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Introdução às Ciências Sociais (Universidade Aberta)

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UNIVERSIDADE

07

Introdução às Ciências Sociais

Olga Magano
Uab I Coleção Universitária
INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS
Olga Magano
UNIVERSIDADE ABERTA | 2014

ÍNDICE
INTRODUÇÃO

1. APRENDER A SER MEMBRO DA SOCIEDADE

Objetivos de aprendizagem
1.1. O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO
1.1.1. Socialização primária
1.1.2. Socialização secundária
1.1.3. Interiorização e estrutura social
1.1.4. Agentes de socialização
1.2. PAPÉIS SOCIAIS - INTERPRETAÇÃO E INTERIORIZAÇÃO DE NORMAS
SOCIAIS
1.2.1. Análise dos papéis sociais
1.2.2. Socialização e aprendizagem de papéis sociais
1.2.3. Perspetiva da vida quotidiana e dos problemas sociais Atividade formativa

2. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO


Objetivos de aprendizagem

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2.1. O PROBLEMA DA OBJETIVIDADE E DA NEUTRALIDADE EM CIÊNCIAS


SOCIAIS
2.1.1. Obstáculos epistemológicos
2.1.1.1. Familiaridade do social e senso comum
2.1.1.2. Dicotomias natureza e cultura e individuo e sociedade
2.1.1.3. Etnocentrismo
2.2. CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
2.2.1. Rutura com o senso comum
2.2.2. A função de comando da teoria
2.3. CONSTRUÇÃO E VERIFICAÇÃO DE TEORIAS: PROBLEMAS E
CONTROVÉRSIAS
2.3.1. Teorias e paradigmas nas ciências
2.3.2. O problema da verificação Atividade formativa 2

3. O DOMÍNIO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Objetivos de aprendizagem
3.1. VISÃO GLOBAL SOBRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS
3.2. A ESPECIFICIDADE DO SOCIAL
3.3. UNIDADE E PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Atividade formativa 3

4. ALGUMAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Objetivos de aprendizagem
4.1. SOCIOLOGIA
4.2. ANTROPOLOGIA
4.3. ECONOMIA
4.4. PSICOLOGIA
4.5. HISTÓRIA
4.6. DEMOGRAFIA
4.7. CIÊNCIA POLÍTICA Atividade formativa 4

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5. A EXPLICAÇÃO E A COMPREENSÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: OS


SOCIÓLOGOS CLÁSSICOS

Objetivos de aprendizagem
5.1. OS SOCIÓLOGOS FUNDADORES: KARL MARX, EMILE DURKHEIM E MAX
WEBER
5.1.1. Karl Marx (1818-1883) e o materialismo histórico
5.1.2. Émile Durkheim (1858-1917) e o positivismo sociológico
5.1.3. Max Weber (1864-1920) e a objetividade em Ciências Sociais: conceitos
fundamentais de Sociologia
5.1.3.1. As relações sociais e a orientação da conduta social
5.1.3.2. A influência das relações de mercado: classes e grupos sociais
5.2. OUTROS MODELOS EXPLICATIVOS: CULTURA E TRAÇOS CULTURAIS E
GRUPOS SOCIAIS E FORMAS DE SOCIABILIDADE
5.2.1. Cultura e traços culturais
O etnocentrismo como obstáculo ao conhecimento científico
O relativismo cultural e a análise estrutural da cultura
5.2.2. Grupos sociais e formas de sociabilidade
Gurvitch e as formas de sociabilidade
O conceito de sociation de Simmel
Robert K. Merton e o conceito de função: funções latentes e manifestas
Atividade formativa 5

6. ALGUNS TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS: MUDANÇA


SOCIAL, SOCIEDADE GLOBAL E TEORIAS DO RISCO

Objetivos de aprendizagem
6.1. A MUDANÇA SOCIAL E A SOCIEDADE GLOBAL
6.2. ANTHONY GIDDENS E AS CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE
6.3. ULRICH BECK E A SOCIEDADE DE RISCO Atividade formativa 6

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INTRODUÇÃO

Este texto resulta do trabalho docente desenvolvido na Unidade Curricular de


Introdução ás Ciências Sociais, na licenciatura em Ciências Sociais da
Universidade Aberta, ministrada em regime de e learning, em turmas virtuais.
Sentimos a necessidade de promover e melhorar a aprendizagem não dos
objetivos de aprendizagem subjacentes aos conteúdos teóricos trabalhados.
Trata-se de uma pequena proposta de (revisitação a alguns dos principais temas
desenvolvidos nesta Unidade Curricular, numa abordagem epistemológica de
aproximação ás Ciências Sociais, em termos gerais.

A experiência docente fez-nos perceber algumas dificuldades de apreensão dos


conteúdos, sobretudo no que se refere a questões de raciocínio abstrato, nas
questões de pensamento epistemológico em torno das etapas da construção do
conhecimento científico e que constituem, a nosso ver, uma competência
importante no âmbito do estudo das Ciências Sociais.

Pretende-se motivar os estudantes para a aquisição de conhecimentos sobre as


Ciências Sociais, de forma sólida e estruturante em que importa também ajudar
a promover o raciocínio e articulação de conhecimentos variados de acordo com
os pressupostos científicos e a respetiva metodologia das Ciências Sociais.
Assim, este texto visa promover e desenvolver a reflexão, o espírito crítico e
argumentativo, com afastamento progressivo dos saberes de senso comum.
Centra-se, essencialmente, na apresentação de exemplos de construção de
processos de abstração, de investigação e de elaboração de conhecimentos
próprios das várias Ciências Sociais, implicando isso, quase sempre, prescindir
de informações consideradas pessoais ou individuais tidas como adquiridas,
como sendo as "Verdades" ou as "evidências" de cada um e colocar em
discussão formas de cosmovisão e de etnocentrismo.

Ao longo do texto chama-se a atenção para a especificidade do processo de


conhecimento científico enquanto construção intelectual, qualitativamente
distante da realidade a que direta ou indiretamente se reporta, com a respetiva

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problematização dos saberes. Depois de compreendida esta fase de


desconstrução dos saberes de senso comum, é possível avançar para a proposta
de critérios que se demarcam de formas e processos de conhecimento
"corrente" ou de senso comum e a atividade cognitiva, desenvolvida à luz do
processo de construção de conhecimento científico.

Para o efeito, explicitam-se certos operadores de senso comum que,


apresentando-se nos discursos correntes como princípios explicativos do social,
podem ser infirmados por aplicação de processos lógicos. Identificam se, assim,
vários tipos de instrumentos ao dispor das ciências (teorias, técnicas e
métodos), a fim de familiarizar os estudantes quer com as respetivas
virtualidades e limitações de cada um deles, quer sobre o peso específico que
adquirem na produção de explicações plausíveis e testáveis da realidade social.

Uma ideia basilar e transversal é a de que o conhecimento científico consiste


num processo de produção que vai no sentido do racional para o real. No caso
das Ciências Sociais há uma diversidade de ciências mas isso não significa que
exista uma fragmentação do social, mas sim uma certa cristalização de objetos
científicos, de códigos de leitura distintos, de diferentes modelos de perspetivas
de uma realidade social única (porque esta é pluridimensional e complexa), que
torna desejável a abertura à interdisciplinaridade como opção enriquecedora
para o desenvolvimento de cada uma das Ciências Sociais.

O incentivo de promover a interdisciplinaridade ê importante para a libertação


da imaginação sociológica o que permite questionar a realidade social e procurar
a sua compreensão. Os conteúdos escolhidos são uma seleção de entre uma
vasta panóplia de opções e temas, ou seja, é uma das formas possíveis de fazer
urna introdução às Ciências Sociais. A seleção de temas e tópicos teve em conta
os objetivos do plano de estudos e o perfil dos estudantes a que se destina.

Apesar de o principal objetivo deste texto ser disponibilizar uma base de estudo
para a Unidade Curricular de Introdução às Ciências Sociais, não significa que
seja de dispensar outras leituras complementares sugeridas aos estudantes em
contexto académico. O trabalho de leitura diversificada é extremamente

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importante, sobretudo, a leitura integral de obras de cientistas sociais.


Relembra-se que estudar é, essencialmente, ler, refletir e articular
conhecimentos c os estudantes podem recorrer à bibliografia usada para a
construção deste texto e outras que resultem de pesquisas autónomas.
Em termos de organização, o texto está dividido em seis capítulos.
No primeiro capítulo aprofunda se a abordagem de como se aprende a ser
membro de uma sociedade, em que se foca a explicitação do processo de
socialização primária e secundária e os papéis sociais que se vão interiorizando
ao longo da vida.

No segundo capítulo apresenta-se o processo de construção do conhecimento


científico, com identificação de alguns obstáculos epistemológicos e as principais
etapas de rutura com o senso comum, a construção e a verificação do
conhecimento científico, ou seja, pretende se transmitir em que consiste o
método científico.
No terceiro capítulo, sobre o domínio das Ciências Sociais, é apresentada uma
visão global sobre as Ciências Sociais com uma breve descrição sobre o
processo histórico das Ciências Sociais e da sua unidade e pluralidade, alertando
para a necessidade de perceber as especificidades do social e a importância da
interdisciplinaridade entre as várias Ciências Sociais.
No quarto capítulo pretende-se abordar algumas Ciências Sociais para dar a
conhecer os tipos de conhecimento que cada uma delas produz, de que forma se
complementam e demonstrar que todas têm o seu lugar e são importantes com
os resultados produzidos por cada uma delas.

No capítulo cinco, sobre a explicação e a compreensão em Ciências Sociais,


inicialmente, ê feita uma apresentação dos três autores clássicos, Karl Marx,
Emile Durkheim e Max Weber, pela sua importância na estruturação das
Ciências Sociais, mas também pela sua contínua influência no pensamento das
Ciências Sociais na atualidade. Ainda neste capítulo, são referidos outros
modelos explicativos e recorre-se, para ilustrar, ao exemplo da explicação
através da conceção de cultura e de traços culturais, tendo também em conta
formas de sociabilidade e de grupos sociais.

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No capítulo seis, pretende dar-se uma panorâmica de áreas de estudo ou de


investigação sobre a sociedade moderna atual, nomeadamente, com o
surgimento de novas problemáticas que acompanham o dinamismo das
sociedades. Optou-se pelo tema da mudança social, sociedade global e teorias
de risco, uma vez que ê um tema transversal e dá conta das transformações
sociais de uma forma abrangente.
Por fim, nas conclusões, faz se uma breve reflexão global sobre o trabalho
realizado. Em termos pedagógicos, cada capítulo começa por apresentar
alguns objetivos de aprendizagem que visam guiar os estudantes quanto aos
conhecimentos esperados que termina com a proposta de uma atividade
formativa que visa a solidificação de conhecimentos.
Para terminar agradeço a ajuda na inserção de texto das colegas Helena Trigo e
Manuela Pinto, da Delegação do Porto da Universidade Aberta e da minha filha
Sara.
Agradeço a Ana Pinheiro, Ana Melro e Fátima de Sousa, colaboradoras há alguns
anos na tutoria virtual da Unidade Curricular de Introdução às Ciências Sociais,
as várias revisões do texto, as sugestões dadas e a colaboração na realização de
alguns dos tópicos temáticos, em concreto, a Ana Melro no ponto 1.2. Papéis
sociais - interpretação e interiorização de normas sociais; a Ana Pinheiro no
ponto 5.1.1. Karl Marx (1818 1883) e o materialismo histórico e a Fátima de
Sousa no ponto 5.2.1. Cultura e traços culturais.

1. APRENDER A SER MEMBRO DA SOCIEDADE

Objetivos de aprendizagem

Compreender em que consiste o processo de interiorizado e a


incorporação de normas sociais.
Definir o conceito de socialização e distinguir as várias fases do processo
de socialização.
Identificar os vários agentes de socialização.
Definir papel social.
Explicitar como se interiorizam e interpretam as normas sociais: os papéis
sociais.

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Equacionar as várias dimensões da vida quotidiana e dos problemas sociais.

1.1. O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO


O comportamento humano aprende se na sociedade pela interação e
comunicação com outros seres humanos e pela transmissão de cultura material
e imaterial ao longo das gerações (Worsley, 1977:203). O ser humano
distingue-se pela partilha com outros seres humanos de uma cultura comum,
cultura esta que inclui elementos de várias gerações e se prolongará para as
gerações futuras.
Olhando para a sociedade em nosso redor, rapidamente se constata que há
grupos, organizações e instituições da mais diversa espécie. Em alguns desses
grupos, os indivíduos entram de forma quase automática, seja pelo nascimento
ou por outros fatores semelhantes enquanto em outros grupos os indivíduos
entram por decisão própria. Em qualquer dos casos, assiste se a um processo
complexo que tem por função fundamental a sua integração nessas unidades
sociais e corresponde a todas as operações que inculcam no indivíduo "como
ser membro da sociedade" (Berger e Luckmann, 2004).
Para a abordagem sobre os processos de socialização segue se de perto a obra
"A construção social da realidade", de Peter Berger e Thomas Luckmann (obra
publicada originalmente cm 1966) que é uma obra de referência e esclarece de
forma muito concisa o modo como o indivíduo se torna membro de uma
sociedade.

1.1.1. Socialização primária

A aprendizagem social faz-se sobretudo pelo ato de desempenhar papéis com os


outros em interação social (pai, mãe, irmãos, vizinhos, professores, etc.) mas
nem todos assumem a mesma importância nesse processo.
Sendo a sociedade uma realidade ao mesmo tempo objetiva e subjetiva,
qualquer adequada compreensão teórica da mesma deve abarcar ambos os
aspetos. Conforme já referimos, estes aspetos recebem um reconhecimento
correto se a sociedade for entendida em termos de um processo dialético em
curso, composto dos três momentos de exteriorização, objetivação e
interiorização. No que diz respeito ao fenómeno social, estes momentos não

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devem ser considerados como ocorrendo nona sequência temporal. Pelo


contrário, a sociedade e cada uma das suas partes são caracterizadas por estes
três momentos em simultâneo, de tal modo que qualquer análise que considere
acenas um ou dois deles é insuficiente. O mesmo se aplica em relação a um
membro individual da sociedade, o qual exterioriza, ao mesmo tempo, o seu
próprio ser no mundo social e interioriza este como realidade objetiva. Por
outras palavras, estar em sociedade significa participar da dialética da sociedade
(Berger e Luckmann, 2004: 137).
Portanto, o indivíduo é "convidado" a tomar parte nesta dialética uma vez que
não nasce membro da sociedade. Nasce com disposição para a sociabilidade e
torna-se membro da sociedade. O ponto inicial deste processo é a interiorização
que consiste na apreensão imediata de um acontecimento objetivo como
exprimindo sentido, ou seja, com quando passa a haver identificação com os
postulados sociais transmitidos
O facto de os vários membros da sociedade reagirem de determinada maneira,
isso não significa que se compreenda o outro da forma mais adequada. Podem
ser mal compreendidos uma vez e mais vezes, e uma determinada ação pode
ter mais do que um sentido, pode estar impregnada de subjetividade.
No entanto, a subjetividade da ação do outro é acessível de modo objetivo e
torna-se significativa quer haja ou não congruência entre os seus processos
subjetivos e os dos outros (id-, ibid.). A completa congruência entre os dois
significados subjetivos e o conhecimento recíproco desta congruência pressupõe
a significação, ou seja, conhecer o seu significado, como o caso em que autores
referem o riso, mas que podemos transpor para qualquer outra manifestação
social.
Para "ler" e compreender os códigos sociais da sociedade em que estamos
inseridos é preciso conhecer e ter interiorizado a significação associada a cada
gesto e a cada expressão. Assim, neste sentido, a interiorização constitui a
base, em primeiro lugar da compreensão dos outros seres humanos
semelhantes e, depois, da apreensão do mundo como realidade significativa e
social, no fundo, trata se de o individuo "assumir" o mundo no qual os outros já
vivem.
Este "assumir" é em si mesmo, em certo sentido, um processo original para
cada organismo humano e o mundo mas que pode ser modificado de maneira

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criadora ou recriado até Com a interiorização compreendemos os momentâneos


processos subjetivos do outro mas também compreendemos o mundo em que
ele vive e esse toma se o nosso próprio mundo. Isto pressupõe que eu e os
outros partilhamos tempo de um modo não apenas efémero mas numa ampla
perspectiva, que liga sequências de situações de maneira subjetiva. Estabelece-
se entre nós um nexo de motivações que se prolonga para o futuro com una
continua identificação mútua entre nós. Não só vivemos no mesmo mundo mas
partilhamos também do ser do outro.
Assim, só depois de ter conseguido este grau de interiorização é que o indivíduo
se torna efetivamente membro da sociedade. A socialização primária é deste
modo a primeira socialização que o individuo experimenta na infância e em
virtude da qual se torna membro da sociedade, (id, ibid.: 138 139).
A socialização primária é, em geral, a mais importante c a que tem mais
impacto para o indivíduo, uma vez que funciona como estrutura básica de toda a
socialização secundária. Cada indivíduo nasce numa estrutura social objetiva,
onde coexistem outros significativos que se encarregam da sua socialização e
que lhe são "impostos" na configuração de realidade objetiva. Então, o indivíduo
nasce, não apenas numa estrutura social objetiva, nus também num mundo
social objetivo. Os outros significativos que estabelecem a mediação deste
mundo com de modificam o mundo no decurso da mediação. Ou seja, são
selecionados aspetos do mundo de acordo com a sua própria localização na
estrutura social c também em virtude das suas idiossincrasias individuais, com
raiz na biografia de cada um (id, ibid.).
Assim sendo, pode entender se por socialização "a dinâmica de transmissão de
cultura, o processo pelo qual os homens [seres humanos] aprendem as regras e
as práticas dos grupos sociais. Tal como aprendemos um jogo jogando-o,
também aprendemos a viver vivendo" (Worsley, 1977: 203).

Através do processo de socialização primária é criada na consciência da criança


uma abstração progressiva dos papéis e atitudes de Outros específicos, para
com os papéis e atitudes em geral, que lhe vai permitindo, ao longo do seu
desenvolvimento, distanciar se do agora, do momento de ação, para a
capacidade de projetar para o futuro as consequências de determinada ação
aprovada ou não pela sociedade ou grupo. A aprovação de atitudes negativas ou

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positivas conduz á interiorização das normas apoiadas pela generalidade da


sociedade, e que constituem as regras sociais aprovadas tacitamente pelo grupo
social e que se refletem nas regras de conduta transmitidas pela família e pelas
outras instituições de socialização.
A abstração dos papéis e atitudes dos outros significativos concretos é chamada
de "o outro generalizado" e substancia se num Outro, numa pessoa em sentido
generalizado. A formação na consciência significa que o individuo se identifica
agora, não sé com outros concretos, mas com uma generalidade de outros, isto
é, com uma sociedade. Só em virtude desta identificação generalizada é que a
sua identificação consigo mesmo alcança estabilidade e continuidade (Berger e
Luckmann: 141). O individuo adquire, assim, para além da sua própria
identidade, da pertença à sua família ou grupo, também uma identidade geral,
mais ou menos comum a todos os membros que fazem parte da sociedade. Esta
identidade, com nova coerência, incorpora em si todos os vários papéis e
atitudes interiorizados, inclusive, e entre muitas outras coisas, a
autoidentificação como alguém que interiorizou as normas sociais.

Durante a socialização primária, o indivíduo não se confronta com o problema de


identificação, uma vez que a criança não é confrontada com a escolha de outros
significativos. No fundo, tem que se arranjar com os progenitores e a família em
que nasce.
Aparentemente, a criança está cm desvantagem, mesmo não sendo passiva no
processo da sua socialização, são, contudo, os adultos que estabelecem as
regras do jogo. A criança pode participar no jogo com entusiasmo ou com mal-
humorada resistência. Mas, enfim, não há outra possibilidade á vista, a criança
não pode fazer outras escolhas. Perante esta ausência da possibilidade de
escolha de outros significativos, a identificação da criança com os outros
significativos é quase automática, percebida, quase sempre, na infância como
"natural". Por essa razão, a criança não interioriza o mundo dos outros
significativos como um dos muto possíveis mas, sim, interioriza o como o
mundo, o seu, o único mundo existente e concebível dentro do seu universo
social. Desse modo, o mundo interiorizado na socialização primária fica muito
mais gravado na consciência do que os mundos interiorizados nas socializações
secundárias (id., ibid.: 145).

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Para estes autores, Berger e Luckmann, o processo de socialização primária


termina quando o conceito do outro generalizado (e tudo quanto o acompanha)
fica estabelecido na consciência do indivíduo. Neste momento ele é um membro
efetivo da sociedade e na posse subjetiva de uma personalidade e de um
mundo. Mas, como se tem vindo a realçar, esta interiorização da sociedade, da
identidade e da realidade não se faz de uma vez por todas, podendo afirmar se
que a socialização nunca é total nem nunca está completa. Ora, esta
constatação coloca dois outros problemas: primeiro, como é que é mantida na
consciência a realidade interiorizada na socialização primária? E, segundo, como
se processam as novas interiorizações, ou socializações secundárias, na
biografia posterior do indivíduo? (id, ibid.: 137-145).

1.1.2. Socialização secundária

Embora seja possível conceber uma sociedade sem que haja outra socialização
depois da primária, essa sociedade teria de possuir um conteúdo de
conhecimentos muito simples (no sentido da conceção de laços de solidariedade
mecânica desenvolvida por Durkheim), diferindo os indivíduos apenas nas suas
perspetivas sobre o conhecimento social, para isso è necessário não haver quase
nenhuma diferenciação entre os indivíduos. No entanto, quase a generalidade
das sociedades têm alguma divisão do trabalho e alguma distribuição social dos
conhecimentos o que potencia a diferenciação e multiplicidade de
conhecimentos, com dinâmicas de interação de socialização secundária, ao longo
da vida do indivíduo, em cada etapa e desafio de incorporação social.

A socialização secundária é a interiorização de "submundos" institucionais ou


baseados em instituições. A extensão e carácter destes são portanto
determinados pela complexidade da divisão de trabalho e concomitante
distribuição social do conhecimento. [...] Exige a aquisição de vocabulários
específicos das funções, o que significa, antes de mais, a interiorização de
campos semânticos que estruturam interpretações e condutas de rotina numa
área institucional. Ao mesmo tempo, são também adquiridas "compreensões
tácitas", avaliações e tonalidades afetivas desses campos semânticos. Os

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"submundos' interiorizados na socialização secundária são, em geral, realidades


partias em contraste com o "mundo-base" adquirido na socialização primaria.
Contudo, eles também são realidades mais ou menos coerentes, caraterizadas
por componentes normativos e afetivos assim como cognitivos.
[...] (id. Ibid.: 145-146).

Assim sendo, os processos formais da socialização secundária pressupõem


sempre um processo prévio da socialização primária, isto é, considera-se que
existe uma personalidade já formada com um mundo social já interiorizado. Os
novos conteúdos que vão ser agora interiorizados terão, de alguma maneira, de
se sobrepor a essa realidade incorporada já presente, fundir se ou
complementar-se, algo que também pode levantar questões de conflito ou de
coerência entre os diferentes tipos de interiorizações.

Neste tipo de socialização, as limitações biológicas tomam secada vez menos


importantes nas sequências de aprendizagem. Por exemplo, usando o exemplo
de Berger e Luckmann, "para aprender certas técnicas de caça é preciso
aprender primeiro a escalar montanhas, ou para aprender cálculo é preciso
aprender primeiro álgebra (id. Ibid.: 148).
Enquanto a socialização primária não pode ser realizada sem a identificação
emotiva da criança com os seus outros significativos, a maior parte da
socialização secundária pode dispensar este tipo de identificação e prosseguir
com eficiência só com a qualidade de identificação mútua incluída em qualquer
comunicação entre os seres humanos. Ou seja, de um modo geral, na
socialização secundária, a ligação emocional e a necessidade de identificação
não é tão avassaladora como na socialização primária.

Não obstante, o facto de os processos de socialização secundária não


pressuporem um alto grau de identificação e de o seu conteúdo não possuir a
qualidade da inevitabilidade, pode ser útil na prática, porque permite sequências
de aprendizagem que são racionais e controladas ao seu nível emocional. Em
alguns casos de socialização secundária pode ser necessário criar técnicas
especiais para produzir a identificação, que pode ser intrínseca em relação á
aprendizagem e aplicação dos conteúdos da interiorização, ou pode ser

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estabelecida a favor dos interesses investidos pelos indivíduos que proporcionam


estas formas de socialização.

Por exemplo, um individuo que deseja tornar-se um músico perfeito deve


mergulhar no assunto num grau desnecessário a um individuo que se prepara
para ser engenheiro. A educação para a engenharia pode efetuar-se com
eficiência, mediante processos formais, muto racionas, neutros ao nível
emocional. A educação musicai, porém, é típico que implique uma identificação
muto mais incensa com um maestro e orna imersão muto mais profunda na
realidade musical. Esta diferença deriva das diferenças intrínsecas entre o
conhecimento de engenharia e o da música e entre os modos de vida em que
estes dois conjuntos de conhecimentos são aplicados na prática («dv Ibid.:
151).

1.1.3. Interiorização e estrutura social

O processo de socialização realiza se sempre no contexto de determinada


estrutura social específica. Ou seja, deve considerar se não apenas o conteúdo
de socialização, mas também as condições e consequências sociais estruturais
em que ocorre essa interiorização das normas sociais, o que significa e reforça a
importância da compreensão dos aspetos estruturais macrossociológicos na
análise microssociologia dos fenómenos de interiorização.
É provável que o êxito máximo na socialização se verifique em sociedades com
uma divisão muito simples do trabalho e mínima distribuição do saber. Em tais
condições a socialização produz identidades predefinidas, ao nível social, e com
um elevado nível de recorte. Uma vez que todos os Indivíduos se defrontam
com o mesmo programa Institucional para a sua vida na sociedade, a força total
da ordem institucional incidirá de modo mais ou menos igual sobre cada
individuo, produzindo uma poderosa realidade objetiva a ser interiorizada. A
identidade é então muco recortada no senado de representar por completo a
realidade objetiva em que se situa. Simplificando, cada pessoa Abastante aquilo
que parece. Numa tal sociedade as identidades reconhecem-se com facilidade,
ao nível tanto objetivo como subjetivo. Todos sabemos quem são os outros e
quem nós somos. Um cavaleiro é um cavaleiro e um camponês é um camponês,

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tanto para os outros como para si próprios. Não existe, por conseguinte, um
problema de Identidade. E improvável que surja na consciência a pergunta
'Quem sou eu?", una vez que a resposta predefinida em termos sociais, tem
uma realidade subjetiva de peso e com uma confirmada coerência em todas as
interações sociais significativas. Isto de modo algum implica que o individuo seja
feliz com a sua identidade. [...] (Id., ibid.: 170).

Quando na sociedade existe urna distribuição mais complexa do conhecimento


de cada um, podem ocorrer casos de socialização imperfeita ou menos bem-
sucedidas e que podem resultar de diferentes outros significantes, mediando
diferentes realidades objetivas para o indivíduo. Ora, isto quer dizer que podem
existir situações de socialização imperfeita, quase sempre devidas a fatores
relacionados com a heterogeneidade das condições sociais, dos indivíduos ou
das instituições socializadoras.
Para estas situações, a sociedade tratará de providenciar mecanismos
terapêuticos para tratar desses casos "anormais", por exemplo, as chanças
socializadas com êxito, no mínimo, farão pressão sobre as "erradas". Enquanto
não houver conflito fundamental entre as definições mediadas da realidade, mas
apertas diferenças entre versões da mesma realidade comum, existe unta boa
possibilidade de sucesso (id., ibid.: 145-152).

1.1.4. Agentes de socialização

Segundo Giddens (1997), a referência aos grupos e aos contextos sociais em


que têm lugar processos de socialização significativos são designadas por
agências de socialização Entre elas distinguem se a família, presente em todas
as culturas, mas também a relação entre pares, as escolas, os meios de
comunicação social, se podem considerar como agências de socialização.

Embora os sistemas familiares estejam presentes em todas as culturas, isso não


significa que os processos de socialização sejam todos iguais. O. contactos com
as crianças e a forma de as socializar são diferentes em todas as culturas. Se a
natureza das relações familiares é influenciada pela forma e regularidade dos
contactos entre os seus membros, são também fortemente condicionados pelo

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caráter de instituições familiares e pelas suas relações com outros grupos


existentes nas sociedades.

Nas sociedades modernas, a socialização primária, de uma forma geral, ocorre


em contextos familiares de pequena dimensão (pequenos núcleos familiares,
tendencialmente pouco numerosos). Em contrapartida, no caso de outras
sociedades, mais tradicionais, tios, tias e primos e outra parentela mais alargada
fazem, frequentemente, parte do mesmo agregado familiar, concorrendo para
que o processo de socialização primário decorra dentro de um contexto de
múltiplos contactos de interação social. Apesar de os núcleos familiares serem
cada vez mais reduzidos nas sociedades modernas complexas, há mais
diversidade de novos tipos de famílias: famílias monoparentais, famílias
reconstruídas, famílias em que os elementos do casal são do mesmo sexo, etc…
o que remete para a complexidade do processo de socialização e para a
diversidade de outros agentes de socialização para além da família.
Nas sociedades modernas contemporâneas uma elevada proporção de mulheres
trabalha fora de casa e regressa ao trabalho pouco depois do nascimento dos
filhos, o que impõe a necessidade de recorrer a outros agentes de socialização
desde muito cedo, como é o caso das instituições de apoio parental e escolar.
Assim, apesar de a família continuar a ser a principal agência de socialização, de
forma crescente, assiste-se ao estabelecimento de uma relação estreita com
outras agências de socialização e que, obviamente influenciam de forma
inquestionável a socialização dos indivíduos.

Os grupos de pares entendidos como crianças ou jovens em idade similar que


convivem nos mesmos contextos, são considerados também como uma agência
de socialização. Embora estes grupos sejam mais referidos na infância e na
adolescência, podem ser também verificados em idade adulta, com a partilha de
determinados interesses como, por exemplo, o desporto ou a atividade
profissional. Em algumas culturas, os grupos de pares estão formalizados como
grupos etários, em que cada geração tem certos direitos e responsabilidades
que se alteram á medida que os seus membros envelhecem (Giddens, 1997:
100). Existem, normalmente, cerimónias ou rituais específicos que marcam a
transição dos indivíduos de um escalão etário para outro. Aqueles que

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pertencem a um escalão específico mantêm, normalmente, relações de estreita


amizade para o resto da vida.
É na família, ou durante a socialização primária, que a criança adquire o
fundamental da experiência social, mas, nas sociedades ocidentais, mesmo sem
a constituição de grupos etários formais, os grupos de pares são importantes,
sobretudo, pelo tempo passado em instituições escolares, em conjunto com
crianças de idade próxima.
As relações entre pares pressupõem igualdade e são fundadas no consentimento
mútuo, em vez da dependência inerente á situação familiar, tem que haver uma
grande latitude no dar e no receber. É entre pares que as regras de conduta
podem ser testadas e exploradas. Normalmente, os grupos de pares assunem
grande importância ao longo da vida dos indivíduos por serem referências de
vida.
A instituição escolar é também entendida como agência de socialização, tendo
em conta a obrigatoriedade da escolarização e também a função de guarda das
crianças e jovens, que se pretende de carácter universal, aberto a todas as
camadas sociais. Não obstante a existência de um currículo formal, existe
também, muitas vezes, o "currículo escondido" ou "oculto", que condiciona a
aprendizagem de algumas crianças que não se enquadram nas normas
estandardizadas (por exemplo, caso da maioria das crianças ciganas).

Espera-se que as crianças aprendam um conjunto de regras disciplinares, por


exemplo, estar na sala de aula em silêncio, mas a instituição escolar das
sociedades modernas é vista também como uma forma de acesso á educação
por parte de todos, pressupondo a ideia de igualdade de oportunidades
orientadora das sociedades democráticas. No entanto, murtas vezes, na escola,
a educação reforça as desigualdades existentes entre as crianças antes da sua
entrada no sistema de ensino, em vez de as ultrapassar. Esta situação pode,
em parte, dever-se á falta de motivação por parte dos progenitores para a
promoção do sucesso escolar, mas também a atitudes de negligência ou
hostilidade por parte de docentes em relação a crianças provenientes de meios
sociais e económicos mais desfavorecidos e degradados ou com diferenças
culturais.

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Também os meios de comunicação se configuram nas sociedades


contemporâneas como agência de socialização. A televisão e outros meios de
comunicação têm um lugar marcante na vida das crianças e influenciam cada
vez mais as atitudes e comportamentos estando, por vezes, na origem de
comportamentos agressivos ou, até mesmo, ser a razão para problemas de
saúde como a obesidade. Mo entanto, são igualmente uma forma imersa e
quase universal de acesso a fontes de informação e a conhecimentos de cultura
geral, sobre modos de vida e os acontecimentos nacionais e mundiais,
contribuindo para os modos de socialização do individuo.

Outras agências de socialização, com carácter ainda mas secundário, podem ser
os locais de trabalho, enquanto contextos em que se operam processos de
socialização de modos de trabalhar e de se inserir nos grupos profissionais e nas
empresas ou instituições empregadoras. O "ambiente de trabalho" pode remeter
o indivíduo para situações desconhecidas, obrigando a um maior ajustamento
das perspetivas e comportamento da pessoa, ou seja, implicar novas
aprendizagens quer profissionais quer relacionais. Como agentes de socialização
podia também falar-se da importância que assume, para certos indivíduos, o
suporte de algumas redes de vizinhança, de frequência de clubes, a pertença a
grupos religiosos, etc, sendo que estas participações diversificadas vão
solicitando aos indivíduos constantes aprendizagens sociais ao longo das suas
vidas.

1.2. PAPÉIS SOCIAIS - INTERPRETAÇÃO E INTERIORIZAÇÃO DE


NORMAS SOCIAIS

Ao estar integrado e fazer parte de determinada sociedade, o indivíduo vê-se


confrontado com a necessidade de aprender e incorporar os seus valores,
normas e cultura, para que se possa sentir pertencente a ela e afastar o
sentimento de exclusão.
Neste sentimento de pertença que vai adquirindo com os vários grupos, classes,
famílias, são também vários os papéis que assunte, seja o de mãe ou pai,
presidente ou membro de uma associação, contratado ou quadro de urna
empresa, que transmitem as normas e valores que deve respeitar e cumprir.

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Por papel social entende-se "o conjunto de deveres adstritos a uma


determinada posição social, ou seja, o comportamento social esperado, ou as
expectativas de obrigações mantidas por outros membros acerca do
comportamento daquele que tem a posição” (Marín, 1988: 79), o que remete,
como já referido, para as normas e valores que transmitem a conduta e a
definição do que é considerado o comportamento mais adequado, dependendo
da situação em que o individuo se encontra e a posição social de que é detentor,
mas, igualmente, em contraste com os restantes indivíduos e respetivos papéis
desempenhados.

Ao lado desta definição de papel social encontram-se os valores e, por


conseguinte, as normas pelas quais o indivíduo rege a sua vida quotidiana, a
forma como a vive e interpreta, mas, também, como perceciona a vida do outro.
Sem que seja necessário parar para que cada um reflita sobre isso, a conduta é
conduzida por algo que nos foi imposto, e que, muitas vezes seguimos sem
questionar - são as normas sociais Para além da sua externalidade
relativamente ao indivíduo, deve reter-se que o não cumprimento das normas
pode originar a reprovação ou uma sanção social mais ou menos severa,
consoante o delito cometido, das quais se tenta sempre fugir, daí que o
comportamento social é produzido em grupos sociais e interiorizado no indivíduo
de acordo com as normas e valores aceites pela sociedade.

Mo entanto, se o individuo não vivesse em sociedade não seria necessário ter


em consideração as normas ou o seu cumprimento, é apenas esta vivência
coletiva que incita a agir de forma a seguir as normas e não a violá- las. Assim,
os comportamentos devem ser interpretados no contexto da vida em
coletividade, pois as normas sociais que se seguem são compartilhadas com
outras pessoas.
Pode, inclusivamente, afirmar-se que será esta coletividade que impede a
violação das normas, ou melhor, a ideia de ser rejeitado ou apontado pela
coletividade, na medida em que o individuo é um ser social. O oposto concentra
se na ideia de que também se procura receber recompensas, prémios,
reconhecimento, que apenas é possível se tiver alguém a assistir às conquistas,

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aos feitos, referindo se, neste caso, às expectativas estandardizadas que


regulam a interação entre as pessoas.

Mas não se deve confundir o conceito de norma social com o de lei, "embora as
leis sejam um tipo de normas formalizadas juridicamente na sua linguagem e
com especificação dos castigos que a sua violação acarreta" (Marin, 1988: 75).
As normas não comportam a mesma conotação negativa que uma lei, aliás, a
grande diferença consiste no facto de as normas sociais serem "acompanhadas
por sanções que promovem a conformidade e castigam a não conformidade"
(Giddens, 2000: 216), o que significa que tanto atribuem prémios (que poderão
ser meramente simbólicos), como aplicam castigos mais severos, em situação
de desrespeito das normas. As leis apenas aplicam sanções ou penas, no caso
de não cumprimento das regras estabelecidas.

1.2.1. Análise dos papéis sociais

Um individuo, ao ocupar múltiplas posições sociais, vai desempenhar vários


papéis, como se fosse um ator. Aliás, provém de Goffman, e da sua teoria da
teatralidade da vida social, o conceito de ator social e da vida enquanto palco,
no qual os indivíduos desempenham a função de atores nas mais variadas
posições, seja a de pai ou mãe, de filho ou filha, de patrão ou empregado, entre
outros (Giddens, 1997:107). No entanto, na vida social, ao contrário do que
acontece no palco, o papel social e a posição social são coincidentes. Os papéis
diferem no espaço e no tempo e, além disso, são múltiplos e variados, tal como
o são as suas ligações e relações. Assim, o número e a natureza dos papéis
sociais constituem a imagem de uma sociedade em um momento preciso da
sua história.
De acordo com a perspetiva de Mead esta natureza dos papéis sociais é
criativa, estando relacionada com as interações que o individuo é levado a fazer
no quotidiano, sendo, por isso, aquela causa destas. No entanto, para os
funcionalistas, a interação e o seu caráter dinâmico são abandonados, sendo a
sociedade considerada um sistema composto por determinações, que compõem
as normas sociais.

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A definição de cada papel é realizada em função do comportamento esperado


pelas pessoas com que o indivíduo se relaciona, estando esta expectativa
igualmente presente nas relações grupais. Com efeito, há certos
comportamentos que não são possíveis cm determinadas situações: uma médica
não atenderá os seus pacientes a saltar à corda. No entanto, o mesmo
comportamento é perfeitamente aceitável quando desfruta, por exemplo, de um
período de lazer com os filhos e desempenha o papel de mãe.

Na sociedade, a coesão social depende da definição, mais ou menos explícita,


dos papéis, que correspondem a posições ocupadas, tendo os indivíduos que se
ajustar de forma considerada socialmente aceitável, organizando os seus
comportamentos, através da assimilação dos esquemas sociais do meio em
que vivem, caso contrário sofrerão sanções, como mencionado anteriormente.

O estatuto social também se define em função das expectativas de


comportamento, pois os modelos culturais estão associados a um dado estatuto.
Daí que englobem as atitudes, os valores e os comportamentos que a sociedade
atribui a uma pessoa e a todos que possuam esse estatuto, tendo estes que dar
a resposta às expectativas da sociedade.
Tendo em consideração que o indivíduo se encontra num mundo globalizado,
enquadrado num subsistema que faz parte de um sistema maior, global, pode
assumir se que está integrado runa rede cada vez mais complexa de funções,
verificando se uma diversificação de posições e uma multiplicação de papéis,
que nem sempre é fácil de gerir ou de compreender, daí o surgimento do
conflito entre papéis que, por vezes, acontece. Na sociedade existem múltiplas
situações de conflito de papéis em virtude da mudança social e da consequente
evolução dos papéis. Como se verificou, o papel é um modelo de
comportamento interiorizado e que faz parte da personalidade do indivíduo.
Assim, a nível individual, os papéis desempenhados não podem ser
contraditórios, sob pena de desequilíbrio da personalidade.
Por exemplo, não é congruente pertencer-se a um movimento ecologista e,
simultaneamente atear fogo a florestas, pois a mesma pessoa estava a
desempenhar papéis antagónicos.

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Em situação de conflito de papéis, este deve resolver-se "segundo a


importância do conflito, mediante a eliminação ou subordinação de um papel, a
assunção de um novo papel que dê sentido aos outros e inclusivamente
mediante a autodestruição" (Marin, 1986: 80). Hoje em dia, o indivíduo
encontra-se inserido cm sociedades baseadas na concorrência e na
competitividade, onde as exigências são cada vez maiores em termos laborais,
familiares, sociais, culturais, e é imprescindível assumir vários papéis no local
de trabalho, demonstrando completo domínio das situações mas,
simultaneamente, desempenhar também papéis relativos á família, em que
estão numa situação mais frágil e nem sempre possível de conciliar. É o que se
chama de duplo papel ou múltiplos papéis.

1.2.2. Socialização e aprendizagem de papéis sociais

Atrás foi referida a definição de socialização, no entanto, é oportuno retornar


aqui às questões da aprendizagem e socialização, em termos de papás,
estatutos e normas sociais. Ao longo de toda a vida, o individuo depara se com
momentos em que necessita de se adaptar a determinadas situações, de
aprender a conviver com mudanças na sua vida e de moldar o seu
comportamento. Se se pode afirmar que a socialização é passível de ser mais
importante enquanto somos crianças, não se pode dizer que termina quando se
passa ã fase da juventude, porque até ser atingida a idade adulta, e mesmo daí
em diante, é importante e até necessário que se aprenda a lidar com
determinadas situações, como a morte de alguém próximo, a mudança de
trabalho, de casa, de cidade, o nascimento dos filhos, etc. Como refere Giddens
(1997), "Embora o processo de aprendizagem cultural seja muito mais intenso
na infância e nos primeiros tempos de criança do que mais tarde, tanto a
aprendizagem como a adaptação continuam pela vida fora" (1997: 44).

A socialização efetua-se através de um certo número de mecanismos, dos


quais se destacam a aprendizagem, a imitação e a identificação. Concentrando
apenas na definição do primeiro mecanismo, a aprendizagem consiste em
inculcar no indivíduo certas reações, mais ou menos automáticas, em presença
de situações sociais determinadas, aquisições de comportamentos que se situam

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a níveis muito variados: horários regulares para as refeições, hábitos de higiene,


etc. E que varia de acordo com as diferentes culturas em que o indivíduo se
encontra.

Destacou-se a aprendizagem por se considerar que esta é a que requer mais


tempo em anos, mas, igualmente, acompanha mento por parte de quem está
responsável pela socialização do indivíduo. De entre outros aspetos da vida em
grupo, mas também individual, a socialização é o processo que permite a
aprendizagem dos papéis sociais. Assim, para cada indivíduo, a socialização
consiste em aprender os comportamentos correspondentes aos papéis e
compreender os comportamentos dos outros indivíduos correspondentes aos
seus papéis. Além cisso, permite fazer reconhecer ao indivíduo o seu estatuto,
isto é, os seus direitos e os seus deveres em função da escala social.

1.2.3. Perspetiva da vida quotidiana e dos problemas sociais

O que se entende por quotidiano, ou o dia a dia? A análise do quotidiano


poderá ser enquadrada, explicada e convertida em ciência? José Machado Pais
explica que "o quotidiano pode constituir um lugar privilegiado da análise
sociológica na medida em que é um lugar revelador, por excelência, de
determinados processos do funcionamento e da transformação das sociedades e
de determinados conflitos que opõem os agentes sociais" (1986: 8).
Quando se pensa que o que se faz todos os cias são atitudes triviais e
irrefletidas, deve antes pensar-se que é de extrema importância para o que
poderá acontecer no dia seguinte, e até que é de interesse para quem estuda
determinados comportamentos. No fundo, as Ciências Sociais baseiam algumas
das suas pesquisas em atitudes que poderão não ser realizadas com a
importância que o investigador lhes atribui, por exemplo, a forma como as
famílias decidem passar as férias; a forma como as crianças utilizam as
tecnologias de informação e comunicação nas salas de aula; o caminho que se
faz para ir trabalhar, enfim atitudes rotineiras, por vezes, que dizem muito dos
indivíduos, e sobre as quais a Sociologia da Vida Quotidiana debruça o seu
estudo.

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Desta forma, pode concluir-se, tal como Pais (1986), que "o «quotidiano» não
deve apenas ser encarado como um conceito tomado no sentido vulgar do
termo" (1986: 10-11); antes, "através do seu estudo, podemos aprender
bastante sobre nós mesmos enquanto seres sociais e acerca da própria vida
social" (Gíddens, 1997: 95). Assim, a sociedade é uma construção das relações
estabelecidas entre os seres sociais, quer seja grupai, quer seja
individualmente, são estas relações e interações que estruturam a sociedade e o
conhecimento que temos dela.

Se é certo que do social ao sociológico vai a distância da investigação, da


transformação do quotidiano cm algo "histórico-original significativo" (Pais,
1986) vai a distância da perceção moral do que se faz. Ou seja, não é possível
separar o quotidiano do social, da mesma forma que não é possível encontrar
as fronteiras entre as vivências do dia-a-dia, com todas as suas tensões,
conflitos, alegrias, mudanças e as reflexões sociológicas que delas se fazem.

Até aqui foi possível ver como se adquirem vários papéis e estatutos, como se
aprende a viver com eles, com maior ou menor resistência, como são impostas
várias normas, mas, igualmente, como se criam, dependendo da posição
ocupada. Mas, como se faz a passagem do quotidiano para a sua importância
científica? Como já foi referido, são as interações que criam e transformam a
sociedade e as suas instituições, mas, para além disso, ao se atribuir um
qualquer significado ao quotidiano, é feita reflexão sobre de, logo, ultrapassa a
perceção inicialmente inexistente de quotidiano, para algo que se tenta
compreender e até analisar Ou seja, "a indefinição do objeto da sociologia da
vida quotidiana passa pela própria indefinição do que se entende ou do que se
possa entender por «quotidiano» ou «vida quotidiana» " (Pais, 1986: 13).

Para facilitar a compreensão deste excerto, pode pensar-se da seguinte


maneira: todos os dias, desde a infância, o individuo tem certas rotinas, que
definiram o seu quotidiano, através da socialização c aprendizagem de que foi
sendo alvo ao longo dos anos, ainda que inconscientemente, se calhar, na
maioria dos casos. Mas, para além disso, vive também, como maior ou menor
frequência, momentos inesperados, quer sejam de felicidade, de tristeza, que

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assume, à partida, que fazem, igualmente, parte do quotidiano, não porque


acontecem diariamente, mas talvez porque, em alguma altura da vida, foi
levado a pensar que tal poderia acontecer, ainda que não fosse essa a sua
vontade. Assim, o quotidiano constrói-se do que é mais rotineiro, mas,
igualmente, do que pode ser considerado como inesperado.
Atividade formativa 1
1) Para a realização desta atividade propõe-se uma autoanálise sobre o seu
percurso de vida. Procure identificar e caracterizar, em traços gerais, o seu
processo de socialização primária e secundária (s) e clarificar como é que essa
aprendizagem social contribui para se tornar membro da sociedade (por
exemplo, localizar e identificar os principais momentos e agentes de
socialização).

2) Assista ao filme L'enfant sauvage (O Menino Selvagem), de 1970, dirigido por


François Truffaut e produzido por Marcel Berbet, e explore, num ensaio, a
importância da socialização primária.

3)
4) Identifique os papéis sociais que desempenha atualmente e se existe alguma
eventual conflitualidade entre eles.

2. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Objetivos de aprendizagem
Conceptualizar a noção de objetividade e o processo de construção do objeto
de estudo em Ciências Sociais.
Identificar e explicitar os principais obstáculos epistemológicos: familiaridade
com a realidade social, dicotomias natureza/cultura e individuo/sociedade e
etnocentrismo.
Reconhecer as fases do processo de construção do conhecimento científico
e as várias etapas do método científico de acordo com Gaston Bachdard: rutura
com o senso comum, construção e validação de conhecimento.

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Descrever os procedimentos científicos para a rutura com o senso comum


e avaliar e discutir as dificuldades com que os cientistas se debatem para
cumprir essa necessidade metodológica.
Explicitar a importância da função de comando da teoria na produção
social do conhecimento cientifico.
Identificar os principais paradigmas teóricos nas ciências, em particular, nas
Ciências Sociais.
Compreender a importância da relativização c a relacionação entre os
fenómenos sociais.
Enquadrar a noção de realidade social como fenómeno multidimensional com
as diferentes perspetivas das Ciências Sociais.

2.1. O PROBLEMA DA OBJETIVIDADE E DA NEUTRALIDADE EM CIÊNCIAS


SOCIAIS

A constituição das Ciências Sociais relaciona se diretamente com a afirmação


crescente da autonomia do social que, com os desenvolvimentos
socioeconómicos, políticos e teóricos desde o século XVII, foram impondo a ideia
de existência de uma ordem social, não diretamente determinada peia vontade
divina (laica), irredutível à ação individual e submetida a leis. Ao longo do século
XIX, foi-se consolidando, a diferentes ritmos, um saber especializado, assente
na reflexão teórica e na observação empírica, com a assunção de que é
necessário fazer um trabalho de rutura com as evidências do senso comum
(Almeida e Pinto, 1986).
Trata se de um processo de conhecimento que não é feito de uma só vez, mas
sim que implica aprendizagem contínua e que se deve constituir numa atitude
de trabalho de vigilância critica e de (re) construção conceptual permanente. E
este o ponto de vista que se adota nesta abordagem introdutória ao estudo das
Ciências Sociais, guiada pelo objetivo de salientar que o conhecimento científico
consiste num processo de construção que coloca em causa pré-noções e pré
conceitos que cada um tem sobre a realidade social.

2.1.1. Obstáculos epistemológicos

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Pensar o objeto das Ciências Sociais coloca a questão da análise da realidade


social como ponto de partida para garantir a objetividade e a neutralidade do
investigador, uma vez que também o investigador é, ele próprio, demento dessa
realidade, dotado de subjetividade e de conhecimento de senso comum, que
pode transportar para a investigação e análise. O investigador de Ciências
Sociais enfrenta, em simultâneo, obstáculos enquanto membro de uma
sociedade e como investigador. Estes obstáculos são designados por
epistemológicos e consistem na familiaridade do investigador com o
social; no senso comum; na dicotomia natureza e cultura; na dicotomia
individuo sociedade; no etnocentrismo e na relação de nós com os
outros, de acordo com as posições sociais que cada um ocupa na sociedade.

Para enfrentar e controlar cada um destes obstáculos, os cientistas sociais


devem fazer um processo de rutura com o senso comum, nomeadamente,
pela desconstrução de pré-noções que dificultam o desenvolvimento do
raciocínio científico. O processo de desconstrução das pré-noções subjetivas
é um propósito que se verifica em todas as ciências por constituir uma das
regras básicas do método científico. Contudo, no caso das Ciências Sociais, o
processo de rutura assume uma importância fulcral, precisamente pela
proximidade existente entre o objeto de estudo, a realidade social e os cientistas
sociais, que dificulta essa racionalização do processo de objetivação científica.
Aprender a gerir e a fazer rutura (s) com o senso comum deve ser uma tarefa
que um aprendiz de Ciências Sociais deve praticar. Apenas deste modo, pode
iniciar um processo de aprendizagem através da desconstrução dos
conhecimentos do senso comum que eram dados como adquiridos, para passar
a olhar a realidade social sob o ponto de vista da objetivação proposta pela
metodologia científica das Ciências Sociais.

2.1.1.1. Familiaridade do social e senso comum

A familiaridade do investigador na área das Ciências Sociais com o social


constitui um obstáculo epistemológico a ser controlado peia proximidade e
tendência para a simplificação e banalização de procedimentos c de formas de
análise. É frequente, a propósito de qualquer tema do "social", cada individuo

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emitir urna opinião e considerar que essa opinião é a mais válida, mesmo que
não se fundamente em conhecimentos verificados, sendo, por isso, resultado
não de verificação e validação científica, mas sim da sua experiência social. O
facto é que o indivíduo ê um ser social que vive numa determinada sociedade,
num determinado contexto, numa realidade social e que, ao longo da vida, vai
incorporando, pela socialização, a cultura e as regras sociais que o ajudam a
formular explicações para compreender os acontecimentos do dia-a-dia, mas
também para o situar num determinado circulo social e, em termos mais latos,
em relação á sociedade em que vive.

Peter L Berger e Thomas Luckmann apresentam de forma muito clara a relação


que se estabelece entre a perspetiva do indivíduo enquanto investigador e
membro de urna sociedade.

A realidade da vida quotidiana apresenta-se-me, como um mundo


intersubjetivo, um mundo que partilho junto com outros. Esta intersubjetividade
diferencia com nitidez a vida quotidiana de outras realidades, das quais tenho
consciência. Estou sozinho no mundo dos meus sonhos, mas sei que o mundo
da vida quotidiana é tão real para os outros quanto é para mm. De facto, não
posso existir na vida quotidiana sem estar sempre em interação e Comunicação
com os outros. Sei que a minha atitude natural em relação a este mundo
corresponde è atitude natural dos outros, que também eles compreendem as
objetivações graças às quais este mundo è ordenado, que eles também
organizam este mundo em tomo do "aqui e agora", do seu estar nele e no qual
têm projetos de trabalho. Sei também, é evidente, que os outros têm uma
perspectiva deste mundo comum que não ê idêntica à minha. O meu "aqui" é o
"lá" deles O meu "agora" não se sobrepõe por completo ao deles.
Os meus projetos diferem dos deles, com os quais podem mesmo entrar em
conflito. De qualquer modo, se que vivo com lies num mundo comum. E da
maior importância também é eu saber que há ema contínua correspondência
entre os meus significados e os seus significados neste mundo, Que partíramos
um sentimento comum no que respeita ã sua realidade. A atitude natural é a
atitude da consciência do senso comum, porquanto se refere a um moído Que é
comum a muitas pessoas.

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O conhecimento do senso comum é aquele que partilho com os outros nas


rotinas normais, autoevidentes na vida quotidiana (Berger e Luckmann, 2004:
35).

Para estes autores, a realidade da vida quotidiana é admitida como sendo a


realidade uma vez que ela existe, ou seja, consiste num facto evidente e,
embora seja possível ter dúvidas a seu respeito, vive -se e existe-se numa
rotina da vida quotidiana que é partilhado com outros indivíduos. Contudo,
pode-se sempre questionar de que forma é que cada um vivência a vida
quotidiana. A este nível, ê possível estabelecer diferenças sobre o modo como
cada um vive essa experiência, em situações de interação social, de frente a
frente.
O meu e o seu “aqui e agora" estão sempre a impor-se um ao outro, enquanto
durar a situação frente a frente. Como consequência, há um intercâmbio da
minha expressividade com a dele. Vejo-o sorrir e a seguir reagir à minha
experiencia sisuda, depois sorrindo de novo Quando eu também sorrio, etc.
Todas as minhas expressões se orientam na sua direção e vice-versa, e esta
continua reciprocidade de atos expressivos está acessível a ambos, ao mesmo
tempo. [...].
As tipificações da interação social tornam-se cada vez mais anónimas ã medida
que se afastam da situação frente a frente. Toda a tipificação acarreta, claro,
uma anonimidade incipiente. Se tipificar o meu amigo Henry como membro da
categoria X (por exemplo, como Vigies"), interpreto, isto facto, pelo menos
certos aspetos da sua conduta como resultantes dessa tipificação: os seus
gostos em matéria de comida são típicos dos ingleses, bem como as suas
maneiras, algumas das suas reações emocionais, etc.
Isto implica, contudo, que tais características e ações do meu amigo Henry
sejam atributos de qualquer pessoa da categoria dos ingleses, isto é, apreendo
estes aspetos do seu ser em termos anónimos. Entretanto, enquanto o meu
amigo Henry se mantiver acessível a mim na plenitude de expressividade da
atuação frente a frente, ele continuara a interferir com o meu tipo de inglês
anónimo, manifestando-se como indivíduo único, logo atípico, como o meu
amigo Henry. O anonimato de tipo ê evidente que será menos suscetível a esta
espécie de individualização quando a interação frente a frente é um assumo do

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passado (o meu amigo Henry, o inglês, que conheci quando eu era estudante do
ensino superior), ou é de caracter superficial e transitório (o inglês com quem
converse», por pouco tempo, num comboio), ou nunca aconteceu (os meus
concorrentes comerciais em Inglaterra) (id, ibid:40-41).

A experiência dos outros na vida quotidiana tem caráter direto ou indireto em


relação à experiência de cada um. Podem, facilmente, distinguir se as pessoas
com quem se interage em situações frente a frente, de várias mineiras, com
maior ou menor intensidade, e outros que coexistem na sociedade mas que são
distantes ou desconhecidos, ou que se conhecem apenas de ouvir falar e que se
sabe serem contemporâneos.
Nas situações de interação cara a cara tem-se a evidência direta do outro, pode
se avaliar as suas ações, reconhecer os seus atributos, etc., o que não acontece
mesmo com aqueles que se sabe serem contemporâneos, mas que não se
conhecem. O anonimato aumenta à medida que se passa de situações de frente
a frente para outros indivíduos que não se conhecem e se preenche com
características ou tipificações oriundas da multiplicidade de sintonias referentes
a um ser humano concreto, que se conhece em determinada situação.
Isto, porém, não é tudo. Há evidentes diferenças nas minhas experiências
relativas a simples contemporâneos. Alguns deles são pessoas com quem tenho
repetidas vivências em situações frente a frente e que espero encontrar mas
vezes, com regularidade {o meu amigo Henry); outros, recordo como seres
humanos concretos que encontrei no passado (a loura com quem me cruze na
rua), mas o encontro foi rápido e é provável que não se repita. Outros, sei que
são seres humanos concretos, mas só posso apreendê-los por meio de
tipificações cruzadas, mais ou menos anônimas (os meus concorrentes
comerciais ingleses) e parceiros potências mais improváveis (a rainha de
Inglaterra).
O grau de anonimato que caracteriza a vivência de outros, na vida quotidiana,
depende contudo de outro fator ainda. Vejo o ardina da esquina com tanta
regularidade como vejo a minha mulher. Mas ele é menos importante para mim
e não tenho intimidade com ele. ele pode manter-se, de certo modo, anónimo
para mim. O grau de interesse e o grau de intimidade podem combinar-se para
aumentar ou diminuir o anonimato da experiencia. Também pode influenciá-la

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de modo independente. Posso ter relações sexuais bastante íntimas com vários
membros do meu clube de ténis e relação muito formal com o meu patrão.
Contudo, os primeiros, embora de modo algum anónimos, podem fundir se
naquele "grupo dos courts enquanto o último se destaca como individuo único.
E, por fim, o anonimato pode tornar-se quase total com certas tipificações
jamais destinadas a tornarem-se individualizadas, como o "leitor típico do
Times, de Londres". Enfim, a "amplitude" da tipificação, e portanto o seu
anonimato, pode ser ainda mais alargada se falarmos da "opinião pública
inglesa" (id., ibid.: 44).
Em resumo, para Berger e Luckmann (2004), a realidade social da vida
quotidiana é apreendida num contínuo de tipificações que progressivamente se
vão tornando cada vez mais anónimas à medida que se distanciam do "aqui e
agora", da situação frente a frente. Num dos polos do contínuo estão os que
fazem parte do círculo interior e que são aqueles com que, em vários tipos de
frequência e intensidade, se entra em ação recíproca, em situações frente a
frente. No outro polo estão abstrações, anónimas por completo, que peia sua
própria natureza nunca se poderão encontrar numa interação frente a frente. As
posições sociais que cada indivíduo ocupa na estrutura social contribuem para a
diversificação dos pontos de vista sobre a realidade social, fazendo com que se
tenha um conhecimento mais próximo ou mais afastado em relação a
determinados aspetos da realidade social. É isto que faz com que cada indivíduo
esteja mais próximo de certos aspetos da realidade c mais afastados de outros,
passando se, de igual modo, com todos os outros membros da sociedade.

Assim, o meu conhecimento da minha própria ocupação e do seu mundo é muito


rico e específico, enquanto tenho apenas um conhecimento muito incompleto
dos mundos de trabalho dos outros. O património social do conhecimento
fornece-me, além disso, os esquemas tipificadores exigidos para as principais
rotinas da vida quotidiana, não só as tipificações de toda a espécie de
acontecimentos e experiencias tanto sociais como naturais. Assim, vivo num
mundo de parentes, colegas de trabalho e funcionários públicos identificáveis.
Neste mundo, por conseguinte, tenho reuniões familiares, encontros
profissionais e relações com a polícia de trânsito. O "pano de fundo" natural
desses acontecimentos é também tipificado no património dos conhecimentos. O

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meu mundo é estruturado em termos de rotina aplicável faça bom ou mau


tempo, seja época de febre de fenos ou quando um cisco me entra num dos
olhos. "Sei o que fazer" em relação a todas aquelas pessoas e a todos esses
acontecimentos da minha vida quotidiana Apresentando-se-me como um todo
integrado, o capital social do conhecimento fornece-me também os meios de
integrar elementos descontínuos do meu próprio conhecimento. Por outras
palavras, "o que toda a gente sabe" tem a sua própria logica e a mesma lógica
pode ser aplicada para ordenar várias coisas que sei. Por exemplo, sei que o
meu amigo Henry é inglês e que é sempre muto pontual nos seus encontros.
Como toda a gente sabe" que a pontualidade é una característica inglesa, posso
agora integrar estes dois elementos do meu conhecimento de Henry numa
tipificação dotada de sentido em termos do conteúdo soda de conhecimento (id,
ibid.: 54-55).
A validade do conhecimento individual sobre a vida quotidiana é um dado
adquirido, por cada um e pelos outros. Segundo os autores, ""o nosso
conhecimento da vida quotidiana tem a qualidade de um instrumento que abre
um trilho através de uma floresta e ao mesmo tempo projeta um estrato cone
de luz sobre o que está situado logo á frente e ao redor, enquanto aos lados do
caminho continua a haver escuridão." (id, ibid.: 56). Esta imagem é bastante
ilustrativa e aplicável às múltiplas perspetivas sobre a realidade da vida
quotidiana. Continuando a seguir o raciocínio dos mesmos autores, um dos
elementos relevantes importantes para o conhecimento da vida quotidiana é o
reconhecimento da relevância das várias estruturas para os outros.

Assim, "sei muito bem" que não devo falar ao meu médico sobre os meus
problemas de investimentos, ao meu advogado sobre as minhas dores causadas
por uma úlcera, ou ao meu contabilista a respeito da minha busca da verdade
religiosa. As estruturas com relevância básica para a vida Quotidiana são-me
apresentadas ja prontas peiam própria reserva de conhecimento social. Sei que
a "conversa de mulheres" não tem importância para mim como homem, que
"especulação ociosa" é irrelevante para mm como pessoa de ação, etc. Por fim,
o património social de conhecimentos, no conjunto, tem a sua própria estrutura
de importância (id., ibid.: 56).

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Na vida quotidiana encontram-se conhecimentos distribuídos em termos sociais


e que são apropriados de modo diferente pelos indivíduos. O conhecimento n3o
é partilhado de forma igual com todos os semelhantes e, aliás, pode se não
partilhar determinado tipo de conhecimento com alguém. Para ilustrar a
situação, Berger e Luckmann exemplificam "Partilho a minha capacidade
profissional com os colegas, mas não com a família, e não posso partilhar, seja
com quem for; a maneira de fazer batota ao jogo." (2004: 57). Como
rapidamente se constata, a distribuição social do conhecimento de certos
elementos da realidade quotidiana pode ser um aspeto complexo e confuso para
elementos estranhos a essa realidade social, mais afastados cultural, social ou
profissionalmente. Desta forma, a distribuição social do conhecimento começa
com o facto de o indivíduo não conhecer tudo o que é conhecido pelos seus
semelhantes e vice-versa, e conduz a sistemas de especialização complexos. Por
exemplo, é o caso da especialização do saber profissional, mas também do
conhecimento de uma determinada cultura. No entanto, na vida quotidiana sabe
se, pelo menos de uma forma genérica, o que se pode e deve ocultar e de
quem, mas também a quem se pode e deve recorrer para informações sobre os
diversos assuntos (id., ibid.: 57).
Para além da familiaridade com o social, outros obstáculos epistemológicos
dificultam a construção do conhecimento científico em Ciências Sociais, que
quase sempre consistem em perspetivas dicotômicas sobre a realidade social.
Ora, as perspetivas dicotômicas são redutoras por forçar a classificação e
ordenação da realidade social em tipificações lineares ou bipolares. De seguida,
damos conta de algumas dessas dicotomias que podem constituir entraves á
construção do conhecimento científico.

2.1.1.2. Dicotomias natureza e cultura e indivíduo e sociedade

Começando pela análise da dicotomia natureza e cultura, ela acentua a


perspetiva sobre as interpretações naturalistas e da cultura através do
relativismo cultural. Nas interpretações comuns dos factos sociais é usual
atribuírem se causas físicas, biológicas ou naturais a determinados padrões de
comportamento. Questiona se a relação que se estabelece entre a natureza e os
diversos contextos sociais e culturais em que o ser humano se move. O

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desenvolvimento das Ciências Sociais levou a que as interpretações naturalistas


que preconizavam a evolução da realidade social de acordo com determinismo
biológico sejam desmentidas por investigações nos domínios da Antropologia,
5ociologia e História, o que veio acentuar a importância dos contextos socio
históricos dos fenómenos sociais na análise social.
A Sociobiologia defendia que o comportamento social tinha uma base biológica,
aplicando, por isso, teorias biológicas, fundamentadas nos cânones darwinistas,
à formação dos contextos sociais. Porém, o que se constatou, muitas vezes, foi
que a extrapolação desses pressupostos ao comportamento humano tem sido
usada como arma para fundamentar ideologias de supremacia racial ou grupai
e, desse modo, dominar outros seres humanos e ocupar territórios, por
exemplo, como foi o caso do nazismo.
Não nos deteremos muito sobre esta perspectiva, rio entanto, interessa salientar
que foi a linha ideológica da evolução das espécies de Darwin que esteve na
base do desenvolvimento do modelo positivista" aplicado ás Ciências Sociais,
com a teoria da evolução das espécies transposta para a teoria da evolução das
sociedades, desenvolvida por Auguste Comte. Este tipo de teorias sociais
fundamentavam-se em modelos da Biologia ou da Física, pretendendo se fazer
um paralelismo entre a organização dos seres humanos e das sociedades, e dos
organismos animais e dos organismos sociais, quer segundo a conceção
evolucionista das sociedades, quer segundo a conceção funcionalista e
organicista em que se defendia que havia uma função social, por comparação
metafórica com os organismos vivos.
No que se refere à dicotomia indivíduo e sociedade, o vago sentimento de
desorientação provocado pela indefinição do objeto das Ciências Sociais assenta
cm does argumentos: um deles refere que, como cada indivíduo é diferente dos
outros, torna impossível avançar com uma explicação em termos de grupo, o
outro argumento sustenta que este tipo de explicação é contrário ao livre
arbítrio, ou seja, à opção individual de cada um.
Se compararmos sociedades modernas, organizadas tendo por base relações
capitalistas de propriedade privada, com sociedades feudais ou certas
sociedades (economicamente) não desenvolvidas, estudadas pelos antropólogos,
a ênfase dada ao individualismo, ao sucesso e á responsabilidade individuais
aparece nas primeiras de forma muito mais acentuada. Os grandes sociólogos

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clássicos analisaram esse as peto de várias maneiras. Por exemplo, Max Weber
afirmou que sem a ética capitalista, o capitalismo não se poderia ter
desenvolvido e, por conseguinte, não teríamos assistido ao desenvolvimento das
sociedades modernas.
A predominância do individualismo dá origem a que alguns assuntos falados
pelos dentistas sociais se apresentem como um desafio à maneira de pensar, o
que em muitos estudantes se desenvolve durante o período da sua educação
secundária. Por isso, os conceitos e análises sociológicas e das Ciências Sociais
em geral deparam-se com resistências muito mais vigorosas do que seria de
esperar. Por exemplo, afirmar que determinados indivíduos são "naturalmente"'
competitivos ou "naturalmente" egoístas, quando é fácil demonstrar, recorrendo
á Antropologia, por exemplo, que o grau de egoísmo ou de competitividade dos
indivíduos depende da forma como estio organizadas as suas sociedades de
origem e que o processo de socialização incentiva ou não a competitividade.
Retomando os argumentos usados, normalmente, para a indefinição do objeto
das Ciências Sociais, que defendem que "todo o indivíduo é diferente" ou "todo o
indivíduo é singular, por conseguinte, não pode ser explicado sociologicamente"
(Coiison e Riddcll, 1979 em Esteves e Fleming^ 1982), e se se levasse esta
análise às últimas consequências, significa na que jamais se poderá fazer
previsões sobre o comportamento dos indivíduos. Por exemplo, quando alguém
entra num restaurante espera que haja aí uma pessoa a preparar as refeições e
outra para as servir. De facto, se as pessoas, apesar de serem indivíduos
diferentes, não se comportassem como as outras pessoas preveem que o façam
(pelo menos em determinadas circunstâncias), a vida social tomar-se-ia
impossível.
Com efeito, espera-se que as pessoas se comportem de uma maneira no
restaurante e que os alimentos nos sejam fornecidos sem pensarmos nisso
enquanto aprendizagem social. Já não se espera, porém, necessariamente, que
os divorciados do sexo masculino e protestantes tenham mais probabilidades de
virem a suicidar-se do que outras pessoas, como Durkheim'' demonstrou. Para
chegar a este resultado é preciso desenvolver um esforço de pesquisa e
explicação para mostrar que existe uma ligação entre suicídio c pertença á
categoria "homens protestantes divorciados" (id, Ibid.).

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O que se constata é que os seres humanos são, ao mesmo tempo, singulares,


com as suas próprias características, mas também compartilham algumas
características com os outros indivíduos. Assim sendo, o que é singular de cada
indivíduo é a combinação total, não cada característica individual em si mesma.
Racionalmente, a individualidade humana, a singularidade, não constitui
nenhuma barreira à explicação sociológica. Porém, dado que um indivíduo não
responde a una situação em função apenas de urna das suas características
distintas, mas sim como uma pessoa total com todas as suas características, é
evidente que a previsão real do comportamento de um indivíduo numa situação
é uma tarefa muito mais difícil que a de fazer previsões gerais sobre a
probabilidade de certo tipo de comportamento ocorrer, em certos grupos, em
determinadas condições.
O outro argumento, que aponta que a explicação das Ciências Sociais é uma
negação do livre arbítrio, remete para a questão sobre a relação entre livre
arbítrio e determinismo e da forma como a liberdade dos indivíduos é
condicionada pelas regras sociais. Regressando ao exemplo do restaurante, o
facto de normalmente haver cozinheiros, não implica qualquer impossibilidade
teórica de um determinado cozinheiro decidir faltar ao serviço em certo dia e de
esse ato poder resultar do seu livre arbítrio. No entanto, qualquer investigador
social tentará sempre encontrar as causas de qualquer comportamento
individual numa experiência social vivida pela pessoa. Por outro lado, há que
notar que só quando o indivíduo está consciente das forças que o pressionam
para se comportar de determinada maneira, nos diferentes contextos, é que
questiona a decisão se deve ou não continuar a comportar-se desse modo, e, só
nessa altura, se torna significativa. Caso contrário, se não existir esse
questionamento as escolhas que se fazem, aparentemente não são entendidas
como escolhas de facto.
Como tem vindo a ser referido, as objeções á possibilidade de explicação das
Ciências Sociais não têm fundamento lógico sólido e podem-se apontar razões
sociológicas, derivadas da socialização primária, que permitem compreender
porque é que certos indivíduos se identificam com certas objeções. Para
entender, torna se necessário ir mais longe na análise c reconhecer a
omnipresença do social e a importância das explicações sociológicas, para a
compreensão dos comportamentos humanos e dos problemas sociais, sendo o
que Wright Mills' designou por "imaginação sociológica'* (Mills, 1982).

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Para este autor, a imaginação sociológica ajuda a formular o tipo adequado de


interrogações, a partir das quais se pode começar a explicar os problemas
sociais que se deparam ao investigador. Por exemplo, o facto de um indivíduo
estar desempregado assume maior preponderância quando uma grande
proporção da força de trabalho se encontra nessa situação, porque deixa de ser
possível encontrar essa explicação em termos de características individuais. A
explicação tem, forçosamente, de ser procurada em outro nível de análise,
atendendo aos grupos sociais a que cada um dos indivíduos desempregados
pertence, à sua organização e á forma como a sociedade, no seu conjunto, se
encontra estruturada e que tipo de soluções desencadeia para fazer face a esse
fenómeno. Outro exemplo apontado por W. Mills é o casamento. Se um
determinado casamento fracassa, trata-se de um problema pessoal para as
pessoas nele envolvido. Se, porém, se verifica em grande escala, então, embora
o problema continue a apresentar-se como pessoal para os membros que
constituem o casal, há motivos para procurar uma explicação que tenha em
conta causas exteriores aos casais, individualmente considerados e que diz
respeito aos grupos a que cada um dos membros do casai pertence, á estrutura
desses grupos e, uma vez mais, à forma como a sociedade está organizada e
regula os casamentos e os divórcios.
A omnipresença das influências sociais nos indivíduos reflete-se no facto de
quase ninguém ter dificuldade em responder a perguntas do género: a quem
compete a responsabilidade de cuidar dos filhos? Quem mais provavelmente fica
em casa a tomar conta dos filhos? A maioria dos indivíduos ao dar a resposta
que considera certa estará ao mesmo tempo a descrever o seu próprio
comportamento, ou aquilo que considera ser mais apropriado para a situação
questionada.
Por que motivo são diferentes as formas de comportamento que a generalidade
das pessoas espera dos homens c das mulheres na sociedade atual? O facto de
existirem reais diferenças fisiológicas e biológicas entre os homens e as
mulheres leva a que, frequentemente, se suponha que a Fisiologia e a Biologia
são diretamente responsáveis por essas diferentes formas de comportamento
feminino ou masculino. Argumenta se, muitas vezes, que os comportamentos
usualmente mais adotados por homens e mulheres não são de origem social
mas natural, e assim se toma fácil dizer que é uma situação antinatural quando

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as pessoas não se comportam de acordo com as ações ou maneiras que delas


esperam, em função da idade, sexo ou género a que pertencem.
Margaret Mead, recorrendo a exemplos colhidas nos seus estudos na Nova
Guiné, mostrou que muitas das diferenças entre os sexos, correntemente
atribuídas a fatores biológicos têm, de facto, origem social. Esta antropóloga
teve a possibilidade de estudar várias sociedades na Nova Guiné, o que lhe
permitiu fazer comparação entre várias sociedades. Enquanto numa tribo
Arapesh praticamente não havia distinção de comportamento entre os dois
sexos, noutra tribo, entre os Mundugamor, uma tribo de caçadores de cabeças,
não muito distante geograficamente dos Arapesh, apresentam a agressividade
como uma característica comum aos homens e às mulheres.
Sob o ponto de vista de Mead, esta diferença relaciona-se com o distinto
comportamento em relação ao tratamento das crianças. A autora constata que
na primeira tribo referida há um desmame tardio e as crianças são tratadas, de
uma forma geral, com afetividade, enquanto na segunda tribo há uma
desatenção por parte dos adultos e pouco afeto em relação às crianças. Este as
peto observado nas duas sociedades relaciona-se diretamente com a forma
como cada uma tem de obter os alimentos indispensáveis à sobrevivência. No
caso dos Mundugamor sempre foi mantido o nível da subsistência coletora,
enquanto os Arapesh cultivavam a terra.
Como referir qual o comportamento mais natural nas sociedades atuais7
Certamente cada individuo classificaria o seu comportamento corno o mais
natural, no entanto, comparando as sociedades, conclui-se que o problema não
é de ordem biológica, mas sim de ordem social e que as causas dos
comportamentos e atitudes dos homens e das mulheres não devem ser
procurados na sua constituição fisiológica, mas antes ria forma como as
sociedades se encontram ordenadas e estruturas.
Também Émile Durkheim procura explicar comportamentos considerados como
individuais, mas que traduzem, efetivamente, um facto social por estarem
associados a práticas, interesses e representações ideológicas de determinados
grupos sociais. É o caso do estudo que o autor desenvolveu a propósito da
prática do suicídio. Para a maioria das pessoas, o ato do suicídio parecerá o mais
individual dos atos, uma decisão que o indivíduo tomará no máximo de
desespero pessoal ou de depressão. Foi, no entanto, o suicídio que constituiu o

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objeto de uma das investigações sociológicas mais importantes do principio do


século XX realizadas por Durkheim. Uma das razões que levou o autor a fazer
este estudo foi o objetivo de demonstrar que o comportamento social não é
totalmente redutível ao estudo dos indivíduos.
Partindo da análise de resultados estatísticos sobre o suicídio em vários países
da Europa, o autor deteta una regularidade que se mantém de ano para ano.
Tomou cm conta as explicações do suicídio que tinham sido apresentadas até
então, baseadas em fatores como o clima, a raça, a doença mental, a
hereditariedade e o contágio (a ideia de que um suicídio provoca outros). Mas,
para Durkheim, estas explicações eram insuficientes e não esclarecedoras
totalmente do fenómeno social, descobrindo que a probabilidade do suicídio
variava coma religião dos indivíduos. Os protestantes tinham mais possibilidades
de cometer o suicido que os católicos e os judeus eram os menos propensos a
suicidar se. O suicídio aparecia também estatisticamente relacionado com o tipo
de vida familiar: as pessoas casadas e com filhos tinham menos probabilidades
de se suicidarem do que as solteiras e as viúvas. Para as mulheres que eram ou
tinham sido casadas, as que não tinham filhos suicidavam-se com mais
frequência. Durkheim observou ainda que as taxas de suicídio eram reduzidas
quando ocorram acontecimentos políticos cruciais, como eleições importantes ou
guerra.
O autor conseguiu encontrar um elo comum a todas estas relações: o grau de
integração do indivíduo na sociedade. A este respeito enunciou três proposições:
a probabilidade de o suicídio variar com o grau de integração religiosa, familiar c
política. Quanto mais o indivíduo estiver integrado numa dessas esferas ou em
todas elas, menor será a probabilidade de se suicidar. A partir daqui, propôs a
definição de um primeiro tipo de suicídio que designou de "egoísta" e que seria
causado por carência de integração social.
Durkheim chegou também a outras duas conclusões de caráter geral - o suicídio
ocorria muito mais frequentemente nas cidades do que nos campos, e as taxas
de suicídio tendiam a aumentar no decorrer do século XIX. O autor argumenta
que a vida nas cidades era mais impessoal e anónima que a vida nos campos e
que o processo de industrialização do século XIX tinha por efeito aumentar a
importância numérica relativa das populações urbanas. Parecia que, até certo
ponto, a própria estrutura de integração social estava a ruir, de tal modo que os

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indivíduos enfrentavam cada vez mais dificuldades para se integrarem


socialmente. Durkheim julgava tratar-se de um indicador de tipologia social e
propôs a definição de um segundo tipo de suicídio, o suicídio "anómico" -
derivado da situação em que o indivíduo não encontrava qualquer estrutura
onde se pudesse integrar
Mas Durkheim constatou também que as pessoas se suicidavam quando se
registava um elevado grau de integração do indivíduo no grupo social, como no
caso de algumas sociedades ditas primitivas ou tradicionais. Aspetos que o
levaram a concluir que, em alguns sistemas, o individuo pode estar tão
profundamente integrado no seu grupo que acaba por atribuir menos valor à sua
vida que à aceitação de exigências sociais, a que se acha submetido. O
"sentimento de honra" ou "vergonha de transgredir" podem levar a que
sacrifique a sua vida para as manter ou as reforçar. Isto levou a que Durkheim
distinguisse um terceiro tipo de suicídio a que chamou de "altruísta".
É deste modo que o autor demonstra que o ato individual de suicídio, muito
embora isolado e raro, não pode ser adequadamente explicado sem se levar em
conta as relações sociais de que as pessoas, de uma maneira ou de outra,
dependem, o que se consegue obter pela identificação dos grupos sociais onde
os suicídios são mais frequentes, não podendo, no entanto, ser considerados
como preditores dos grupos onde ocorrerão mais suicídios (Coulson e Riddell,
1970 em Esteves e Fleming, 1982).

2.1.1.3. Etnocentrismo

A palavra etnocentrismo foi introduzida no princípio do século XX para designar


duas atitudes relacionadas: a sobrevalorização do grupo e da cultura local,
regional, nacional ou transnacional, a que pertence cada um dos indivíduos c a
respetiva depreciação das culturas e das organizações diferentes. O desejo de
universalização dos valores próprios do grupo e da cultura de pertença,
assumindo se que esses valores constituem ou devem constituir as normas de
referência para a avaliação de estruturas e de práticas sociais (Silva, 1986: 45).
Ou seja, simplificando, o etnocentrismo consiste na sobrevalorização de uma
cultura local em detrimento das restantes culturas.

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Significa, sobretudo, a realização de uma dicotomia entre um indivíduo, os que


lhe são próximos e os outros, que lhe são distantes. Implica a universalização
dos princípios e valores de uma cultura como pontos de referência na avaliação
de estruturas sociais diversas. É, ao mesmo tempo, uma condição de identidade
entre o “eu" e os "outros" e uma afirmação legitimadora de domínio, já que
indica uma posição em que o padrão único para o conhecimento dos outros são
os factos e ideias interiores à cultura.
O etnocentrismo é também um fenómeno de dominação política, cultural e
económica, quer em termos de relações inter civilizacionais, quer nas relações
intra-civilizacionais. Colocar a sua própria cultura no centro da explicação ou da
sua descrição do mundo, é uma forma alargada de egocentrismo. Todo o
indivíduo pertence a um grupo, a uma cultura, a um sistema mais ou menos
diferenciado de valores. Consiste cm mergulhar numa cultiva a ponto de não se
ser consciente disso, sem consciência da cultura que tem impregnada que
condiciona a sua perceção do mundo e da sociedade. Todo o indivíduo considera
a sua própria cultura como a "verdadeira" e a "melhor".
É desse modo que etnólogos como Lévy Bruhl, falaram, no século XIX, a
propósito das culturas africanas ou amazônicas de menta Idade primitiva, ou da
mesma forma que os missionários cristãos pretendiam ensinar a "Verdadeira"
religião, ou os citadinos consideram os camponeses como possuidores de urna
cultura inferior (EDMA em Esteves e Fleming, 1982: 65). Esta conceção
etnocêntrica foi dominante durante muitos anos nas Ciências Sociais, em que
havia a valorização abusiva de certos valores de algumas sociedades, sendo
estas usadas como parâmetros de comparação e uma espécie de medição de
evolução social.
A conceção e prática de etnocentrismo repousam, igualmente, numa valorização
abusiva de certos valores. A Etnologia, ao desenvolver-se graças aos trabalhos
de Claude Levi- straus, mostrou que todas as culturas eram igualmente nobres e
que o pensamento selvagem valia bem o dos ""civilizados". De uma forma geral,
todo o cientista social envolve a sua pesquisa na escolha dos seus métodos, nas
suas interpretações, a cultura do seu meio ou da sua classe de pertença; e
corre, por essa razão, o risco de se proibir certas explicações, certas "Verdades".
Para prevenir os efeitos deste risco há que manter uma vigilância epistemológica
permanente perante o que pode favorecer o conhecimento em Ciências Sociais,

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nomeadamente, no que se refere à influência de ideias ou pensamentos


etnocêntricos.

2.2. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

As ciências orientam se por um conjunto de regras e procedimentos


estabelecidos sobre a forma de um método científico. Pelo método científico
aplicado no processo de investigação procura-se garantir o rigor dos resultados
observados. Esta perspetiva de rigor metodológico deve acompanhar todo o
percurso de produção de conhecimento, desde a colocação das hipóteses de
trabalho ao decorrer de todo o processo de investigação.
No caso das Ciências Sociais, o objeto de estudo é a realidade social. A natureza
fluida e inconsistente da realidade social dificulta a aplicação direta e
uniformizada do método científico á análise do social. Uma das questões
essenciais neste processo é a necessidade de diferenciar o processo de estudo
científico sobre a realidade social e a própria realidade social, tendo em conta
que o investigador é também, ele mesmo, parte integrante dessa realidade
social. Daí que no campo das Ciências Sociais, e no sentido de assegurar a
objetividade, uma das tarefas essenciais seja a identificação dos obstáculos
epistemológicos e progredir no sentido de fazer a rutura com o senso comum.

2.2.1. Rutura com o senso comum

Para Myrdal (1976), a essência das Ciências Sociais é a procura da verdade


objetiva. O cientista procura atingir o "realismo" que significa uma visão objetiva
da realidade Uns dos problemas com que o cientista se depara é como
determinar o que é a objetividade e quais as formas para atingir essa
objetividade quando se analisam os factos c as relações causais entre esses
factos. Como se libertar de noções normativas herdadas e das influências do
meio social e cultural, económico e político da sociedade em que vive, onde
trabalha e ganha o rendimento necessário para que tenha uma determinada
posição social e da influência que deriva da sua própria personalidade, cujas
particularidades não decorrem apenas das tradições e do meio em que vive,
mas também da sua história pessoal7 (Myrdal, 1976).

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Os meios lógicos para a proteção destas distorções e influências são definir


claramente as valorações que, efetivamente, determinam as conceções teóricas
e as investigações práticas, analisá-las do ponto de vista da sua relevância,
significado e efeito na sociedade que se estuda, transforma las em premissas de
valor específicas e determinar a perspetiva de análise e os conceitos utilizados
em torno do conjunto formado pelas premissas de valor que foram
explicitamente definidas.
O autor entende que se pode começar a análise por tentar caracterizar a
maneira como as pessoas vulgares na nossa sociedade concebem o mundo em
que vivem (id., ibid.). Neste tipo de sociedade, a generalidade das pessoas
procuram ter comportamentos racionais e encontrar razões que as levem a
conceber de determinada forma e a reagir de um certo modo á realidade que as
rodeia.
Há dois tipos de conceções que os indivíduos elaboram sobre a realidade: ria
sua forma pura, são crenças ou valorações. Embora não exista uma linha rígida
e clara nos processos mentais entre estes dois tipos de conceções, no entanto, é
importante distingui los: um tem características intelectuais e cognitivas e o
outro é emocional e depende da vontade de cada um.
As crenças exprimem as deias sobre como a realidade é ou foi, enquanto as
valorações exprimem as ideias sobre como a realidade deveria ser ou deveria
ter sido. As crenças de cada indivíduo procuram atingir o estatuto de
conhecimento. Assumem também uma característica de totalidade por ser
possível estabelecer uma análise comparativa e objetiva das crenças em relação
a conhecimentos elaborados, determinando se as insuficiências ou distorções em
relação a esses conhecimentos ma& rigorosos. Contudo, na medida em que as
valorações são definidas por indivíduos ou grupos, são, tal como as crenças,
uma parte da realidade e, portanto, também suscetíveis de constituírem objetos
de investigação.
Dificuldades básicas são as probabilidades das valorações de cada pessoa
variarem de situação para situação, podendo mesmo ser contraditórias entre si.
Na base do comportamento de cada indivíduo não está um conjunto homogéneo
de valorações, mas sim uma combinação complexa de tendências, de interesses
e de ideias em conflito. Alguns elementos desta combinação complexa são

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conscientes enquanto outros são mantidos numa zona não consciente durante
longos períodos, mas todos eles contribuem para definir as formas especificas
do comportamento de cada um.
As distorções conduzem a perceções falsas da realidade e a conclusões erradas
e limitam, decisivamente, a capacidade das Ciências Sociais para eliminar
crenças populares falsas e enviesadas (Myrdal, 1976: 48). A única forma de se
conseguir atingir a objetividade na atividade teórica consiste em expor
claramente as valorações, torná-las consistentes, bem definidas e explícitas,
permitindo que os seus efeitos condicionem a investigação, mas de uma forma
clara e controlada. È necessária uma explicitação clara das premissas de valor
para que a análise possa atingir o estatuto de objetivo (id., itxd.: 55}.
Para romper com o senso comum é necessário relativizar, relacionar e fazer
análise científica das conceções de senso comum. Sendo as ideologias e os
saberes práticos formas de racionalização do mundo e de o classificar, isto é,
são instrumentos de coesão e tensão social e todas as disciplinas cientificas,
estão sujeitas à influência de elementos simbólicos e ideológicos, mesmo as
exatas ou as naturais.
Pode-se dizer que a atitude problematizadora da ciência e os princípios da
pesquisa social constituem os elementos da superação do senso comum: a
relativização dos fenómenos humanos; os contextos socio-históricos e as
coordenadas de tempo e lugar são determinantes; a relacionação dos factos; a
integração em sistemas de relações reciprocas, empiricamente verificáveis,
questionar e problematizar todos os conhecimentos adquiridos, inclusivamente,
o senso comum, as ideologias e a própria ciência. A rutura nunca será completa
nem unitária mas a separação dos domínios da ciência e do senso comum são
condições básicas da própria investigação científica.
De acordo com Silva e Pinto (1986), após a Epistemologia de Gaston Bachelard",
com a insistência no caráter construído do conhecimento, na descontinuidade
racional entre ciências e saber corrente, e na imprescindibilidade da rutura com
os obstáculos epistemológicos - confere um novo apoio ás prevenções
durkheimianas. Tomou-se, a partir de então, frequente sublinhá-las, atualizando
as.
As disciplinas sociais são especialmente permeáveis às interpretações de senso
comum. Ao passo que a Física ou a Astronomia romperam já há alguns séculos,

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por vezes em circunstâncias dramáticas, com o senso comum, construindo uma


linguagem conceptual e processos de demonstração específicos que as
imunizam, em grande parte, á influência daquele; as Ciências Sociais, mais
recentes, não possuem ainda, cm geral, códigos e instrumentos exclusivos.
Depois, como já referido, a realidade social surge, aos olhos da maior parte das
pessoas, como mais facilmente explicável peio seu caráter mais familiar do que
o universo físico ou outro conhecimento mais distante da vida quotidiana de
cada um.
De facto, para estes autores, há uma espécie de ilusão de transparência
proporcionada pela familiaridade do social, que permite a produção, a baixo
preço, de sociologias ou economias "espontâneas" e pelos sistemas de atitudes
e ações ligados ás condições sociais objetivas, que obrigam á produção, a
qualquer preço, de sociologias ou economias "espontâneas", representando os
mais poderosos obstáculos á análise científica.
Eles estão por detrás dessa "resistência profunda* que provém, nas palavras de
Alain Tourralne", "da nossa ligação á crença de que os factos sócia« são
comandados por uma ordem superior; metassocial" - seja esta a vontade divina,
o espirito humano, a motivação individual, ação dos "grandes homens*, a nossa
natureza biológica, o senado da história. A regra metodológica de Durkheim -
explicar o social peio sociai - constitui ainda um princípio chave para a
superação de tas obstáculos, se a entendermos preciosamente como afirmação
de que não há elementos metassociais que possam dar cientificamente conta
dos factos sociais (Silva e Pino, 1986: 30).
Os autores Silva e Pinto (1986) sugerem que se aborde, como exemplo, um
problema em relação ao qual são claras a eficácia e a necessidade - cm termos
de racionalização dos comportamentos e da conversão das probabilidades
objetivas de sucesso em esperanças subjetivas - das interpretações de senso
comum: o problema da génese e desenvolvimento diferencial da inteligência e,
nomeadamente, a sua relação com o sucesso escolar.
As correções correntes combinam, decerto, argumentos de tipo naturalista e
individualista: a carreira escolar teria a ver com inteligência e as "capacidades*
de cada aluno, e a inteligência seria um "dote", um "dom natural” (mutas vezes
imputado apenas è hereditariedade). Ora, a força de tais interpretações - que
tendem, portanto, a considerar que a inteligência esta para iá do objeto

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possível da analise social - deve-se às suas funções simbólico-ideológicas, visto


que carecem de qualquer fundamentação cientifica.
Desde logo, em psicologia, o principal estudioso do desenvolvimento
intelectual, Jean Piaget considerava que este se devia a quatro ordens de
fatores, a maturação do sistema nervoso, a experiencia adequada pela ação
sobre os objetos, os fatores sociais - a linguagem, a interação e a cooperação
grupai, a educação familiar e escolar; os mecanismos de "equilibração", a
"auto-regulação" postos em prática pelas crianças (Piaget fala. como se sabe,
em termos de psicologia genética). No quadro de uma tal conceção
construtivista e Interacionista, psicólogos sociais têm desenvolvido pesquisa
sobre o papei causal desempenhado pela interação social, sustentando,
evidentemente, que se trata de uma causalidade não unidirecional, mas
"curricular e progredindo em espiral'.
A isto se acrescenta a investigação em sociologia da educação que mostra ã
evidência as regularidades que pautam o insucesso escolar (fenómeno massivo
constante, precoce, cumulativo e as fortes correlações entre insucesso e origem
social; parando para uma análise que o considera como resultante de uma
relação negativa entre alunos, portadores de diversas condições socioculturais,
e a instituição escolar. Neste quadro, o estudo aprofundado e relacional dos
estudantes, das suas personalidades e historias pessoais, das família e meios
respetivos, da escola e do sistema de ensino em geral, das práticas educativas,
constitui uma abordagem central - incomensuravelmente distante porque
qualitativamente distinta das interpretações correntes de senso comum, e que
psicólogos, psicólogos sociais e sociólogos (e também historiadores ou
economistas) enriquecem, a parar das perspectivas, diferentes, que
caracterizam as suas disciplinas (éd., Ibld.: 43).
Na maior parte das vezes o que acontece é que a atividade etnocentrista é
legitimadora, ainda que muitas vezes inconsciente, do domínio - afirmação no
plano do conhecimento e da representação simbólica. O seu núcleo não está,
aliás, em rigor, na ostentação imediata da superioridade social ou rácica - mas,
mais subtilmente, na operação de fechamento do que é cognoscível, no
pressuposto de que o que vale a pena conhecer e, portanto, o que serve de
padrão único para o conhecimento dos outros, são os factos e as ideias
interiores à própria área cultural, ao "nós" que é nosso. Ou seja, acaba por

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funcionar como uma espécie de inibidor ou de obstáculo para uma maior


abertura a novos conhecimentos. Há, muitas vezes, a tendência para o
fechamento de oportunidades de conhecimento provocado por atitudes
etnocêntricas, quando se considera que o conhecimento detido é o "bom" e
absoluto conhecimento.
De facto, e ainda seguindo Silva e Pinto (1986: 47), a propensão para o
etnocentrismo constitui, ao nível do senso comum, um (ator de identificação
do grupo, do "nós" um vetor de legitimação da dominação, um instrumento
decisivo da luta simbólica entre grupos.
Ora, a forma tipicamente etnocentrista de pensar por preconceitos - por ideias
feitas, que se toma por absolutas, indiscutíveis, invalidáveis pela análise
científica - de toda a espécie, de raça, de sexo, de classe, de profissão, de
religião, de civilização, representa um obstáculo no qual, constantemente,
tropeçam os cientistas sodais: até porque tem por si a ilusão da transparência
do que é familiar, do que é deles, constitutivo da sua identidade de grupo.
Finalmente, poderá sugerir-se que o etnocentrismo - essa resistência a assumir
que a relação entre "nós" e os "outros" contém dois poios igualmente dinâmicos,
esse fechamento do "nós" sobre si próprio - para lá de estar intimamente
articulado com os postulados de índole naturalista e individualista (o que é
claro), estará na sua base.
No entanto, o processo de rutura com as evidências do senso comum não
significa que se trate de uma superação absoluta. Para Silva e Pinto (1966: 51)
isso não é possível pelo facto de que as ciências conterem sempre elementos
ideológicos mais ou menos explícitos, repousam sobre certas pressuposições de
valor. Ideologias e saberes práticos não são teorias pré-científicas, que o
progresso científico se encarregaria de eliminar e em relação às quais os
especialistas pudessem estabelecer fronteiras intransponíveis - são, antes,
formas de racionalização do mundo, formas de classificar os factos, as pessoas e
os objetos, instrumentos de coesão e de tensão social, e aí radica precisamente
a sua eficácia. É assim que na perspetiva de Silva e Pinto se chega ao nó
principal da questão:

Na linha de Gaston Bachelard, distinguimos no processo de produção de


conhecimentos científicos três "atos epistemológicos - a rutura, com as

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"evidências" de senso comum que possam constituir obstáculos àquele


processo; a construção, do objeto de análise, das teorias explicativas, a
"virificação" da validade dessas teorias pelo seu teste, quer dizer, pelo
confronto com informação empírica. Os três são indissociáveis e a construção
teórica, desempenha nesta relação um papel central. Do mesmo modo que os
processos de verificação dependem das teorias que verificam, a rutura vale o
que vale a construção - quer dizer, a problematização e a teorização - que a
suporta. Ou então, se quisermos falar em paradigmas - articulando os três
termos numa só unidade de princípios, perspectivas, conceitos, modelos teóricos
e resultados empíricos cruciais - diremos que cada paradigma teórico rompe (ou
não rompe) a seu modo com pré-noções de senso comum e os operadores
ideológicos que obstem, do ponto de vista desse paradigma, á produção de
conhecimentos científicos sobre o social. (...].
Em primeiro lugar, uma produção axial consiste na relativização dos
fenómenos humanos. Ao mostrar que estes não podem ser imputados a
qualquer absoluto, não podem ser explicados por propriedades universos, e só
podem ser analisados nas coordenadas de tempo e de lugar e nos contextos
socio-históricos em que se integram - a relativização inerente à abordagem
científica Invalida, desce logo, os pressupostos naturalistas e etnocentristas, e
permite atuar o nosso trabalho bem para lá deles. Perceber que as regras de
parentesco melanésias são radicalmente diversas das dos portugueses
contemporâneos, e que estas, por sua vez, d ferem das dominantes na Alta
Idade Média, representa um ponto de partida indispensável para, por exemplo,
a história e a sociologia da família.

Em segundo lugar, a renacionalização dos factos constitui uma outra operação


decisiva, que também ela contribui para a superação dos argumentos de senso
comum invocados, nomeadamente dos de tipo individualista. Os factos sociais
só podem ser explicados por sistemas de relação entre eles - a análise produtiva
é, portanto, a que estabelece correlações (ou seja, relações empiricamente
testáveis) entre fenómenos que estuda. Perceber, por exemplo, que há
correlações estreitas entre o nível de instrução dos pais e a frequência dos
museus pelos filhos constitui um ponto de partida indispensável para a história e
a sociologia da arte (aliás, foi este o principal alcance da revolução conduzida

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por Durkheim, quando mostrou que as taxas de suicídio eram diferentes


segando a situação familiar e a confissão religiosa).

Em terceiro lugar, uma das condições cruciais para a superação das conceções
do senso comum e ideológicas deriva precisamente do facto de que a pesquisa
socai pode torná-las objeto da sua própria análise - quer doer, pode submetê-las
aos seus próprios mecanismos de controlo. Tal constitui, é bom não esquecê-lo,
um passo indispensável para a rutura: é porque é capaz de pôr
sistematicamente em causa os conhecimentos adquiridos, quer por saber prático
quer por vinculação doutrinária, quer mesmo por investigação cientifica - é
porque o questionar, o problematizar, representa a própria essência do seu
trabalho, que a ciência é capaz de continuamente romper, no seu domínio, com
as noções que não se adequem às suas regras" (ld., ibid_: 52).
O cientista social acredita que a verdade existe, e parte desse pressuposto para
tentar atingir o "realismo", ou seja, uma visão objetiva da realidade. As questões
metodológicas colocam se na definição do que é a objetividade e nas formas
para atingir essa objetividade na análise dos factos e das suas relações causais.
O cientista debate-se com as seguintes questões: como libertar-se da influência
de trabalhos anteriores, fundamentados em noções normativas e teológicas,
baseadas em opções metafísicas - filosofia da lei natural e utilitarismo; como
libertar se das influências do meio cultural, económico, político e social da
sociedade em que vive; como anular a influência da sua subjetividade própria,
formada em contacto com as tradições de um me» social específico e que
condicionam a sua história pessoal e inclinações particulares?

Tudo isto tem como pano de fundo a interrogação sobre como pode o cientista
ser objetivo e eficaz na compreensão da realidade e não na sua transformação,
ou seja, sobre como pode atingir a verdade colocando de parte as suas
inclinações morais e políticas. O cientista é influenciado, na procura da verdade,
pelo meio social e pela sua personalidade. A sua única defesa consiste em definir
as valorizações que poderão condicionar as suas conceções teóricas e
investigações práticas, analisando a sua relevância, significado e efeito no objeto
de estudo, adaptando a perspetiva de análise segundo essas premissas.

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De acordo com Gaston Bachelard a "ciência não se opõe absolutamente à


opinião" (citado por Santos, 1990: 33), ou seja, é possível a coexistência dos
dois tipos de conhecimento, desde que seja devidamente justificado e
relativizado. A premissa de Boaventura de Sousa Santos (1976) é a de que:

[...] em ciência rada é dado, tudo se constrói O "senso comum*', o


"conhecimento vulgar", a "sociologia espontânea", a "experiencia imediata";
tudo isto são opiniões, formas de conhecimento falso com que é preciso romper
para que se tome possível o conhecimento científico, racional e válido. A ciência
constrói-se, pois, contra o senso comum e, por isso, dispõe de três atos
epistemológicos fundamentais: a rutura, a construção e a constatação e
verificação Porque essenciais a qualquer prática cientifica, esses atos aplicam-se
por igual nas ciências naturais e nas ciências Sociais. São, contudo, de aplicação
mais difícil nestas últimas. Por um lado, porque as Ciências Sociais têm por
objeto real um objeto que faia, que usa a mesma linguagem de base de que se
socorre a ciência e que tem urna opinião e julga conhecer o que a olência se
propõe conhecer. Como diz Piaget, a sociologia, tal como a psicologia, tem "o
triste privilégio de tratar de matérias de que todos se julgam competentes (...]
(1976: 24).
0 Senso comum é um "conhecimento" evidente que pensa o que existe tal
como existe e cuja função é reconciliar a todo o custo a consciência comum
consigo própria. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista.
A ciência, para se construir, tem de romper com estas evidências e com o
"código de leitura" do real que elas constituem, tem, nas palavras de Sedas
Nunes, "de inventar um novo "código" - o que significa que, recusando e
contestando o mundo dos "objetos" do senso comum (ou da ideologia), tem de
constituir um novo "universo conceptual", ou seja: todo um corpo de novos
"objetos", todo um sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos"
(1972: 30)." (Santos, 1990: 33-34).
Este universo de conceitos e das relações que se estabelecem entre eles ê o que
se designa por paradigmas. Khun defende que o conhecimento não cresce de
modo cumulativo e contínuo. Na sua teoria central, exposta em especial na obra
intitulada The Structure of Scientific Revolutíons, publicada pela primeira vez em
1962- o conhecimento não cresce de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário,

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esse crescimento é descontínuo e opera por saltos qualitativos que, por sua vez,
não se podem justificar em função de critérios internos de validação de
conhecimento científico. A sua justificação reside em fatores psicológicos e
sociológicos e, sobretudo, na comunidade científica enquanto sistema de
organização do trabalho científico. Os saltos qualitativos têm lugar nos períodos
de desenvolvimento da ciência em que são postos em causa e substituídos os
princípios básicos em que se funda a ciência, até então produzida, e que
constituem o que Khun chama de «paradigma» (id ibid.: 150).

Mas, segundo Santos (1990), o decurso da ciência normal não é feito só de


êxitos, pois, se tal fosse o caso, não eram possíveis as inovações profundas que
têm tido lugar ao longo do desenvolvimento cientifico. Ao cientista normal pode
suceder que o problema de que se ocupa não só não tenha solução no âmbito
das regras em vigor, como tal facto não possa ser amputado à interpretação ou
inépcia do investigador.
Esta experiência pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas e
pode suceder; além disso, que, por cada problema resolvido ou por cada
incongruência eliminada, outros surjam em maior número e de maior
complexidade ou de impossível solução. O efeito cumulativo deste processo
pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de crise. Incapaz de lhe dar
solução, o paradigma existente começa a revelar se como a fonte última dos
problemas e das incongruências, e o universo científico que lhe corresponde
converte-se, gradualmente, num complexo sistema de erros, onde nada pode
ser pensado corretamente. Neste momento já outro paradigma se desenha,
muito provavelmente, no horizonte científico e o processo em que ele surge e se
impõe constitui a revolução científica que se faz ao serviço deste objetivo, é a
cedência revolucionária (id., ibid.: 152).
O novo paradigma, entretanto delineado, redefine os problemas e as
incongruências até então insolúveis e dá-lhes uma solução convincente; é
nesta base que se vai impondo á comunidade científica. O período de crise
revolucionário em que o "velho" e o "novo" paradigma se defrontam e entram
em concorrência pode ser bastante longo. Uma vez que cada um dos
paradigmas estabelece as relações de cientificidade do conhecimento
produzido no seu âmbito, as provas cruciais aduzidas em favor do novo

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paradigma podem facilmente ser consideradas ridículas, triviais ou


insuficientes pelos defensores do velho paradigma.
O diálogo entre os cientistas pende para o monólogo na proporção da
incomensurabilidade dos paradigmas em confronto. Será necessário mais ou
menos tempo para o novo paradigma se impor mas, uma vez imposto, ele
passa a ser aceite (quase) sem discussão e as gerações futuras de cientistas
são treinadas para acreditar que o novo paradigma resolveu definitivamente os
problemas fundamentais.
Da fase da ciência revolucionária passa-se de novo à fase da ciência normal e,
portanto, ao trabalho científico sub paradigmático. De início existem vastas
áreas em que a aplicabilidade do novo paradigma é apenas assumida sem ainda
ter feito qualquer prova nesse sentido. É para essas áreas que se orienta a
ciência normal. Posteriormente, os objetos de estudo e, por conseguinte, os
problemas a resolver vão se tornando cada vez mais específicos e complexos
(idem). Este processo vai-se reproduzindo de forma continuada, dando lugar ao
aparecimento de novos conceitos e de novos paradigmas, ou seja, a teoria
científica não constitui um conjunto de conceitos rígidos e imutáveis. Embora de
forma lenta, acompanham o desenvolvimento da ciência.

Ainda segundo Boaventura de Sousa Santos, é importante a realização de urna


dupla rutura. Uma vez feita a rutura epistemológica (o autor entende que o ato
epistemologicamente mais importante é a rutura com a rutura epistemológica).
Deixou de ter sentido criar um conhecimento novo e autónomo em confronto
com o senso comum (primeira rutura) se esse conhecimento não se destinar a
transformar o senso comum e a transformar-se nele (segunda rutura) (icL, ibid.:
168). Ou seja, para Santos, o conhecimento resultante da rutura epistemológica
deve ser incorporado no conhecimento de senso comum.
De acordo com este autor o conhecimento é contextual sendo que o contexto
em que é produzido e aplicado o conhecimento nas sociedades capitalistas
distingue se em quatro contextos estruturais do conhecimento: o contexto
doméstico, o contexto da produção, o contexto da cidadania e o contexto da
mundialidade. Cada contexto é um espaço e uma rede de relações dotadas de
uma marca específica de intersubjetividade, que lhes é conferida pelas
características dos vários elementos que o constituem. Esses elementos são: a

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unidade da prática social, a forma institucional, o mecanismo do podei; a forma


de direito c o modo de raciona idade.
Os quatro contextos não são os únicos existentes na sociedade; são, no entanto,
os únicos contextos estruturais, porque as relações sociais que eles constituem
determinam todos os demais que se estabelecem na sociedade. O contexto
doméstico constituiu as relações sociais (os direitos e os deveres mútuos) entre
os membros da família, nomeadamente, entre o homem e a mulher e entre
ambos (ou qualquer deles) e os filhos. Neste contexto, a unidade de prática
social é a família, a forma institucional é o casamento e o parentesco, o
mecanismo de poder é o patriarcado, a forma de juridicidade é o direito
doméstico e o modo de racionalidade é a maximização do afeto.
O contexto da produção constitui as relações do processo de trabalho, tanto as
relações de produção ao nível da empresa (entre produtores diretos e os que se
apropriam da mais valia por estes produzida), como as relações na produção
entre trabalhadores e entre estes e todos os que controlam o processo de
trabalho. Neste contexto, a unidade da prática social é a classe, a forma
institucional é a fábrica ou a empresa, o mecanismo de poder é a exploração, a
forma de juridicidade é o direito da produção e o modo da racionalidade é a
maximização do lucro.
O contexto de cidadania constituiu as relações sociais da esfera pública entre
cidadãos e o Estado. Neste contexto, a unidade da prática social é o individuo, a
forma institucional é o Estado, o mecanismo de poder é a dominação, a forma
de juridicidade é o direito territorial e o modo de racionalidade é a maximização
da lealdade.
Por último, o contexto de mundialidade constitui as relações sociais entre
estados nacionais, na medida em que eles integram o sistema mundial. Neste
contexto, a unidade da prática social é a nação, a forma institucional são as
agências e os acordos internacionais, o mecanismo de poder é a troca desigual,
a fornia de juridicidade é o direito sistémico e o modo da racionalidade é a
maximização da eficácia (id., ibid.: 173).
Vivemos, pois, em quatro quotidianidades: a doméstica, a da produção, a da
cidadania e a da mundialidade- Todos nós somos configurações humanas em
que se articulam e se interpenetram os nossos quatro seres práticos: o ser da
família, o ser de classe, o ser se individuo, o ser de nação. E como cada um

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destes seres, ancorado em cada uma das práticas básicas, é produto-produtor


de sentido, o sentido da nossa presença no mundo e, portanto, da nossa ação
em sociedade é. de facto, uma configuração de sentidos. [...). O desequilíbrio do
poder em cada contexto não produz necessariamente violência ou
silenciamento, tudo dependendo da forma e grau como é aceite e partilhado
esse desequilíbrio. Em geral, a prática quotidiana tende a ampliar o âmbito e a
medida do que e consentido e partilhado. do que é de todos e a todos envolve
como dever ou direito, como ónus ou recompensa, como dor ou prazer. Por isso
o conflito é normalmente vivido como consentimento relutante, reservado ou
fatalista; a vidência, como repressão tão-só dos excessos; o silenciamento,
como comunicação desinteressante, irrelevante ou vazia, o estranhamento,
como proximidade indiferente ou intimidade rotineira. As várias comunidades de
saber têm, assim, uma aptidão notável para negociar sentidos, encenar
presenças, dramatizar enredos, amortizar diferenças, deslocar limites, esquecer
princípios e lembrar contingências; é nisso que reside a sua dimensão utópica e
emancipadora num mundo moderno saturado de demonstrações científicas, de
necessidades técnicas e de princípios sem fim.
O conhecimento cientifico é produzido num contexto especifico, a comunidade
cientifica, em que se cruzam determinações de alguns dos contextos estruturais,
do contexto da produção, na medida em que a investigação está hoje
organizada como um lugar de trabalho e cada vez mais de trabalho empresarial;
do contexto da cidadania, na medida em que a ciência é pertença mais ou
menos exclusiva do Estado e é produzida em muitos países por um corpo de
funcionários do estado; do contexto da mundialidade, na meada em que a
produção e a aplicação do conhecimento científico é um dos ingredientes
principais das relações entre nações e de troca desigual que os caracteriza, A
comunidade cientifica é, assim, um corpo sócia relativamente autónomo, a
forma social organizada da primeira rutura epistemológica. Sem comunidade
científica separada não há conhecimento cientifico autónomo, ainda que as
determinações de uma e de outro sejam diferentes e estejam sujeitas a lógicas
distintas. {Id., ibid.: 176-179).

Num outro texto de Boaventura de Sousa Santos "A gramática do tempo"


(2010), no capítulo intitulado a "ecologia dos saberes", o autor chama a atenção

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para o facto de o "conhecimento científico ser hoje uma forma oficialmente


privilegiada de conhecimento e a sua importância para a vida das sociedades
não oferece contestação" (p. 12B). De facto, de uma forma ou de outra, os
países, dentro das suas possibilidades, dedicam-se à promoção da ciência,
esperando, certamente, conseguir benefícios desse investimento. O que o autor
quer dizer é que se assistiu a uma certa impregnação do conhecimento científico
na sociedade, tomando-se este a forma privilegiada de conhecimento. A ciência
moderna propôs se não só compreender o mundo ou explicá-lo, mas também
transforma- lo.
Para Santos (id., ibid.) a evolução em torno dos debates sobre a ciência e os
seus impactos tem a ver com uma pluralidade de fatores: com o crescimento
muito grande da produção científica e a consequente proliferação das
comunidades científicas, com a eficácia tecnológica propiciada peia ciência, com
as transformações da prática científica, com a crescente visibilidade de
conhecimentos não científicos, cujas relações epistemológica e pragmática com
a ciência moderna são complexas, relações que podem ir desde a
complementaridade á confrontação e á incomensurabilidade que o autor
aprofunda e debate.

2.2.2. A função de comando da teoria

Gaston Bachelard (2006 [1938]) assume o propósito de mostrar o destino do


pensamento científico abstrato, tendo em consideração que o processo de
abstração não é uniforme pelo facto de ser confrontado com obstáculos. O
autor descreve o trajeto que vai da perceção considerada exata até á abstração
da razão no âmbito da evolução científica. As soluções científicas não se
encontram todas no mesmo estágio de maturação. Bachelard distingue três
períodos de maturação:
1) Estado pré-científico, que compreenderia tanto a antiguidade clássica como
os séculos do Renascimento e de nova base com os séculos XVI, XVII e XVIII;
2) estado científico, seria o período entre o fim do século XVIII até início do
século XX;

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3) Desde 1905 até á atualidade, com o início do novo espírito científico


potenciado com a teoria da relatividade de Einstein, a partir da qual se colocam
em causa conceitos que eram considerados fixos até então.
A partir desta época começam a ser feitas propostas de abstração mais
audaciosas, nomeadamente, com o objetivo de retraçar a luta contra alguns
preconceitos. A experiência científica contradiz a experiência comum. A
experiência imediata e usual guarda sempre uma espécie de caráter tautológico,
desenvolve se no reino das palavras e das definições. Falta-lhe, precisamente,
esta perspetiva de erros retificados que caracteriza, a partir do ponto de vista do
autor, o pensamento científico (id, ibid.: 17).
A experiência comum não é construída, quando muito é feita de observações
justapostas, e é surpreendente que a antiga Epistemologia tenha estabelecido
um vínculo contínuo entre a observação e a experimentação, ao passo que a
experimentação se deve afastar das condições usuais de observação como a
experiência comum não é construída, não poderá ser, efetivamente, verificada.
Permanece um facto, não cria leis. Para confirmar cientificamente a verdade, é
preciso confrontá-la com vários e diferentes pontos de vista.
Pensar a experiência é, assim, mostrar a coerência de um pluralismo inicial.

A noção de obstáculo epistemológico assenta numa perspetiva em que o


conhecimento do real é uma luz que projeta sempre algumas sombras. Nunca é
imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é "o que
se poderia achar", mas é sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento
empírico torna se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica
estabelecido, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior,
destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio
espírito, é um obstáculo á espiritualização (Bachelard, 2006 [1938]: 19).
A ciência, tanto pela sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe
se absolutamente corno opinião. Se sobre uma determinada perspetiva ela
legitima a opção, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião. O
autor defende que "a opinião pensa mal, não pensa, traduz necessidades em
conhecimentos. Ao designarmos objetos por utilidade, ela impede-os de
conhecer. Não se pode basear nada na opinião, antes de tudo é preciso destrui-
la. Ela, a opinião, é o primeiro obstáculo a ser superado. O espirito cientifico

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proíbe que tenhamos uma opinião sobre uma questão que não compreendemos,
sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em primeiro lugar, é
preciso saber formular problemas que não se formulam de forma espontânea
em ciência.
É este sentido de perspetivação do problema que carateriza o verdadeiro
espirito cientifico. Para o espírito cientifico todo o conhecimento é uma resposta
a uma pergunta. Se não há pergunta não pode haver conhecimento científico.
Nada é evidente, nada é gratuito, tudo é construído. O obstáculo é também
uma experiencia vivida. O esquema que de seguida se apresenta representa
este processo de construção.

O desenvolvimento de procedimentos padronizados de recolha de informação


sobre o real, como por exemplo, as técnicas do inquérito por questionário, da
entrevista, da análise de conteúdo, contribuiu para que o processo de
observação sociológica, e das Ciências Sociais em sentido amplo, se tomasse
uma fase do trabalho científico cada vez mais sistemática e racionalmente
controlada. Mas o avanço nesta direção só é possível com o contributo de outro
elemento da prática: a teoria, ou seja, da matriz teórica, entendida como
conjunto organizado de conceitos e relações entre conceitos substantivos, isto é,
referidos, direta ou indiretamente, ao real (Almeida e Pinto, 1986: 55).

Num esforço de sensibilizar o leitor estudante para o papel da teoria no processo


de pesquisa empírica e na demonstração científica em geral, propõe-se que
imagine a situação proposta por Almeida e Pinto: munido de uma formação
básica em Ciências Sociais, suponha que tinha de estudar fenómenos de
mudança social numa coletividade pertencente ao espaço periurbano de uma
área fortemente industrializada (idT ibid.: 56). Numa fase de contacto
exploratório com a coletividade, a atenção dirigir-se á, necessariamente, ao
conjunto de manifestação das atividades ai desenvolvidas. Supondo que, no
caso, a elevada preparação de terreno agroflorestal sugere que a agricultura
ainda é uma atividade económica preponderante, como explicar que a grande
extensão de campos trabalhados não tenha correspondência visível (de
trabalhadores e equipamentos). O recurso a depoimentos de indivíduos da
coletividade pode fornecer alguns elementos para a compreensão do enigma ao
revelar nomeadamente, que o crescimento de um polo industrial vizinho, em

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termos de oportunidade de emprego para a população local, fez da agricultura


cada vez mais uma atividade económica complementar de fim-de-semana, em
boa medida "invisível". No entanto, este inquérito exploratório brevemente
denotará os seus limites - os depoimentos dos autóctones apoiam-se,
frequentemente, em operadores simbólicos ideológicos, identificados como
obstáculo epistemológico a uma "explicação do social pelo social".

O "mistério' em causa só se poderá solucionar se tivermos podido construir, a


partir de coordenadas intelectuais tão explicitadas quanto possível, um conjunto
estruturado de interrogações e de hipóteses devidamente especificadas sobre o
lugar, função c transferência da agricultura e do espaço social rural nas
sociedades industrializadas - a teoria é o ponto de partida adequado. É o
comando de tau código de leitura da realidade que, em anteriores processos de
investigação, se tenha revelado capaz de transcender os limites de perceções
correntes, indicado aos núcleos problemáticos cruciais a investigar e um modo
plausível de os equacionar.
Regressando ao exemplo anterior, o recurso a conhecimento obtido sobre
situações similares às observadas, envolvendo uma interpretação sobre a
especificidade dos processos migratórios observados em regiões periurbanas e
respetivas funções no quadro das sociedades industrializadas, ou seja, a sua
relação com a estrutura de classes camponesas. O recurso a esse conhecimento
pré existente é insubstituível se se quiser perceber as dinâmicas de mudança
social na coletividade em causa. Se ao longo da pesquisa se puder dispor de um
conjunto de hipóteses teóricas sobre o modo como o "exército industrial de
reserva" se articula no espaço nacional, com um "exército agrícola de recurso"
ficaremos em condições de integrar produtivamente na análise certos indícios
(id, ibid.: 56-57).

Em termos de pesquisa empírica, a teoria é um ponto de partida insubstituível e


o elemento que comanda os seus momentos e opções fundamentais. Não pode
querer significar que a análise de situação concreta se circunscreva,
necessariamente, ao interior de um círculo traçado de antemão, em forma
definitiva, pelo conjunto de hipóteses pertinentes incluídas ria matriz teórica da
disciplina.

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A recolha de informação sobre a situação concreta é sempre única c condensa


uma infinidade de determinações, sendo embora orientada pelo quadro teórico
prévio de referência, que pode revelar ou não a necessidade de ajustar,
especificar ou mesmo reformular este último, de modo a torná- lo um guia de
observação mais preciso e eficaz. Assim, a observação em grande escala dos
fluxos migratórios numa coletividade pode impor uma revisão de tipologias de
mobilidade geográfica (por exemplo, conceitos de êxodo rural, migrações
sazonais, migrações de substituição, etc.).
O papel de comando da teoria na pesquisa empírica pode não controlar
racionalmente todas as componentes do ciclo de observação; demonstração
empírica. Os processos de recolha de informação são, eles próprios, processos
sociais que colocam com acuidade as questões epistemológicas do
observador/observado (id, ibid.: 58). A questão assume aqui uma particular
complexidade pelo facto da maior parte das técnicas de observação recorrerem
a parte de depoimentos dos agentes sociais acerca das suas próprias condições
de existência. Mas é indispensável integrar outros conhecimentos,
complementares (teorias auxiliares) á teoria principal - acerca de processos
sociais tão distantes da agricultura locai como os que dizem respeito ao mundo
socialmente determinado de aceder aos instrumentos de racionalização da
prática social, ás técnicas sociais de camuflagem c de apresentação de si, á
construção mítico ideológica de valores e interditos sociais, às sanções e
censuras impostas, em sociedades de interconhecimento, pela interação
linguística em situações como a pesquisa, etc. Desse modo, para os autores, só
â luz das teorias auxiliares se pode esboçar respostas adequadas (idem).

2.3. CONSTRUÇÃO E VERIFICAÇÃO DE TEORIAS: PROBLEMAS E


COTROVÉRSIAS

Embora alheios ao campo científico os diversos grupos sociais não deixam de


refletir sobre as sociedades de que fazem parte, ainda que de forma diferente
dos cientistas socais. As proximidades instrumentais, a proximidade de objetos e
os efeitos de familiaridade, contribuem para um constante esforço de marcação
do corpo das Ciências Sociais em relação ao senso comum, face ãs atribuições
de sentido especializado.

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Mas nem sempre são positivos os efeitos de um trabalho de demarcação em


relação ao objeto de estudo já que ele tem conduzido a uma fragmentação
artificial das Ciências Sociais, o que tem vindo a ser compensado pela procura
de complementaridade e interdisciplinaridade. Imposição devida á especificidade
dos objetos das Ciências Sociais e determinações sociais complexas (Almeida e
Pinto, 1986: 60).

2.3.1. Teorias e paradigmas nas ciências

A atividade científica constitui um processo social específico, definidor de um


campo gerador de múltiplos e crescentes efeitos. Afirmar lhe a identidade
passa peio constante aperfeiçoamento das teorias e dos métodos disponíveis
e, em certos casos, implica a sua superação por novos elementos conceptuais
e novos procedimentos de pesquisa. A importância da História, da
Epistemologia e da Sociologia da prática científica, tendo por objeto as
condições sociais e teóricas, como um sistema mutável de limites e potenciai
idades em que se inscrevem, forçosamente, as decisões individuais dos
investigadores, deixa se ver, por exemplo, através da regularidade com que
surgem, simultaneamente, certas descobertas em campos científicos de alta
comunicabilidade internacional. As reconstruções objetivadas da atividade
científica são assim muito mais do que a descrição factual estrita de
acontecimentos relevantes. Elas avaliam oportunidades empíricas e o seu grau
de aproveitamento real, obstáculos e limites defrontados, fatores exteriores
interferentes e sentido em que se exercem. Ao analisarem retrospetivamente
mutações nas racionalidades teóricas e processuais, elas podem produzir
efeitos heurísticos próprios que não se traduzem em regras coercivas para a
prática científica, mas nem por isso deixam de fornecer referências e
orientações.
Se o conhecimento se opera em constante superação de outros conhecimentos,
então, os exorcismos da rutura devem deixar de ser exercidos de uma lógica
abstrata, para se efetivarem na crítica de todos os níveis e de todos os
momentos da pesquisa que tome os processos sociais como horizonte analítico.
A rutura é condição lógica inicial do trabalho científico, mas renova-se e

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prolonga se às outras duas fases que a Epistemologia de Bachelard propõe: a


construção e a verificação (id., ibid.: 61).

A construção da teoria é fomentada pela colocação de perguntas, pela


«interrogação sobre determinados aspetos da realidade social. Admitindo que
observar supõe, necessariamente, a categorização do que é observado, as
posições racionalistas vêm afirmar, de um modo mais geral, a unidade e a
integração do processo de pesquisa, orientando-se o vetor epistemológico, como
dizia Bachelard, do racional para o real. Á teoria é conferido o papei de comando
do conjunto de trabalho científico, que se traduz em articular-lhe os diversos
momentos: ela define o objeto de análise, confere à investigação, por referência
a esse objeto, orientação e significado, constrói lhe as potencialidades
explicativas e define-lhe os limites. Nos percursos de diversos níveis da sua
especificação ela produz e integra os chamados enunciados observacionais, dá
consistência á rede de relações que se estabelece em todo o processo.

As ciências são, em cada momento, um conjunto de resultados. Mas o caminho


que a tais produtos vai conduzindo tem de ser concebido como una prática
social. O primeiro momento é o da interrogação, do questionamento a certas
dimensões da realidade. A forma e os protocolos da pergunta hão-de
condicionar as respostas que se obtém, ou seja, evidências empíricas a que a
investigação conduz são por ela antecipadas ou, pelo menos, suscetíveis de
acolhimento no âmbito do questionamento formulado.

Cada formação científica propõe um conjunto articulado de questões - a sua


problemática teórica - que delimita zonas de visibilidade. Essa problemática,
ponto de partida em cada momento das pesquisas que se efetivam, define e
acolhe problemas de investigação, para os quais buscam respostas. Os meios de
as obter residem em todo o conjunto de disponibilidades conceptuais
substantivas as teorias em sentido estrito - que a disciplina foi forjando, bem
como em instrumentos técnicos de recolha e tratamento de informações
organizadas pelos métodos, enquanto codificação provisória dos caminhos
críticos de pesquisa (id., ibid.: 63).

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As matrizes disciplinares, "paradigmas" ou "programas de investigação" não


constituem sistemas fechados. Mesmo sendo certo que cada matriz contém um
núcleo duro de hipóteses c modelos de pesquisa, que a define e que resiste com
tenacidade às tentativas de refutação e ás anomalias encontradas no percurso
das suas aplicações, nem por isso ela deixa de conter zonas de disponibilidade,
heurísticas que se aperfeiçoam, que sugerem novas perguntas, iluminam novos
problemas, desembocam em novas soluções. A categoria verdade, no campo
científico, apenas pode funcionar como limite e orientação operatória. O que os
processos de pesquisa produzem são aproximações cognitivas aos horizontes
empíricos de que se ocupam. A visibilidade permitida pela problemática e pelas
hipóteses pode fazer com que surjam imprevistos que pode levar a especificar,
corrigir ou ampliar as formulações originais. Podem surgir outras pistas
metodológicas e outros desenvolvimentos, criações ou combinações técnicas,
levando ao aperfeiçoamento do processo de operacionalização e produção de
efeitos acumulativos de conhecimentos integráveis na disponibilidade teórica da
matriz.

2.3.2. O problema da verificação

O justificacionísmo afirmava só ser cientifico o que pudesse ser provado, o que


fosse positivamente demonstrado pela articulação de factos repetidamente
observados com os enunciados abstratos da teoria. A explicação objetiva
resultaria da aplicação dedutiva das leis e das teorias a novas situações
observacionais singulares. No entanto, já Popper mostrara ser impossível provar
positivamente qualquer teoria, uma vez que a generalização se faz
forçosamente a partir de observações em número limitado (id., ibid.).

O real social é pluridimensional e, por isso, suscetível de ser abordado de


diferentes maneiras pelas diversas Ciências Sociais. As Ciências Sociais analisam
as mesmas realidades, os mesmos fenómenos sociais totais, embora
privilegiando uma perspetiva própria de análise. A interdisciplinaridade nas
Ciências Sociais significa o intercâmbio de saberes com vista á
complementaridade do conhecimento, para melhor explicar os fenómenos
sociais na sua totalidade.

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O intercâmbio de conhecimentos e de metodologias entre disciplinas leva a que


as investigações realizadas numa disciplina possam ser fundamentais para
outra. Tem-se, portanto, que o social é único, as maneiras de o abordar, as
dimensões a privilegiar é que variam consoante os interesses que orientam e a
partir dos quais se situa o investigador em Ciências Sociais, com a especifica
abordagem da realidade social. Esta é a conceção de fenómeno social total
significa que, ao estudar um determinado fenómeno social, deve se considera- lo
na sua multiplicidade de aspetos e procurar várias perspetivas de análise que
possam contribuir para uma melhor compreensão do fenómeno. O fenómeno
social não se restringe apenas á sua instância social, poderá ter implicações de
vária ordem aos níveis económicos, político, ideológico, demográfico, etc

As várias facetas dos fenómenos sociais apeiam ao intercâmbio entre as várias


disciplinas, que mantêm entre si múltiplas relações de interdependência. O
conhecimento dos fenómenos sociais só se constrói mediante a
complementaridade de perspetivas, pois só deste modo o objeto de estudo em
questão poderá ser compreendido e explicado na sua globalidade e
complexidade intrínsecas {Maia, 2002).

Atividade formativa 2

1) Depois de ler este capítulo, elabore um resumo sobre os temas abordados em


que saliente os principais conceitos. Se entender necessário, consulte um
dicionário de Ciências Sociais e esclareça as suas dúvidas. Sugere-se também
que aprofunde o estudo do tema com outras leituras indicadas na bibliografia.
2) Escolha um exemplo prático e procure articular a análise desse caso com os
conteúdos teóricos. Propõe se a análise do "obstáculo" etnocentrismo, de como
fazer a rutura com o senso comum, por exemplo, em relação aos ciganos
portugueses.

3. O DOMÍNIO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

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Objetivos de aprendizagem

Identificar o contexto histórico, social e político presente no desenvolvimento


das Ciências Sociais.
Delimitar teoricamente a especificidade do social e explicar em que consiste.
Reconhecer a pluralidade e especificidade das Ciências Sociais: delimitar o
conceito de matriz teórica e de campo disciplinar.
Distinguir facto social de facto sociológico.
Perspetivar o social como uma construção cientifica.
Equacionar as vantagens de uma abordagem científica multidisciplinar dos
fenómenos sociais.
Descrever em que consiste e se concretiza a interdisciplinaridade das diversas
Ciências Sociais.

3.1. VISÃO GLOBAL SOBRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS


O objetivo deste capítulo é abordar c contextualizar as condições históricas e
sociais que favoreceram o aparecimento c desenvolvimento das Ciências Sociais,
e aprofundar a discussão em tomo da especificidade e complementaridade entre
das. As Ciências Sociais têm como ponto de partida o estudo dos seres humanos
como seres sociais, isto é, estudam as formas como se relacionam uns com os
outros e as suas coletividades, embora cada uma ponha o acento de formas
diferentes sobre o social.

As Ciências Sociais consolidam-se, sobretudo, através da tese de que o social é


irredutível ao individual (Silva e Pinto, 1986:14). Mas também não se teriam
formado e desenvolvido sem a dinâmica e o impacto crescente do saber lógico
matemático, físico e biológico, que elaborava um modelo de estratégia de
investigação, que foi servindo de referencial aos estudiosos sociais. De igual
modo, também não se teriam desenvolvido sem as profundas transformações
económicas, demográficas, políticas e culturais das nações oitocentistas do
Ocidente. É num mundo alterado pela industrialização, a urbanização e o
crescimento populacional, as revoluções liberais e a eclosão dos movimentos
operários e socialistas, o surgimento de novas instâncias e padrões de

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socialização, etc., que áreas disciplinares como a Sociologia, a Economia, a


História, a Geografia ou a Demografia se tornam científicas. Urros e outras
ganham títulos de legitimidade e meios institucionais de produção e reprodução
de conhecimento.

O processo bissecular de constituição das Ciências Sociais apresenta


componentes intelectuais, institucionais e sociais, no sentido lato do termo. É
um processo que varia de pais para pais. Dependendo bastante das
características dos Estados, das relações de força entre grupos sociais, das
organizações universitárias, das dinâmicas de crescimento económico, das
doutrinas e ideologias, etc. Mas, se se considerar o modelo que tem dominado
internacionalmente, polarizado em Inglaterra, França, Alemanha e Estados
Unidos, ressaltam três vetores de desenvolvimento: (1) o que leva os
estudos sobre as condutas humanas a seguir estratégias de investigação
científica, construindo explicações logicamente coerentes e referidas as
observações e materiais empíricos, submetendo os a provas de validação; (2) o
que leva esses estudos, cientificamente orientados, a centrar-se nas relações
sociais (práticas, instituições, estruturas); (3) e o que leva à sua
institucionalização em aparelhas de produção especializada e á sua integração
nos sistemas de ensino, condições de uma reprodução alargada e controlada de
conhecimentos (id, ibid).

As Ciências Sociais acompanham o desenvolvimento histórico e social das


sociedades, daí que traduzam diferentes tipos de desenvolvimento, definidos
pelos tipos de problemas que vão surgindo. Atribui-se a Auguste Comte" o papel
fundamental para a constituição formal do núcleo central em que consiste a
conceção racional que serve de base ao desenvolvimento das várias Ciências
Sociais. O propósito de Comte foi a reforma da sociedade. Entendia que se
encontrava perante dois modelos: o modelo conservador, que pretendia fazer
reviver os valores do Antigo Regime; e o modelo dos revolucionários que
queiram alterar a natureza humana por via das mudanças institucionais,
políticas e sociais.

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Comte rejeitou esses modelos mas reteve algumas ideias essenciais. Dos
conservadores guardou a ideia de valorizar o passado, dos revolucionários
aceitou a representação de mudança social. Constatando que a crise da
sociedade não era tão material como espiritual, Comte entendeu por bem
submeter o processo de mudanças a um determinado número de princípios.
Assim, a mudança não será o resultado de uma ação direta, de índole política,
mas será coordenada por uma análise científica do estado da sociedade. Por
outras palavras, a mudança só pode ser eficaz se dirigida por uma Filosofia
unificada, baseada na ciência.

Comte admite três requisitos para tornar a política positiva: fazer prevalecer a
observação sobre a imaginação; considerar a organização social como estando
ligada ao estado da civilização; considerar a marcha da civilização como sujeita
a uma lei baseada na natureza humana. Deste modo, Comte tenta determinar
cientificamente o desenvolvimento da civilização.

O autor teve por objetivo proceder filosoficamente a uma síntese das ciências,
cujo verdadeiro pretexto reside na especificação e valorização da Sociologia.
Pretende estabelecer uma relação entre a ciência e a sociedade e entre a
Sociologia e a totalidade das ciências que a precederam, denomina este estudo
de Física Social e, posteriormente, de Sociologia.

Na elaboração da sua classificação, a ordem cronológica da aparição das ciências


corresponde á ordem de dependência mútua e de encadeamento racional,
segundo o duplo processo complementar de generalização decrescente e de
complexidade crescente. Todas as ciências passam por três etapas, que
caraterizam também o desenvolvimento fisiológico da pessoa, assim
como a evolução da própria sociedade: (1) a teológica, que é também a
fictícia, mitológica, imaginária; (2) a metafísica, que é também abstrata; e,
por fim, (3) a positiva, que é a científica. A primeira corresponde ao
incontornável ponto de partida da inteligência humana, porque corresponde a
um tipo de explicação que revela uma vontade antropomórfica. A segunda, que
não faz mais do que substituir abstrações ou entidades pelas vontades na
explicação dos fenómenos naturais e sociais, é provisória e transitória,

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correspondendo a um estado de crise ria sociedade. A terceira corresponde ao


estado fixo e definitivo da inteligência, onde a imaginação se submete á
observação, onde a procura de causas cede o passo á elaboração de leis. A
classificação das Ciências Sociais de Comte evolui no sentido do designado
Positivismo. Para ele, a Sociologia é a última ciência, a que resulta das outras c
que, ao mesmo tempo, as abrange num todo coerente - é a ciência por
excelência.
O progresso, para este autor significa uma evolução na qual intervêm a vontade
e o engenho dos seres humanos. É a esse nível que intervém a Sociologia:
tomando em consideração o domínio exclusivo do humano, ele visa
cientificamente o curso da história e inscrever o processo de mudanças no rumo
adotado pela marcha da civilização. Essa tarefa pertence, então, à Sociologia
que analisa a estrutura e a dinâmica dos fenómenos sociais, assim como as suas
leis de desenvolvimento e conduz o processo de mudanças em conformidade
com as leis da evolução, cientificamente estabelecidas.

Contudo, as mudanças propostas por Comte não são radicais, são antes pardais,
uma vez que o futuro não entra em rotura total com o passado, mas recupera o,
selecionando os seus aspetos positivos e eliminando os negativos (Maia, 2002:
66 68). Até então os estudos sobre os fenómenos sociais eram fragmentários:
consistiam em reflexões que os pensadores tomavam como objeto, um fator
isolado de conhecimento, ou seja, uma parte da vida social, como a política ou a
moral, com perspetiva normativa e finalista.
Durante o período da Idade Média, os pensadores prendiam se a discussões de
caráter metafísico, que tinham por finalidade justificar a fé cristã. Os dogmas da
Igreja Católica impediam o desenvolvimento da investigação científica. A
Filosofia nesse período era, sobretudo, entendida corno fonte de preparação da
salvação da alma.
Já no final da Idade Média despontou um movimento de reação á escolástica.
Foram os prenúncios da libertação do pensamento ao dogmatismo católico, que
se efetivou finalmente no período agitado do Renascimento, quando se abriram
novas perspetivas ao saber humano. A influência teológica, que não permitia ver
as coisas senão á luz dominante da salvação eterna, deu lugar a uma perspetiva

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muito mais independente, que favorecia a livre discussão de questões do ponto


de vista racional.
Foi sendo elaborado um novo tipo de conhecimento, caracterizado por uma
objetividade e realismo que marcaram a separação nítida do pensamento do
passado. Essa modificação foi tão claramente definida que se poderia dizer que
um novo estágio se iniciava na explicação dos fenómenos da natureza c,
consequentemente, dos problemas sociais e humanos. Foi o estágio do
conhecimento baseado na experimentação, iniciado por Galileu Galilei:; e que
fará depois do século XX "o século de ouro da ciência" (Filho, 2000).

Mais tarde, durante o Renascimento, a influência teológica vai perdendo o seu


lugar preponderante, abrindo espaço para uma perspetiva de livre discussão
para a investigação racional. O novo conhecimento caracterizava se pela
objetividade e pelo realismo, que definiram a separação nítida do pensamento
do passado. Os fenómenos da natureza eram investigados pelo método da
experimentação, a ciência substitui a Filosofia e o mesmo método científico que
investigava a natureza também se volta para o mundo da natureza humana e
as suas relações sociais.

Em relação á interpretação ou explicação dos fenómenos da natureza, a ciência


substitui inteiramente a Filosofia, pois torna-se sinónimo de Ciências Naturais.
Estas desprendem -se do tronco comum que era a Filosofia, conseguindo
delimitar o seu campo de estudo com objetos específicos: a Física, no século
XVII. Com Galileu; a Química, no século XVIII, com Lavoisier e a Biologia, no
século XIX, com Claude Bernard e outros.

As mesmas condições que propiciaram a especificação das Ciências Naturais


favoreceram as chamadas Ciências Sociais: foi a mesma paixão pela realidade e
o mesmo espirito de investigação que deram largas a descobertas no mundo da
natureza, que levaram á focalização no mundo da natureza humana e das
relações sociais. E, de maneira idêntica, o mesmo método, que fora tão eficiente
no estudo do universo físico, é transportado para o novo campo de estudo que
fica, desde então, impregnado peto espírito científico (id, ibid.).

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Para melhor compreender todo este processo, é necessário procurar os fatores


específicos da formação das Ciências Sociais. Eles encontram se nas condições
materiais e intelectuais do desenvolvimento do mundo moderno. As Ciências
Sociais não são somente produto da reflexão de alguns pensadores, mas o
resultado de certas circunstâncias históricas e de algumas necessidades
materiais e sociais.

Na Idade Moderna, com a criação da sociedade capitalista, os pensadores


esforçaram-se para aplicar o método científico, tendo como objetivo explicar as
transformações que ocorreram nessa sociedade e que geraram uma crise social
na época. Desenvolveu-se uma nova forma de pensar a sociedade peto método
da razão em substituição da teologia. Para a formação das Ciências Sociais foi
importante uma nova conceção de sociedade e sobretudo a distinção entre
Estado c sociedade civil.

As viagens dos Descobrimentos, com a descoberta da existência de diferentes


tipos de sociedade e a Revolução Francesa, com os ideais de liberdade e
igualdade entre os indivíduos, contribuíram para a formação do caráter científico
das Ciências Sociais e promoveram o convívio com outras culturas, crises e
desordens na organização da sociedade, proporcionando o desenvolvimento do
Positivismo, corrente que entendia a sociedade regida por leis rigorosas.
Em simultâneo, há um conjunto de fatores socioculturais que vão influenciar
diretamente o estudo científico da realidade social. Uma série de mudanças
ocorridas na vida politica e económica da Europa, tais como, a ascensão da
burguesia, a formação de Estados Nação, a descoberta do Novo Mundo (outros
continentes, outras sociedades), a Revolução Comerciai (produção em escala) e
a Reforma Protestante, contribuíram para modificar a mentalidade do indivíduo
moderno. De facto, no século XVIII verificaram-se acontecimentos fundamentais
que definiram o desaparecimento da sociedade feudal e a consolidação da
sociedade capitalista.

Um destes factos foi, sem dúvida, a Revolução Industrial, iniciada em Inglaterra


em meados do século XVIII, que provocou transformações profundas na
sociedade europeia e tomou problemática a própria sociedade com o surgimento

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de novos problemas sociais decorrentes de condições de trabalho precárias.


Trouxe mudanças na ordem tecnológica, pelo emprego intensivo e extensivo de
um novo modo de produção com o uso da máquina, que permitiu aumentar
exponencialmente a produção; na ordem económica, pela concentração de
capitais e pela constituição de grandes empresas, provocando a acumulação de
riquezas; e na ordem social, pela intensificação do êxodo rural e consequente
processo de urbanização, desintegração de instituições e costumes, introdução
de novas formas de organização da vida social e, sobretudo, a emergência e a
formação de um proletariado de massas com a sua específica consciência de
classe.

Antes, as formas estabelecidas da vida social revestiam-se de um caráter


sagrado: era corno se o próprio Deus tivesse estabelecido as normas que
deveriam reger as ações humanas, o que tornava essas normas, de certo modo,
intocáveis. No mundo moderno a exigência geral de eficiência, no sentido de
encontrar solução para as crises e problemas provocados pelos novos
acontecimentos, fez com que muitas formas de organização social, até então
sagradas, passassem a ser vistas corno produto histórico e sujeitas a
transformações. Desse modo, a validade das normas e das formas de
organização social estabelecidas deixa de ser vista como algo de absoluto e
indiscutível. Tal atitude secularizada, isto é, alheia às coisas sagradas, favoreceu
a difusão de um espírito crítico e de objetividade diante dos fenómenos sociais
(id, kid.).

Nos séculos XVII e XVIII, sobretudo em França, a contribuição da Filosofia foi


extraordinária para a reflexão sobre as transformações sociais rápidas que se
começaram a verificar. Diante da situação social do país, resultado das
contradições das ciasses sociais, os filósofos franceses pretendiam, não apenas
transformar as formas de pensamento, mas também a própria sociedade.
Afirmavam que, à luz da razão (Iluminismo), é possível modificar a estrutura da
velha sociedade feudal. Condorcet" queria aplicar os métodos matemáticos ao
estudo dos fenómenos sociais. Montesquieu, em O Espirito das Leis, definia, pela
primeira vez, a ideia geral de lei, relações necessárias que derivam da natureza
das coisas e afirmava que os fenómenos políticos estavam sujeitos às leis
naturais, invariáveis e necessárias, tanto quanto os fenómenos físicos.

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Rousseau', em O Contrato Social, teve uma influência decisiva na formação da


democracia burguesa e, consequentemente, na mudança das instituições
sociais.
A Revolução Francesa (1789) trouxe o poder político à burguesia, destruiu os
fundamentos da sociedade feudal e promoveu profundas inovações na vida
social, o que alterou profundamente a organização das classes sociais. Mas,
junto com a Revolução Industrial, surgiram também crises e desordens na
organização da sociedade, o que levou alguns pensadores a concentrar as suas
reflexões na análise das suas consequências. A corrente científica do Positivismo
surge, em grande medida, com a preocupação em encontrar "remédios" para as
crises sociais do momento. Os positivistas queriam explicar os problemas sociais
que ocorriam e chegaram à conclusão de que os fenómenos sociais, á
semelhança dos físicos, estavam sujeitos a leis rigorosas. Saint-Simoo (1760-
1825) preconizava a transferência de todo o poder da sociedade para as mãos
dos cientistas e industriais, com o objetivo de restaurar a ordem social. Mas é
com o seu discípulo Auguste Comte (1798 1857) que as Ciências Sociais, de um
modo específico a Sociologia, começaram a delinear se como ciências
autónomas. Este autor foi um dos principais representantes do Positivismo
francês. Não só deu o nome à nova ciência, mas também empreendeu a
primeira tentativa sistemática de caracterização do seu objeto, dos seus
métodos e problemas fundamentais, bem como a primeira tentativa de
determinar a sua posição no conjunto das ciências.

A ideia central do Positivismo é a de que nas Ciências Sociais, tal como nas
Ciências da Natureza, é necessário e possível afastar os preconceitos e as
pressuposições, separar os julgamentos de facto dos julgamentos de valor. A
finalidade é Fazer com que as Ciências Sociais consigam atingir a mesma
neutralidade, imparcialidade e objetividade, que se atinge na Física, na Química
e na Biologia. Dai que se evidenciem as implicações ideológicas conservadoras
dessa conceção: se as leis sociais são leis naturais, então, a sociedade não pode
ser transformada. Ao contrário dos filósofos iluministas, considerados
negativistas por Auguste Comte, o Positivismo privilegia a aceitação passiva do
evolucionismo social e defende o evolucionismo social, ou seja, aceita que as
sociedades passam todas pelas mesmas fases de desenvolvimento.

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Outro fato também decisivo para a formação das Ciências Sociais está na
própria dinâmica do sistema de ciências. A evolução das ciências está
diretamente ligada á necessidade de controlar a natureza e compreende la. As
crises, devido aos acontecimentos sociais do século XVIII, provocaram uma
convicção de que os métodos das Ciências da Natureza deviam e podiam ser
estendidos aos estudos das questões humanas e sociais, e que os fenómenos
sociais podiam ser classificados e medidos. No mundo moderno, o conhecimento
científico tornou-se o sistema dominante de conceção do mundo e, aos poucos,
os fenómenos sociais também caíram sob o seu domínio.
Não se pode dizer que essa dinâmica seja a causa do surgimento das Ciências
Sociais, porque, na verdade, as leis científicas não passaram a ser aplicadas à
realidade social simplesmente porque eram aplicadas com sucesso no
conhecimento dos fenómenos da natureza. Mas, sem dúvida, principalmente a
partir do século XVIII, a necessidade de desenvolvimento de técnicas racionais
para controlar os conflitos criados pelas crises da época, acabou por levar á
formação das Ciências Sociais (Filho, 2000).

Ao analisar a formação das Ciências Sociais, Bottomore (1987) conclui que, no


início, elas foram absorvidas pela Sociologia, que surge como uma ciência
enciclopédica, evolucionista e positiva. Enciclopédica porque se ocupava da
totalidade da vida social do Homem [ser humano] e da totalidade da História.
Evolucionista porque, sob a influência da Filosofia da História, reforçada pela
teoria biológica da evolução, concebia a sociedade como um organismo e
tentava formular leis gerais de evolução social. Positiva porque era concebida
como uma ciência de caráter idêntico ao das Ciências Naturais. Mas, talvez o
aspeto mais importante, a Sociologia tomou-se a Ciência Social representativa
da nova sociedade industrial, adquirindo, não só um caráter científico, mas,
sobretudo, ideológico, uma vez que ideias conservadoras e radicais entraram no
seu desenvolvimento, dando origem a teorias conflituantes e provocando
controvérsias que continuam até hoje.

Atualmente, Sociologia, Antropologia, Economia e Ciência Política são ciências


com objetos de estudo específicos, que se relacionam mutuamente, pois os

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fenómenos sociais são extremamente complexos. Mas a definição do objeto de


cada Ciência Social decorre também da resposta que se dê á questão sobre o
que torna possível a organização social das relações entre os seres humanos.
Esta perspetiva fez com que se encarasse como fundamental a necessidade de
desenvolver métodos, leis ou conceitos que pudessem ser aplicados ao
entendimento da sociedade e, por isso, deveriam seguir o exemplo das Ciências
da Natureza que, até ao momento, se consideravam as únicas capazes de
explicar o desenvolvimento e as crises da sociedade. Ou seja, sentiu-se
necessidade de desenvolver técnicas de investigação e de análise racionais para
a formação das Ciências Sociais o que permite a incrementação de vários ramos
de Ciências Sociais, distinguindo-se entre eles, essencialmente pela perspetiva
de abordagem do objeto de estudo: o social.

Assim sendo, em sentido lato, como definição, as Ciências Sociais podem ser
consideradas as disciplinas que se ocupam da realidade social (Almeida, 1994).
Apesar da reflexão da sociedade sobre si própria, sobre as suas configurações,
sobre os seus processos, ela é anterior à estruturação do campo das Ciências
Sodais, sendo que viver socialmente implica avaliação dos envolvimentos e dos
contextos, dos constrangimentos gerados em parte pela natureza, em parte
pelas próprias sociabilidades e as inter relações nelas implicadas.

Na Modernidade, o estudo das sociedades dotou-se de sucessiva busca de


cientificidade, para que a formulação de teorias tivesse subjacentes proposições
logicamente articuladas que pudessem ser avaliadas pela sua fecundidade
explicativa em confronto com a evidência empírica e o desenvolvimento dos
métodos e técnicas usadas. Primeiro, desenvolveram-se modelos de análise
similares aos modelos desenvolvidos pelas Ciências da Natureza, sendo este o
caso do Positivismo, desenvolvido por Auguste Comte, por exemplo.
Posteriormente foi-se tentando adaptar e aproveitar o que era possível aplicar
ao trabalho científico, aos objetos específicos do campo das Ciências Sociais.
Alguns conceitos e as relações que se estabelecem entre eles, importados pelas
Ciências Sociais, foram usados a partir da lógica das Ciências da Natureza e das
matemáticas.

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Um exemplo ilustrativo desta situação é o caso da noção de função. A


designação tem um uso na linguagem corrente - mas a partir do século XIX
passou a ter uso também no campo científico (Almeida, 1994). Na Matemática,
função designa a correspondência sistemática entre duas classes de objetos, de
tal modo que a modificação num elemento implica a modificação noutro. Nas
Ciências Biológicas, quando se quer estudar a totalidade orgânica c as condições
de funcionamento dos seres vivos, função é, justamente, o conceito que denota
as atividades desenvolvidas pelos aparelhos e cuja coordenação é essencial para
a conservação da vida.

A noção de função passou a ser usada no campo das Ciências Sociais,


importando certas conceções da Sociologia, configuradas por analogia com os
organismos estudados pela Biologia (por exemplo, Spencer, Comte, Durkheim,
Malinowski e Radcliffe-Brown são autores que usaram o conceito, bem como o
de organismo, estrutura, meio, evolução, todos eles transportados
analogicamente da biologia para o estudo das sociedades) (Almeida, 1994).

A contaminação no interior dos campos científicos continua a acontecer e é


inevitável, normal e até desejável. A importação de linguagens de um campo
para outros não é inocente e envolve fragmentos conceptuais ligados às suas
utilizações de origem. Voltando ao exemplo de função, os seres vivos,
entendidos como sistemas unitários, estão dependentes de funções
desempenhadas por aparelhos e por órgãos: é essa atividade conjugada que
permite a continuidade da vida. E é, precisamente, esse sentido que os
primeiros cientistas sociais positivistas importam para a análise da sociedade,
em busca de uma explicação social evolutiva.

Qualquer disciplina científica pode ser entendida como uma matriz teórica que
dispõe de linhas representativas de dimensões da sua problemática. Formular
perguntas no âmbito de uma área disciplinar corresponde a um conjunto de
operações de tradução, corresponde a dar visibilidade no interior da disciplina a
certos problemas sociais, convertendo os também em problemas sociológicos. A
matriz disciplinar é constituída por conceitos e relações entre conceitos, que se
foram forjando e que, sendo suscitados pelas interrogações da problemática,

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procuram responder aos problemas científicos enfrentados - conceitos abstratos


e conceitos processuais (métodos e técnicas). A distinção entre as várias
Ciências Sociais há-de encontrar se na configuração das suas matrizes, nas
interrogações que formulam, nos problemas que trabalham, nos conceitos e
teorias que constroem, nos métodos e técnicas que cada uma delas aciona.

3.2. A ESPECIFICIDADE DO SOCIAL

O social é um todo, englobando diferentes tipos de relacionamento (técnico,


espacial, discursivo, ético, estético, etc.), que os seres humanos desenvolvem
entre si e os artefactos de que eles são produtores. O social será, portanto, um
processo, ou una soma complexa de processos (assim como o contexto em que
estes se desenvolvem), que tem o ser humano e a sua maneira de estar no
mundo, de se situar no contexto (e ao situar se a si e aos outros), como
elemento dinâmico dominante. Uma forma de visualizar o social é distinguir o
social e o biológico (e seus níveis de interação), focalizando aqui o interesse no
aspeto da socialização, que implica, por exemplo, as diferentes maneiras de
andar, rir, correr, os gestos, discursos, etc.

Afinal, o que é o social O social é único, as abordagens possíveis é que são


múltiplas, razão peia qual as Ciências Sociais que se ocupam do social serem
várias. A realidade social é a mesma, sendo as abordagens ou olhares de cada
ciência diferentes, pois que os objetivos de investigação são diferentes, as
perguntas colocadas e os centros de interesse também.
Apesar de o objeto das Ciências Sociais ser o mundo em que o indivíduo vive e o
social, para as Ciências Sociais o objeto cientifico não preexiste á ciência que
sobre ele se vai debruçar: a teoria vai permitir selecionar o real, e construí lo a
partir da sua metodologia específica, a partir de níveis de pertinência definidos,
construindo, assim, o seu objeto científico próprio.
No caso da abordagem sociológica, o "sociológico" não existe na realidade, é um
conceito, uma abstração, uma seleção, uma construção do real social, a partir
de um determinado enfoque teórico (Lima, 1992). O sociológico é o domínio do
social sobre o qual se debruça a Sociologia, sendo, por isso mesmo, já um

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tratamento do real. Ou seja, é essencialmente construído, fruto de uma


abstração/construção científica.

Deste modo, as Ciências Sociais debruçam-se sobre os fenómenos sociais. De


acordo com Émile Durkheim, facto social é visto como a maneira de agir, fixa ou
não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior. Em ciência
não há evidências e em Ciências Sociais há que, continuamente, fugir ã tentação
de misturar e confundir linguagens e práticas cientificas com linguagens e
práticas do senso comum (id, ibid.).

No caso da ciência, a abordagem que se faz do social é construída,


íntencionalizada, sistemática e controlável por todos, transmissível a todos,
enquanto no caso do saber do senso comum se trata de experiências pessoais
carregadas de "a prioris", de casos concretos não controláveis, não
sistematizáveis, logo, duvidosos do ponto de vista do rigor e honestidade,
exigidas á investigação científica (id., ibid.).

A ciência contemporânea limita -se a garantir a possibilidade de proceder


constantemente a novas observações; a novas experiências c interpretações de
dados empíricos e dos resultados de investigação em geral (Ferrarotti, 1986). A
ciência clássica referia se a termos de evidência e inevitabilidade, enquanto a
ciência contemporânea refere se a termos de convenções e probabilidade. Trata
se de uma evolução qualitativa que influencia o aparecimento e o declínio dos
""paradigmas" e de escolas científicas que vão sendo substituídos por outros.

As Ciências Sociais, que antes eram olhadas com algum desprezo, dada a
impossibilidade de atingirem a invejada "exatidão" das Ciências da Natureza,
gozam atualmente de credibilidade. O caráter provisório e altamente
problemático dos seus resultados é hoje reconhecido como característica
fundamental de todo o conhecimento científico e não apenas das Ciências
Sociais. As "leis" cientificas adquirem validade, em todos os campos de análise
cientifica e da integração crítica, da Física ás Ciências Sociais, num sentido
probabilístico e não normativo.

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Este raciocínio faz cair por terra a crença positivista de que se pode conhecer
aquilo que se consegue medir segundo modelos matemáticos exatos; cai
também a ideia de supremacia do quantitativo sobre o qualificativo. E mais, as
causas e os efeitos estão unidos num vínculo de reciprocidade dialetica, isto é,
da relação variável/condicionantes, que desmentem as construções
interpretativas simplisticamente como causais, apoiadas num único fator
dominante - daí resultam, essencialmente, a confirmação, a validez e o
fundamento dos conhecimentos sociológicos e dos esquemas descritos e
interpretativos das Ciências Sociais. Além disso, a própria evolução cientifica e o
progresso das Ciências Sociais deixam de ser considerados um facto puramente
interno do discurso científico; é oportunamente posta ã luz a importância do
ambiente social, do grau de desenvolvimento económico, das aspirações e das
atitudes mentais predominantes.
Ao contrário dos discursos religiosos e intuitivo-artísticos, o discurso científico é
definido pela sua capacidade de se autocorrigir. Igualmente verdade é que essa
capacidade não é um processo científico puro, não surge, nem se desenvolve
numa situação social assética, politicamente neutra, sem quaisquer interesses
extra-científicos. Na realidade, o progresso científico é i*n empreendimento
humano, sujeito ao insucesso e á falência. Esta profunda evolução do conceito
de ciência e de posição metodológica gerai, não só revaloriza a sociologia e lhe
reconhece plena validade científica, quer do ponto de vista dos aparelhos teórico
conceptuais, quer no aspeto dos instrumentos de investigação, como torna
impossível, senão fútil, qualquer definição exclusiva e fechada das várias
ciências (Ferrarotti, 1986: 33).

O objetivo da investigação não pode assim continuar a ser concebido num


sentido exclusivo, como se se tratasse de propriedade privada de uma só
ciência, com exclusão das outras. Para o mesmo problema, definido o "objeto"
da investigação, as várias disciplinas orientam e fazem convergir os seus
recursos, de método e conteúdo, de forma a estudá-los e interpreta los de
acordo com uma multiplicidade de óticas. As óticas diferenciadas geram
fecundação recíproca, do seu cruzamento c da sua integração problemática a
análise e a interpretação saem enriquecidas e o próprio objeto deixa de ser,
assim, dogmaticamente retificado de acordo com uma versão unilateral.

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Atualmente predomina a perspetiva de fazer uma abordagem interdisciplinar,


sentindo-se a necessidade de integração das várias Ciências Sociais e, ao
mesmo tempo, nota-se o claro ressurgimento de uma exigência de
sistematização. As interpretações de abordagem interdisciplinar e de exigência
de integração entre as várias ciências diferem bastante, conforme a formação
cultural própria e as experiências de investigação e de vida dos vários
estudiosos (Ferrarotti, 1986). Esta perspetiva de integração deve ser vista no
sentido de interação, que possa representar um processo de verificação
recíproca c enriquecimento dos seus resultados específicos.

Sob o ponto de vista de Gurvitch, o indivíduo e a sociedade são dois termos que
não se contrapõem: pelo contrário, situam-se numa relação de reciprocidade e
são, necessariamente, complementares, já que não existe indivíduo sem social
e, por outro lado, não é concebível uma sociedade sem o indivíduo. Mas, na
realidade, a questão da relação individual social não se resolve tão
simplesmente. Impõe-se precisar o conceito de social. Em particular, é
necessário identificar e determinar as características sociais do indivíduo.
Noutros termos, o social não é qualquer coisa que se vem juntar ao individual,
não lhe é exterior, não vem, apenas e por definição, de fora, mas resulta de
uma conjugação de elementos contextuais, relacionais e de interação social.

3.3. UNIDADE E PLURALIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

As Ciências Sociais constituem um universo relativamente pluralista e as


fronteiras nem sempre são muito precisas. Todas as Ciências Sociais procedem
a reduções do seu campo a partir de ima grelha teórica, que permite definir,
selecionar e construir a sua área de estudo e reconhecer os seus limites. Assim
sendo, cada uma das disciplinas que se enquadra no quadro das Ciências Sociais
dispõe de um objeto e de um conteúdo específico e, ainda, de um quadro
conceptual e de metodologias próprias para abordar os problemas que lhe são
colocados (Pollak, 1977 em Esteves e Fleming, 1982).

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Para explicitar a problemática a propósito da unidade e pluralidade das Ciências


Sociais, apresenta-se um extrato de um texto clássico de Adérito Sedas Nunes,
do livro Questões preliminares das ciências sociais, que ajuda a contextualizá-
las.
Para George Gurvitch, as diversas Ciências Sociais (e Humanas) representavam
"o estudo dos esforços coletivos e individuas mediante os quais a sociedade e os
homens que a compõem se criam ou produzem eles mesmos. [...] O que
caracteriza todas as Ciências do Homem - acrescentava aquele sociólogo - é que
a realidade por elas estudada ê uma só: é a condição humana considerada sob
uma certa luz e tomada objeto de um método específico"

[...] Era comummente aceite: de que a cada una das Ciências Sócias caberia
investigar um distinto campo do real, isto é: um conjunto de fenómenos reais
perfeitamente separados ou separáveis de quaisquer outros. A Economia
ocupar-se-ia da realidade económica {ou dos fenómenos económicos), a
Demografia, da realidade demográfica (ou dos fenómenos demográficos), a
ciência Política, da realidade politica (ou fenómenos políticos), e assim por
diante. A tal conceção opõe-se agora ã de que. no domino do humano e do
social, não existem campos de realidade e fenómenos que dessa forma se
distingam uns dos outros, como se fossem compartimentos estanques: o campo
da realidade sobre o qual as Ciências Sociais se debruçam é, de facto, um só (o
da realidade humana e social) e todos os fenómenos desse campo são
fenómenos sociais totais, quer dizer: fenómenos que - seja na sua estrutura
própria, seja nas suas relações e determinações - têm implicações
simultaneamente em vários níveis e em diferentes dimensões do real-social,
sendo portanto suscetíveis, peto menos potencialmente, de interessar a várias,
quando não a todas as ciências Socais (Nunes, 1964: 21).

Procurando realçar a importância da perspetiva da pluralidade das Ciências


Sociais, Adérito Sedas Nunes clarifica:
Não é, por conseguinte, por se ocuparem de diferentes fenómenos ou realidades
que as diversas ciências Sociais nomotéticas se distinguem umas das outras. De
facto, todas se ocupam da mesma realidade: a realidade social. Nem sequer a
Linguística se furta a esta regra, de mau grado ser a respeito de a que mais

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facilmente se pode na julgar que tem por objeto de investigação um campo do


real-socai, a linguagem, perfeitamente distinto e isolável de qualquer outro.
Com efeito, a linguagem é a peras um dos muitos sistemas de signos através
dos quais se efetua a intercomunicação social, processo social básico, condição
"sine qua non” da própria existência de sociedades humanas. [. .]

Senão assim, a distinção entre as várias Ciências Sociais só pode provir das
próprias ciências sociais, e não pode ter outro significado que não seja o de
cada uma dessas disciplinas encarar, abordar, analisar de uma forma diferente
aquela mesma realidade. A Economia, a Demografia e a ciência Política, por
exemplo, aferem entre st porque encaram, abordam, analisam de maneiras
diferentes os mesmos fenómenos sociais, os mesmos grupos, as mesmas
sociedades. Por outras palavras, cada uma das Ciências Sociais nomotéticas
adota, em relação á realidade social, uma ótica de análise diferente.
Mais precisamente, podemos destrinçar quatros níveis, ao considerar
empiricamente, na sua visibilidade imediata, a forma como as diversas
Ciências Sociais nomotéticas se diferenciam umas das outras:

- Os fins ou objetivos que comandam a investigação, ou seja o que interessa


aos investigadores analisar, explicar, compreender;
- A natureza, condicionada por esses fins, dos problemas de investigação que
os investigadores definem como sendo aqueles sobre os quais a sua pesquisa
deve incidir;
- Os critérios utilizados petos investigadores, a fim de selecionarem as
variáveis relevantes para o estudo desses problemas;
- Os métodos e técnicas de pesquisa empírica e de interpretação teórica que
os investigadores consideram adequada para trabalhar com as variáveis
escolhidas, resolver os problemas de investigação com que se defrontam e
atingir os fins ou objetivos visados (Nunes, 1984: 25-26).

Deste modo, para Nunes, a atribuição de distintos fins ou objetivos a uma


pesquisa científica contribuiu para a definição de distintos problemas de

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investigação, sendo necessário selecionar distintas variáveis relevantes para o


estudo dos problemas que os cientistas sociais se propõem estudar. Será essa
seleção de variáveis relevantes que conduzirá à adoção de distintos métodos e
técnicas, os que mais adequadamente sirvam para trabalhar sobre (e com) as
variáveis selecionadas, em ordem a esclarecer a problemática ou resolver os
problemas previamente definidos e a atingir, assim, os fins ou objetivos em
última análise visados. Tendo por base os fins e objetivos de cada uma das
Ciências Sociais, elas diferenciam se umas das outras basicamente pelo "centro
de interesse" da investigação ser, para cada uma delas, diferente do de todas as
restantes disciplinas (id, ibid.).

Os quatro princípios lógicos de diferenciação das Ciências Sociais


referidos, não podem ser interpretados como correspondendo integralmente a
outras tantas fases, pelas quais cada Ciência Social passaria, no decurso do seu
processo histórico de formação e desenvolvimento. Com efeito, ao longo desse
processo, o "centro de interesse", os problemas de investigação, as variáveis
relevantes e os métodos e técnicas de pesquisa não se definem sucessivamente,
uns após os outros, mas conjunta e progressivamente, como aspetos
interdependentes e interrelacionados de um movimento de sucessivas
estruturações c reestruturações da Ciência Social a que se referem. Isto é, cada
uma traduz um dinamismo específico, e quando se ensaia comparar as várias
ciências por relação aos quatro itens indicados, constata-se que elas diferem
umas das outras, sobretudo no que diz respeito ao nível empírico (id, Ibid.: 28).

Por essa razão, conclui Nunes, cada Ciência Social produz o seu próprio objeto
científico. Seja qual for a Ciência Social, ela só está propriamente construída
como tal, enquanto "corpo de conhecimentos e resultados", a partir do momento
em que seja possível afirmar que o sistema de produção que a produz já
construiu o seu próprio objeto científico. Significa que uma ciência representa
uma outra maneira de "ler" o real, distinto da leitura do senso comum. Implica
um outro código de leitura e a construção de outros "objetos", que não os que
servem para "ler" o real do cia a dia.

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Geralmente - observa Ralf Dahendorf - pouco nos incomoda o facto de que a


mesa, o assado e o vinho do cientista natural se distingam paradoxalmente da
mesa, do assado e do vinho da nossa vida diária. Ao pretendermos largar um
copo ou escrever uma carta, uma mesa oferece-se-nos como una base
adequada. É lisa, compacta e plana, e nem mesmo nos incomoda a afirmação do
físico de que, na realidade, uma mesa não é de forma alguma uma colmeia de
átomos. Do mesmo modo, um químico não consegue estragar o nosso apetite
decompondo o assado e o vinho em elementos que, como tais, dificilmente
seriamos tentados a ingerir. Enquanto não encararmos em perspectiva filosófica
o paradoxo entre o científico e o comum, resolvemos o problema de uma
maneira simplista. Fazemos de conta que a mesa do físico e a nossa mesa são
cosas distintas, não havendo qualquer relação significativa entre ambas.
Enquanto, por um lado, estamos dispostos a concordar com o físico em que a
sua mesa é um objeto altamente significativo e precioso, por outro lado,
estamos plenamente satisfeitos com a nossa mesa, exatamente por não se
tratar de uma colmeia de partes movediças.

Na verdade, nem sequer temos de fazer de conta que a mesa do físico e a nossa
mesa são coisas distintas, porque efetivamente o são. Embora se refiram a um
mesmo objeto real, são de facto "objetos conceptuais" diferentes, que
pressupõem (e derivam de) dois códigos de leitura do real estruturalmente
diversos um do outro: o código do senso-comum e o código da Ciência Física.
[...] Como diz Manuel Castells, "uma Ciência define-se, antes do mais, pela
existência de um objeto teórico próprio, ele mesmo suscitado por uma
necessidade social de conhecimento de uma parte do real concreto. O objeto
cientifico de uma determinada disciplina é constituído pelo conjunto concetual
construído com o fim de se dar conta de uma multiplicidade de objetos reais
que, por hipótese, essa ciência tem em vista analisar. [...]

Antes de concluir notemos com Pierre Bourdieu: "um objeto de investigação


(leia-se: objeto científico), por muto parcial e parcelar que seja, só pode ser
definido e construído em função de uma problemática teórica que permita
submeter a uma interrogação sistemática os aspetos da realidade postos em
relação pela questão que lhes é dirigida". de facto, o que cada uma das Ciências

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Sociais faz, à medida que se vai constituindo e desenvolvendo como disciplina


cientifica, consiste precisamente em submeter a interrogação sistemática os
aspetos do real-concreto social que são (ou melhor, vão sendo) postos em
relação pelas questões decorrentes das problemáticas teóricas por ela mesma
elaboradas e reelaboradas ao longo do tempo, problemáticas em função das
quais o seu objeto cientifico se vai progressivamente delimitando, configurando,
transformando, isto é: se vai progressivamente construindo, desconstruindo e
reconstruindo" (ld, ibid.: 34).

Conclui-se assim que nas Ciências Sociais nomotéticas todo o conhecimento é


abstração e construção, tendo em conta as problemáticas teóricas que
elaboram, as interrogações a que sujeitam a realidade, os objetos científicos que
a seu respeito constroem e os códigos de leitura do real concreto que, para a
decifrar, propõem. Cada uma das Ciências Sociais permite "ler" o real concreto
social através do seu código de leitura e dá dele uma determinada versão,
forçosamente parcial e incompleta, porque, necessariamente, se encontra
confinada por uma certa seleção de aspetos, relações e determinações do social.

A este propósito importa frisar que "todo o estudo concreto do real-concreto


social é sempre, em certo sentido, "uma abstração" (que deveria, igualmente,
considerar-se "provisória"), mormente desde que se mantenha encerrado dentro
dos limites do código de leitura de uma dada Ciência Social, seja a Economia, a
Demografia, a Ciência Politica ou outra qualquer (id., ibid.:41). Quer isto dizer
que o real concreto social observado pelos cientistas sociais nunca é puramente
económico, puramente demográfico, puramente político ou puramente seja o
que for: é antes, tal como defende Mauss, um "facto total", que não pode ser
captado isoladamente, unicamente por apenas una Ciência Social.

As classificações das Ciências Sociais e as respetivas ramificações variam muitas


vezes de universidade para universidade e de pais para país. Estas distinções,
no entanto, traduzem quase sempre conceções e orientações de investigação
também diferentes, tal como é o caso, por exemplo, da Antropologia Social,
Antropologia Cultural e Etnologia, que, apesar de terem campos de análise
muito próximos, não são absoluta mente idênticas.

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As Ciências Sociais, pela definição do seu próprio objeto, não podem estar
separadas do seu contexto cultural e existem num determinado território. Como
não é possível ter acesso à totalidade do real pode ser tratado e organizado a
partir das observações e reflexões teóricas. Mareei MaussJ7 teve oportunidade
de alertar que o fenómeno social total é irredutível a uma única dimensão do
real, o que significa que as leituras e descodificações feitas pelos cientistas
sociais podem privilegiar determinada dimensão do fenómeno, assim como as
diferentes Ciências Sociais podem abordar o mesmo fenómeno de múltiplas
maneiras. O conceito de fenómeno social total é um exemplo de análise que
coloca em causa a divisão fictícia criada por cada uma das Ciências Sociais sobre
o tratamento do real. Este concerto introduz a perspetiva de que o real social é
pluridimensional, isto é, suscetível de ser abordado de várias maneiras
diferentes, mas é único, sem ser, no entanto, redutível, exclusivamente, a uma
só dimensão (Maia, 2002).

É, precisamente, a mesma realidade humana e social que interessa às diversas


Ciências Sociais. De facto, o social é único, mas as formas de o abordar e as
dimensões privilegiadas por cada ângulo científico é que variam consoante os
interesses científicos orientadores, nos quais se situa cada investigador em
Ciências Sociais. É, portanto, suscetível de uma multiplicidade de abordagens.
Partindo de perspetivas teóricas particulares e de metodologias especificas, cada
uma dessas ciências procurou delimitar, ao longo do seu processo de formação,
a respetiva área de observação e de análise, buscando a compreensão de um
determinado nível do real, que será tanto mais profundamente apreendido,
quanto maior for a aproximação disciplinar.

Para ilustrar a concretização de uma possibilidade de interdisciplinaridade,


apresenta se uma proposta de relacionamento entre as diversas Ciências
Sociais, neste caso, a partir da perspetiva da Sociologia.

Os fenómenos sociais estão presentes em toda a parte e a divisão de domínios


entre as Ciências Sociais consiste apenas numa forma de abstração teórica que
depende do centro de interesse de cada uma das disciplinas. Essa divisão

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fictícia, no entanto, pode ser recuperada com as ligações específicas entre as


várias ciências.

Atividade formativa 3

1 – Apos a leitura dos conteúdos relativos ao capitulo 3, aprofunde os


conhecimentos com leituras complementares para esclarecimento de conceitos.
Consulte a bibliografia geral.
2 Elabore um pequeno ensaio em que disserte sobre a problemática teórica da
unidade e pluralidade das ciências sociais, isto é, sobre o que une e distingue as
várias ciências sociais.

4. ALGUMAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Objetivos de aprendizagem

Identificar o campo científico de cada uma das Ciências Sociais apresentadas.


Reconhecer as diversas Ciências sociais e identificar as principais distinções
entre elas.
Descrever como se processa o cruzamento CHJ complementaridade entre as
Ciências Sociais.
Neste capítulo são apresentadas algumas Ciências Sociais com o objectivo de
fazermos uma breve abordagem sobre cada uma ddas. Estritamente numa
lógica introdutória, de seguida faz-se uma breve referência à Sociologia,
Antropologia, Psicologia, História, Economia, Demografia e Ciência Polibca, com
o objetivo de dar a conhecer as grandes linhas de pensamento, área de anáise e
dimensões de cada uma das ciências focadas.

4.1. SOCIOLOGIA

A Sociologia tem como objetivo principal estudar e compreender os fenómenos


de grupo: a origem, a relativa estabilidade e a possível desintegração, podendo
dizer-se que é a ciência que estuda a sociedade a partir das relações que os

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seres humanos estabelecem entre si. Trata, então, do estudo dos seres
humanos em associação, visando os indivíduos que, embora separados no
espaço imediato que os rodeia e capazes de existirem biologicamente sem a
necessidade uns dos outros, se combinam em unidades maiores, suscetíveis de
uma ação coletiva (Lima, 1992). Apesar de o individuo ser livre e se movimentar
neste espaço, age sempre em função de um grupo (família, grupo de referência,
clube, grupo étnico, nação, etc.). Quer dizer, age corporativamente, integrando
se sempre num corpo cada vez mais amplo.

Os seres humanos quando nascem trazem consigo a sua estrutura biológica,


similar aos outros seres humanos e muito parecida com a de alguns aramais,
mas a sua capacidade de aprendizagem é muito diferente da de muitos animais.
Em sociedade, de simples seres biológicos, devido a essa grande capacidade de
aprender, os seres humanos tornam-se pessoas, ou seja, tornam-se individuos
socializados.

Os outros animais também possuem capacidade de aprendizagem só que é mais


limitada. O relato de casos de crianças selvagens ou extremamente isoladas leva
a pensar que o facto de se constituir um ser biológico, portador de uma herança
caracterizada por uma grande capacidade de aprender, não chega. É necessário
que essa capacidade de aprender seja utilizada e isso faz se com a ajuda e
ensino por parte dos outros membros do grupo. Passa pela aprendizagem de
uma cultura que se transmite a cada individuo que nasce, que se recebe e
transmite novamente às gerações vindouras e que possui ainda a característica
de se autorregular.

Como o sistema social é uma totalidade organizada, pode dizer se que a


sociedade humana é um conjunto onde existe uma rede de relações entre
indivíduos, uma rede de relações entre os grupos compostos por esses mesmos
indivíduos, uma simbiose entre esses grupos, uma organização e uma cultura.
Todos esses elementos levam a dois fatores importantes para a vida social dos
seres humanos. Por um lado, a grande capacidade de aprender constitui uma
característica herdada e, por conseguinte, tem-se uma herança genética ou
filogenética; por outro, esta mesma capacidade tem de ser estimulada, o que

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implica um ambiente social. Porém, nenhuma sociedade vive fora de um outro


ambiente: o natural, ou o geográfico natural, sobre o qual a sociedade exerce
uma ação, nem vive, igualmente, fora de um tempo e de um devir histórico (id.,
ibid.: 33).

A ação que a sociedade e os seres humanos exercem sobre os dois, ambientes:


social e natural, implica aquilo que se denomina por cultura e que pode ser
definida por tudo o que o ser humano acrescenta ã natureza, ou seja, a
objetivação ou concretização das ações anteriormente citadas. Toda a sociedade
possuí a sua cultura, que nada mais é do que um acervo, um corpo integrado de
objetos materiais ou não materiais (simbólicos), servindo de elementos
aglutinadores, adaptadores dos indivíduos ao grupo e dos grupos entre si, que
se organizam e vivem em simbiose.
A cultura dos povos é um conjunto complexo, originado por inúmeras causas
relacionadas com a história, com o ambiente geográfico e com o equipamento
técnico. Todas as sociedades possuem a sua própria cultura e é o próprio
sistema social que condiciona, frequentemente, o seu desenvolvimento e o seu
dinamismo interno (id., ibid.: 34).

As sociedades desenvolvem os seus esquemas de socialização, que são formas


educativas que preparam o indivíduo para a vida em sociedade e são também
escolhas que se entroncam nas tradições culturais e na história do grupo. A
pouco e pouco, os seres humanos vão vestindo a roupagem da cultura em que
nasceram ou vivem. Aprendem tudo: a falar a andar, a comer, a vestir, a
comportar-se e mesmo a pensar segundo modelos ou padrões do seu próprio
grupo. Esta aprendizagem designa se por processo de socialização.

A sociologia permite submeter a realidade social a uma interrogação sistemática


e, a partir de uma grelha teórica construída, estabelecer uma relação especifica
entre os diferentes elementos constitutivos da realidade que previamente foram
selecionados, com base numa interrogação concreta, explicitamente formulada e
refletida, a que se submeteu essa mesma realidade.

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A partir do Século das Luzes as sociedades ocidentais operam uma viragem


significativa na produção de conhecimentos ao outorgarem á razão o lugar
privilegiado de centro de observação e de ordenação do mundo e dos seres
humanos. Com o advento do Positivismo, um certo número de regras são
estabelecidas, regras que delimitam o universo do científico. Sobretudo com o
desenvolvimento da Física e da Biologia, estabelecem se paralelismos com o
funcionamento da sociedade e por comparação com organismos sociais. Tendo
por base este modelo da Biologia, no que se refere à análise da sociedade,
Durkheim defende que o todo não é igual à soma das partes.

O desenvolvimento das sociedades industriais permite o desenvolvimento da


Sociologia, que é rotulada de ciência nomotética geral das sociedades e em que
se defende que ela deve estabelecer leis históricas de evolução da sociedade, á
semelhança da lei dos três estados desenvolvida por Comte. As leis de
Durkheim, elaboradas a partir das suas análises acerca da solidariedade
mecânica e orgânica, propõem se estabelecer relações funcionais entre os
diferentes fenómenos (á semelhança do que se passa em Física). E Max Weber-,
outro dos sociólogos fundadores, fixa como objetivos para a Sociologia
Compreensiva a procura de regularidades que se distinguem a partir de um
estudo de história comparada.

Deste modo, a Sociologia foi pensada pelos seus fundadores como sendo uma
ciência nomotética, orientando se, no entanto, por alguns paradigmas
diferentes: a procura de leis de evolução das sociedades, com Comte, mas
também com Marx; a procura de relações funcionais entre os fenómenos sociais,
com Durkheim; e a procura das regularidades históricas, com Weber.

Não existe apenas uma prática sociológica e as diferentes práticas repousam


sobre três pontos característicos, que permitem fundamentar o objeto próprio
da Sociologia: a característica da associação a que a escola marxista chamará
de relações sociais de produção; o carácter simbólico do facto social, dimensão
que a própria teoria marxista é obrigada a reconhecer; e a característica da
historicidade de fenómeno social total.

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Se se considerar que a ciência é intrinsecamente neutra, dependendo sempre da


sociedade na qual é produzida, o saber é neutro e a Sociologia, como projeto
cientifico e como processo especifico de produção de saber, encontra se numa
situação na qual estão estabelecidas as condições para se afirmar como saber
científico (Marques, 1992).
Partindo das três características referidas - a da associação, o carácter
simbólico dos factos sociais e a dimensão da historicidade desses
mesmos fenómenos a Sociologia tem um objeto próprio de estudo, com
características bem definidas: existe uma especificidade do social e existe um
determinismo propriamente sociológico irredutível a fatores biológicos,
psicológicos ou outros.
Há ainda a salientar que se podem distinguir vários ramos da Sociologia, de
acordo com a centralidade do tema estudado, assumindo a configuração de um
campo autónomo de estudo. É o caso da Sociologia da Educação, das
Organizações, do Trabalho, do Desporto, da Juventude, da Infância, da Saúde,
de Género, da Exclusão Social, etc.

4.2. ANTROPOLOGIA

Sempre existiu curiosidade em conhecer outros grupos sociais, outras


sociedades. Com os Descobrimentos e o domínio crescente da expansão
mercantil europeia, o Ocidente exerce o seu domínio sobre as sociedades não
europeias durante mais de quatro séculos. Este facto faz com que exista uma
fonte para a reflexão teórica ocidental sobre o "outro" (Copans et al, s/d).

A partir dos séculos XVII e XVIII desenham-se, empiricamente, os contornos de


uma reflexão mais sistemática sobre as sociedades não europeias e sobre a
natureza das sociedades e do "homem" em geral. Os relatos de viagens e as
narrações de missionários são exemplos de uma nova curiosidade sobre outros
povos. Explicar diferenças c semelhanças, as origens e as evoluções das
sociedades vai ser o programa dos pensadores na segunda metade do século
XVIII (Copans et al., s/d).

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É neste contexto que aparece pela primeira vez o uso das designações de
Etnologia e de Etnografia. A Etnologia é no início um ramo da Filosofia da
História e depois a análise das características raciais. A Etnografia é mais
recente c designa a classificação dos grupos humanos a partir das características
linguísticas. No fim do século XIX as duas disciplinas apresentam se como duas
fases complementares de um mesmo projeto: coleta dos documentos e
descrição (Etnografia) e depois síntese comparativa (Etnologia).

Mas, é no século XIX que se desenvolve e define a especificidade do domínio


etnológico. O primeiro campo empírico a tomar forma é o da evolução natural da
espécie humana. A pesquisa das origens conduz às classificações biológicas das
raças e ã sua descrição racional que se substancia na Antropologia Física. Mas a
pesquisa das origens conduz, igualmente, à paleontologia e à pré-história, á
descrição dos estádios anteriores da espécie humana como espécie social
(fabricação de utensílios, etc.). É a distinção, cada vez mais acentuada, entre a
origem e evolução do ser humano como espécie natural e como ser social, que
explica a constituição de disciplinas autónomas.

O aparecimento de disciplinas autónomas provém igualmente da reflexão


progressiva de métodos c técnicas adequados ao objeto que se deseja estudar.
É a síntese metódica dessas diversas práticas, que permite á Etnologia delimitar
um campo geográfico e social no quadro do descobrimento (e da conquista) de
novas sociedades.

Desde o princípio se constata uma preocupação em registar, de modo ordenado


e sistemático, elementos de uma dada sociedade. "Em 1799 Geranko elabora
um questionário que precisa: «O primeiro expediente para conhecermos bem os
selvagens é tornamos nos de certa maneira um entre eles.»" (Copans et al.,
s/d: 19). A multiplicação de missões científicas, o interesse posto na coleta de
documentos e de objetivos, o desenvolvimento da museografia e dos seus
princípios (classificação, conservação e exposição), modifica as condições de
reflexão teórica. Já não se trata de relatos de viagens, de que se tiram
considerações ideológicas ou históricas; torna-se possível conhecer, descrever e
de algum modo, medir a diversidade das sociedades humanas. Mas, apenas

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quando ocorre a cisão entre a coleta de documentos e a prática de trabalho de


campo, é que a Etnologia adquire a sua originalidade. É entre 1880 1915 que
nasce o trabalho de campo com Franz Boas e Bronislaw Malinowski.

Relativamente ao itinerário teórico da Antropologia, o século XIX é, por


princípio, evolucionista: o progresso técnico e económico constitui a prova
incontestável de uma certa evolução histórica. Decalcando o modelo do
evolucionismo biológico, buscam se os estádios da evolução Inumana e, em
consequência, as sociedades primitivas aparecem como os antepassados
naturais das sociedades ocidentais atuais. Trata se de uma perspetiva de
evolucionismo linear com a sucessão de estádios em que, por uma série de
transformações, se passa do inferior ao superior. Na perspetiva do
Evolucionismo encontram se os autores a que se faz breve referência:

Lewis Morgan (1818-1881) demonstra a importância decisiva das relações de


parentesco em determinado estádio das sociedades humanas. Explica também a
passagem de um estádio a outro (selvajaria, barbárie e civilização) a partir das
correlações entre as formas de parentesco e formas de consciência social
(Copans et al., s/d: 19-20).

Por sua vez, E. B. Tylor (1832-1917) relativiza o Evolucionismo com os seus


trabalhos sobre as religiões e o animismo, que constituem uma primeira
abordagem explicativa das funções ideológicas e mitológicas. A sistematização
da comparação e a quantificação de certos dados fazem de Tylor um pioneiro de
métodos indispensáveis atualmente.

Muitas vezes, a pesquisa das leis da evolução das sociedades levou a


extrapolações e generalizações abusivas. Franz Boas (1852 1942) põe em causa
o Evolucionismo. "também a escola difusionista reage contra o Evolucionismo
com a pesquisa das áreas culturais, que delimitam e explicam as diferenças e
semelhanças entre as sociedades: os fenómenos de contacto, de empréstimo,
de difusão de elementos são determinantes.

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No entanto, é o Funcionalismo anglo-saxónico que mais consequente c


duradouramente refuta o Evolucionismo. Bronislaw Malinowski (1884 1942)
defende que bodo o elemento (instituição) de uma cultura desempenha uma
função neste conjunto e reflete uma necessidade biológica. As respostas às
necessidades primárias e ás necessidades derivadas constituem a cultura. Em
certo sentido, o Funcionalismo representa um progresso, porque apresenta uma
visão geral e integrada do sistema funcional (Copans et ai, s/d: 21).

Malinowski desenvolve trabalho de campo com a teoria da observação


participante (na Nova Guiné e nas Ilhas Trobiand). É especialista das sociedades
melanésias, desbrava empiricamente dois campos de pesquisa: graças a uma
certa perspetiva psicanalítica, a sexualidade e o inconsciente; com a sua análise
dos ciclos de troca (o kula), a Antropologia Económica. No entanto, este autor
não questiona o domínio colonial e as suas consequências.

Nos Estados Unidos da América, no período que medeia entre as duas guerras
mundiais, desenvolve-se uma tendência diferente do Funcionalismo anglo-
saxónico com E. Sapir, M. Mead, R. Benedict, entre outros. Assiste se a uma
associação de pesquisas etnológicas, psicológicas e psicanalíticas. Trata se,
essencialmente, de referenciar e construir modelos, os princípios ou as
configurações culturais (pattern), que fazem a originalidade dos indivíduos e das
culturas. Os processos de aprendizagem dos valores peias crianças, a
delimitação de mentalidades nacionais, a definição de normas e dos desvios são
assuntos que o Culturalismo desenvolve de forma sistemática.

A Etnologia francesa segue de perto essa via em que os fundadores da


Sociologia, como Durkheim, por exemplo, se interessam pelas sociedades ditas
"primitivas" e pelas suas manifestações religiosas. A Etnologia Comparativa é
para eles um ramo da Sociologia.

No entanto, o verdadeiro fundador teórico da Etnologia é Mareei Mauss: a


magia, a economia, a religião e o parentesco dão origem a sínteses e a uma
pesquisa das leis de funcionamento profundas e invisíveis. Mas é Claude Levi
Strauss (1908 2009) que se vai dedicar a elaborar esses princípios de forma

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rigorosa, a partir de 194S. Este autor desenvolve o Estruturalismo e considera


que a Etnologia tem por objetivo atingir um inventário de possibilidades
inconscientes, que não existem em número ilimitado e cujo repertório e as
relações de compatibilidade ou de incompatibilidade, que qualquer delas
mantém com todas as outras, fornecem uma arquitetura lógica a
desenvolvimentos históricos, que podem ser imprevisíveis sem nunca serem
arbitrários.

A Antropologia, enquanto ciência, aparece, primeiro, como uma articulação


consciente da teoria com as práticas, como uma critica do contexto histórico
ideológico e teórico que a torna possível. O objeto identifica-se, numa primeira
fase, com o domínio empírico que a expansão europeia constitui ao longo do seu
desenvolvimento histórico. Essas sociedades são rotuladas de várias formas:
primitivas, arcaicas, tradicionais, atrasadas, tradicionais sem escrita, sem
maquinação, etc. Estes termos imprecisos designam o quadro simétrico e
inverso do modernismo ocidental.

A Antropologia contemporânea renunciou á "primitividade". A primeira operação


científica consiste em definir o objeto em relação ao propósito da disciplina:
propósito metodológico (estrutura); propósito totalizante (cultura, sociedade,
facto social total); propósito parcelar (domínio circunscrito ao real: parentesco,
economia, etc.). A expressão que colhe mais consenso é cultura - trata se de
descrever o conjunto de práticas e produções humanas socialmente transmitidas
ou adquiridas. Cultura é a parte do meio produzida pelo ser humano. Nesse
sentido, a cultura opõe-se á natureza. Podem observar se fenómenos de troca
entre as diferentes culturas (aculturação). A cultura é, ao mesmo tempo,
consciente e inconsciente: é um modelo que se ensina e que por si,
simultaneamente, se impõe (Copans et a/., s/d: 27).

A Etnologia francesa inspirou se na noção de facto social total de M. Mauss.


Procura apreender um tipo de fenómeno que seja, simultaneamente, expressão
e síntese do conjunto da vida social de uma dada sociedade. O estudo de certas
configurações permitiria compreender o sentido real das relações sociais.

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Cada grande conjunto de instituições ou de fenómenos deu lugar a uma série de


estudos sistemáticos, monográficos ou comparativos. Aos quadros gerais
sucedem-se estudos mais precisos e consagrados a fenómenos de um só tipo e
ao seu lugar na sociedade. Os grandes temas da investigação têm uma história
cada vez mais distinta e autónoma, sendo o fio diretor a análise do parentesco.

Com as transformações sociais das sociedades, quer das industrializadas, quer


das ditas tradicionais, começaram a sentir-se os efeitos do impacto da
tecnologia ocidental um pouco por todas as sociedades. Verificam se
transformações no tipo de agrupamentos, e movimentos sociais e políticos
fizeram com que antropólogos enfrentassem o mesmo tipo de problemas nas
sociedades em geral. O objeto de estudo da Antropologia, atualmente, é a
sociedade em diversas fases de desenvolvimento, com diferentes tipos de
culturas (Bottomore, 1987), nomeadamente, em contextos das sociedades
contemporâneas, tendo desenvolvido outras vertentes disciplinares, como a
Antropologia Social, Cultural, Económica, Visual, Física, Psicológica, etc.

4.3. ECONOMIA

A Economia como ciência, com um objeto e método próprios, surge com Adam
Smith e o seu livro "A Riqueza das nações", em 1776, razão pela qual este autor
é considerado o "pai" da ciência económica (Sotomayor e Marques, 2007: 15).
Durante o século XIX, surgiram outros economistas que se preocuparam com o
estudo do comportamento de pequenos agentes económicos, como as famílias e
as empresas. Preocupação que resulta do pensamento do liberalismo total e do
papel do individuo ser considerado cada vez mais preponderante (id, ibid.).

Cada pessoa depende dos outros, do funcionamento da Economia para a maior


parte das coisas: alimentação, vestuário, informação, etc. (Neves, 2007: 19).
De acordo com este autor, a Economia baseia se na troca. Se cada indivíduo
tivesse de produzir tudo o que precisa e consome, da comida aos talheres, dos
transportes ao mobiliário, não lhe seria possível possuir um décimo do que
consome. Contudo, o autor frisa que "cada família produz o que consome" o que

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significa que, mesmo não produzindo cada uma das coisas que utiliza, produz
uma coisa que troca pelas outras. É possível ter acesso ao que se consome por
troca, isto é, a oferta de força de trabalho e os saberes específicos, fazem se em
troca de pagamentos que, por sua vez, vão permitir aceder á aquisição de bens.
Deste modo, a Economia estuda factos e fenómenos que são essenciais è vida
concreta das pessoas e sociedades de sempre, seja ao nível pessoal, de grupos
sociais ou sobre a incidência de determinados fenómenos no mundo, como as
guerras ou catástrofes naturais.

O método da Economia baseia-se na aplicação sistemática de dois postulados de


base, muito simples c gerais (id ibid.: 23): o postulado da racionalidade e o
postulado do equilíbrio. É a partir destes postulados que todos os resultados
económicos e a sua riqueza são obtidos.
Para Alfred Marchal, "Economia é o estudo da humanidade nos assuntos
correntes da vida" (Marshall, 1890:1 em Neves, 2007: 29). Apesar da
simplicidade desta frase, ela remete para aspetos profundos a ter ern conta: o
estudo da Economia das realidades comuns, a vida corrente das pessoas, de
todas as pessoas e, sobretudo, das pessoas "normais", porque são essas as que
mais se encontram. Outra questão importante é o estudo dos assintas
económicos, porque, pura e simplesmente, não há fenómenos eminentemente
económicos. Ora, como já se referiu, os fenómenos sociais não são económicos
ou sociológicos. Os fenómenos são fenómenos! A realidade é única e, na sua
riqueza natural, contém múltiplos aspetos particulares. Cada ciência tem por
objeta toda a realidade, mas tenta captar essa realidade a partir de um prisma
especial. Não é a natureza que classifica a realidade mas sim o estudo humano
organizado pela ciência. Passa a ser fenómeno económico depois de analisado
pela metodologia e prisma de análise da Economia.

Mas, qual a particularidade do estudo da Economia? Samuelson (1948) afirmou


que "economia é o estudo de como as pessoas e as sociedades escolhem o
emprego de recursos escassos, que podem ter usos alternativos, de forma a
produzir vários bens e a distribuí los para consumo, agora e no futuro, entre as
várias pessoas e grupos na sociedade" (citado por Neves, 2007: 31).

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Deste modo, o objeto da Economia é o ser humano e, dirige-se à compreensão


do comportamento de agentes e sociedades. Urna sociedade é uma amálgama
de agentes que se compõe do comportamento de cada um deles. A Economia
estuda agentes, mas agentes em relação e o comportamento individual tem
sempre de ser colocado na perspetiva da relação interpessoal.

A Economia ou Ciência Económica é a ciência que consiste na análise de bens e


serviços e dos fenómenos de produção, distribuição e consumo. É uma Ciência
Social que se debruça sobre a análise da atividade económica, através do
desenvolvimento de teoria económica. Em Economia é essencial o conceito de
bem como algo que satisfaz uma necessidade humana. O outro elemento
importante é a escolha. É da decisão da escolha que nasce o problema a
resolver pelo agente ou pela sociedade, a qual vai motivar o comportamento
(Neves, 2007: 32-33). A economia está também muito ligada ao conceito de
escassez porque ela é que causa a necessidade de escolher e tomar decisões,
essenciais para um problema económico. Outro as peto importante é o
consumo, ou seja, a utilização de bens para a satisfação das necessidades.
Também o tempo é essencial urra vez que as decisões económicas implicam
comportamentos que se repercutem agora e no futuro. A observação da vida
concreta, dos comportamentos dos consumidores, empresas e governos fornece
una enorme quantidade de informação, que está disponível ao cientista para
classificar, delimitar e interpretar. As políticas do Estado, as motivações que as
dirigiram e os resultados que obtiveram, a reação dos agentes a essas
intervenções, a atividade contínua desses agentes e a forma como elas vão
alterando a face do sistema económico, tudo isto constitui a base factual de
todas as teorias económicas.

A luta contra a escassez levada a cabo por sujeitos dotados de consciência e


vontade é construída como uma ação projetada. O económico luta contra a
escassez, mas os recursos pessoais, incluindo o tempo de que cada um dispõe,
são igualmente limitados, mais precisamente, não são extensíveis rapidamente
e sem constrangimentos. O agenciamento do mundo exterior e o próprio ser
humano proporciona um produto (rendimento) e comporta um custo. Obter um
determinado produto pelo mínimo custo é o esquema fundamental da

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economicidade, ou seja, do êxito da atividade económica. Esta conceção é tão


geral que se aplica a sociedades muito diferentes e num estádio de
desenvolvimento diferente. O cálculo económico escolhe, entre os produtos e os
custos, aqueles sobre os quais a ordem social permite que se faça luz, quedando
se outros nessas zonas de sombra, onde as classes dominantes preferem que as
investigações não penetrem (Perroux, 1982:13).

O pensamento económico ligou se sempre á sociedade, surgiu da experiência


económica da sociedade. Porém, as dominantes destas experiências têm variado
ao longo dos anos e a dialética do Estado e do individuo, do enriquecimento e do
desabrochei mento da vida, da troca mercantil e do plano estatal, desenrola se
sob os olhos de cada indivíduo. Ela emerge de antecedentes que lhe preparam a
situação atual (id., ibid.: 15).
A experiência económica da sociedade no Ocidente abarca sempre uma
combinação das relações entre o Estado e indivíduo, que muda com os
tipos de sociedade:
a) o agente - os economistas mercantilistas privilegiam o Estado como agente
económico, enquanto os fisiocratas valorizam o indivíduo como agente
económico. O indivíduo, considerado, essencialmente, como empreendedor,
torna-se o benfeitor económico da humanidade, por contraste com o Estado,
que se acusa de paralisar as iniciativas devido ás suas lentidões e aos seus
constrangimentos (id., ibid.: 16);

b) o objeto da Economia - durante o século XIX, acentua se a tónica


individual, sendo o objeto da atividade económica satisfazer as necessidades
físicas e as necessidades materiais através de exame concreto do conteúdo
social;
c) a atividade - a forma da atividade económica muda com o agente
económico e as sociedades privilegiam a atividade nos seus movimentos e pela
sua reflexão.
Sob a pressão de mudanças de estrutura, as sociedades ocidentais tomaram
consciência da sua vida económica em condições variáveis: Estado indivíduo,-
enriquecimento material desabrochamento da vida elementar; traças mercantis
intervenções púbicas. As dialéticas infinitamente complexas e subtis entre estes

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termos, e das quais apenas o movimento tem sido até hoje pressentido, dão
conteúdos concretos c evolutivos á luta contra a escassez eao principio da
economicidade.
.
A sociedade contemporânea do Ocidente é formada por três grupos sociais
estruturados, cuja hierarquia global já não depende de uma escala de valores
tradicionais, como nas sociedades de Antigo Regime. Os grupos são organizados
na perspetiva da luta económica: os sindicatos e associações profissionais, os
agrupamentos de consumidores, de compradores, de exportadores, os
entendimentos económicos e financeiros. Quanto aos grupos organizados, na
perspetiva de uma finalidade social, tais como os partidos, as ligas, as
agremiações, etc., participam, diretamente ou não, na formação e na aplicação
das decisões económicas do Estado (idem).
O indivíduo adquire a sua eficácia social dentro do grupo, no meio de uma rede
de alianças e de coligações. O Estado age pelos grupos e sobre eles para
coordenar e orientar as produções e as trocas (id ibid.: 20). Os grupos não
atuam num quadro institucional imutável. Todos se esforçam por modificar em
seu benefício, ou rio da sua coligação, as instituições e as regras do jogo. Logo,
a competição coletiva envolve, por todos os lados, as concorrências entre
indivíduos e pequenas unidades. Os agentes coletivos, capitalistas, operários de
indústria, agricultores, empregados, quadros participam num jogo coletivo de
regras evolutivas. O economista interessa se pelas funções sociais, cuja
efetivação dá à luta contra a escassez da plena eficácia. Esta finalidade dos atos
económicos, combinados e compostos no todo social, não se especifica e não se
determina senão pela forma e pelas originalidades deste todo (id., ibid.: 14).

Com a crise de 1929-1930, nos Estados Unidos da América, a teoria neoclássica


entrou em rutura, pois as soluções preconizadas para a ultrapassar não surtiam
efeitos: baseavam se na flexibilidade dos preços para atingir o equilíbrio e não
na intervenção governamental. A depressão agravou se e foi então que John
Keynes contribuiu para uma mudança na teoria económica, com a distinção
entre a Microeconomia (centrada na análise marginalista dos autores que o
antecederam) e a Macroeconomia (consubstanciada na teoria keynesiana)
(Sotomayor e Marques, 2007).

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A partir de então, a Economia é, geralmente, dividida em dois grandes ramos: a


Microeconomia, que estuda os comportamentos individuais, e a Macroeconomia,
que estuda o resultado agregado dos vários comportamentos individuais.
Atualmente, a Economia aplica o seu corpo de conhecimento para análise e
gestão dos mais variados tipos de organizações humanas (entidades públicas,
empresas privadas, cooperativas etc.) e domínios (internacional, finanças,
desenvolvimento dos países, ambiente, mercado de trabalho, cultiva,
agricultura, etc.). Outras divisões da disciplina são entre a Economia Positiva (o
que é) e a Economia Normativa (o que deveria ser), e também a diferenciação
entre Economia Ortodoxa, a que lida com a relação entre racionalidade,
individualismo e equilíbrio, e a Economia Heterodoxa, a que lida com a relação
entre instituições, história e estrutura social.
No que se refere á Macroeconomia, há três grandes temas: produto,
desemprego e nível de preços.
1) Segundo Keynes, o rendimento da Economia é inferior ao rendimento do
pleno emprego. Por definição, o rendimento do pleno emprego, ou produto
potencial, ou produto do pleno emprego, é o rendimento correspondente á
produção máxima possível de uma economia, utilizando totalmente os recursos
existentes (terra, trabalho e capital), para a tecnologia em vigor nessa
economia, ou seja, utilizando os recursos da forma mais eficiente possível.
Desse modo, se o rendimento efetivo da economia (medido pelo Produto Interno
Bruto PIB) é inferior ao rendimento potencial, um dos objetivos da política
macroeconómica é tentar alcançar essa produção máxima. Mais ainda, a taxa de
crescimento do produto deve ser elevada, de forma a se alcançar o rendimento
de pleno emprego num período de tempo, o mais reduzido possível.

2) O segundo objetivo macroeconómico é o nível de emprego elevado, ou seja,


a taxa de desemprego baixa. A análise keynesiana é uma análise a curto prazo e
afirma que há uma relação direta entre crescimento do produto e crescimento
do emprego, ou seja, redução do desemprego. O objetivo deve ser reduzir a
taxa de desemprego até ao mínimo possível.

3) O terceiro objetivo macroeconómico é a estabilidade do índice de preços, ou


seja, pretende se que a taxa de inflação seja baixa, considerando que a inflação

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gera desigualdades sociais, já que não afeta de igual modo toda a população.
Por exemplo, os indivíduos que têm rendimentos fixos ficam mais prejudicados,
porque o valor real dos rendimentos diminui. Assim sendo, a estabilidade do
nível de preços é um objetivo a atingir já que faz com que o sistema de mercado
funcione com maior transparência e eficiência.

4.4. PSICOLOGIA

A Psicologia, tal como acontece com as outras Ciências Sociais, distingue se da


perspetiva do senso comum pelo facto de ser alvo de um processo de
conhecimento científico do comportamento, das funções da mente e da sua
organização mental. Para Pinto (2001), a Psicologia é o estudo científico do
comportamento e da mente em termos de organização e diversidade.
A função da psicologia é constituir um corpo coerente de enunciados,
empiricamente fundamentados, de forma a explicar o comportamento e a
organização mental das pessoas e proporcionar previsões corretas. A psicologia
é uma ciência que tem por objetivo descobrir leis e regularidades entre
fenómenos de modo semelhante às ciências físicas e biológicas. A psicologia é
ainda uma ciência porque formula modelos e teorias consistentes para
compreender, explicar e prever os fenómenos humanos e depois avalia,
modifica, retém ou abandona tais modelos explicativos se não forem capazes de
resistir ás provas empíricas, à replicação dos resultados e ao escrutínio dos
especialistas, ao contrário da psicologia popular e do senso comum que
apresentam um corpo de saberes praticamente imutável ao longo de gerações
(Pinto. 2001: 19).

Desde finais do século XIX, assiste-se a importantes desenvolvimentos na


Psicologia. Na Alemanha, Wundt (1832-1920) fundou, em 1879, o primeiro
laboratório experimental, possibilitando a autonomia da Psicologia corno ciência.
Ebbinghaus (1850-1909) realizou importantes estudos experimentais sobre
memória e esquecimento. Por seu lado, na Áustria, Freud (1856-1939) estudou
o inconsciente a que atribui um papel fundamental na origem das desordens do
comportamento e propôs a Psicanálise corno método de tratamento. Na Rússia,
Pavlov (1849-1936) fez importantes descobertas no domínio do
condicionamento com aplicação ao estudo da aprendizagem. Na Inglaterra,

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Galton (1822-1922) investigou e desenvolveu o tema das diferenças individuais.


Em França, Binet (1857-1911) elaborou uma escala de medida de atividade
intelectual, cujos desenvolvimentos posteriores influenciaram a Psicologia
Aplicada ao longo do século XX. Na Suíça, Piaget (1896-1980) fez descobertas
sobre o desenvolvimento intelectual da criança e do adolescente (id, ibid.).

Entre as várias ramificações da Psicologia, encontra-se a Psicologia Social que se


descola da perspetiva comportamental ou behaviorista, tendo no centro do seu
interesse a noção de interação social. O objeto de estudo da Psicologia Social é a
interação social entre os indivíduos, entre os indivíduos e os grupos e entre os
próprios grupos.
A Psicologia Social procura romper com a tradicional oposição teórica entre o
indivíduo e a sociedade, enquanto objetos dicotômicos que se autoexcluem,
procurando analisar as relações entre indivíduos (interações), as relações entre
categorias ou grupos sociais (relações intergrupais) e as relações entre o
simbólico e a cognição (representações sociais). Assim, apresenta como objeto
de estudo os indivíduos em contexto, sendo que as explicações são efetuadas
tendo em conta quatro níveis de análise: nível intra - individual (o individuo), o
nível inter individual e situacional (interações entre os indivíduos ou contexto), o
nível posicionai (posição que o indivíduo ocupa na rede das relações sociais), e o
nível ideológico (crenças, valores e normas coletivas). A afirmação como
disciplina autónoma foi desencadeada peia existência de estudos que
sustentavam um novo domínio do conhecimento: o da interferência dos outros
no comportamento dos indivíduos (Cazeneuve, 1982).

4.S. HISTÓRIA

De acordo com Mare Bloch, o passado é, por definição, um dado que nada mais
o modificará. No entanto, o conhecimento do passado é uma coisa sempre em
progresso, que, incessantemente se transforma e aperfeiçoa (2002 [1993]: 75).
Mesmo o mais claro e complacente dos documentos não falam senão quando se
sabe interroga lo. É o tipo de pergunta que fazemos que condiciona a análise e
eleva ou diminui a importância redrada de um momento afastado. Bloch aceita
como definição de História como sendo a ciência dos homens no tempo (id ibid.:

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55) e de que o historiador está impossibilitado de constatar ele próprio os factos


que estuda (íd., ibid.: 69).

Nenhuma sociedade cessa de reescrever a sua história: não há saber absoluto, e


a História, como as outras ciências, é filha do seu tempo. Braudel (1990)
defende que se torna indispensável uma consciência clara sobre a pluralidade de
tempo social. Este autor efetua uma proposta da articulação da História com as
outras Ciências Sociais, por exemplo, com a Economia, segundo aquilo que
designa por crises estruturais.

Outro exemplo de aproveitamento feito pela História de conceitos desenvolvidos


por outras ciências é o caso do conceito de estrutura. É o seu conceito que
domina na explicação dos problemas de longa duração. Os observadores sociais
entendem por estrutura uma organização, uma coerência, relações
suficientemente fixas entre realidades e massas sociais. As estruturas podem
ser apoios ou obstáculos devido às dificuldades em romper com certos marcos
estabelecidos. Discrepância de "tempos" de análise (de longa ou de curta
duração) ("documento morto" ou o "testemunho vivo"), no passado longínquo e
na atualidade próxima. Mas o presente e o passado esclarecem-se mutuamente
com uma luz recíproca.

Deste modo, "a história não é mais do que o conhecimento do passado humano,
mas o passado humano cm si mesmo, na sua totalidade" (Carbonell, 1976: 35),
ou seja, a História como a ciência que permite conhecer o passado.

Após a História centrada na descrição das "batalhas", apareceu a História dos


tratados, a História dos Estados, e a História Económica e Social, num cenário
de crises industriais e movimentos sociais, que está ligado á evolução das
economias modernas e que desemboca na constituição de uma sociedade de
massa (Cazeneuve, 1982).

As Ciências Humanas, entendidas como estendendo e aperfeiçoando o


constructo de si mesmas, comprovam as suas debilidades. As regras distinguem
e os cálculos e as previsões deveriam poder ajustar se, para pôr a claro as

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linhas essenciais, os mesmos movimentos profundos, as mesmas tendências.


Sabe se, no entanto, que nada disso acontece, continua se a conhecer qual a
sociedade que rodeia, sociedade que permanece, na grande maioria dos seus
gestos, desconcertante e imprevisível (Braudel, 1990).

4.6. DEMOGRAFIA

Para o nascimento e desenvolvimento da Ciência Demográfica tiveram de ser


preenchidas duas condições complementares: em primeiro lugar, o incremento
da Demografia pressupunha a existência de órgãos administrativos complexos,
que procedessem a cômputos numéricos regulares da produção e mantivessem
arquivos fiéis de registo civil; além disso, o desenvolvimento da Matemática,
mais especificamente, do cálculo das probabilidades, permitia aprofundar a
análise e introduzir um elemento previsional, a partir de dados brutos recolhidos
pelos recenseamentos ou outros processos de contagem e que constituem a
própria matéria da Demografia (Cazeneuve, 1982).

Os seres humanos adquiriram o hábito de se contarem como sinal do novo valor


que atribuíam a cada individuo. O longo trabalho crítico da Filosofia do século
XVIII tendia a reformar as ideias sobre a organização da vida social e política,
que não é o resultado de urna ordem natural ou divina, mas fruto de uma
vontade coletiva dos seres humanos. Longe de constituírem entidades
imutáveis, as estruturas sociais e as normas culturais não podem ser separadas
das circunstâncias de tempo e de lugar que as condicionam e modificam
(id ibid.).
A Demografia, enquanto ciência, tanto na suo forma teórica como nas suas
aplicações, nasceu do encontro entre o desejo de se conhecer melhor e de se
compreender os fenómenos humanos e o sentimento de que existe, para os
seres humanos, uma possibilidade de agir sobre a sociedade e de a mudar, e
mesmo de a transformar.

No universo social configuram se três dimensões, que se combinam entre si


para constituir o conjunto vivo da sociedade: o número, o espaço e o tempo. A
definição de morfologia social, desenvolvida por Durkheim, foi retomada por

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Halbwachs que a desenvolveu. Qualquer sociedade, qualquer grupo social


(uma família, um clã, uma Igreja, os membros de uma profissão ou um
agrupamento politico) é, em primeiro lugar, um conjunto de pessoas que
ocupam um certo lugar no espaço, aumentam ou diminuem no decurso do
tempo.

A morfologia social em sentido restrito quer dizer a ciência da população. O


corpo social move-se no tempo e importa saber quem entra e quem sai, pelo
nascimento ou pela morte, ou por deslocação no espaço, se de aumenta ou
definha. Os grupos profissionais, religiosos, políticos, crescem ou ficam
estacionários, imprimindo á sociedade carateres diferentes segundo o seu ritmo
de renovação. A repartição por idade dos seus efetivos mede o seu grau de
vitalidade e informa acerca do seu futuro. A natureza e o volume das trocas
entre os grupos, o nível da produção e do consumo, o próprio nível dos preços e
o valor dos objetos são função, não apenas do número total de habitantes, mas
ainda da sua repartição relativa pelas diversas categorias sociais. As formas de
governo não poderiam ser as mesmas para um povo pouco numeroso,
fortemente concentrado em cidades e para outros dispersos espacialmente.

Os factos ou os índices não têm significação em si mesmos - eles têm causas,


próximas ou longínquas, desenvolvem consequências, agem em cadeia uns
sobre os outros. Só ganham relevo quando coordenados entre si, situados no
quadro institucional e social em que se produzem. Hã múltiplas circunstâncias
que podem modificar o quociente dos sexos ou a repartição dos efetivos das
diferentes idades: basta uma guerra ou uma migração algo seletiva.

Nem sequer a vida e a morte ou, mais exatamente, a natalidade e a


mortalidade, são as mesmas sob as diversas latitudes e nas diferentes épocas,
até independentemente de costumes tão radicais corno a exposição das crianças
ou a supressão dos velhos. O casamento ou a nupcialidade não obedece
somente a um processo de maturidade sexual, que aproxima os homens e as
mulheres, pois também responde a imperativos do grupo, que se serve dos
impulsos pessoais para atingir os seus fins. Certas normas culturais ou
contingências económicas devam ou baixam a idade e a frequência das uniões.

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Para além de serem fenómenos biológicos, a vida e a morte resultam da


vontade latente dos grupos sociais ou das circunstâncias exteriores ligadas às
formas da civilização. As condições em que elas se produzem, ou a sua
frequência, atuam sobre as normas e as instituições que evoluem ao longo do
tempo. Fecundidade, mortalidade e migração constituem, em larga medida,
fenómenos socialmente determinados e socialmente determinantes (id ibid.).

Por exemplo, o número de filhos de um casal aparece corno resultado de


decisões individuais, mas é, igualmente, - quer o casal tenha disso consciência
ou não - comandado por toda a espécie de ideais, de representações e de
normas, comuns a todos os membros do grupo ao qual ele pertence, que
informam o grupo por dentro, lhe conferem a sua coesão e lhe dão, por assim
dizer, a existência social.
A Demografia é uma ciência específica com os seus métodos próprios: é a
"ciência que tem por objeto o estudo das populações humanas e trata da sua
dimensão, da sua estrutura, da sua evolução e dos seus carateres gerais,
encarados, principalmente, de um ponto de vista quantitativo" (id, ibid: 137).
Ela procede a uma descrição numérica das populações sob um duplo aspeto,
estático e dinâmico, estudando o "estado da população'* e o ""movimento da
população".
As fontes da Demografia são documentais, com o registo e exploração de dados
dos atos de estado civil, nascimentos, casamentos, óbitos, etc. e
recenseamentos exaustivos sobre determinados temas como, por exemplo, o
recenseamento geral da população, os movimentos migratórios ou a evolução da
atividade económica, entre outros.

Tendo em conta que a população se move no tempo, o estado atual resulta da


presença simultânea de sucessivas gerações, que não têm todas o mesmo
efetivo á partida e não chegaram todas ao mesmo momento da sua história
individual. Para uma melhor análise, pode recorrer se á análise transversal ou
do momento em que se procede a um corte de tempo, para um ano ou para um
dado grupo de anos, misturando todas as gerações, e a análise longitudinal, que
segue ou reconstitui na duração os eventos a que é submetida uma geração.

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A partir do final do século XVIII assiste se á baixa da mortalidade e ao


alongamento da média de vida. Os progressos da técnica, verificados ao mesmo
tempo que a melhoria dos níveis de vida e da higiene geral, sem esquecer os
progressos da Medicina e as descobertas da Química, permitem ao ser humano
modificar as condições da sua existência, agindo sobre a natureza (id., ibid.),
contrariando ou retardando alguns efeitos da vida.

Os tempos modernos viram surgir também as mudanças verificadas pela baixa


da mortalidade c pela restrição ou controle de nascimentos, com a introdução
dos métodos contracetivos. Diminui a fecundidade e as populações envelhecem.
A proporção das sucessivas gerações que vivem em simultâneo muda: a dos
jovens diminui, a dos velhos aumenta, num momento balanceado em tomo da
proporção dos adultos (a qual permanece mais estável no seu conjunto, mas
ela própria submetida ao envelhecimento interno).

Os cuidados médicos generalizam se e toda a população pode aproveitar os


progressos da higiene da Medicina. O nível de vida e poder de compra mantêm
se diferentes nos diversos grupos sociais, no entanto, há cada vez mais um
desenvolvimento no sentido igualitário sobretudo no que se refere ás condições
de prolongamento de vida.

O conhecimento dos factos e da evolução demográficos, a descrição estatística


dos agrupamentos humanos e a análise do seu renovamento facultam à
observação dos fenómenos sociais uma dimensão numérica rigorosa e um
quadro morfológico que ela não pode dispensar sem risco. Ao invés, a ciência da
população somente é capaz de responder às suas finalidades se integrar os seus
resultados numa síntese sociológica que a ultrapasse e a fecunde.

4.7. CIÊNCIA POLÍTICA

De acordo com Fernandes (1995:12), o conceito de Ciência Política pode ser


entendido como "a observação, análise, comparação, sistematização e
explicação dos factos e dos acontecimentos políticos". A primeira e mais antiga
tradição do pensamento dos politicólogos envolve julgamentos de ordem ética

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ou religiosa. Atitude que se encontrava de forma generalizada nos clássicos,


desde Platão e Aristóteles aos utopistas, passando pelos teólogos e
monarcómacos. Mais tarde, o normativismo ético, que inspira várias
organizações internacionais, entre as quais a ONU, proclamou e prossegue um
conjunto de princípios com vista ao estabelecimento de um mundo político
aceitável.

O normativismo jurídico é o Direito Positivo a que se chamou Direito Politico,


Direito Constitucional, e que se confundiu com Ciência Política. O normativismo
dos positivistas circunscreve o Estado á personificação da ordem jurídica total e
isso não se deve confundir com o normativismo ético. Do normativismo ético e
do jurídico deve autonomizar-se o normativismo instrumental ou aplicado. Para
aquele autor, "anda mais próximo do que se chama arte politica e traduz se na
definição dos melhores meios para alcançar certos fins de governo, sem juízos
éticos ou jurídicos sobre a validade dos objetivos. É uma análise de relação
meios fins." (Fernandes, 1995: 13).

Enquanto o normativismo de inspiração europeia dominava a anáfise e descrição


dos fenómenos políticos, sobretudo na Alemanha, onde a Ciência Política andava
associada ao Direito político ou Constitucional, os politicólogos norte americanos
orientavam a investigação e o ensino para a análise e descrição do
comportamento politico, dos processos de governo, das ideias e crenças
politicas, das instituições e dos ordenamentos legais que as cristalizam, dos
sistemas complexos em que a atividade política se insere ou com os quais revela
possuir analogias, recorrendo a processos de quantificação facultados pela
estatística (id, ibid.: 14).

No século XX, a Ciência Política viu alargar o seu objeto de estudo a todos os
domínios políticos onde o poder se manifesta sem, contudo, se verificar
unanimidade sobre a delimitação do objeto de estudo. Os especialistas não
estão de acordo sobre uma noção precisa do objeto da Ciência Polaca. Abordam-
no de diferentes ângulos, uns circunscrevem – no ao estado outros aplicam-no a
todas as manifestações de autoridade, transformando a na ciência do poder;
outros ainda o circunscrevem a conceções intermédias, entre esses dois

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extremos. Para Duverger (citado por Fernandes, 1995: 14) "a ideia de poder
está na base de todas as definições de ciência política". Numa conceção
alargada, entende-se que tudo o que se refere ao poder depende da Ciência
Política; em sentido mais restrito, considera-se que somente alguns as petos ou
fornias de poder são estudados pela Ciência Política, os outros dependem de
outras Ciências Sociais.

A Ciência Política como ciência do Estado é a definição que melhor corresponde


á noção de política na linguagem corrente. Segundo Prélot (referido por
Fernandes, 1995: 15), esta não é uma conceção limitada do objeto da Ciência
Politica, porque as instituições públicas não são apenas instituições governantes,
mas também instituições administrativas e judiciais, ao passo que considerar o
Estado como centro de interesse tia investigação não significa limitar se ao
estudo na forma clássica.

A Ciência Politica dedica se às suas origens e ao seu devir e trata, igualmente,


dos eventuais substitutos históricos. Deste modo, para Pélot, a Ciência Politica é
"o conhecimento descritivo, explicativo e prospetivo do estado e dos fenómenos
que com ele se relacionem, quer por anterioridade, quer por simultaneidade,
quer ainda por sobreposição" (Fernandes, 1995: 15).

A maioria dos politicólogos contemporâneos europeus e americanos não


concorda com a definição anterior, que consideram desatualizada tendo em
conta o desenvolvimento da cooperação internacional verificada no século XX, e
consideram ainda que a constituição de grandes conjuntos internacionais
destruiu as bases do estado soberano em sentido clássico. Para estes cientistas,
a Ciência Política é a ciência do poder que analisa de muitas formas a origem, a
natureza, os fundamentos, a utilidade, os objetivos, os efeitos morais,
intelectuais e materiais do poder na sociedade.

É só no século XIX que a Ciência Política estabiliza em torno de um certo


número de temas e adquire traços de ciência dos factos políticos. O termo
"Ciência Politica" começa a entrar na terminologia corrente na segunda metade
do século XIX. Se, desde a Antiguidade Grega, até ao século XIX, as grandes

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obras foram dedicadas à cidade, á república, ao Estado, enfim, ás coisas


públicas, a partir de meados do século XIX, surgem importantes estudos
associados á Economia, á Sociologia e ao Direito, sendo que as obras de nomes
como Auguste Comte com a Lei dos três estados (1855), Aléxis Tocqueville com
a obra Democracia na América (1840) e Karl Marx com Critica da economia
politica (1859) e O Capital (1867), são obras que cruzam a Ciência Politica com
outras Ciências Sociais e contribuem para alterar a conceção do objeto
tradicional. Mas, como refere Fernandes (1995:30), conheceu dificuldades de
afirmação na Europa, tendo sido, na primeira metade do século XX, quase que
exclusivamente uma ciência americana.
Só a partir da n Guerra Mundial é que renasce a Ciência Política na Europa,
nomeadamente, com a necessidade de encontrar uma explicação para os factos
ocorridos durante a guerra, como a ocupação de França, por exemplo. A
proliferação de partidos políticos na Europa Ocidental, a estabilização de regimes
democráticos liberais e a consequente formação de importantes grupos de
pressão, o desenvolvimento dos meios de informação e das técnicas de opinião
pública, a proliferação de organizações internacionais e a evolução do sistema
mundial de poderes constituíram matéria-prima que suscitou a proliferação de
estudos de Ciência Politica quer na Europa, quer nos EUA.

Foi possível ver neste capítulo, em traços muito gerais, algumas das ideias
centrais que impulsionam a procura de conhecimento nestas Ciências Sociais e o
que têm sido os temas e perspetivas adotados. Esta breve passagem permitiu
constatar que existe uma multiplicidade de aspetos sociais estudados, todos eles
importantes e que descortinam perspetivas sobre as relações sociais complexas,
que se estabelecem nas sociedades e entre os indivíduos. E também permite
verificar o dinamismo que caracteriza as Ciências Sociais, acompanhando o
desenvolvimento social e histórico da sociedade.

O objetivo foi contribuir para despertar a curiosidade pelas várias Ciências


Sociais e a vontade de realizar leituras complementares de aprofundamento,
que se possam traduzir em futuras etapas de estudo.

Atividade formativa 4

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1) Propõe-se que comece por fazer uma síntese dos conteúdos sobre o
desenvolvimento e transformações das Ciências Sociais. Elabore esquemas
comparativos e de distinção entre as várias ciências de objetos de estudo, de
perspetivas, etc.

2) Selecione uma das Ciências Sociais e realize una pesquisa mais aprofundada.
Elabore uma reflexão em que identifique os seguintes tópicos: as condições
sodo-históricas que propiciaram o seu aparecimento, os principais autores, as
principais metodologias e os "centros de interesse" de cada uma.
3) Imagine que tinha de fazer uma abordagem multidisciplinar e complementar
com recurso ás várias Ciências Sociais estudadas. Realize um pequeno ensaio
onde apresente abordagens possíveis da Sociologia, Antropologia, Demografia,
História, Economia e as questões de politica e cidadania, por exemplo, para o
estudo dos ciganos em Portugal.

5. A EXPLICAÇÃO E A COMPREENSÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: OS


SOCIÓLOGOS CLÁSSICOS

Objetivos de aprendizagem
Identificar os principais contributos teóricos de Kart Marx para o
desenvolvimento da teoria sociológica.

Referir a importância da teoria de Émile Durkheim para a configuração do


objeto sociológico: apresentar o método e o objeto da sociologia desenvolvida
por este autor, bem como os principais conceitos estruturantes.

Caracterizar o pensamento de Max Weber - corrente


interpretativa/compreensiva e os principais contributos teóricos para a
delimitação do objeto da Sociologia: identificar os principais conceitos da
Sociologia de Max Weber (por exemplo, ação social, subjetividade da ação,
juízos de facto c juízos de valor, tipos ideais, entre outros).

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Comparar e distinguir as teorias de Kart Marx, Émile Durkheim e Max Weber


nos seus principais contributos, para a definição da objetividade das Ciências
Sociais.

Conhecer outras teorias explicativas, por exemplo, as que têm por base a
noção de cultura e traços culturais como marca identitária de um grupo ou
sociedade.

Caracterizar a especificidade e autonomia das relações sociais com


identificação das formas de sociabilidade de George Gurvitch.
Definir o conceito de sociation de Simmel.
Apresentar o conceito de função de Merton. Distinguir entre funções latentes e
funções manifestas.

A principal preocupação dos autores das disciplinas de Ciências Sociais tem sido
a explicação e a compreensão das sociedades em que vivem e as interconexões
que se estabelecem entre elas. Neste capítulo recorre-se a Karl Marx, Émile
Durkheim e Max Weber, selecionados entre os autores clássicos para se
exemplificar como tem sido produzido este conhecimento explicativo da
realidade social. A opção por estes autores deve se ao facto de eles continuarem
a ser referências teóricas nas Ciências Sociais, com as suas explicações
desenvolvidas sobre as relações sociais e as fornias de organização social. Para
além destes três autores, apresentam-se também alguns exemplos de outras
teorias explicativas que, igualmente, procuram explicações para as relações
sociais, nus centram se, por exemplo, na análise de aspetos aglutinadores,
como as formas de sociabilidade ou nas diferenciações culturais.

5.1. OS SOCIÓLOGOS FUNDADORES: KARL MARX, EMILE DURKHEIM E


MAX WEBER

Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber são considerados os principais clássicos
fundadores das Ciências Sociais, não só porque representam pontos de vista

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distintos sobre a produção da objetividade cientifica do conhecimento da vida


social, mas também porque a riqueza e profundidade teórica das suas obras
constituem elementos básicos para a explicação cientifica dos fenómenos sociais
que perduram até hoje, continuando a ser fontes de referência para as várias
Ciências Sociais.

O desenvolvimento das Ciências Sociais nas últimas décadas tem demonstrado a


importância da interdisciplinaridade e da complementaridade entre elas, cm
torno do objeto de estudo da realidade social enquanto fenómeno social total.
Partindo dessa constatação essencial, os teóricos clássicos das Ciências Sociais
procuram explicar as formas de organização social das relações entre os
indivíduos.

Sob o ponto de vista de Marx, a organização da sociedade surge como


resultante das relações de produção e toma as relações de classe como objeto
próprio da Sociologia; Émile Durkheim preocupou-se em estabelecer um método
de investigação específico e definir o objeto da Sociologia; e Max Weber, por sua
vez, delimita a Sociologia dentro da noção de "ação social".

Até hoje, as propostas defendidas por estes autores têm servido de objeto de
estudo a muitos outros cientistas sociais pois, apesar das muitas mudanças
verificadas no Mundo, como é o caso das grandes guerras, das várias
revoluções, do desenvolvimento acelerado da tecnologia da informação, as
teorias continuam atuais e aplicáveis na análise da realidade social. Sob esta
influência teórica, desenvolveram se estudos que favorecem a consolidação de
uma mentalidade cientifica no tratamento dos diversos campos das relações
sociais. Os acontecimentos do século XX, como o crescimento do capitalismo,
monopolizando produtos e mercados, a eclosão das guerras míndia is, a
organização do proletariado, as revoluções socialistas, o desenvolvimento dos
meios de comunicação, da informática, ao mesmo tempo que se tornam objeto
de análise das Ciências Sociais, levam a questionamentos básicos sobre a sua
própria existência.

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Muitas vezes, as Ciências Sociais têm sido usadas para produzir conhecimentos
de interesse das classes dominantes, tornando se instrumentos de controlo, o
que acarreta a burocratização e a domesticação das suas pesquisas. Outras
vezes, mantêm uma postura crítica diante da ideologia dominante, trazendo,
como consequência, perseguições e incompreensões. A verdade é que não
existe ciência definitiva, pois o conhecimento renova-se continuamente. Mas,
seja enfatizando os fatores de estabilidade e manutenção da organização social,
seja concebendo a sociedade corno uma realidade de conflitos e contradições,
seja valorizando mais os seus aspetos teóricos, seja dando primazia às
pesquisas empíricas, as Ciências Sociais têm, ao longo do processo histórico,
encontrado o seu lugar no quadro das ciências.
Essas mudanças sociais são o objeto de estudo das Ciências Sociais, trazendo
questionamentos básicos sobre a existência do individuo. Hoje, as Ciências
Sociais beneficiam, mas também mantém uma postura crítica da ideologia
dominante, fazendo com que exista uma renovação permanente do
conhecimento por parte das várias disciplinas que as constituem.

5.1.1. Karl Marx (1818 1883) e o materialismo histórico

Ao contrário do positivismo, que busca a manutenção c a preservação da


sociedade capitalista, Marx parte de uma crítica radical a este tipo de sociedade.
Concebe a organização da sociedade como resultante das relações de produção
e toma as relações de classe como objeto próprio da Sociologia.

A necessidade de construir um conhecimento científico acerca da sociedade do


seu tempo tornou Marx num pioneiro na autonomização da Sociologia face á
Filosofia, nomeadamente, através da adoção do ponto de vista social e histórico
e do distanciamento do idealismo de Hegel - ainda assim, deste filósofo, Marx
conservou a perspetiva histórica que está no centro da sua filosofia (Gíddens,
1984: 31). Conferindo uma base científica ao pensamento social, o pensamento
de Marx traduziu-se numa teoria que apelidou de materialismo dialético. Para
este autor, o processo histórico é marcado pela dialética, já que as sociedades
humanas estão em constante necessidade de transformação e mudança social.

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O materialismo dialético seria, então, uma aplicação do método dialético da


Filosofia hegeliana à realidade material e histórica. A conceção geral de
materialismo histórico que Marx veio introduzir no texto A ideologia Alemã está
associada á noção de que "a consciência humana é condicionada pela relação
dialética entre sujeito e objeto, na qual o homem dá forma ao mundo em que
vive, sendo por outro lado por de formado também. [...] Para Marx, a história é
um processo de criação, satisfação e recriação continuas das necessidades
humanas" (id ibid.: 52-53).
Percebendo o papel determinante que a economia detinha na sociedade,
situação resultante do rápido desenvolvimento da industrialização e do
capitalismo, Marx dedicou uma grande parte do seu pensamento à análise das
grandes desigualdades sociais que acompanham este desenvolvimento. Á visão
dos economistas clássicos que consideravam a Economia como um mercado que
se autor regularia, Marx opõe a perspetiva de que a Economia deveria ser
encarada como um sistema de relações sociais entre os diferentes grupos que
participam nos processos de produção. Marx introduz assim o conceito relações
sociais efe produção, que define como as relações que se processam entre
agentes que participam no processo de produção e que identifica em situações
como a escravatura, a servidão ou o sala nado (Campenhoudt, 2003: 305).

Considerando a História como uma sucessão de modos de produção, a tipologia


que Marx concebeu para fundamentar a sua teoria tem por base a diferenciação
da divisão do trabalho e a sua progressiva especialização. A organização das
relações sociais está intimamente associada aos modos de produção que as
sociedades humanas conheceram, sendo as relações entre os indivíduos
determinadas pela divisão do trabalho. De acordo com Marx (em Giddens, 1984:
59- 68), a escravatura foi o elemento centrai das relações sociais de produção
do mundo antigo, caracterizado pela predominância das cidades-estado gregas e
romanas com um modo de produção que se terá desenvolvido a partir do
progresso da urbanização. Marx considera, por outro lado, que a desintegração
do mundo romano se traduziu no fundamento a partir do qual emergiu a
sociedade feudal, pelo que entende a servidão como a relação social de
produção que é central no feudalismo.

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Interessando se, particularmente, pelo processo de transição do feudalismo


para o capitalismo, afirma que a Antiguidade nasceu da cidade, enquanto a
Idade Média nasceu no campo, o que transforma o sistema feudal num sistema
essencialmente rural - assim sendo, a base da economia feudal seria a pequena
agricultura praticada pelos servos da gleba, com a indústria doméstica e a
produção artesanal urbana a complementar este sistema. Na servidão, considera
Marx, o servo é o patrão de si mesmo, preocupando-se apenas com a obtenção
de produção suficiente para as necessidades da sua família. O grau de alienação
entre o produtor e o seu produto é baixo neste modo de produção, embora o
trabalhador estivesse obrigado á entrega de parte da sua produção ao seu
senhor.
O conceito de alienação acabou por ser estruturante nas teses de Marx, & que
considera que a história dos estádios iniciais do capitalismo é a própria história
da alienação progressiva do próprio produtor que, perdendo o controlo sobre o
seu produto e sobre os seus meios de produção, se torna dependente da venda
do seu trabalho no mercado. Com o crescimento dos centros urbanos e a sua
progressiva transformação em ricos centros comerciais e industriais, os servos
libertos tiveram a oportunidade de povoar as cidades, desenvolvendo se o
comércio numa economia feudal até ai predominantemente rural e
autossuficiente. Sendo ainda a maioria da população trabalhadora na Europa
constituída por camponeses independentes, o capitalismo não poderia
desenvolver-se, dando-se origem â formação do modo de produção
capitalista - cujo processo é denominado por Marx de acumulação primária -
com a expropriação dos meios de produção dos camponeses.

Em finais do século XV, já os camponeses se transformavam em trabalhadores


assalariados, sendo que o feudalismo acabou por evoluir no sentido de uma
forma produtiva mais avançada: o capitalismo. A rápida expansão do comércio
ultramarino, fruto da descoberta do caminho marítimo para a índia e da
descoberta da América, traduziu-se no principal fator de impulso deste novo
modo de produção. É, assim, com a desintegração do feudalismo e com o
desenvolvimento do capitalismo que surge o trabalho assalariado,
caracterizando, então, as relações sociais de produção na sociedade industrial
capitalista.

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Os três tipos de relações sociais de produção que Marx define - escravatura,


servidão e salariado têm, de formas diferentes, o mesmo denominador comum:
o facto de os interesses dos dominantes se sobreporem à vontade dos
explorados. Esta dinâmica, segundo Marx, determinaria a evolução dos modos
de produção. O conceito de alienação obteve, neste contexto, uma grande
parte da atenção de Marx, que defendeu nos Manuscritos de 1844 que "a
alienação do trabalhador na economia capitalista deriva dessa disparidade entre
o poder produtivo do trabalho, que se torna cada vez maior com a expansão do
capitalismo e a ausência de controlo por parte do trabalhador sobre os objetos
que produz" (Giddens, 1984: 39).

No capitalismo, as capacidades pessoais do trabalhador não têm importância,


pois o trabalho passa a ser estereotipado e não requer formação específica,
deixando de ser sua a obra do trabalhador e ele próprio não se reconhece, nem
na sua atividade, nem no objeto que dela resulta. Para Marx, a alienação traduz
se no facto de que o trabalhador se sente estranho ao seu próprio trabalho e,
portanto, se sente estranho a si próprio, numa situação em que deixa de estar
consciente da exploração a que se encontra sujeito. Esta alienação e as
condições de exploração que se encontram associadas ao capitalismo traduzem-
se, de acordo com Marx, na própria definição de proletariado (Campenhoudt,
2003: 180).
Na mesma obra, Marx defende que a alienação se exprime ainda através da
existência da propriedade privada, havendo a possibilidade de este fenómeno
ser suprimido desde que se proceda à abolição da propriedade privada, num
sistema em que as forças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo serão
mantidas e integradas num sistema de propriedade socialista. Marx considera,
então, que a abolição da alienação económica levaria ao desaparecimento das
restantes formas de alienação, que também verifica na sociedade do seu tempo
(a alienação religiosa, a alienação politica e a alienação familiar), concretizando
se, dessa forma, a revolução proletária e reconciliando-se o homem consigo
próprio e com a natureza (Masset, s/d: 10).

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Já na sua obra O capital, Marx escreveu acerca das estratificações de sociedades


historicamente conhecidas, embora o seu ponto de partida seja a sociedade
capitalista e a dinâmica própria da burguesia. Considerou que as três grandes
categorias de agentes sociais económicos (ou classes) da sociedade moderna
assentes no modo de produção capitalista seriam os trabalhadores assalariados,
que apenas possuem a sua força de trabalho c têm como fonte de rendimento o
salário, os capitalistas, que possuem o capital e têm como rendimento o lucro, e
os proprietários fundiários, que possuem a terra e têm corno rendimento a rendi
fundiária (Cherkaoui, 1995).

De acordo com Marx, as classes surgem sempre que a divisão do trabalho


permite a acumulação de excedentes de produção, que podem ser apropriados
por uma minoria, que fica diretamente numa relação de exploração face aos
produtores - assim, seria a posição em que os vários grupos se encontram face
á propriedade dos meios de produção que determinaria as classes. Por este
motivo, Marx entende que a divisão em classes implica uma relação conflitual.
Simplificando se e universalizando se na sociedade burguesa, as relações de
classe alteraram-se, de acordo com Marx, depois de consolidado o capitalismo,
já que se verifica uma tendência para a existência de duas grandes classes que
estão em oposição direta: a burguesia e o proletariado. Considera Marx que as
restantes classes, proprietários fundiários, pequena burguesia e campesinato,
seriam classes de transição, cujo objetivo seria a absorção numa ou noutra das
duas grandes classes antagónicas (Giddens, 1984: 70-75). Tal relação social
conflitual estaria intimamente relacionada com as forças produtivas, pois o
conflito é, para Marx, o motor da História e tem a sua origem numa
transformação radical. Refere Marx: "A História de qualquer sociedade até aos
nossos dias é a história da luta de classes" (Marx em Valade, 1995: 316-317).

No marxismo, o elemento central em que se produz a mudança social é a


infraestrutura. Para Marx, a infraestrutura era a mais importante das realidades
exteriores, o conjunto constituído pelas forças produtivas, pelas relações
técnicas e pelas relações sociais de produção (Campenhoudt, 2003:303). A
principal ligação entre as relações de produção e o resto da sociedade - que
denomina superestrutura social- materializa se nas classes sociais. As relações

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de classe são, no seu entender, o ponto principal da organização política, mas


também da distribuição do poder político, pelo que o poder económico e o poder
politico se relacionariam de forma aprofundada. No marxismo, o modo de
produção determina, em grande medida, a forma assumida pelo poder político,
assim como o grau de importância que as relações de mercado assumem na
economia (Giddens, 1984: 75). Entende o autor que, desta forma, a
infraestrutura económica, que se traduz nas relações de produção, determina a
superestrutura, que se traduz na consciência que se manifesta na arte, na
ciência, na religião, no direito e no Estado (Campenhoudt, 2003: 184).
Marx refletiu ainda sobre a teoria da mais-valia, que expôs como sendo o valor
produzido pelo sobretrabalho, isto é, pela parte do trabalho fornecida pelos
operários que está para além do que é necessário para a constituição do seu
salário" (Campenhoudt, 2003: 304). Admitindo que as condições de produção
manufatureira e industrial permitem que o operário produza muito mais do que
é necessário para cobrir os custos da sua subsistência, tudo o que produz para
além desse valor seria, então, a mais-valia (Giddens, 1984:87). Pelo trabalho
conjunto entre operários e capitalistas cria-se um valor bastante superior ao
custo dos seus salários que, constituindo-se como a diferença entre esses dois
valores, é sempre apropriada pelo empregador. Tendo tendência a aumentar
devido a uma organização cada vez mais eficaz do processo produtivo, a mais-
valia leva ao progressivo enriquecimento do empregador e à progressiva
pauperização dos operários, que aceitam ser explorados por não conhecerem o
verdadeiro valor do seu trabalho. Encontram se, assim, alienados por não terem
consciência da exploração que os vitima nem da sua participação inconsciente
numa relação de dominação (Campenhoudt, 2003:181-184).

Na perspetiva de Campenhoudt (2003: 186), "A obra de Marx não visa somente
a interpretação da realidade social, mas a sua transformação. Ela é
emancipadora no sentido em que visa acordar a consciência crítica dos atores c
ajuda los a libertarem se de condições sociais julgadas injustas".

5.1.2. Émile Durkheim (1858-1917) e o positivismo sociológico

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Seguindo a tradição positivista de Comte, Durkheim preocupou se em


estabelecer um método e definir o objeto da Sociologia, ao mesmo tempo que
procurou encontrar soluções para a manutenção da sociedade que surgiu após
as revoluções. Para ele, a organização social é possível graças ao consenso ou á
consciência coletiva e a sociologia tem como objeto o facto social".

O autor foi o percursor da perspetiva de que o social apenas pode ser explicado
recorrendo ao social, ou seja, pela construção social através do corte
epistemológico com o senso comum, procurando obter um estatuto de
cientificidade para a Sociologia. No sentido de explicar a realidade social do seu
tempo, Durkheim desenvolveu a conceção sobre As regras do método
sociológico (Durkheim, 1984 [1895J), que se tomaram importantes para as
Ciências Sociais em geral, e para a Sociologia em particular. Esta conceção
assenta no pressuposto de que o facto social deve ser tratado como uma "coisa"
isto é, de acordo com o método científico.

Durkheim atribuiu como critério de identificação do facto social duas


características fundamentais - a exterioridade e a coação. Ele caracteriza os
factos sociais nestes termos: "consistem em maneiras de agir, de pensar e de
sentir exterior ao indivíduo (existem fora das consciências individuais) e dotadas
de um poder coercivo em virtude do qual se lhe impõem (id ibid 31). O fato
social é geral no âmbito de uma dada sociedade e, sendo exterior ao indivíduo,
tem uma existência própria. Existe independentemente das manifestações
individuais que toma ao difundir se, impondo-se corno modelo de ação e de
valores nos quais as pessoas são educadas. Daí o poder de coerção externa que
exerce sobre os indivíduos. "A presença desse poder reconhece-se, por sua vez,
pela existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o facto opõe
a qualquer iniciativa individuai que tende viola- lo (id ibid 36).

Pode, ainda, dizer se que o facto social é a interação dos seres humanos através
do tempo e num espaço próprio. Cada facto social concreto deve ser referido a
um ambiente social particular e a um tipo definido de sociedade, pois um dado
facto social ocorre num determinado espaço físico e num determinado tempo
(época ou data específica). Só é possível compreender os factos sociais se se

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virem nas suas relações recíprocas e no seu ambiente coletivo, onde se


desenvolvem e de que são, em simultâneo, expressão. O espaço e o tempo
conferem aos factos sociais características, por vezes, únicas, outras vezes
semelhantes, a outros factos noutros locais ou épocas. O facto designa, então,
um acontecimento concreto no tempo e no espaço. Ao se afirmar que um
homem se suicidou esta manhã no seu apartamento, refere-se a um facto social
concreto, mas não a um facto sociológico. Para ser sociológico é preciso que haja
sobre ele um conjunto de interrogações metodológicas.

Durkheim adverte sobre a necessidade de analisar um facto social sem se


observar a totalidade do seu desenvolvimento na sociedade. Por exemplo, o
caso do fenómeno do suicídio refere-se a um conjunto de vários suicídios,
traduzindo-se cada um num facto social isolado. Socialmente, só faz sentido
analisar o fenómeno no seu conjunto. Para ele, a Sociologia deveria estudar as
sociedades globalmente e fazer análise comparativa dos diversos tipos de
sociedade. Assim, qualquer facto social só tem sentido quando integrado no
contexto natural e social onde ocorre, ou seja, deve ser sempre relativizado.
Variam no tempo e no espaço, dado que ocorrem num determinado espaço e
num determinado momento, os factos sociais são condicionados pelos elementos
próprios e estruturantes do respetivo contexto.

Os factos sociais são exteriores ao individuo - o conceito de exterioridade dos


factos sociais baseia se na conceção durkheimianas de consciência coletiva, por
ele definida como o conjunto das maneiras de agir, de pensar e de sentir,
comum á média dos membros de urna determinada sociedade e que compõe a
herança própria dessa sociedade. As maneiras de agir, de pensar e de sentir são
exteriores ás pessoas, porque as precedem, transcendem e a elas sobrevivem.
Os factos sociais transcendem os Indivíduos, e estão acima e fora deles, sendo,
portanto, independentes do indivíduo em particular.

Não há por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser
apelidados de sociais. Todos os indivíduos bebem, dormem, comem, raciocinam,
e a sociedade tem todo o interesse em que estas funções se exerçam
regularmente. Ora, se estes factos fossem sociais, a sociologia não teria um

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objeto que lhe fosse próprio e o seu domínio confundir-se ia com o da Biologia e
da Psicologia.
Mas, na realidade, há em todas as sociedades um grupo determinado de
fenómenos que se distinguem por características acentuadas dos estudados
pelas outras ciências da natureza. Quando desempenho a minha tarefa de
irmão, de esposo ou de cidadão, quando executo os compromissos que tomei,
cumpro deveres que estão definidos, para além de mim e dos meus atos, no
direito e nos costumes. Mesmo quando eles estão de acordo com os meus
sentimentos próprios e lhes sinto interiormente a realidade, esta não deixa de
ser objetiva, pois não fui eu que os estabeleci, antes os recebi pela educação.
[...]
Do mesmo modo ao nascer, os féis encontram já formadas as crenças e práticas
da sua vida religiosa; se existiam antes deles é porque existiam fora deles. O
sistema de sinais de que me sirvo para exprimir o pensamento, o sistema
monetário que emprego para pagar as minhas dívidas, os instrumentos de
crédito que utilizo nas minhas relações comerciais, as práticas seguidas na
minha profissão, etc., etc, funcionam independentemente do uso que delas faço.
Tomando, um após outro, todos os membros de que a sociedade se compõe,
pode repetir-se tudo o que foi dito a propósito de cada um deles. São pois
maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade
de existir fora das consciências individuais.

Estes tipos de comportamento ou de pensamento são não só exteriores ao


individuo, como dotados de um poder imperativo e coercivo em virtude do qual
se lhe impõem, quer queira, quer não. Sem dúvida, quando a eia me conformo
de Doa vontade, esta coerção não se faz, ou faz se pouco, sentir, por inútil. Mas
não é por isso uma característica menos intrínseca de tais factos, e a prova é
que ela se afirma logo que eu procuro resistir. Se tento violar as regras do
direito, elas reagem contra mim de modo a impedir o meu ato, se ainda for
possível, ou a anula-to e a restabelece lo sob a forma normal, se já executado e
reparável, ou a fazer-me expiá-lo se não houver outra forma de reparação. [...]
(Durkheim, 1964 [1895]: 29-30).

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Como se constata pelas palavras de Durkheim, os factos sociais apresentam


características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar c de
sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercivo cm virtude do
qual se lhe impõem Por essa razão, não podem ser confundidos com fenómenos
orgânicos, visto que consistem em representações e em ações; nem com os
fenómenos psíquicos, que não têm existência senão na consciência individual, e
devido a ela. Continuando com Durkheim, ele defende que :

Esta definição do facto social pode, aliás, confirmar-se por uma experiencia
característica. Basta observar a maneira como são educadas as crianças.
Quando reparamos nos factos tais como são, e como sempre foram, salta aos
olhos que toda a educação consiste num esforço contínuo para impor ã criança
maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado
espontaneamente. Desde os primeiros tempos da sua vida que a obrigamos a
comer, a dormir, a beber a horas certas. Obrigamo-la á limpeza, à calma, á
obediência. Mais tarde, obrigamo-la a ter em conta os outros, a respeitar os
usos, as conveniências, a trabalhar, etc. etc. Se, com o tempo essa coerção
deixa de ser sentida, e porque, pouco a pouco, engendrou hábitos e tendências
internas que a torram inútil, mas que só a substituem porque derivam dela. [...]

Sem dúvida; mas se é geral, é porque ê coletivo (quer dizer, mais ou menos
obrigatório) e nunca coletivo por ser geral. é um estado do grupo que se repete
nos indivíduos porque se impõe a eles, está em cada parte porque está no todo,
e não no todo por estar nas partes. Isto é sobretudo evidente nas crenças e nas
práticas que nos são transmitidas já feitas pelas gerações anteriores: recebemo-
las e adaptamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma
obra secular, estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos
ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, é de notar que a imensa maioria dos
fenômenos sociais nos vem por esta via; mas, mesmo quando o facto social é
devido, em parte, á nossa colaboração direta, não ë de outra natureza. [...] (id,
ibid.: 35-36).

Assim, um facto social reconhece-se pelo poder de coerção externa que exerce
ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos. A presença desse poder é

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passível de ser reconhecido pela existência de uma sanção determinada ou pela


resistência que o facto opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violá-la.
Contudo, para Durkheim, o facto social também pode ainda ser definido pela
difusão que tem no interior do grupo, desde que se tenha em atenção que de
existe independentemente das formas individuais que torna ao difundir-se. Este
é o critério da coerção que é fácil verificar quando se traduz exteriormente por
uma reação direta da sociedade, como no caso do direito, da moral, das
crenças, dos usos, e até das modas (idem).

A nossa definição compreenderá, pois, todo o definido, se dissermos: facto


social é toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetivel de exercer sobre o
individuo uma coerção exterior: ou então, que é gerai no âmbito de uma dada
sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das
suas manifestações individuais (id, ibid.: 29).
Os fatos sociais que tomámos como base são todas maneiras de fazer, são de
ordem fisiológica. Ora há também maneiras de ser coletivas, quer dizer factos
sociais de ordem anatómica ou morfológica. A sociologia não pode
desinteressar-se do que diz respeito ao substrato da vida coletiva. No entanto, o
número e a natureza das partes elementares de que se compõe a sociedade, a
maneira como elas estão dispostas, o grau de coalescência a que chegaram, a
distribuição da população pela superfície do território, o número e a natureza
das vias de comunicação, a forma das habitações, etc., não parecem, á primeira
vista, poder reduzir-se a maneiras de agir, de sentir ou de pensar. [...] (id.,
ibid.: 37).

Por exempto, quando o indivíduo desempenha o seu papel de cidadão, de filho,


de comerciante ou de aluno, pratica deveres definidos fora dele e dos seus
hábitos individuais, no direito e nos costumes. Não foi ele que criou essas leis e
costumes, mas estes foram- lhe transmitidos através da educação. As normas
de conduta ou de pensamento são, atém de exteriores aos indivíduos, dotadas
de poder coercivo, porque se impõem aos indivíduos, independentemente das
suas vontades. Quando, através da educação, se aceitam como válidas as
maneiras de agir, de pensar e de sentir do grupo, conformando -se com das, de
bom grado, não se sente essa coerção, pois ela toma-se, então, inútil, o que não

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significa que deixe de existir. A força coerciva aparece assim que se tenta opor
resistência à mesma.

A sociedade assume uma ideia de totalidade para Durkheim, como sendo


irredutível à soma das partes. Para o autor, é necessário procurar as causas
próximas e determinantes dos factos que se produzem na sociedade. A esse
fenómeno Durkheim designa por consciência coletiva, sendo o que entende
corno o conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de
uma mesma sociedade, que forma um sistema que tem a sua própria vida. A
sociedade apenas existe através dos indivíduos, contudo não é redutível a eles.
Da mesma maneira que não se pode explicar o sistema nervoso ou a circulação
sanguínea a partir do exame de cada uma das diferentes partes do corpo
humano, não se podem explicar os fenómenos sociais por causas individuais. Às
explicações psicológicas ou económicas baseadas nos afetos ou nos interesses
dos indivíduos contrapõe Durkheim á necessidade de uma explicação
propriamente sociológica que resume no preceito explicar o social pelo social
(Campenhoudt, 2003: 129).

Uma das mais representativas ilustrações deste princípio explicativo reside na


análise clássica da solidariedade. O século XIX foi um tempo de grandes
transformações: a revolução industrial assume o seu pleno, a economia de
mercado próspera, o regime democrático alicerça se, as grandes questões de
justiça social e demográfica são cada vez mais fortes. Durkheim, como outros
dentistas do seu tempo, procura captar a natureza dessas mudanças e a
maneira pela qual a sociedade pode fazer face a este género de problemas.

Na sua obre A divisão do trabalho social (Durkheim, 1984 1893]), o autor


considera que o facto maior da modernização das sociedades reside num
processo de diferenciação social. Cada sociedade deve assentar numa
solidariedade entre aqueles que dela fazem parte, isto é, sobre um conjunto de
laços graças aos quais eles mantêm uma coesão mínima.

Durkheim distingue duas formas de solidariedade. Para de, prevalece nas


sociedades pré-industriais a solidariedade mecânica - solidariedade

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baseada sobre a similitude entre os indivíduos que partilham os mesmos


valores e as mesmas competências. Nestas sociedades, a consciência coletiva
domina fortemente as consciências individuais. Nas J0 Aconselha-se a consulta
desta obra de referência de Durkheim (1984 [1893]), sociedades modernas,
tecnicamente avançadas, a solidariedade orgânica prevalece e baseia se na
divisão do trabalho. A solidariedade orgânica é a baseada na divisão do
trabalho, na diferença e na complementaridade entre os indivíduos - prevalece
nas sociedades industriais.

A diferenciação social representa a passagem de um tipo de solidariedade para


outro, assim como o desenvolvimento da divisão do trabalho nas sociedades de
solidariedade orgânica. Ela constitui a solução pacífica que estas sociedades
elaboraram progressivamente para fazer face à pressão demográfica prevista
por Malthus. A especialização de funções e o aumento de interdependências
entre os membros, as sociedades modernas aumentaram muito os seus
recursos.

O individualismo, enquanto conceção de que a autonomia e a liberdade do


indivíduo têm prioridade sobre a sociedade, constitui um traço cultural maior
nas sociedades cm que prevalece a solidariedade orgânica. O paradoxo é que,
embora partilhados por todos, não têm nada de original. Para Durkheim, o
individualismo releva não de consciências individuais, mas da consciência
coletiva, embora esta pese fortemente nas existências individuais.

Assim divisão do trabalho e organização racional das tarefas, especialização,


individualismos participam de uma mesma totalidade: a sociedade moderna
caracterizada pela diferenciação. Estes fenómenos constituem o que Durkheim
designa por factos sociais enquanto constrangimentos exteriores que são
impostos aos indivíduos.

Nessa perspetiva, a divisão do trabalho não pode ser explicada pelo tédio,
nem pela busca da felicidade, nem tão pouco pelo desejo de aumentar o
rendimento do trabalho coletivo. Sendo um fenómeno social, a divisão do
trabalho, não pode ser explicada a não ser por outro fenómeno social, e esse

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fenómeno social é uma combinação do volume, da densidade material e da


densidade moral da sociedade (Aron, 2010: 330). A densidade moral é a
intensidade das comunicações e das trocas entre os indivíduos. Quanto mais
relações há entre os indivíduos, mais eles trabalham conjuntamente, mais
entram em relações de comércio ou de competição, e maior é a densidade
(Bottomore e Nisbet, 1980).

5.1.3. Max Weber (1864-1920) e a objetividade em Ciências Sociais:


conceitos fundamentais de Sociologia

Max Weber enfatiza aspetos subjetivos e simbólicos das relações sociais e


delimita o campo de estudo da Sociologia dentro da noção de ação social. As
principais influências intelectuais que se fizeram sentir na obra de Weber foram
alemãs. As primeiras obras de Weber são estudos históricos muito
desenvolvidos e foi a partir do contexto dos problemas específicos expostos,
primeiro pela escola histórica alemã, que Weber alargou o âmbito dos seus
escritos, analisando problemas de natureza teórica mais geral. Assim, elaborou
o seu ponto de vista específico baseando se em correntes de pensamento
derivadas da História, da Jurisprudência, da Economia, da Sociologia e da
Filosofia (Giddens, 1984: 176).

Durante a sua juventude, Weber interessava se por um problema a que havia


de dedicar muita importância em obras posteriores: o estudo da influência do
direito romano na constituição do sistema jurídico da Europa medieval e pós
medieval. As obras da juventude são testemunhos da linha de evolução
intelectual de Weber. Nelas se manifesta já uma das preocupações dominantes
de toda a obra posterior: a análise da natureza da iniciativa capitalista e das
características especificas do capitalismo europeu ocidental. Esse trabalho sobre
a história romana demonstra, ainda, que o autor tinha já nessa altura uma
noção muito clara da natureza complexa das relações entre as estruturas
económicas e outros aspetos da organização social.

A Ética protestante e o espirito capitalista, obra que Weber publicou sob a forma
de dois artigos longos, em 1904 e 1905, constitui a sua primeira tentativa para

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tratar, num plano geral, alguns problemas atrás referidos. O autor constata o
contraste entre as condições de vida e perspetivas de trabalhadores ligados por
contrato e dos jornaleiros, correspondentes em grande medida ao que existe
entre a aceitação de padrões tradicionais de deferência e patronato, por um
lado, e uma atitude de individualismo económico, por outro. Esta última atitude
não constitui, porém, mera consequência das condições económicas dos
jornaleiros, mas antes faz parte de uma ética que contribui para a destruição da
antiga estrutura tradicional de latifúndios (Giddens, 1984: 181).

Weber formula logo no início de A Ética protestante um problema de ordem


estatística: o facto de na Europa moderna "os principais homens de negócios e
proprietários de capital, assim como os operários qualificados de nível mais
elevado e, de modo particular, o pessoal de elevadas qualificações técnicas e
comerciais das empresas modernas, serem na sua grande maioria protestantes"
(Weber, 1983 [1920]: 25). Trata-se de um facto não apenas contemporâneo,
mas sim histórico: é possível demonstrar que alguns dos primeiros centros de
desenvolvimento capitalista, na primeira parte do século XVI, eram de religião
protestante.
Para o autor, o protestantismo adota uma atitude muito rígida em relação ao
prazer e aos divertimentos - fenómeno particularmente pronunciado no
calvinismo, o que permite concluir que é a natureza especifica das crenças
protestantes que explica a relação entre o protestantismo e o racionalismo
económico.

A novidade da interpretação de Weber não consiste no facto de sugerir que há


uma relação entre a Reforma e o capitalismo moderno. Verifica-se, geralmente,
que as pessoas que dedicam a vida a atividades económicas e á obtenção de
lucro são ou indiferentes à religião, ou até hostis a ela, na medida em que as
suas ações visam exclusivamente o mundo "material", enquanto a religião se
interessa apenas pelo mundo "não-material". O protestantismo, porém, longe de
se desinteressar do controlo das atividades quotidianas, exigia aos seus
aderentes uma disciplina muito mais rígida do que o catolicismo, injetando,
assim, um elemento religioso em todos os aspetos da vida do crente A relação
entre o protestantismo e o capitalismo moderno não pode ser integralmente

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explicada considerando o primeiro como um "resultado"' do segundo: mas o


caráter das crenças e dos códigos de comportamento dos protestantes é de
resto muito diferente do que a primeira vista se poderia considerar, como de
molde a estimular a atividade económica (pp. 26-27).

A elucidação desta anomalia exige não só uma análise do conteúdo das crenças
protestantes e urna avaliação da influência das mesmas sobre as ações dos
crentes, mas ainda uma especificação das características do capitalismo
ocidental moderno, como forma de atividade económica. Não só o
protestantismo difere em aspetos importantes da forma religiosa que o
precedeu, como ainda o capitalismo moderno apresenta características básicas
que o distinguem de todas as formas anteriores de atividade capitalista. A
característica dominante da moderna economia capitalista reside pois na
racionalização com base num cálculo rigoroso tendo em vista alcançar êxito
económico.

Max Weber desenvolve a sua metodologia de procura de objetividade de


Ciências Sociais. De seguida, apresenta se um excerto que ilustra a forma como
constrói o seu modelo de análise.

Uma panorâmica da estatística profissional de um pais pluriconfessional costuma


mostrar com frequência significativa um fenómeno por várias vezes vivamente
discutido na imprensa, literatura e congressos católicos da Alemanha: o facto
dos dirigentes das empresas e os detentores de capitais, bem como as camadas
superiores da mão-de-obra qualificada e, mais ainda, o pessoal técnico e
comercial altamente especializado das empresas modernas, serem
predominantemente protestantes. Encontramos este fenómeno expresso nos
números das estatísticas confessionais, não só onde a diversidade das
confissões acompanha uma diferença de nacionalidade e, assim do grau de
desenvolvimento cultural - como acontece no Leste alemão entre alemães e
polacos-" mas também quase sempre onde quer que o desenvolvimento
capitalista, na época da sua grande expansão, tinha as mãos livres para
modificar a estratificação social e determinar a estrutura profissional da
população segundo as suas necessidades - e com tanto maior nitidez quanto

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mais essa liberdade se verificava. A participação relativamente maior, dentro da


população global, dos protestantes na posse do capital, na direção e nos postos
de trabalho superiores nas grandes e modernas empresas industriais e
comerciais deve ser atribuída em parte a causas históricas, que remontam longe
no passado e em que a adesão confessional surge não como causa de
fenómenos económicos, mas sim, até certo ponto, como consequência deles. A
participação nessas funções económicas que pressupõe em parte a posse de
capitai, em parte uma educação dispendiosa e, na maioria dos casos, ambas as
coisas, estando hoje em dia ligada á riqueza por herança ou pelo menos a uma
certa abastança. Um grande número dos territórios do Reich mais ricos e mais
favorecidos pela natureza ou pela sua situação nas rotas comerciais e mais
desenvolvidos economicamente, particularmente a maioria das cidades ricas,
converteram-se no protestantismo no século XVI, sendo ainda hoje visíveis os
benefícios que dai advieram aos protestantes na competição económica. Donde
a seguinte questão histórica: qual a razão desta predisposição particularmente
forte das religiões economicamente mais desenvolvidas para uma revolução
religiosa? A resposta não é tão simples quanto á primeira vista se poderia supor.
Sem dúvida, o abandono do tradicionalismo económico surge como um
momento excecionalmente favorável a tendência para a dúvida face a tradição
religiosa e a rebelião contra as autoridades tradicionais. Mas dever-se-á ter aqui
em conta algo que hoje é frequentemente esquecido; o fato de a Reforma ter
significado não tanto a eliminação da dominação da Igreja sobre a vida, como,
sobretudo, a substituição de uma forma anterior por uma outra, A substituição
de uma dominação altamente acomodada, que na altura praticamente não se
fazia sentir e era mutas vezes quase apenas formal, por uma regulamentação
pesada e severa de toda a vida, que invadia numa medida quase inimaginável
todas as esferas da vida privada e pública. A dominação da igreja católica -
«punindo os hereges, mas indulgente para com os pescadores», outrora anda
mais do que hoje - exerce-se no presente sobre povos de fisionomia económica
moderna, assim como se exerceu sobre as regiões mais ricas e economicamente
mais desenvolvidas que a terra conhecia no dealbar do século XV. (Weber.
1983 [1920]: 25-26).

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Para o autor, a posse de capital e de presença nos lugares de chefia por parte
de protestantes pode explicar se à sua riqueza geral superior à meda. portanto,
de certa forma, historicamente transmitida mas também por razões de ordem
de confissão religiosa. O autor remete para uma relação de causalidade entre as
peculiaridades espirituais inculcadas, que são determinantes para a escolha da
profissão e a carreira profissional.
no titulo deste estudo Weber usa a expressão "espírito do capitalismo" no
sentido de designar um “individuo histórico", ou seja, significa um complexo de
relações na realidade histórica congregadas num todo conceptual, sob o ponto
de vista do seu significado cultural. Este conceito histórico é um fenómeno que
tem um carácter individual antes de ser composto gradualmente a partir das
suas partes constitutivas decorrentes da realidade historica. Reforça o autor que
neste, tal como para qualquer fenómeno histórico, outros pontos de vista fariam
aparecer outros traços como essenciais, daí decorre que não se pode entender
por "espirito" do capitalismo apenas o que é significativo para esta exposição.

A ordem económica capitalista dos nossos dias é um universo de grandes


proporções, que os indivíduos encontram ao nascer, e que constitui para cada
um deles, pelo menos enquanto individuo um contexto que não se pode
modificar e onde se terá de viver. Este cosmos impõe ao individuo, na medida
em que se encontra inserido nas relações de mercado, as normas da sua ação
económica. O fabricante que desrespeite reiteradamente estas normas é
economicamente eliminado, tão infalivelmente como o trabalhador que a elas
não possa adaptar -se ou que não o quera fazer é posto na rua, passando à
situação de desempregado.
O capitalismo, que conseguiu nos nossos dias o domínio da vida económica,
educa e cria assim, pela seleção económica, os sujeitos económicos -
empresários e trabalhadores - de que necessita. Mas podemos aqui apreender
os limites do conceito de «seleção» como meio de explicação dos fenómenos
históricos. Para que os tipos de vida e de conceção profissional, adaptados às
características do capitalismo, pudessem ser «selecionados», ou seja, pudessem
sobrepor-se a outros, tiveram de começar por nascer, e isto não apenas nos
indivíduos isolados, mas como conceção, ao nível de grupos humanos. É este
nascimento, assim, que tem de ser verdadeiramente explicado. Falaremos mais

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adiante das conceções ingénuas do materialismo histórico segundo as quais as


«ideias» apareceriam como «reflexo» ou «superstrutura» das situações
económicas. [...] (Weber. 1983 [1920]: 37).

O principal adversário que o "espírito'' do capitalismo teve de enfrentar foi o


tradicionalismo, por exemplo, com a alteração do tipo de pagamento no caso
dos trabalhadores na agricultura, o "pagar à peça", aumentando a possibilidade
de rendimento mas num prazo determinado. Há também que ter em conta que
para o desenvolvimento do capitalismo é necessário existir um excedente
populacional no mercado de trabalho que possa ser contratado a baixo preço,
sendo que um "exército de reserva" numeroso favorece a sua expansão
quantitativa, mas em outros casos, pode constituir um obstáculo,
nomeadamente no que se refere á transição para formas de empresa que
recorram ao trabalho intensivo. Apesar de, por vezes, se estar perante formas
de organização capitalista (sob o ponto de vista comercial e contabilístico), se se
olhar para o espirito que enformava o empresário, muitas das vezes, se estava
perante urna economia tradicional, na medida em que se mantinha o modo de
vida tradicional, o montante tradicional do lucro, a quantidade tradicional de
trabalho, o modo tradicional de condução de negócios, as relações com os
trabalhadores e com os círculos de clientes, essencialmente, tradicionais, bem
como a obtenção de clientes e de mercados, dominavam a atividade empresarial
e estavam subjacentes mas também, diga-se, ao "ethos" deste tipo de
empresários (id., ibid.: 45¬46).

As transformações empresariais acontecem a partir do momento em que há


modificação da forma de organização e da forma de produção, por exemplo, é o
caso da passagem para a empresa fechada, a adoção do tear mecânico, etc. o
que, muitas vezes, não resulta de mais dinheiro mas da aplicação de
conhecimentos e de um novo "espírito" do capitalismo moderno. A ordem
económica capitalista tem necessidade da "vocação" de ganhar dinheiro: trata
se de um tipo de atitude para com os bens materiais que é tão adequada àquela
estrutura c está tão intimamente ligada às condições de sucesso na luta
económica peia existência (id., ibid.: 48).

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Apontou se como fundamento da economia moderna o racionalismo económico,


com o aumento da produtividade do trabalho, que eliminou a submissão deste
aos limites orgânicos naturais da pessoa humana, através da organização do
processo de racionalização nos domínios técnico e económico, que determina,
igualmente, um aspeto importante do ideal de vida da sociedade burguesa
moderna: o trabalho ao serviço de uma organização racional do fornecimento á
humanidade de bens materiais surgiu também sempre aos representantes do
espírito do capitalismo como um dos objetivos orientadores da sua atividade (id,
ibid.: 50).

Assim, o desenvolvimento do espírito do capitalismo seria mais fácil de


compreender enquanto fenómeno parcial do desenvolvimento global do
racionalismo, devendo ser inferido de posições de princípio sobre os problemas
fundamentais da vida (id, ibid: 25 -52).
tal como a maioria dos seus contemporâneos alemães, Weber rejeitava a
conceção de Comte de que as Ciências se ordenariam por uma hierarquia
empírica e lógica, na qual cada Ciência dependeria da emergência histórica.
Nessa forma de ortodoxia positivista, a Ciência Social é considerada como uma
simples aplicação das pressuposições e métodos das Ciências Naturais ao estudo
de seres humanos {Giddens, 1984: 191).

Weber reconhece que as Ciências Sociais estudam fenómenos "espirituais" ou


"ideais" que constituem características especificamente humanas que não
existem no objeto temático das Ciências Naturais. Essa diferenciação necessária
entre "sujeito" e "objeto" não implica o sacrifício da intuição pela análise causal.

As Ciências Sociais, diz Weber, radicam num interesse pelos problemas práticos,
e no desejo de pôr em prática mudanças sociais desejáveis. Foi no interior desse
contexto que se manifestou a vontade de criação de disciplinas interessadas na
formulação de proposições "objetivas" relativas á realidade humana social e
cultural. Essa evolução não se fez acompanhar, porém, de uma compreensão
clara do significado da descontinuidade lógica essencial, que existe entre as
proposições factuais ou analíticas, por uma lado, e as proposições normativas
relativas não ao que "é" mas antes ao que "devia ser", por outro. A maioria das

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formas de pensamento social tentaram estabelecer uma aproximação entre


proposições factuais e normativas. O primeiro afirma que o desejável pode ser
identificado com o que "existe de forma imutável": as leis fixas que regem o
funcionamento das instituições sociais e económicas. O segundo afirma que a
assimilação do desejável e do real se faz ao nível dos princípios gerais do
desenvolvimento evolutivo: não no que existe de forma imutável, mas antes no
que surge de forma inevitável.

Ambas essas conceções devem porém ser rejeitadas. Todos os juízos relativos a
decisões quanto á adoção de determinado modo de ação como "algo que deve
ser feito" podem ser decompostos em "meios" adaptados para alcançar
determinados "fins" gerais ou particulares. "Desejamos algo de concreto, ou 'por
si mesmo', ou como meio de alcançar outra coisa anda mais desejável"
(Giddens, 1984: 193). A análise científica permite determinar até que ponto um
dado conjunto de meios são, ou não, adequado para atingir um dado fim. Mas
não pode haver conhecimento científico que demonstre logicamente que um
homem deva considerar determinado fim como um valor.

O cientista social poderá ainda demonstrar quais as vantagens que poderá haver
em utilizar determinado meio em comparação com outro, quando se tem em
vista alcançar um certo objetivo, e também quais os custos implicados. Esses
custos na escolha de um determinado meio para alcançar um
determinado fim podem ser de duas espécies:
1) a realização parcial e não completa do fim em vista, ou 2) o aparecimento de
consequências adicionais que afetam de forma deletéria outros fins que o
indivíduo possa ter também em vista. A análise empírica, efetuada de forma
oblíqua, permite ainda avaliar o fim em si, determinando se é ou não possível
realiza- lo dado o contexto das circunstâncias históricas particulares em que se
procura alcançar o fim em causa.

Outro tema trabalhado por Weber é a separação lógica absoluta entre os juízos
de facto e os juízos de valor - ou seja, o facto de a Ciência não poder validar
ideais culturais - deve ser diferenciado do sentido, segundo o qual a própria
existência pressupõe a existência de valores que definem a análise científica
como uma atividade "desejável" ou "válida" em si. A Ciência baseia se também

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em ideias que, tal como os outros valores, não podem ser cientificamente
comprovados. O principal objetivo das Ciências Sociais é pois, segundo Weber; o
de "compreender a originalidade característica da realidade em que vivemos" Ou
seja, o principal objetivo das Ciências Sociais consiste na tentativa de
compreensão das razões que fazem com que os fenómenos históricos
particulares sejam aquilo que são. Isto exige, porém, que se opere uma
abstração a partir da complexidade infinita da realidade empírica. A realidade
consiste numa profusão infinitamente divisível. Ainda que a concentração seja
colocada num único elemento dessa realidade, verificar se á que esse elemento
partilha dessa infinidade. Toda a forma de análise científica, todo o corpo de
conhecimentos científicos, pertença ele ao domínio das Ciências Naturais ou
Sociais, implica uma seleção operada a partir da infinidade da realidade
(Giddens, 1984: 197).

As Ciências Sociais propõem-se a estudar "por um lado, as relações e o


significado cultural dos acontecimentos individuais nas manifestações
contemporâneas e, por outro lado, as razões por que esses acontecimentos são
historicamente 'assim' c não de 'outra maneira". Segundo Weber, não é possível
a limitação da afirmação de que as Ciências Sociais devem determinar relações
regulares ou "leis" semelhantes às Ciências Naturais. A formulação de leis
implica uma determinada ordem de abstração da complexidade da realidade.
Este critério não pode, porém, ser aplicado na análise do tipo de problemas que
interessam nas Ciências Sociais.

A diferença entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais não é


absoluta do ponto de vista da diferenciação entre o conhecimento nomotético e
o conhecimento ideográfico. Se bem que as ciências Naturais se dediquem,
principalmente, à formulação de princípios gerais, procuram também, por vezes,
o conhecimento do particular. Não se pode tão pouco considerar que a
"explicação" causal só é possível mediante a classificação dos acontecimentos
em leis gerais. Um acontecimento que é "acidentar do ponto de vista de uma
dada lei pode, no entanto, ser explicado em função dos seus antecedentes
causais. Porém, não é lícito considerar-se que uma única causa, ou uma série
restrita de caibas podem fornecer uma explicação "completa" de um indivíduo

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histórico. Ao se decidir quando se há-de dar por terminada uma dada


investigação, ou considerar completo o conhecimento de um dado fenómeno,
está se a fazer uma seleção, tal como a que se fez já para decidir por onde se
deveria começar.

O facto de a seleção e de a identificação dos problemas relevantes serem feitas


nas Ciências Sociais de urra forma "subjetiva" - isto é, escolhendo problemas
com um significado cultural bem definido - não implica que não se possa
proceder a uma análise causal objetivamente válida. Pelo contrário, a explicação
causal pode ser comprovada por outras pessoas, não sendo inicialmente "válida"
para um tipo de pessoa. Mas tanto a escolha dos problemas a investigar, como o
grau de penetração na rede intrincada da causalidade que o investigador
considere necessário, são determinados em suposições de valor. Ainda segundo
Weber, os conceitos utilizados nas Ciências Sociais não podem ser diretamente
derivados da realidade, exigindo a mediação das pressuposições de valor, uma
vez que a determinação dos problemas considerados como dignos de interesse
se baseia nessas pressuposições. Assim, a interpretação e a explicação de uma
configuração histórica exigem a construção de conceitos especificamente
elaborados com esse propósito e que, tal como objetivos de análise, não reflitam
propriedades universalmente "essenciais" da realidade (Giddens, 1984: 201).

Um tipo ideal é elaborado através da abstração e da combinação de um


número indefinido de elementos que, se bem que sejam todos eles extraídos da
realidade, raramente ou nunca nos surgem sob essa forma específica. Assim, as
características da "ética calvinista" que Weber analisa cm A ética protestante,
são extraídas dos escritos de várias figuras históricas, e os componentes das
doutrinas calvinistas a que Weber atribui especial relevo são selecionados em
função da sua importância na constituição do espírito capitalista. Um tipo ideal é
um tipo puro num sentido lógico.

A criação de tipos ideais não constitui de modo algum um fim em si; a utilidade
de um dado tipo ideal só pode ser avaliada em relação a um problema ou um
tipo concreto de problemas, e o único propósito que orienta a sua elaboração é o
de facilitar a análise de questões empíricas.

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Weber discute em pormenor na sua análise a elaboração de tipos ideais que


possam contribuir para a elucidação de certas configurações históricas
específicas, uma vez que é esse o caso em que se pode estabelecer uma
diferenciação mais clara entre os tipos descritivos e os tipos ideais. A transição
dos tipos descritivos para os tipos ideais faz-se quando se passa da classificação
descritiva dos fenómenos, para a análise explicativa ou teórica desses mesmos
fenómenos.

A noção de "troca" consiste num conceito descritivo, na medida em que se limita


a observar que um número indefinido de ações humanas pode ser classificado
como transações de troca. Se se tentar, porém, tornar essa noção num
elemento de teoria económica da utilidade marginal, está-se a elaborar um tipo
ideal de "troca", baseado numa construção puramente racional.

Um dos conceitos desenvolvidos por Max Weber é o conceito de Sociologia


interpretativa ou compreensiva, sendo a metodologia que aplica nas suas
análises. Ele rejeita a opinião de que a generalização seria impossível nas
Ciências Sociais, considerando, porém, a formulação de princípios gerais como
um meio e não como um fim (id. ibidem: 205). A Sociologia, diz Weber,
interessa se pela formulação de princípios gerais e conceitos de tipo genérico,
relacionados com a ação social humana; a História, pelo contrário, "orienta se
no sentido da análise e da explicação causal de ações, estruturas e
personalidades especificas e culturalmente significativas" (idem ibidem). No seu
ensaio sobre a "objetividade", Weber diz que nas Ciências Sociais o interesse
são os fenómenos cuja compreensão empática constitui tarefa de tipo
especificamente diferente daquelas que os esquemas das Ciências Naturais
exatas podem e se propõe executar. Uma das principais tarefas da análise dos
fenómenos sociais consiste cm "tornar inteligível" a base subjetiva em que essa
análise assenta; e um dos temas principais do ensaio consiste na defesa do
ponto de vista de que é possível fazer uma análise "objetiva" dos fenómenos
históricos e sociais, apesar do facto de a atividade humana ser de carácter
"subjetivo". Por outro lado, essa subjetividade não pode ser ignorada, pelo que
as Ciências Sociais têm de ser consideradas como distintas das Ciências

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Naturais. Oeste modo, a Sociologia "será a ciência que se interessa pela


compreensão e interpretação das ações sociais e portanto pela explicação causal
do seu curso e consequências" (Weber em Giddens, 1984: 206 207).

Assim, a ação ou conduta social é aquela que implica um significado subjetivo


que se refere a outro individuo ou grupo. O significado dessa ação pode ser
analisado sob dois pontos de vista: quer em função do significado concreto que
a ação tem para um dado agente individual, quer em função de um tipo ideal de
significado subjetivo que o seu hipotético agente lhe atribua. Não há pois, na
prática, uma diferença clara entre a ação assim definida e o comportamento.
Weber defende o ponto de vista de que o intuicionismo não é a única doutrina
que permite estudar essa conduta subjetiva; pelo contrário, a Sociologia
interpretativa pode e deve basear-se em técnicas fixas de interpretação do
significado, que podem ser comprovadas de acordo com os cânones
convencionais do método científico (id, ibid.: 207).

A análise científica da ação social, na medida em que pretenda ultrapassar a


mera descrição, terá de recorrer á elaboração de tipos ideais e, dadas as
dificuldades que se põem á compreensão de muitas formas de ação orientada
por valores ou por emoções subjetivas, será preferível elaborar tipos
racionais. Após se ter especificado no tipo ideal aquilo que se considera como
ação racional, os desvios poderão ser examinados em termos da influência
exercida por elementos irracionais.

Weber distingue dois tipos básicos de apreensão interpretativa do significado,


cada um dos quais pode ser subdividido conforme os casos distintos da
compreensão de ações racionais ou emotivas. O primeiro tipo é a "compreensão
direta. Neste caso, compreende se o significado de uma ação através da
observação direta: a subdivisão racional da compreensão direta pode ser
exemplificada pelo caso atrás citado da compreensão de uma proposição
matemática. Compreende se imediatamente o significado da soma 2 +2=4.

O segundo tipo de compreensão, a "compreensão explanatoria difere do


primeiro na medida em que implica a intervenção de um motivo que estabelece

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a ligação entre a atividade observada e o seu significado para o agente. Na


compreensão explanatória, a ação em causa é integrada numa sequência de
motivação inteligível e a compreensão dessa sequência equivale á explicação do
comportamento tal como este se manifesta. Numa ciência que se propõe
estudar o significado subjetivo da ação, a explicação desse significado exige a
apreensão de um feixe de sentidos no qual se integra a trajetória da ação
inteligível a interpretar.

A compreensão da "motivação'' implica uma relacionação entre a conduta


específica em causa e um padrão normativo mais lato, que rege a conduta do
indivíduo. A interpretação de uma dada trajetória da ação é subjetivamente
adequada (adequada "ao nível do significado") quando a motivação que lhe é
atribuída concorda com os padrões normativos reconhecidos ou habituais. Ou
seja, é necessário demonstrar que a ação em causa é significativa na medida
em que "faz sentido" em termos de normas aceites. Isto não basta, porém, para
explicar de modo viável essa ação especifica. Esse ponto de vista está errado,
porque não há urna relação simples e direta entre os "feixes de significados" os
motivos e a conduta. Indivíduos diferentes podem executar ações semelhantes
levadas por motivos muito diversos, e, por outro lado, motivos semelhantes
podem estar ligados a diferentes formas concretas de comportamento.

Por todas estas razões, a adequação "causal" exige que seja possível
"determinar" que há uma possibilidade, que no caso ideal e raro poderá ser
traduzida em números, mas que é sempre suscetível de um cálculo, de que um
dado acontecimento observável (exterior ou subjetivo) será seguido ou
acompanhado por um outro "acontecimento".

5.1.3.1. As relações sociais e a orientação da conduta social

A ação social inclui todas as condutas humanas significativamente "orientadas


para o comportamento previsível passado, presente ou futuro de outras
pessoas". A relação social existe quando há reciprocidade por parte de dois ou
mais indivíduos, cada um dos quais relaciona a sua ação aos atos (ou atos
previsíveis) do outro. Muitas das relações de que se compõe a vida social são de

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caráter transitório, integrando-se num processo constante de formação e


dissolução. A existência de uma relação social também não pressupõe uma
cooperação entre os que nela estão implicados. Como Weber observa, o conflito
é uma das características de todas as relações, até das mais permanentes
(Giddens, 1984: 212).

Nem todos os tipos de contacto entre os indivíduos constituem, segundo Weber,


urna relação social. Weber diferencia quatro tipos de orientação da conduta
social. Na conduta "racional nos propósitos" o indivíduo calcula racionalmente os
resultados prováveis de um determinado ato em termos do cálculo de meios
adequados a um dado fim. Quando se pretende alcançar um determinado
objetivo, é posto, geralmente, uma escolha de meios alternativos para alcançar
esse fim. O indivíduo que tem de fazer essa escolha avalia a eficiência relativa
de cada um desses meios e as consequências da utilização do mesmo em
relação à prossecução de outros fins que possa propor-se também.

A ação "racional de valor", pelo contrário, é orientada por um ideal dominante,


desprezando todas as outras considerações. Trata se de um tipo de ação
racional, uma vez que implica a definição de objetivos coerentes que orientam a
atividade do indivíduo. Todas as ações que se subordinam exclusivamente a
ideias dominantes de dever honra ou dedicação a uma "causa" aproximam se
deste tipo. A principal diferença entre a ação de valor e o terceiro tipo, que é a
ação "afetiva", consiste em que na primeira pressupõe que o indivíduo tenha
adotado um ideal bem definido que domina toda a sua atividade, enquanto no
segundo caso essa característica não se verifica.

A ação "afetiva" é a ação executada sob a influência da emoção, situando se na


fronteira da conduta significativa com conduta não significativa. Partilha com a
ação racional de valor a característica do significado da ação não se situar na
instrumentalidade dos meios para alcançar determinados fins, como acontece na
conduta racional nos propósitos, mas na execução do ato pelo seu próprio valor.

O quarto tipo de orientação da ação, a ação "tradicional", é executado sob


influência do costume e do hábito. São deste tipo a grande maioria das ações

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quotidianas a que as pessoas se habituaram. O significado deste tipo de ação


deriva de ideias ou símbolos que não têm a forma coerente e definida dos que
orientam a conduta racional de valor. Na medida em que os valores tradicionais
se tornarem racionalizados, a ação tradicional funde se na ação racional de
valor.

Quando define uma taxonomia conceptual dos principais tipos de relação social e
de outras formas mais gerais de organização social, Weber fá lo, pois, em
termos de probabilidade. Toda a relação social de caráter durável pressupõe
uniformidades de conduta que, a nível básico, consistem naquilo que Weber
designa pelo nome de "uso" e de "costume". A uniformidade da ação social ê um
uso, na metida em que a probabilidade da sua existência no interior de um
grupo se baseia unicamente na prática da mesma. Um costume é apenas um
uso de longa data. Um uso ou costume é toda a forma de conduta "usual" que,
se bem que não seja expressamente aprovada ou desaprovada pelos outros, é
habitualmente adotada por um individuo ou um certo número de indivíduos. A
conformidade com o uso não é imposta por meio de qualquer tipo de sanção,
mas é antes uma questão de acordo voluntário da parte do agente.

As relações sociais mais estáveis são aquelas em que as atitudes subjetivas dos
indivíduos são orientadas pela crença numa ordem legítima (Giddens, 1984:
216).

A ação pode ser orientada pela crença numa ordem legítima sem que tal
implique a obediência ás regras impostas por essa ordem. Por exemplo, o
criminoso, embora violando as leis, adapta a sua conduta à existência dessas
leis, que reconhece através da adoção de metidas tendentes a levar a cabo com
êxito a sua atividade criminal.

Não existe uma fronteira empírica bem precisa entre o uso e o costume c aquilo
a que Weber dá o nome de "convenção". A conformidade não depende, neste
caso, da vontade do indivíduo. Se, por exemplo, um membro de um grupo que
goza de um prestígio social elevado desobedecer às convenções que regem as
boas maneiras, será provavelmente ridicularizado e votado ao ostracismo pelo

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resto do grupo. O recurso a essas sanções constitui geralmente um meio muito


poderoso de assegurar o respeito pela ordem estabelecida. A "lei" existe quando
uma convenção é apoiada, não apenas peia aplicação de sanções informais
difusas, mas também por um indivíduo ou, mais frequentemente, um grupo que
tem a capacidade e o dever legítimos de aplicar sanções aos transgressores. Em
todos os casos em que as leis se limitam a sancionar uma conduta que antes era
meramente "usual" chega-se à conclusão de que esse facto não fez com que o
grau de conformidade á prescrição se tomasse maior do que aquilo que já era.
Contudo, o uso e costume dão frequentemente origem a regras que se tomam
leis. O contrário acontece também por vezes, se bem que com muito menos
frequência: a introdução de uma nova lei pode dar origem a novas modalidades
da conduta habitual.

Weber define o "poder" como a probabilidade por parte de um dado agente de


conseguir realizar os seus próprios objetivos, mesmo que para tal tenha de
entrar em oposição a outros com os quais mantém uma relação social. Esta
definição é muito lata: neste sentido, toda a relação social é, em certa medida e
em certas circunstâncias, uma relação de poder. O conceito de "dominação" é
mais específico: refere-se apenas aos casos de exercício de poder em que um
agente obedece a uma ordem específica dada por outrem. A aceitação da
dominação pode basear se em motivos muito diferentes, que vão do hábito á
promoção cínica dos interesses próprios. Não há, porém, nenhum sistema de
dominação que se baseie unicamente, quer na habituação automática, quer no
apelo ao interesse próprio: o principal sustentáculo da dominação é o carácter
legítimo de que a subordinação se reveste aos olhos dos próprios subordinados.

Weber distingue três tipos ideais de legitimidade como base da relação de


domínio: a tradicional, a carismática e a legal. A autoridade tradicional
baseia se na crença na "santidade das regras e poderes há muito estabelecidos".
Nos tipos mais elementares de dominação tradicional, os governantes não se
apoiam para o exercício da sua autoridade em qualquer corpo especializado de
funcionários administrativos.

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Nas organizações tradicionais, as tarefas de cada um dos membros da


administração são mal definidas, e os privilégios e os deveres encontram-se
sujeitos a modificações, de acordo com as inclinações do governante: o
recrutamento é feito na base da filiação pessoal, e não há processo racional
para "fazer leis". Toda a inovação nas regras administrativas tem de ser
apresentada como uma redescoberta de verdades "dadas".

Na autoridade de tipo legal, o indivíduo que a detém fá-lo em nome de regras


impessoais que não constituem resíduos de tradição, mas que foram
conscientemente instituídas num contexto de racionalidade quer de propósitos,
quer de valor. Weber apresenta como exemplo desta situação o caso do tipo
puro da organização burocrática, cujo modelo de organização apenas se
encontra no capitalismo moderno.

O progresso da burocratização do mundo moderno relaciona-se diretamente


com a expansão da divisão do trabalho nas várias esferas da vida social e Weber
conclui que o estado capitalista moderno depende totalmente da organização
burocrática para a continuação da sua existência.

Outra forma de dominação de que fala Weber é o tipo puro de dominação


carismática. Um indivíduo carismático é aquele a quem os outros atribuem
capacidades invulgares, geralmente de tipo sobrenatural, que o distinguem do
comum dos mortais. O facto de esse individuo ser ou não dotado de
características não é revelador, o que interessa é o facto de os outros lhas
atribuírem. A dominação carismática pode manifestar-se nos mais variados
contextos sociais e históricos, pelo que as figuras carismáticas tanto podem ser
chefes políticos ou profetas religiosos, cujas ações influenciaram o curso da
evolução de civilizações inteiras. Nestes casos há o reconhecimento da
legitimidade do chefe e nestas situações o sucessor não é eleito: é designado
por ter qualificações carismáticas adequadas ao exercício da autoridade.

5.1.3.2. A influência das relações de mercado: classes e grupos sociais

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Na sua análise de noções de "classe", de "grupo sociar e de "partido" Weber co


ris dera as corno as "três" dimensões da estratificação, cada uma das quais seria
conceptualmente independente das outras, especificando, porém, que, a nível
empírico, cada uma delas pode influenciar casualmente as outras.

A conceção de classe de Weber assenta na análise mais geral da ação


económica num mercado. O mercado diferencia-se da troca recíproca direta, na
medida em que implica uma ação económica especulativa, que tem em vista a
obtenção de lucros através de um comércio competitivo. As "classes" só surgem
após terem constituído esse mercado, que pressupõe a constituição de uma
economia monetária.
Weber identifica no capitalismo as seguintes classes sociais distintas: a classe de
trabalhadores manuais. A existência de aptidões diferenciadas é um fator que
contribui para a desunião dos trabalhadores; a pequena burguesia; os
empregados administrativos que não possuem propriedade; os técnicos e os
intelectuais; e os grupos empresariais e de proprietários, que são os grupos
dominantes e que, geralmente, tem o acesso privilegiado á instrução.

Weber distingue a situação de classe de "estado social". O estatuto social de


um indivíduo é função do juízo que os outros fazem dele ou da sua posição
social, atribuindo lhe assim um determinado grau (positivo ou negativo) de
prestígio ou consideração. Um grupo social é constituído por um certo número
de indivíduos que partilham do mesmo estatuto social. Os grupos sociais, ao
contrário do que acontece em relação ás classes, têm quase sempre consciência
da sua posição comum.

Os grupos sociais tomam, geralmente, patente a sua situação privilegiada,


adotando um estilo de vida próprio e pondo restrições ao contacto com os outros
grupos. Estas restrições referem se, frequentemente, ao casamento, implicando,
por vezes, uma endogamia severa.
A casta é o exemplo, por excelência, do grupo social, no sentido de Weber.

5.2. OUTROS MODELOS EXPLICATIVOS: CULTURA E TRAÇOS CULTURAIS


E GRUPOS SOCIAIS E FORMAS DE SOCIABILIDADE

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5.2.1. Cultura e traços culturais "

O conceito de cultura ê inerente ã reflexão das Ciências Sociais. É um conceito


adotado não só em Sociologia e em Antropologia, mas também noutras
disciplinas como a Psicologia e, sobretudo, a Psicologia Social, a Psicanálise, a
Linguística, a História, a Economia, a Filosofia, etc.

de acordo com o Dicionário das Ciências Sociais, a palavra cultura deriva do


latim cultura "cuidados com os vegetais e, posteriormente, cuidados com
espírito." Em Antropologia ou em Sociologia, adota se o sentido figurado de
cultura: "Trata-se de tudo o que, numa dada sociedade, é adquirido, apreendido
e pode ser transmitido." (Birou, 1973).

Refere se, então, á oposição conceitual entre "natureza" e "cultura". Melville J.


Herkovits (na sua obra de 1948, Antropologia Cultural, Man and His works)
define a cultura como "a parte do ambiente feita pelo homem" ou seja tudo o
que o homem implantou sobre a natureza (Barata, 2004: 112).

Gustav K. Klemm é o primeiro a utilizar o conceito em Etnologia na sua obra


com o sentido de "formação e polimento, civilidade, educação"

Mas, a primeira definição etnológica de cultura deve se ao antropólogo britânico


Edward Burnett Tylor (1832-1917) no seu livro Primitive Culture (1871), onde
define: "Cultura ou civilização... é o todo complexo que inclui o conhecimento, a
crença, a arte, a lei, a moral, o costume e quaisquer outras capacidades e
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade." (idem).
Nesta obra, o antropólogo inglês tenta conciliar, numa mesma explicação, a
evolução da cultura e a sua universalidade, com uma dimensão coletiva,
rompendo com as definições restritivas e individualistas de cultura, e sendo algo
de adquirido, independentemente da hereditariedade biológica (Cuche, 1999:
37). O tipo de estudo adotado é o método comparativo.

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Mais tarde, Giddens propõe uma definição da cultura, reforçando o poder das
relações sociais: *o conjunto de crenças, costumes e valores que se manifestam
nas inter relações entre os indivíduos e o conjunto de uma dada sociedade"
(Giddens, 1997: 46 47). Alguns autores introduziram o conceito de cultura
norma. Para Bauman (2000), a cultura é encarada com constrangimento
normativo: a cultura é um conjunto de crenças, valores e costumes que, sendo
interiorizados, na forma moral, determinam a conduta social. Neste contexto, a
cultura pressupõe uma unidade social, uma homogeneidade (que pode incluir
desvios e disfuncional idades sociais, logo, controlo e sanção dos indivíduos) a
volta de uma norma de "boa conduta" (Caria, 2008: 755).

Em suma, todo o comportamento é orientado para a cultura. Qualquer


manifestação de hábitos ou costumes da vida do quotidiano, como a
gastronomia, a maneira de vestir; as artes e os ofícios, entre outros, são
sentidos corno manifestações culturas. Mesmo as funções humanas que
correspondem a necessidades fisiológicas, como a fonte, o sono, o desejo
sexual, etc., são informadas pela cultura: as sociedades não dão exatamente as
mesmas respostas a essas necessidades (Cuche, 1999). Mareei Mauss (1993),
num estudo sobre as "técnicas do corpo", afirma que a forma de se sentar,
deitar ou andar varia de cultura para cultura.

O traço cultural é uma marca distintiva e possível de se definir dentro de uma


cultura. Formando-se como um elemento visível, cie fornece una identidade ao
grupo. O conceito de subcultura é também usado para descrever as frações de
uma mesma sociedade que podem ter em comum uma visão específica do
mundo suficientemente distinta (Barata, 2004).

5.2.1.1. O etnocentrismo como obstáculo ao conhecimento científico

Como foi já oportuno referir no segundo capítulo, o etnocentrismo consiste em


comparar e julgar una cultura em função das próprias normas e valores de outra
cultura. Apoia-se na tese evolucionista e defende que a história cultural da
humanidade teria evoluído das sociedades primitivas para a sociedade ocidental.
Esta tese é contestada por estabelecer uma hierarquia entre as culturas, pois a

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comparação dos costumes e usos do grupo a que se pertence pode provocar a


depreciação e um julgamento de modo pejorativo de outras culturas.

A palavra etnocentrismo, de origem grega (raça, povo, nação), é usada pelo


sociólogo americano William G. Summer, em 1906, no seu livro Folkways, para
definir una "visão das coisas segundo a qual o nosso próprio grupo é o centro de
todas as coisas e todos os outros grupos são metidos e avaliados em relação a
ele [...]. Cada grupo alimenta o seu próprio orgulho e vaidade; considera-se
superior, exalta as suas próprias divindades e olha com desprezo as
estrangeiras. Cada grupo pensa que os seus próprios costumes {Folkways) são
os únicos válidos e se ele observa que outros grupos têm outros costumes,
encara-os com desdém." (Simon, 1993: 57 em Cuche, 1999: 46). O
etnocentrismo leva por conseguinte a "estereótipos, a imagens a priori, a
preconceitos sobre os outros povos ou raças, á xenofobia." (Birou, 1973:153).
Pode tomar formas extremas de intolerância cultural e ideológica e suscitar
conflitos entre as sociedades. O fenómeno de etnocentrismo revela se,
frequentemente, em sociedades onde coexistem numerosos grupos diferentes
"Desta maneira, numa mesma civilização geral manifestam-se preconceitos de
classe, de profissão, de raça, de religião, que se exprimem em atitudes
particularistas bastante próximas do etnocentrismo." (idem ibidem).

Em oposição total á mentalidade etnocêntrica, a Antropologia Cultural


defende a deia de relatividade das culturas e recomenda, para evitar
qualquer atitude ou comportamento etnocêntrico na pesquisa, a adoção do
método de observação participante.

Nota-se que em 1560, nos seus Ensaios, Michel de Montaigne (1533-1592)


coloca em questão a noção de diferença, forneceria uma primeira reflexão
escrita sobre a ideia de etnocentrismo:

[...] não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que Azem daqueles povos; [...]
na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica na sua terra.
Julgamos os outros pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos.

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Neste, a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais


perfeito. (Montaigne em Patrícia e Ewald, 2007).

A crítica do etnocentrismo permite desenvolver a ideia do relativismo cultural,


que rejeita o conceito de classes de cultura e de hierarquização entre culturas.

5.2.1.2. O relativismo cultural e a análise estrutural da cultura

Com o antropólogo Franz Boas, nasce o movimento do relativismo cultural,


encarando a cultura numa perspetiva histórica. Franz Boas é também um dos
primeiros cientistas sociais a rejeitar o conceito de "raça" na explicação dos
comportamentos humanos e a criticar o método comparativo em Antropologia.
Para ele, o relativismo cultural é, antes de tudo, um princípio metodológico. O
estudo de uma cultura particular é concebido sem à priori, sem comparação a
outras culturas. Recomenda-se prudência e paciência na pesquisa.

Também, preocupado com o rigor científico, rejeita qualquer generalização que


não possa ser demonstrada empiricamente. Funda, assim, o método indutivo e
intensivo de campo. Defende a observação direta, critica o recurso a
informantes, entrevistas formais, preferindo as conversas "espontâneas",
encoraja o conhecimento da língua em uso na cultura em estudo, incentiva
também a permanência por longo tempo junto da população cuja cultura é
objeto de estudo.

Franz Boas defende, no relativismo cultural, uma conceção relativista da cultura,


sendo que cada cultura é única, específica e também digna, merecendo o
respeito e a tolerância em relação a outras culturas. Os factos culturais são não
apenas descritos como compreendidos juntamente a um conjunto ao qual eles
estão ligados (Cuche, 1999). Mais tarde, a Antropologia Estrutural desenvolvida
por Claude Lévi-Strauss inspirar se ia na corrente de Franz Boas.

Ainda ligado a este movimento, também apoiando-se no método comparativo,


surge o movimento da Cultura e Personalidade, com Ruth Benedict e Margaret
Mead, duas antropólogas americanas. Este movimento encara a cultura na sua

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relação com a personalidade; é também chamado de Culturalismo e preocupa-


se com a integração social e a defesa da igualdade transcultural, apondo se em
crenças racistas. Centra-se sobre as relações entre os indivíduos e suas
culturas, procurando perceber como os seres humanos incorporam e vivem as
suas culturas.

Ruth Benedict, que se dedica á definição dos "tipos culturais" caracteriza as


diferentes culturas "por um certo ''tipo" ou estilo", isto é, o seu pattern (Patterns
of Culture, 1934). "Uma cultura não é uma simples justaposição de traços
culturais, mas uma maneira coerente de combiná-los "(id, ibid.: 77).

Por seu lado, na mesma época, Margaret Mead (1901-1978) opta por orientar o
seu estudo sobre as diferenças dos géneros, isto é, sobre a maneira como um
individuo recebe a sua cultura e as consequências que isto pode provocar na
formação da sua personalidade. Interessa se sobre a forma como cada indivíduo
recebe a sua cultura e a integra no seu desenvolvimento pessoal (id., ibid.).

O seu estudo mais significativo (entre 1931 e 1933) é uma pesquisa realizada
em três sociedades de Nova Guiné, em que mostra, através destes grupos, que
as pretensas personalidades masculinas e femininas (consideradas universais,
por serem consideradas de origem biológica) não existem em todas as
sociedades. Demonstra então a relatividade dos papéis, dos estatutos e das
funções.

Os traços de caráter que nos qualificamos de masculinos ou de femininos são,


em grande parte ou até mesmo na sua totalidade, determinados peio sexo de
uma maneira tão superficial quanto o são as roupas, os medos e o penteado que
uma época designa a um ou outro sexo. (Mead (1963 [1935]): 252 em Coche,
1999 80).

Assim, a personalidade individual não se explica pelos seus carateres biológicos


(por exemplo, o género), mas explica se pela sua aquisição através da
transmissão da educação. Acrescenta, ainda, que a cultura não é um "dado" que

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o indivíduo receberia como um todo. Os indivíduos criam a cultura, transmitem


na, transformam na (id, íbid.: 87).

O relativismo cultural contribui para eliminar as confusões entre o que se refere


à natureza do homem e o que se refere á cultura. Estuda os fenómenos de
incorporação da cultura, no sentido próprio do termo, mostrando que até
práticas do corpo, aparente e absolutamente naturais, são determinadas pela
cultura: comer, dormir, copular, dar à luz, mas também defecar, urinar ou ainda
andar, correr, nadar, são funções vitais transmitidas pela cultura. A educação é
necessária e determinante no processo de diferenciação cultural. As diferenças
culturais entre os grupos humanos são, então, explicáveis, em grande parte, por
sistemas de educação diferentes.
Outra vertente da Antropologia que se desenvolveu com Lévi-Strauss, na década
de 1940, foi a Antropologia Estrutural. Em 1949, na sua obra sobre as
estruturas elementares de parentesco em que analisa os aborígenes australianos
e, em particular, os seus sistemas de matrimónio e parentesco, Lévi-Strauss
demonstra que as alianças são mais importantes para a estrutura social que os
laços de sangue.

Lévi-Strauss define a cultura deste modo: Toda cultura pode ser


considerada como um conjunto de sistemas simbólicos. No primeiro piano
destes sistemas colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações
económicas, a arte, a ciência, a religião" (Lévi-Strauss, 1950: XIX em Cuche,
1999:95).

Está na natureza do ser humano a necessidade de viver em sociedade, mas a


organização da vida social depende da cultura e implica a elaboração de regras
socais. O exemplo mais característico destas regras universais que o
Estruturalismo analisa é a proibição do incesto, que tem como fundamento a
necessidade das trocas sociais.

5.2.2. Grupos sociais e formas de sociabilidade

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Cada um dos diferentes autores mais relevantes das Ciências Sociais estudou,
não o que se passa no âmbito de um grupo social ou de um indivíduo em
particular mas sim o que se passa entre diferentes grupos sociais ou indivíduos,
ou seja, nas relações entre eles. Esta é uma das tarefas que as Ciências Sociais
procuram fazer que é o estudo das relações sociais sob as suas múltiplas
formas.

No estudo do social têm surgido, ao longo dos tempos, vários fatores


explicativos para as realidades do quotidiano. Desde a cultura, até ao meio físico
envolvente, passando pelas teorias hereditaristas, foram vários os pensadores
sociais que se debruçaram sobre esta questão, sem que, até Durkheim publicar
as suas obras, tivessem sido consideradas as relações sociais por detrás de
qualquer fenómeno social e que já houve oportunidade de referir anteriormente,
quando se desenvolveu a teoria social de Durkheim, nomeadamente cws suas
obras A divisão social do trabalho (Durkheim, 1984 [1893]), As regras do
método sociológico e em O suicídio (Durkheim, 1982 11897]).

Para Durkheim, qualquer sociedade deve assentar numa solidariedade entre


aqueles que dela fazem parte, isto é, sobre um conjunto de laços graças aos
quais se assegura a coesão nas relações sociais. A sua conceção de integração
social desempenha um papel primordial, já que em A divisão do trabalho social
havia descrito a transição de uma forma de integração que se caracteriza pela
ausência de divisão de trabalho, para uma nova forma de integração social
associada a uma forte divisão do trabalho.

Caracterizando um e outro tipo de sociedade, Durkheim definiu duas formas


de relações sociais, que denominou de solidariedade mecânica e
solidariedade orgânica. Prevalecendo nas sociedades pré-industriais, a
solidariedade mecânica seria baseada na semelhança entre os indivíduos que
partilham os mesmos valores e competências como, por exemplo, os indígenas
de uma tribo de caçadores recolectores, em que a consciência coletiva domina
fortemente as consciências individuais e em que se verifica o predomínio das
crenças e sentimentos comuns a todos os membros do grupo sobre o individual
(Campenhoudt, 2003: 130). A solidariedade orgânica, por seu lado, está

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associada a uma forma de solidariedade que prevalece nas sociedades modernas


tecnicamente avançadas e que se baseia nas diferenças e na
complementaridade entre os indivíduos, assim como na divisão do trabalho. Esta
forma de solidariedade pressupõe, deste modo, que os indivíduos se movam
independentemente, numa conceção em que quanto maior é a racionalização e
a individualização das partes maior será a unidade do social (Barata, 2004: 127-
129).

5.2.2.1. Gurvitch e as formas de sociabilidade

Numa tentativa de expressar a essência dos laços sociais, George Gurvitch


propôs-se tentar definir os elementos que compõem as relações sociais e a
interação social. Determinando que os mais simples elementos que compõem a
realidade social são constituídos pelas "múltiplas maneiras de estar ligado pelo
todo e no todo" (Gurvitch em Barata, 2004:138), ou manifestações da
sociabilidade.

Gurvitch elaborou outras duas escalas, ou tipos, em que se manifestam e


combinam os diferentes ambientes sociais as unidades coletivas particulares
(grupos) e os quadros estruturais da sociedade (sociedades globais). As
unidades coletivas particulares englobam, entre outros, os grupos de atividade,
de localidade ou de parentesco, enquanto os quadros estruturais da sociedade
resultam da combinação hierárquica daqueles grupos e da sua integração e
desintegração na sociedade global. Estes universos são unidades coletivas reais,
observáveis diretamente, percetíveis do exterior e pertencentes ao âmbito da
macrossociologia, enquanto as formas de sociabilidade pertencem ao domínio da
microssociologia.

Sendo tipos que se repetem com mais frequência do que os tipos de


agrupamento e do que o das sociedades globais, as formas de sociabilidade
tornam-se muito úteis no estudo daqueles quadros sociais macros sociológicos
(Barata, 2004:137 138). Por outro lado, de acordo com Gurvitch, estes três
planos sociológicos apenas poderão distinguir-se a nível metodológico e
pragmático, já que a sua separação será sempre relativa como resultado da

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interpenetração de uns rios outro - a este propósito, o autor concluiu que, se


cada um pressupõe o outro, a sua relação é dialética (Gurvitch, 1963 em Esteves
e Fleming, 1982: 173-176).

O elemento central á volta do qual Gurvitch estruturou o seu pensamento foi,


então, a sistematização das formas de sociabilidade. Assim, definindo as formas
de sociabilidade como os tipos de relações sociais que se estabelecem entre os
membros de uma coletividade e as diversas formas através das quais esses
membros estão ligados ao todo social, Gurvitch assumiu que se trata de
fenómenos sociais totais à escala mícrossociológica.

De acordo com Gurvitch (em Barata, 2004} distinguem se duas formas de


interação nas sociabilidades: a sociabilidade espontânea e as expressões
organizadas da sociabilidade. No contexto da sociabilidade espontânea foram
definidos dois tipos: em primeiro lugar, Gurvitch identificou a sociabilidade
espontânea por interpenetração, participação e fusão parcial no Nós. Considera
que a participação no coletivo, nesta forma, revela semelhança e identificação
com o todo, sendo que até mesmo a diferenciação implica afinidades entre os
membros da coletividade.

Por outro lado, os vários graus de intensidade que esta forma de sociabilidade
pode revelar permitiram a distinção de 3 tipos: a massa, quando o grau de
participação é fraco ao nível das relações e a parte intima dos indivíduos é
preservada, traduzindo-se, assim, no grau mínimo de intensidade de
participação em o Nós; a comunidade, em que o grau de participação é
intermédio mas revela estruturação, tradições e costumes comuns; e a
comunhão, em que os indivíduos se anulam pelo todo, sendo esta forma de
sociabilidade o ponto máximo da fusão no Nós.

Em segundo lugar, Gurvitch definiu a sociabilidade espontânea por oposição


parcial e ligação mútua entre Eu, Tu e Ele (as relações com outrem) - nesta
conceção de relacionamento social e participação no coletivo, os indivíduos
mantém a sua individualidade e, embora estejam integrados na coletividade,
participam em função dos seus próprios interesses. Esta forma de sociabilidade

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leva a diferentes graus de intensidade nas relações com os outros, pelo que
Gurvitch distinguiu, neste contexto, as relações de aproximação, as relações de
afastamento e as relações mistas.

No contexto das expressões organizadas da sociabilidade (ou sociabilidade


organizada), Gurvitch defendeu que esta forma de interação se apresenta
através de formas de relacionamento pré estabelecidas, rígidas e cerimoniais,
diferenciando a assim das expressões espontâneas.

Tendo em conta que a massa, a comunidade e a comunhão são graus de


fusão parcial em o Nós, Gurvitch chegou ás seguintes considerações acerca de
tal integração: por um lado, que a intensidade da fusão em o Nós e a pressão
sofrida pelos seus membros se encontram numa relação de proporcionalidade
inversa, já que é na massa que a pressão do conjunto sobre os membros se
revela mais forte; por outro lado, que a intensidade da fusão em o Nós e a força
de atração que exerce sobre os seus membros se encontram numa relação de
proporcionalidade direta - de facto, a comunhão exerce sobre os membros uma
força de atração maior do que a comunidade, enquanto a comunidade atrai os
participantes com mais força do que a massa (Barata, 2004: 137-142).

Neste sentido, Gurvitch dedicou uma parte da sua atenção ao fenómeno grupo.
Afirmando que os grupos se situam num plano macrossociológico, sendo as
formas de sociabilidade uma parte significativa da sua realidade. O autor
defende que estas unidades coletivas são um dos elementos constituintes das
sociedades globais e nelas se integram. Partindo da enumeração daquilo que os
grupos não são - uma coleção de indivíduos semelhantes ou categorias sociais,
médias estatísticas, ajuntamentos, relações sociais, conjuntos de estatutos e de
papéis sociais, associações, organizações e, por fim, formas de sociabilidade e
sociedades globais Gurvitch encontra a sua definição de grupo: "una unidade
coletiva real mas parcial, diretamente observável e assente em atitudes
coletivas, contínuas e ativas, tendo uma obra comum a realizar, unidade de
atitudes, de obras e de comportamentos, a qual constitui um quadro social
estruturável tendendo para uma coesão relativa das formas de sociabilidade"
(Gurvitch em Barata, 2004: 143-146).

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5.2.2.2. O conceito de sociation de Simmel

A perspetiva de Simmel sobre as relações que se processam nos grupos em


sociedade parte da conceção de que qualquer fenómeno social só pode ser
percebido como o resultado de ações, atitudes e comportamentos individuais
que, agrupados, são passíveis de que sobre eles se proponham explicações por
tipos no seu entender, esta representação deverá ser sempre extremamente
simplificada (Boudon, 1995: 51-52).

O seu pensamento passou pela distinção entre o conteúdo e a forma nas


relações sociais. Propôs-se, neste sentido, a introduzir nas Ciências Sociais o
conceito de sociation (uma palavra para a qual não se encontra uma tradução
muito exata para português, mas que tem encontrado correspondência em
material da associação), considerada uma forma pura de interação que o levou a
ser considerado o fundador da Sociologia pura ou formal. Para este autor, a
forma seria, então, o objeto da Sociologia pura ou formal. Distinguida do
conteúdo, essa forma é o resultado da identificação de regularidades e padrões
específicos, constituídos a partir de urna abordagem cientifica daí que Simmel
refira que "Em si próprios, estes materiais com que se preenche a vida, as
motivações que a impulsionam, não são sociais. Rigorosamente falando, nem a
fome, nem o amor, nem o trabalho, nem a religiosidade, nem a tecnologia, nem
as funções e os resultados da inteligência são sociais. São fatores de sociation
apertas quando transformam a mera agregação de indivíduos isolados em
formas de estar de e para os outros" (Simmel em Barata, 2007: 132). Simmel
defende, então, que sociation é a forma através da qual os indivíduos se
organizam numa unidade ou grupo, de forma a verem os seus interesses
satisfeitos.

Por outro lado, sociation é também tudo o que se relaciona com os impulsos,
interesses ou motivações que estão presentes nos indivíduos, de modo a
provocar ou receber tais efeitos daí que só se tomam fatores de sociation
quando a agregação de indivíduos isolados se transforma em formas especificas

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de estar com e para os outros, constituindo a própria relação social (Barata,


2004: 132-133).

5.2.2.3. Robert K. Merton e o conceito de função: funções latentes e


manifestas

Um outro exemplo é de Merton, como representante da abordagem


funcionalista da sociedade. Este autor defende que os fenómenos sociais se
inscrevem numa lógica de explicação através das funções que desempenham
no social (Barata, 2004: 42). Tais funções estão associadas às ações de um
elemento do sistema social, que provocam consequências objetivas no
conjunto desse sistema e na sua reprodução, o que levou este autor a
distinguir dois tipos de funções: a função latente e a função manifesta.
De acordo com Merton (em Campenhoudt. 2003: 70 73), uma função é latente
sempre que não é pretendida e apercebida por quem a desencadeia, enquanto
uma função é manifesta quando ocorre o oposto, ou seja, quando é querida e
apercebida pelos indivíduos. São, sobretudo, as funções latentes que
correspondem a lógicas objetivas que ocupam o pensamento de Merton, já que
as funções manifestas correspondem a lógicas intencionais que, segundo ele,
não interessam destacar no universo das relações sociais.

Numa tentativa de esclarecer o conceito que desenvolveu, aludiu aos rituais dos
índios Hopi do Novo México, rituais estes que têm o objetivo de fazer chover em
tempo de falta de água: embora causar chuva não seja um resultado natural da
cerimónia, é nessa cerimónia que se revela a sua função latente, isto é,
"reforçar a coesão do grupo, oferecendo uma ocasião periódica aos seus
membros disseminados de se reunirem a fim de participarem numa atividade
comum" (Merton em Campenhoudt, 2003: 71).

Pelos vários exemplos apresentados neste capítulo, pode concordar-se que cada
um dos autores, desde os considerados clássicos, quer alguns mais
contemporâneos socorrem-se de diferentes abordagens e de conceitos para a
explicação e compreensão da realidade social. Com estes exemplos, verifica se
que é possível apreender a organização subjacente a cada formação social de

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diferentes formas, que ajudam a compreender as relações sociais, sendo que


todas as abordagens são válidas, uma vez que se complementam e permitem
abrir perspetivas para novas discussões sobre a análise dessa mesma realidade
social.

Atividade formativa 5
1 – Elabore um pequeno ensaio sobre a dicotomia entre natureza e cultura

2 – Selecione um dos autores estudados. Efetue uma pesquisa recorrendo ao


material de aprendizagem disponibilizado e outros (digitais e outros). Procure
consultar uma das obras integrais dos autores estudados numa biblioteca ou
numa livraria.
Elabore uma página em que identifique os seguintes tópicos: as condições socio
históricas em que o autor escolhido desenvolve o seu trabalho, as principais
metodologias usadas e os conceitos ou teorias desenvolvidas e o impato nas
ciências sociais. Cruze os contributos de vários autores.

3 – Selecione uma das perspetivas de explicação do social. Justifique essa opção


e elabore um pequeno texto sobre as vantagens do recurso a esse tipo de
explicação.

6. ALGUNS TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS:


MUDANÇA SOCIAL, SOCIEDADE GLOBAL E TEORIAS DO RISCO

Objetivos de aprendizagem

Identificar os principais traços c características das sociedades


contemporâneas: as sociedades globais.
Caracterizar as instituições sociais das sociedades modernas.
Identificar fatores de mudança social e o seu impacto na sociedade.
Indicar algumas das consequências da modernidade desenvolvidas por
Giddens.

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Apresentar o conceito de reflexividade social.


Identificar a noção de risco desenvolvida por U. Beck.
Promover a reflexão sobre temas que revelam o dinamismo social.

6.1. A MUDANÇA SOCIAL E A SOCIEDADE GLOBAL

No fim do século XX, as Ciências Sociais foram desafiadas a pensar a


globalização do mundo e os dilemas que se colocam com a globalização das
coisas, gentes e ideias (Ianni, 1994). Além do que é local, nacional e regional,
colocam-se novos problemas com a emergência da sociedade global, por
exemplo, com a alteração de fronteiras geográficas e históricas, culturais e
civilizacionais. Os indivíduos ou os grupos são colocados perante outros
horizontes e o pensamento científico é desafiado a elaborar conceitos e
interpretações para dar conta de realidades pouco conhecidas e que se
começam a delinear com as teorias da globalização.

As Ciências Sociais são confrontadas com um desafio epistemológico novo. Pela


primeira vez, são desafiadas a pensar o mundo como uma sociedade global. As
relações, os processos e as estruturas económicas, políticas, demográficas,
geográficas, históricas, culturais e sociais, que se desenvolvem à escala
mundial, adquirem preeminência sobre as relações, processos e estruturas que
se desenvolvem á escala nacional (idem).

Deste modo, o pensamento científico, com base na reflexão sobre a sociedade


nacional, não é suficiente para apreender a constituição e os movimentos da
sociedade global. São colocados novos desafios empíricos e metodológicos, ou
históricos e teóricos, que exigem novos conceitos, outras categorias, diferentes
interpretações.

A sociedade global já tem sido objeto de estudos e interpretações nos aspetos


históricos, políticos, económicos, culturais, geográficos, demográficos,
geopolíticos, etc, mas a maior parte das vezes, para Ianni, mesmo quando os
autores se referem à nação estão a pensar de forma mais abrangente na
sociedade global. Essa problemática está presente nos estudos, designações e

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interpretações sobre relações internacionais, geopolítico, integração regional,


sistema mundo, economia mundo, três mundos, quatro mundos, nova divisão
internacional do trabalho, fábrica global, cidade global, aldeia global, planeta
terra, norte e sul, ONU, UNESCO, etc.

Para o autor este é um momento epistemológico fundamental: o paradigma


clássico, fundado na reflexão sobre a sociedade nacional está a ser absorvido
por um novo paradigma, fundado na reflexão sobre a sociedade global, o que
significa que o conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional não é
suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos de uma realidade
que já é sempre internacional, multinacional, transnacional, mundial ou
propriamente global (Idem).

A sociedade nacional continua a ter autonomia que se expressa no seu território,


população, mercado, moeda, hino, bandeira, governo, constituição, etc., mas
aos poucos, a sociedade global vai absorvendo a sociedade nacional,
abrangendo indivíduos, grupos, classes, movimentos sociais, cultura, língua,
religião, moeda, mercado, formas de trabalho, modos de vida (é o caso concreto
dos países da União Europeia, que, embora mantenham a sua soberania
nacional, ela está fortemente condicionada pela qualidade de país membro).

Como totalidade geográfica e histórica, espácio temporal, em suas dimensões


sincrónicas e diacrónicas, a sociedade global vai-se constituindo como um
momento epistemológico fundamental, novo, pouco conhecido, desafiando a
reflexão c a imaginação de cientistas sociais, filósofos e artistas (Idem).

Para Giddens, os modos de vida e as instituições sociais, características do


mundo moderno, são radicalmente diferentes das anteriores, incluindo os do
passado relativamente recente (Giddens, 1997). A vida social humana foi
violentamente afastada dos tipos de ordem social em que as pessoas viveram
milhares de anos. O ritmo de mudança acelerou e, embora gerações anteriores
tenham tido condições de existência precárias, vivia-se à mercê dos desastres
naturais, das pragas c da fome. Hoje, nos países industrializados, embora mais
imunes a esse tipo de ameaças, as incertezas em relação ao futuro derivam de
forças sociais que foram desencadeadas petos seres humanos (id. ibid.: 767).

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Identificar mudanças significativas implica mostrar até que ponto existem


mudanças na estrutura subjacente de um objeto ou situação ao longo de um
certo período de tempo. Para se detetarem as mudanças, é necessário verificar
até que ponto existe modificação nas instituições básicas.

Falar em mudança também significa falar do que é estável, como um padrão de


que se serve para medir as alterações. Mesmo no mundo de hoje, que avança
rapidamente, existem continuidades em relação ao passado distante. Os
principais sistemas religiosos, como o Cristianismo e o Islamismo, mantêm o
vínculo a de ias e práticas iniciadas há muito tempo. Apesar desses casos, a
maior parte das instituições das sociedades modernas alterou se de forma
nítida, mais rapidamente do que aconteceu nas instituições do mundo
tradicional.
As principais influências sobre a mudança social são o ambiente físico, a
organização política e os fatores culturais. Assim, o ambiente físico influencia o
modo de organização social. Por exemplo, os povos dos poios desenvolveram
hábitos e práticas diferentes dos que vivem em zonas tropicais.

A organização política é também um fator que influencia fortemente a


mudança social. Traduz uma determinada organização económica,
diferenciando se de acordo com os modos de produção.

Também fatores culturais podem ser importantes para a mudança social, por
exemplo, a religião tanto pode ser urra força conservadora como uma força
inovadora na vida social (id, ibid.).

O impacto dos fatores enunciados varia de acordo com o tempo e o lugar. Não
se pode isolar um deles como influência determinante sobre todo o
desenvolvimento social humano. Pode-se, contudo, tentar identificar as maiores
influências no sentido de mudança social. Aqui salienta-se: as influências
económicas, sobretudo com o impacto nas sociedades do capitalismo industrial e
a sua influência nos modos de vida dos indivíduos; as influências politicas,
nomeadamente com as lutas entre nações no sentido de expandir os seus

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territórios e aumentar as suas riquezas, sustentadas peto poder militar; as


influências culturais, com o desenvolvimento da ciência e a secularização do
pensamento foram muito influentes. Cada vez mais se exige que os modos de
vida na sociedade moderna tenham uma base racional.

Para além das alterações no modo como se pensa, houve também alterações de
conteúdo das ideias. Ideais como o de aperfeiçoamento pessoal, da liberdade,
da igualdade e da participação democráticas são, em grande parte, criações
recentes. Para onde conduz a mudança atualmente? Quais os principais
desenvolvimentos que vão afetar as vidas neste século?
Apresenta-se a perspetiva de Anthony Giddens sobre As consequências da
modernidade e a de Ulrick Beck sobre a Sociedade de risco, sendo que ambos os
autores refletem ampla e aprofundadamente sobre a mudança social.

6.2. ANTHONY GIDDENS E AS CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE

O desenvolvimento das instituições sociais modernas e a sua expansão pelo


mundo criaram oportunidades muito maiores para os seres humanos usufruírem
de uma existência segura e compensadora do que qualquer sistema pré-
moderno. O lado das oportunidades da modernidade foi fortemente salientado
pelos fundadores clássicos da Sociologia (Giddens, 1990).

Giddens recupera o pensamento dos autores clássicos: Marx, Durkheim e


Weber. Mane e Durkheim consideravam a era moderna agitada, plena de
convulsões, mas acreditavam nas possibilidades abertas de desenvolvimento e
de melhoria das condições de vida das sociedades.

Enquanto Marx entendia a luta de classes como fonte de cisões fundamentais do


sistema capitalista, que se tornariam positivas para a emergência de um sistema
social mais humano, Durkheim acreditava no industrialismo (e nos seus
processos de divisão do trabalho) como fator de vida social mais harmoniosa e
de produção de riqueza que beneficiaria toda a comunidade.

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Max Weber era mais pessimista que Marx e Durkheim Considerava o mundo
moderno paradoxal, no qual o progresso material era obtido à custa da
expansão da burocracia, que esmagava a criatividade e a autonomia individuais
(o Taylorismo) (Idem).

Os três autores perceberam que as formas de organização do trabalho industrial


moderno tinham consequências degradantes, submetendo muitos seres
humanos à disciplina de um trabalho monótono e repetitivo. Mas não previram
que o desenvolvimento das forças de produção viria a ter um potencial
destrutivo em larga escala relativamente ao meio ambiente natural.

Também não perceberam as consequências da utilização de um poder político


fortalecido que conduziu ao totalitarismo. Para eles, o uso arbitrário do poder
político, como o despotismo, só era possível nas sociedades pré modernas. Mas
a possibilidade do totalitarismo está contida dentro dos parâmetros institucionais
da modernidade e não excluída por eles: o holocausto, o nazismo, o fascismo, o
estalinismo, as ditaduras sul americanas, e outras formas mais subtis de
controlo e poder arbitrário (as indústrias culturais, a uniformização cultural, a
repressão de expressões culturais locais, etc.).

A terceira consequência não antevista por estes três pensadores foi a


industrialização da guerra, uma acentuação do militarismo, agora suportado no
desenvolvimento e nos avanços industriais. Desenvolvimento de amas cada vez
mais mortíferas e experimentação concreta desse armamento no terreno (á
exceção das armas nucleares, utilizadas em Nagasáqui e Hiroshima no final da II
Guerra Mundial). O século XX é o século da guerra: o número de confrontos
militares graves, envolvendo perda substancial de vidas, foi o mais elevado de
toda a história da humanidade. No século XX, calcula-se que o número de
mortos em situações de guerra tenha ultrapassado os cem milhões (sem que
tenha sequer ocorrido um conflito nuclear) (Idem ibidem).

A "primeira modernidade'' define se contra as tradições e a favor da


organização da vida coletiva de acordo com os critérios da razão (Campenhoudt,
2003). A ciência considerada forma superior da razão é confiada na sua

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capacidade de encontrar, mais cedo ou mais tarde, respostas para todos os


problemas, tanto humanos como materiais. Ê certo que comporta alguns riscos,
mas são residuais e poderão ser previstos e contratados pela própria ciência. As
grandes instituições, como o mercado e o Estado, são elas próprias justificadas
pela ciência (económica, jurídica, política, etc.) e cada urna delas constitui o
modelo exclusivo no seu próprio setor.

Neste universo tão racional surgem as guerras mais devastadoras da história


universal com as destruições nucleares maciças, os genocídios organizados c as
catástrofes ecológicas. O ponto comum destes desastres é serem o produto de
decisões e atividades humanas, apoiadas no poderio imenso que a ciência lhes
confere. Apesar disso, as sociedades atuais não rejeitam a razão e regressarão
ás origens tradicionais. Continuam profundamente modernas, mas já não são
modernas da mesma maneira - é a chamada "segunda modernidade" ou
modernidade reflexiva, em que a razão questiona as suas próprias pretensões
e os seus próprios fundamentos. "A sociedade reflexiva procede ao exame e à
revisão constante das práticas sodais, á luz das novas informações respeitantes
a estas mesmas práticas, o que altera assim, de uma maneira constitutiva o seu
carácter." (Giddens em Campenhoudt, 2003: 286).

Passa a predominar a ideia de autoanálise de forma permanente, quer para os


grupos quer para os indivíduos. A reflexividade institucionalizou se em todos os
domínios. São frequentes as pesquisas científicas, os gabinetes de estudo, os
grupos de reflexão, etc. A reflexividade transforma mesmo a relação de cada um
consigo próprio e com o mundo na vida de todos os dias. O” próprio" (self) não
se define como uma entidade suportada, dada de uma vez por todas, mas como
um projeto reflexivo em que cada um refaz constantemente o curso da sua
própria existência na mudança social (Giddens, 1994).

6.3. ULRICH &ECK E A SOCIEDADE DE RISCO


O risco é inerente è condição da modernidade. São riscos que escapam ao
controlo dos indivíduos, mas também das organizações - riscos de acidentes
nucleares, consequências para o ambiente do desenvolvimento industrial
(segundo as regras do mercado e com o objetivo sagrado da obtenção de lucros

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para os agentes do sistema), desastres ecológicos, etc. É difícil localizar a


responsabilidade - a lógica de desenvolvimento neste modelo da modernidade
contém em si a possibilidade destes acontecimentos. Os altos riscos globais que
todos os indivíduos correm são elementos chave do caráter "descontrolado" da
modernidade.

Os altos riscos de baixa probabilidade (como um conflito nuclear ou um grande


acidente nuclear ou um grande desastre ambiental - as mudanças climáticas
lentas e de consequências imprevisíveis) instauram um sentimento de fortuna,
próximo do ponto de vista pré moderno - um sentimento de destino, do que tem
que ser, que está para além das mãos do indivíduo, de acontecimentos sobre os
quais não tem nenhum controlo, o que contraria um dos pressupostos da
modernidade, o da racionalidade instrumental da ciência, da utilização da razão
(e da racionalidade científica), para definir o melhor dos caminhos a trilhar e as
melhores soluções para os problemas. Este sentimento de medo e da existência
de um risco fora de controlo mina a confiança básica nos sistemas institucionais
da modernidade.

Os altos riscos de baixa probabilidade não poderão desaparecer, mas poderão


ser minimizados, num cenário otimista. Mas verdade é que se fossem
suprimidas todas as armas nucleares, por exemplo, existiria ainda assim um
risco global: não é possível erradicar o conhecimento técnico estabelecido, o
armamento nuclear pode ser reconstituído a qualquer momento. Trata se,
portanto, da sobrevivência de saberes (e de modos de os materializar) que
contém em si mesmos uma potencialidade de destruição.

Na perspectiva de Beck, a modernidade reflexiva é indissociável da questão do


risco, tendo em conta que o desenvolvimento industrial não acontece sem
riscos. O controlo total é impossível. Um risco não é um perigo objetivo que se
coloca: é qualquer coisa que se antecipa e que se encana "uma maneira de
tratar com os perigos e com as inseguranças arrastadas pela própria
modernização (Beck, 1995). O risco aparece quando existe tomada de decisão,
sendo a primeira decidir o que comporta risco e o que não comporta. Deste

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modo, os riscos apresentam uma ilustração do processo de construção social da


realidade e o lugar, por excelência, da sociedade reflexiva.

Os riscos contemporâneos são diferentes de riscos anteriores. Afetam os limites


do tempo, na medida em que o presente é menos determinado pelo passado e
por transgredirem fronteiras, os novos riscos são, simultaneamente, locais e
globais. Eles são dificilmente imputáveis a organizações particulares.

Nenhuma classe social nem nenhuma nação estão ao abrigo de riscos maiores,
mesmo que as suas capacidades de se protegerem dos riscos sejam desiguais,
como se pode verificar pela instalação de indústrias poluentes em países menos
desenvolvidos ou em zonas mais desfavorecidas.

O risco tomou-se objeto de politização e está na origem de alguns movimentos


sociais, como os movimentos pacifistas e antinucleares, os movimentos de
doentes atingidos por males graves, os movimentos de utentes da via pública ou
os movimentos ecologistas (Beck, 1995).

Este olhar atento às transformações sociais que podem ter efeitos nefastos para
os seres humanos pela degradação das condições climatéricas e outro tipo de
impactos ambientais nocivos, tem produzido efeito nas Ciências Sociais com o
surgimento de novas ramificações das áreas disciplinares, por exemplo, o caso
da Cidadania Ambiental, Ecologia, Sociologia do Ambiente, Sociologia do
Consumo, etc.

Atividade formativa 6
1) Tendo em conta os contributos de Giddens e Beck, analise de que forma é que
os modos de vida e as instituições sociais das sociedades modernas são
radicalmente diferentes das anteriores, incluindo as do passado relativamente
recente. Justifique a afirmação e refira se aos impactos sociais dessas
alterações recorrendo às teorias destes dois autores.
2) Elabore uma pequena reflexão sobre o impacto que as transformações sociais
têm no desenvolvimento das Ciências Sociais.

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CONCLUSÕES

Em jeito de conclusão a esta abordagem sobre algumas temáticas das Ciências


Sociais, identificamos nos com una reflexão de Campenhoudt (2003), que traduz
de forma metafórica o fio condutor presente na seleção e organização dos ternas
que se estudou:

As ciências sociais não constituem um imenso puzzle cie que cada pesquisa é
uma peça. Pode-se apresenta-las como constituindo um oceano que não cessa
de avançar, sustentado por obras marcantes que constituem as correntes
marítimas. Estas abraçam-se e combatem-se, são mas quentes quando outras
são mais frias e mais frias quando outras são mais quentes, dotando deste
modo o oceano, não de uma substancia homogénea, mas de uma consistência
dinâmica. Não existe uma conceção ouve realmente admitida de trabalho
cientifico em ciências sociais, sendo o único ponto de acordo mais ou menos
geral é o de que a própria conceção do trabalho científico em ciências sociais
deve ser objeto de um incessante debate. Se se trata de ciência, é neste debate
que esta em primeiro lugar reside. A acumulação científica não se encontra num
armazenamento de verdades, mas antes num progresso de capacidade de
formular, sobre melhores bases teóricas e empíricas os desacordos
(Campenhoudt, 2003: 293).

A realidade social deve ser entendida como uma totalidade, tendo em conta a
noção de fenómeno social de Mareei Mauss, em que se sustenta, em simultâneo,
a unidade e a pluralidade das Ciências Sociais, sendo que esta visão integrada
das Ciências Sociais potencia o conhecimento científico. Abstrair, racionalizar,
conseguir deixar de olhar a realidade social sob um ponto de vista particular
consiste num percurso difícil, por se ter de prescindir das "verdades" individuais
e iniciar um percurso de aprendizagem em que se vão fazendo descobertas com
formulações objetivadas através de urna análise reflexiva e argumentativa
sistemática.
Espera- se que esta metodologia possa ter contribuído para a desconstrução das
evidências do senso comum, através de um processo de rutura, pela
identificação c discussão dos obstáculos epistemológicos. Este processo implica a

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contextualização, relacionação e relativização dos fenómenos sociais, seguindo


as etapas do método científico de rutura, construção e verificação.

Neste percurso pelas Ciências Sociais constatou-se que a teoria assume um


papel preponderante, porque delimita as zonas de visibilidade, os centros de
interesse de uma disciplina ou de um objeto de investigação, na medida em que
a realidade social é apenas uma, mas, no entanto, é olhada de forma diferente
pelas várias Ciências Sociais. As teorias para serem úteis devem estar ligadas
umas ás outras em função das questões de pesquisa, com a ajuda de conceitos,
de hipóteses ou perguntas de partida, que vão sendo submetidas a uma
constante revisão á medida da análise das suas observações.

As aplicações de teorias (por exemplo. Funcionalismo, Estruturalismo,


Interacionismo, etc.) não são exclusivas e limitadas a fenómenos precisos, a
certos temas. Cada uma delas pode ser aplicada a outros domínios porque não é
definida pelo tipo de objeto estudado, mas pela maneira de estudar esse objeto.
Para conhecer os fenómenos sociais é preciso haver uma dialética entre o
empirismo e a teoria, num confronto de um com a outra, sendo que, quase
sempre, os melhores conceitos das Ciências Sociais foram elaborados pelos seus
autores quando se encontravam mergulhados na análise concreta
(Campenhoudt, 2003).
Para dar conta do processo de construção do conhecimento científico, partiu se
da rutura com o senso comum para a construção do conhecimento sobre a
realidade social. Percorreram-se algumas das Ciências Sociais, identificando as
suas abordagens específicas da realidade social (por exemplo, Sociologia,
Psicologia, Demografia, História e antropologia), rio intuito de dar urna visão
sobre o processo de formação histórico e social das Ciências Sociais.

Também se deteve sobre algumas teorias de explicação e compreensão do


social, tendo por objetivo explicar as relações sociais, por exemplo, neste ponto
em particular, salientaram se as teorias de Karl Marx, Émile Durkheim e Max
Weber por serem autores fundadores das Ciências Sociais e pelas suas teorias
serem únicas e intemporais, continuando ainda atualmente a influenciar
correntes teóricas. Abordaram-se, ainda, outras formas de explicação social

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como as que se baseiam na definição de cultura e de traços culturais (por


exemplo Tylor e Levi Strauss) e outras que assentam as suas explicações nas
formas de socialidade entre os indivíduos e os grupos sociais (por exemplo,
Gurvitch, Simmel e Merton).

Como acontece quanto é necessário selecionar, ao fazer opções deixa se de lado


outras alternativas, neste caso, outras teorias, outros autores, outros conceitos.
A escolha de conteúdos, conceitos c autores e as formas de abordar, faz com
que se imprima uma orientação para o percurso de aprendizagem: não quer
dizer que não se pudessem fazer outros. Sabe-se que sim, mas entende se esta
orientação como urna primeira abordagem que vai ser complementada, quer
pelo trabalho de estudo individual dos estudantes, quer pelo trabalho de grupo
ou ainda no âmbito da formação de outras disciplinas. O objetivo fundamental é
contribuir para a reflexão e abertura de perspetivas de análise da realidade
social, tendo em conta a sua especificidade e o domínio das Ciências Sociais.

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