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PROPÓSITO
Compreender, no modelo ateniense de democracia, a partir da contribuição dos filósofos
clássicos – Sócrates, Platão e Aristóteles – e seus contemporâneos, o papel dos governantes e
governados naquela sociedade.
PREPARAÇÃO
Antes de iniciar o estudo deste tema, é importante ter à mão um bom dicionário de teoria
política ou mesmo de filosofia. Sugerimos o Dicionário de Filosofia, de Abbagnano, e o
Dicionário de Política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino.
OBJETIVOS
MÓDULO 1
MÓDULO 3
INTRODUÇÃO
Por volta dos séculos V, IV A.E.C., houve, na cidade-Estado de Atenas, na Grécia, um
fenômeno que entrou para a história da civilização ocidental: a criação da democracia. Não era
exatamente como este sistema que hoje nós chamamos pelo mesmo nome. Se por um lado
excluía parcela considerável da população das decisões políticas, por outro apresentava
aspectos até mais ousados do que a que vivemos atualmente (como a participação do cidadão
comum nas decisões estatais).
Não deve ser coincidência, por exemplo, que três dos maiores nomes da filosofia de todos os
tempos – Sócrates, Platão e Aristóteles – tenham vivido exatamente nesse período e nesse
lugar, sem contar no florescimento do teatro e de outras escolas do pensamento, como a
sofística. Em comum, todos os três grandes filósofos pensavam em como a ética é
indispensável no trato da coisa pública, que os governantes devem ser os mais bem
qualificados para lidar com a comunidade, e que as leis podem até não ser perfeitas, pois não
conseguem lidar com as imprevisibilidades da vida, mas são propostas razoáveis para se criar
estabilidade nas sociedades. Isso nos leva a pensar que, mesmo com a enorme distância do
tempo, ainda temos muito a aprender com os antigos gregos.
A.E.C.
Ao se referir a datas históricas, muitas vezes, usamos as abreviações a.C. e A.D. (ou d.C.)
junto com o ano (por exemplo, 2012 A.D.). A.C. se refere a “Antes de Cristo” e A.D. representa
Anno Domini , que é “Ano do Senhor” em latim (equivalente a d.C. = “Depois de Cristo”). Esse
sistema foi concebido por um monge no ano 525. Um sistema mais recente usa A.E.C., sigla
para “Antes da Era Comum”, e E.C. para “Era Comum”. Esse novo sistema é amplamente
utilizado nos dias atuais como uma forma de expressar os mesmos períodos a.C. e A.D.,
porém sem a referência cristã. De acordo com esse sistema, contamos o tempo para trás Antes
da Era Comum (A.E.C.) e progressivamente na Era Comum (E.C.). Fonte: Khan Academy.
PLATÃO
Do grego platos , que significa “largura”. Esse era o apelido do filósofo de ombros largos e
porte atlético. Seu nome verdadeiro era Arístocles.
MÓDULO 1
Identificar a originalidade da democracia ateniense e sua influência no florescimento
do pensamento filosófico
O termo também caracterizava a própria população, fazendo com que um grego dessa época
se pensasse, primeiramente, como um “animal político”, ou zoon politikon , como escreveu
Aristóteles (384 A.E.C.-322 A.E.C.), antes de ser um indivíduo. Aliás, a própria noção de
“indivíduo”, como a conhecemos – de alguém isolado do seu entorno, da sua comunidade,
vivendo uma vida “privada” –, deveria soar bastante estranha para um grego da época de
Sócrates (469 A.E.C.-399 A.E.C.) e Platão (428/427 A.E.C.-348/347 A.E.C.).
Para esses homens comunitários, todas as ações eram políticas, “públicas”, por assim dizer.
Não haveria, portanto, uma divisão tão clara entre a política, como a conhecemos hoje, e a
ética. Por isso, quando Platão, no diálogo Górgias , coloca Sócrates, seu mestre e
protagonista da maioria de suas obras, como o verdadeiro político, apesar de sua aversão às
práticas mais comumente associadas na atualidade com o fazer político – como não participar
de organizações ou associações, por exemplo –, tal afirmação não parecia um absurdo
completo para seus conterrâneos.
Mesmo que não fizesse parte das assembleias, Sócrates poderia ser visto ainda como um
bom, belo e verdadeiro exemplo de político?
ASSEMBLEIAS
A palavra “assembleia” tem origem no termo grego ekklesia , que também deu origem à
palavra “igreja”. As ekklesiai eram ocasiões em que os cidadãos atenienses se reuniam para
decidir sobre os assuntos da cidade-Estado – o que se considerava a ação política por
excelência (aqui no sentido mais restrito do vocábulo) para os contemporâneos de Sócrates.
VEJAMOS!
CONDIÇÕES HISTÓRICAS
Heródoto (485 A.E.C.-425 A.E.C.) sugere que houve, sim, um criador da democracia,
conhecido como o pai da História, por ser seu “inventor”, isto é, aquele que tentou, pela
primeira vez, escrever fatos históricos de maneira mais próxima de como ocorreram – apesar
de todas as liberdades que tomou. Heródoto credita essa façanha a Clístenes (565 A.E.C.-492
A.E.C.), membro de uma proeminente família da região.
Mas uma filha tão complexa e diversa assim não tem apenas um pai.
Outros relatos mostram como responsáveis pela criação da democracia os seguintes nomes:
Sólon, legislador do início do século VI A.E.C.
Efialtes, líder ateniense que supervisionou as reformas que visavam reduzir o poder do
Areópago, bastião do conservadorismo na Atenas pré-democrática.
Teseu, herói mitológico, considerado um dos “fundadores” da Grécia.
TESEU
Apesar de alguns relatos apontarem Teseu como um dos criadores da democracia, esse nome
não é levado exatamente em consideração pelos estudiosos mais sérios.
O provável é que, para atingir seu auge no quarto século A.E.C., exatamente quando viveu
Platão, a democracia ateniense tenha sido alimentada por todas essas vertentes e outras ainda
não catalogadas: a partir das reformas empreendidas por Sólon, como consequência das
modificações implantadas por Clístenes; após as revoltas populares da época; por conta das
transformações introduzidas por Efialtes; ou pela liderança de Péricles (495 A.E.C.-429 A.E.C.),
o famoso estadista e general, em cujo governo (entre 460 A.E.C. e 430 A.E.C.), logo após os
atenienses liderarem os gregos na guerra que derrotou os persas, Atenas teria tido seu auge.
Havia, ainda, vários outros recursos burocráticos para assegurar o máximo de participação dos
atenienses nas coisas públicas (ou “república” – res = coisa + pública – palavra de origem
latina). Por exemplo, o Conselho dos 500, uma espécie de câmara alta, tal como um Senado
na atualidade, e os tribunais, onde os réus eram julgados.
Embora tenha um grau de organização incomum, até para os dias atuais, a democracia
ateniense também recebeu muitas críticas a respeito de sua estrutura, a começar pela própria
noção de participação popular. Segundo estudiosos, a presença e a assiduidade no conselho
eram consideradas baixas. Uma das razões, segundo dizem, é que, geralmente, as pessoas
preferiam atender a seus próprios negócios a ter de resolver os assuntos de Estado – algo
mais distante da urgência cotidiana.
De acordo com os historiadores, ainda havia problemas de instabilidade política. Com tantas
vozes podendo apontar as direções que a cidade deveria tomar, era difícil se chegar a um
caminho único e em linha reta em pouco tempo. A morosidade, às vezes, acabava se tornando
imobilidade, o que atrapalhava em um período de constantes guerras, invasões, e governos
fortes e autoritários.
OLIGARQUIA
Palavra de origem grega que significa “governo exercido por um pequeno número de pessoas”.
ATENÇÃO
Cabe questionar se, de fato, a comparação entre a organização burocrática da sociedade
ateniense e nossos Estados-nações atuais é fraca. Basta lembrarmos de que o voto feminino,
no Brasil, apenas foi alcançado em 1934, ou, em pior situação, na França revolucionária,
apenas em 1945. Será que um país, atualmente, de população em sua maioria negra e
feminina, e, ainda assim, com baixíssimo número de políticos afrodescendentes e mulheres,
poderia criticar a Grécia Clássica?
Na atualidade, ela nos força a pensar sobre nossa própria maneira de nos estruturar como
sociedade – as distribuições de poder, a participação popular, a representação de todos os
estratos e segmentos populacionais na tomada de decisão, a partilha dos direitos e deveres
civis, a divisão dos recursos econômicos. Ao olhar para o exemplo grego, fica difícil não se
perguntar se o que vivemos nos dias atuais, apesar de sustentar um nome homônimo, seria
verdadeiramente uma democracia.
Quem era eloquente e, ainda assim, bastante proativo acabava, pela lábia, exercendo cargos
políticos, mesmo sem precisar ser eleito – caso, inclusive, de Péricles, citado anteriormente.
Por conta disso, alguns jovens atenienses endinheirados recorriam a um grupo de professores
chamados de sofistas (algo como “sábios”) para que estes lhes ensinassem as manhas da fala
em público.
Aliás, não é de se espantar que o teatro, com seus diálogos e suas encenações públicas, tenha
florescido na mesma época da democracia ateniense. A audácia de colocar em questão
mesmo os fundamentos mais tradicionais da própria sociedade estava incluída, mesmo que
inconscientemente, na proposta democrática. O teatro, com seus debates no meio da praça da
cidade, com várias vozes que se inter-relacionavam, era a atmosfera perfeita para a época.
Foi aproveitando essa pretensa liberdade de expressão que Sócrates, segundo os escritos
deixados por Platão – visto que ele mesmo nunca escreveu nenhuma linha –, destacou-se: ele
queria tentar criar parâmetros ideais que não dependessem apenas do homem.
Veterano da guerra contra Esparta, onde salvou a vida do futuro político Alcibíades (450
A.E.C.-404 A.E.C.) e de seu futuro discípulo e escritor Xenofonte (430 A.E.C.-355 A.E.C.),
defensor da lei ateniense para julgar mesmo generais antipopulares, corajoso para enfrentar
tiranos que tentaram sequestrar adversários políticos, Sócrates não era uma figura exatamente
desconhecida em Atenas, mesmo antes de se tornar mestre de uma geração. Entretanto,
apesar das glórias acumuladas, ele não considerava nenhum desses acontecimentos como o
mais importante de sua vida.
Na Apologia de Sócrates, o filósofo-mor conta que foi outro o fato que mais marcou sua vida:
a declaração do oráculo do deus Apolo, localizado na famosa cidade de Delfos, bem no centro
da Grécia, de que ele, Sócrates, seria o homem mais sábio de todos.
Essa sua ignorância era o sinal de sua sabedoria, porque fazia com que ele, ao menos,
soubesse de algo: de que nada sabia. Daí vem a famosa frase: “Só sei que nada sei” (que não
foi dita exatamente assim, mas o sentido é esse mesmo). A partir desse momento, Sócrates
entendeu que sua tarefa era revelar a seus concidadãos a ignorância de todos. Começava,
assim, sua missão. O “mais sábio entre todos os homens” queria fazer com que as pessoas se
conhecessem, se encontrassem, fugissem de pseudoverdades, não acreditassem em falsas
ideias ou meras opiniões. O importante era se descobrir, mergulhar dentro de si, racionalmente,
e perceber o que era a verdade.
Ao contrário dos sofistas, Sócrates não cobrava por seus ensinamentos, pois se imaginava em
uma tarefa com inspiração divina, uma vez que teria sido iniciada pelo oráculo de Apolo. Isso
causou diversos problemas de relacionamento em Atenas para Sócrates.
Se os sofistas mantinham, de certo modo, o status quo (no estado em que encontravam
antes), dado que só ensinavam quem já tinha dinheiro, o filósofo ateniense chegou a conversar
sobre Matemática até mesmo com um escravo. A atitude audaciosa, ainda que não
abertamente intencional, não deixava de ser um jeito de demonstrar certo desprezo pelas
regras da democracia ateniense, que mantinha os homens não livres como o ponto mais baixo
que se poderia descer na escala social.
APOLOGIA DE SÓCRATES
ATENÇÃO
É importante lembrar que quando falamos de “homens não livres” (ou escravos), nesse
contexto da Antiguidade, e especialmente na cidade-Estado de Atenas, não estamos nos
referindo ao mesmo tipo de escravidão ocorrida, no continente americano, por exemplo,
durante o período colonial (séc. XVI-XIX). Na Antiguidade, a escravidão acontecia, geralmente,
sob duas condições: ou se era um prisioneiro de guerra, ou alguém que estava endividado. Em
ambos os casos, o escravo exercia a mesma função/profissão que tinha em sua nação de
origem (ou antes do endividamento). Condição inconcebível, como sabemos, no Colonialismo,
quando o escravo era considerado “ser humano de espécie inferior” em relação a seu dono.
O confronto entre a filosofia socrática e a retórica dos sofistas era uma constante. O diálogo
platônico Górgias (famoso sofista) é um exemplo disso. Na obra, contada – ressalte-se – do
ponto de vista socrático, há o choque entre a integridade moral, que seria uma característica
dos filósofos, e a busca por poder político, imputações feitas aos sofistas.
Sócrates acusa os sofistas de serem amorais, sem se importar com as necessidades de buscar
o que seria o certo e evitar o errado, sem se interessar em distinguir o que é nobre do que é
vergonhoso.
Os sofistas, por sua vez, dizem que a filosofia seria uma retórica inferior, um brinquedo lógico.
Na melhor das hipóteses, um jeito de educar os jovens, jamais uma ferramenta decente para
os adultos.
Sócrates rebatia dizendo que a retórica, técnica oratória ensinada pelos sofistas, era, no
máximo, um truque para agradar as pessoas, e que apenas a filosofia produzia uma verdadeira
tékhnē que busca a bondade nas almas. Seu objetivo seria, por fim, produzir bons cidadãos.
O embate entre as duas escolas de pensamento no diálogo é tamanho que sobra para a
democracia ateniense, vista ali como impossível de ser boa. Mas não para por aí!
A política, continua o incansável Sócrates, deveria ser confundida com a filosofia e produzir
bons cidadãos, que “conhecem a si mesmos”, como estava escrito no oráculo de Delfos e
como o filósofo repetia sempre. Aqueles que não são comedidos, não são racionais, não se
entendem, são incapazes de ter amizades e, assim, de viver em comunidade.
Para responder à pergunta levantada no início deste módulo, Sócrates, e não os retóricos
sofistas, poderia e deveria ser visto como um bom, belo e verdadeiro exemplo de político,
porque ele era um filósofo.
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 2
Descrever o investimento político das obras platônicas
A PRODUÇÃO POLÍTICO-FILOSÓFICA DE
PLATÃO
A Morte de Sócrates , Jacques-Louis David, 1787. Acervo do Metropolitan Museum of Art.
Todos os seus escritos foram produzidos após a morte de seu professor e depois de o filósofo
também tentar uma carreira política. Portanto, esses escritos carregaram, de um jeito ou de
outro, certo posicionamento político.
A partir dessa sua formação e observando de perto toda a sua literatura, até seria possível
dizer que toda – ou, ao menos, grande parte – de sua produção filosófica pode ser, no fundo,
lida como um pensamento político em constante amadurecimento. Isso, claro, não no sentido
mais simples e amplo do termo, de tratar diretamente de questões organizacionais do Estado,
mas conforme citado no módulo 1: a política como uma preocupação também ética com a
criação de um homem que estivesse interessado em ser correto, não corrompido pelas
idiossincrasias (peculiaridades) dos tempos, ou, nos termos platônicos, um homem livre que
buscasse as formulações eternas sobre o belo, o verdadeiro e o bem.
A tarefa inicial do diálogo mais famoso de Platão é criar uma polis perfeita que sirva como
ideal ou paradigma para todas as cidades. O fato de representar “apenas” um modelo é um dos
pontos mais importantes na leitura e interpretação da obra A república , pois protege Sócrates
(e Platão) de algumas – mas não todas – controvérsias que a envolvem.
JUSTIÇA INDIVIDUAL
Platão acreditava que, por analogia, há traços de referência entre o corpo político de uma
cidade e o corpo humano, com todas as suas próprias contradições. Ao falar sobre justiça
individual , ele criou a argumentação para se abordar a noção de justiça em geral. E o inverso
é igualmente verdadeiro: a construção da cidade ideal é, também, uma maneira de tentar
analisar a justiça na própria alma. Esse é um mecanismo que sempre utiliza ao longo de toda a
obra A república , com maior ou menor assiduidade.
Em sua cidade bela, justa e verdadeira, é preciso garantir a maior produtividade dos indivíduos,
sem desvio de atenção para coisas “supérfluas”, como a arte narrativa, teatral ou pictórica que
mostra a história de confrontos raivosos, traições, vinganças, sentimentos que atrapalham a
harmonia e o equilíbrio. Nesse caso, sobra para os poetas, rapsodos, atores, coristas,
empresários e artífices, sobretudo os que produzem “adereços femininos” – em suma, toda
essa laia artística. Estes, ele quer fora da cidade ideal.
Orestes massacrando Egisto e Clitemnestra , Bernardino Mei, 1654. Retrata um trecho de
uma tragédia de Ésquilo, em que um filho assassina sua própria mãe, para vingar-se por esta
ter matado seu pai, Agamêmnon, após seu retorno vitorioso da guerra de Troia.
RAPSODOS
ARTÍFICES
Trabalhador, operário, artesão que produz algum artefato ou que professa alguma das artes.
Em vez deles, para povoar tal cidade, Sócrates sugere uma série de profissões mais “úteis”
para o bem de todos e a felicidade geral. E a mais útil de todas, de acordo com o filósofo, é a
do guardião, porque, além de proteger a cidade de ataques externos, é dessa classe que sai,
também, o legislador, que poderá produzir as melhores leis do povoado. O problema se
resume, então, a como se forma essa classe social.
Em vez disso, Sócrates sugere como pedagogia o treinamento físico e o ensino da Matemática
e da música – arte que ele salva explicitamente. O “homem mais sábio de todos” defende a
música “porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais
fortemente, trazendo consigo a perfeição” (PLATÃO, 2001) – repetindo um argumento também
presente no diálogo Protágoras .
Sócrates até aceita que sejam contadas certas ficções, algo como mentiras nobres, na criação
das crianças que serão os futuros guardiões. Ele propõe, por exemplo, inventar que os
habitantes da cidade ideal são autóctones, isto é – na tradução da palavra grega que ele quer
usar –, nasceram literalmente de dentro da terra, sem mãe nem pai humanos. Assim, todos os
habitantes de tal cidade seriam irmãos. A sociedade inteira, por consequência, estaria unida em
uma única família, o que nos leva a entender onde se encontra sua proposta de abolir a família
nuclear – essa em que haveria uma mãe e um pai para cada pequeno grupo social formado
com os filhos.
Continuando dentro dessa nobre mentira, as diferentes classes corresponderiam apenas aos
distintos tipos de metal de que cada um dos estratos era formado. Por isso que aqueles feitos
de ferro ou bronze, aptos a ser fazendeiros ou artesãos, não poderiam ser guardiões. Todos,
contudo, nasceriam da mesma terra. O ponto principal, portanto, fica inalterado: criar um
profundo sentimento de pertencimento em todos os habitantes dessa cidade à terra em que
ou, segundo essa “versão”, de que nasceram.
A justiça, nessa localidade, aparece como uma consequência desse cuidado mútuo. Todas as
pessoas se percebem como iguais e pertencendo ao mesmo lugar. Há um sentimento de
harmonia social (a analogia social e individual aparece aqui outra vez). A justificativa para se
usar ficção nesse trecho, e não anteriormente, quando expulsam os poetas da cidade, fica para
o fato de que Sócrates não acredita que possa haver tal harmonia social sem que as pessoas
verdadeiramente creiam em seu íntimo que essa é a ordem natural das coisas. Sem moldar as
almas, diria Sócrates, não se constrói ou se muda uma sociedade.
A UNIDADE, O CONSERVADORISMO E O
REI FILÓSOFO
Desde que Platão colocou seu mestre Sócrates para imaginar uma cidade utópica, diversos
autores se incumbiram da tarefa de conceber uma organização social que fosse perfeita. A
unanimidade também atingiu a recepção crítica. Intérpretes de espectros políticos opostos e de
diferentes temporalidades, a começar por Aristóteles, aluno de Platão, enxergaram na
Politeia platônica um texto conservador. Alguns chegam a afirmar que ele fez uma obra em
que defende uma espécie de ideologia totalitária: aos guardiões era reservada apenas uma
preocupação com o bem da sociedade como um todo, pouco importando suas opiniões
pessoais.
POLITEIA
Termo grego com múltiplas possibilidades de leitura, que faz referência à constituição, ao
sistema político ou, ainda, ao ordenamento da estrutura política.
Era o título original do clássico platônico, rebatizado com o termo latino “República” a partir da
tentativa do pensador romano Cícero (106 A.E.C.-43 A.E.C.) de emular Platão, escrevendo o
livro De re publica . Mas o grande Cícero não foi o único a querer copiar Platão. É o caso, por
exemplo, de Utopia , do inglês Thomas Morus (1478-1535), que usa o termo grego que quer
dizer “não lugar” para reforçar essa proposta de imaginação de outra cidade.
A relevância era dada para a felicidade da cidade inteira, não de uma classe em especial,
talvez do indivíduo. Sócrates ainda tenta contra-argumentar: dentro de uma estrutura de
pensamento como a proposta pela obra A república , os guardiões certamente seriam felizes.
Mesmo que nas obras de alguns filósofos – como em A república , de Platão – haja uma
explícita proposta de equiparação de atuação de homens e mulheres na vida pública, não
podemos esquecer que a vida social de determinada época não é espelho de sua literatura.
SAIBA MAIS
O papel das mulheres em A república de Platão (livro V): utopia no feminino ou tópicos para
uma reflexão propedêutica sobre Direitos Humanos , de Susana Mourato Alves-Jesus.
Mas há de se pensar que os tempos eram outros, e julgar um momento histórico com as regras
de outro é o pecado mais repudiado pelos historiadores. Tal falta grave recebe o nome de
anacronismo (aliás, outro termo que vem do grego!). No entanto, não há muita escapatória
quando se fala da crítica feita por Aristóteles – quase contemporâneo de Sócrates. Para o
estagirita, essa obsessão por unidade na polis perfeita seria a ruína, não a salvação da
cidade.
A importância da obra platônica para o pensamento político não pode ser, de maneira
nenhuma, descartável, principalmente porque o filósofo faz uma sugestão que coloca em
questão todo o pensamento de teoria política desde aquela época até os dias atuais.
Criticando Atenas por ser uma sociedade “democrática” – e que, apesar de todas as ressalvas
já levantadas, tinha muito mais participação popular que outras cidades da época –, Sócrates
propõe outra forma de organizar os agrupamentos populacionais. Em vez do poder de muitos
(democracia), portanto, de gente pouco especializada – e que podia condenar inocentes, como
no caso socrático –, ou de poucos e ricos (oligarquia); ou em vez de o poder ficar na mão de
apenas uma única pessoa – e essa pessoa querer todo o poder para si (tirania); o poder
deveria ser entregue para uma única pessoa, sim, mas alguém extremamente especializado,
como acontecia com todas as coisas em “sua” cidade.
Segundo Platão, era necessária uma compreensão racional da eterna realidade da verdade,
que poderia ser incentivada por uma educação especial em todas as ciências matemáticas. É
nesse momento que aparece a mais famosa alegoria da história da filosofia.
O MITO DA CAVERNA
Figura nas rochas , Salvador Dalí, 1926.
GLAUCO
É a partir dessa passagem que Sócrates defende que a única chance de se construir uma
sociedade ideal seria fazer com que ela fosse governada por um filósofo ou tornar seus
governantes, por meio de um programa educacional apropriado, filósofos. Apenas os filósofos
escapariam da degradação moral das coisas corriqueiras.
Mesmo que eles não queiram, a princípio, assumir o cargo, posto que teriam de abdicar de
seus outros afazeres, vivendo nessa cidade ideal, eles acabariam por assumir tal função por
uma questão de justiça, para desempenhar sua função específica e apropriada nessa
sociedade “perfeita”.
Observe a explícita intenção de Platão de reforçar a importância de uma ética interna forte para
a produção de um governante ideal, que, por consequência, produziria uma cidade
politicamente estável, unida e harmônica.
Mais que um processo analógico (de comparação), o que Platão está fazendo é uma relação
de interligação e interdependência, até mesmo de interface e igualdade, entre a esfera privada
e a pública. Por isso, no fim do livro, Sócrates insiste em dizer que a harmonia psíquica, que,
como vimos, é uma das formas de felicidade para o filósofo, é a politeia da alma, ou, em
outros termos, o ordenamento político do espírito.
A cidade ideal não necessariamente é possível – talvez nem se queira que seja. Porém, como
diz Sócrates, ela pode ser “um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e,
contemplando-a, fundar uma para si mesmo” (PLATÃO, 2001).
POLÍTICO
Segundo a datação mais comumente utilizada, A república é uma das primeiras obras
escritas por Platão, em que o protagonismo de Sócrates, tanto como personagem quanto como
influência sobre o pensamento platônico, aparece mais realçado.
Em outro escrito, com Sócrates como personagem menor (em ambos os sentidos mencionados
anteriormente), podemos ver outra vez como Platão encara o problema da melhor maneira de
governar uma sociedade – dessa vez, com uma tentativa mais forte de conciliar os
aprendizados práticos com suas idealizações teóricas. O nome da obra, escrita, de acordo com
alguns estudiosos, após sua segunda passagem pela Sicília, é, simplesmente, Político .
HIPÓCRITA
Outra palavra de origem grega, mas que tinha outros sentidos, como o de “ator”.
Aliás, tanto Político quanto Sofista – outros dos diálogos platônicos – se passam no mesmo
“dia”, com os mesmos personagens, como se um (Político ) fosse a continuação do outro
(Sofista ). Há informações de que Platão teria intenção de escrever um terceiro diálogo para
fechar essa trilogia, que se chamaria, não por acaso, Filósofo , e retornaria o protagonismo de
Sócrates, mas tal obra foi abandonada.
Por isso, uma das principais sugestões da obra é a tecedura (ato de tecer algo): um estadista é
aquele que consegue não apenas saber o momento apropriado (em grego, a palavra usada é
kairós ) de aplicar seus conhecimentos específicos, mas também aquele com a capacidade de
entremear os diferentes elementos da sociedade para que ela se torne única.
O diálogo prossegue, e o Estrangeiro, que, nesse texto, faz o papel que, em outras obras, cabe
ao experiente Sócrates – isto é, desenvolver o raciocínio filosófico –, explica que esse político-
estadista modelo seria um personagem capaz de providenciar respostas infalíveis para todas
as perguntas sobre a legislação dessa sociedade. Mas ele seria ainda mais sábio que qualquer
conjunto de leis, adaptando-se para as questões cotidianas, que não podem ser previstas pelas
letras frias.
Apesar de a preocupação com a realidade ser claramente maior nesse escrito, tal político é
construído, mais uma vez, como um paradigma, como é comum nos escritos platônicos,
exatamente como foi o rei filósofo de A república .
Segundo Platão, devemos nos aproximar ao máximo desse ideal, mas sabendo que,
provavelmente, nunca o atingiremos. Ele teria experiência em comandar, obtida por meio dos
estudos, mas seria o mais difícil e o mais importante tipo de conhecimento a se adquirir.
ESTRANGEIRO
Personagem sem nome que provém de Eleia – mesma cidade dos pensadores pré-socráticos
Parmênides e Zenão.
MÓDULO 3
Reconhecer a preocupação de Aristóteles quanto à associação entre a ética e a
melhor forma de organização social em prol do alcance do bem viver
ARISTÓTELES × PLATÃO
Escola de Atenas, Rafael Sanzio, início do século XVI. Afresco no Vaticano.
No início do século XVI, quando pintou a Escola de Atenas , Rafael Sanzio (1483-1520)
escolheu para colocar bem no centro do afresco os dois principais filósofos que o
Renascimento estava ajudando a consolidar como os mais importantes da Antiguidade.
Nenhum dos dois é Sócrates, que, no painel de quase sessenta figuras históricas, aparece
apenas em um canto, conversando com seus alunos, como era seu costume.
Na área com mais destaque da pintura de mais de 5 metros de altura por quase 8 metros de
largura, que fica atualmente no Vaticano, perto da Capela Sistina, estão Platão e Aristóteles.
Caracterizado como o muso da época Leonardo da Vinci, Platão segura um tomo de sua obra
Timeo , que aprofunda alguns dos temas levantados por A república e vai além: em linhas
gerais, trata de uma explicação cosmológica da origem do mundo. Para mostrar onde estão os
fundamentos em que ele se baseia, “Platão da Vinci” aponta para o céu, deixando explícito de
onde vinha sua noção de bem.
A seu lado, Aristóteles apresenta os traços do artista toscano, mestre da perspectiva Bastiano
da Sangallo, cujo apelido era exatamente Aristotile (como se escreve em italiano), por conta de
seu ar grave e meditativo, que lembraria o do estagirita. “Dizemos que as coisas sérias são
melhores do que as risíveis”, teria dito, certa vez, o filósofo.
Aristóteles segura com a mão esquerda sua Ética a Nicômaco e está com a direita
espalmada, estendida à frente, como se quisesse deixar clara a sua oposição ao colega da
filosofia. Opostamente ao pensamento associado a Platão, Aristóteles sugeriria que o mundo a
se preocupar era este, aqui e agora. Em vez de tentar buscar alguma explicação no céu, temos
de nos importar em como viver – e bem – nas cidades em que nascemos, crescemos, criamos
laços e vamos morrer, não com as idealizadas.
Apesar da grande bagagem platônica que Aristóteles carregou ao longo da vida, por ter
estudado cerca de vinte anos com o mestre Platão na famosa Academia de Atenas fundada por
ele, o estagirita tentou ao longo de sua vasta produção intelectual distanciar-se do professor.
A obra de Aristóteles, com quase duas mil páginas que chegaram até nós, pode ser
considerada um misto de continuação e variação dos textos platônicos: continuação por
revisitar os temas levantados pelo antecessor, e variação por tentar dar um caráter menos
relacionado aos idealismos platônicos e mais aos sentidos, à realidade.
OBRA DE ARISTÓTELES
A quase totalidade dos escritos clássicos da Grécia ou de Roma foi completamente perdida. As
cópias possuem séculos de distância entre os originais. As 49 cópias das obras de Aristóteles
possuem uma distância de 1.400 anos; as únicas 7 cópias de Platão, 1.200 anos; as 10 cópias
de Guerra Gália , de Júlio César (Roma), 1.000 anos. Curiosa exceção se faz com a Ilíada ,
de Homero, com mais de 600 cópias e 500 anos de distância; e os livros do chamado Novo
Testamento , com mais de 5.600 cópias no idioma original, e a maioria com apenas 30 anos
de distância.
A ÉTICA DA FELICIDADE E DA FILOSOFIA
Uma das maneiras de continuar a obra platônica foi pensar na mistura que existe entre ética e
política. Tal entrelaçamento já aparecia nas obras de Platão, embora não tenha sido
exatamente o autor de A república a criar essa aproximação.
O grego comum daquela época achava que ambos os aspectos (o âmbito do que é certo e do
que é errado, e o âmbito da reflexão sobre a melhor maneira de se governar as cidades-
Estados) deveriam estar bem entrelaçados – por mais que essa sobreposição possa soar algo
estranho a certos ouvidos da atualidade.
Aristóteles escreveu livros para os mais variados assuntos específicos possíveis. Pense em um
tema. Provavelmente, ele já o abordou, ao menos de passagem. Em geral, a cada obra, ele
escolhia um tema em separado (biologia, zoologia, antropologia, psicologia etc.) e o explorava
até o fim.
Em Ética a Nicômaco , entretanto, texto que foi pensado para ser uma espécie de primeiro de
dois volumes, ele aborda em sua completude a “filosofia sobre os assuntos humanos”
(ARISTÓTELES, 2017). O segundo tomo assume exatamente a estrutura de um novo livro,
chamado de A política (ARISTÓTELES, 2011), onde dá continuidade àquela mesma reflexão.
Ambos os livros se mencionam e, certamente, complementam-se.
Não se sabe ao certo quando Aristóteles escreveu sua mais famosa ética . Ele também
compôs uma Ética a Eudemo , mas muito menos impactante. Há, ainda, outras obras que
abordam o tema, supostamente escritas por Aristóteles, mas suas autorias são contestadas.
Também não se tem certeza sobre quem seria o Nicômaco a quem a ética é “dedicada”. Pode
ser tanto o pai de Aristóteles – médico na corte da Macedônia que muito o influenciou em sua
formação – quanto o filho de Aristóteles – que também tinha o mesmo nome do avô e,
especula-se, teria sido o responsável por editar essa obra.
Aristóteles ensinando Alexandre, o Grande, em gravura de Charles Laplante.
O que é certo é o tema da obra: mais do que tratar de deveres e obrigações, a ética aristotélica
quer fazer com que nós encontremos nada mais, nada menos, que a felicidade. Em grego, a
palavra é eudaimonia (que traduzimos por felicidade ) e quer dizer algo como “ter um bom
daimon ”, que, por sua vez, é o nome grego com uma tradição filosófica forte, citada de Platão
a Nietzsche – antípodas (contrários) do pensamento ocidental.
A melhor forma de entender o vocábulo é, talvez, pensar naqueles seres que aparecem na
mitologia árabe como “gênios” e saem das lâmpadas nas histórias de As mil e uma noites ou
nos desenhos da Disney. É uma versão aparentada do que nós chamaríamos de “anjo da
guarda” ou “santo” particular – seres sobrenaturais que acompanham cada pessoa a todo
momento.
Mas a felicidade, para Aristóteles, não tem nada de sobrenatural nem de banal. Ele tenta
construir uma argumentação e uma profunda reflexão para tentar escapar das pegadinhas de
confundir felicidade com sentimentos mais imaturos ou com prazeres momentâneos, ou,
simplesmente, com a mera satisfação de um desejo. Felicidade, para ele, é algo que
demonstra a excelência específica humana, sua virtude (areté , em grego).
De acordo com Aristóteles, para ser feliz – esse tipo de felicidade virtuosa –, é necessário viver
bem como um ser humano. E, como sempre estamos dentro de algum tipo de comunidade,
vivendo gregariamente, o bem viver tem sempre relação com a organização desse
agrupamento de pessoas, o que reforça o argumento de que ética e política são duas partes
da mesma preocupação.
Mas, para Aristóteles, virtude não é um termo vinculado a uma aleatoriedade, algo com o que
nascemos, bastando sermos sortudos. É um traço de nossa personalidade, um meio pelo qual
conseguimos atingir algo, no sentido que ficou preservado na expressão “em virtude de”. Pode-
se dizer que somos felizes em virtude de sabermos utilizar, ao máximo possível, as
potencialidades que são características nossas. Ou seja, seremos felizes se conseguirmos
alcançar o que é o “bem” humano. Esse seria o objetivo de toda vida humana – e, se não
houvesse esse objetivo, a vida seria vazia e sem sentido.
Todavia, dizer que ser feliz é explorar ao máximo nossas virtudes ou alcançar o que é o bem
humano não explica muito a questão.
A começar, ele explica que, muitas vezes, o “bem” é um problema social: é determinado pela
comunidade em que você está inserido. O que é bom para um grupo pode ser visto como ruim
para outro, e vice-versa. Esse, inclusive, é mais um argumento para a interconexão entre ética
e política, mas ainda não soluciona nossa questão.
Aristóteles , Paolo Veronese, 1560.
Para ajudar a explicar o que seria esse bem, que, por sua vez, seria a finalidade da vida,
Aristóteles passa uma boa parte do livro investigando as virtudes humanas por meio de suas
atividades características, como coragem, generosidade, justiça etc. Ele repara em quais
virtudes o bem é associado e percebe que são as pessoas corajosas, generosas e justas
aquelas chamadas de boas.
Contudo, ficamos ainda na dúvida sobre o que é exatamente o bem. O que dá para suspeitar é
que haveria uma associação virtuosa entre algo bem vivido (ou feito) e a finalidade da vida.
“Na medicina, é a saúde; na estratégia, a vitória; na arquitetura, uma casa”, escreve Aristóteles,
tentando explicar esse objetivo final ou teleológico, como se diz em filosofês . Talvez um
exemplo (que não é dado por Aristóteles) funcione para clarear as ideias.
O objetivo de “vida” de um martelo não é ter sido construído para, digamos, bater um prego –
isso qualquer objeto com alguma solidez conseguiria, mal ou bem –, mas ser capaz de bater
esse prego, salvo falhas de quem o empunha, bem . Isso significa que, além de ser capaz de
bater um prego, como qualquer pedra seria, tem de empurrar o prego para dentro da parede de
maneira a, por exemplo, não destruir a superfície em que o prego é inserido ou com o menor
esforço possível de quem está martelando, ou, ainda, impedir que não se martele o próprio
dedo.
Ao fim do primeiro tomo (são dez ao todo), Aristóteles (2017) sugere, então, que haveria três
tipos de vidas que poderiam ser consideradas bem vividas: uma vida de prazeres, uma vida
política e uma vida devotada à contemplação e ao estudo filosófico.
No décimo tomo, após tratar de justiça, amizade e outros temas, ele descarta uma vida só de
prazeres (ao menos alguns deles), considerando que deveríamos nos preocupar com assuntos
mais “importantes”, segundo seu ponto de vista (ARISTÓTELES, 2017).
É só um pouco antes de terminar a obra que Aristóteles conclui que a razão é a “a melhor coisa
que existe em nós” e, portanto, nada mais justo que considerá-la o caminho para saber o “fim”
do homem, o que traria mais felicidade a ele. Além disso, a razão é completamente
autossuficiente, não depende de nada nem de ninguém, é pura, não poder ser contaminada e
tem uma durabilidade razoavelmente independente de fatores externos: com a devida
tranquilidade, pode se entreter com os próprios pensamentos em muitos lugares e muitas
situações (ARISTÓTELES, 2017).
Por conta disso, Aristóteles (2017) arremata, bem ao estilo do homem que foi chamado de O
filósofo pelos medievais: o objetivo último da vida humana, portanto, sua felicidade, é a
atividade intelectual mesma, porque a “sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais
aprazível das atividades virtuosas”.
AS DIFERENTES CONSTITUIÇÕES
Além de achar que a democracia era o mau governo da maioria, que beneficiaria apenas
alguns, em vez de focar em todos os cidadãos, em um bem comum, Aristóteles também tinha
uma motivação pessoal para se colocar contrariamente ao sistema ateniense. Assim como
Sócrates, antes dele, o estagirita foi igualmente perseguido na mais famosa cidade-Estado
grega, em um momento em que os atenienses estavam se revoltando contra todo macedônio
e, principalmente, contra qualquer pessoa relacionada a Alexandre Magno. Aristóteles não
somente tinha crescido na corte da Macedônia (onde seu pai atuou como médico), mas
também tinha sido um professor de Alexandre.
Diferentemente de seu “avô” intelectual, que, condenado à morte, aceitou a pena e tomou
cicuta oficialmente, Aristóteles fugiu da cidade, com o argumento de que não iria “permitir que
os atenienses pecassem duas vezes contra a filosofia”.
Ainda de acordo com alguns estudiosos da obra aristotélica, o filósofo teria escrito um pequeno
livro sobre a história política de Atenas, ao qual deu o nome de A constituição dos atenienses .
A autoria do livro é controversa por diversas razões – por exemplo, ele se mostrar mais
favorável à democracia que em outros escritos. O que se pode considerar como mais provável
é que nesse texto, como em outros aristotélicos, o estagirita teria recebido ajuda de alunos de
seu Liceu. O livro consiste em um exame de 158 constituições diferentes da cidade.
Além da abordagem teórica das diferentes formas de governo do passado, há, também, na
segunda metade do livro, uma tentativa de interpretação de como era o governo ateniense no
período em que Aristóteles vivia lá. Ele fala desde como era feito o recenseamento até como
eram escolhidos os magistrados. Trata-se de um trabalho historiográfico exaustivo e
importantíssimo para entender como funcionava o primeiro sistema de governo no Ocidente
(ao menos o primeiro conhecido) a dividir entre seus cidadãos o poder das decisões sobre
todos (ARISTÓTELES, 2015).
Em A política , livro dedicado a teorizar sobre organizações sociais, Aristóteles criticou muito a
democracia ateniense, considerando-a demagógica e um caminho inevitável em direção à
tirania – esta, ainda, a pior forma de governo possível por concentrar em apenas uma pessoa
os benefícios de toda a sociedade.
Suas críticas à democracia, junto a seu costumeiro racismo, sua frequente xenofobia, seu
machismo e sua defesa da predominância masculina no poder e, por fim, a justificativa da
escravidão fizeram com que esse tratado político fosse malvisto até, de modo razoável,
recentemente na história da filosofia.
CICUTA
Suco extraído da cicuta-da-europa, espécie rica em conicina, um dos venenos mais letais que
existem, usado na Grécia Antiga para executar condenados.
LICEU
Espécie de primeira universidade do mundo montada por Aristóteles, em Atenas, logo após
Alexandre conquistar a cidade.
RECENSEAMENTO
Arrolamento dos indivíduos que estão nas condições previstas por lei de fazer certos serviços,
desempenhar cargos ou exercer funções.
O inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor de Leviatã – um dos maiores clássicos das
Ciências Políticas –, chegou a dizer que, improvavelmente, encontraríamos texto mais
repugnante que A política de Aristóteles. Assim como aconteceu com Platão, Aristóteles
também foi visto como totalitário por alguns intérpretes da atualidade – e, novamente,
precisamos nos atentar para os anacronismos!
A política – mesmo para Hobbes e liberais como John Locke (1632-1704) ou comunistas
como Karl Marx (1818-1883) – é vista até os dias atuais como uma obra incontornável na
história da teoria política, apesar de seus problemas e de ter, em certos aspectos, envelhecido
mal.
Gravura de Abraham Bosse que ilustra a capa da primeira edição da obra Leviatã de
Thomas Hobbes.
ANACRONISMO
Também não é uma concessão a Aristóteles, por conta do tamanho de seu nome, mas uma
constatação de que há abordagens do livro que podem ainda na atualidade funcionar. Muitos
de seus principais temas permanecem atuais, e continuam a reverberar e fazer sentido, tais
como:
A justiça e a lei.
O estatuto do cidadão.
A participação política da comunidade como obrigação ou privilégio.
A educação pública.
A felicidade humana.
Na obra, Aristóteles mostra como o homem é um animal político. Ele tenta propor a melhor
maneira de organização social possível, indaga a respeito de quem poderia governar sobre os
outros e sobre que bases se apoiaria. Aristóteles faz, em geral, uma defesa de uma
constituição – ou seja, certa organização dos habitantes de um Estado – que beneficie o bem
comum, em vez de priorizar apenas algumas pessoas, como os próprios governantes. Para
tanto, o filósofo lista seis possibilidades de governo:
No início do livro A política , Aristóteles afirma que a melhor forma de governo seria a
monarquia ou a aristocracia. No meio da obra, ele muda de opinião e diz que, para a maioria
das cidades-Estados, o melhor mesmo seria uma constituição mista, que fizesse um
agrupamento da aristocracia com a politeia . Por fim, ele fala de uma cidade dos sonhos, em
que todos os cidadãos governariam.
O que fica dessas reviravoltas é a tentativa de não se fazer um único receituário que possa ser
aplicado a qualquer localidade, em qualquer condição. É importante entender as
particularidades de cada sociedade para que se encontre as respostas mais adequadas aos
problemas daquele lugar específico. Aqui, aparentemente, a crítica é direcionada a Platão, que
costumava olhar para cima e criar cidades imaginárias, e não enxergava os problemas à sua
frente.
Essa vontade de se ater à realidade justificava os estudos extensivos sobre as constituições
existentes. Para Aristóteles, mesmo um mau governo ensina algo – nem que seja o que não se
deve fazer. Para ele, o ponto que aparece tanto na Ética a Nicômaco quanto em A política é
que não podemos ser passivos ou teóricos.
Qualquer pensamento ou razão deve ser encarado como, na pior das hipóteses, etapas para a
prática, o planejamento para se ir às ruas. Elas miram a ação e não apenas o entendimento.
Deve-se fazer, agir, não esperar “cair do céu” ou aguardar que um ou outro político faça por
você.
No fim de Ética a Nicômaco , quando volta a falar sobre qual seria, afinal, a natureza da
felicidade, Aristóteles reforça que a eudaimonia não pode ser uma disposição, ou seja, não é
algo que estará conosco independentemente do que fizermos. Ele continua: “[...] se o fosse,
poderia pertencer a quem passasse a vida inteira dormindo e vivesse como um vegetal”
(ARISTÓTELES, 2017).
De volta à obra A política , é perceptível que o estagirita nos mostra o quanto não
conseguimos não ser políticos. Para fazermos bem nossa natureza política, devemos
observar, analisar e avaliar as possibilidades políticas que se nos apresentam, a fim de influir e
transformar a organização política que nos submete a algo que verdadeiramente tem como fim
o bem de todos: todos. Uma verdadeira democracia, enfim!
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra A política sai de uma proposta teórica de apenas “organizar” uma coletividade de
pessoas para algo em que todos os cidadãos se preocupam e estão sempre inseridos. Mais
que algo que você pode escolher – ou não – participar, é parte da vida, como se alimentar ou
arranjar uma ocupação.
Pode ser que Platão e Aristóteles tenham caído de diversos cadafalsos (palanques) ao propor
alternativas à democracia. Mas, em geral, havia, no meio dos pitacos filosóficos, certa
preocupação em fazer o melhor para o bem comum, como chegou a deixar claro Aristóteles:
que todos fossem representados, todos pudessem atuar em suas atividades, todos pudessem
prosperar até seu objetivo final – a felicidade. E que ninguém, absolutamente ninguém, fosse
condenado por pensar de modo diferente dos governantes!
PODCAST
Agora, o especialista Ronaldo Pelli Junior comenta a questão de como o mundo grego clássico
(e sua mitologia, filosofia, democracia) pode nos ajudar a pensar nossa vida contemporânea.
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A política. Introdução de Ivan Lins. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Leia a obra No palácio do rei Minus, do grego Nikos Kazantzákis, que apresenta a
figura de Teseu no contexto da mitologia.
CONTEUDISTA
Ronaldo Pelli Junior
CURRÍCULO LATTES