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Os grandes problemas da ética

Marco Antonio Oliveira de Azevedo

O ANEL DE GIGES

One Ring to rule them all,


One Ring to find them,
One Ring to bring them all,
And in the darkness bind them.

Do conto “Of the rings of power and the Third Age” de J. R. R. Tolkien.

Platão (428-348 AC) começa A República contando-nos de um encontro entre


Sócrates (469-399 AC) e alguns de seus discípulos, dentre os quais os irmãos mais
velhos de Platão, Gláucon e Adimanto. Eles se encontram na casa de Polemarco, filho
de Céfalo, um comerciante grego nascido na cidade italiana de Siracusa. Na casa
estavam, além de Céfalo, outros dois filhos, Lísias e Eutidemo, os quais se encontravam
reunidos junto a outros convidados com Trasímaco da Calcedônia (459-400 AC), um
dos mais famosos e importantes sofistas. Sócrates inicialmente conversa com o velho
Céfalo, querendo saber dele sobre como sente o chegar da velhice. A conversa com
Céfalo, inicialmente sobre o valor da moderação, acaba dando luz à afirmação de
Sócrates de que aquele que tem consciência de não ter cometido injustiças tem a seu
lado a “doce esperança”, a boa nutriz da velhice, uma expressão que Sócrates extrai do
poeta Píndaro. Logo a conversa se transforma numa discussão sobre a virtude da justiça.
O que acaba incomodando Trasímaco, que até então assistia inquieto, porém, calado.
Sócrates e Trasímaco representam no diálogo duas visões contrárias não
somente sobre o significado de ‘justiça’. Suas opiniões também representam duas visões
rivais sobre um dos mais importantes temas da ética: a importância da realidade na vida
do agente moral. Trata-se de dois tipos adversários de “realismo”. De um lado, o tipo de
realismo filosófico que Sócrates encarna e que será seguido por boa parte da tradição
filosófica; de outro, o tipo de realismo (que chamarei de “realismo pragmático”)
defendido pelos sofistas e também pelo historiador Tucídides (460-395 AC), autor do
clássico A guerra do Peloponeso.
A disputa entre esses dois tipos de “realismos” atravessa os vários troncos
principais da Filosofia (a metafísica, a epistemologia e a ética); mas aqui interessa-nos
apenas sua expressão na ética. Por que deveríamos nos importar com a verdade? Que
diferença isso faz? A disputa torna-se radical quando se trata de pensar sobre o que

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consideramos importante, do ponto de vista moral. Afinal, o que é mais importante: ser
ou apenas parecer ser bom?
No diálogo, Trasímaco representa o apelo ao tipo de realismo (um realismo raso
e pragmático), segundo o qual o que importa não é ser de fato bom ou justo, mas apenas
e tão somente parecer sê-lo. Ele aparece depois que Sócrates expõe como insustentável
a opinião de que é justo ajudar os amigos e prejudicar os inimigos. Sócrates argumenta
que a justiça não poderia variar conforme nossas preferências ou idiossincrasias, a não
ser que estejamos dando à justiça o mesmo tratamento que lhe deram tiranos famosos,
como Periandro (o cruel tirano de Corinto), Pérdicas, rei da Macedônia (famoso por não
respeitar tratados), Xerxes, rei da Pérsia (cuja ambição teria excedido limites), e
Ismênias, o Tebano (a quem Xerxes corrompeu com dinheiro para que lutasse contra
seus próprios compatriotas). Para Trasímaco, entretanto, essa opinião não passa de
“conversa fiada”, de “bom-mocismo” hipócrita – e nisso consiste seu “realismo”. A
realidade das coisas, segundo Trasímaco, é completamente outra: na vida real, é preciso
não se deixar enganar por especulações quando o que realmente importa é o modo como
percebemos e sentimos as coisas, já que é disso, em essência de que somos “feitos”, isto
é, de percepções, sensações, paixões e motivações anímicas.
Para mostrar mais claramente a divergência, vejamos a engenhosa versão
apresentada por Gláucon, no início do livro II (isso depois de Trasímaco ter-se retirado
da discussão), em favor da tese de que o que realmente somos não importa, e sim como
parecemos ser:

O anel de Giges. Perceberíamos melhor que quem pratica a justiça só a pratica de má vontade,
por incapacidade de cometer injustiça, se imaginássemos algo como isso. Deixaríamos que aos
dois, ao justo e ao injusto, fosse permitido fazer o que quisessem; depois iríamos atrás deles
observando para onde a paixão conduziria cada um. Em flagrante apanharíamos o homem justo a
buscar o mesmo alvo que o injusto, por causa da ambição de possuir sempre mais, ambição que
toda natureza busca como um bem e da qual, à força, a lei a desvia para levá-la ao respeito da
equidade. A permissão de que falo seriam mais ou menos a que teriam, se tivessem o poder que,
segundo dizem, teve um dia Giges, antepassado do Lídio. Ele era um pastor que servia o então
governante da Lídia. Tendo havido grande chuva e terremoto, o solo rachou e formou-se uma
grande fenda no local onde Giges pastoreava. Espantado com o espetáculo, desceu e viu, além de
outras coisas espantosas que o mito menciona, um cavalo de bronze que era oco e tinha pequenas
portas. Espiando através delas, viu lá dentro um cadáver cujo tamanho, ao que parecia, era maior
que o de um ser humano e estava nu, mas tinha na mão um anel de ouro. Ele pegou o anel e foi
embora. Quando houve a assembleia habitual dos pastores para que dessem ao rei as notícias
relativas ao rebanho, para lá foi ele com seu anel. Então, quando estava sentado junto com os
outros, aconteceu que ele fez o engaste do anel girar, passando-o do lado de fora para a palma de
sua mão. Feito isso, Giges ficou invisível para os que estavam a seu lado e dele falavam como se
não estivessem mais lá. Ficou espantado e, de novo, tocando o anel, girou o engaste para o lado
de fora e, depois de girá-lo, tornou-se visível. Notando isso, tentou ver se era o anel que tinha
esse poder, e o que lhe aconteceu foi que, se ele girava o engaste para a palma da mão, ficava
invisível, se para o lado de fora, visível. Tendo percebido isso, imediatamente tratou de ser um

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dos mensageiros que iriam até o rei. Lá chegando, seduziu a mulher do rei e junto com ele
atacou-o e, depois de matá-lo, assumiu o governo.

Uma história certamente fantástica essa de Gláucon. Mas, como muitas histórias
criadas por filósofos, seu objetivo é enriquecer certa linha de argumentação. O ponto a
que Gláucon pretende chegar é o seguinte:

Se, portanto, houvesse dois anéis como esse e um deles o homem justo colocasse em seu dedo, e
o outro o injusto, não haveria ninguém tão pertinaz que perseverasse na justiça e fosse tão
resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e neles não tocasse, estando livre para, sem
nada temer, tomar o que quisesse no mercado, entrar nas casas e aí conviver com quem
quisesse, matar e livrar dos grilhões quem quisesse e fazer tudo o mais, já que, entre os homens,
seria igual a um deus. Agindo assim, nada faria de diferente do outro, mas, ao contrário, ambos
percorreriam o mesmo caminho. Ora, diria alguém, isso é indício de que ninguém é justo de
bom grado, mas sob coerção, já que para ele pessoalmente isso não é um bem, já que cada um,
quando crê que será capaz de cometer injustiça, comete.

Qual é o argumento proposto no caso no Anel de Giges? Para compreendermos


sua estrutura, vamos adaptá-lo ao um conhecido modelo empregado em teorias da
decisão racional. O que é melhor, ter a vida de uma pessoa justa ou a vida de uma
pessoa injusta? Em outras palavras, o que deveríamos preferir: a vida de uma pessoa
“boa”, “de bem”, ou a vida de um malandro? Ou ainda, o que é mais importante:
esforçar-se para ser uma pessoa realmente boa, ou não se importar com isso e buscar
tirar o máximo proveito possível, seja do bem, seja do mal? Imaginemos, como nos
propõe Gláucon, duas pessoas: uma de índole justa, outra de índole injusta. A primeira
pratica o que é bom e correto simplesmente porque é de seu feitio; aliás, ela pratica o
bem e o que é certo da melhor forma que se poderia imaginar. Podemos chamá-la de
uma pessoa virtuosa; ela é diligente e prudente em praticar o que é tido como bom e
correto, e ela o faz de coração (pois é assim que ela é). A outra não se importa com o
fato de estar fazendo o que é bom ou correto; o que ela busca é sua própria satisfação.
Para ela, somente seu interesse importa; os outros apenas importam a ela na medida em
que são meios para a satisfação de seus interesses pessoais. Isso a torna apta a fazer o
que é bom e certo, mas também a não fazer o bem e a praticar injustiças; se o mal e a
injustiça lhe forem mais vantajosas, a curto, médio ou longo prazos, não há motivos,
segundo ela, para não praticá-las. Imaginemos, agora, dois desfechos possíveis: pode ser
que aquele que é justo acabe, ao final, parecendo justo aos olhos de todos; mas pode ser
também que ele acabe no fim sendo visto como injusto (talvez por engano; talvez por
maledicência). O fato é que as duas situações são possíveis (e não importa, por ora,
saber qual das duas é a mais provável).

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O mesmo pode ser pensado com respeito ao sujeito injusto. Imaginemos que ao
cabo de sua vida ele seja visto por muitos, ou mesmo por todos, como uma pessoa justa
(afinal, sendo também um sujeito inteligente, ou se preferirmos, esperto, ele fará o
possível e o “impossível” para que isso venha a ocorrer – o que, aliás, faz parte de sua
arte). Novamente, aqui não importa se, dado isso, é mais ou menos provável que o
injusto seja visto ou não como justo. Importa apenas que isso é possível. O fato é que o
juízo comum considera a justiça meritória. A todo indivíduo reconhecido como justo
atribui-se prestígio. Sendo o prestígio um valor, vamos lhe atribuir um valor “10”.
Como as pessoas não são neutras com respeito à injustiça, atribuamos a ela o valor
oposto, no caso, “-10”.
Vamos assumir agora, junto com Gláucon, que “cometer injustiças é um bem e
sofrê-la, um mal”. Ou seja, pessoas só praticam injustiça porque de algum modo isso lhe
traz vantagens. Por outro lado, assumamos que a justiça, para o agente, é apenas um
ônus. O que é perfeitamente condizente como o que a maioria dos filósofos defende.
Buscamos, afinal, fazer o bem para nós mesmos; mas, quando fazemos o bem aos
outros, não é a nós que ajudamos e sim a eles.
Ora, nesse caso, a bondade e a justiça não poderiam ser virtudes que
expressassem algum tipo de sabedoria ou conhecimento, caso seu objetivo fosse apenas
trazer benefícios ao agente; ao contrário, virtudes exigem esforço, e seu
desenvolvimento acarreta sempre algum ônus. O mesmo, entretanto, não se pode dizer
da prática voluntária de injustiças. Sua “arte” (pois a prática voluntária de ações
contrárias à lei também exige know how) dirige-se ao proveito próprio, já que a
finalidade é justamente trazer vantagens ao agente. O injusto somente não alcança este
êxito caso seja “pego”. Aliás, é por essa mesma razão que a arte de enganar ocupa um
papel central na “expertise” de todo malandro.
Imaginemos agora um mundo sem qualquer sistema de justiça (isto é, sem leis,
sem polícia, sem qualquer sistema de retribuição ou punição a infrações). Partindo-se da
noção de que todo agente move-se por interesses profundamente individuais, num
mundo como o nosso, a injustiça seria largamente benéfica aos agentes. Por outro lado,
se o agente for pego cometendo o mal ou que é errado, esse benefício acaba
simplesmente subtraído. Parecer injusto tem, com efeito, uma carga negativa.
Atribuamos, assim, “dez pontos” em nossa matriz quando os outros nos julgam pessoas
de bem; atribuamos também “dez pontos” para o benefício obtido com a prática do mal
ou do que é injusto. A justiça em si, isto é, independentemente do juízo alheio, não

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proporciona, no entanto, nada de bom ao agente (já que assumimos antes que todo
mérito pessoal deriva-se do juízo alheio, algo equivalente à honra ou ao aplauso
público). Vejamos como fica o quadro:

Parece Justo Parece Injusto


Justo 10 -10
Injusto 20 0

Primeiro, vamos entender o quadro. Na primeira linha, alinhamos aquilo que


“parece ser”; na primeira coluna, aquilo que é “de fato”. O filósofo estoico Epíteto
identificou quatro possibilidades de apresentação das “aparências”, e as distribuiu do
seguinte modo:
As aparências, para nós, são de quatro tipos. As coisas ou são o que parecem ser; ou não são, e
nem parecem ser; ou são, e não parecem ser; ou não são, mesmo assim parecem ser. Formar um
juízo correto sobre todos esses casos é a tarefa do homem educado (Discursos, Capítulo 27).

E então? Imaginemos agora que alguém pudesse, e independentemente do que


realmente é ou foi até então, decidir ter ou a vida de um homem bom e justo, ou a vida
de um homem egoísta e injusto. Qual das duas seria mais vantajosa? Que decisão
deveria racionalmente tomar? Ora, assumimos antes (na linha de Trasímaco) que a
opção entre ser ou não justo e bom só é valiosa para o agente a depender das
consequências que resultam dessa decisão. Pois “ser justo” em si, isoladamente, tal
como assumimos, não proporciona benefícios ao agente. O único benefício advém do
reconhecimento público (por isso, demos dez pontos caso ele seja justo e também
pareça ser). Assumimos, por outro lado, que a injustiça, como tal, só é visada porque
traz benefícios a seu autor; e não porque é vista como injustiça (nesse caso, o benefício
é anulado pelo mal do desprestígio público). Nesse quadro, a conclusão é de que o
agente não tem boas razões para preferir ter a vida de um homem bom e justo.

Na comparação, seja qual for o desfecho, ele sempre sai ganhando sendo mau e injusto.
Claro, ser justo e parecer ser é melhor do que ser injusto e parecer ser injusto. Mas isso
é assim porque o que importa, segundo essa visão, é justamente parecer ser justo e não
apenas ser. O que o argumento mostra é que a competência em parecer ser justo é o que
faz, no final, a diferença. Tanto é que o homem justo que parece injusto apresenta-se

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como o mais infeliz de todos, ao passo que o máximo da felicidade possível acha-se
representada no homem que é injusto, mas parece não sê-lo.
O argumento de Trasímaco, revisto por Gláucon, é, sem dúvidas, um argumento
poderoso. O que ele pretende dizer é que, ao final, em termos práticos, o que importa
não é a realidade acerca do que somos ou fizemos, e sim as aparências. Para quem
assim conclui, todo discurso em favor das virtudes soa apenas como discurso de
fachada, mera propaganda. A lição, enfim, é de que vivemos enganados e nos
enganando mutuamente. Navegar nesse mar turbulento resulta numa arte que
poderíamos desenvolver à medida que nos tornamos menos ingênuos e mais
inteligentes. Segundo vários filósofos, o resultado final não seria propriamente ruim, no
conjunto. Como o quadro mostra, de um modo geral, é isoladamente mais benéfico ser
de índole injusta e parecer não sê-lo. Perde-se pouco, por outro lado, sendo uma pessoa
de índole justa, a não ser que se pareça sê-lo. Mas como ser injusto e parecer sê-lo não é
a pior alternativa (a pior é ser justo e parecer ser injusto), basta ao grupo criar
mecanismos que desestimulem a prática de injustiças, agregando punições e ameaças
àqueles que venham a ser descobertos. Essas medidas acrescentam prejuízos (tiram
pontos) do agente caso ele seja injusto e pareça sê-lo. Com isso, os indivíduos passam a
se sentir estimulados a parecerem justos, independentemente de sua índole ou
disposição.
De qualquer modo, como a injustiça é prejudicial à sua vítima, para o grupo o
que interessa é o estímulo a práticas corretas. Torna-se desse modo convencionado
(pragmaticamente) que fazer o bem e o justo é o que deve ser feito. O problema é que,
aos poucos, ser uma pessoa justa ou de boa índole deixa de ser importante até mesmo
para o sujeito sabidamente honesto. Não restam dúvidas de que com o tempo seu caráter
acabará “amadurecendo”. Sua honestidade acabará sendo vista como mera credulidade,
ingenuidade ou candura, própria de mentalidades infantis e pouco inteligentes. Mas
sendo já suficientemente esperto, ele se manterá justo sempre que isso não o prejudicar
em excesso, permitindo-se, porém, um sem número de exceções, desde que seu
prestígio público permaneça intacto. O grupo de qualquer modo continuará sendo
beneficiado por pessoas como ele, ao menos enquanto o balanço geral entre justiça e
injustiça seguir sendo favorável.

O valor da sabedoria.

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Os seguidores da visão de Trasímaco, ao defenderem que vale mais a pena


cuidar da imagem que dos fatos, pretendem, enfim, estar sendo fiéis à verdade. Sua
crença profunda é de que a maior parte dos seres humanos inteligentes são indivíduos
propensos a praticar injustiças (pois atendem, sobretudo, ao seu interesse próprio), mas,
sendo espertos, cuidam de sua imagem, pois sabem que a opinião pública recompensa
os que a seus olhos agem como seres corretos. Não cuidar da própria imagem é um
atestado de imprudência, negligência e imperícia moral.
Muitos defensores da visão de Trasímaco acabam defendendo alguma forma de
relativismo ético. No entanto, a divergência entre Trasímaco e Sócrates não deve ser
vista como a divergência entre um relativista e um “absolutista” em matéria moral. A
divergência é melhor vista como uma divergência acerca da importância que atribuímos
à realidade na vida moral e na busca da felicidade. Trasímaco considera que na vida o
que importa é o modo como a percebemos; as pessoas interagem buscando, além de
satisfação pessoal ou individual direta, gerar nos demais reações favoráveis, visando,
com efeito, benefícios individuais a curto, médio e longo prazos. Outros filósofos, numa
linha semelhante, diriam que, como o que importa na vida é preservar ou aumentar o
prazer e reduzir o sofrimento; e sendo o prazer e a dor percepções, tudo o que puder
conduzir a elas serve de meio legítimo de realização humana (que outro tipo de
realização haveria?).
Sócrates, por sua vez, considera que o mais importante na vida moral não é
como a percebemos, mas sua efetividade. Em outras palavras, o mais importante é como
de fato somos e agimos. Segundo Sócrates, somos seres que dão importância à
realidade. Por isso a sabedoria é vista por Sócrates como a mais nobre virtude humana.
A sabedoria, é bom destacar, distingue-se da mera credulidade; assim como o
conhecimento não pode ser reduzido à mera crença, a sabedoria não pode ser reduzida a
um bloco de crenças, mesmo que boa parte delas seja verdadeira. Mas o que diríamos
das pessoas que não dão importância ao conhecimento, satisfazendo-se com a
volubilidade de suas opiniões ordinárias? Elas conduzem sua vida seguindo a maré de
suas inclinações irrefletidas. O fato é que mesmo essas pessoas acabam nas situações
mais críticas buscando opiniões que julgam mais confiáveis, justamente porque mais
próximas da “verdade” que do “engano”. Não fosse isso, não haveria as artes, os ofícios
ou ocupações técnicas marcados por algum tipo de conhecimento prático. Nisso

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Sócrates julga ter descoberto algo vital: o conhecimento é sumamente importante para o
direcionamento da vida.

Hume e o pilantra esperto.

Uma boa resposta à pergunta sobre o porque devemos agir com justiça é
dada pelo filó sofo escocês David Hume (1711 – 1776). Hume tratou do assunto
mais amplo, das razõ es que temos para respeitar as leis, a justiça e as autoridades.
Ele defendeu que, embora se possa aceitar que nos inclinamos a respeitar as leis,
dada sua utilidade a nosso pró prio interesse, essa nã o é a razã o principal pela qual
julgamos o respeito à s leis como uma atitude íntegra e admirá vel. Para Hume, ao
termos uma visã o geral do sistema de respeito a leis, passamos a apreciar viver
segundo esse sistema; orgulhamo-nos de fazer parte disso. Assim, é nosso
sentimento de honra e dignidade o que nos leva, por reflexã o, a concluir que
estamos certos em agir com justiça e respeitar as leis.

A seguinte passagem, extraída do ensaio “Do contrato social”, talvez ajude a


compreender isso:

Convenção e autoridade. A força natural de um homem consiste somente no vigor de seus


membros e na firmeza de sua coragem; algo que jamais poderia sujeitar multidõ es ao
comando de apenas um. Nada exceto o consenso entre esses, e o reconhecimento da
vantagem que resulta da paz e da ordem, poderia ter essa influência. Ora, tal consenso
sendo longo e imperfeito nã o poderia ser a base de um governo continuado. Um cacique,
que provavelmente obteve sua influência durante o período de guerra, governa mais por
persuasã o que por comando; e até o momento em que ele pudesse empregar a força para
reduzir a insubmissã o e a desobediência, dificilmente diríamos que a sociedade alcançou
um estado de governo civil. É evidente que nenhum pacto ou acordo de submissã o geral foi
formado; essa é uma ideia muito distante da compreensã o dos selvagens. Assim, cada ato
de autoridade da parte do cacique deve ter sido particular e demandado pelas exigências
reais do caso. A utilidade razoá vel, que resulta de sua intervençã o, faz com que esses atos
acabem se tornando diariamente mais frequentes, e essa frequência gradualmente produz
uma aquiescência habitual e, se você me permitir assim chamá -la, voluntá ria, logo, precá ria,
da parte das pessoas.

Minha interpretaçã o é de que nos sujeitamos à autoridade, ou a


reconhecemos como legítima, por um costume (sendo que a normatividade
envolvida no respeito à s leis e à autoridade nã o poderia estar desligada do fato de
que respeitamos regras porque nos acostumamos a isso). Um costume como esse
nã o poderia se fixar, todavia, nã o fosse ele benéfico e ú til à queles que agem

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segundo ele. Assim, é natural que a aquiescência à s leis seja precá ria: é sempre
possível questionar sua utilidade e, com efeito, sua pró pria legitimidade. Mas do
juízo de que certa lei nã o é ú til e sensata nã o se segue imediatamente a conclusã o
prá tica de que se deve desobedecê-la. Para que o senso de obrigaçã o derivado do
costume seja suspenso, é preciso que a situaçã o geral de guiar-se pelo há bito, ou
pelo princípio de que se deve respeitar as leis, seja individual ou coletivamente
insuportá vel. Penso que essa visã o de Hume é bastante lú cida; deveríamos tê-la em
mente quando pensamos em problemas como “por que deveríamos respeitar as
leis”?
Entretanto, com isso ainda assim nã o alcançamos uma réplica convincente
nem ao caroneiro, nem ao pilantra. Pilantras e caroneiros nã o sã o sujeitos que se
acostumaram à normatividade costumeira; eles se consideram de fato imunes a
ela. A ú nica força que os movimenta a agir é seu interesse pró prio.
É difícil imaginar uma réplica a eles. Vejamos, no entanto, a seguinte
passagem de Hume, extraída das Investigações sobre os princípios da moral (1898):

O pilantra esperto. Sendo caridosos ao má ximo e fazendo todas as possíveis concessõ es,
devemos reconhecer que nã o há em qualquer exemplo o menor pretexto para se dar
preferência ao vício à virtude, tendo em vista o interesse pró prio. E embora concedamos
que sem o respeito à propriedade nenhuma sociedade subsistiria, um pilantra esperto pode
julgar que, em situaçõ es específicas, um ato de iniquidade ou de infidelidade lhe
proporcionará um incremento considerá vel em sua riqueza sem causar qualquer dano
considerá vel à uniã o social ou à ordem confederada. Que a honestidade seja a melhor
política pode ser uma boa regra geral, mas ela é sujeita a muitas exceçõ es. E é possível que
ele talvez pense que é mais sá bio aquele que respeita a regra geral, mas tira vantagens de
todas as suas exceçõ es.

Devo confessar que, se alguém pensar que esse raciocínio mereça uma resposta, é muito
difícil encontrar alguma que lhe parecerá satisfató ria e convincente. Se seu coraçã o nã o se
rebelou contra tais má ximas perniciosas, se ele nã o sente qualquer relutâ ncia contra tais
pensamentos vis e infundados, entã o de fato ele já deixou consideravelmente de ter
motivaçõ es para a virtude; podemos inclusive esperar que sua conduta acabará
correspondendo à sua especulaçã o. Mas a antipatia à traiçã o e à pilantragem é muito forte
nas mentes honestas pare ser contrabalançada por qualquer perspectiva de lucrar ou
alcançar alguma vantagem pecuniá ria. Paz interna de espírito, consciência da integridade e
um retrospecto satisfató rio de nossa pró pria conduta: estas sã o as circunstâ ncias,
requeridas para a felicidade, que serã o estimadas e cultivadas por todo homem honesto
que sinta sua importâ ncia.

Nã o estaria Hume, nesse momento, sendo um filó sofo muito pró ximo a
Só crates, logo, pró ximo do realismo? Alguns considerarã o discutível que essa
passagem de Hume represente uma opiniã o socrá tica sobre o problema. Eles dirã o
que, para Hume, a moral reside apenas em nosso “coraçã o”, isto é, em nossos

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sentimentos. Como Hume disse isso realmente (e repetidas vezes), talvez
devêssemos considerar isso uma evidência forte em favor de que, para Hume, o
que importa nã o é exatamente o que acontece na realidade como tal, mas apenas o
modo como nos sentimos. Mas Hume acima foi explícito em dizer que está em
nosso poder importar-se ou nã o com o fato de sermos pessoas de certo tipo. E ele
disse mais; ele disse que a felicidade requer que certas circunstâ ncias sejam
valorizadas, e que é isso o que forja e estrutura um cará ter íntegro.
Um homem íntegro dá valor ao fato de ter consciência de sua pró pria
integridade; se é assim, ele nã o poderia estar enganado ou estar enganando a si
mesmo a respeito. Um homem íntegro também dá valor ao retrospecto de sua vida
e nã o apenas aos prazeres que teve. Aqui, novamente, ao tentar formular uma
resposta ao problema do malandro esperto, Hume ressalta que nã o há como
fundar a integridade moral apenas no interesse pró prio. Ora, disso também resulta
que a moral nã o pode ser fundada isoladamente apenas nos sentimentos de cada
um, pois um homem dotado de sentimentos perversos nã o daria importâ ncia à
honestidade, sendo provavelmente jocoso com respeito aos íntegros. Logo, nã o sã o
sentimentos quaisquer que caracterizam a correçã o e a integridade; sã o certos
sentimentos, notadamente aqueles que temos quando acreditamos, e estamos
corretos em acreditar, que somos pessoas boas e corretas—do contrá rio, nã o nos
orgulharíamos disso.

NOTAS:

A tese de que o egoísmo individual concorre para o bem comum foi defendida por Bernard Mandeville
(1670-1733), médico, filósofo e satirista, autor do famoso (e infame) “A fábula das abelhas” (1705;
1714). Mandeville defendeu que toda civilização beneficia-se da predominância geral de certos vícios
“privados”, dentre os quais a ganância e o egoísmo.

REFERÊNCIAS:
Platão. A República.

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