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Criado no Brasil
***
Aos meus pais, Amilton Amâncio e Cíntia Amorim, por nunca saírem
do meu lado e por apoiarem incondicionalmente meu sonho de ser escritora.
Amo vocês!
AGRADECIMENTOS
Como em todos os meus livros, agradeço primeiramente a Deus pelo
dom que me deu. E por estar à frente deste sonho cuidando de tudo.
Agradeço aos meus amigos e aos meus leitores por cada palavra linda
sobre minhas histórias. São elas que me motivaram a escrever mais este
livro.
À capista, Joy Designer Editorial, pelo trabalho lindo que fez. Amei
esta capa. Seu cuidado, sua paciência e seu talento são admiráveis.
Agradeço também a autora, Halice FRS, por ter revisado este livro.
Adoro aprender com você.
Instagram: @gabiamorim_autora
Amazon: https://www.amazon.com/author/gabiamorim_autora
1
MANUELA
Toda vez que vou me vestir, abro meu guarda-roupa e lá está ele. Não
aguento mais vê-lo ou até mesmo pensar em sua existência ali, tão perto. O
que seria recomeço se tornou um peso, um fardo. E não tenho mais forças
para carregá-lo. Preciso me livrar logo disso.
Abro o guarda-roupa mais uma vez e o tiro de lá. Chega! Hoje você
vai sair do meu apartamento, da minha vida. Pego uma caixa grande e o
jogo lá dentro. Sei de um bazar da igreja e é para lá que vou. Procuro minha
chave do carro e saio.
― Sei lá. Só achei que eu não seria capaz de amar um homem assim.
― É.
― Não começa, Samuca. Não quero ter de discutir isso de novo com
você.
― É melhor eu ir, antes que sua mãe apareça falando que a gente não
pode se encontrar hoje porque dá azar. ― Ri, brincalhão.
― Pelo o que sei, você só não pode ver o vestido.
― Seja lá o que D. Ana pensa, é melhor não dar motivos. Hoje tudo
precisa ser perfeito. ― Ele me beija e vai embora.
― Anda logo com esse café, minha filha, a gente vai se atrasar para o
salão.
Reviro meus olhos e bebo tranquilamente o último gole. Escovo meus
dentes e saio atrás da mãe de noiva mais nervosa que já conheci. O trajeto
até ao salão é rápido e logo chegamos para alívio de D. Ana.
“Minha Manu,
Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Não vejo a hora de te ver toda
linda de noiva entrando na igreja. Nunca esqueça o quanto eu amo amar
você. Conto os segundos para me tornar para sempre seu e provar que
jamais vou te abandonar, pois ao seu lado é o meu lugar.
Com amor,
Seu Samuca”
― Seu pai ficaria tão orgulhoso da mulher linda que você se tornou.
― Não é verdade, minha filha, ele estava doente, você precisa aceitar
isso. Em outras circunstâncias jamais teria feito o que fez.
Chegando à igreja, fico sabendo que o noivo ainda não chegou. O que
é muito estranho, já que quem deveria se atrasar era a noiva. A hora passa e
nada dele. Nenhuma notícia.
LUCCA
Desde que mudei para Roseta, para ser médico do SAMU, através de
uma transferência, sinto que não tenho mais tempo para nada. E, ao
contrário do que muitos pensam, é ótimo. O que eu menos preciso é de
tempo ocioso em casa. Quando fico à toa começo a pensar demais, e isso só
faz minha dor aumentar.
A culpa ainda é grande por não ter chegado a tempo. Salvei tantos
estranhos ao longo de minha carreira, mas não pude fazer nada por ela.
Justo por ela! Que tipo de homem eu sou? Não era para ter sido desse jeito.
Queríamos construir uma família, aproveitar o clima de cidade pequena
para ter nossos filhos, vê-los brincar no jardim de casa e crescer, tornando-
se homens ou mulheres de caráter. Nada disso será possível e a culpa é toda
minha.
É claro que essa missão não é nada fácil. Não pelo número de pessoas
que atendo em acidentes todos os dias, porque é bem grande, já que minha
base atende várias cidades menores em volta de Roseta. É difícil, pois a
cada dia que passa me sinto mais sozinho.
Até tentei uma vez conhecer uma pessoa, graças a muita insistência
de Caio. Uma prima dele estava na cidade e não queria sair só com o casal.
Ele, então, achou que eu seria a pessoa perfeita para apresentar a ela. Foi
um desastre. Há anos não sei como me comportar em um primeiro
encontro.
Depois desse dia vergonhoso em minha vida amorosa, decidi que tão
cedo não saio mais com alguém. Já tenho problema suficiente para ficar
criando mais um tentando me relacionar enquanto meu coração ainda
pertence a uma mulher mais do que especial.
Quando não posso mais adiar, volto para casa e vejo que tudo está
como deixei. Uma casa escura, sem barulho... Sem vida.
― Cheguei, meu amor.
― Eu sei que não deveria viver de pizza, mas é muito mais fácil,
você tem de concordar.
Enquanto espero, lavo a louça que está na pia. Deixo para tomar
banho depois de comer, porque além de a fome hoje está apertando, tenho
medo de cair no sono após uma longa chuveirada e ir dormir sem comer,
como fiz há alguns dias. Mas eu prometi a ela que aprenderia a me cuidar.
O mínimo que posso fazer é comer todos os dias.
Assim que esquenta, pego dois pedaços, coloco no prato e vou para
frente da televisão assistir a alguma coisa.
Repito a pizza e percebo estar com mais sono do que nos últimos
dias. O plantão dobrado acabou comigo. Preciso urgente de um banho. Ligo
o chuveiro e deixo a água massagear meus músculos retesados das costas.
― Você bem que podia fazer aquela massagem, não é amor. Hoje eu
mereço, você não acha?
MANUELA
Como assim “sinto muito”? Era para eu ouvir “parabéns” pelo dia de
hoje e não “sinto muito”. Por um instante minha vida vira de cabeça para
baixo e não sei como superar mais essa. Que droga! Por que tudo isso tem
de acontecer comigo?
― Ele já se foi, minha filha, não tem por que você ir à cena do
acidente. Vamos esperar até...
Uma lágrima insiste em descer. Não era para ser assim o dia de hoje.
Seco bruscamente o rosto. Olho mais adiante e vejo a mãe de Samuca
chorar de maneira incontrolável e sendo confortada por seu marido, que
tenta ser forte, mesmo também chorando a perda de seu filho.
― Espera!
Minha garganta seca. Minha voz não sai. Minhas pernas tremem e
sinto meu coração terminar de se destruir. Prometi a mim mesma que jamais
sentiria essa dor novamente desde que tinha quinze anos, e hoje ela me
invade com toda força. Tudo o que eu consigo fazer é ficar olhando para
aqueles olhos azuis.
Ele, por sua vez, com as lágrimas escorrendo em meio aos ferimentos
de seu rosto, a única coisa que consegue dizer para mim é:
― Eu sinto muito...
― Então vamos!
― Por que não vamos para minha casa? Você não precisa enfrentar a
sua agora.
Penso bem na oferta, mas ter que enfrentar meu antigo quarto seria
bem pior. A conclusão é que nada me faria bem nesse momento. E quem
poderia segurar forte minha mão para eu não desabar já não está mais aqui.
― Eu vou para minha casa, mãe ― disse por fim. ― Quero ficar
sozinha.
Minha mãe entende bem o recado e se despede de mim assim que saí
do carro.
― Precisava ter feito essa sujeira na casa toda com essas rosas e
deixado tudo para eu limpar sozinha? ― Bebo mais um longo gole.
Pego uma vassoura e tudo o que consigo pensar é me livrar de toda
essa bagunça que virou meu apartamento. O que seria uma lua de mel vira
um dia de faxina. Muito apropriado para a minha vida.
Começo a ficar com dor de cabeça. Não sei se é pelo cheiro das
flores, pelo estômago vazio ou por já ter tomado metade da garrafa de
champanhe. Talvez seja por tudo isso junto. Vou até a cozinha tomar um
analgésico e tomo dois por precaução.
Minha cama, agora livre das pétalas, torna-se um lugar cada vez mais
atrativo e acabo me rendendo a ela. Não quero saber de velório. Minha
última lembrança de seu rosto não será dentro de um caixão, sim, do último
sorriso que me deu, da última vez que saiu pela porta do meu apartamento
antes que minha mãe aparecesse para me levar ao salão. E com essa última
lembrança caio no sono, com o efeito do analgésico a mais que tomei.
LUCCA
― Hum, está cedo, por que você está me acordando essa hora?
Agora foi minha vez de cair na risada, não que ela esteja errada, pois
é a mulher mais linda que já vi em toda a minha vida. E é toda minha.
― Vou ficar assim quando for sua vez de cozinhar também, quero só
ver sua reação.
Ignoro.
― Sei que na hora certa, quando Deus achar que estamos prontos
para sermos pais, vamos ter nossos filhos.
― Porque me preocupo com você. Está tão ansiosa para ficar grávida
que pode acabar te atrapalhando.
― Quer dizer que você acha que eu não engravidei até hoje por culpa
minha? ― diz em tom mais sério, já demonstrando estar chateada.
― Claro que não, meu amor. ― Dou a volta na ilha para chegar mais
perto dela. ― A culpa não é de ninguém, nada acontece se Deus não
permitir. O que estou falando é que essa ansiedade pode te fazer mal e até
fazer mal para o nosso relacionamento. Não quero transar com você na
pressão de te engravidar. Quero que continue sendo com prazer como a
gente sempre fez. Entende?
― Então, você está se sentindo péssima à toa, pois meu maior sonho
nunca foi esse. Claro que quero ser pai, mas meu maior sonho sempre foi
casar com alguém como você. E olha você aqui nos meus braços, me
fazendo feliz todos os dias quando abro os olhos e te vejo ali deitada ao
meu lado.
Ela abre um sorriso em meio às lágrimas.
― Ótimo! Agora vamos tomar café porque já deve estar tudo frio.
Agora já sei por que você não gosta tanto da minha comida.
― Eu não disse que não gostava da sua comida, disse que gostava
mais de ver você cozinhando, é diferente. ― Abre um sorriso tímido.
MANUELA
DIAS ATUAIS
Claro que eu posso muito bem pegar o dinheiro do seguro que ele me
deixou e sumir. Sim, ainda tive que passar por mais essa. Descubro que ele
fez um seguro de vida em que a beneficiária sou apenas eu. Seus pais
acharam tudo muito estranho. Como se tudo aquilo fosse ideia minha.
Como pode? Nunca quis o dinheiro dele em vida, o que vou fazer com ele
agora?
Levanto, tomo meu café ainda amargo para tentar ter uma força a
mais. Visto a primeira roupa que encontro no meu guarda-roupa. Prendo
meu cabelo em um coque malfeito para não ter que arrumar muito e desço
para pegar meu carro. Tudo em cidade pequena é relativamente perto, mas
ir a pé hoje não é uma opção.
Chegando lá encosto meu carro na vaga mais próxima. Caminho em
direção à porta da floricultura e, antes de abri-la, fico olhando para a placa
de madeira que ele mandou fazer com o nome “Floricultura Orsini”. Meu
coração se aperta quando me lembro da surpresa que ele fez usando meu
nome e não o dele ou qualquer outro que poderia ser colocado. Antes que
alguém me veja parada ali à toa como uma maluca, afasto minhas
lembranças para o mais longe possível e, finalmente, entro.
Nada está como eu imaginei. Esperava flores mortas para tudo que é
lado e muita poeira para tirar. Mas encontro um lugar praticamente limpo e
com as coisas todas em seus devidos lugares. Eu só tenho que passar uma
vassoura de leve no chão. E toda essa arrumação tem um nome: D. Ana. Ela
é inacreditável! Cuida de mim até quando não mereço. E nesse momento
me faltam palavras para agradecer tamanho cuidado.
― Oi, filha.
Abro um sorriso.
― Beijo.
Desligo e olho para o chão ainda tentando criar coragem para varrê-
lo. Como é preciso começar o serviço de hoje por algum lugar, vamos pela
vassoura então. Depois de limpo já vou para o caderno de fornecedores,
afinal, uma floricultura sem flores não faz o menor sentido. Passo a manhã
toda ligando para todos, avisando que a Floricultura Orsini está retornando
aos serviços e faço os devidos pedidos.
Na hora do almoço minha mãe chega com uma marmita. Se não fosse
por isso eu nem lembraria que já estava na hora de comer. E nem teria
vontade também. Nesses últimos meses só estou fazendo as coisas por pura
obrigação. Ela trouxe uma para ela também e, assim, sentamos nós duas
para comer como há tempo não fazíamos.
― Eu estava muito ocupada em casa que não podia vir almoçar com
minha filha. Claro!
― É você acha que seu pai queria? Que ele queria deixar a gente?
― Acho não, tenho certeza! Ele escolheu nos deixar. A senhora sabe
muito bem disso!
― Manu...
― Tudo bem, mãe. Só não vamos falar mais disso. Por favor!
― E por quê?
― Por que o quê? ― Não entendo aonde ela queria chegar com
aquilo.
Quero poder dizer o quanto ela não conhecia o próprio filho, mas não
sei se eu tenho esse direito. Ela não sabe quantas noites ele passou só
falando em como queria tudo. Sonhando com cada cantinho desse lugar. E o
quanto ele tinha pavor de ser obrigado a ter de trabalhar ao lado do pai. Não
que ele não amasse o pai, mas não era o exemplo de vida que queria seguir.
Estava disposto a ter uma vida muito mais simples do que a que sonhavam
para ele.
― Não acha que seria melhor acabar logo com isso e recomeçar a
vida?
― E por quê? Você ainda é nova, pode fazer o que quiser da vida. Por
falta de dinheiro é que não vai ser problema agora.
Meu sangue já começa a ferver. Já vem ela com essa história de novo.
Ela olha para mim, assustada. Não estou acostumada a responder para
ela. Sempre segurei minha língua para não ter problemas com Samuca, mas
ele não está mais aqui nem para me defender. E eu não consigo lidar com
essa mulher sozinha. Ainda mais querendo se meter na minha vida.
― Olha aqui, a senhorita não tinha onde cair morta antes de conhecer
Samuel...
― E se ele quis deixar tudo o que deixou para mim é problema dele,
eu não tenho nada com isso. A senhora acha mesmo que eu prefiro todo
esse dinheiro a ter me casado com ele naquele dia? Porque se acha, só pode
ser louca em pensar algo assim. Eu amava seu filho. Eu esperei que ele
aparecesse no meu apartamento todos os dias desses meses após o acidente.
Uma espera inútil e cruel. Então, não ache que vai aparecer aqui e me
mandar fazer o que quer que seja.
― Eu também perdi um filho naquele dia, não foi só você que perdeu
alguém ― falou entre lágrimas. ― Um filho que não falava comigo direito
por sua causa. Por causa dessa bendita floricultura.
― Se a senhora respeitasse mais seu filho, nada disso teria
acontecido. Agora terá de lidar com isso sozinha. Não poderei ajudar.
Então, por favor, saia da minha floricultura agora.
― Seu pai não viveu o suficiente para lhe dar a educação que meu
filho merecia em uma esposa. Até porque, não podia se esperar muito de
um homem que fez o que fez, não é? ― Vira às costas e caminha até a porta
sem antes parar e voltar a dizer. ― A única coisa boa naquele dia foi meu
filho não ter se casado com você.
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MANUELA
Agora quanto ao meu pai, bem... Aí as coisas mudam. Fora que foi o
assunto da cidade quando tudo aconteceu. E eu só tinha quinze anos. Mas
nem sempre foi assim...
LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA
― Foi! Um tempão!
― Desculpo. Mas você tem que ir falar logo com a “Margalida”, ela
também não aguentava mais te esperar.
Eu puxo a mão dele e nós dois entramos correndo pela casa até
chegar ao meu quarto. Pego minha boneca de pano em cima da cama e
entrego para ele.
― Aqui a “Margalida”, papai.
Ele pega ela no colo, joga para o alto, passa a barba no pescoço da
“Margalida” e ainda a enche de beijos.
― Não.
― Pois é. Aí, quando esse dia chegar, não vou precisar mais viajar e
ficar longe de você.
― Para quê?
― Prometo!
― Jura de dedinho?
― Juro de dedinho. Agora vamos almoçar que seu pai está morrendo
de fome. Sou capaz de comer toda a comida se você não chegar a tempo ―
ele fala e desce as escadas correndo.
Depois disso eu tento esquecer esse assunto. Não quero pensar que a
qualquer dia ele ia embora de novo. Quero ficar ali brincando com ele para
sempre.
DIAS ATUAIS
Difícil lembrar que meu melhor amigo virou meu pior pesadelo.
Minha maior mágoa. E que suas promessas não valeram de nada.
7
MANUELA
― Você devia mesmo gostar dessas flores. Ele nem muda o pedido.
― Enfim! Não sei por que estou aqui divagando com alguém que
nem existe mais. Que nem aqui está. Só posso estar maluca mesmo. Ou
pode ser o cansaço desses últimos acontecimentos em minha vida. Só
espero que onde quer que você esteja, possa saber o que ele ainda faz. Não
é fácil ficar viva quando tudo em volta foi destruído. Você pelo visto
também foi cedo demais. Não foi muito justa com ele. Não deveria ser
assim. Vocês levam tudo de nós e somos obrigados a simplesmente seguir
em frente. É cansativo. Doloroso. E injusto.
Caminho de volta para meu carro com um peso no corpo que não sei
de onde veio. Dirijo calmamente para a floricultura quando no fundo queria
dirigir para bem longe de tudo.
Assim que passo pela porta da entrada, encontro minha mãe sentada
atrás do balcão.
― Seu marido.
― Tem dia em que é difícil conversar com você, hein, minha filha.
Mal sabia ela que acabava de voltar de uma conversa longa com a
falecida esposa do meu cliente misterioso. Mas ela não precisava saber de
todos os detalhes.
― Conversar com ele poderia ajudar um pouco. Você sabe que eu
faço isso até hoje, me faz me sentir um pouco menos sozinho. Você
realmente deveria tentar.
― Não sou maluca. ― Tudo bem, talvez eu seja um pouco. Acho que
no fundo todo mundo é, mas não vou entrar nesse mérito da questão com
ela. Não quero complicar mais as coisas. ― Esquece esse assunto, mãe. Fui
lá apenas para fazer meu trabalho. E só. Se a senhora vai aparecer aqui todo
dia primeiro para me perguntar isso vai perder seu tempo. E o meu também.
Deveria responder que não, que tenho muito serviço para fazer, mas
não consigo fazer isso sabendo que ela é a mãe do Samuca. Acho que devo
isso a ele. Vamos ver o que vem dessa vez.
Entramos no escritório e nos sentamos.
Olho para ela, espantada. Jamais imaginei que esse seria o assunto.
Claro que eu sabia que de uma forma ou de outra se tratava do Samuca, mas
nunca isso. Sêmen congelado? Quando foi que ele fez isso? Nunca
conversamos a respeito. De onde ela tirou essa história?
Continuo olhando para ela, mas prefiro ficar quieta. Não quero ter de
falar que ele não pode fazer nada lá de cima. Que isso não passa de ilusão
de sua mente. Só tenho medo de saber aonde ela quer chegar com toda essa
história. Por que me procurou para me contar isso se nunca gostou de mim.
― Meu filho me deixou um presente. Ele pode ter ido embora, mas
agora podemos ter um pedacinho dele aqui.
Como assim, um pedacinho dele aqui? O que ela está querendo que
eu faça?
― Você não parece feliz em saber que pode ter um filho do meu
filho?
― É claro! Por que não? Achei que você ficaria tão feliz com a ideia
quanto eu. Afinal, você amava ou não Samuel?
― Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É claro que eu o amo.
Nem é no passado. Eu ainda o amo. Não é um sentimento que morre do dia
para a noite. Mas isso não significa que eu queira ter um filho sem um pai.
― Não é apenas uma questão de dinheiro. Não sei se era isso que
Samuca ia querer também.
― Como assim, para mim? O sêmen não pode ser usado por outra
pessoa?
― Não é bem assim. Eu posso ser a mãe dele. Posso ser tudo para
ele. Só não posso gerá-lo. Para isso, infelizmente, dependo de você.
― Louca é você que se recusa a ter esse presente que meu filho nos
deixou.
― Olha, para mim chega! Não vou mais discutir esse assunto com a
senhora. Um filho não é um brinquedo novo que a gente compra numa loja
de um dia para o outro. Envolve muita coisa e eu não me sinto pronta para
fazer isso agora.
― Tudo bem. Não precisa se decidir agora. Como eu disse, eles estão
congelados, podem esperar.
Ela passa por mim e nem se despede. Fecho a porta assim que ela sai.
Sinto um misto de emoção. Um alívio por estar, finalmente, livre dela e
uma angústia, um aperto no peito com toda essa história. Passo a mão na
minha barriga e me lembro do sangramento que tive uma semana após o
acidente de Samuca. Fui ao hospital e fico sabendo que estava tendo um
aborto espontâneo por estresse.
LUCCA
Todo dia primeiro do mês é um dia importante para mim. Não foi o
dia em que a perdi, mas é um dia que reservo para me lembrar do quanto
ainda a amo. Sei que ela se foi e que não faz muito sentido provar nada a
Cris, mas é como se parte dela ainda vivesse dentro de mim desde o dia em
que ela entregou seu coração para mim e eu entreguei o meu para ela. É o
dela que bate aqui dentro de mim, o meu ela simplesmente levou embora.
Rosas azuis. Tão raras como nosso amor. Nossa amizade. Nosso
relacionamento. E tão lindas quanto tudo isso.
Não sei o que fazer com tanto amor que ainda existe em mim. Por
isso reservo esse dia para me conectar a ela e tentar extravasar um pouco
tudo o que sinto. Mas esse mês está um pouco complicado para cumprir
meu ritual porque estou de plantão no meu serviço. Não posso
simplesmente abandonar tudo e ir ao cemitério. É meu trabalho que me
mantém vivo nesses últimos meses. Foi ele também que me tirou ela, afinal,
se eu não tivesse de plantão ou se tivesse chegado a tempo nada disso teria
acontecido. É um sentimento muito contraditório. Mas é por causa dele que
levanto todas as manhãs.
― Eu sei que você não quer que eu fique voltando aqui. Quer que eu
siga minha vida, mas eu estou tentando, juro que estou. Mas é mais fácil
para você que se foi do que para mim. Eu olho para o lado e tudo faz me
lembrar de você. Como eu faço? Ainda bem que nosso bebê se foi com
você. Como eu cuidaria de tudo sem você para me ajudar? Eu mal consigo
cuidar de mim. É tudo tão difícil, tão sem sentido. Eu não lembrava como a
vida é sem graça sem você.
― Tchau, meu amor, eu preciso mesmo ir. Volto mês que vem. ― E
dou de sair, até que paro e volto. ― Eu sei que você não quer que eu volte,
mas ainda não consigo. Tenha paciência comigo, por favor! Eu vou sair
dessa, prometo. Beijo.
Agora, sim, saio correndo em direção à ambulância estacionada do
lado de fora do cemitério.
― Desculpe, não posso falar disso agora, não agora. Mas já disse,
não vai acontecer de novo, que droga. Agora dirija mais rápido, não posso
perder essa mulher.
― Você a conhece?
― Não.
Ele olha para mim cada vez mais confuso. Realmente estou
parecendo um maluco. Para quem não sabe da minha esposa pareço não
falar nada com nada.
― Estou dirigindo, droga! Você sabe que não posso ir mais rápido do
que isso. Quer nos matar?
MANUELA
Como pode parecer tão simples para ela o fato de colocar uma criança
no mundo que não terá um pai? Ela só terá referência do homem que ele era
pelas lembranças de terceiros. Só o verá por fotos e vídeos.
Definitivamente, não quero colocar uma criança no mundo desse jeito.
Ligo o carro novamente e dirijo a casa da minha mãe. Por mais que a
gente pense diferente, ela não deixa de ser minha mãe.
― Está tudo bem, minha filha? – pergunta ela assim que entro.
― Agora estou ainda mais curiosa. Você está aqui em casa enquanto
a floricultura está aberta. Boa coisa não deve ter acontecido. E algo me diz
que tem tudo a ver com a visita da sua sogra.
― Ex-sogra.
― Não, a senhora não ouviu errado. É isso mesmo. Ela descobriu que
Samuca congelou o sêmen dele, mas só autorizou que eu usasse. Nenhuma
outra mulher pode gerar esse filho a não ser eu.
― Você não acha que seria bom ter uma continuidade do amor de
vocês em casa, mesmo que não tenha mais Samuca?
Olho para ela, incrédula. Não acredito que só eu sou contra a essa
ideia.
― O que foi? Não deixa de ser uma possibilidade, Manu. Nem todas
as mulheres podem ter essa chance que você está tendo.
― Não estou falando isso, você entendeu muito bem, mas ama
distorcer tudo o que eu falo. Só estou dizendo que, talvez, ter um filho dele
possa te ajudar a passar por toda essa perda.
― Tudo bem, minha filha, só você pode tomar essa decisão. Saiba
que vou te apoiar seja ela qual for. Eu só acho que ter um filho é uma
dádiva de Deus.
― Não depois que o pai da criança já morreu. Pelo menos, não para
mim.
― Entendo você, não vou mentir. Criar uma criança sozinha não é
nada fácil. Depois de tudo o que aconteceu com...
― Eu só ia dizer que...
― Já disse que não, mãe. Por favor! A senhora não pode comparar a
minha situação com a sua.
― Não sei, mãe. Acho que não consigo. Fora o medo que eu tenho de
perder de novo.
Ela me olha, espantada. É nesse momento que percebo que falei
demais.
― Como assim, mãe? Só quis dizer que não vou conseguir passar por
uma gravidez desse jeito. ― Tento fugir do assunto.
― Não. Não foi isso que você falou. Disse que tem medo de perder
“de novo”. Quero saber como assim “de novo”.
Vejo seus olhos se enchendo d’água. Sabia que seria difícil para ela,
ficar sabendo disso.
― Não precisa ficar assim, mãe. Estou bem agora. Fica tranquila.
― Por que você não me contou, minha filha? Passou por tudo isso
sozinha?
― Como eu disse, não estava pronta para falar desse assunto. Foi um
misto de emoções saber que estava grávida no mesmo momento em que
também perdia o bebê. Não sabia como falar disso. E toda vez que eu
pensava a respeito mais a morte do Samuca me machucava.
― É claro que machucaria, era o filho dele. Não sei nem o que te
dizer. Sinto muito por não ter estado ao seu lado.
― Eu sei que um pai faria muita falta, mas saiba que você não estaria
sozinha. Estou ao seu lado para tudo.
― Obrigada, mãe! Sei que posso contar com a senhora. Só não quero
que meu filho sinta o que eu senti em relação ao pai.
― Você precisa tratar isso. Curar essa ferida. Seu pai amava você
mais do que tudo nessa vida, não gostaria de saber que você ainda sofre
tanto com isso.
― Manuela...
― Por favor, mãe. Não vamos mais falar dele. O dia de hoje já foi
difícil o suficiente. Não vamos torná-lo ainda pior.
― Tudo bem, mas um dia você ainda vai ter de superar tudo o que
aconteceu. Só assim terá o coração leve para ser feliz de verdade.
― É... Quem sabe um dia?
10
LUCCA
― Meu bebê! Meu bebê! Ele está bem? Por favor, olhe ele primeiro,
por favor! ― repete a mulher, apavorada.
Não posso contar a ela que já vivi este mesmo acidente com minha
esposa, mas que no caso dela não fui rápido o bastante. Preciso que ela
confie em mim e que me deixe trabalhar. Não posso perdê-la também. Não
assim!
― Ele está vivo! Ele está aqui! As batidas estão em ritmo normal! ―
falo ao mesmo tempo em que sinto meus olhos se encherem de lágrimas.
Meu parceiro entra atrás com ela, assim como o marido, e eu vou
dirigindo. Minha mente está a mil por hora. Tento me concentrar o máximo
possível para chegarmos com segurança ao hospital e o quanto antes.
― Estou. Claro!
― Porque sou seu melhor amigo e sei tudo sobre você. ― Ele ri
também.
― É, quem liga?
― O acidente de agora.
― Sim. Eu lembro.
― Sinto muito, cara! Agora entendo porque foi tão difícil para você.
MANUELA
Volto da casa da minha mãe, esgotada. O dia de hoje foi muito cheio.
Toda essa história de bebê sugou o pouco de energia que eu tinha. Quero
poder voltar no tempo e apagar da minha vida tudo o que aconteceu depois
que vesti meu vestido de noiva e fui à igreja para fazer uma coisa que jurei
que jamais faria: casar!
Choro copiosamente. Tento tirar do meu peito toda aquela dor que me
atormenta há tantos anos. Vencida pelo esgotamento emocional me arrasto
até minha cama. Fecho os olhos e torço para cair logo no sono. Não aguento
mais o dia de hoje.
Como há tempos não acontece, sonho com meu pai. Volto àquele
fatídico dia em que tudo mudou para sempre.
Acordo com um dia bonito, como a maioria dos dias em Roseta. O sol
já raia forte em minha janela. Adoro acordar assim, apenas com o dia me
chamando e não com aquele bendito despertador. Hoje, para minha alegria,
é feriado, então, nada de escola. Não vejo a hora de ir para o ensino médio
no ano que vem, mas nada é ainda melhor do que um feriado prolongado.
Desço para tomar meu café da manhã e já procuro meu pai. Ele anda
muito estranho desde o dia em que perdeu o emprego de caminhoneiro na
empresa em que trabalhou desde antes de eu nascer. Está triste, quieto e
vive sozinho naquele jardim.
― No jardim!
― É.
Ele me olha confuso sem entender muito bem do que estou falando.
― Você ainda é muito nova, tem muito que estudar. Não se preocupe
com essa promessa. Já faz muito tempo.
― Queria fazer algo para te ajudar. Não gosto de te ver tão triste
assim.
― Vou dar um jeito nisso. Hoje mesmo. Você não vai precisar mais
me ver assim. Eu te prometo. ― Ele então me abraça forte e depois esconde
as lágrimas que escorreram de seus olhos.
Resolvo deixá-lo sozinho e vou para o meu quarto. O dia passa como
outro qualquer. Almoçamos juntos e depois resolvo tirar um cochilo.
Algumas amigas até me chamaram para sair um pouco, mas estou com
preguiça e prefiro ficar em casa.
Vou até a janela e abro a cortina. É nesse momento que sinto o chão
se abrindo debaixo dos meus pés. Fico, completamente, paralisada com o
que vejo. É como se meus olhos não acreditassem no que está bem diante
deles. Tento chamar minha mãe, mas minha voz não sai. Meu desespero
aumenta. Sinto dificuldade para respirar.
Minha mãe entra no quarto e fala alguma coisa comigo. Olho para ela
sem conseguir formar uma palavra e volto a olhar o jardim pela janela. Ela,
então, para ao meu lado e olha na mesma direção que eu.
Ela aparece correndo em direção ao meu pai que está pendurado por
uma corda na árvore que mais dizia gostar. Desesperada e um pouco sem
jeito, ela tenta levantar as pernas dele para diminuir a pressão em seu
pescoço. Nada acontece. Começa a chorar e fica perdida, sem saber o que
fazer.
― Dona Ana, não tem nada o que eles podem fazer aqui. Sinto muito,
mas já é tarde demais. O senhor Miguel faleceu.
― Ele não faleceu! Ele se matou! Ele não pode ter feito isso comigo,
ainda temos uma filha para terminar de criar. Como vou fazer isso sozinha?
― Acorda! Por favor, acorda! Você não pode me deixar assim! Não
assim! Por favor!
Pai e mãe são duas pessoas que deveriam viver para sempre. É muito
dolorosa uma vida sem eles. Sei que a situação financeira naquela época
estava muito complicada devido à demissão do meu pai, mas ainda assim,
para mim, nada justifica o que ele fez.
Minha mãe sempre fala que ele estava doente, e que pela criação que
teve dos pais dele, não sabia como pedir ajuda. Principalmente quando o
assunto era psicólogos ou psiquiatras. Um tabu muito grande enfrentado
pelas gerações anteriores.
Talvez, um dia, toda essa dor passe e eu consiga pensar nele como
aquele homem que tanto me inspirava e não como o pai que me deixou de
uma forma tão abrupta e cruel. Hoje, porém, vivenciando mais uma vez o
luto, perdendo mais uma vez um homem que tanto amava, não consigo
sentir outra coisa a não ser dor.
12
LUCCA
Volto para casa sem vontade de fazer nada. Não quero comer. Não
quero tomar banho. Quero apenas fazer com que esse dia acabe logo. E
claro, também quero poder sentir seu abraço mais uma vez. Só ele seria
capaz de fazer toda essa dor passar.
― Pode não resolver meus problemas e nem trazer você de volta, mas
sem dúvida vai me fazer dormir bem mais rápido.
Ele entra e vai direto para cozinha. Sempre foi uma das pessoas que
Cris e eu recebíamos em casa. Ele e sua esposa.
― Mas quem disse que é para você? Pedi porque eu estou com fome.
E a dona patroa não gosta que eu beba sem comer algo. Então, se eu quiser
continuar dormindo na minha cama, preciso seguir todas as regras.
Sirvo a vodka com o suco e gelo. Pego meu copo de novo e ficamos
ali na cozinha mesmo, esperando a pizza chegar.
― Confesso que daria tudo para ter a minha “dona patroa” de volta
brigando comigo por coisas bobas ― falo olhando para o nada.
― Foi tão difícil engravidar que achei que dessa vez tudo daria certo.
Mal sabia eu que perderia os dois ao mesmo tempo. E a culpa é toda minha.
― Pare com isso, irmão, você não poderia ter feito nada. Foi um
acidente. Você sabe disso.
― Traumatismo craniano.
― É!
― De menos? Você parece que não conhece sua esposa. Ela não ia
querer viver com sequelas. Ainda mais sabendo que seria mãe em breve.
Por fim, a pizza que o Caio pediu no caminho chega. Como apenas
uma fatia, assim mesmo por obrigação. Não quero ter que ouvir de ninguém
que preciso me alimentar. Mesmo que esse alguém seja meu melhor amigo.
Não estou no clima para sermão.
― Eu já vou, mas meu celular vai ficar ligado. Pode me ligar para
qualquer coisa, independente da hora.
Assim que ele sai a casa volta a ter o silêncio dos terríveis últimos
meses.
― Fica tranquila, prometo que amanhã arrumo toda aquela bagunça
que fiz lá em cima.
― Agora vai ficar do jeito que você sempre quis. Com bastante
espaço, inclusive. Justo agora que o espaço é o que menos preciso. Sinto
muito por não ter te ouvido antes.
― E, sim, amanhã cedo vou tomar café com o que sobrou da pizza.
Não posso deixar estragar. Então, por favor, feche os olhos ou finja que não
vai ver.
Fecho meus olhos para tentar dormir e dar um fim nesse dia
horroroso.
MANUELA
Ainda é cedo para fazer qualquer coisa. E para falar a verdade, não
estou com cabeça para ir à floricultura organizar pedidos para pessoas
felizes e apaixonadas. Decido dar uma faxina no meu apartamento, o que
não faz muito sentido, já que acabei de tomar banho. Devo ser a única doida
que faz uma coisa dessas.
São 8h da manhã e já não tenho mais nada para fazer. Não sei o que
acontece comigo, mas decido ir à casa da minha mãe fazer o que evito há
anos. Acho que chegou a hora. Preciso conversar com alguém a respeito
dele. Há muita coisa guardada em mim. Estou sufocando.
― O que aconteceu?
― Ah! Claro! É bem sua cara fazer algo assim mesmo. ― Ela cai na
gargalhada.
― Pois é! Não consegui dormir muito bem essa noite. Já estava com
dor nas costas de ficar rolando de um lado para o outro. Aí resolvi levantar.
E como você sabe que não consigo ficar parada, fiz um bolinho. Parecia que
estava adivinhando que você viria aqui hoje.
― Eu sei!
Continuo mastigando.
― Sim. Já tem um tempo que estava livre deles. Mas acho que com o
acidente do Samuca tudo voltou.
― Sinto muito por isso, minha filha.
― Todos os dias. Saudade não tem cura, mas com o tempo dói um
pouco menos. Agora que você perdeu Samuca, vai me entender melhor.
Ela me olha, surpresa, pois sabe muito bem que não gosto de falar
desse assunto.
― Eu sei. E é por isso que não consigo perdoá-lo. Como ele foi capaz
de fazer algo assim comigo? Eu só tinha quinze anos! Ainda precisava dele.
Ela se levanta sem dizer uma palavra. Após alguns minutos volta com
uma caixa pequena nas mãos.
― O que é isso?
― Você nunca me deu abertura para falar a respeito. Então preferi
guardar e esperar o momento certo. Não sei bem se existe momento certo
para algo assim, mas talvez você esteja precisando disso agora.
― Sinto muito, mas você vai ter de ler para saber. Talvez aí estejam
algumas das respostas que tanto procura durante todos esses anos.
Olho para o envelope mais uma vez. Ainda não sei se tenho forças
para isso. E se suas palavras aumentarem ainda mais a dor que sinto dentro
de mim? Será que estou mesma preparada para algo assim? Mas é como
minha mãe disse, só vou ter certeza de tudo isso se ler.
Minha princesa,
Se você está lendo essa carta é porque não estou mais tão perto de
você como sempre desejei ficar. Talvez eu tenha cometido o maior erro da
minha vida. No fim, acho que nunca saberei.
Aqui, então, estão as palavras que escondi de você por uns tempos.
Após algumas semanas que já estava em casa, resolvi ir ao médico
escondido de sua mãe. Não queria preocupá-la ainda mais, ela já tinha
problemas suficientes com a atual queda no nosso orçamento.
O que fiz pode até ter sido um ato de desespero, concordo, e por isso
não recomendo essa solução para ninguém. A questão é que eu já não tinha
força suficiente para passar por tudo isso. Nunca desejei passar meus
últimos meses de vida sofrendo dessa forma. E, acima de tudo, não queria
ver vocês sofrendo ainda mais por minha causa. Fora as dívidas
astronômicas que deixaria para sua mãe.
Peço também que nunca desista dos seus sonhos, de nenhum deles. E
mais do que tudo, não se sinta na obrigação de cumprir aquela promessa
que me fez quando ainda era criança, sobre termos nossa própria produção
de rosas. Era um sonho meu, e não seu. Então, tudo bem você seguir seus
próprios sonhos. É o que mais desejo.
E, por fim, mas não menos importante, saiba que eu parti, mas nunca
te abandonei. Estarei em seu coração pelo resto de seus dias. Estarei nas
lembranças de todos os momentos incríveis que vivemos juntos. Fomos
muito felizes. E, por isso, você deve continuar assim, feliz.
― Se quiser ler a carta que ele deixou para mim, tudo bem ― minha
mãe fala enquanto seca as lágrimas do rosto.
― Não! Não aguento mais! Pelo menos não hoje. Quem sabe um dia.
― Guardo a carta na caixa de novo.
― Acho melhor não. Não sei como me sentiria tendo essas palavras
tão perto assim de mim.
― Tudo bem, minha filha, faça o que for melhor para você.
― Quando a senhora me falava que ele fez o que fez porque estava
doente era sobre o câncer que falava?
― É melhor eu ir embora.
― Não sei, mas acho que não. Não estou com cabeça para isso hoje.
Se eu passar lá vai ser coisa rápida. Só para saber se está tudo certo.
Pego meu carro e saio andando pela cidade, sem rumo. Queria ter um
lugar onde pudesse espairecer minha mente. Mas não sei aonde ir. Ainda
mais em cidade pequena onde as pessoas ainda ficam me olhando sabendo
do acidente do Samuca, algumas preocupadas comigo e outras apenas por
curiosidade mesmo. Tudo é muito recente e não me acostumo com esses
olhares. Sempre fui muito discreta. Gosto de passar despercebida por onde
vou.
Ligo o carro novamente e saio. Não tem porque ficar parada ali
esperando que o passado mude e que eu volte a ser feliz como tanto fui
durante meus primeiros quinze anos de vida. Nunca foi uma questão de ter
ou não dinheiro para manter uma vida confortável, sim, ter ao meu lado
aqueles que tanto amava. E isso eu tinha.
Pego meu celular e não consigo sinal para ligar para a emergência,
para os bombeiros, para a polícia ou para quem quer que seja.
Encharcada, volto para meu carro e pego meu celular que havia
deixado lá. Saio na chuva e ando mais um pouco com o braço para cima em
busca de sinal.
A ligação cai.
Finalmente ele vira a cabeça para mim e meu coração gela. Não
consigo acreditar no que vejo. Aqueles olhos me encaram, assim como da
última vez que os vi. Aqueles mesmos olhos azuis.
14
LUCCA
Tudo parece meio escuro. Minha cabeça dói. Não sei onde estou e
muito menos o que aconteceu. Tento mexer meu pescoço, mas sinto uma
fisgada forte na coluna. Escuto bem distante uma voz de mulher. Não
consigo entender o que ela fala.
Olho ao meu redor, mas minha visão está turva. Levanto um dos
braços para tentar passar a mão nos meus olhos. Uma dor alucinante no
ombro me atinge.
Sinto um sono fora do comum. Tento fazer força para manter meus
olhos abertos. Tenho medo de dormir e perder Cris mais uma vez.
Mais confuso fico eu. Como Cris pode estar viva aqui? Há quase um
ano que morreu.
― O médico disse que pela gravidez ser de risco, é melhor evitar
fazer certas coisas. Então, nem adianta reclamar, mas a faxina pesada da
casa vai ser responsabilidade sua agora.
― Gravidez?
Ando em sua direção. Ajoelho aos seus pés e a abraço pela barriga.
― Imagino! Tem muito tempo mesmo, meu amor. Você saiu de casa
ontem na parte da manhã e só voltou hoje, por conta do serviço. Nesse
tempo, nosso filho e eu até cogitamos fugir, mas pensando melhor, não seria
tão fácil assim. Como disse antes, precisamos de um faxineiro e uma casa
limpinha. Então, desfizemos as malas e permanecemos aqui.
― Casar com você foi a melhor coisa que fiz na minha vida. Nunca
duvide disso.
Antes mesmo de sentir o gosto de seus lábios, sinto uma pontada forte
na cabeça. Abro meus olhos e estou preso de cabeça para baixo dentro do
meu próprio carro.
― Queria tanto ter sentido seu beijo de novo. Por favor, me leva para
casa. Quero ficar com você e com o nosso bebê. Só mais um pouco.
Olho para o lado de fora e não é mais Cris que está lá. É uma mulher
que não para de falar sozinha e andar de um lado para o outro na chuva. Por
que ela não me tira logo daqui? Podia pelo menos chamar uma ambulância.
Já seria de ótima ajuda. Mas não. Fica agindo como uma louca.
Tudo no meu corpo dói. Parece que fui atropelado por um caminhão.
E estar preso de cabeça para baixo não ajuda em nada. Nem consigo pensar
direito.
― O quê?
Ela voltou.
― Quero uma menina desde que ela tenha seu sorriso, seus olhos e
seu bom humor. Quanto ao gosto para comida ela pode ser como eu, porque
você como umas coisas muito estranhas.
― Eu como para me dar prazer e porque sinto fome, não para ser
chique.
― É, seria gostoso mesmo. Mas eu quero que venha com esses seus
olhos azuis. Ela merece.
― Mas assim ela vai me dar muito trabalho. Esses olhos azuis lindos
que tenho vão deixá-la irresistível quando for mais velha. Já vou avisando,
só começa a namorar depois dos quarenta.
― É claro!
― Cada dia que passa, sinto que amo ainda mais você. Não sei como
é possível.
Mais uma vez uma dor me assola e acordo dentro do meu carro.
Não pode ser. É ela! A noiva! A noiva do rapaz que matei naquele
terrível acidente.
Ela volta a chorar e vejo que a dor que ela sente pela perda é talvez
tão grande quanto a minha pela perda da Cris. A diferença é que ela não
teve culpa alguma na morte do homem que tanto amava.
Agora tudo faz sentido! Você não vai me ajudar a sair daqui. Sou o
responsável pela morte de seu marido no dia do casamento de vocês.
Mereço morrer em um acidente assim também. Causei muito mal. Chegou a
minha hora. Estou pronto.
Tudo bem que estou pronto para morrer, mas confesso que não quero
ter uma morte tão dolorosa como ser queimado ainda vivo. Talvez seja
castigo. Por todo mal que causei.
Volto a olhar para a mulher do lado de fora. Ela também parece ter
visto a fumaça. Está tão apavorada quanto eu. Mas, ao mesmo tempo,
continua parada, não move um músculo na minha direção.
Minha cabeça está doendo cada vez mais, assim como minha visão
fica mais turva com o passar do tempo.
― Sei que não mereço, Deus, mas peço que o Senhor me leve antes
de esse fogo me atingir. Estou com muito medo. Perdão por tudo que fiz!
Perdão pelas vidas que tirei e pelas outras vidas que arruinei! Perdão!
Fecho meus olhos, pela última vez, e espero acordar ao lado da Cris
novamente, mas agora, para todo sempre!
15
MANUELA
Não consigo acreditar no que meus próprios olhos veem. Dentre todas
as pessoas no mundo para eu ter de salvar, tem de ser justo ele? Justo o
homem que destruiu todos os meus sonhos?
Porém, ao mesmo tempo, como vou ser capaz de seguir com minha
vida levando na consciência o peso e a responsabilidade de não ter salvado
uma vida? Mesmo que essa a seja a desse homem.
― Por que o Senhor está fazendo isso comigo, Deus? Já não sofri o
bastante? Já não perdi o bastante? Agora tenho de perder minha paz de
espírito também?
Será que ele ao menos se lembra de mim? Lembra o mal que causou
naquele dia? O dia que era para ser um dos mais felizes da minha vida se
tornou um pesadelo. E a culpa foi toda dele. Um irresponsável que, segundo
a polícia, dormiu ao volante.
E que acidente mais estranho foi esse. Meio que do nada o carro saiu
da pista. Será que ele fez de propósito? Presenciei uma tentativa de suicídio
e não um acidente? Não sei o que é pior. Tanto um quanto o outro me
trazem lembranças que quero muito esquecer.
O que muda agora nessa confusão toda é a minha responsabilidade.
Se foi suicídio, ainda tenho de tentar salvá-lo? Talvez eu possa só virar as
costas e ir embora. Deixar que os ferimentos se encarreguem de concluir o
que ele mesmo começou.
No fundo, sei muito bem quando tudo mudou dentro de mim. Uma
mágoa cresceu em meu coração desde o dia em que meu pai me deixou
daquela forma tão cruel e egoísta. Com a ajuda de Samuca e com toda a
paciência que ele tinha comigo, consegui melhorar um pouco. E para quê?
Para perdê-lo também. De outra forma cruel.
Olho ao redor a procura de alguém. Não sei se é melhor ver que outra
pessoa pode vir ajudar, pois vai perceber o quanto me recuso a tirar este
homem do carro.
Decido tentar chamar por socorro mais uma vez. Meu celular
continua sem sinal, então, caminho um pouco e consigo um mísero ponto,
assim como da primeira vez.
― Agora precisa dar certo. Não posso fazer isso, tem de ser vocês!
Como é difícil olhar para estes olhos de novo. Porém, desta vez o
olhar dele se transforma. Fica arregalado, assustado. Tenho a impressão de
que finalmente se lembrou de mim. Lembrou tudo o que me fez. E percebe
a ironia da vida, pois agora depende justamente de mim para tirá-lo dali.
Não consigo falar nada. Sinto que até se perguntar como está estarei
traindo Samuca de alguma forma. E não consigo fazer isso com ele.
Ficamos apenas paralisados, olhando um para o outro. É quando vejo uma
lágrima escorrendo de seus olhos. Agora não há mais dúvidas, ele se lembra
de mim!
Talvez este acidente tenha sido a forma que ele encontrou para acabar
com a própria vida depois de tantas vidas que destruiu. Só não imaginava
que teria de me ver mais uma vez. Será que ajudá-lo a sair dali seria uma
forma de castigo, obrigando-o a continuar vivo para sofrer com toda a culpa
que deve carregar?
De repente, ele olha para a parte da frente do carro e começa a ficar
um pouco mais aflito. Olho na mesma direção e entendo seu desespero. O
carro está começando a pegar fogo. E pior, muita gasolina já escorreu do
tanque. Não há dúvida de que vai explodir a qualquer momento.
Fico mais nervosa também. Preciso tomar uma decisão e precisa ser
agora. Salvo o homem ou deixo o fogo consumir todos seus pecados?
Faço o mesmo. Com meus olhos fechados, penso pela última vez. Ele
deve ser filho de alguém, marido de alguém e até mesmo pai de alguém.
Não posso deixar que essas pessoas paguem com a dor da perda pelos erros
que não são seus. Não posso infligir a eles o mesmo sentimento que carrego
por anos e que está ainda mais forte após a morte de Samuca.
Volto para meu carro correndo e pego o canivete que sempre carrego
no porta-luvas. Assim que chego perto do homem, com muita dificuldade,
corto o cinto de segurança que o mantinha de cabeça para baixo. Tenho a
preocupação de tentar segurá-lo para não bater a cabeça. Acabo dando um
pequeno mau jeito no meu ombro, afinal, o homem é bem grande e pesado
para meu humilde braço.
Ele apenas abre os olhos, assustado comigo. Mas à medida que tento
puxá-lo para fora, ele sente ainda mais dor e não consegue fazer nada a não
ser se contorcer.
Nada acontece!
Corro mais uma vez para meu carro, abro o porta-malas e pego uma
barra de ferro. Não queira saber o porquê de eu carregar isso.
― Funcionou! ― grito.
Com toda a força que tenho puxo o homem para fora e saio
arrastando-o para o mais longe possível. Em questão de segundos o
inevitável acontece. O carro explode. Se eu demorasse mais um pouco,
seria o fim para nós dois.
LUCCA
Com dificuldade movo minha cabeça e vejo a bola de fogo que virou
meu carro. Não estou no céu. Muito menos ao lado da Cris. Aquela mulher
me salvou! A pessoa que mais tem motivo para me ver morto me salvou!
Ainda distante, escuto umas sirenes. Não consigo mexer de novo, mas
aquele som é muito familiar aos meus ouvidos. O socorro chegou.
― Por quê?
Mais uma vez sinto uma vontade incontrolável de dormir. Não resisto
e fecho meus olhos.
― Cris! Sinto muito, meu amor! Perdão por não ter chegado a tempo.
A culpa é toda minha.
Ainda meio acordado e meio dormindo, sinto que sou carregado. Fora
a coisa dura que agora comprime minhas costas fazendo com que eu sinta
mais dor.
MANUELA
Ele parece não entender nada, já que acabo de falar que o homem é o
responsável por eu não ter um marido. Então, como posso não conhecê-lo?
― Tudo bem, não precisa falar nada. Para falar a verdade, nem sei o
que estou fazendo sentada aqui.
― Ele diria que escolheu a mulher certa para se casar. São raras as
pessoas tão íntegras como a senhora foi.
Apenas olho para ele e sinto meus olhos se encherem de lágrimas.
Aquelas palavras tocam muito meu coração de um jeito que não sei
explicar.
― Sinto muito por tudo o que a senhora passou. É muito nova para
perder alguém assim. Não consigo imaginar a dor que deve carregar. Mas se
tem uma coisa que aprendi com meu trabalho é que acidentes acontecem
com mais frequência do que imaginamos. É preciso seguir em frente.
Principalmente se queremos honrar quem se foi.
― Manuela ― digo.
― Perdão?
MANUELA
Não quero mentir, mas também não conto toda a verdade. Ela não
precisa de detalhes.
— É parente dele?
— Tudo bem. Sei disso. Acho que vou esperar mais um pouco. Quem
sabe ele acorda e aceita falar comigo.
— Sem problema. Assim que ele acordar, aviso que a senhora está
aqui fora aguardando por ele. Acredito que vá gostar de saber, já que deve
amá-lo muito por passar a noite inteira aqui. Vi quando a senhora chegou
toda molhada da chuva.
Para falar a verdade, nem sei o porquê de ter falado tanto naquela
hora. Não sou muito de me abrir com estranho. Pode ter sido meu
esgotamento emocional. Mas ele pelo menos é um cara legal. Foi bem
gentil comigo. Não posso reclamar.
Passadas algumas horas percebo que já são quase 11h da manhã. Meu
estômago ronca e me lembra de que não como nada desde o bolo de fubá na
casa da minha mãe. Daqui a pouco serei eu a ser internada.
Meu celular toca. É minha mãe. Sem dúvida quer saber como estou
depois do nosso encontro na manhã anterior. Como vou mentir para ela ou
como vou contar toda a verdade? Odeio essas coisas.
Nossa! Tem horas que até esqueço que sou dona daquele lugar. Sem
dúvida vou à falência desse jeito.
— Não, mãe! Estou bem. Não sou eu que estou internada. Estou bem.
É só... complicado.
— Como assim “complicado”? O que está acontecendo de verdade,
Manuela.
Quando mãe chama o filho pelo nome assim é porque a situação vai
ficar feia.
— Não precisa vir, mãe, já disse. Está tudo bem comigo. Pelo menos
fisicamente.
— O motorista.
— Claro que não, mãe. Ainda não sou esse tipo de pessoa.
— “Ainda”?
— Se mudar de ideia pode vir aqui em casa à hora que quiser. Ainda
tem bolo de fubá. — Ela ri.
Desligo o celular.
Ela tem razão. Será que isso vai mesmo fazer com que eu me sinta
melhor em relação a toda dor que carrego no peito?
— Ele pediu que a senhora entrasse — ela diz com um sorriso largo,
como se fôssemos um casal apaixonados. Mal sabe ela.
Olho para ele e desvio o olhar. É tão difícil encará-lo assim de tão
perto. Por que ele teve mais uma chance de sobreviver após um segundo
acidente enquanto Samuca morreu na hora em seu primeiro? Por quê, meu
Deus? Ele não merecia isso. Não ele.
— Depois que ela descreveu a tal namorada, tive certeza que ainda
estava confuso. Ou melhor, ainda estou.
— O que você faz aqui, afinal? Por que está aqui por mim?
— Eu sei! Não precisa repetir isso! Sei muito bem o que aconteceu
naquele maldito dia. É por isso que pergunto mais uma vez: o que você está
fazendo aqui esse tempo todo se nem consegue olhar para mim?
— Ah! Então quer dizer que você quer que eu olhe para você? —
pergunto, finalmente, olhando para aqueles olhos azuis que nunca saíram da
minha mente. — Sente-se melhor agora?
— E nem quero! Não estou aqui para te conhecer melhor. O que sei já
é o suficiente para nem querer estar perto.
— Tem uma coisa que você ainda não sabe. Você destruiu mais do
que imagina. Matou mais de uma pessoa naquele dia.
Atordoado com a notícia, ele tapa o rosto com as mãos e tem uma
crise incontrolável de choro. Não sei o que esperava dele, mas essa reação
me machuca mais do que imaginei. Quero destruí-lo assim como fui
destruída. Porém, nunca fui uma pessoa que sai por aí machucando os
outros. Então, sim, meu coração em pedaços se mistura com os pedaços do
dele.
― Eu... Eu sinto muito! Por mais que você não acredite ― diz ele,
tentando se recompor. ― Jamais desejei fazer algo assim.
― O quê?
― É o que dizem.
― Espera! Você acha que joguei meu carro para fora da pista de
propósito?
― Pelo visto você acha que sabe tudo em relação a minha vida
inteira.
Respiro fundo mais uma vez. Ele ainda vai me tirar do sério de
verdade. Mais do que já saí.
Apenas olho para ele sem dizer nada. Cansada dessa conversa que
não vai levar ninguém a lugar nenhum.
― Pode não fazer diferença para você, mas faz para mim ― continua
ele. ― Não tentei me matar ontem. Meu carro deve ter sofrido de alguma
pane elétrica ou sei lá o quê, não entendo de carros. Só sei que nada
funcionava. Ele simplesmente apagou. Por isso perdi o controle. E para não
machucar ninguém, já que pelo visto já gastei essa minha cota, joguei o
carro para fora.
― Espero que se sinta melhor depois de tudo o que colocou para fora.
E não estou sendo irônico. Falo de coração. Apesar de não acreditar, sei
realmente como é sentir essa dor e não a desejo para ninguém.
Seco meus olhos e saio o mais rápido possível dali. É mais fácil odiá-
lo quando não é tão simpático.
18
LUCCA
Ele sempre foi um amigo incrível. Começamos a nos dar bem de uma
forma muito rápida. Foi em nosso primeiro plantão juntos, assim que me
mudei para Roseta. Ele também não é da cidade, então, já começamos com
algo em comum. E para ajudar, ele havia acabado de se casar com Roberta,
queria que sua esposa fizesse amizade na cidade. Cristiane era a pessoa
certa para esse papel. Tanto, que depois de seu falecimento, Roberta foi a
pessoa que mais sofreu depois de mim.
Saber que também fui o responsável pela perda de seu bebê mexeu
muito comigo. Não esperava por mais essa. Já bastava o noivo e Cris em
minha consciência. Já era peso o suficiente. Agora tenho que aprender a
lidar com mais esse. Um bebê inocente, que poderia ser o refrigério que ela
tanto merece.
O problema é como encontrá-la. Se não sei nem seu nome, como vou
descobrir o endereço? Nesse momento vem um estalo em minha mente. Ela
me visitou no hospital e para entrar é necessário ser identificada. Mas já faz
um mês, será que conseguirei ter acesso a esses registros?
Sem pensar duas vezes, troco de roupa e vou para garagem. Quando
lembro que não tenho nem condições físicas para dirigir, que dirá um carro,
já que ainda não consegui outro do seguro. Preciso resolver isso também.
Porém tenho algo mais importante hoje.
Pego meu celular e peço um Uber. Não quero perturbar Caio, muito
menos falar desse assunto com alguém agora. Algumas coisas a gente
precisa fazer sozinho. E essa é uma delas.
Assim que o carro chega, peço para ir direto para o único hospital da
cidade. Estando lá procuro pela enfermeira Márcia, foi ela quem me avisou
que uma moça havia ficado a noite inteira esperando por notícias minhas.
Será mais fácil convencê-la do que qualquer outra pessoa do hospital, já que
ela acha que eu e a tal moça temos um relacionamento amoroso.
Para minha sorte, ela está de plantão hoje. E logo é chamada para
falar comigo.
― Está! Quer dizer... Não sei. Como não a conheço, também não a
vejo desde aquele dia. É por isso que estou aqui. Preciso muito agradecê-la
de uma forma melhor. Quando estava internado não consegui demonstrar
toda a minha gratidão. O problema é que não sei como encontrá-la. Nem ao
menos seu nome eu sei. Foi aí que me lembrei da visita que ela me fez e
que para entrar no quarto é preciso ser identificada.
Ela olha para um lado e depois para o outro. Nisso se aproxima mais
de mim e para ninguém ouvir fala bem baixinho:
Orsini. Por que tenho a impressão de já ter ouvido esse nome? Não
faz sentido. Só me lembro de ter encontrado com ela nos dois acidentes que
sofri, e em nenhum dos dois dias foi falado esse nome.
Chamo o Uber. Peço para ser levado para casa. No caminho, forço
minha memória para me lembrar do porquê de este sobrenome me ser tão
familiar.
― Nasci e fui criado aqui. E se depender de mim, não saio daqui nem
para morrer. ― Ele sorri.
― Sim, senhor!
Ela me olha, confusa, nunca estive ali antes, então, como posso saber
da qualidade de seu serviço.
― Não que seja importante, mas sou cliente daqui desde que abriu.
Sou o cliente de todo dia primeiro do mês.
― Rosas azuis ― ela fala meio que sem querer, como quem pensa
alto.
MANUELA
― Sinto muito!
Ele tem razão. Independente de qualquer coisa que ele tenha passado
em sua vida, continua sendo o cara que arruinou a minha. Nada e nem
ninguém vai mudar isso.
― O que você veio fazer aqui então? Ou melhor, o que você ainda
quer comigo? Já não acha que fez o bastante?
Ele parece constrangido com minhas palavras. Não consigo evitar.
Quando menos espero, já estou atacando-o de novo. Ainda existe muita
raiva dentro de mim. Tudo poderia ter sido diferente se não fosse por ele.
Como vou esquecer isso?
― Em meio a tantas farpas que trocamos naquele dia, lembro que não
fiz o mais importante, que era te agradecer. Na verdade, ainda não sabia se
queria mesmo estar vivo. Morrer significava reencontrar Cris. Significa
ainda. Principalmente com toda a culpa que também carrego pela morte
dela. Talvez morrer fosse o caminho mais fácil.
― Quer dizer que você não matou só meu noivo e nosso bebê, mas
fez isso com sua esposa também?
― Não como você está imaginando e nem como foi com seu noivo.
― Você é médico?
Ele faz uma pausa como se fosse difícil contar aquilo em voz alta,
ainda mais para mim, que sou alguém que não o trata bem desde sempre.
― No bebê!
― Ela também estava grávida?
E lá vem minhas palavras de novo. Não acredito que ele teve de ouvir
tudo aquilo quieto. Sou mesmo horrível.
― Como já falei, não estou aqui para jogar na sua cara essas palavras.
Só quero mesmo que saiba que eu realmente sei o que você está passando.
E ser o causador de tanta dor acaba comigo. Não quero e nem mereço seu
perdão. Até porque, eu mesmo não me perdoei.
― Eu sei. Os amigos tentam ajudar, inclusive sou grato por isso, mas
não é a mesma coisa do que conversar com alguém que entenda de verdade.
Ele tem razão. Além da minha mãe, ninguém sabe como é. Ainda
tenho de agradecer por tê-la ao meu lado esse tempo todo. Não sei o que
faria se estivesse sozinha, como ele.
― Por favor, não quero falar sobre aquele dia. Ainda mais com você.
Ele tem razão. Não muda nada o que aconteceu. Porém, de alguma
forma que não sei explicar, foi importante saber a verdade.
― Não sei o que você espera que eu diga depois de ouvir tudo isso.
― Não se preocupe, não espero que fale nada. Só queria mesmo que
você soubesse. E que ouvisse de mim. Nunca pense que quem matou seu
noivo foi alguém leviano. Sei que errei e vou carregar esta dor para sempre
comigo. Saiba que jamais vou me esquecer do que fiz. E se um dia você
precisar de alguma coisa, qualquer coisa mesmo, é só me falar.
Fico sem graça de falar que não quero fazer nada para ele, mas
também não quero ter de envolver minha funcionária nesta história toda.
Então, é melhor eu mesma arrumar logo e ficar livre dele de uma vez por
todas.
Um buquê de flores.
Tem tanto tempo que não recebo um que até me esqueci da sensação
gostosa que dá no peito. O último foi Samuca que me deu, é claro. Ele
sempre me surpreendia com seu romantismo. Mas nunca ganhei rosas azuis.
Elas são tão lindas. Não consigo parar de admirar o buquê ainda em minhas
mãos.
― É! São lindas.
Como explico que ganhei flores do mesmo homem que matou meu
noivo? É no mínimo uma bizarrice.
Fico tão hipnotizada nas flores que nem escuto o barulho da porta da
frente abrindo. Sou surpreendida pela pessoa que menos tenho prazer em
encontrar.
― Que história é essa que estou ouvindo por aí? ― pergunta minha
ex-sogra com sua simpatia de sempre.
― De que história a senhora está falando? Pois como pode ver, estou
trabalhando e não tenho muito tempo sobrando para as fofocas das pessoas
a toas desta cidade.
― Mas tempo para salvar aquele sujeito você encontrou, não foi?
― Não mude de assunto. Quero saber onde você estava com a cabeça
quando arriscou a própria vida para salvar o sujeito que matou o homem
que você dizia amar. O meu Samuel.
― Pare de ironia! Você sabe que odeio isso! E também sabe que é a
única mulher nesse mundo que pode gerar meu neto. Fora o nome dos
Manfredis que você faz questão de jogar na lama.
― Olha! Com todo respeito, não vou discutir isso com a senhora.
Estou no meu local de serviço.
― O que a senhora quer ouvir de mim? Quer que eu fale que é tudo
mentira o que estão falando por aí? Porque não posso fazer isso. É tudo
verdade.
― Como você vai explicar para o filho do Samuel que você salvou o
homem que matou o pai dele?
― E como eu explicaria que não fiz nada para salvar a vida de uma
pessoa? Que matei um homem, assim como mataram o pai dele?
― E outra coisa, não vai existir filho de Samuel nenhum, então pare
de falar isso.
― Não consigo entender como meu filho foi se envolver com alguém
como você, quando poderia ter qualquer mulher que quisesse.
― O que seria esse “alguém como eu”? Alguém que não tem o
dinheiro que a sua família tem? Que precisa trabalhar para ganhar a vida?
Que se importa mais em manter uma consciência limpa do que com o que
as pessoas estão pensando?
― É claro que não é importante! Não muda o que ele fez. Não muda
o fato de que meu Samuel nunca vai voltar. Ele teria vergonha de ter
escolhido você para ser mulher dele depois disso que você fez.
― Você não sabe o que está falando. E, sinceramente, nem sei o que
vim fazer aqui. Conversar com você é inútil. ― Ela pega a bolsa e começa a
se dirigir para a saída do escritório. ― Como disse da última vez, a única
coisa boa da partida repentina do Samuel é que não deu tempo de você sujar
a linhagem dos Manfredis.
― Orgulho? Como pode alguém ter orgulho de uma família cujo pai
se matou no próprio jardim de casa, deixando esposa e uma filha passando
necessidades?
― Você o conhecia?
― Pouco, mas conhecia. Nesta cidade acho que todo mundo conhece
todo mundo. Ele sempre foi gentil comigo. É uma pena que pessoas assim
sempre partam primeiro. Acho que é porque o mundo não merece a
presença delas.
Apesar de tudo o que falei para a dona Sônia, a culpa começa a tomar
conta do meu peito. Um sentimento muito ruim me invade com uma força
avassaladora. Olho em volta e sinto vergonha por ganhar flores da
floricultura que Samuel deixou para mim. E justo de quem: Lucca
Albuquerque. O homem que mudou minha vida para sempre.
MANUELA
Pego o que tenho de pegar e volto para meu carro o mais rápido
possível. Porém, não consigo voltar para meu apartamento. Sinto-me
indigna de ficar no local onde mais ficávamos juntos. Onde passamos os
melhores momentos.
Quando me dou conta estou dirigindo para onde o vi pela última vez,
já sem vida, a caminho da igreja para nosso casamento. Depois da morte de
meu pai, nunca imaginei que algo tão ruim aconteceria comigo novamente.
Achei que já tinha gastado minha cota.
Minha mãe sempre diz que tudo em nossa vida acontece por um
propósito. Ainda não consigo enxergar nenhum propósito nessas duas
perdas tão repentinas. Mas talvez não seja para eu entender mesmo. Só sei
que tudo ainda é muito dolorido. Não concordo quando dizem que a dor
com o tempo passa ou ao menos diminui. A minha só cresce. A dor, a
indignação, a raiva e, agora, a culpa.
— Desculpa, meu amor! Talvez sua mãe esteja certa quando diz que
eu não merecia um homem como você. E, talvez, seja por isso que você
partiu tão cedo. Foi um livramento de Deus para que não tivesse de passar o
resto da sua vida com uma mulher como eu.
As lágrimas mais uma vez tomam conta de mim. Odeio chorar. Sinto-
me tão fraca e vulnerável nesse estado. Mas acho que chorar faz parte do
processo do luto. A dor, a saudade e o sentimento de vazio são tão grandes
que precisam sair de nós por algum lugar.
Pelo visto, o assunto é mesmo o acidente. Por que essas pessoas têm
tanto prazer em falar da vida alheia dessa forma? Não se contentam em
apenas espalhar o que aconteceu. Tudo tem de ser carregado de julgamento
e de críticas. Não suporto isso.
Um dia termina e outro começa, e nesse ritmo já faz três semanas que
a floricultura permanece fechada. Raquel me enviou algumas mensagens
com medo de ser demitida, perguntando se deveria começar a procurar
outro emprego. E é claro que tive de tranquilizá-la, afinal, a última coisa
que preciso é perder uma funcionária boa igual a ela.
LUCCA
Assim que chego à Floricultura Orsini, vejo que está fechada. Ainda é
dia de semana, não tem razão para não ter aberto. Abordo o comerciante ao
lado, identifico-me como um cliente e pergunto se ele sabe de alguma coisa.
― Não sei, amigo. Tudo que sei é que está assim desde ontem.
Saber o que Manuela passou quando jovem me deixa ainda pior por
ter trazido ainda mais sofrimento para a vida dela. Não a conheço o
suficiente, mas, sem dúvida, não é alguém que mereça passar por isso.
Acho que, na verdade, ninguém merece. É tudo muito triste. Sinto-me mal
por ela e, preocupado, resolvo deixar um bilhete enfiado debaixo da porta
da floricultura.
Volto nos dias seguintes e repito meu ritual. Não sei o que vai achar
disso tudo, mas talvez se sinta um pouco melhor sabendo que me preocupo
de verdade com ela. Minha rotina se repete todos os dias das três semanas
em que a floricultura permanece fechada.
Até que chega o primeiro dia do mês. Dia em que ela arrumaria as
rosas azuis para levar ao cemitério. Fico triste por saber que hoje não vou
ver as rosas no túmulo. Ainda não estou pronto para romper com esse
costume.
MANUELA
Sei que preciso voltar a minha vida normalmente. Só não marco data
específica para isso. O problema que hoje é o primeiro dia do mês. Dia de
levar as rosas azuis para o túmulo de Cristiane.
Por mais que eu tenha minha mágoa com Lucca, não é justo fazê-lo
quebrar essa tradição com sua esposa por minha causa. Sei o quanto essas
datas são difíceis para quem perdeu alguém que tanto amava. Não quero
deixá-lo pior apenas para manter meu orgulho.
Depois que nos afastamos, ela, mesmo percebendo meus olhos cheios
de lágrimas, continua em silêncio. Dá um sorriso, aperta minha mão e entra
na floricultura. Começa a fazer suas tarefas sem qualquer questionamento.
Mal sabe o quanto aquilo faz com que eu me sinta melhor. Conquistando
uma amizade que tanto relutei para evitar. Sinto-me menos sozinha. E esse
sentimento é bom.
Fico com medo da minha reação ao ler, então me afasto para meu
escritório e leio um por um. Pela primeira vez desde o acidente do Samuca
eu não sinto raiva por esse homem que virou meu mundo de pernas para o
ar. Os bilhetes são pequenos, com poucas linhas escritas. Em contrapartida,
são recheados de afeto e de preocupação. E apesar de ser o causador de toda
minha dor, sei que entende o que é estar de luto.
― O quê?
― O rapaz das rosas azuis de todo dia primeiro. Ele já ligou hoje?
― Não. Só estou adiantando.
― Acha que um dia ele vai conseguir parar com esse ritual?
Pela primeira vez consigo falar como se ela fosse mais do que uma
funcionária incrível que tive a sorte de encontrar. É alguém que vem
conquistando aos poucos um lugar em meu coração.
― Você não vai nem esperar a ligação dele dessa vez como sempre
faz?
LUCCA
Não consigo acreditar no que meus olhos veem. Até tiro meus óculos
escuros para enxergar melhor a pessoa que está sentada perto do túmulo da
Cris. É quando ela parece sentir a minha presença e vira em minha direção.
Trocamos um olhar estranho por ser a primeira vez que ela diz algo
diferente de tudo o que já me falou.
― Claro! Até porque deve ser muito fácil andar por aí com essa perna
e o braço quebrado para voltar várias vezes ao cemitério.
― Não sei se estou pronta para voltar, mas hoje é dia primeiro. Tenho
um cliente que sempre faz uma encomenda especial nessa data. Não quis
deixar o dia dele pior.
― É!
― Não fiz para o homem que destruiu minha futura família, mas para
aquele homem que perdeu a sua.
― É apenas uma trégua por saber que o dia de hoje deve ser mais
difícil que os outros. Sei como são essas datas. É só por isso.
MANUELA
― Oi, mãe ― falo assim que abro a porta com a chave que ainda
tenho.
― Você parece adivinhar todos os dias que faço bolo. Certeza de que
colocou uma câmera escondida aqui em algum lugar.
Depois conto a ela sobre meu encontro com Lucca. Falo um pouco de
nossa primeira conversa como dois adultos civilizados e como me sinto
com tudo isso. Ela, certamente, será uma das poucas pessoas que não vai
me julgar.
― É bom ouvir isso de você, Manu. Quanto antes você tirar a mão do
pescoço desse rapaz, mais cedo vai conseguir ficar bem ou, ao menos,
melhor. Isso é o perdão.
― Como pode voltar a ser feliz? Sem dúvida ele seria o primeiro a te
apoiar nessa história. Ele te amava e amar é querer a felicidade do outro.
― E faz diferença?
― Você sabe que sim. Para mim, você tem é medo de seguir em
frente.
Recuso-me a responder. Não quero brigar com ela. Odeio quando isso
acontece. E, no fundo, mãe sempre tem razão. Por isso é bom nunca
discutir.
O que ele faz aqui de novo? Achei que não o veria tão cedo.
― Faço questão. Você apenas não quis quebrar meu pequeno ritual. E
já foi muito gentil por ter se preocupado com isso. Não tem de arcar com o
custo também.
― Se você insiste.
Como vou discutir isso? Sei muito bem que ficar em casa à toa é a
parte mais complicada de estar sozinho. Apenas aceito o pagamento sem
falar mais nada e depois ele acaba indo embora.
― Não precisava.
― Eu sei, mas você parece ser o tipo de pessoa que não é capaz de
parar muito o serviço para comer ou ao menos tomar um café.
Olho para ele com estranheza, mas como é um crime recusar um café
fresquinho assim, acabo bebendo.
― Sei que não tenho nada com sua vida e que talvez você não queira
falar desse assunto justamente comigo. Então, esqueça minha pergunta. Não
deveria ter feito. Acho que é melhor eu ir. Não quero te atrapalhar mais ―
ele diz e já vira as costas para sair.
LUCCA
― Espera!
Eu a olho de volta.
― Tem dia que é mais difícil que o outro. A maior parte do tempo eu
penso em fechar tudo e me trancar em meu apartamento. Talvez ficar lá
esperando até ele aparecer, mesmo sabendo que isso nunca vai acontecer.
Ela faz uma pausa e me olha com ternura. Prefiro não interromper e a
deixo colocar o que sente para fora.
― Talvez!
MANUELA
Não sei o que anda acontecendo comigo. Lucca sempre inventa uma
desculpa diferente para aparecer na floricultura todos os dias. Já faz um mês
dessas visitas. E o pior de tudo é que estou gostando das nossas conversas,
mesmo que rápidas. Às vezes é bom conversar com quem realmente
entende o que a gente está passando. E se tem alguém nessa cidade que sabe
o que é perder alguém, é ele.
A cada conversa que temos sinto aquele clima pesado que havia entre
nós diminuindo. Não esqueci o que ele fez e tudo o que causou, acredito até
que isso nunca vá acontecer. Perder um noivo no dia do próprio casamento
não é algo que se esqueça.
Sei que hoje ele também vai aparecer na floricultura e me sinto cada
vez mais ansiosa por sua chegada. E para piorar a situação, não consigo
evitar um sorriso quando ele aparece todo feliz e me olha com aqueles olhos
azuis mais lindos que já vi em toda minha vida.
― Espero que você ainda não tenha me denunciado, não estou muito
em condições de correr ― ele diz olhando para a perna da cirurgia.
― Ainda?
― É claro, não vou ser baixa a ponto de fazer um homem com apenas
uma perna boa correr da polícia. Consigo esperar até que você fique bom.
O que deu em mim para fazer isso? Quando vi já tinha falado em voz
alta e não dava para voltar atrás.
― E alguém consegue recusar um convite desses? ― ele responde
com a cara mais cínica e linda do mundo.
Fico mais envergonhada por ver que ele percebe o quão sem graça eu
fiquei.
― Você me trouxe um café uma vez, acho que fiquei te devendo. Não
gosto de dever a ninguém, então, é melhor já ficar livre de uma vez.
― Não que eu queira ficar livre de você, não foi o que quis dizer.
LUCCA
Tento ir o mais devagar possível com ela. Não quero forçá-la a nada.
Muito menos a ter de conviver comigo. Ao mesmo tempo sinto uma
necessidade absurda de cuidar dela, de fazê-la feliz de novo da forma como
merece. Não sei de onde esse sentimento veio. Só sei que é bom, como há
tempos não sinto.
Por outro lado, também me sinto culpado por todo esse sentimento. A
única mulher que mexeu comigo dessa forma foi Cris. Sempre imaginei que
só sentiria isso por ela. Não esperava perdê-la tão cedo como foi. Por não
ter chegado a tempo naquele dia sinto que não mereço sentir algo assim
novamente. Porém, quanto mais tento evitar, mais me vejo correndo atrás
da Manu. Não consigo mais fugir.
Essas palavras são músicas para meus ouvidos. Não consigo disfarçar
minha alegria e abro um sorriso. Então, ela me acompanha até a porta da
floricultura, o que é uma coisa nova. A cada passo que dou sinto menos
vontade de ir embora e ficar longe dela.
Pelo menos não foi dessa vez que estraguei tudo. Ainda há esperanças
de ela aceitar.
MANUELA
Percebo que Raquel fala comigo, mas não sei o que diz.
— Oi?
Ao mesmo tempo penso que pode ser legal sair para comer uma pizza
com uma companhia agradável, só como amigos, como ele mesmo disse.
Posso ser um pouco precipitada também, afinal, estou tanto tempo “fora do
mercado” que acho que todo homem que se aproxima de mim está com
segundas intenções. Ele perdeu a esposa não faz muito tempo, ainda vive o
luto a ponto de enviar flores ao cemitério todo o mês. Não deve querer um
relacionamento agora. Ainda mais comigo, sabendo todo nosso histórico.
E como vou sair com ele em público? Aí que serei massacrada pela
cidade mesmo. Aqui na floricultura ainda tenho a desculpa de dizer que não
posso recusar um cliente, que preciso ser profissional. Agora, em uma
pizzaria, à noite, o que vou inventar?
Está decidido! Não vou! Não posso ir! Não posso querer ir!
LUCCA
Arrumo minhas coisas para depois dormir e confiro meu celular pela
última vez. Nada! Nenhum sinal dela. Viro para o lado e tento esquecer um
pouco isso. Por sorte, pego no sono rápido.
Acordo cedo. Já houve épocas em que dormia até mais tarde, mas
com um braço e uma perna quebrados é impossível ficar na cama por muito
tempo. O corpo todo começa a doer.
Após tomar banho, confiro meu celular pela terceira vez só neste
sábado. Talvez ela não quis mandar ontem, para não parecer que foi uma
decisão fácil e deixou para hoje. Ou eu sou apenas iludido mesmo e não
quero dar o braço a torcer de que ela recusou.
Prometo para mim mesmo que não vou à floricultura hoje. Não quero
dar a impressão de que a estou forçando a fazer qualquer coisa que seja. E
claro, nem parecer desesperado pela resposta dela.
São 18h23.
LUCCA: Do jeito que você preferir, está ótimo para mim. Levo a
pizza! Tem alguma preferência por sabor?
Ela responde, avisando que está tudo bem, e me envia seu endereço.
Vejo que é em um prédio e torço para que tenha elevador ou vou precisar de
uma semana para subir as escadas e outra semana para descer.
MANUELA
― Obrigado!
Percebo que ele entra, mas que fica parado perto da porta, olhando
para mim. Não resisto e o olho de volta.
Sinto meu rosto queimar na mesma hora. Por que ele tinha de falar
isso logo depois de termos começado tão bem?
― Por favor, com uma das mãos só é um pouco impossível. ― Ele ri.
Depois desse pequeno incidente ocorre tudo bem durante toda à noite.
Consigo me divertir muito na presença dele. Conversamos sobre tudo e ao
mesmo tempo sobre nada importante. Assuntos leves para uma noite leve.
Não sabia que precisava tanto de um momento como esse até vivê-lo.
De repente, ele me olha de uma forma diferente. Vejo seus olhos irem
até meus lábios e se perderem por lá. Meu coração começa a bater meio que
descompassado. Ele se aproxima de mim, ao mesmo tempo em que não
consigo desviar meu olhar de seus lábios também. Sinto um frio na barriga
até que seus lábios se encostam aos meus.
Sei que devo pedir para parar e tirá-lo da minha casa o mais rápido
possível, mas à medida que ele me beija meu desejo de retribuir só
aumenta. De um beijo lento passamos para um beijo mais intenso, quente,
com uma necessidade de urgência.
Sua mão que antes estava no meu rosto desce carinhosamente para
minha cintura e me aperta contra seu corpo, fazendo com que deseje fazer
coisas que achei ser impossível sentir por muito tempo.
― Descul...
― Agora! ― grito.
MANUELA
Amizade! Pelo visto não era amizade desde o início. Ele já estava
com segundas intenções. E eu me culpando por não querer aceitar o convite
de comer uma pizza com ele, com medo do que pudesse acontecer. Pelo
visto, eu estava certa.
O pior de tudo é que ele tem razão quando diz que demonstrei que
também queria o beijo, assim como ele. Como vou falar qualquer coisa
agora? Por que fui fazer isso? Sou mesmo uma idiota!
Assim como eu, ele perdeu alguém que amava e talvez esteja
sentindo falta de tudo o que viveu com ela. Eu mesma, que perdi a menos
tempo do que ele, já sinto falta. E esse é mais um motivo para eu não querer
relacionamento nenhum agora. Tudo é muito recente. Meus sentimentos
pelo Samuca ainda estão muito vivos mesmo que ele não esteja. Ele foi o
homem que me fez mudar de ideia sobre casamentos. Apesar de ter relutado
durante toda nossa relação, estava feliz por dar esse importante passo ao
lado dele. Jamais imaginei que seria possível perdê-lo daquela maneira.
Justo no dia que falava que seria o mais importante de sua vida. Mal sabia
ele que realmente viraria um marco, mas pela tragédia.
Assim que termino de comer e lavar toda a louça que sujei, escuto o
interfone tocando. Quem será à uma hora dessas? O porteiro me diz que é
um homem chamado Lucca. Não acredito quando escuto esse nome.
Quando acho que desistiu, ele resolve aparecer na minha casa. Não posso
simplesmente falar que não é para deixá-lo subir.
― Ia mais cedo à floricultura, mas achei que você não ia querer falar
desse assunto lá.
― Se for sobre o que estou pensando, não quero falar disso em lugar
nenhum.
Permanecemos em silêncio.
― Não consigo fazer isso. E, para falar a verdade, nem quero ― ele
insiste.
― Desculpa! Eu não...
― Para! Você é a última pessoa que precisa me pedir desculpas por
conta disso.
― Eu sei, mas também não preciso jogar na sua cara toda vez que
tenho vontade. Não é justo!
Não acho resposta para isso. Como vou falar que jamais chegaremos
a esse ponto se gosto de nossos encontros na floricultura e se desejei aquele
beijo tanto quanto ele?
― Sei que não mereço nada de bom vindo de você, mas não sou o
tipo de homem que esconde sentimentos. Principalmente depois de já ter
perdido tanto.
― Por favor, digo eu. Se você olhar em meus olhos e dizer que não
sentiu nada com aquele beijo, eu prometo que nunca mais volto a te
procurar.
― A questão não é sentir ou não sentir, sim, não poder. Você sabe
disso.
LUCCA
Agora tenho certeza de que não estou maluco. Ela tem, sim,
sentimentos por mim. Só está relutante por eu ser quem sou. E nem posso
julgá-la por isso. Não deve ser nada fácil começar a gostar justamente da
pessoa que virou sua vida de cabeça para baixo. Não sei o que faria se
estivesse no lugar dela.
Por saber de toda a história, vou agir com calma. Preciso respeitar
esse tempo dela. Não vai ser nada fácil a luta interna que ela vai travar até
decidir de fato o que quer. Nesse meio tempo, também preciso resolver
minhas próprias questões. Para começar um novo relacionamento não posso
carregar comigo algumas pedras.
Aproveito que hoje não está muito quente e vou ao cemitério. Para
minha vida continuar é preciso, primeiramente, deixar Cris partir.
— Oi, meu amor! Hoje não é dia primeiro, mas preciso conversar
com você. Sei que se estivesse me vendo agora, estaria rindo por eu estar
conversando com um pedaço de pedra. Mas esse foi o jeito que encontrei de
te manter por perto. É bem maluco, mas funcionou durante todo esse tempo.
— Sei que era da sua vontade que eu encontrasse outra pessoa e que
não relutasse com a felicidade. Não é nada fácil seguir em frente, mas você
tinha razão, eu preciso continuar. E para conseguir fazer isso preciso,
primeiramente, te dizer adeus. Você sempre será o primeiro amor da minha
vida, a mulher que me ensinou a ser feliz e, sem dúvida, minha maior
saudade. Nada e nem ninguém vai ser capaz de mudar isso. Mas acho que
encontrei uma pessoa. Você gostaria dela, por falar nisso. Ela não é só uma
mulher bonita, é alguém que me faz querer ser melhor, que me faz rir, que
me faz bem. Não sei se vou conseguir conquistá-la. Nossa história é
complicada demais. Mas eu quero tentar.
— Durante todo esse tempo que estive sem você me culpei por coisas
que não poderia ter feito. Não posso mais carregar essa culpa. É pesada e
dolorida demais. Preciso aceitar que você se foi e que de alguma forma essa
era a vontade de Deus para a nossa vida. Por mais que eu tivesse planos
bem diferentes, esse era o Dele e não há nada que eu possa fazer para
mudar isso. Sei que amei você com todo meu coração e que fiz o possível
para te fazer feliz. Espero que você tenha sido mesmo feliz tanto quanto eu
fui durante todos esses anos que dividi minha vida com você.
— Acho que estou pronto para não vir mais aqui. Estou pronto para
continuar. Obrigado por tudo! Por tudo o que foi para mim. Amarei você
para sempre, meu amor.
Levanto com dificuldades e olho uma última vez para seu nome na
lápide.
— Casar com você, mesmo tão novo, foi a melhor decisão da minha
vida. E dizer adeus sempre será a mais difícil.
MANUELA
Esse homem ainda vai me deixar maluca. Assim que ele vai embora
daquela forma eu entro no chuveiro para tentar apagar do meu corpo todo o
desejo que sinto. Desejo este, proibido.
Não sei também o que quero dele. Quando ele aparece aqui eu desejo
que vá embora e, quando não vem, desejo que apareça. Odeio esses
sentimentos conflitantes. Amar Samuca era tão fácil. Nosso único problema
sempre foi sua mãe. Quando estávamos juntos fingíamos que ela não existia
e pronto, seguíamos nossa vida. Agora como vou fingir que o acidente não
aconteceu, que Samuca não morreu no dia que nos casaríamos e que o
responsável por tudo isso não foi Lucca? É muita coisa para ignorar. E
muita coisa séria, inclusive.
Por que tudo tem de ser tão difícil na minha vida? Tanta pessoa no
mundo para eu nutrir sentimentos e isso tem de acontecer com a única
pessoa proibida para mim? Não consigo entender. E o pior é que tudo
começou por conta daquele bendito acidente que presenciei e que fui
obrigada a salvá-lo. Se tivesse passado por aquela estrada um minuto antes,
nada disso estaria acontecendo agora. São tantos “se” que me matam. Tenho
de parar de tentar controlar as coisas dessa forma. Ou vou mesmo ficar
maluca.
LUCCA
Como já estou livre da tipoia no braço, tudo fica mais fácil. É ótimo
voltar a ter duas mãos funcionando. Tudo bem que estou longe de estar
100%. Tenho que passar um longo período na fisioterapia para recuperar os
movimentos e a força. Mas, com um pouco de paciência e de cuidado, já é
possível fazer minha própria comida.
Então dá 18h... 19h... 20h... 21h... 22h... 23h e nada dela! Nem um
sinal de fumaça. Preciso aceitar que levei um bolo. Guardo o vinho, apago
as velas, mas aproveito a lasanha. Modéstia a parte, ela perdeu. Está
maravilhosa!
Não vou mentir. É horrível ser rejeitado dessa maneira. Não é algo
que eu esteja acostumado, já que me apaixonei pela Cris quando ainda era
muito novo e desde então estive com ela. Porém, se Manu pensa que vou
desistir no primeiro bolo está muito enganada. Falei sério quando disse que
esperaria por ela. E vou esperar. Pode levar um tempo para me aceitar. Para
ela, principalmente, aceitar dentro de si que tem sentimento justo por mim.
Que estratégia devo usar agora para conquistá-la? Será que devo
voltar às minhas visitas à floricultura ou sumo a semana toda e a convido
novamente para um encontro?
MANUELA
Nessa semana ainda tenho a missão de todo o dia primeiro. Será que
devo esperar a ligação dele encomendando o serviço ou faço como no mês
passado? Se eu não estivesse fugindo dele, até ligaria ou mandaria uma
mensagem. Mas não tenho coragem. Como vou fazer isso e ignorar que não
fui ao nosso encontro? Não consigo ser assim. Vou esperar mais um pouco e
ver o que fazer.
Fico também muito feliz por vê-lo seguir em frente. Não é nada fácil
dar esse passo de parar as visitas ao cemitério. De deixar quem ama,
finalmente, partir. Aceitar que esse alguém deseja uma vida muito melhor
para nós do que a que insistimos em viver no período do luto.
Admiro sua atitude, mas não sei se estou pronta para fazer o mesmo.
Não vou ao cemitério, mas é como se levasse Samuca para onde vou. De
uma maneira um pouco estranha é como se ele ainda vivesse em mim.
Preciso apenas tomar cuidado para não deixar que ele vire um fardo. E que
continue sendo o responsável pelas minhas melhores lembranças.
Ignoro por completo a história da lasanha. Não quero falar sobre esse
assunto. Por sua vez, ele apenas curte minha mensagem sem falar qualquer
coisa. Apesar de achar um pouco estranho, agradeço por não insistir no
assunto.
Não respondo. Dessa vez decido ir. Talvez seja bom seguir em frente.
Acho que mereço. Não tenho culpa pelo Samuca ter morrido tão cedo.
Ainda mais da forma que foi. E talvez eu queira tentar de novo ser feliz.
Pego minha bolsa, a chave do carro e quando estou para passar pela
porta derrubo um porta-retratos que fica ao lado da entrada. E claro que tem
de ser justo a foto que tenho minha e do Samuca no dia do nosso noivado.
Nesse momento meu coração se aperta e me sinto péssima por estar
de saída para um encontro com outro homem. A culpa me domina e não
consigo mais passar pela porta. Desabo em lágrimas.
Sei que não preciso explicar mais do que isso. Ele vai entender. Logo
em seguida a resposta chega.
Mesmo cheia de culpa, fico agradecida por ele ainda não desistir de
mim. No fundo, não quero perdê-lo também.
Tento amenizar o clima. Não quero que ele fique mal por mais um
bolo meu.
LUCCA: Vou tentar. kkkk Mas acho que eles duram até sábado
que vem!
Então é isso. Semana que vem tenho mais uma chance de ir a esse
encontro. Mais uma semana para me preparar emocionalmente. Quem sabe
eu consiga me desamarrar de algumas amarras do passado.
Troco de roupa, visto meu pijama e deito. Não sei o que me deixa
pior, o fato de ter desmarcado ou o fato de quase ter ido. É tão complicado
tudo isso.
Mais uma semana passa. Dessa vez sinto que demora uma eternidade
esses sete dias. Muito provavelmente se dê pela minha ansiedade para o
sábado. Estou decidida a ir dessa vez. Pelo menos, decidida a fazer de tudo
para ir. Quero estar pronta para esse momento.
Já em casa, não faço mais nada a não ser me arrumar para o encontro.
E, quando vou passar pela porta, olho para o retrato que me impediu de sair
na semana passada.
― Preciso fazer isso, Samuca! Está muito difícil sem você aqui. Sinto
muito por ser justamente com ele. Mas aconteceu. Só aconteceu.
― Ah! Claro! Será que eles ainda estão aqui? ― Ele ri e me chama
para entrar.
― Para seu próprio bem, espero que sim. E, obrigada, você também
está ótimo.
Antes de falar tchau, eu o beijo. Não tenho pressa. Quero que dure o
bastante para matar meu desejo reprimido durante todo esse tempo. Quando
paro, olho no fundo daqueles olhos e só digo obrigada. Ele abre um leve
sorriso e volta a me beijar.
28
MANUELA
― Bom dia, Manuela! Sei que está um pouco em cima da hora, mas
preciso conversar com você. Ou melhor, minha família precisa. Podemos te
esperar para o almoço de hoje?
― Hoje?
― Sim. Por quê? Você já tem compromisso com outra pessoa que não
consegue vir almoçar com a família do seu noivo?
Preciso respirar fundo para não dar a resposta que ela merece. Não
consegue nem esconder o fato de já saber de mim e do Lucca. Pelo visto,
tenho de passar pela inquisição da família Manfredi.
― Não! Não tenho nada importante que não possa esperar. Aceito seu
convite. ― Que está mais para uma intimação, isso sim.
Pensando pelo lado positivo, esse almoço pode até ser bom.
Indigesto, mas necessário. É a melhor oportunidade que tenho para dar um
basta nas tentativas de influência deles na minha vida. Não somos parentes.
Não somos amigos. Nem mesmo nos gostamos. E para mantermos ao
menos o respeito por ser a família do Samuca é preciso distância.
Adoro isso nele. Não fica de joguinhos e nem dá voltas. Vai direto ao
assunto. Sem medo de se expor.
― Você não conhece dona Sônia Manfredi. Ela não larga o osso. Não
vai desistir de mim tão fácil, ou melhor, da gente. Vou usar o dia de hoje
para dar um basta nisso. Não aguento mais.
Não sei o que responder. Como vou falar que ele não tem culpa?
Prefiro o silêncio à hipocrisia.
― Aviso você quando sair de lá. Se eu não der notícias até à noite,
avisa a polícia para procurar meu corpo.
― Um beijo.
― Está tudo bem. Peço desculpas pela demora, mas esse é o horário
em que fecho a floricultura, por isso não pude vir antes.
Algumas pessoas trabalham, é o que tenho vontade de falar, mas
resolvo morder minha língua por enquanto.
A comida é servida assim que sento. Dona Sônia não perde tempo e
já vai ao que interessa. A ela, pelo menos.
― Não estou fazendo nada com ele. Ele está morto! ― É a minha vez
de alterar a voz.
― Chega! A senhora não vai falar mais assim comigo. Estou cansada
disso!
Apesar de tudo, é um alívio pisar nessa casa pela última vez. Não é o
futuro que sonhei para mim e para Samuca, mas é o que foi possível devido
às circunstâncias. Espero que ele me perdoe de onde estiver. Fiz o possível.
Juro que tentei.
Assim que saio da casa do Samuca vou direto para meu apartamento.
Tomo um banho quente relativamente demorado para tentar tirar do meu
corpo toda a tensão da conversa do almoço. E por falar nisso, meu
estômago ronca, para me lembrar de que não comi direito. Faço um
sanduíche com as coisas que encontro na geladeira e está muito bom. Não
vou fazer almoço quase 14h. Nem faz sentido.
Quando vejo a hora, lembro que não avisei Lucca que já estou livre,
em todos os sentidos. Resolvo ligar para ele.
— Graças a Deus não foi dessa vez. Você ainda vai ter de me
aguentar por um tempo.
Ele sempre me deixa sem graça quando é romântico. Pode até não
parecer, mas sou tímida quando o assunto é relacionamento. Demonstrar o
que sinto não é meu forte. Meio que bloqueei isso desde que perdi meu pai
daquela forma. Acho que é por isso que em todos esses anos nutri um
sentimento de raiva pelo o que fez. E manter esse sentimento dentro de mim
só me atrapalha nos demais relacionamentos.
— Às vezes você quer ficar sozinho até a noite, não custa perguntar.
— Rio.
— Tudo o que eu quero é você. Então, venha logo que já estou com
saudade.
Desligo o celular e guardo as coisas que usei para fazer meu lanche.
Escovo meus dentes e saio rumo a casa dele.
Ele me recebe na porta com o sorriso que mais gosto e com o melhor
beijo do mundo.
― E quem disse que tem hora certa para tomar vinho? Se há vinho é
sempre hora certa.
― Quando alguém começa com essa pergunta nunca é uma coisa boa.
― Rio.
Ele ri e me beija.
― Nunca é fácil falar sobre isso. Porém, hoje me sinto mais leve a
respeito disso.
― Não queria tê-lo perdido dessa forma. Não queria sentir a raiva
que senti dele durante todos esses anos. Fez tão mal para mim! Doeu tanto,
mas tanto!
― Sabe o que é mais legal? Nós fizemos uma promessa. Eu ainda era
criança.
Rio da lembrança, agora já secando minhas lágrimas.
― No final, minha mágoa também é pelo fato de ele não ter me dado
a oportunidade de cumprir com todas essas promessas. Foram feitas por
uma criança ingênua, eu sei, mas levei a sério pelo menos até meus quinze
anos. Até ele jogar todos esses planos de vida pela janela.
― Dinheiro!
MANUELA
Após a ideia que Lucca me deu sobre ainda ter tempo para realizar o
sonho de meu pai e que, no fundo do meu coração, ainda é o meu, conto a
ele sobre o dinheiro. Falo do seguro de vida que Samuca deixou em meu
nome.
— Imagino o quanto deve ser estranho. Não tiro sua razão. Mas não
concordo com a ideia de se sentir mal por isso. Você não teve culpa de
nada. Nem sabia da existência desse dinheiro. E se ele quis deixar para
você, sem dúvida também gostaria de saber que fez um bom uso dele. E
investir nesse sonho pode ser o melhor uso possível.
— Mexer com isso me trará tantas lembranças do meu pai. Não sei se
dou conta.
— Você ainda não imagina a força que tem. Pelo pouco que te
conheço, e sabendo tudo que já sei, para mim você é a mulher mais forte
que já conheci.
Ele ri.
— Sei que sou suspeito por ser seu namorado, mas isso não muda o
fato de você ser a mulher incrível que é.
— Não seja por isso. — Levanta do sofá, ajoelha-se aos meus pés e
segura uma de minhas mãos. — Manuela, sei que estou longe de ser o
homem ideal para você. Imagino o quão complicado é o nosso
relacionamento e quão difícil é me aceitar em seu coração, mas quero
dedicar o resto dos meus dias para te fazer a mulher mais feliz desse
mundo. Você fez renascer em mim a vontade de continuar vivendo.
Prometo recompensar tudo que te tirei. Você quer namorar comigo?
Eu o olho sem saber como recusar esse pedido. Não estou pronta para
esse passo. É cedo demais. Ainda mais na casa dele. A casa onde morou
com sua esposa. O quarto dela. A cama dela.
— Lucca!
— Ei! Não é isso que eu quero. Só não quero que você saia tarde
assim. Tenho medo de perder você também. A gente não precisa nem
dormir no mesmo quarto. Tem um de hóspede.
Olho para ele e, por alguns instantes, sinto o mesmo medo. Medo de
perdê-lo cedo demais assim como perdi Samuca. Medo de passar por toda
aquela dor insuportável novamente. Medo da solidão. Do telefone que não
toca mais. Do silêncio.
— Desculpa!
— Para! Não me peça desculpas por isso. Também não é fácil para
mim. É tudo novo. E acho ótimo irmos devagar. No nosso tempo.
Apesar do nosso passado, meu coração se alegra ao ouvir essas
palavras. Ele, definitivamente, é o homem que preciso agora em minha
vida. Só ele entende tudo o que estou passando. Nossa perda e nossa dor
fazem parte de quem nós somos. E, por mais maluco que pareça, isso nos
une e nos completa.
— Venha! Vou pegar uma camiseta minha para você dormir mais
confortável.
— Pode deixar!
— Boa noite!
Depois ele sai, fecha a porta do quarto onde estou e me deixa sozinha.
Tiro minha roupa e visto a camiseta dele. O cheiro maravilhoso que emana
dela me deixa com um desejo enorme de estar na mesma cama que ele,
sentindo seu corpo, suas mãos em mim. Mas não é esse tipo de
relacionamento que quero agora. Tudo tem a hora certa.
Pego meu celular e pesquiso possíveis terrenos à venda que não sejam
fora de mão. Não quero nada muito longe. Quanto mais perto, mais fácil
será de ir e mais simples toda a logística envolvida. Fora os custos que são
menores. A sorte é que aqui em Roseta há muitas opções. É uma cidade
pequena, mas possui muitos sítios em volta, fazendas e loteamentos para
esse fim.
― O plantio de rosas!
― Nossa! Você consegue ficar ainda mais linda assim que acorda!
― Dormiu bem?
― A cama é tão ruim assim ou você é daquelas que não dorme sem o
próprio travesseiro? ― Ele não esconde o deboche.
MANUELA
Aproveito que Lucca ainda não voltou a trabalhar por conta da perna
e uso e abuso de sua boa vontade. Mesmo não entendendo do assunto, faço
com que vá comigo a todos os terrenos para conhecer. Junto do especialista
que minha mãe me recomendou, é claro.
É muito gostoso ver como ele embarca no sonho comigo. Como fica
feliz pelo simples fato de me ver feliz. Às vezes, parece que nos
conhecemos há anos, de tão bem que nos damos. Temos os nossos
desentendimentos, como qualquer casal, mas nada muito sério e resolvemos
rápido.
Visitamos uns cinco lugares, tudo no mesmo dia. Quero resolver isso
logo e já começar a colocar em prática todos os meus planos. Lucca quase
me mata quando, após o quinto lugar, eu falo que meu preferido é o
primeiro.
― Jamais faria isso com você, amor. ― Não aguento e começo a rir.
― Só precisava ver todos para ter certeza de que o primeiro é o certo.
― Claro!
Lucca me oferece umas economias que tem guardado, mas não quero
começar um relacionamento já pedindo dinheiro emprestado. Tudo bem que
não pedi, foi ele que ofereceu, mas mesmo assim recuso.
Porque agora estou assim, com uma felicidade que não cabe mais
dentro de meu peito. Sinto vontade de aproveitar a vida como se não
existisse o minuto seguinte. O que deveria ser feito por todo mundo, mas só
tomamos consciência disso ou só começamos a querer viver dessa forma
após enfrentarmos perdas que nos deixam com um buraco no coração e uma
urgência enorme de viver cada segundo.
― Odeio surpresas!
Assim que paro o carro ele sai e depois volta com uma garrafa de
champanhe barato com um saco enorme de copo descartável.
― Quantas pessoas você pretende convidar para a nossa
comemoração? ― Mal consigo falar de tanto que rio.
― A última coisa que tenho nojo é da sua boca. Pelo contrário, tenho
cada vez mais desejo por ela. ― Ele termina a frase e tenta a todo custo me
beijar.
― Agora quem não quer dirigir sou eu. ― Puxo-o para mais perto de
mim e o beijo bem devagar. ― Agora, sim, acho que já podemos ir. ― Rio.
― Sim, senhor!
― Obrigado!
― Um brinde!
― Aos recomeços!
― Aos recomeços!
LUCCA
Ela não fala nada, apenas fecha os olhos enquanto curte o carinho que
faço.
― Eu sei, Lucca, mas não quero falar disso, por favor! ― ela suplica.
― Sei que te machuca pensar naquele dia, mas eu preciso falar, por
favor!
Minha voz embarga e vejo que uma lágrima também escorre de seus
olhos.
― Não quero te fazer sofrer, só quero que você saiba que daria tudo
para que você o tivesse de volta. Mesmo se isso significasse nunca ter você
assim, em meus braços, em minha vida. Eu te amo tanto, mas tanto, que sua
felicidade é muito mais importante para mim do que a minha. Nunca se
esqueça disso! Nem por um minuto duvide que meus sentimentos por você
são os mais sinceros e os mais profundos.
― Não se preocupe! Nunca duvidei! Sei que esse assunto não magoa
só a mim, mas a você também, e esse é um dos motivos por que não gosto
de falar sobre. Passe o tempo que for, sempre será um assunto complicado,
que nunca trará boas lembranças.
Depois ela me beija com tanto amor que meu coração fica até
apertado.
Não tenho mais palavras, então, troco todas por um beijo em seus
lábios delicados.
Sorrio.
― Então, pergunta.
― Ei! ― Acaricio suas costas. ― Está tudo bem se não quiser falar
sobre isso.
― Está tudo bem! ― Ela se vira para mim. ― Não vou mentir para
você. Desde que perdi o Samuca e, consequentemente, o bebê, que não
penso nesse assunto. Achei que não seria possível encontrar outro homem
que me fizesse sentir vontade de construir uma família. Quando meu pai
morreu, prometi para mim mesma que jamais colocaria um filho no mundo
para que sentisse o que senti quando ele me deixou. Depois conheci Samuca
e aos poucos ele foi me mostrando que não me deixaria da mesma forma
que meu pai e seria o melhor pai que eu poderia encontrar.
― Acho que não preciso falar o que mudou. E voltei a pensar que de
uma forma ou de outra, os homens sempre partiam da minha vida. Que não
seria justo colocar uma criança no mundo para ficar sem pai logo cedo
como fiquei.
― Sei que não posso prometer que nunca vou morrer, porque isso não
é possível. Só Deus conhece meus dias! O que posso dizer é que, se
depender de mim, estarei sempre com você e que farei de tudo para ser o
melhor pai do mundo.
― Não estou com pressa. O que aprendi com todas as perdas é que
tudo tem um tempo certo para acontecer. No momento, o que mais quero é
aproveitar que tenho você só para mim.
― Claro que não! Quero um time de futebol! Pode até ser misto, mas
um time completo.
Dou uma risada alta. Nossos momentos juntos são sempre assim,
regados a amor e muito bom humor. Amo cada segundo deles.
32
MANUELA
Não lembro quando foi a última vez em que me senti tão ansiosa
como agora. E não vale quando estava me descobrindo apaixonada por
Lucca, porque sinto a ansiedade de vê-lo todas às vezes que vou encontrá-
lo. É como ter um primeiro encontro de novo, de novo e de novo. Amo e
odeio ao mesmo tempo essa situação. Sinto-me uma adolescente vivendo
meu primeiro amor, mas tenho raiva de me sentir tão frágil e vulnerável
assim. Talvez se apaixonar seja um pouco disso.
Lucca achou melhor não ir, principalmente quando soube que minha
mãe ia. Disse que nós duas precisávamos viver esse dia juntas e sozinhas.
Confesso que gostei da ideia quando conversamos e estou animada por estar
apenas com minha mãe, afinal, só nós duas entendemos de fato o que
significa o dia de hoje.
Assim que recebi a primeira rosa colhida já soube o que faria com
ela. Conto para minha mãe e peço para que ela me acompanhe nessa
missão. Antes de fazer o que meu coração pede, preciso passar na casa do
Lucca. Despeço-me dos funcionários, não sem antes deixar as últimas
orientações, e volto para a cidade.
― Será que posso entrar ou tem alguém aí que não posso saber?
― Você sabe que no meu coração e em minha vida não tem espaço
para mulher mais nenhuma além dessa linda que está bem na minha frente.
― Acho bom!
Passo por ele ignorando o beijo que me daria e entro na casa. Ele
apenas acha graça de mim.
― Não! Agora não posso demorar. Tenho outro lugar importante para
ir depois daqui.
Pego a rosa azul que está escondida em uma embalagem. Assim que
ele vê, já abre um sorriso.
― Sei que você acredita que é um homem que me marcou pela morte
do Samuca no meu quase casamento. E, não vou mentir, não posso me
esquecer disso. Mas posso dizer que também é um homem que me ajudou a
me reerguer, que me mostrou o caminho de volta para a felicidade e para o
amor. Se eu consegui realizar o meu sonho e o do meu pai, foi tudo graças a
você. Então, essa rosa azul não é só mais um sinônimo de um amor que
você perdeu, mas um amor que conquistou, apesar de todos os contras.
― Também amo você! Muito mais do que imaginei que seria possível
amar uma mulher novamente.
Minha mãe permanece em pé, enquanto eu sento no chão. Sei que ele
não está mais aqui, principalmente, depois de todos esses anos. São
somente concreto, terra e restos mortais. Apesar disso, faço questão de ter
esse momento aqui. Foi a morte que nos separou, não só fisicamente, mas
emocionalmente, então, o recomeço precisa ser no cemitério. Ainda mais
que não fui ao enterro.
― Oi, pai. Sei que já faz muito tempo que não conversamos. Meu
coração estava em pedaços tão pequenos que era impossível sentir algo
além da raiva. Não esperava te perder tão cedo, muito menos da forma tão
cruel que foi. Culpei o senhor todos esses anos pela decisão que tomou, por
ter me deixado daquele jeito. Não foi justo! Doeu demais!
Seco as primeiras lágrimas que descem. Escuto minha mãe chorando
também, mas ela não diz uma palavra, deixa aquele momento todo para
mim. Ela, mais do que ninguém, sabe o quanto preciso disso. O quanto
preciso desse desabafo.
― Hoje, entendendo um pouco sua dor, consigo lidar melhor com a
minha. Parar de doer acredito que nunca vai acontecer. É só uma dor
diferente agora. E desde que comecei o nosso sonho, sinto o senhor mais
perto de mim e, ao contrário do que imaginei no início, isso me faz bem.
Olho para a única rosa vermelha em minha mão.
― Lembro quando o senhor me ensinava sobre os significados das
diferentes cores das rosas? Como eu gostava de aprender. Achava tudo tão
incrível! ― Sorrio com a lembrança. ― E para mostrar que aprendi
direitinho, trago para você apenas uma única rosa vermelha. Sozinha e
nessa cor ela tem o significado mais singelo e profundo possível. E é isso
que quero dizer ao senhor depois de todos esses anos: eu te amo! Amo da
mesma forma que amei por todos os quinze anos de nossa convivência.
Espero que, onde quer que esteja, possa sentir orgulho da filha que criou, da
mulher que me tornei e do nosso sonho, que acabo de realizar.
Dou um beijo na flor e coloco, delicadamente, em cima do túmulo.
Esse ato marca o início de uma vida nova para mim. Sinto um peso enorme
sair de meu coração. E, pela primeira vez, desde o dia de sua morte, eu me
permito chorar. Não de raiva como sempre foi, apenas de saudade do
homem incrível que tive o prazer de chamar de pai e de melhor amigo.
FIM
NOTA DA AUTORA