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Três espiões americanos são capturados na Rússia.

A MVD propõe trocar


esses espiões por um microfilme onde consta o nome de seis traidores do
Serviço Secreto soviético.

© 1968 – LOU CARRIGAN


Título original: “Viaje de Placer”
Capa de Benicio
Colaboração de Sérgio Bellebone
530429

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey Ltda.


CAPÍTULO PRIMEIRO
Um anjo baixa à terra em helicóptero — Pode a beleza ser uma
arma letal? — Ordem: viagem de prazer

Os dois agentes da C.I.A. observavam atentamente um


helicóptero que sobrevoava o quartel-general desta
organização, situado a pouca distância da cidade de
Washington e próximo à localidade de Langley.
Eram homens altos, espadaúdos, de possante mandíbula e
epiderme tostada pelo sol. Seus casacos desabotoados
deixavam perceber que portavam coldres axilares, com suas
correspondentes pistolas.
Um deles indagou:
— Você acha que vem nesse?
— É possível. Pode estar dando uma volta de
reconhecimento.
O que fizera a pergunta sorriu compreensivamente.
Endireitou o pescoço, girou a cabeça de um para outro lado e
disse: “Diabo, vou apanhar um torcicolo.” Acendeu um
cigarro, mas apenas pode dar duas tragadas, pois quando
tornou a olhar para o céu viu o helicóptero que baixava sobre
ura pequeno campo circular rodeado de árvores frondosas.
— Está pousando.
Deixou cair o cigarro, esmagou-o como o pé e
encaminhou-se junto com seu companheiro para onde o
esguio aparelho ia assentar, sobre a verde e macia relva do
campo especial de aterrissagem para helicópteros.
Tiveram ainda que aguardar alguns segundos, até que se
imobilizassem as hélices gigantescas, recebendo em cheio o
ar quente lançado com força contra eles. Depois, quando a
cabina de plástico se abriu, os dois aproximaram-se do
aparelho. Ambos estenderam a mão esquerda. O piloto,
coberto completamente por um “macacão” branco, saltou em
terra, quase suspenso por aquelas mãos. Logo tirou um
delicioso gorrinho do tipo usado pelos jogadores de basebol
e uma preciosa massa de cabelo negro, sedoso, fragrante caiu
sobre sua deliciosa nuca muito branca.
— Obrigada, rapazes — sorriu o piloto.
Os dois agentes da C.I.A. ficaram olhando abobalhados
aquele rosto angelical, de grandes, luminosos, maravilhosos
olhos azuis, a boquinha doce e rósea, o queixo levemente
pontiagudo, com aquela covinha arredondada no centro...
Porém mais assombrados ficaram ainda quando o piloto
rapidamente se libertou do “macacão” amplo e pouco
revelador, e a estonteante anatomia da garota surgiu muito
mais visível sob uma minicalça preta e uma blusa de malha
vermelha que lhe modelava coloridamente o busto
escultural...
— Ignorava que na C.I.A. houvesse agentes mudos —
sorriu a adorável viajante.
— Hem? Oh, não, não...! Isto é... Fez boa viagem?
— Excelente — riu ela. — Mas não ê isso o que devem
me perguntar primeiro. Têm toda a certeza de que eu sou eu
e não outra?
— Pelas referências, você só pode ser você — recuperou-
se um dos agentes. — Mas, de qualquer maneira, vamos
conferir: “Baby”?
— Sou “Baby” — tornou a sorrir a lindeza.
— E que mais? — inquiriu o outro.
— Também sou Brigitte Montfort — estendeu as mãos a
ambos. — E vocês são Johnny e Johnny. Okay?
— Okay, “Baby”. Apresentação em regra. O chefe está à
sua espera.
— Hey! — riu o outro — não seria melhor que o
avisássemos? O coitado está ficando velho e pode morrer do
coração ao ver a “Baby” surgir de repente, não lhe parece?
Brigitte soltou uma gostosa gargalhada.
— Eu sei que sou bonita — comentou. — Mas até hoje
não matei ninguém só com essa arma.
Riram os três. Brigitte colocou-se entre ambos,
agarrando-se a um braço de cada um, e afastaram-se do
campo de pouso para helicópteros a serviço de agentes
especiais... Dos chamados de capa e punhal, porque estavam
perfeitamente preparados para missões nas quais fosse
necessário matar.
Os dois agentes exibiram pelos corredores, salas-
ascensores da sede da C.I.A., a mulher mais formosa que ali
já pusera os pés desde que fora construído, provocando
piadas, olhares de inveja, assobios de admiração... Por fim,
detiveram-se os três diante de uma porta grande, sólida,
encimada por duas pequenas lâmpadas, no momento
apagadas. Um dos agentes abriu um pequeno postigo na
parede, junto à porta, e apanhou um tubo acústico. Soprou,
depois disse:
— A “Baby” chegou.
Largou o tubo, cerrou o postigo e levantou a cabeça.
Efetivamente, numa das pequenas lâmpadas brilhava uma
luz verde.
O outro abriu a porta.
— Entre, “Baby”. E boa sorte.
— Sempre tenho sorte.
Transpôs a porta. Primeiro havia um vestíbulo de amplas
proporções, com uma mesinha, poltronas, um sofá... Ao
fundo, uma porta, pela qual saiu um homem alto e delgado,
em mangas de camisa. Manteve-se imóvel por alguns
segundos, como se cravado no solo. Depois agitou a mão
direita, fazendo estalar os dedos e emitindo um leve assobio.
— Por aqui, “Baby”. O chefe está à sua espera.
Brigitte seguiu-o, sorrindo. Encontrou-se num escritório,
com outra porta ao fundo. O homem abriu-a, fez sinal para
dentro e, quando Brigitte passou a seu lado, sussurrou-lhe ao
ouvido:
— Bárbara!
Com o que, ao entrar na sala do seu chefe supremo na
C.I.A., Brigitte ria francamente. Ele estava sentado atrás de
sua mesa, fitando-a com olhos de um cinza tão claro que
pareciam de cristal. Um olhar frio, presumivelmente capaz
de atravessar algo muito mais sólido que uma simples testa
humana para chegar aos pensamentos que houvesse por trás.
Devia ter quarenta anos, e seus ombros eram largos, secos,
duros, o pescoço era musculoso e firmemente implantado.
Tinha alguns fios brancos nas têmporas e longas mãos de
dedos finos, como garras de aço.
Pôs-se de pé e aproximou-se de Brigitte, claudicando
visivelmente da perna esquerda, mas quase com elegância,
como se aquele defeito fosse mais um de seus inegáveis
encantos masculinos, apesar de seu aspecto glacial.
— Alegro-me que esteja de bom humor — estendeu a
mão. — E alegro-me bastante por vê-la, Brigitte.
— Também eu, chefe — sorriu ela. — Há quanto tempo
não tínhamos este prazer?
— Desde aquela vez em Buenos Aires... Então eu era um
agente chamado Johnny, e saí da enrascada com uma simples
bala no quadril graças a uma certa mocinha de olhos azuis e
plástica perfeita. Nunca esqueci que lhe devo a vida, Brigitte.
— E uma capenguice muito engraçada — completou ela.
— Capenga ou não, ainda sou útil à C.I.A. Tanto, que me
colocaram neste escritório para dirigir agentes capazes,
ainda, de guarnecer a nossa linha de frente. Como você, por
exemplo. Quanto ao mais, continuo sendo um homem muito
atraente.
Brigitte olhou com carinhosa simpatia aquele cabelo
grisalho, o rosto duro, os olhos claros, como se congelados...
— Quem o duvida? Não eu, pelo menos... Fiquei muito
alegre quando o tio Charlie me disse que o haviam destinado
a este posto. E ambos concordamos em que o merecia.
O homem sorriu levemente. Ergueu a mão e acariciou o
rosto deslumbrante de Brigitte.
— Oxalá pudesse eu voltar a ser Johnny, Brigitte... —
murmurou — e lutar ao seu lado. Nunca esquecerei sua
audácia, sua inteligência... Por isso, agora que sou Mr.
Cavanagh, não um Johnny qualquer, pensei em você. E...
bem, permito-me reviver os bons tempos em que
trabalhamos juntos...
Dirigiu-se a um canto do escritório e abriu um pequeno
postigo dissimulado na parede, baixando-o, de modo que
ficou pronto para ser usado como mesinha... ou como balcão,
pois aquilo mais parecia um bar: no interior do
compartimento via-se um balde com uma garrafa dentro.
Retirou-o dali, e também duas taças de cristal.
Brigitte aproximou-se e ficou observando Mr. Cavanagh
derramar champanha numa das taças, que estendeu para ela,
enchendo depois a outra para si e brindando:
— Chin-chin...
— Chin-chin — ecoou Brigitte. — Pelos bons tempos em
Mar del Plata, Johnny.
Beberam ambos, olhando-se. Quando Mr. Cavanagh
baixou sua taça, suspirou tristemente.
— Agora sou apenas Mr. Cavanagh, Brigitte. E você, um
dos meus agentes... Oh, não digo isto para lhe impor
respeito. É que... ouvir-me chamar de Johnny por você me
entristece muito.
— Compreendo, Mr. Cavanagh.
— Será melhor que nos sentemos. Ah! não diga a
ninguém que lhe ofereci champanha. Para trazer até este
escritório o balde, o gelo, a garrafa e as taças tive que
recorrer às minhas habilidades de espião... Enganei a C.I.A.
— mas você o merece.
Riram os dois. Brigitte sentou-se, com a taça entre os
dedos, olhando sempre com afetuosa atenção para um dos
agentes mais audazes com quem já havia atuado, anos atrás.
— Se não sabe como começar — sorriu — faça-o de
qualquer maneira. Suponho que me tenha chamado porque
me considera a agente mais capaz para o trabalho que é
preciso fazer.
Mr. Cavanagh moveu afirmativamente a cabeça.
— Assim é. Você deverá viajar pela Europa.
— Pela Europa... ou para a Europa?
— Pela Europa. Não sei quantos países terá que
percorrer, Brigitte. Quanto a isso, você é quem decide. O
importante é que chegue ao seu destino. Na realidade, é uma
viagem de prazer, ou um pouco menos. E... bem, pareceu-me
que a C.I.A. lhe deve essa viagem de prazer.
— Vou bancar a turista? — sorriu Brigitte.
— É... creio que seja esta a palavra mais adequada.
— Estupendo! Qual o meu destino final?
— Moscou.
Brigitte ficou um instante em suspenso. Houve um
rapidíssimo pestanejar de seus olhos formosos, mas sem dar
tempo a que a conversação fosse cortada perguntou:
— E o ponto inicial na Europa?
— O que você quiser. Não a preocupa ir a Moscou?
— É uma cidade como outra qualquer. Posso escolher
Palma de Maiorca como meu primeiro ponto europeu?
— Claro que sim... Na realidade, é bem possível que você
nem chegue a Moscou, Brigitte. Estarão esperando-a em
Domodedovo, o novo aeroporto moscovita.
— Entendo. Terei que conhecer um novo Johnny, não é
assim?
— Não, não...
— Um dos nossos homens não estará me esperando em
Moscou?
— Não.
— Então, quem?
— Aparentemente, um personagem oficial nisso. Mas, na
realidade, receio que haverá pelo menos um par de agentes
da M.V.D. É natural: nós faríamos o mesmo... ainda que
fosse por simples precaução.
Agora sim, Brigitte estava boquiaberta de surpresa.
— Não sei se entendi direito... Disse que alguns agentes
da M.V.D. estarão esperando por mim em Domodedovo?
— Suspeito que assim será.
— E eles saberão que eu pertenço à C.I.A.?
Um sorriso duro passou pelos lábios de Mr. Cavanagh.
— Oficialmente, não. Já que, também oficialmente,
supõe-se que não haverá espiões russos entre os que a
esperarão lá. Mas não vamos cometer enganos: haverá
agentes secretos russos da M.V.D... e, inevitavelmente, eles
suspeitarão que você pertence ao C.I.A. Mas não acontecerá
nada. Sua viagem será de caráter amistoso... esta vez.
— Amistoso! — exclamou Brigitte. — Não faz muito
tempo, no Panamá, matei vários agentes russos e capturei
uma mulher que...1
— Como é natural, já sei disso. Mas o assunto do Panamá
é coisa à parte. Por outro lado, a M.V.D. ignora quem
liquidou os seus agentes no Panamá e, além disso, você
viajará como simples particular, ou como jornalista. O fato
de que eles pensem ou acreditem que você é da C.I.A. não
nos importa, porque o trato foi perfeitamente definido
através do Telefone Vermelho.
Novamente Brigitte ficou perplexa.
— Mas... O Telefone Vermelho! O que é que está se
passando?
— É um caso bastante delicado... Os russos apanharam
três homens que trabalhavam para nós de um modo...
precário, esporádico. E...
Brigitte empalideceu um pouco.
— E vão ser julgados?
— Sim, é isso. Um de nossos agentes fixos na Rússia
apressou-se em comunicar a Washington o que ocorria: os
russos tinham detido três funcionários da nossa embaixada
em Moscou, acusando-os de intenção de suborno a militares
russos servindo na “Cidade das Estrelas”. Como é natural,
essa intenção de suborno, especialmente a militares, implica
espionagem.
— Claro... Sabemos que esses funcionários de nossa
embaixada em Moscou estão detidos?
— Exato. E, como lhe digo, acusados de espionagem.
Entretanto, os russos ainda não tornaram pública a acusação.
E como, naturalmente, nos inteiramos do que está

1
Ver aventura “Como Namorar a Morte”, número 40 desta coleção.
acontecendo, pois falamos com Moscou pelo Telefone
Vermelho, tentando... dar um jeito na situação...
— Você não vai me pedir, suponho — atalhou Brigitte —
que tire esses três homens de Moscou, da Rússia...?
— Seria impossível, sei disso muito bem. Trata-se
Apenas de levar um microfilme ao aeroporto de
Domodedovo.
— Foi feito um trato?
— Sim... Inicialmente, sim.
— É uma troca?
— Algo de parecido. Os russos se comprometem a deixar
em liberdade nossos três compatriotas em troca desse
microfilme. Mas antes, evidentemente, desejarão assegurar-
se de que o conteúdo do microfilme é autêntico.
— Isso significa que ficarei retida em Domodedovo por
uma hora, ou mais. Inclusive, é possível que me levem a
Moscou...
Um brilho irônico surgiu nos olhos claros de Mr.
Cavanagh.
— Isso é possível, sim.
— Por que não se manda esse microfilme por via normal
ou diplomática... ? Tanto mais que poderia ser entregue
anonimamente por um dos nossos agentes em Moscou... .
— Nenhuma dessas coisas interessa, Brigitte. Por via
normal, seria muito exposto. Por via diplomática, poderia
ocasionar uma série de contratempos e complicações que
Washington não está disposta a aceitar. Quanto a utilizar um
agente nosso residente em Moscou, seria o mesmo que
enviar o microfilme sem vigilância; isso, além da possível
localização e eliminação de tal agente. Não, não...
Estudamos bem o assunto: o único meio é que outro cidadão
americano, que na realidade não sabe o que está fazendo,
chegue a Moscou e entregue o microfilme ao pessoal russo
que o estará esperando.
— Compreendo... Mas é possível que Moscou esteja
informada sobre a agente secreta americana Brigitte
Montfort... Em tal caso, minha posição vai ser...
desagradável.
— Perigosa — corrigiu Mr. Cavanagh. — Porém não
dispomos de ninguém mais adequado para esta missão, no
momento. Por vários motivos. Um, que você conhece
perfeitamente a Europa. Dois, que eles possivelmente não
esperam uma mulher. Três, que você fala o russo. Quatro,
que sua profissão de jornalista lhe justifica plenamente
viajar. Cinco, que você é habilíssima em deslocar-se de um
lugar a outro por qualquer meio. Seis, que sabemos
encontrará solução para essa permanência mínima de uma
hora em Domodedovo. Sete, que estamos seguros de que
ninguém poderá tirar-lhe o microfilme. Oito, que você sabe
matar quando é preciso. Nove, que...
— São motivos suficientes — sorriu Brigitte.
— Mas você não é obrigada a aceitar.
—Não? Eu julguei que fosse uma ordem...
— E é. Mas você representa para mim algo mais que a
melhor agente, Brigitte. Se prefere não se arriscar, não irá a
Moscou.
— Iria outro agente?
— Sem dúvida.
— Menos preparado ou preparada que eu?
— Para esta missão específica, sim, menos preparado...
Digamos, menos idôneo.
— Então, irei. Qual é o plano a seguir?
Novamente apareceu o brilho irônico nos olhos gelados
do homem.
— Nenhum. Você só me precisa dizer qual será sua
primeira escala na Europa. O resto correrá por sua conta.
Deve atravessar a Europa, chegar a Domodedovo, entregar o
microfilme e voltar.
— Tão simples!... Por que devo declarar qual será a
minha primeira escala na Europa?
— Porque lá lhe entregarão o microfilme, que está em
nossos arquivos na Europa. Um agente o entregará a você e
sairá definitivamente de cena. Daí por diante, você agirá
como entender.
— Está bem. Que contém esse microfilme?
— As fotografias e dados de seis russos que estão
praticando espionagem em Moscou... a favor da China
Comunista.
Brigitte emitiu um gracioso assobio.
— Papagaio! Agora compreendo por que os russos
aceitaram a troca...
— Ficaram muito interessados. Creio que eles sabem,
atualmente, que a nossa espionagem em Moscou é tão densa,
tão perfeita, que três homens a mais ou a menos não farão
qualquer diferença. Em troca, a detenção de seis traidores
russos que estão informando à China Comunista pode abrir-
lhes muitas possibilidades em suas tensas relações com esse
país. Suponho que têm esperança de cortar o mal pela raiz no
que diz respeito à espionagem chinesa. Coisa que não
conseguiriam com a espionagem nossa, tirando de circulação
três funcionários da embaixada americana.
— Está na cara... Sim, bem imagino que se tenham
sentido muito interessados... É um trato vantajoso para eles.
Suponho que esses seis traidores russos foram localizados
por nossos agentes na Rússia.
— Claro. E vamos trocá-los por três de nossos
compatriotas. É uma jogada suja que estamos fazendo com
os chineses, você não acha?
Os dois puseram-se a rir.
— E ao mesmo tempo — acrescentou Brigitte —
jogamos a favor dos russos... Até me parece divertido.
— De um certo modo, é — admitiu Mr. Cavanagh. —
Mas o que nos importa é que esses três americanos,
funcionários da embaixada em Moscou, regressem aos
Estados Unidos. O que os russos façam com os traidores que
estão espionando para os chineses não tem para nós a
mínima importância.
— Evidentemente. Entretanto, é uma lástima perder de
vista esses seis espiões traidores da Rússia. Bem que
poderíamos tirar partido deles...
— Já tiramos partido, com essa troca. Além do que, esses
seis são apenas uma parte dos que já localizamos... Não
iríamos entregá-los todos!
Puseram-se novamente a rir. Cavanagh levantou-se, foi
até o bar clandestino e retornou com a garrafa de
champanha. Reencheu a taça de Brigitte, também a sua e
deteve-se um momento olhando o dourado líquido
borbulhante.
— Está-me parecendo que há bastante tempo eu não
bebia champanha pelo simples gosto de fazê-lo... Creio que
me falta imaginação... Ah! o dia da sua chegada a
Domodedovo é sexta-feira, cinco de agosto. Como hoje é
terça, vinte e seis de julho, acho que terá tempo suficiente
para fazer essa viagem da forma que melhor lhe convier... A
hora de chegada será onze e vinte da noite. Quer dizer,
quarenta minutos antes de começar o sábado, dia seis.
Logo... Desculpe.
Cavanagh dirigiu-se ao “intercom” e atendeu à chamada:
— Sim, Ralph?
O “intercom” falou:
— Chegou uma mensagem. Anônima. Importante.
Relacionada com o assunto da troca. Deseja recebê-la?
— Imediatamente.
Desligou o aparelho e aguardou olhando para a porta, que
se abriu quase em seguida, dando passagem ao homem
magro em mangas de camisa. Ele entregou um papel a
Cavanagh e saiu sem haver pronunciado uma só palavra. O
chefe supremo de Brigitte dedicou ao papel alguns segundos
de concentrada atenção.
Logo olhou para Brigitte, o cenho contraído, preocupado.
— Já não estou gostando muito disto, Brigitte. Espero
que não se complique a sua viagem de prazer...

CAPÍTULO SEGUNDO
Mensagem intempestiva — “Morre, vilão!” — Fotografia ao
infravermelho — Um “chihuahua” entra em cena

Temos notícias da M.V.D.? — indagou Brigitte, sorrindo.


— Sim, aqui estão. Leia.
Brigitte apanhou a mensagem. Compunha-se de letras
recortadas de jornais, coladas numa folha de papel.
Dizia:
Não mais telefone vermelho. Um agente
recolherá microfilme pessoalmente terça vinte
seis julho doze da noite em Nova Iorque, ponta
sudoeste de Reservoir Lake. Agente CIA
deverá estar lá sozinho e fumar dois cigarros
seguidos. O jogo será limpo.
— Até que, às vezes, eles têm senso de humor. O que
entenderão por jogo limpo?
— Não me agrada esta mensagem — grunhiu Mr.
Cavanagh. — O plano inicial me convencia muito mais. Em
todo caso, Brigitte, compreendo que a você satisfaça mais
este...
— Pelo contrário — contradisse Brigitte. — Ficarei
encantada em viajar pela Europa.
— Ótimo. Avisaremos pelo Telefone Vermelho...
— Não, não... Não é necessário. O agente russo que
enviou esta mensagem deve ter meios de comunicar-se mais
ou menos rapidamente com Moscou.
— Bom, mas se a este não iremos ver...
— Quem foi que disse que não o iremos ver? O Reservoir
Lake fica no Central Park, ou seja, a pouca distância de meu
apartamento. São apenas doze horas da manhã, de modo que
dentro de mais doze posso perfeitamente estar em Nova
Iorque. Terei tempo, inclusive, para preparar adequadamente
minha bagagem.
— Não acho aconselhável que desta vez sua bagagem
seja muito volumosa. É, simplesmente, uma viagem...
relâmpago.
— Levarei só o indispensável, esteja certo disto. Mas
preparar uma bagagem ligeira e ao mesmo tempo adequada
nem sempre é muito fácil, não acha você?
— Para uma mulher qualquer, sim — sorriu Mr.
Cavanagh. — Gostaria de convidá-la para almoçar, mas
parece-me que podemos atrasar este prazer até o
cumprimento de sua missão. Sempre há muita coisa a fazer.
— Claro. Regresso imediatamente a Nova Iorque.
Entrarei em contato com o tio Charlie e, quando chegar o
momento, ele lhe dirá o que aconteceu com este agente russo
— agitou o papel — e qual será o meu primeiro destino na
Europa.
— E imediatamente darei aviso a um agente de lá para
lhe entregar o microfilme. Não se esqueça de que logo terá
que se haver sozinha.
— Pobre de mim! — gemeu Brigitte.
Mr. Cavanagh sorriu carinhosamente, erguendo a taça.
— Chin-chin, “Baby”.
— Chin-chin — repetiu ela, docemente.
Em seguida, após beber a champanha, aproximou-se de
seu chefe e beijou-o ligeiramente nos lábios, que pareciam
petrificados. Entregou-lhe a taça, sorriu e abandonou o
escritório.
Fora, Ralph pôs-se de pé ao vê-la.
— Sou solteiro — disse ele.
— Eu também — riu Brigitte. — Não é verdade que se
pode estar muito bem assim, Ralph?
— Sempre pensei isso... até agora.
— Pois continue pensando: devemos permanecer fiéis às
nossas próprias ideias...
Saiu da antessala, cruzou o vestíbulo e apareceu no
corredor, onde os dois primeiros agentes estavam esperando.
— Terminado? — perguntou um.
— Okay, Johnny.
— Aonde temos de levá-la?
— Ao helicóptero. Regresso imediato.
— Pois é uma jogada suja — protestou o outro.
Afastaram-se pelo corredor, rindo os três, Brigitte sempre
agarrada a um braço de cada um. Pouco depois chegavam
junto ao helicóptero, e ela tornava a meter-se no “macacão”
branco e a colocar o gorrinho de jogador de basebol.
Sorridente, beijou Johnny e Johnny no rosto.
— Até a vista, queridos.
— Que seja logo, “Baby”.
Ajudaram-na a subir para o aparelho, cujas hélices
começaram a girar e que segundos depois se elevava nos ares
com suave balanceio.
— Aí vai uma garota que é um perfeito torrão de açúcar
— comentou um Johnny.
— É uma pena que ela não queira se dissolver no meu
café!
***
A campainha da porta da floricultura, no n.° 1.044 da
Segunda Avenida de Manhattan, Nova Iorque, soou ao ser
aberta a porta e, quase em seguida, apareceu um homem
procedente do compartimento dos fundos. Tinha as mãos
sujas de terra e, cobrindo-lhe a delgada cintura e amplo
tórax, via-se o avental de couro do florista profissional. Um
tipão, alto, olhos risonhos, atraente...
Ficou sorrindo, encantado da vida, ao ver a freguesa.
— Boa tarde, senhorita... Em que posso servi-la? A
empregada já se foi, mas com o maior prazer...
— Oh, Johnny, menos parolagem... O tio Charlie está?
— À sua espera. Que tal o tempo em Washington?
— Bom.
— Naturalmente. Aqui o dia ficou nublado quando você
seguiu para lá. Deseja rosas vermelhas?
— Duas dúzias, como sempre. Enquanto isso, irei ver o
tio Charlie. Está de bom humor?
— Mais ou menos, como sempre também. Mas vai babar-
se todo ao vê-la.
Rindo, Brigitte passou ao compartimento dos fundos, que
estava cheio de caixas e saquinhos contendo sementes, bem
como de vasos com as plantas mais diversas. Atravessou esta
peça e saiu para o jardim. Logo avistou o tio Charlie
inclinado sobre uma roseira toda verde a amarela, de folhas
diminutas. Aproximou-se em silêncio, pôs-lhe um dedo nas
costelas e disse:
— Morre, vilão!
Charles Pitzer, inspetor da C.I.A., com autoridade sobre
um grupo de agentes especializados, estremeceu
violentamente, saltou de lado empunhando sua pá de
jardineiro... e caiu sentado na grama, enquanto Brigitte
punha-se a rir gostosamente.
— Que é isso, tio Charlie? Precisa cuidar desses nervos!
Acaso não confia no Johnny?
Charles Pitzer levantou-se, resmungando.
— Você não devia estar aqui, Brigitte. É muito
comprometedor para ambas as partes. Se identificarem você,
identificarão também o Johnny e eu, e se...
— E se identificarem vocês dois, serei identificada eu
também, já sei, a história de sempre... Mas estamos nos
Estados Unidos, não na Rússia, quer fizer, podemos
movimentar-nos com bastante tranquilidade.
— Só com bastante — precisou Pitzer. — Por que você
não chamou pelo rádio?
— Porque há coisas que não se pode enviar pelo rádio,
querido. Por exemplo, duas dúzias de rosas vermelhas... e
uma câmara fotográfica especial que neste momento está
faltando em minha bagagem.
— Que tipo de câmara?
— Filme infravermelho.
— Para que a deseja?
— Tenho um encontro esta noite, dentro de cinco horas,
no Central Park.
— Já sei... Pensa que poderá enganar esse homem da
M.V.D.?
— Naturalmente, querido! Sou Brigitte Montfort, não
uma Mata-Hari qualquer...
— Tenha cuidado para não acabar como ela —
murmurou Pitzer.
— Por que não? — contrapôs Brigitte. — Afinal de
contas, também minha mãe terminou seus dias assim.
— Desculpe, Brigitte. Não tinha intenção...
— Eu sei, não seja bobo, tio Charlie. Dê-me a câmara. O
Johnny me dará as rosas, e me largarei. Ainda tenho que ir à
agência de viagens conseguir passagem para o avião mais
próximo depois das doze, e pedir que me reservem uma
“suite” no melhor hotel de Palma de Maiorca.
— A Espanha será sua primeira escala?
— Sim. E a câmara?
— Venha comigo.
Retornaram ao compartimento dos fundos e ali Pitzer
abriu uma portinhola secreta, no corredor, que levava a um
aposento exíguo onde havia um possante rádio de um lado e
um armário do outro. Abriu o armário e ficaram a descoberto
os mais diversos aparelhos pertinentes à espionagem, desde
uma caixinha contendo “ouvidos mágicos” até uma flor
artificial que se convertia em agudo estilete, capaz de matar
um homem num segundo.
— É uma bonita rosa — elogiou Brigitte. — Combinará
bem com minha toalete.
Apanhou a rosa e colocou-a na lapela do seu “tailleur”,
enquanto Pitzer encontrava a câmara que ela havia pedido.
Era do tamanho de duas cerejas juntas, dispostas uma sobre a
outra, e tinha forma cônica.
— Esta é a mais apropriada para você, Brigitte. Saberá
fazê-la funcionar?
Brigitte olhou-o surpreendida, mas incontinenti, um doce
sorriso irônico apareceu em seus lábios.
— Diga-me uma coisa, tio Charlie: não é certo que você
está muito preocupado com essa minha viagem a Moscou?
— Pouco me importa aonde você vá. E se é bastante
louca para aceitar missões dessa natureza, que se arranje.
— Você já me incumbiu de missões mais perigosas —
recordou ela. — Afinal de contas, esta vai ser apenas uma
viagem de prazer.
— De prazer!... — quase gritou Pitzer. — Espero que
considere que o turismo não foi feito para espiões!
— Mas eu sou um gênio: farei turismo. Ciao, tio Charlie.
Eu o chamarei dentro de duas horas.
Deu-lhe um rápido beijo e saiu para a loja, onde o Johnny
lhe havia preparado uma esplêndida braçada de rosas, que
recebeu encantada e aspirou com delícia.
— Magníficas, Johnny! Espero encontrar aqui mais rosas
como estas, quando voltar da minha viagem de prazer.
— E eu espero continuar o seu exclusivo fornecedor.
Brigitte beijou um dedo, pousou-o sorrindo sobre os
lábios de Johnny e saiu da floricultura com seu ar de
mocinha deliciosamente elegante.
***
Na ponta de seu primeiro cigarro acendeu o segundo,
olhando ao redor de si, esperando surgisse o agente russo
que tinha enviado uma nota nada menos que à sede do
C.I.A., convocando para aquela hora e aquele lugar um
agente desta organização.
Tirara apenas quatro baforadas do cigarro, quando viu
aparecer um homem, que dela se aproximava
despreocupadamente. À sua direita, Brigitte tinha as águas
do lago; à esquerda, e na realidade ocupando todo o terreno
que podia utilizar para fugir, aquele homem surgido da
espessura àquelas horas pouco tranquilizadoras...
Mas o homem não empreendeu nenhuma ação violenta
contra ela. Acercou-se, deteve-se a três passos, olhando para
todos os lados, e murmurou:
— C.I.A.?
— M.V.D.? — sorriu Brigitte.
— Trouxe o microfilme?
— Claro que não.
— Em minha nota, eu disse para...!
— Não seja ridículo, homem. Você pode ter suas próprias
pretensões a respeito, mas nós decidimos fazer as coisas
como tinha sido combinado inicialmente. Um de nossos
agentes levará o microfilme a Domodedovo, o seu
espetacular aeroporto moscovita. Isso é tudo. Bem
entendido: nosso agente gozará de absoluta imunidade. Caso
contrário, as coisas poderão tornar-se... desagradáveis.
— É uma ameaça?
Brigitte encolheu os ombros.
— Se não tem mais nada a dizer-me, irei embora. Estão
esperando minha confirmação de que foi avisado quanto ao
que decidimos. Direi aos nossos que você está conforme.
Boa noi... Oh!
Brigitte havia iniciado a meia volta, resolvida a afastar-
se, ao que parecia, mas algo falhou em um de seus pés e ela
esteve a ponto de cair no chão. Recuperou agilmente o
equilíbrio, mas ficou vacilante. Tirou graciosamente um dos
sapatos e examinou o salto, que se desprendera.
— Suponho que estas coisas só acontecem com as
mulheres...
— Claro que sim. Nisto, como em tudo, as mulheres não
sabem mover os pés adequadamente. A respeito do
microfilme...
— Olhe... Não creio que deva insistir. Sou apenas uma
garota comum que recebeu instruções sobre o que devia
fazer. A decisão não compete a mim, de maneira que nada
mais temos a falar, acho eu.
— E quando pensam vocês enviar o seu agente?
— Chegará no devido tempo.
— Suponho que sim. Mas gostaria de saber...
— Você não compreende? Eu não sei nada. Só umas
poucas palavras que devia dizer-lhe. E já as disse.
— Mas é absurdo esse empenho de vocês em mandar um
homem a Moscou só para entregar um microfilme, quando
eu posso me encarregar dele.
— Também é absurdo que você tenha se deslocado até
Nova Iorque para vir buscar um microfilme que lhe seria
entregue a domicílio. Definitivamente, boa noite.
Agora sim, fez a meia volta, calçada num pé só e levando
na mão o sapato avariado. Afastou-se caminhando com um
claudicar gracioso, que corrigiu de pronto tirando o outro
sapato.
Chegou aonde tinha deixado o carro, meteu-se nele,
fechou a porta e retirou uma caixinha do porta-luvas. Abriu-a
e dela extraiu um pequeno aparelho em cuja face havia um
mostrador graduado com uma delgada agulha oscila- tória.
Apertou um botãozinho e a agulha começou a mover-se
rapidamente, da esquerda para a direita, ao mesmo tempo em
que se ouvia o suave cri-cri-cri de um delicadíssimo
mecanismo.
Sorrindo zombeteira, Brigitte deixou o aparelho no
assento contíguo e pôs o carro em movimento. Saiu do
Central Park pela esquina da Rua 59 com a Quinta Avenida,
descendo por esta última até a Catedral de São Patrício.
Deteve o carro junto ao meio-fio e saltou, levando na mão o
aparelhinho da agulha oscilatória. O cri-cri-cri foi-se
intensificando à medida que ela o aproximava da parte
inferior do carro. Deixou- se cair de joelhos quando o
cricrilar do aparelho era mais intenso e a agulha oscilava
mais fortemente; meteu a mão sob o carro e, tateando,
encontrou o que procurava. Retirou um pequeno disco
metálico de fixação magnética e olhou-o sorrindo, como se
acabasse de pregar em alguém uma peça divertida.
Voltou ao interior do carro, pôs o motor em marcha e
prosseguiu Quinta Avenida abaixo, até avistar o que estava
buscando: um carro da Polícia Metropolitana. Deteve-se
novamente, saltou, foi até a viatura policial e deu um jeito de
colocar o pequeno disco metálico em sua traseira.
Voltou ao seu carro, arrancou e afastou-se dali rindo
consigo mesma, como uma menina travessa.
Daria qualquer coisa para ver a cara dos homens da
M.V.D. quando seu detector os conduzisse diretamente a um
veículo da Polícia Metropolitana.
Vinte minutos depois entrava em seu apartamento, com
os sapatos na mão. Peggy veio da cozinha imediatamente.
— Telefonaram da agência de viagens, senhorita. Seu
avião sai às oito da manhã do aeroporto “John Kennedy”...
Voo número 474. Chegada a Palma de Maiorca às cinco da
tarde. Foi- lhe reservada uma “suíte” no “Hotel de la Bahia”,
um dos melhores de lá, conforme pediu.
— Obrigada, Peggy. Informe imediatamente o tio
Charlie, pelo rádio privado. Diga-lhe também que consegui a
foto do homem, e que a levarei amanhã cedo. Que ele me
mande notícias desse homem para o hotel de Palma de
Maiorca.
— Está bem, senhorita.
No mesmo instante soou a campainha do apartamento e
Peggy, a um sinal da linda espiã, foi abrir. Retornou
acompanhada de Frank Minello. E Frank Minello trazia na
mão um ser pequeníssimo, quase ridículo, que ladrava
agudamente. O contraste entre semelhante miniatura e o
porte atlético do jornalista fez Brigitte arregalar os olhos
deliciada.
— Olá, maravilha! — saudou ele. — Você não me
ouviu?
— Ouvir? Quando?
— Eu chamei, quando você entrava. Mas você meteu-se
no elevador, sem fazer caso de mim. Porque me odeia, bem
sei.
— Com toda a minha alma — sorriu Brigitte. — Mas,
que é “isso”?
— Um “chihuahua”, um desses bichinhos que as senhoras
levam na bolsa. Não é engraçado?
— Oh, sim, muito... onde o arranjou?
— Querida minha — suspirou Minello — você não sabe
que estive cinco dias no México, fazendo uma reportagem
sobre os preparativos iniciais para os próximos Jogos
Olímpicos? Nem deu pela minha falta, não é?
— Oh, sim, Frankie, claro que sim...
— Mentira — queixou-se tristemente Minello. — Mas
não importa. Eu sim, penso sempre em você, e trouxe-lhe um
presente de lá. Pareceu-me que você gostaria deste cãozinho.
— Bom... Eu lhe agradeço muito, Frankie. Mas acho-o
um pouquinho escandaloso, não é mesmo? Deixe-me segurá-
lo...
O diminuto “chihuahua” ladrava com fúria
desproporcional ao tamanho de seu corpo, e seus olhinhos de
rato iam de um lado a outro, nervosos, assustados... Mas tão
logo passou às mãos de Brigitte, calou-se subitamente, como
um rádio que acabassem de desligar.
— Raios me partam! — exclamou Minello. — Mas não é
mesmo asqueroso esse bicho? Esteve me enchendo a tarde
toda com seus latidos!
— É que você não tem o meu encanto, querido — sorriu
Brigitte. — Muito grata pelo presente...! e boa noite.
— Boa noite! — Minello protestou. — Será que nem
mereço um convite para jantar depois do sacrifício que me
custou trazer-lhe este... este monstro?
— Outro dia, Frankie. É um cãozinho lindo, e vou gostar
muito dele. Mas esta noite não posso tratar você tão bem
quanto merece.
— Você é cruel comigo, Brigitte. Mas eu a amo e sou
bom perdedor. Se há um outro homem em sua vida...
— Na minha vida há muitos homens! — riu Brigitte. —
E um deles é você. Agora, retire-se! Estou muito ocupada.
— Tem que escrever algum artigo para o Bicho-Papão?
— Sim. Isso mesmo. Vai por bem, ou deverei recorrer à
violência?
— Eu vou, eu vou... Está satisfeita com o cachorrinho ?
— Muitíssimo. Suma!
— Carrasca! — reclamou Minello.
E dirigiu-se para a porta, seguido de Peggy. Quando esta
retornou ao “living”, o cãozinho “chihuahua” estava
lambendo a mão de sua nova dona, e seus olhinhos salientes
brilhavam de pura alegria.
— É simpático — sorriu Brigitte.
— Que... que faço eu com ele? — inquietou-se Peggy.
— Não sei... Levo-o comigo — riu. — Creio que será um
companheiro divertido em minha viagem pela Europa. E
aposto qualquer coisa como ninguém vai entender nada: uma
espiã que passeia com seu cãozinho, em pleno serviço... Vá
chamar o tio Charlie. Mas não lhe diga nada sobre o
cachorrinho... Que nome lhe poderemos dar?
— Importuno — sugeriu Peggy, sorrindo.
— Não, não... Vai se chamar... “Cícero”, como aquele
famoso espião francês.
Deixou-o sobre o sofá. Peggy foi cumprir suas ordens, e
ela entrou no aposento privado do apartamento. A um canto
estava o pequeno laboratório fotográfico. Acabou de
desprender o salto do sapato, retirou-lhe a parte mais larga e
virou ao reverso. A pequena câmara para fotografias ao
infravermelho caiu em sua mão, deixando na ponta do salto
um orifício circular, pequeno, pelo qual tinha funcionado a
objetiva. Pouco depois estavam reveladas as três fotografias
do homem do Central Park: um tipo de rosto estreito, mas
viril, olhos grandes, nariz um tanto curvo e uma verruga na
comissura esquerda da boca.
Brigitte saiu do aposento privado, chamando:
— E o jantar, Peggy?
— Vou servi-lo imediatamente.
— Ótimo. Que disse o tio Charlie?
— Tudo entendido. Espera as fotografias.
— Estão neste envelope — estendeu-o. — Não se
esqueça de levá-las amanhã cedo. Agora vou jantar, depois
arrumaremos minha bagagem, bastante resumida. Espero
dormir calmamente antes de iniciar a viagem... E amanhã, às
cinco da tarde, em Palma de Maiorca... — olhou o
“chihuahua” e sorriu. — “Cícero” e eu vamos divertir-nos
imensamente na Europa, não é mesmo, “Cícero”,
queridinho?
O diminuto cãozito emitiu um alegre latido. Quem não
faria o mesmo?

CAPÍTULO TERCEIRO
Meia-noite: hora de fantasmas — Atirar para matar
Cena de morte em claro-escuro — Tempo de fugir

O avião tocou a pista em “Son San Juan”, o aeroporto de


Palma de Maiorca, às cinco e dez minutos da tarde. E depois
de cumpridos os trâmites da alfândega espanhola, Brigitte
fez-se transportar num táxi ao “Hotel de la Bahia”, situado
junto ao mar com vista sobre o cais. Ali, efetivamente, por
meio da agência de viagens, Brigitte Montfort tinha uma
“suíte” reservada.
Que resultou ser de frente e receber por suas amplas
janelas a luz deslumbrante de um céu sem nuvens, brilhante
sobre águas de um azul intenso. Brigitte abriu sua elegante
bolsa cor-de-rosa e retirou o “chihuahua”, sorrindo,
erguendo-o para mostrar-lhe a baía.
— Não é bonito isto, “Cícero”? E não é verdade que nos
vamos divertir muito? E que você vai conhecer outros
lugares sensacionais? E que... ?
A campainha do telefone deixou “Cícero” sem saber as
outras muitas coisas que lhe estavam reservadas. Sustendo-o
em uma das mãos, Brigitte foi ao aparelho e levantou o fone,
deixando-se cair em um sofá.
— Alô?
— “Baby”?
— Oh, Johnny... Você é ultrarrápido, querido! Acabo
justamente de chegar...
— Eu sei. Estou aqui desde ontem à noite, e fui
informado de que você chegaria esta tarde.
— Muito bem... E que tal a vida em Palma?
— Estupenda. Parece que o mundo deixa de girar, aqui...
Mas, infelizmente, continua girando sem cessar.
— Você é um especialista em Geografia — riu Brigitte.
— Devo entender alguma coisa especial em tudo isso?
— Bem... Digamos que se o mundo não para, nós
tampouco podemos parar.
— O que é uma pena... Diga-me: terei que sair muito
logo de Palma?
— O quanto antes. Sabe onde fica a Catedral?
— Mais ou menos. Mas suponho que poderei encontrá-la
facilmente: vê-se de qualquer ponto da cidade, segundo
parece. Por quê?
— Espero você lá, esta noite, às doze,
— Ah, não! À meia-noite, não, querido... Que seja às
doze e cinco.
— Ora essa! Por quê?
— Porque não me agrada a hora dos fantasmas. Tem a
encomenda para os nossos amigos?
— Claro. Bem... Peço-lhe que preste atenção, “Baby”.
Nos encontramos às doze, de modo...
— Às doze e cinco.
— Certo. Às doze e cinco minutos. Imediatamente, você
sairá de Palma: não deverá permanecer aqui nem um minuto
mais que o tempo necessário.
— Por quê?
— Porque sim. Você sabe o que acontece com pessoas
como nós. Aparentemente tudo está calmo, mas sinto no ar
um cheirinho que positivamente não me agrada. Se quer que
eu explique...
— Já notei esse cheirinho muitas vezes, Johnny. Você
acha que há mouro na costa, e que o nosso negócio... ?
— Digo-lhe que é só um cheirinho... um pouco pestilento.
Impressão minha, talvez. Mas essas impressões, esses...
sentimentos me permitiram continuar vencendo os
competidores durante a frioleira de nove anos na Europa.
Compreende?
— Compreendo. E admiro seu olfato, Johnny. Em nosso
negócio, manter-se longe da concorrência por nove anos é
pouco menos que um prodígio. Terei isto em conta. Que rota
me sugere?
— Nenhuma em especial. Simplesmente, abandone
Palma. Imagine que o chão aqui está demasiado quente para
seus pés. Corra o mais que puder. Esqueça os navios: avião,
“Baby”. Reserve passagem para o primeiro que decolar
depois das doze horas e cinco minutos. Okay?
— Okay, Johnny. Necessita de ajuda, acaso?
— No momento, não.
— Estimo. Como reconhecerei você, lá na Catedral?
¦— Eu reconhecerei você, se os dados que me forneceram
não são falsos.
— Que dados são esses?
— Deverei entregar a encomenda à mulher mais formosa
que já vi em minha vida. São dados falsos?
— São autênticos, Johnny — riu Brigitte. — Logo nos
veremos.
— De acordo.
Recolocou o fone e ficou olhando pensativamente o
aparelho. Sem dúvida, já aprendera havia muito que quando
o Johnny de serviço lhe sugeria correr, era porque não
poderia fazer outra coisa. Isso fê-la firmar-se em sua ideia de
que a viagem pela Europa ia ser tão aprazível quanto Mr.
Cavanagh tinha parecido crer... Ou não o crera?
Possivelmente, Mr. Cavanagh tinha sabido todo o tempo que
a coisa não seria tão fácil como parecia... E precisamente por
isso a havia escolhido para aquela missão.
A começar pelo truque de que lhe haviam feito objeto em
Nova Iorque... Era evidente que os russos queriam saber
quem ia ser o agente encarregado de levar o microfilme a
Moscou, e não tinham encontrado melhor modo de fazê-lo
que seguir quem se pusera em contato com eles no Central
Park.
A jogada... a suja jogada da M.V.D. parecia bastante
clara: apoderar-se do microfilme antes que chegasse a
Domodedovo, de maneira que, não o recebendo
“oficialmente”, não tivessem que libertar os três funcionários
da Embaixada Americana em Moscou. Negariam estar de
posse do microfilme e, portanto, reteriam os três norte-
americanos. Ao mesmo tempo, teriam eliminado o agente
incumbido de entregar-lhes o microfilme em Domodedovo,
sem lhe dar tempo de chegar ali... Mais ainda: esperavam
talvez que aquele agente da C.I.A., enviado em missão tão
pacífica, pudesse informar sobre muitas coisas referentes à
espionagem praticada por esta organização na Rússia.
— Parece, “Cícero”, que estamos metidos até o pescoço
numa suja manobra soviética.
O “chihuahua” contemplou-a expectante, um brilho de
curiosidade nos olhos arregalados. Mas como visse um
amável sorriso nos formosos lábios de sua dona, lambeu-lhe
a mão e lançou um gemido de profundo bem-estar, seguro de
que tudo teria que ir bem junto daquele fantástico e
carinhoso ser humano.
Brigitte dirigiu-se à sua única maleta, abriu-a, retirou-lhe
o conteúdo e levantou o fundo falso, onde transportava uma
pistola e algumas coisinhas mais que poderiam dar sérios
aborrecimentos a quem a molestasse. Mas aquela noite
parecia que tudo quanto poderia necessitar era a pistola, de
modo que a apanhou e prendeu-a na coxa esquerda com as
conhecidas tiras de esparadrapo cor de carne, sempre sob o
curioso e carinhoso olhar do minúsculo “Cícero”.
— Não me olhe assim — sorriu Brigitte —: você parece
um homem...
As pequeninas orelhas puseram-se tesas e um contido
ladrar de alegria brotou da boca pequena, mas bem provida
de agudos dentes.
— São sete horas apenas, menos alguns minutos... Uma
boa ideia, “Cícero”, seria dar um passeio por Palma e jantar
num lugar bonito, até a hora de ver o Johnny. Gostaria de vir
comigo?
***
Soavam as doze quando Brigitte começou a rondar pelas
cercanias da Catedral, levando o “Cícero” na bolsa. A
iluminação da Catedral era tanta, que ela se perguntou até
que ponto o Johnny havia acertado marcando o encontro em
semelhante lugar.
Aproximou-se lentamente, olhando para todos os lados,
como distraída, dando pequenas voltas, cada vez acercando-
se mais do ponto desejado.
Súbito, uma voz ergueu-se às suas costas.
— Olá, beleza!
Voltou-se e olhou de cima a baixo o homem que lhe
havia falado num espanhol claro, perfeito. Seu sorriso era
algo estereotipado, e tinha nos olhos um brilho de malícia
pessimamente contida.
— Olá — fez Brigitte.
— Inglesa?
— Não, americana.
— Ah... Eu sou espanhol: de Toledo. Mas gosto deste
lugar, e acho que cada pessoa deve estar no lugar que mais
lhe agrada... É uma turista?
— Sim, sou.
— Talvez possa... precisar de mim. Chamo- me Johnny
e...
— Chega, Johnny — riu Brigitte. — Seu espanhol é
formidável, mas creio que não conhece muito bem os
homens que está pretendendo imitar... Trouxe o microfilme?
— Você é “Baby”?
— Em muitas ocasiões sou “Baby”. Em outras sou
apenas um mulherzinha solitária, que escreve coisas num
jornal de Nova Iorque. Sua voz é idêntica à que ouvi pelo
telefone.
— Não me pareceu conveniente disfarçá-la. Vou
entregar-lhe o microfilme, “Baby”... Já pensou como
transportá-lo a Moscou?
— Naturalmente.
— Como o fará?
— Isso é comigo. Dê-me esse famoso microfilme e
desapareça, já que, ao que me consta, não lhe agrada o
ambiente de Palma.
Johnny sacou do bolso um postal e estendeu-o a Brigitte.
— Suponho que não necessita de explicações
complementares.
— Saberei como retirá-lo de dentro disto. É um bonito
postal, Johnny.
— Geralmente, encantam-me as pessoas tranquilas, com
muita serenidade e nervos de boa têmpera. Neste momento,
“Baby”, prefiro as que tomam decisões rápidas. Reservou
passagem para algum lugar?
— Não...
— Vá agora mesmo. Volte imediatamente ao hotel, pague
a conta e parta. Uma vez no continente, ás coisas serão mais
fáceis para você. Nesta ilha, tudo pode terminar mal.
— Não a chamam de “Ilha da Calma”?
— Sim... Referem-se ao tempo e às pessoas comuns, não
a gente como nós. Boa sorte, “Baby”.
— O mesmo para você, Johnny.
O agente do C.I.A. se afastou rapidamente, e Brigitte
permaneceu por um par de minutos contemplando a fachada
da Catedral. Depois tomou um táxi e fez-se conduzir ao
aeroporto, onde conseguiu passagem em voo noturno para
Nice, no avião que saía à uma e meia da madrugada.
Tinha tempo de sobra.
Entretanto, não se deteve pelo caminho. Regressou
diretamente ao “Hotel de la Bahia”, pediu a chave e subiu
para sua “suíte”, depois de encomendar a conta ao
surpreendido empregado.
Entrou na “suíte”, deixou o “Cícero” no sofá e correu até
o quarto. Sentou-se na cama, tirou do bolso o postal que
Johnny lhe havia entregado e estudou atentamente suas
bordas. Encontrou o lugar, meteu a unha e começou a
separar as duas folhas de cartolina coladas. Um truque
simples e velho, mas eficaz. Virou-se levemente, para que o
microfilme caísse sobre a cama...
E assim foi.
Uma pequena tira negra tombou sobre a colcha. Brigitte
tomou-a com a ponta dos dedos e olhou-a contra a luz. As
fotografias estavam naturalmente reveladas, mas eram tão
autenticamente microscópicas que não pôde ver nada em
absoluto. Impossível, sem uma lente muito forte ou uma
forte ampliação. Muito bem: ela possuía um visor que podia
servir para o caso. Claro que no negativo não poderia ver
nada que lhe permitisse conhecer a identidade daqueles
personagens, mas nunca se sabe o que pode resultar de uma
simples olhadela... que não custava nada.
Pôs-se de pé e voltou-se, disposta a ir buscar o visor... e
ficou cravada no chão, contendo a custo um grito de
surpresa, ao ver diante de si Johnny, muito pálido, uma das
mãos crispada sobre as costelas flutuantes do lado esquerdo,
a outra empunhando uma pistola com silenciador.
— Johnny...
— Não devia... estar ainda... aqui, “Baby”...
— Que aconteceu? — exclamou, aproximando-se
precipitadamente.
— Não toque em mim! Vai manchar-se de sangue...
Apanhe suas coisas e parta. Pela porta, não. Terá que se
arranjar... de outro modo...
Brigitte olhava o sangue que escorria por entre os dedos
da mão esquerda de Johnny. Depois olhou o rosto pálido de
seu companheiro, a determinação que brilhava naquelas
pupilas contraídas, como que emitindo uma luz concentrada.
— Que se passou?
— Não pergunte... Já tem o microfilme: agora, largue-se.
Já tem a passagem?
— Tenho... claro...
— Não perca nem um segundo mais. Sua maleta...
Recolha suas coisas... Vamos! E desta vez procure não ser
seguida!
— Colocaram em meu carro um detector magnético, mas
retirei-o...
— De qualquer modo, eles a seguiram. Sabem que está
aqui, viram-nos juntos... Sabem que lhe entreguei o
microfilme e quiseram eliminar- me... Mas não conhecem
Palma como eu...
— Devem ter-me seguido diretamente num carro,
souberam que tomei o avião...
— Não me dê explicações! Quero que parta agora
mesmo!
— Está bem, Johnny.
Recolheu velozmente suas coisas, meteu-as na maleta,
colocou o “Cícero” dentro da bolsa e voltou-se para o seu
companheiro de espionagem. Johnny indicou uma porta.
— O quarto de banho... dá para o interior... Saia pela
janela e desça... Já deveria saber o que tem a fazer, “Baby”!
— Não o quero deixar sozinho agora...
— Oh, vamos, deixe de pieguices! Estamos fazendo um
trabalho e amaldiçoarei você se não o terminar... Vá! É
possível que a estejam esperando lá fora, mas também
podem resolver vir aqui e matá-la... discretamente. Adeus!
— Seguiram você até aqui?
— Como quer que eu saiba? — quase gritou Johnny. —
Vá-se embora de uma vez!
— Poderíamos escapar os dois...
Naquele momento ouviu-se um leve ruído na porta da
“suíte”. Johnny olhou vivamente para lá, depois para
Brigitte.
— Aí tem a resposta — murmurou. — Farei o possível
para que não a sigam, “Baby”.
Dirigiu-se claudicando para a luz, que apagou. Brigitte
ouvia sua respiração ofegante, entrecortada, difícil. Uma vez
mais, encontrava um daqueles homens que por discrição
tinham o nome de “Johnny”, disposto a dar a vida no
interesse da C.I.A., ajudando um companheiro. Ele estava
gravemente ferido, e sabia-o. Por isso mesmo, consumia suas
últimas forças para facilitar a fuga de uma colega que, contra
vento e maré, deveria continuar o trabalho até o êxito final,
até o completo triunfo.
Ouviu-se fracamente o ruído da porta da “suíte” ao ser
aberta. Um ruído tenuíssimo, mas claramente perceptível
para dois espiões experimentados. Johnny deixou-se cair de
joelhos no chão, junto da porta, e moveu a mão que
empunhava a pistola, indicando o quarto de banho. Brigitte
apenas podia vê-lo, mas o gesto era suficientemente
significativo.
Voltou-se, correu silenciosamente para o banheiro e
desapareceu em seu interior. No quarto ficou apenas uma
penumbra curiosamente composta de várias cores
misturadas, provenientes de anúncios luminosos do Paseo
Marítimo de Palma de Mallorca... Luz... Sombra... Luz...
Sombra... Luz...
Os dois homens entraram sigilosamente na “suíte”,
pistola na mão. Um deles fechou a porta atrás de si, e a saleta
ficou às escuras. Mas diante deles, pela porta do quarto,
viam aquelas cores que apareciam e desapareciam: Luz...
Sombra... Luz...
Separaram-se e cada um deles aproximou-se da porta do
quarto por um lado, no mais completo silêncio. Estavam
muito perto da porta, quando um deles lançou uma
exclamação ao lobrigar naquela penumbra de cores
mescladas um reflexo suspeito...
E quando soaram os dois disparos abafados pelo
silenciador, as balas passaram roçando-lhe o peito, com um
estalido seco, para ir cravar-se na parede da saleta... Ao
mesmo tempo, o outro saltava para frente e sua mão
imprimia um forte impulso à pistola, que golpeou o punho de
Johnny, arrancando-lhe brutalmente a arma com que havia
disparado contra o primeiro.
Ouviu-se o débil gemido de Johnny, seu ofegar devido ao
esforço para tentar levantar-se e lutar com as mãos nuas, mas
o homem que o havia golpeado chegou antes que pudesse
consegui-lo e seu joelho, selvagemente impulsionado, deu
em pleno rosto do agente ferido do C.I.A., atirando-o para
trás.
O homem saltou sobre Johnny, sempre com a pistola
empunhada, e cravou-a na garganta do espião americano...
— Está desmaiado... Olhe pela janela do banheiro! Ela
deve ter escapado por lá... Atira para matar! Procuraremos o
microfilme em seu cadáver...
O que escapara por um triz das balas disparadas por
Johnny correu ao banheiro, entrou precipitadamente e, no
alto, defrontou a janela aberta pela qual, no exterior, via-se a
leve claridade proveniente das diversas dependências e
“suítes” do resto do hotel.
Com uma praga, acercou-se, preparando a pistola. Viu
fugazmente o tamborete do banheiro colocado sob a janela e
dispôs-se a aproveitá-lo...
Só isso.
Quando, os olhos sempre fixos na janela, ia colocar um
pé sobre o tamborete, algo passou por diante de seu rosto;
algo como um fio, uma corda, um cordão... Um cordão que
se cravou tão solidamente em sua garganta, que de pronto a
respiração faltou-lhe... Como num terrível pesadelo de luzes
e sombras, o homem quis reagir, mas um pé diminuto
introduziu-se entre os seus, fazendo-o perder o equilíbrio, ao
mesmo tempo em que o empurrão lançava-o de cara contra a
parede... enquanto o cordão, ou o que fosse, continuava
incrustando-se implacavelmente em sua garganta.
De relance, ele pudera ver duas pequenas mãos, e sabia
que quem o estava estrangulando tão impiedosamente era a
mulherzinha de sorriso tão doce, que estivera seguindo. Uma
mulherzinha que jamais poderia vencer sua tremenda força
muscular... Fez um esforço, tentando uma flexão de cintura
para colocar-se de frente para a mulher, mas foi surpreendido
por uma joelhada nos rins, que lhe reduziu mais ainda as
energias. Uma segunda joelhada, tão rápida como a primeira,
alcançou-o justamente quando sua cabeça batia outra vez
contra a parede... E diante de seus olhos esbugalhados as
trevas foram aumentando, aumentando...
As pequenas e “delicadas” mãos femininas não
afrouxaram sua pressão nem um instante, e a correia foi
cravando-se mais e mais na garganta do homem, até que sua
cabeça pendeu molemente. Então, aquelas mãozinhas deram
um último e brusco aperto, antes que uma delas soltasse uma
das pontas da correia, ficando o homem imobilizado no
chão, ao pé da janela.
Brigitte apanhou a pistola do inimigo derrotado e,
descalça, dirigiu-se para a porta do banheiro. Quando
assomou a cabeça, o outro homem continuava inclinado
sobre Johnny, revistando-o febrilmente, ajudado pela luz de
uma pequena lanterna...
— Parece que não está com este — resmungou o homem.
— Não deixe escapar a garota!
Deu uma rápida volta em torno de Johnny e, de joelhos,
dispôs-se a tirar-lhe os sapatos. Arrancou um deles e virou
um pouco a cabeça em direção ao quarto de banho.
— Você o que está fazendo?
Viu diante de si algo que não pôde identificar, no
momento. Moveu a lanterna, no instante justo em que do
Paseo Marítimo chegava um feixe de luz... Viu umas
admiráveis pernas femininas, uns pés descalços...
Lançou um pequeno silvo e sua mão foi em busca da
pistola, que deixara sobre o tapete...
Plop... Plop...
Sua cabeça estalou com sinistro rangido de ossos. As
duas balas empurraram-no violentamente por cima do corpo
de Johnny, fazendo-o bater contra a porta. Ficou caído de
bruços no chão do quarto.
Luz... Sombra... Luz... Sombra... Luz...
Uma delgada mão feminina recolheu a pequena lanterna e
fez incidir um jato de luz sobre o agente da C.I.A.
— Johnny... Está me ouvindo, Johnny?
— Vá-se... embora... daqui...
— Está tudo acabado, querido. Aonde posso levar você?
— Vá-se embora!...
— Não seja cabeçudo! Já ajeitei tudo aqui...
— Você... vai perder... o... o avião...
— O avião me esperará, porque sou muito simpática.
Pode levantar-se?
— Não. Vá-se embora...
— Não seja frouxo: ponha-se de pé. Eu o ajudo...
Como num sonho doloroso e cheio de zumbidos, Johnny
viu diante de si um braço maravilhoso, perfeito, mas tão
frágil... Bem: forçaria com todo o seu peso aquele bracinho,
convenceria a “Baby” de que nada podia fazer por ele, e ela
seguiria para Moscou. Isto era o importante.
Pôs as mãos naquele braço, com os dedos crispados,
fazendo pressão para baixo. Contra o que esperava, aquele
braço não cedeu e, em contrapartida, ele alçou-se algumas
polegadas.
— Não seja infantil, Johnny. Se eu não tivesse
capacidade para ajudá-lo, já teria partido. Você não me
convencerá de que devo deixá-lo aqui. Faça um esforço.
Então Johnny fez o esforço, experimentando pôr-se de pé.
E conseguiu, ajudado por aquele “débil” bracinho feminino.
— Aonde temos que ir, Johnny?
— Estou... neste mesmo... hotel... Na “suíte” cinco...
— Fica no andar de baixo, segundo creio. Chegaremos lá.
Ponha a mão sobre a ferida, aperte as mandíbulas e
mantenha-se firme nas pernas: vamos descer. Lá cuidarei
melhor de você.
— Basta que... me leve... Tenho a quem recorrer...
— Não seja mentiroso, Johnny.
— Falo sério, “Baby”... Leve-me apenas... e amanhã de
manhã ninguém poderá encontrar-me. Tenho... amigos em
Palma...
— Companheiros da C.I.A. ?
— Claro... Eles se encarregarão de mim...
— De acordo. Agora, concentre toda a sua energia em
caminhar.
Dirigiram-se para a porta da “suíte”. Brigitte abriu-a e,
não vendo ninguém no corredor, ajudou Johnny a sair.
Àquelas horas, os hóspedes do hotel deviam estar passeando
pelas praias ou divertindo-se no “Jack El Negro”, o mais
famoso clube noturno da cidade, conforme entendia
Brigitte...
Chegaram ao andar de baixo sem novidade. Brigitte abriu
a porta da “suíte” cinco, fez Johnny entrar, fechou a porta e
acendeu a luz. Ajudou seu companheiro até o sofá, acendeu
um cigarro, colocou-o em seus lábios e olhou docemente
aquele rosto terrivelmente pálido.
— Chame seus companheiros -— sugeriu.
— Não... acredita... em mim?
— Quero ter certeza de que fica em boas mãos, Johnny.
Só isto. Não seguirei viagem sem saber em que pé estão as
coisas.
— Está bem... Vou chamar...
Ele levantou o fone e Brigitte foi até o quarto. Enquanto
rasgava um pedaço de lençol, ouviu Johnny pedindo um
número na cidade. Quando voltou para junto dele, Johnny
estava perguntando:
— José Maria?
— Não, não... Mas peço-lhe que venha. Estou ferido e
preciso de auxílio... Está bem. Até já.
Repôs o fone no gancho e olhou para Brigitte. Ela
aprovou com um aceno, retirou a mão de Johnny de sobre a
ferida que tinha no flanco e examinou-a detidamente.
Depois, sem dizer palavra, aplicou-lhe um tampão, de modo
que ele pudesse ficar pelo menos uma hora sem perder mais
sangue. Finalmente, inclinou-se sobre o companheiro e
beijou-lhe os lábios.
— Até a vista, Johnny.
Encaminhou-se para a porta. Só então o agente do C.I.A.
chamou:
— “Baby”...
— Sim, Johnny?
— Agora sei que esse microfilme chegará a Moscou.
Brigitte sorriu como um anjo.
— Claro que sim, querido. Pois não havia de chegar?
CAPÍTULO QUARTO
Galanteios entre as nuvens — “Entreverá” entre pinheiros
Um pequeno tropeço

Brigitte retornou aos seus aposentos e, sem acender as


luzes, correu até o quarto de banho; ali, sim, acendeu a luz e
dirigiu-se à banheira no fundo da qual, bem envolto numa
toalha, apareceu o cãozinho “chihuahua”, quase asfixiado
devido a um pedaço de fita que lhe apertava fortemente o
focinho.
— Mon petit — sorriu docemente Brigitte. — Terá que
me perdoar por não poder permitir que desse um dos seus
escândalos de latidos...
Retirou-lhe a mordaça e o cãozinho ficou tremendo em
sua mão, com todos os seus nervos à flor da pele. A
sensacional espiã afagou-o carinhosamente, até conseguir
acalmá-lo, embora não logrando evitar alguns pequenos
ladridos de ressentimento.
Retirou em seguida a correia de couro do pescoço do
morto e tornou a prendê-la na coleira do cãozinho. Sempre
com este na mão, saiu dali e foi dar uma vista de olhos ao
outro homem, coisa desnecessária, pois, a um simples olhar,
se deduzia que uma pessoa com a cabeça, rebentada por dois
balaços não poderia jamais continuar com vida.
Recolheu suas coisas, saiu da “suíte” e desceu ã portaria.
Pagou a conta, deixou o hotel num táxi que lhe haviam
chamado e mandou o chofer tocar para o aeroporto.
Quando lá chegou, faltavam quatorze minutos para a
saída do avião, de modo que pôde abordar este com
tranquilidade. Uma olhadela em torno certificou-a de que
naquele voo noturno viajavam muito poucas pessoas.
Melhor.
O voo até Nice duraria cerca de uma hora. Esperava fosse
tempo suficiente, antes que no “Hotel de la Bahia”
mandassem alguém arrumar aquela “suíte” para o hóspede
seguinte. Possivelmente, com um pouco de sorte, deixariam
a “suíte” tal como estava até pela manhã, caso em que tudo
sairia perfeitamente, embora fosse de esperar que a policia
espanhola recorresse à Interpol solicitando a captura da
cidadã americana Brigitte Montfort... Tudo isso se as coisas
corressem do pior modo possível, pois era de esperar que
Johnny e seus amigos de Palma dessem um jeito para fazer
desaparecer a tempo os dois cadáveres, caso este em que
tudo ficaria em águas mansas e a cidadã Brigitte Montfort
não teria a Interpol ao seu encalço...
O último passageiro apareceu na pista, quase correndo em
demanda do aparelho. E apenas ele subiu, o primeiro dos
motores começou a roncar, após retirada a escada.
O homem deixou-se cair no assento contíguo ao de
Brigitte, aparentemente sem que ao menos a tivesse visto.
Deixou a pasta sobre os joelhos, sacou um lenço e enxugou o
suor da testa, suspirando e resfolegando.
Súbito, viu Brigitte ao seu lado e ficou como que
petrificado um instante.
— Olá — sorriu em seguida. — Se me descuido, perco o
avião...
Brigitte sorriu cordialmente.
— Eu vi como correu. Por sorte, chegou a tempo...
— Por sorte, sim. Ficaria muito aborrecido se perdesse
este avião... Tenho assuntos muito importantes esta mesma
noite em Nice... Vai para lá?
— Se estou neste avião... — tornou a sorrir Brigitte.
— Como?... Ah, sim! Claro...
Naquele momento passava a aeromoça e fez sinal ao
homem para, como já tinham feito os demais passageiros,
colocar o cinturão de segurança. Sobre a entrada da cabina
do comando apareceu escrito em letras luminosas: Não
Fumar. No smoking.
Pouco depois se apagaram estas letras e o rádio de bordo
deu as boas-vindas aos viajantes, com informações sobre as
características do voo.
— Um cigarro? — ofereceu o homem a Brigitte.
— Aceito... Obrigada.
O desconhecido acendeu-o, sorriu e pôs-se a olhar
curiosamente o “chihuahua”, cuja cabecinha nervosa
aparecia na abertura da bolsa.
— É um desses cães mexicanos de nome complicado,
não? Já tinha visto um no cinema, com o Xavier Cugat.
— Chamam-se “chihuahua”, um nome indígena, segundo
creio.
— São graciosos, assim tão pequenos... Meu nome é Luís
Capdevila.
— Brigitte Montfort.
— Oh... Francesa? Fala o espanhol melhor do que-eu.
Meus amigos dizem que não se nota muito meu acento
catalão. É que o espanhol... Bem, são coisas que acontecem
aqui. Mas suponho que na Franca também haja diferenças de
linguagem...
— Acontece em todos os países — sorriu Brigitte. —
Mas eu não sou francesa, sou americana.
O espanhol olhou-a como maravilhado.
— De fato? Pois lhe asseguro que a ouvindo falar
ninguém pensaria isso. Para mim, tanto poderia ser de Madri
como de Cuenca ou Santander... Viagem de turismo?
— De recreio, sim — disse Brigitte quase rindo.
— Jantou? Podemos pedir alguma coisa para...
— Obrigada. Mas pode pedir o que desejar.
— Vejo que há muitos lugares vazios. Se a incomodo...
— Não, não. De maneira alguma. Será mais agradável ter
alguém com quem conversar durante esta hora de voo.
Luís Capdevila sorriu. Ergueu a mão e apertou o botão de
chamada. O comissário de voo apareceu quase
imediatamente. O espanhol pediu cerveja bem gelada e um
par de sanduíches.
Brigitte olhava-o atentamente, sem desmanchar seu
sorriso. Capdevila era homem elegante, agradável; devia ter
uns trinta e cinco anos e suas maneiras eram afáveis,
corretas. Seu olhar denunciava uma admiração evidente, mas
tão discreta que mulher alguma se poderia julgar ofendida.
— Damos alguma coisa ao cãozinho? — perguntou ao
receber os sanduíches.
— Ele também jantou.
— E o que comem esses bichinhos?
Brigitte quase se pôs a rir.
— Ora, a mesma coisa que qualquer outro cão. Pelo
menos é o que suponho. Foi-me presenteado ontem, e ainda
não sei bem o que devo fazer com ele. Tem passado a leite e
carne macia... E não parece esteja achando ruim.
— Um bom regime para qualquer animal, seja irracional
ou não, creio eu.
Brigitte riu.
Iluminou-se novamente o aviso Não fumar — No
smoking e foi recomendado colocar os cinturões. Ouvia-se o
roncar dos motores, como um zumbido monótono, quase
entorpecente. Diante e abaixo deles, Nice brilhando
ofuscadoramente na noite negra... Em franca descida, o
aparelho aproximava-se do aeroporto, perto do mar e aos pés
da Colline de la Lanterne, na grande planura.
— Já esteve antes em Nice?
— Não — mentiu Brigitte.
— Não tem amigos aqui?
— Não, não...
— Então, terá que hospedar-se num hotel...
— Sem dúvida.
— Posso recomendar-lhe um excelente. Melhor: se me
permite, levo-a até lá.
— Perdão...
— Um de meus sócios deve ter mandado seu carro
buscar-me no aeroporto. Terei muito prazer em conduzi-la a
um bom hotel, senhorita Montfort.
— Oh, por favor, não quero dar-lhe este incômodo...
— Incômodo? — sorriu ele. — Repito que será um
grande prazer. Oh...
— Então?
— Bem... — Capdevila sorriu simpaticamente. — Sei
que os espanhóis têm fama de mulherengos, de
conquistadores, mas...
Brigitte riu, divertida.
— Por favor, senhor Capdevila! Ia propor-me alguns
encontros em Nice... Não é assim?
— Seria muito agradável para mim. Mas se não lhe
parece conveniente...
— E por que não? Estou viajando por puro prazer. E um
desses prazeres pode ser aceitar suas amabilidades. Ficarei
encantada de vê-lo sempre que puder dispor de tempo para
mim.
— Senhorita Montfort, considero a sua franqueza
adorável e... Creio que poderíamos começar agora mesmo a
tratar-nos menos... protocolarmente.
Os maravilhosos olhos azuis de Brigitte pousaram nos do
espanhol com expressão intensa.
— De pleno acordo, Luís.
— Feito! — exclamou ele alegremente. — Lamento não
lhe poder dedicar esta noite, devido aos meus assuntos... Mas
espero que até amanhã estejam resolvidos, pelo menos em
grande parte.
— De qualquer modo, já é muito tarde. Irei diretamente
para o hotel... que você me recomende.
— Se meu sócio não esqueceu de mandar o carro, será
nele que a levarei. Se esqueceu, será num táxi. O prometido
é devido. E eu não desejo perdê-la de vista.
Puseram-se a rir os dois.
O avião tocou em terra e os passageiros foram admitidos
em território francês após a comprovação de seus
passaportes. Pouco depois, Brigitte e o espanhol
abandonavam o aeroporto e dirigiam-se ao local de
parqueamento.
Tiveram que caminhar alguns passos apenas, pois um
homem surgiu diante deles, saudou Capdevila e disse-lhe
que Monsieur Ledoret esperava por ele na vila. Tudo isto
falando em francês, de modo que Brigitte entendeu
perfeitamente.
— Você fala francês, Brigitte? — perguntou o espanhol.
— Não... Bem, um pouquinho — mentiu ela.
— Então, ainda lhe serei mais útil em Nice. Meu sócio
espera-me em sua vila, de modo que esta noite, lamentando
profundamente, só poderei servi-la deixando-a num hotel...
— É mais que bastante, Luís. Teremos todo o tempo do
mundo quando os seus assuntos estiverem resolvidos.
Capdevila sorriu, tomou-a gentilmente pelo braço após
indicar ao homem a maleta de Brigitte e os dois lá se foram
atrás do chofer. Chegaram a um grande carro, um tanto velho
e coberto de poeira. O chofer parecia chamar-se Anatole e,
seguindo instruções de Capdevila, nem sequer guardou a
maleta no porta-malas, mas colocou-a no assento dianteiro,
junto dele.
— Iremos pela Nacional 7, de modo que entraremos em
Nice diretamente pela Promenade des Anglais... Gostará de
ver esse passeio à noite, Brigitte. Unido a ele está o Quai des
États Unis, também muito bonito, mais próximo ao porto... E
no trajeto para Nice poderá ver as luzes de muitos iates na
Baía dos Anjos... Baie des Anges, em francês... Vai gostar de
Nice.
— Assim o espero. Quando se empreende uma viagem de
prazer é essencial escolher belos lugares, Luís.
— Certamente.
O carro afastava-se do aeroporto, rodando em boa marcha
pela Nacional 7. Mas logo abandonou esta estrada, tomando
por um caminho pouco menos que em péssimas condições.
Brigitte olhou surpreendida para o espanhol.
— Que está acontecendo?
— Há um trecho em reparos... Será preciso subir agora
até a 202, de modo que entraremos em Nice pela Avenue
Thiers.
— Ah... Está bem. Sinto causar-lhe tanto trabalho...
— Teríamos que fazer este trajeto de qualquer forma, já
que a vila do meu sócio está do outro lado da cidade, em
Mont Boron.
O carro seguia pelo péssimo caminho, orlado de pinheiros
de copa chata. O ar da noite tinha um delicioso aroma...
Súbito, o carro saiu do caminho e, com um solavanco,
deteve-se numa pequena clareira rodeada de pinheiros por
entre cuja espessa ramagem filtrava-se a luz da lua.
Luís Capdevila levou a mão à axila para sacar um
revólver, enquanto olhava para Brigitte com um novo sorriso
maligno, irritante.
— Bem, senhorita Montfort: vejo que lhe falta um pouco
de ligeireza...
Plop. Plop.
Luís de Capdevila encolheu-se como se acabasse de
receber um canhonaço em pleno estômago. Mas, na
realidade, tudo o que havia recebido eram duas balas...
Somente, duas balas. O suficiente, porém, para que todo ele
ficasse fora de combate e seu revólver caísse no fundo do
carro, perto dos pés de Brigitte, que então, deixou ver sua
pistolinha com coronha de madrepérola e dispositivo
silenciador já adaptado de origem. Tinha-a já apontada para
a nuca de Anatole, que apenas dispusera de tempo para
tentar mover-se, sobressaltado.
— Quieto, Anatole — disse em francês impecável — que
as coisas agora estão tomando outro rumo.
Luís Capdevila, entre seus gemidos, deixou escapar
palavras ressumantes de ódio:
— Maldita... seja...!
— São pontos de vista, querido Luís. Há quem me
bendiga. Terá que saltar... Abra a porta.
— Não... não posso...
— Abra!
Luís Capdevila moveu a mão, torpemente, até encontrar o
trinco, sem deixar de gemer. Abriu a porta e então Brigitte
empurrou-o rudemente para fora, fazendo-o rodar pelo solo
gemendo de dor, as mãos novamente crispadas sobre o
estômago.
— Desça você também — disse Brigitte a Anatole. — E
se acha que eu sou alguma mocinha tola, é possível que se
engane...
Anatole sabia já muito bem que aquela mocinha podia ser
tudo, menos tola, pelo que optou por obedecer. Brigitte
saltou ao mesmo tempo que ele, cobrindo-o sempre com sua
preciosa arma.
— Volte-se e ponha as mãos sobre o carro. Os pés bem
para trás...
Anatole obedeceu mais uma vez, assustado com os
gemidos agônicos de Luís Capdevila, mas disposto a entrar
em ação à menor oportunidade. Quando aquela garota lhe
viesse pelas costas para tirar-lhe o revólver, pois era sem
dúvida o que pretendia fazer, ele lhe daria uma lição que...
Recebeu um golpe tão violento na base do pescoço, sobre
o ombro direito, vibrado por Brigitte com a pistola, que seus
joelhos se dobraram bruscamente, enquanto todo ele se
encolhia lançando um grito de dor.
— Pode gritar quanto quiser, amigo, pois não há ninguém
para ouvir: vocês mesmos escolheram este magnífico lugar...
Não, não se levante: de joelhos está perfeitamente.
Tirou-lhe o revólver com habilidade tão consumada, que
Anatole acabou de se convencer de que a partida já tinha um
ganhador indiscutível... E estendido de lado no chão, Luís
Capdevila gemia cada vez mais fracamente, as mãos tintas
do sangue que brotava da dupla ferida em seu estômago.
Súbito, calou-se.
— Um de menos... — Anatole estremeceu à fria voz de
Brigitte soando por trás dele. — Agora se ponha de pé e
volte-se para mim. Tenho algumas perguntas a fazer.
Anatole obedeceu mais uma vez. Ficou apoiado de costas
contra o carro, apertando com a mão esquerda o lugar onde
recebera o golpe, tentando aliviar aquela dor intensa.
— Nome? — sorriu geladamente Brigitte.
— A... Anatole...
— Daqui até Moscou a distância não é tão grande que eu
não possa perder uma semana inteira — advertiu Brigitte —
para convencê-lo a dizer a verdade.
— É... é verdade... Sou francês e... ele — indicou
Capdevila — e eu... nos pagaram para detê-la e chamar um
número... em Cannes...
— Que número?
— Não sei... Era o Michel quem sabia...
— Michel é este?
— É...
— Que fazia ele em Palma de Maiorca?
— Recebeu ordem para... que fosse lá...
— Ele e os outros dois?
— É...
— Quem deu a ordem?
— Não sei, não sei... Eu só fazia pequenos trabalhos...
Guiar o carro... coisa assim... Os três foram a Palma. Tinham
que vigiar o aeroporto, para esperá-la...
— A mim? — Brigitte franziu as sobrancelhas. — Acaso
me conheciam?
— Claro... Temos fotografias suas. Recebemos uma cada
um... e assim podíamos localizá-la a qualquer momento... Os
três foram a Palma com ordem de esperar... que fizesse
contato, pois nos disseram que possivelmente em Palma
alguém lhe entregaria o... esse microfilme que querem... que
queriam que conseguíssemos. Eu só tinha que esperar em
Cannes, para quando os três chegassem de Palma, depois de
lhe terem tirado o microfilme, levá-los no carro aonde nos
indicassem por meio do telefonema que o Michel tinha que
dar...
— Compreendo. E Michel lhe telefonou para Cannes,
disse que fosse esperá-lo no aeroporto de Nice e, como são
apenas uns trinta quilômetros, você pôde consegui-lo... Não
é isso?
— Exato.
Brigitte ficou pensativa, sempre mantendo a vigilância
sobre Anatole. A coisa, segundo lhe parecia, estava bastante
clara: em Nova Iorque haviam conseguido segui-la, apesar
de tudo. Depois, souberam que voaria para Palma de
Maiorca e, visto que também haviam conseguido fotografá-
la, enviaram sua fotografia por teletipo... Esperaram-na em
“Son San Juan”, o aeroporto de Palma, e seguiram-na.
Viram-na entrar em contato com Johnny, atacam a este, e
ela, certamente por casualidade, logra despistá-los em Palma
enquanto vai buscar a passagem para Nice. Mas sabem em
que hotel ela está e, como Johnny conseguiu escapar-lhes,
vão à procura dela, convencidos de encontrá-la ali...
O cerco era perfeito, quase impossível de romper.
Quase.
— Tem aí minha fotografia? — perguntou.
— Tenho...
— Passe para cá. E cuidado com as mãos...
Anatole teve muito cuidado com as mãos, sobretudo
porque sua única arma lhe havia sido arrebatada por Brigitte.
Dentro do carro, o “Cícero” ladrava agudamente, sem
descanso, depois dos momentos de paralisação pelo terror.
Seu corpo minúsculo estremecia violentamente,
transformado num feixe de nervos tensos.
— Afaste-se do carro e ponha-se de joelhos, Anatole. Um
pouco mais para lá... É isso.
Brigitte colocou-se de lado junto à porta do carro.
Introduziu a mão. Apanhou a bolsa e retirou-a.
— Bico calado... — sorriu. — Não seja escandaloso,
“Cícero”.
Meteu a mão por baixo do cãozinho e retirou-a em
seguida com uma esferográfica, que convenientemente
manejada converteu-se em lanterna. Dirigiu o fino jato de luz
para a fotografia que Anatole lhe havia entregue. Era ela
mesma, sem dúvida alguma. A fotografia fora obtida
precisamente no Central Park...
Sorriu ao pensar que enquanto enganava o agente da
M.V.D. obtendo sua fotografia, ele obtinha a dela, por sua
vez... O jogo era de vivaldino contra vivaldino. Só que o da
M.V.D. havia demonstrado ser muito astuto: colocara o
aparelho localizador enquanto ela fumava o primeiro cigarro,
depois fora falar com ela, mas já convencido de que
encontraria o disco magnético. Então, ela confiara... e ele a
seguira diretamente, em outro carro... Se, por mal de seus
pecados, ela não era a única pessoa esperta neste mundo...
— Há quanto tempo trabalha para a M.V.D., Anatole? —
perguntou de repente.
— Hem?... Eu não trabalho para M.V.D. nenhuma!
— Não? Para quem, então?
— Não sei! Michel era quem dava as ordens... Dizia:
Anatole, faça isto; Anatole, vá lá com o carro; Anatole,
apanhe-nos a tal hora, em tal lugar... Não sou um espião!
— Claro, claro... E quem dava as ordens ao Michel?
— Não sei!
— Pois é pouca sorte minha: o único que ainda está vivo,
e é o que menos sabe... Não está mentindo, Anatole?
— Juro que não!
— Disse-me tudo o que sabe?
— Juro!
— Não jure tanto: não é bonito. Bem... Sinto muito,
Anatole, mas temo que...
Anatole ergueu a mão esquerda, bruscamente,
empunhando uma grande pedra, ao mesmo tempo em que
iniciava um grito de raiva explosiva... Brigitte só teve que
apertar o gatilho de sua pistola um par de vezes, e o homem
foi violentamente lançado para trás pelas balas. Ela
aproximou-se dele, passou-lhe o pé por baixo da axila e
virou-o, tal como o faria um pistoleiro do velho Oeste
querendo certificar-se da morte de seu inimigo após um
duelo a revólver.
— Pobre Anatole... Mas pelo menos tentou fazer alguma
coisa: temi ter que matá-lo a sangue-frio, o que na verdade
não me agrada... Oh, por favor, “Cícero”, pare de ladrar um
pouco, amorzinho.
O “chihuahua” parecia a ponto de enlouquecer, mas
Brigitte entrou no carro, sentou-se ao volante e fez-lhe
carinhos até acalmá-lo completamente.
— Você é muito comprometedor, “Cícero”. Terá que
aprender a ficar calado enquanto faço alguma coisa feia,
compreende?
Deixou a bolsa no assento contíguo e pôs-se a revistar o
carro, mas nada encontrou de interesse. Nem planos, nem
endereços ou números de telefone, ou. armas, ou rádios de
bolso... Nada, Aquele carro só podia servir-lhe para sua
missão específica: viajar.
— Pois viajaremos — sorriu Brigitte. — Receio bastante
que minha permanência em Nice não seja conveniente.
Embora espere que levem pelo menos três dias para
encontrar os nossos amigos Michel e Anatole... E se Michel
tiver consigo algum endereço, ou telefone...?
Saltou velozmente do carro e correu até o cadáver do
falso Luís Capdevila. Mas um minucioso e hábil exame
convenceu-a de que o morto guardara todos os dados na
cabeça, prescindindo de anotações perigosas.
— Pouca sorte... Vejamos o que me sugere o mapa para
prosseguir minha viagem de prazer, depois deste pequeno
tropeço.

CAPÍTULO QUINTO
Um “chihuahua” feliz da vida — Pode-se confiar num
desconhecido? — Duas mulheres de briga — Quando uma rosa não
é uma rosa

Chegou a Lyon de madrugada, a pé, havendo deixado o


carro abandonado e sem combustível após percorridas as
duzentas e cinquenta milhas que separam esta cidade da de
Nice. Só nas cercanias da cidade considerou-se a salvo.
Tomou um ônibus num ponto terminal, desceu quando já em
pleno centro e fez-se conduzir de táxi a um hotel de
categoria média, de acordo com o próprio critério do
motorista.
Podia ter utilizado o carro para prosseguir até a Suíça.
Mas não só lhe teria resultado incômodo cruzar a fronteira,
como também teria deixado uma pista nítida; supondo que os
suíços não suspeitassem tratar-se de um carro roubado, caso
em que lhe pediriam garantias que não possuía ou a deteriam
para passar aviso à polícia francesa e italiana.
Portanto, o mais conveniente, já que tinha tempo de sobra
e constava de seu passaporte a entrada em França por Nice,
era viajar por este país. E Lyon era a cidade importante mais
afastada de Nice que poderia alcançar com o combustível
que havia no tanque do carro.
Em Lyon permaneceu pouco mais de um dia. Na manhã
de vinte e nove, sexta, tomou um avião para Berna, na Suíça.
Poderia ter voado a Genebra e dali dirigir-se em automóvel à
cidade, ou, melhor dito, ao povoado francês de Saint Honoré,
com sua formosa champanha e seu tranquilo balneário, que
tantas recordações lhe inspiravam2, mas exatamente porque
teria sido reconhecida ao chegar ali, preferiu encompridar
mais o voo. Berna era um bom lugar para, dali, dirigir-se em
automóvel a um pequeno povoado chamado Nimiz, à
margem do pequeno lago subsidiário do Neuchatel, a umas
quinze milhas de Berna.
Ali, em Nimiz, também um bonito balneário, esteve
Brigitte descansando da viagem de “prazer” que realizava.
“Cícero” estava feliz da vida naquele lugar tranquilo, sem
disparos, sem mortos, sem homens estrangulados com sua
bonita correia de couro finamente trançado.
Em mais de uma ocasião, Brigitte esteve tentada a levar o
microfilme a algum lugar onde pudesse obter cópias
ampliadas, já que não levava sua bagagem completa com o
necessário para fazê-lo ela mesma. Mas pareceu-lhe uma
imprudência desnecessária e, por outro lado, naquelas horas
de completo descanso, estivera elaborando um plano muito
melhor.
E mais agradável.
Tanto, que se sentiu deliciosamente satisfeita ao pensar
que ia tomar a ver “Alexandria”... Seu querido e adorado
2
Ver novela “Um Tiro no Azul”, novela número 36 desta coleção. NE
“Alexandria”... O mesmo que se declarara à sua disposição,
sempre que dele necessitasse.
Pois bem: necessitava. E estava certa de que ele
tampouco a esquecera3.
E assim, depois de dois dias passados a pensar
detidamente em seu plano, começou a pô-lo em prática no
terceiro, isto é, domingo, trinta e um de julho. O primeiro
passo foi encomendar passagem de vagão-leito para o trem
que saía àquela noite de Berna, rumo ao norte da Europa.
Destino Francforte. Perto do meio-dia, a gerência do hotel
garantiu-lhe a reserva para aquela viagem.
E, à tarde, após uma pequena sesta, ela enviou, valendo-
se sempre dos serviços do hotel, um telegrama dirigido a
certa cidade em agradável região da Alemanha Ocidental,
para ser entregue ao Barão Wilhelm von Steinheil.
O telegrama dizia:
Dia um agosto dezenove horas me espere
arredores check-point “Charlie”, Berlim, lado
oeste. Beijos
Brigitte

Quando desceu ao vestíbulo do hotel, o sol claro do


exterior fazia esquecer o ligeiro frio do lugar. Um frio seco,
quase amável, que se convertia numa compensação sob o
seco sol.
— Suponho que vá partir, senhorita Montfort?
Brigitte voltou-se um pouco surpresa, mas já havendo
reconhecido a voz do homem.
— Oh, senhor Schultz...
— Assustei-a?

3
Ver novela “Um Espião Nazista”, novela número 20 desta coleção. NE
— Não, não... Estava distraída, pensando... Sim, de fato,
parto esta noite para a Alemanha.
— Vamos sentir sua falta — disse ele, sorrindo um tanto
decepcionado. — Especialmente eu, se me permite dizê-lo.
— Ah... Despertei seu interesse... em algum sentido ?
Karl Schultz conseguiu outro sorriso, não menos
decepcionado. Era um homem agradável, varonil, de uns
quarenta anos. Tinha alguns fios brancos nas têmporas, e
isso tornava-o mais atraente. Vestia-se sempre com severa
elegância, sempre com um bonito e adequado lenço
envolvendo-lhe o pescoço. Tinha o ar de um esportista
tranquilo, sereno. Uma serenidade que estava muito de
acordo com o azul-claro de seus olhos.
— Em muitos sentidos — admitiu. — Posso convidá-la a
tomar alguma coisa? É agradável o terraço, a esta hora. O sol
aquece o suficiente para não incomodar, e o frio faz uma
pausa esperando a noite.
— São palavras convincentes — riu quietamente Brigitte.
— Aceito encantada o convite, já que ainda disponho de
duas horas, creio.
— Suponho que tomará o vagão-leito das nove e meia?
— Foi o que me disseram. Terei ainda que apanhar minha
passagem na portaria...
— Há tempo. Aliás, pode apanhá-la ao pagar a conta...
Que lhe parece um “gim-tônica”?
— Perfeito.
Schultz segurou-lhe o pulso, com muita correção, e
saíram para o terraço. Realmente, o sol era muito agradável,
e nem sequer fazia aquele frio suave de restos de neve.
Servida a bebida, o suíço ergueu seu copo saudando Brigitte.
— Por seu breve regresso?
— Que sei eu? Talvez não possa voltar aqui tão cedo.
— Compreendo... Bem, então por uma feliz viagem a...
— Francforte.
— É uma cidade que não me agrada. Mas não acho que
minha opinião deva ser compartilhada por todos.
— Claro...
Beberam lentamente. Karl Schultz olhou alguns minutos
em silêncio para sua companheira, indeciso, antes de atrever-
se e murmurar:
— Estive pensando... Bem, creio que sou o que chamam
um solteirão, senhorita Montfort, e... 'pergunto-lhe se não lhe
aborreceria que... nos víssemos em Francforte.
— Não creio que esteja entendendo... — hesitou Brigitte.
— Eu sei... Na verdade... — súbito, ele pareceu animar-
se. — Posso ser sincero consigo?
— Peço-lhe que o seja.
— Bem... O caso é que nada tenho a fazer neste tranquilo,
ensolarado, maravilhoso... e aborrecido lugar. Por outro lado,
talvez em Francforte conseguisse encontrar a decisão
necessária para dizer-lhe... o que sinto a seu respeito.
A superespiã da C.I.A. só se alterou no sentido de
demonstrar uma conveniente surpresa não isenta de um certo
e lógico envaidecimento feminino. Ergueu graciosamente as
sobrancelhas.
— Isto parece pouco menos que uma declaração formal,
senhor Schultz. A não ser que o que sente a meu respeito
seja o puro e simples desejo de assassinar-me.
— Não, por Deus! — empalideceu o suíço. — É
precisamente o contrário, senhorita Montfort. Compreendo
que conhecendo-nos há dois dias apenas, não esteja
preparada para dar-me uma resposta, e por isso pensei que
talvez em Francforte, se nos virmos alguns dias mais...
— Sou uma viajante infatigável, senhor Schultz.
— E eu posso segui-la a qualquer parte do mundo. Sem
querer vangloriar-me, lhe direi que minha fortuna me
permitiria muito mais que isso.
— Temo que se cansaria de dar voltas ao mundo... para
nada, senhor Schultz. Lamento.
— Compreendo — fez ele, inclinando a cabeça; e logo
voltou a mostrar aquele débil sorriso, agora um tanto
mortificado. — Não é surpreendente?
— O quê?
— O que ocorre... Estou há quarenta anos viajando,
conhecendo gente, pessoas de todas as classes... E quando
decido tirar umas curtas férias longe de tudo quanto conheço,
em meu próprio país, subitamente encontro uma mulher
como nenhuma... e ela me escapa.
— Na vida não se pode ter tudo — sorriu Brigitte. —
Agradeço muito suas palavras, senhor Schultz, mas lamento
não lhe poder dar uma resposta mais a seu gosto.
— Não obstante, talvez em Francforte...
— O “gim-tônica” está delicioso, não acha?
— Claro que sim...
— E o senhor tinha razão: é muito agradável este terraço,
a esta hora.
— Sim... muitíssimo.
— Mas preciso deixar sua amável companhia. Embora
viajando com pouca coisa, sempre me custa algum tempo
arrumar tudo para partir — levantou-se e estendeu a mão. —
Foi um prazer conhecê-lo, senhor Schultz.
O suíço levantou-se precipitadamente, aceitando sua mão.
— Também para mim. Um prazer... e um pouco de
tristeza. Desejo-lhe feliz viagem.
— Obrigada.
Brigitte afastou-se, entrando no vestíbulo. Certificou-se
de que lhe tinham preparado a conta e a passagem para o
trem Berna-Francforte, e subiu a seus aposentos,
especulando mentalmente a possibilidade de que Karl
Schultz fosse um a mais em seu caminho naquela viagem de
prazer... Mais um que desejaria matá-la, ou que deveria
morrer por tentar arrebatar-lhe o microfilme. Naturalmente
não podia confiar em ninguém, em absoluto, por melhor
aspecto e maneiras que tivesse. Ali estava ela mesma, com
seu sorriso de anjo... e suas afiadas garras bem escondidas,
pronta para matar a quem fosse necessário. Karl Schultz não
tinha que ser, indispensavelmente, tão cavalheiresco e
amável quanto parecia...
Em seus aposentos, dedicou-se a percorrê-los em busca
de qualquer de seus pertences que não ocupasse seu devido
lugar e, portanto, pudesse ser esquecido. Mas, como sempre,
tudo estava em perfeita ordem. A agente Brigitte Montfort
era uma dessas pessoas que podem fazer sua bagagem em
um minuto ’ e desaparecer cinco segundos mais tarde. Não
podia ser de outro modo.
Recolheu tudo, encheu a pequena maleta, verificou
também se em sua bolsa tudo estava em ordem e completa, e
pediu pelo telefone que mandassem buscar sua bagagem.
Desligou e acendeu um cigarro, sempre pensativa. Era pouco
provável que naquele tranquilo lugarejo suíço a M.V.D.
tivesse podido reencontrar sua pista, mas em espionagem
sucedem coisas que parecem muito mais improváveis...
A porta abriu-se de repente e Brigitte olhou surpreendida
a empregada do hotel, que havia utilizado a chave-mestra das
portas daquele andar do edifício, e que também a olhou
surpreendida.
— Perdão — desculpou-se a empregada. — Tinha ordem
de arrumar este apartamento... Disseram-me que o hóspede
viajava hoje...
— Assim é.
A empregada, uma mulher alta, robusta, de feições
grosseiras, olhou para a maleta.
— Já vai sair?
— Estou esperando que venham buscar minha bagagem.
— Importa-se se começo... ?
— Não, não. Faça seu trabalho.
— Obrigada... Esta é toda a sua bagagem?
— É, sim...
— Não esqueceu nada?
— Tenho certeza que não.
— Bolsa, chapeleira, sombrinha, chinelas...?
— Estou levando tudo — sorriu Brigitte. — Não esqueço
nada, não se preocupe.
— Pelo contrário — retrucou secamente a mulher,
sacando uma pistola do nutrido busto. — Alegro-me que
tenha tudo consigo, senhorita Montfort.
Brigitte sentiu um baque no coração, mas sua aparência
manteve-se inalterada, serena.
— Que significa isto? Darei parte ao seu...
— Não se canse — cortou a alentada mulher. — Em
primeiro lugar, não sou do hotel, mas estou aqui...
clandestinamente. Em segundo, como dispomos de pouco
tempo, não vamos perdê-lo falando. Dê-me o microfilme.
— Está louca? Não entendo nada do que diz!
— O carro de Nice foi encontrado perto de Lyon; em
Lyon soubemos que uma tal Brigitte Montfort tinha tomado
o avião com destino a Berna. Em Berna, após dois dias de
minuciosas averiguações, encontramos sua pista até aqui.
Como vê, nosso sistema de localização é bastante bom,
senhorita Montfort. Agora, dispõe de cinco segundos para
entregar-me o microfilme. Um...
— E depois?
— Depois... quem sabe o que pode acontecer? Dois...
Brigitte olhava fixamente aquela mulher quase hercúlea,
que a ameaçava com uma determinação de causar calafrios.
Tinha-a a menos de cinco passos, com sua bata branca dos
empregados do hotel, firme em seu propósito de apertar o
gatilho e desaparecer com a bagagem, convencida de que
encontraria o microfilme em qualquer parte da mesma, num
lugar mais tranquilo e conveniente para ela.
— ... E cinco...
— Espere! Vou... vou dar-lhe o microfilme... Não
dispare, por favor!
— Vejamos o microfilme. E não simule que está a ponto
de chorar, menina. Sei que espécie de fera você é: quatro
homens mortos entre Palma e Nice é o suficiente para eu
saber com quem estou tratando. Vamos, dê-me o microfilme!
— Sim, sim...
Brigitte acercou-se dois passos, deteve-se diante da
mulher e tirou o sapato esquerdo. Sempre sob o olhar
vigilante da inimiga, desenroscou o tacão, depois abriu-o
pela metade, de cima abaixo, retirando de seu interior uma
pequena cápsula de plástico que ficou perfeitamente visível
em sua mão.
— A... aqui a... a tem...
— O microfilme está dentro?
— Claro...
— Abra a cápsula: quero ver o microfilme, boneca.
— Sim, sim... eu abro...
Passou a cápsula para a mão esquerda, mas com a direita,
ao invés de abri-la, apanhou agilmente o sapato que segurava
na esquerda, pela parte do tacão, e aplicou um golpe com o
canto da sola justamente sobre o tendão do dedo polegar da
mulher que a estava ameaçando.
A pistola esteve a ponto de saltar daquela mão
musculosa, mas permaneceu ali. Entretanto, um novo golpe,
agora com a mão esquerda, enviou-a por fim até um canto do
“living-room” da “suíte”... E ao mesmo tempo Brigitte
recebia em pleno estômago um soco brutal, que quase a
derrubou e que, como consequência mínima, deixou-a
apenas sem alento, a ponto de cair, com os joelhos
debilitados e a vista um pouco turva. A forçuda mulher
afastou-a com um repelão, deslocando-se velozmente para
onde estava a pistola.
Inclinava-se para apanhá-la, quando viu Brigitte
lançando-se desesperadamente contra ela, os olhos
semicerrados, pálido o bonito rosto. Sorrindo cruelmente, a
mulher esperou-a sem arredar pé, desdenhosa, e quando a
teve a um passo de distância tornou a lançar o punho, desta
vez diretamente contra seu seio esquerdo: um golpe
formidável, demolidor... mas que não chegou a seu destino.
Brigitte encolheu-se, deixando passar aquela grande mão
quase masculina por cima de sua cabeça. Imediatamente,
sujeitou-a com suas lindas mãozinhas, deu meia volta, de
modo que ficou de costas para a mulher e retrocedeu até que
sua espádua entrou em contato com o áspero busto da
inimiga. Então, inclinou-se para frente e puxou com quanta
força tinha.
Sem emitir um grito, a mulher passou por cima dela,
completamente desarvorada, sem qualquer noção de
equilíbrio. Deu uma volta no ar, caiu sobre o sofá, foi por
este repelida e tombou no chão. Quando começava a
incorporar-se, Brigitte estava já a seu lado, descalça, e seu pé
direito projetava-se fulminante contra a garganta da parruda
antagonista. Acertou em cheio, precipitando-a novamente no
sofá. Mas as manoplas da mulher agarraram-na pelas pernas
e sua pesada cabeça golpeou-lhe o ventre.
Contendo a intensa dor que sentia, Brigitte levantou
ambas as mãos e descarregou-as, juntas, sobre a sólida nuca
da mulher-assassina, justamente quando esta repetia a
cabeçada contra seu ventre. O golpe chegou, mas muito
fraco, e ao mesmo tempo em que a mulher se estatelava no
chão, Brigitte recuava estrategicamente.
Pôs-se de pé a toda pressa, pouco menos que desmaiada,
mas a outra mulher, muito mais resistente que ela, arrastava-
se de gatinhas para onde tinha caído a pistola. A
desconhecida havia comprovado já uma coisa: com as mãos,
diante da agente da C.I.A., sempre levaria a pior, por muito
brutal que fosse ela e muito angelical que parecesse a outra.
E quando estava disposta a liquidar a surda peleja,
amenizada apenas pelos excitados latidos do “Cícero”, um
dos braços de Brigitte, em ação desesperada, passou por
diante dela e cravou-se em sua garganta. Pouca coisa para a
machuda mulher. Levando Brigitte pendurada no pescoço,
levantou-se, resistindo à pressão de estrangulamento, e sua
mão armada moveu-se para trás...
Justamente então viu passar por seus olhos uma rosa
vermelha... Uma rosa vermelha acompanhada de uma
surpreendente cintilação metálica. Não teve tempo para mais
nada. Nem sequer notou a fisgada do agudo estilete em seu
coração. Nem se deu conta de que acabavam de matá-la...
Bruscamente, ficou inerte nos braços de Brigitte. A
pistola caiu no chão, mas já não era útil para ninguém...
Lentamente, Brigitte deixou-a cair, sem soltá-la, até estar
certa de que não produziria ruído. Incorporou-se, ofegando,
os olhos dilatados pelo esforço despendido e o medo por que
passara, e virou-se para o “chihuahua”, que não parava de
latir.
— Cale essa boquinha, “Cícero”...
O cãozinho inclinou a cabeça para um lado e calou-se de
imediato. Brigitte olhou para a mulher; estava com os olhos
abertos, fixos no teto; sobre o peito, aquela rosa vermelha
cujo caule era um instrumento mortal e que até então,
durante a viagem, Brigitte usara na lapela do seu “tailleur”,
como um bonito adorno.
Estava ainda um pouco ofegante, perguntando- se o que
podia fazer, quando ouviu algumas batidas na porta.
— A bagagem, senhorita Montfort.
— Um momento...
Pegou a mulheraça pelos pés e arrastou-a até o quarto.
Deixou-a no chão, olhou-se no espelho e arrumou-se
ligeiramente. Fechou a porta do quarto e foi abrir a da
“suíte”.
Um rapazola sorridente entrou com ar despreocupado.
— Só uma maleta?
— Só... Eu mesma levarei a bolsa... Espere- me lá em
baixo, por favor.
O rapazola recolheu a maleta, lançou um olhar
zombeteiro ao “chihuahua” e saiu da “suíte”. Brigitte ouviu
que se afastava, assobiando, e tornou a abrir a porta.
Ninguém no corredor... Voltou ao quarto, inclinou-se sobre o
corpo da inimiga vencida e revistou-a rapidamente. Debaixo
da bata usava um vestido comum e, num bolso existente
neste, estava a chave de uma “suíte”: a quatro. Brigitte
suspirou aliviada. Muniu-se da chave, arrastou a mulher até a
porta da “suíte” e tornou a abri-la.
— Você tem que ficar aqui, “Cícero”. Porte-se bem.
O “chihuahua” olhava-a inclinando lateralmente a cabeça,
excitado mas silencioso. Possivelmente, ia-se acostumando
com as atividades de sua carinhosa e destemida dona.
Brigitte atravessou o corredor e deteve-se diante da porta
número 4. Colou o ouvido à madeira, mas nada ouviu. Abriu
a porta, deixou-a encostada e regressou à sua “suíte”.
Assomou a cabeça e, não vendo ninguém no corredor, nem
ouvindo qualquer ruído, puxou o corpo da formidanda
mulher, arrastando-o até a “suíte” quatro. Entrou,
empurrando a porta com o ombro, deixou cair os grandes pés
e fechou imediatamente. Acendeu a luz e seu olhar fixou-se
no sofá.
Arrastou a mulher até ali, conseguiu erguê-la e deixou-a
sentada no sofá. Ofegante pelo esforço, perdeu ainda alguns
segundos alisando as pétalas amarrotadas da rosa artificial,
pondo em ordem as roupas do cadáver.
Seria uma completa surpresa para os amigos da
assassina... Embora fosse pouco provável que
compreendessem o rasgo de humorismo da agente da C.I.A.
Saiu da “suíte” e entrou na sua, apanhou a bolsa com o
diminuto “Cícero” dentro, procurou e encontrou no chão a
cápsula que continha o microfilme e, ainda excitada, talvez
mesmo um pouco desorientada, pareceu então recordar-se de
que estava descalça.
— Calma, “Baby” — recomendou-se. — Serenidade...
Guardou novamente o microfilme no salto do sapato,
calçou-se, assegurou-se de que tudo estava em ordem e
abandonou definitivamente a “suíte”, um tanto pálida e
bastante dolorida, mas em passo harmonioso e com um
sorriso angelical nos lábios...
Ao chegar em baixo, viu que Karl Schultz a esperava
encostado ao balcão da portaria.
— Não pude resistir à tentação de vê-la mais uma vez,
senhorita Montfort... Sente-se bem?
— Perfeitamente. Por quê?
— Bom... Parece-me um pouco pálida...
— Certamente devido ao seu “gim-tônica”, senhor
Schultz — sorriu ela. — Creio que não me assentou bem.
— Eu... lamento — quase tartamudeou Schultz.
— Na verdade, lamento imensamente...
— Está perdoado — declarou Brigitte, enquanto pagava a
conta do hotel. — Mas vou aplicar-lhe um castigo.
— Um... castigo?
— Tem o carro preparado?
— Mas sim... Claro que sim...
— Pode fazer a gentileza de levar-me a Berna?
Karl Schultz sorriu exultante, embora um pouco
assombrado.
— Será um prazer para mim! — exclamou. —
— E mais: se me permite, a levarei de carro até a
estação...
— Permitido, senhor Schultz — aceitou. — E quanto a
permitir-lhe coisas, lhe concederei também a graça de
deixar-me instalada no trem.
— Estupendo! É realmente encantadora... Serei seu
acompanhante até que me expulse de seu lado!
— Só até o trem partir para Francforte — tornou a sorrir
Brigitte, graciosamente. — Vamos, senhor Schultz?
Saíram do hotel. Schultz propôs que Brigitte esperasse
sob a marquise enquanto ia buscar o carro, porém ela
preferiu ir com ele até o veículo. O rapazola do hotel seguia-
os, levando a única maleta da viajante. Colocou-a no assento
traseiro. Brigitte deu-lhe uma generosa propina
acompanhada de um sorriso, e voltou-se para o suíço.
— Em frente, senhor Schultz: a toda a velocidade.
O homem estava encantado da vida. Rindo, pôs o carro
em marcha, enquanto Brigitte o examinava atentamente de
soslaio. Não... Não devia confiar no amabilíssimo Schultz...
Apenas a cem metros do hotel, o carro conduzido por
Schultz passou junto a outro, parado à beira do caminho.
Havia dois homens no assento dianteiro e ambos olharam
para os ocupantes do carro que se distanciava. Fugazmente,
Brigitte viu no rosto de um deles uma expressão de
sobressalto, de surpresa...
Quando se voltou, para olhar pela janelinha traseira, o
outro carro estava manobrando a fim de tomar a mesma
direção do deles. Mas não se pôs em marcha. A distância,
com as últimas luzes do dia, Brigitte pôde ver ainda um
daqueles homens apear-se e correr para o hotel...
— Não podemos ir mais depressa, senhor Schultz?
— Lógico... Mas temos tempo de sobra... e este caminho
não é dos melhores para correr...
— Acelere quando chegarmos à estrada, por favor: eu
gosto imensamente de velocidade.
— Pois ficará satisfeita.
CAPÍTULO SEXTO
Um revólver que bate à porta — Dois homens que saem pela
janela — Uma carona e um golpe de direção

— Já tenho que ir? — perguntou Schultz, desiludido.


— Assim parece — sorriu Brigitte. — Sua companhia,
Karl, foi agradabilíssima para mim, mas o trem está quase
partindo...
— Bem... Insiste em que Francforte não...?
— Sinto muito, Karl.
O suíço sorriu sem vontade.
— Sempre fui bom perdedor, Brigitte. Felicidades.
Ela estendeu-lhe a mão.
— Obrigada. Obrigada por tudo, Karl.
— Bá... Nada fiz por você. Adeus.
— Adeus, Karl.
O suíço saiu do compartimento, percorreu o corredor a
toda pressa e saltou do trem já em movimento. Da janelinha,
Brigitte deu-lhe adeus com a mão, até que o perdeu de vista.
O trem ia desenvolvendo grande velocidade, e em breve as
luzes de Berna ficaram para trás...
Afastando-se da janela, Brigitte fechou bem a porta,
sentou-se no beliche não preparado ainda e acendeu um
cigarro, pensativa. Sem dúvida, o plano daquela mulher tinha
sido astuto: esperara até o último momento, para atacá-la
quando estava a ponto de abandonar o hotel. Deste modo
assegurava-se de que a bagagem continha o microfilme. Por
outro lado se a tivesse atacado antes, o microfilme poderia
estar escondido em qualquer lugar da “suíte”, o que lhe teria
complicado muito a busca.
Quanto a Karl Schultz, nunca saberia quanto estivera
perto de uma pistolinha pronta para ser usada contra ele. Mas
o suíço não havia dado mostra alguma de pertencer ao grupo
inimigo, com o que Brigitte se alegrava bastante...
Uma batida na porta do compartimento a sobressaltou.
— Quem é?
— Quer que prepare o beliche?
Brigitte passou a língua pelos lábios. Apanhou
rapidamente uma das revistas que Schultz tivera a gentileza
de comprar-lhe na estação, sacou da pistola, empunhou-a
fortemente ocultando-a sob a revista e abriu a porta com a
mão esquerda. Diante dela apareceu um empregado da
B.L.S. dos ferrocarris suíços.
— Boa noite, senhora. Dá licença... ?
— Entre, por favor.
O empregado entrou, dirigiu-se diretamente ao beliche e
preparou-o para a noite. Brigitte permaneceu a um canto do
compartimento, sem perdê-lo de vista um só instante. Mas
nada ocorreu. O homem terminou seu trabalho, perguntou
“se a senhora desejava mais alguma coisa” e à resposta
negativa de Brigitte saiu do compartimento.
A espiã tornou a fechar a porta e deixou-se cair no
beliche, suspirando. Tinha os nervos um pouquinho tensos,
via inimigos em toda parte e isso, embora de um modo geral
muito conveniente, podia prejudicá-la afinal, se perdesse a
serenidade.
Mas não a perderia. Isso teria sido um luxo mortal.
***
Despertou de pronto, mas já sem sobressalto, embora
alerta, quando ouviu outra batida na porta. Sentou-se no
beliche, colocou a pistola a seus pés, com a revista em cima,
e olhou para a porta.
— Quem é?
— Fronteira. Passaportes.
Cheia de cansaço, Brigitte apanhou a pistola, ocultando-a
com a revista. Abriu a porta e uni homem à paisana estava
diante dela... apontando-lhe um revólver.
— Recue, senhorita Montfort.
Brigitte esteve a ponto de disparar, mas as circunstâncias
não eram tão favoráveis como desejaria. Sem dúvida alguma,
teria acertado o homem num ponto vital... mas talvez com
efeito não tão instantâneo que lhe impedisse atirar por sua
vez... E um ferimento podia ter como consequência o
fracasso de sua missão.
Retrocedeu, o homem entrou e fechou a porta. Indicou o
beliche com o revólver.
— Sente-se... E ponha as mãos dos lados, sobre a cama,
bem visíveis. Deixe essa revista: quero ver bem suas mãos.
Brigitte obedeceu, lentamente. A revista, com a pistola
em seu interior, ficou a certa distância de sua mão. O homem
olhou vivamente ao redor, talvez esperando algum truque
preparado no compartimento, intrigado diante de tanta
mansidão. Por fim, pareceu tornar-se menos tenso e olhou
sossegadamente para a jovem.
— Tem-nos levado vantagem desde que pôs os pés na
Europa, senhorita Montfort. É um inimigo muito mais
temível do que pensávamos... Como conseguiu vencer a
Gretel?
— Com um pouco de judô e muita sorte — sorriu
Brigitte. — Se me permite, direi que a sua Gretel era uma
besta-fera. Nunca vi mulher semelhante.
— Era uma “especialista”... — disse o homem, intrigado.
— Não consigo convencer-me de que a derrotou sozinha.
— Fui ajudada.
— Ah! Por quem?
— Pelo homem que me trouxe à estação. Chama-se Karl
Schultz.
— Oh, sim, sabemos disso — retrucou secamente o
intruso. — Mas sabemos também que o senhor Schultz nada
tem a ver com isto. Você foi muito hábil com ele, mas não
tente complicar-lhe a vida... Quando a vimos passar em seu
carro para Berna, quase não pudemos entender, lhe
asseguro... Não, não: ninguém está lhe ajudando. É você,
você só, quem vai abrindo caminho através da Europa, para
Moscou. Por muito surpreendente e humilhante que nos seja,
reconhecemos que uma mulher sozinha tem-nos enganado
continuamente.
— É este o meu trabalho. E devo dizer-lhe que para fazer
toda esta série de jogadas sujas, não era necessário aceitar
que um agente da C.I.A. levasse o microfilme a
Domodedovo... Que se propõem com tudo isto?
O homem sorriu estranhamente.
— Lamento não poder dizer-lhe.
— A M.V.D. está realizando um grande e estúpido
esforço para conseguir uma coisa que poderia ter a
domicílio. E devo prevenir que se não regresso a Washington
na data prevista, a C.I.A. dispõe de meios abundantes para
fazer... represálias.
— Acredito. E me parece muito lógico. Agora, entregue-
me o microfilme. Ou pretende recusar-se?
Brigitte encolheu os ombros.
— Ganharia algo com isso?
— Certamente que não. Se me entregar o microfilme por
bem, sua morte será rápida e tranquila. Se eu tiver que
procurá-lo neste compartimento, temo que não serei muito
amável na hora de matá-la... Garanto-lhe que se daria
perfeita conta de que estava morrendo...
— Entendido. Diga-me uma coisa: não se arriscou
demasiado ao entrar sozinho aqui? Sou... uma mulher
perigosa, conforme pôde comprovar, e...
— Não se fatigue. Meu companheiro está esperando aí
fora. Não se recorda? Viu-nos na estrada, ao que me pareceu.
Somos dois, e garanto-lhe que não poderá sair viva deste
compartimento.
— E você sim?
— É o que espero.
— Pedi café, não demorarão a trazê-lo e...
— Repito-lhe que não se canse: sabemos que não pediu
nada. Ninguém virá ajudá-la. Mas ainda que assim fosse,
meu companheiro no corredor saberia como agir.
— Se me matarem no trem, serão presos ao chegar a
Francforte. Encontrarão meu cadáver...
— Não... Esteja tranquila a este respeito — disse
acidamente o desconhecido. — Dentro de uns oito minutos,
chegaremos a Kehl. Lá o trem faz uma parada regulamentar.
E o meu amigo e eu aproveitaremos para saltar.
— De qualquer modo, encontrarão meu cadáver...
— Duvido. Saiba que o seu cadáver sairá por essa janela
ao cruzarmos uma certa ponte... E quando o encontrarem,
tudo estará terminado satisfatoriamente... para nós, é claro.
Por favor, faltam apenas sete minutos... Quer entregar-me o
microfilme?
— Se não o entrego, não o encontrará antes de chegar a
Kehl.
— Então, continuaremos viajando. Estamos acostumados.
Dispomos, de um modo ou de outro, do tempo suficiente
para encontrar qualquer coisa neste compartimento. O
microfilme?
Brigitte indicou com o queixo a bolsa de onde o “Cícero”
assistia intrigadíssimo à cena, esperando sem dúvida, de um
momento a outro, o habitual encerramento por morte daquele
estúpido e ousado exemplar masculino.
— Na bolsa. Dentro de uma esferográfica vermelha. Eu o
apanho...
— Não se mova! Posso retirá-lo eu mesmo.
Aproximou-se da bolsa, levantou o “Cícero” pela pele do
pescoço e atirou-o a um canto do compartimento, contra o
tabique. O cãozinho ricocheteou como uma bola, ganindo de
espanto, e saltou para o colo de Brigitte, que o recebeu nos
braços, em silêncio, olhando com fria fixidez o homem que,
sem deixar de apontar-lhe o revólver, havia metido a mão na
bolsa. Manteve-a dentro alguns segundos, movendo-a...
Súbito retirou-a e seu olhar desviou-se uma fração de
segundo para a esferográfica vermelha...
— Como se abre?
— Está rosqueada de modo normal — explicou Brigitte,
deslocando-se imperceptivelmente para a cabeceira do
beliche, tensa. — Tem apenas que desatarraxá-la e o
microfilme...
— Afaste-se! Não chegue para perto do travesseiro... Vá
para os pés da cama.
Brigitte dirigiu ao travesseiro um olhar de decepção
demasiado rápido, um olhar que tentava dissimular-se. Tal
como era sua autêntica intenção, o homem captou-o e
aproximou-se do travesseiro, rindo sarcasticamente.
— É um lugar impróprio para uma espiã esconder sua
arma... Justamente por isto, dá resultados às vezes. Não desta
vez, contudo...
Levantou bruscamente o travesseiro e desviou o olhar
para o ponto em que estivera pousado. Foi só um instante: o
tempo justo para ver que a pistola não estava ali.
Estava na mão de Brigitte, agora. O homem quis
antecipar-se, desesperado de raiva, de impotência, mas sua
posição era claramente desfavorável. Sem o mais leve
desvio, a bala cravou-se em seu coração, fulminando-o. Caiu
de joelhos e logo de bruços, tão velozmente como se tivesse
sido lançado de grande altura. E nesta ocasião o
assustadíssimo “Cícero” nem sequer teve forças para ladrar.
Brigitte recolocou-o na bolsa, trancou silenciosamente a
porta e contemplou o cadáver. Olhou para a janelinha, mas
chegou à conclusão de que lhe seria pouco menos que
impossível fazer passar o corpo daquele homem por ali.
Talvez conseguisse, mas o esforço não valia a pena.
Em compensação, aceitou o esforço de erguê-lo até o
beliche, após afastar as cobertas. Tapou-o completamente e
olhou para a porta. Apertou os lábios, dirigiu-se para ela,
abriu-a de golpe e com toda a serenidade apareceu no
corredor, pistola na mão.
O homem que estava junto da porta deixou o cigarro
escapar dos dedos e ficou olhando-a imobilizado, com os
olhos arregalados de espanto.
— Entre — sorriu Brigitte.
— Como?...
— Entre imediatamente.
Os formosos olhos azuis estavam tão congelados, tão em
desacordo com aquele maravilhoso sorriso, que o homem
entrou sem dizer mais palavra no compartimento. Brigitte
entrou atrás dele, fechou a porta sem perdê-lo de vista e
ordenou:
— Tire seu revólver lentamente. Mas primeiro ponha-se
de perfil direito com relação a mim. Se quiser morrer, tem
apenas que mover a mão mais depressa do que me agrada.
Comece.
O homem estava lívido, os olhos fixos no vulto que
percebia claramente sobre o beliche. Moveu a mão tão
lentamente quanto Brigitte desejava e, de acordo com as
instruções desta, deixou cair o revólver no chão, sempre
mantendo a postura difícil para ele, de perfil direito com
relação a Brigitte.
— Empurre-o com o pé para baixo do beliche. Assim...
Agora descubra o seu companheiro, levante-o nos braços e
atire-o pela janela.
— Não... Isso não...
— Escolha entre isso ou que eu tenha que atirar seu
cadáver... O de você, naturalmente.
O homem não vacilou mais. Baixou o postigo da janela,
arrastou até lá seu companheiro e olhou para Brigitte,
mordendo os lábios, mas esta moveu ominosamente a
pistola... e o cadáver saltou para a noite negra...
— Já... está feito...
— Eu vi. Agora, salte você.
— Não! Será minha morte...!
— Talvez não — sorriu gelidamente Brigitte.
— Com um pouco de sorte, poderá sair do apuro com seis
meses de hospital... Ao invés, se não saltar...
Moveu novamente a pistola e o homem olhou para todos
os lados, encurralado.
— Não... não...
— Como queira. Espero poder lançá-lo eu mesma, depois
de matá-lo.
Levantou a pistola um pouco mais e o homem
compreendeu que ela ia disparar. Aquilo estava tão claro em
seus lindos olhos que o pobre lançou um pequeno assobio de
medo.
— Eu salto! Eu salto!...
— Depressa. Vamos! O trem está diminuindo a marcha, o
que quer dizer que nos aproximamos de Kehl... É um bom
momento para saltar, pois se demorar quinze segundos mais,
já não saltará com vida. Vamos!
— Mas é que...
— Salte agora ou nunca!
O homem virou-se para a janela, ergueu-se até a borda,
passou as pernas para o lado de fora... Tinha no rosto uma
expressão de incontrolável pavor. A seus pés, as sólidas
rodas de aço, capazes de partir um homem em dois com a
exorbitante facilidade com que um machado partiria um
palito.
Súbito, ele lançou o corpo para frente. Brigitte viu-o um
instante no ar, tentando desgrudar-se do vagão, descrevendo
uma curva que o aproximava deste...
E isto foi tudo.
Arrecadou os revólveres dos dois inimigos, arremessou-
os pela janela e olhou para a frente, vendo o conglomerado
de luzes que só podia ser Kehl, a cidade mencionada pelo
primeiro daqueles dois.
Pouco depois, o trem detinha-se numa das vias da estação
de entroncamento. À direita viam-se luzes e outros trens; à
esquerda, muitos segmentos de trilhos e a noite. Brigitte
lançou a maleta pela janela, depois a pulou ela mesma,
levando na mão a bolsa com o espantado “Cícero”. Apanhou
rapidamente a maleta e caminhou resoluta noite adentro.
***
Às sete da manhã, exausta, surgia em plena estrada.
Colocou-se a um lado e, pouco depois, um carro detinha-se
junto a ela, atendendo ao seu pedido de “carona”.
— Que aconteceu? — perguntou algo sobressaltado o
homem?
— Vai a Stuttgart? — perguntou Brigitte em perfeito
alemão.
— Vou...
— Fará a gentileza de levar-me? Ia para lá, mas meu
carro saiu da estrada uns cem metros mais acima. Bati numa
árvore... Não o viu?
— Não, não... Se posso fazer alguma coisa...
— Enviarei um mecânico de Stuttgart... se me levar até lá
— acrescentou sorrindo docemente.
— Mas sem dúvida... Suba. Talvez encontremos algum
guarda...
— Não, por favor. Não quero complicações. Virão buscar
meu carro, e isso é tudo.
— Como queira. Dentro de uma curta meia hora
estaremos em Stuttgart.
CAPÍTULO SÉTIMO
Um velho amor pode ser sempre novo — Moça bonita não diz
palavras feias — “Chegou ao fim da sua viagem, senhorita!”

Em Stuttgart, esteve tentada a mandar novo telegrama ao


Barão Wilhem von Steinheil, marcando encontro em outro
lugar. Mas, além de interessar-lhe Berlim como ponto de
partida para Moscou, teve em conta a possibilidade de que
ele já aí estivesse, porquanto se teria posto a caminho logo
após receber o primeiro telegrama, fosse a hora que fosse;
deste modo se teriam desorientado ambos, e tudo poderia
atrapalhar-se.
Assim, pois, tomou o avião em Stuttgart, chegou a Berlim
e deixou sua maleta no Serviço de Bagagens do Aeroporto.
Almoçou num restaurante e depois deu um passeio pela
cidade, descansando em alguns parques...
As dezenove menos cinco minutos, pontual como sempre,
uma esgotada Brigitte caminhava lentamente pela Strasse
Des 17 Juni, para a Branderburger Tor, que se via ao fundo
como um aviso sinistro de aproximação ao setor russo, à
Berlim Oriental. E apenas havia dado um par de curtos e
sonolentos passos por aquelas bandas, quando um cintilante
e esportivo “Mercedes Benz” aproximou-se dela, colocando-
se a seu lado, rente ao meio-fio. Ultrapassou-a ligeiramente,
deteve-se e a cabeça de um homem assomou à janela.
Uma cabeça notável em todos os sentidos. Tinha o corte
da de uma nobre águia e os olhos eram negríssimos,
profundos; havia algumas cãs em suas têmporas, ladeando
uma fronte ampla, lisa, reveladora de notável inteligência.
Era o rosto curtido de um homem de presa, um lutador, um
ser duro como o aço, varonil, transbordante de força...
Brigitte sentiu aquele golpezinho suave no coração ao ver
semelhante rosto. Correu para o carro, entrou e não havia
ainda sentado quando seus braços rodearam aquele vigoroso
pescoço e seus lábios colaram-se aos do homem. Foi um
beijo longo, profundo, silencioso, sincero...
Quando as duas bocas se separaram, Brigitte ficou
olhando com emoção aqueles olhos negros, o viril rosto
curtido, o sorriso franco daquele varão excepcional... e sua
mão acariciou-lhe o forte queixo.
— “Alexandria”... Meu amado “Alexandria”...
Wilhem von Steinheil tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Como está, Brigitte?
— Bem... Oh, muito bem... E agora, muito mais! Você
não me esqueceu!
Von Steinheil pôs-se a rir. Seu riso tinha um som grave,
profundo, tão fortemente viril como qualquer outro detalhe
de sua impressionante personalidade. Aos quarenta e sete
anos, o homem que fora “Alexandria” durante a Segunda
Guerra Mundial, o espião alemão que jamais conhecera uma
derrota em todo o continente africano, parecia um atleta de
trinta anos que tivesse por capricho feito encanecer as
têmporas.
— Esquecê-la! — exclamou. — Está zombando de mim,
Brigitte?
Ela tornou a lançar-lhe os braços ao pescoço e,
novamente, beijou-o com paixão, repetidas vezes...
— Creio que não estamos no lugar adequado para isto,
querida — sorriu Von Steinheil. — Aonde quer ir?
— Não sei. Não tenho aonde ir, no momento. Primeiro
queria vê-lo... Necessito de auxílio, “Alexandria”.
O alemão moveu afirmativamente a cabeça.
— É urgente? — perguntou.
— Não demasiado... Devo estar em Domodedovo sexta-
feira, às onze e vinte da noite.
— Há tempo para um milhão de coisas. Levo-a à minha
casa de Berlim, se lhe convém. Mas se prefere um hotel...
— Não! — riu ela. — Prefiro estar só com você, Wilhem!
O alemão sorriu carinhosamente.
— Pica nas cercanias da cidade. Acha que pode pôr-me
ao corrente da situação, durante o caminho?
A casa de Wilhem von Steinheil nas cercanias de Berlim
era uma discreta vila, não muito grande, mas bem cuidada,
alegre, moderna, embora mal se adivinhassem as reformas
por que passara o que anteriormente fora uma mansão do
tipo clássico. Não havia nada nela, mas tudo estava a ponto
em seu interior... inclusive champanha “Perignon 55” na
geladeira.
Brigitte aceitou, sorrindo docemente, a taça que lhe
estendia o espião alemão.
— Você é formidável para preparar as coisas, Wilhem... e
o homem mais encantador que já conheci.
— Estou convencido disso.
Brigitte pôs-se a rir.
— Sabe de uma coisa? Quando nos despedimos, faz
aproximadamente um ano, em Miami, fiquei chorando
enquanto seu avião se afastava. Creio que nunca amei como
naquele momento. Senti-me... como uma menina
abandonada, “Alexandria”.
— E eu sentia-me como um velho fracassado.
— Um velho! — exclamou ela. — Diz isso porque gosta
de ouvir-me declarar que é o jovem mais sedutor do mundo.
Um gigante bronzeado, um colosso do deserto, como quando
se chamava “Grande Xeque do Deserto Ibrahim El Kefer”...
— Entre outros nomes — riu von Steinheil.
— Você é muito amável, Brigitte.
— E você é maravilhoso... E este champanha é
delicioso... E esta casa é um refúgio de paz nesta disparatada
viagem... de prazer.
— Estará segura aqui. E durante os dias que faltam,
providenciarei tudo o que me pediu... Acho que as
fotografias já podem ser vistas. Vou buscá-las.
Von Steinheil levantou-se e saiu do “living”. Regressou
um par de minutos mais tarde com uma tira de fotografias já
reveladas e ampliadas, ainda úmidas. Entregou-as a Brigitte,
que se deu pressa em examiná-las.
Imediatamente lançou uma exclamação, indicando uma
delas.
— Mas este homem...!
— Quem?... — interessou-se o alemão.
— Por Deus... não compreendo... Este homem, um dos
seis espiões que estão trabalhando para a China Comunista,
é... é o mesmo com quem me entrevistei no Central Park!
— É divertido ver você assombrada com isto — sorriu
von Steinheil.
— É, tem razão... Não deveria assombrar- me... Creio que
começo a compreender... Este homem é, efetivamente, um
agente da M.V.D. Mas ao mesmo tempo é um dos traidores
russos. Em sua qualidade de agente da M.V.D., deve ter-se
inteirado do trato feito entre a C.I.A. e a M.V.D., partiu para
os Estados Unidos, enviou a mensagem dizendo que o
microfilme lhe deveria ser entregue no Central Park...
— Com o que, ele saberia quais eram os seis homens que
iam ser delatados pela C.I.A. à M.V.D. como traidores da
Rússia. Sabendo quem eram esses seis homens, só lhe
restava tirá-los de circulação, por qualquer meio, de modo
que a espionagem desses russos não seria denunciada, visto
que os mesmos não poderiam ser presos, já que ele os teria
avisado antes para que fugissem. Para quando a M.V.D.
reclamasse o microfilme à C.I.A. e este enviasse outra cópia,
os seis traidores já estivessem a salvo... e os demais traidores
continuassem trabalhando contra a Rússia e a favor da China
Comunista, sem medo de delações. O que, segundo penso,
devia ignorar o seu amigo do Central Park é que ele fosse um
desses traidores que à C.I.A. está trocando com a M.V.D. por
três funcionários da Embaixada Americana.
— Assim deve ser, Wilhem... O fedorento!
“Alexandria” admoestou-a estalando levemente a língua e
sorrindo:
— Uma moça como você não deve falar assim. Está bem
que elimine uns quantos homens e uma mulher-monstro,
mas...
— Agora compreendo tudo — prosseguiu Brigitte. —
Este homem é o que me seguiu, de qualquer modo. Inclusive
pôde bastar-lhe tomar o número do meu carro no Central
Park, ao colocar-lhe o disco magnético, enquanto eu fumava
um cigarro... Depois, apurou onde encontrar-me, seguiu-
me... E quando me viu partir para Palma de Maiorca, enviou
minha fotografia e esses que vim matando pelo caminho e
que deviam fazer parte da espionagem contra a Rússia,
montada na Europa por traidores da M.V.D.
— Parece bem aceitável a explicação. Sim...
Deve ser isso. Você pensa realmente em... em entregar
essas fotografias e dados à M.V.D.?
— Estamos jogando limpo desta vez, Wilhem.
— Bom... Viver para crer... Em minha opinião, a M.V.D.
vai receber uma espécie de joia, um magnífico presente da
C.I.A. É como uma aliança... como se fossem amigos.
— Em espionagem tudo pode ocorrer, não? — sorriu
Brigitte.
— Sem dúvida. Vocês vão livrar três norte- -americanos
de ser julgados como espiões, é claro. Mas os russos vão
obter uma informação fabulosa. O serviço secreto do mundo
livre em Moscou é muito eficiente, pois observei que ao pé
de cada fotografia está o nome do traidor e o setor onde
presta seus serviços...
— Trabalhamos bem, seja em Moscou ou em qualquer
outro lugar — tornou a sorrir Brigitte. — Quanto ao nosso
amigo do Central Park, cujo nome é — olhou a fotografia
correspondente —... é Gregor Voronof, creio que com o
simples ato de entregar o microfilme em Moscou vou
aborrecê-lo tanto, que se arrependerá de haver-me
incomodado.
— Terá pouco tempo para arrepender-se se seus
compatriotas lhe puserem a mão em cima. Insisto nisto,
Brigitte: vocês vão ganhar a... recuperação de três norte-
americanos, mas a M.V.D. terá motivos, graças a esse
microfilme, para ficar mais contente que vocês.
— Não importa. Foi um trato... amistoso e, por minha
parte, penso cumpri-lo. Não lhe parece que está certo?
Wilhem von Steinheil sorriu secamente.
— Sou alemão. E se o agente da C.I.A. que levasse esse
microfilme para favorecer a Rússia não fosse você, já estaria
morto.
Brigitte pestanejou lentamente.
— Sinto muito, Wilhem — murmurou. — Mas tenho que
levá-lo a Moscou.
— E eu ajudarei, por tratar-se de você, minha garota
adorada... Encarrego-me de tudo quanto pediu, deixaremos a
coisa preparada para quando você fizer sua entrada oficial na
Alemanha... Tenho ainda alguns amigos que poderão
resolver os pequenos detalhes. E enquanto eles trabalham, e
passam-se estes dias de que ainda dispõe, podemos transpor
a fronteira e depois retornar para que tudo esteja claro em
seu passaporte... Novamente dentro da Alemanha, podemos
vir para cá sem precipitação, tranquilamente... Será como em
Miami, Brigitte... aqueles dias admiráveis...
Ela deixou a taça e as fotografias, chegou-se mais para
von Steinheil deslizando graciosamente pelo sofá e tomou
entre suas mãos a face áspera do homem.
— Sempre que o destino nos unir, “Alexandria” —
murmurou —, eu serei sua... sua garota adorada... Porque
sempre você terá o melhor dos lugares em meu coração.
Uniu os lábios aos do alemão, num beijo breve mais
repleto de ternura. Ele acariciou-lhe os braços, afastou-a
suavemente e olhou-a nos olhos de um azul puríssimo,
inigualável.
— Você é... a pessoa mais simples e sincera que já
conheci, Brigitte. Se eu fosse poeta, poderia... descrevê-la
bem, perfeitamente talvez. Como não sou, creio que minhas
palavras lhe pareceriam velhas e vazias de sentido: estar com
você é... é como subir a um píncaro, elevado, onde o ar é
puro, o sol é límpido e todas as tristezas, as vicissitudes do
mundo são esquecidas... Você pode liquidar um inimigo,
com pleno motivo para isso, e no momento seguinte ser
doce, terna, porque realmente sente-se assim... Você é
como... uma mariposa: primeiro, larva; depois, um delicioso
ser alado. A mariposa não pode evitar ser larva antes de ter
asas... Você tampouco pode evitar ser o que é. E tudo isso,
Brigitte, converte-a numa pessoa cuja companhia, cuja
amizade ou amor é... uma dádiva surpreendente,
maravilhosa. Eu estava só, vazio, inútil, confinado em minha
propriedade rural... De repente, chega um telegrama, firmado
simplesmente por uma tal Brigitte... Você acredita que nunca
em minha vida senti uma alegria semelhante?
Brigitte tornou a beijá-lo, sorrindo como sorriria uma
criança.
— Tomamos mais champanha?
— Não — recusou “Alexandria”. — Vou sair, Deixarei
você sozinha durante duas horas, possivelmente.
— Mas... agora? — decepcionou-se Brigitte.
— Pensei...
— Há tempo para tudo. Aproveitarei esta noite para
visitar um amigo... Levarei para ele reparar uma das minhas
lembranças da África...
Dirigiu-se a uma panóplia pendurada à parede, onde se
viam armas brancas variadas: punhais, facas, alfanjes,
cimitarras... Destacou um par de facas e voltou para junto de
Brigitte.
— Ele é um especialista. Estas facas caíram e
danificaram-se um pouco... Vou levá-las agora e quando
retornarmos a Berlim ele já as terá reparado.
Sob o incrédulo, atônito olhar de Brigitte, Wilhem von
Steinheil retirou de uma gaveta uma comprida bolsa de lona
e nela guardou as duas facas. Depois acercou-se de Brigitte,
beijou-a na ponta do nariz e sorriu.
— Voltarei o mais depressa que puder.
— Mas... Vai sair realmente... agora?
— Vou. Disponha de toda a casa como se fosse sua. Até
logo.
Brigitte nem teve ânimo para responder. Sem sair de sua
incredulidade, viu o alemão abandonar o “living” e,
segundos depois, ouviu fechar a porta de entrada. Levantou-
se de salto, correu à janela e olhou através da vidraça:
Wilhem von Steinheil estava entrando em seu carro... Um
instante após, o veículo punha-se em marcha e, em pouco, já
não se ouvia.
Completamente decepcionada, ela retornou ao sofá onde
se deixou cair, e ficou olhando a garrafa de champanha
metida em seu balde, onde se derretiam cubos de gelo...
Lentamente, reencheu sua taça, ergueu-a...
Um vidro da janela saltou feito pedaços e uma mão
armada de revólver apareceu no espaço vazio.
— Chegou ao fim da sua viagem, senhorita Montfort.

CAPÍTULO OITAVO
Quem fracassa na Rússia é degolado na China — Um atirador
de facas — Champanha é bebida maravilhosa, mas...

A mão de Brigitte tremeu um instante. Em seguida,


porém, ela sorriu. Ergueu a taça em direção à janela.
— Nesse caso, conceda-me um último capricho, Voronof.
Ouviu claramente a exclamação do homem. Depois, viu-
lhe melhor o rosto, mais perto do revólver. A voz de Gregor
Voronof soou seca dentro do “living”:
— Venha até aqui e abra a janela — ordenou.
— Imediatamente.
Brigitte pousou a taça e, com seu andar flexuoso,
aproximou-se da janela. Abriu o trinco e afastou-se para que
o agente traidor da M.V.D. entrasse na casa. Não estava só;
atrás dele, entrou outro tipo, de sobrancelhas muito espessas,
mãos enormes e olhos minúsculos, cruéis, frios.
— Torne a sentar-se.
— Muito amável.
Voltou ao sofá, sentou e retomou a taça de champanha.
Enquanto bebia, o homem do Central Park, Gregor Voronof,
apanhou sobre o sofá a tira de fotografias que continha os
rostos de seis traidores da M.V.D. e colaboradores da
espionagem sino-comunista.
Após um olhar sombrio às fotografias ampliadas, voltou-
se bruscamente para Brigitte.
— Já adivinhou tudo, não? — grunhiu.
— De fato, Gregor. Mas não creia que estou...
escandalizada. Traidores sempre houve. No C.I.A. tivemos
os nossos e, possivelmente, outros surgirão com o correr do
tempo... Mas não tem muita importância: aos traidores,
corta-se o pescoço e está tudo resolvido.
— Assim tão simples?
— Assim tão simples. Como observou, a C.I.A.
identificou-o como traidor da M.V.D. soviética.
Naturalmente, o meu colega que descobriu isso saiu de
cena... e deixou que você prosseguisse em suas traidoras
atividades. Contudo, creio que a M.V.D. não achará graça
quando souber que dentro dela existe, pelo menos, um
traidor. Sente alguma coisa, Gregor Voronof? Parece
assustado... Oh, não me diga que o que menos esperava era
ver seu nome figurar na lista de seis traidores que a C.I.A.
troca por três cidadãos norte-americanos... Foi uma...
desagradável surpresa?
— Muito desagradável — admitiu Voronof, ainda pálido.
— Mas o microfilme não vai chegar a Domodedovo,
senhorita Montfort.
— Este talvez não — admitiu por sua vez Brigitte. —
Mas compreenda que podemos obter quantas cópias
quisermos.
— Quando chegar a cópia seguinte, já estarei a salvo.
— Na China?
— Talvez.
— Não seja ingênuo, Voronof. Não compreende? Quando
você disser aos chineses que foi descoberto, e que tem que
esconder-se, eles o esconderão, por certo... Mas será em
baixo da terra, meticulosamente degolado. Receio muito que
você esteja no que se chama um beco sem saída.
— Os chineses não farão isso...
— Não? E por que não? Você, uma vez descoberto, não
lhes serve absolutamente para nada. Ao contrário, pode
comprometê-los muito, prejudicá-los... Ora vamos, Voronof,
você é um espião, sabe que o que lhe estou dizendo é a pura
verdade... Quietinho, “Cícero”!
O “chihuahua”, que tinha permanecido no mais completo
silêncio em presença de Wilhem von Steinheil, gania
agudamente agora, como compreendendo que aqueles dois
homens tinham intenções muito diferentes das do outro... e
achando-os muito parecidos com os que tinham morrido
diante de seus assustados olhinhos de rato.
— Vai entregar-me o microfilme, senhorita Montfort?
— Suponho que não tenho outro remédio. E levará
também estas fotografias, claro.
— Claro.
— Bem... — suspirou Brigitte. — Parece que, afinal,
encontrei um inimigo digno de mim, Voronof, e que não
poderei chegar a Domodedovo, que minha viagem realmente
terminou...
— O microfilme.
— Não está aqui. Deixei-o lá dentro, no quarto onde o
revelei... Mas, Voronof, como foi que conseguiu dar comigo
desta vez?
— O telegrama enviado de Nimiz, do “Hotel Berna”, a
um homem chamado Wilhem von Steinheil.
— Oh, claro... De qualquer modo inteirou-se do conteúdo
do telegrama, soube que hoje, às sete, estaria em Berlim, nos
arredores do posto “Charlie”, e esperou-me ali. Viu-me
chegar e entrar num carro. Seguiu o carro, esperou que o
meu amigo levantasse acampamento e, ao ver a
oportunidade, está disposto a... — Brigitte passou a ponta do
dedo indicador pela garganta. — Não é isso, Voronof?
— É. Vamos os dois buscar o microfilme.
— Não lhe apetece um pouco de champanha?
— Não. Deixe essas atitudes de espiã barata, senhorita
Montfort! Estão em desacordo consigo.
— Muito obrigada, Gregor — sorriu ela, alegremente. —
Seu amigo é mudo?
— Não. Mas, ao contrário de você, só abre a boca quando
é absolutamente indispensável... Não me faça perder a
paciência, senhorita Montfort.
— Acho que não tardará a perder algo mais que a
paciência, Voronof — disse ela, estendendo a mão para a
garrafa de champanha. — Não é certo, “Alexandria”?
Olhou em direção à porta do “living”, sorridente,
tranquila. Gregor Voronof não pôde evitar o gesto instintivo
de olhar também, justamente no momento em que se ouvia
um sibilar seco e curto, um golpe surdo... e o cabo de uma
faca aparecia sobre o coração do homem que o
acompanhava...
Gregor Voronof lançou um grito de fúria e surpresa, e
apontou o revólver imediatamente para o gigante enquadrado
na porta, com outra faca na mão já erguida... Mas o golpe
com a garrafa atingiu em cheio a mão de Voronof,
desarmando-o.
O espião traidor da M.V.D. correu para a janela com a
clara intenção de transpô-la, de passar através levando as
vidraças por diante... Mas ouviu-se outro sibilar seco e o
cabo da segunda faca apareceu agora em suas costas. O
golpe foi fortíssimo e por um passo apenas não conseguiu
Voronof alcançar a janela... mas morto. Como seu
companheiro, ficou estendido no chão, completamente
imóvel.
Brigitte desviou dele o olhar, mandou que o “Cícero”
parasse de latir e pousou seus formosos olhos em
“Alexandria”, com uma expressão consternada, alçando a
garrafa de champanha.
— Preferia não ter desperdiçado uma só gota desta
maravilhosa bebida, Wilhem.
— Mas foi um belo golpe... e oportuno — disse, rindo, o
alemão. — Você está bem?
— Muito bem. Oh, Wilhem, sou uma estúpida... Você
sabia que nos tinham seguido, certo?
— Certo — confirmou o bem apessoado gigante. — E
você também se teria dado conta, se não estivesse tão
excitada me narrando suas peripécias. Pareceu-me que devia
dar uma oportunidade a estes senhores e...
— E deixou-me confusa, decepcionada, ao retirar-se por
um motivo tão fútil.
— Não tão fútil: precisava de minhas armas, querida...
Acha que ainda ficou um pouco de champanha para mim?
— Umas gotinhas, amor.
Derramou-as na taça, enquanto “Alexandria” juntava os
dois cadáveres em um canto e estendia sobre eles um
cobertor que foi buscar num dos quartos... Feito isto, pegou a
taça e sorriu.
— Por sua presença, Brigitte... Desejava imensamente
tornar a vê-la.
— Não acredito. Se isso fosse verdade, teria ido a Nova
Iorque... Você também sabe onde encontrar-me.
— Sei... Mas pareceu-me melhor esperar que você
viesse...
Brigitte tomou um último sorvo de champanha, pousou a
taça, tirou a que o alemão segurava e murmurou:
— Pois estou aqui...
Wilhem von Steinheil esteve alguns segundos
contemplando aqueles olhos azuis admiráveis, puríssimos.
Depois, passou um braço pelos ombros de Brigitte e levou-a
para o quarto.
— Mais champanha? — sussurrou.
— Depois... — sussurrou também ela. — No momento,
há algo que desejo com muito mais intensidade...
Tirou a jaqueta, a saia, a blusa, a combinação,
conservando o soutien e as calcinhas. Num gesto brusco,
tirou o soutien e seus seios permaneceram erguidos como se
ainda o portasse, firmes, róseos, suaves... Depois, foi a vez
das calcinhas rendadas...
— Esqueçamos a champanha... por alguns minutos...
CAPÍTULO NONO
“Estou presa?” — Microfilme: ração de “chihuahua” — Uma que
nada entende de espionagem — Sem precisar de truques.

O imponente aparelho da “Mockba” iniciou a


aterrissagem, após advertidos os passageiros em inglês,
francês, alemão e, está claro, em russo. Sob eles, o colossal
aeroporto de Domodedovo, cintilante, perfeitamente
iluminado, grandioso, capaz de admitir folgadamente três
mil passageiros por hora.
Pela janelinha, Brigitte observava aquelas admiráveis
instalações com um pouco de apreensão, de preocupação.
Havia atravessado a Europa, contra vento e maré, contra mil
obstáculos. E chegava a seu destino... Pelo menos, disso
podia orgulhar-se. Mas chegar não quer dizer partir,
regressar de novo a casa...
Bem... Aqueles dias com “Alexandria” tinham sido
simplesmente maravilhosos, não havia por que buscar-lhes
mais adjetivos. Tudo, do princípio ao fim, tinha sido
maravilhoso ao lado de Wilhem von Steinheil: a plácida
viagem através da Alemanha, suas noites em albergues de
montanha, seus curtos passeios à beira de lagos... Tudo. E
enquanto isso, os amigos do legendário “Alexandria” tinham
estado trabalhando para ela. Quando chegara pela segunda
vez a Berlim, tudo estava preparado, tal como ela havia
pedido.
Mas se não tivesse êxito... Se não tivesse êxito, jamais
sairia de trás da cortina de ferro. Jamais. Entretanto, tinha
esperança de que os russos, tal como eles, jogassem limpo
desta vez. Fora feito um trato conveniente para ambas as
partes. Pela primeira vez, que ela soubesse, um trato sério
entre a C.I.A. e a M.V.D. Iriam os russos complicar sua vida
por uma simples agente da C.I.A. ?
Com possante roncar de motores, o aparelho CCCP 75
538 tocou em terra, com grande suavidade, deslizando em
seguida pela pista habilmente iluminada. Por fim, deteve-se
e, novamente em quatro idiomas, os passageiros receberam
os agradecimentos por sua confiança e preferência, bem
como votos de feliz permanência em território russo.
A escada foi colocada e os passageiros começaram a
descer do avião para serem reunidos e levados a cumprir as
sérias formalidades referentes a passaportes. Mas Brigitte
Montfort livrou-se da estopada: apenas desceu do aparelho,
dois soldados russos aproximaram-se dela e perguntaram-
lhe, muito convictos, em russo:
— Senhorita Brigitte Montfort?
— Eu mesma. Meu passaporte está em...
— Acompanhe-nos, por favor.
Brigitte sentiu um ligeiro desfalecimento nas pernas.
— Estou presa? — murmurou.
— Venha conosco.
Indicaram-lhe o caminho e ela os seguiu. Foram
diretamente para o grande saguão, repleto de gente que
chegava e partia. Com sua pequena maleta e sua bolsa com o
“Cícero” mostrando a cabecinha, a espiã norte-americana
atravessou o enorme recinto, o coração um tanto
confrangido. Adeus, Nova Iorque, Miami, Niágara, Paris,
Acapulco...
Súbito, viu um grupo de homens que pareciam esperá-la
diante de uma porta dos serviços administrativos do
aeroporto. Ao mesmo tempo em que a viram, eles entraram
naquela dependência... Quando os soldados chegaram junto
da porta, detiveram-se, um deles abriu-a e indicou o interior.
— Por favor: estão à sua espera.
— Sim... Obrigada...
Entrou. Havia seis homens. Três deles pertenciam à
polícia, dois eram militares e o sexto era um paisano de
olhos que pareciam verdes, penetrantes, irônicos.
— Podemos ver seu passaporte?
— Claro que sim...
Depôs a maleta no chão, mas um dos policiais,
obedecendo a um sinal de seu superior, colocou-a sobre a
mesa e abriu-a, enquanto Brigitte entregava o passaporte ao
homem que o pedira.
— Deixe que eu faço — disse o paisano, o dos olhos
verdes. — Creio que tenho mais prática destas coisas.
O policial assentiu com a cabeça e o homem dos olhos
verdes revistou lentamente a maleta, sem grande interesse,
segundo parecia. Brigitte viajava com poucas coisas... Tão
poucas que quando aqueles olhos verdes olharam para ela,
sentiu-se inquieta. E muito mais quando aqueles mesmos
olhos se fixaram no fundo da maleta, ou na dissimulada
cobertura do fundo falso. Se o abrisse, descobriria tudo: a
documentação falsa para escapar, a passagem conseguida
pelos amigos de “Alexandria” para o próximo voo a
Berlim... Tudo.
— O passaporte está em ordem... Alguma coisa de
interesse aí, Fedor?
— Não... O normal. Poucas coisas, aliás. Suponho que a
senhorita Montfort pensa permanecer muito pouco tempo em
Moscou.
E tornou a olhá-la, com aquela chispa latente de ironia em
seus inteligentes olhos verdes.
— Bem... Sim, poucos dias. Dois ou três... Como terão
verificado em meu passaporte, sou jornalista, e venho a
Moscou unicamente para fazer uma reportagem sobre
Domodedovo, este magnífico aeroporto...
— Não trouxe câmara fotográfica — fez notar Fedor. —
Pensava... comprar uma aqui mesmo.
— Ótima ideia — admitiu o militar de maior graduação.
— Bem, senhorita Montfort, não que tenhamos certeza,
mas... Fomos informados de que um cidadão norte-
americano ia chegar neste avião para entregar-nos algo que
lhe deram nos Estados Unidos. Consultadas as listas de
passageiros da “Mockba” no voo estipulado, constatamos
que a senhorita é a única passageira desse país... Esperamos
não ter-nos equivocado.
— Não... não, senhor... Deram-me uma coisa... Uma
coisa muito pequena, e disseram-me que não a perdesse e...
Bem, disseram-me uma barbaridade...
— Que barbaridade? — sorriu Fedor.
— Pois... me aconselharam que a fizesse engolir pelo
meu cãozinho, quando saísse de Berlim para Moscou.
— E assim fez?
— Fiz... Sim, senhor... E agora, claro, não lhes posso dar
aquela coisa. Teremos que esperar que o cãozinho... Bem,
que ele mesmo a... proporcione...
Houve uma troca de olhares entre os russos.
— Esperemos que o seu cãozinho não se atrase muito,
senhorita Montfort. Enquanto isto, se não faz objeção, ficará
sob nossa custódia.
— Mas se não... não a devolver?
— Então, lamentando-o profundamente, teríamos que
sacrificá-lo. Não pode ser de outra maneira. Por favor:
entrega-nos o cãozinho? Pode estar certa de que será tratado
com gentileza.
Brigitte mordeu os lábios. A segurança que desejava
obter de que ninguém mais poderia encontrar ou apoderar-se
do microfilme ia custar- lhe a perda de “Cícero”, ao qual se
afeiçoara de verdade. Mas não era um momento para
sentimentalismo...
— Está bem... Posso retirar-me?
— Já tem hotel?
— Não...
— Dois de meus homens a levarão num carro oficial, e a
instalarão de acordo com seu gosto ou preferência. É tudo,
senhorita Montfort. Estimamos que sua estada em Moscou
seja feliz e instrutiva. Se necessitar de algo, não hesite em
pedi-lo. Seja o que for.
— Obrigada. Mas o cãozinho...
— Faremos o possível para devolvê-lo. Depende dele.
— Bem... Adeus...
Acariciou a diminuta cabeça de “Cícero”, que a inclinou
lateralmente e começou a gemer quando Brigitte se dirigiu
para a porta. E depois de ter saído dali ainda ouvia os
lamentos do pobre animalzinho...
Oxalá o devolvessem!
***
Mas o momento da partida chegou e “Cícero” não fora
ainda devolvido à sua dona. Do grande saguão, um
confortável ônibus levou os passageiros até o avião que
Brigitte devia tomar.
E quando dele saltava, um pouco deprimida, ouviu a seu
lado, junto do veículo, um agudo ladrido de estremecida
alegria. Voltou-se rapidamente...
— “Cícero”! — exclamou.
Uma delgada mão masculina estendeu-lhe o cãozinho,
que começou a lamber desesperadamente as de Brigitte, as
quais o acariciaram com ternura. Quando ergueu os olhos,
ela encontrou aqueles outros, verdes, irônicos, inteligentes.
— Seu cãozinho portou-se muito bem, senhorita
Montfort. Pensamos que se moveria mais livremente por
Moscou se ficássemos tomando conta dele. Obteve uma boa
reportagem... de tudo?
— Sim, sim, sim... Oh, muito obrigada, senhor...
— Fedor Kosarin. Sabe que o seu cãozinho tem um nome
curioso?
— Curioso? Por quê?
— Não sabe quem era Cícero?
— Bem... Não, creio que não. Ouvi esse nome, gostei e...
batizei-o assim.
— Cícero foi um grande espião, senhorita Montfort. Mas,
claro que não entende destas coisas, não é mesmo?
Brigitte esteve a ponto de sorrir ao ver, mais clara que
nunca, aquela fina e quase simpática ironia nos olhos verdes
do russo.
— Não... Não entendo nada dessas coisas, camarada
Kosarin.
— É natural. Boa viagem, senhorita Montfort.

ESTE É O FINAL

Pitzer entrou muito excitado no “living”, onde Brigitte


estava escrevendo alguma coisa numa folha de papel apoiada
sobre um livro.
— Você conseguiu! — exclamou o velho espião. —
Santo Deus, querida... Você conseguiu!
— O que, tio Charlie?
— Que há de ser? O trabalho, a missão, o objetivo... o
nome que você queria!
— Soltaram os três funcionários da embaixada em
Moscou?
— Tomaram o avião para cá faz uma hora e meia.
Chegarão esta noite a Washington... Conseguimos, Brigitte!
— Você disse “conseguimos”? Sua desfaçatez é
espantosa, tio Charlie. Você em sua floricultura, muito
tranquilo, e eu por esses mundos... E diz agora que
“conseguimos”. Ladre para ele, “Cícero".
O “chihuahua”, que estava como um potentado no sofá,
torceu a cabecinha, olhou para Pitzer e soltou um estridente
ladrido. Pitzer e Brigitte puseram-se a rir. Peggy apareceu
com um grande ramo de rosas vermelhas.
— Onde as ponho, senhorita?
— Onde quiser, confio em seu bom-gosto... Quem as
mandou?
Pitzer foi quem respondeu:
— Eu as trouxe. Foram encomendadas de Washington
por Mr. Cavanagh, que me incumbiu de dizer-lhe umas
palavras: agora sim, podemos almoçar juntos qualquer dia,
“Baby”. Felicidades e... minha admiração.
— Johnny sempre foi muito amável comigo, quando
estivemos juntos naquela missão...
— Johnny?
— Eu me entendo. Com certeza: que sabemos do Johnny
de Palma de Maiorca?
— Saiu do apuro e mandou uma mensagem declarando
que lhe devia a vida... Que está escrevendo, filhinha?
— Um telegrama para um amigo. Estou... fazendo um
rascunho, pois quero que fique bem claro, que se entenda
perfeitamente. Embora a pessoa a quem é destinado saiba ler
entre as linhas melhor que eu nas mesmas.
— Duvido... E quem é essa pessoa?
Brigitte baixou lentamente as pálpebras.
— Um amigo.
— Hum... Posso ler o telegrama?
— Por que não, tio Charlie? Sua alma de espião se
contorceria, se não pudesse dar uma olhadela a este papel...
Pitzer apanhou a folha. Não havia nem endereço nem
nome naquele rascunho de telegrama. Mas o texto, apesar de
algumas correções, podia ser lido com clareza:
Sem precisar de truques regressei sem
contratempos PT tudo perfeito PT Espero você
qualquer dia a qualquer momento mas
entrementes quero reafirmar que jamais
esquecerei esta viagem de prazer PT Beijos,
Brigitte

A SEGUIR

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