sar adiante, e. as escolheu
_ : brota da terra. Veio o• anoitecer, elas acamparam à margem
Viu' a se"'uir,
b a alma de Epeu, filho de Panopeia, passar a
condição de mulher industriosa, e 1 onge, nos u'1 tirnos 1ugares, a
. do Riq Ameles, cuja água nenhum vaso pode conter. Cada

do bufão Tersito revestir a forma de um macaco 88• Enf � , vm


. alma é obrigada a beber certa quantidade desta água, mas as
que não conservam a prudência bebem mais do que deveriam.
a alma de Ulisses, a quem a sorte fixara o último lugar, adiantar·
Bebendo-a, perde-se a lembrança de tudo 89• Ora, quando ador·
-se para escolher ; de�pojada da ambição pela lembr�� ça das
meceram, e veio o meio da noite, estrugiu um trovão, acompa·
fadigas passadas, girou longamente à procura da tranqmla co�·
. nhado de um tremor de terra, e as almas, cada uma por uma
dição de um homem privado ; a custo achou urna que ) azia
via diferente, de repente lançadas nos espaços superiores para
o lugar de seu nascimento, despontaram como estrêlas. Quanto
8 7 . No Pedro, 249 a, Platão diz que a alma não pode retornar a êle, dizia Er, fôra impedido de beber da água ; entretanto,
ao lugar de onde partiu e recobrar asas, salvo após dez mil anos não sabia por onde nem como a sua alma se lhe reunira ao
de provas em diversas condições terrestres. Mas as a�mas que ele­ corpo ; abrindo de súbito os olhos, ao amanhecer, vira-se esten·
geram três vêzes seguidas a viua filosófica podem lá voltar ao cabo
de três mil anos. dido sôbre a pira.
88. Segundo Proclo ( Comm. in Tim., 329 d-e ) , cumpre en­ - E assim, Glauco, o mito foi salvo do esquecimento e não
__

se perdeu ; e êle pode salvar-nos, se lhe j untarmos fé ; atra·


,
tender a passagem em sentido figurado. As almas adotam a natureza
e 0 carâter de certos animais, mas não os seus �orpos :
õ' o�v xnt õ,;1 II /.n,;rovtxoç ó /.Óyoç illtOiloYiíOnL XQT), xnQnitt'tEov on 'tE
u
vessaremos então venturosamente o rio do Lete e não macula­
remos a nossa alma . Se portanto acreditais em mim, persuadidos
tv IToÀL'tELc;,t ,;�v 'ljlux�v ,;o� 8EQOL'tou x(in)xov ÊvÔ�Eoi},n( <p�OLv, d/.�'o�
o&��on xdhíxtwv, xnt f.v il/ntÕ�(!l ( 249 b) x�,;u:_vnL ELÇ �Lov �QELO�, n/.).. de que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males,
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oúxt tlç OÜ>IloU it'Í)QEIOV • Ó 1nQ fl(oç !AoE'tCI. ,'TlÇ, OIX�IUÇ ÊO't� 'lj!UX") . xn\
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f.v ,;oÚ'toL; ��onnflál-l.tLv dç ilT)QELov <puOLv • T) ynQ it'Í)QEW� cpvoLç ovx lo•�
,
'tO OÓlllo<l 'tO it'Í)QEIOV dH' n �roi] 'tOÜ in)QLOV. � Essa mterpretaç_ao e
. 89. Cf. Virgílio, Eneida, VI, 7 1 4 :
engenhosa, mas falsa, como provam as escolhas de Orfeu, AJaX e " . . . Lethaei a d fluminis undam
Agamenon. Securas latice> et longa oblivia potant.

ORiGiNAL

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