Você está na página 1de 206

Copyright © Gabi Amorim

Todos os direitos reservados. Proibida a tradução, distribuição ou cópia,


integral ou parcial dessa obra sem o consentimento por escrito da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido

na lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal

Criado no Brasil

***

Imagens da capa: Depositphotos

Arte da capa: Joice Dias

Revisão: Halice FRS


DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Amilton Amâncio e Cíntia Amorim, por nunca saírem
do meu lado e por apoiarem incondicionalmente meu sonho de ser escritora.

E à minha psicóloga, Carla Frasson, por entrar em minha vida em um


momento tão difícil e, com seu carinho e seu profissionalismo, ser capaz de
me ajudar a voltar a fazer o que mais amo: escrever.

Amo vocês!
AGRADECIMENTOS
Como em todos os meus livros, agradeço primeiramente a Deus pelo
dom que me deu. E por estar à frente deste sonho cuidando de tudo.

Aos meus pais por serem meus primeiros incentivadores. Obrigada


pela paciência e pelo cuidado durante esta etapa difícil que passei. Amo ter
vocês como meus leitores.

Agradeço aos meus amigos e aos meus leitores por cada palavra linda
sobre minhas histórias. São elas que me motivaram a escrever mais este
livro.

À minha psicóloga, Carla Frasson, por estar ao meu lado mesmo a


mais de 9.307 Km de distância. Obrigada por não desistir de mim e por ser
a primeira pessoa a ler os capítulos iniciais desta história. Suas palavras
mudaram minha vida.

À capista, Joy Designer Editorial, pelo trabalho lindo que fez. Amei
esta capa. Seu cuidado, sua paciência e seu talento são admiráveis.

Agradeço também a autora, Halice FRS, por ter revisado este livro.
Adoro aprender com você.

À consultora de narratologia, Mag Brusarosco, por ter me dado várias


ideias incríveis e melhorado consideravelmente a história.

Às autoras Bia Carvalho e Rayane Fiais por terem me ajudado muito


com esta primeira publicação independente na Amazon. Sem a orientação
de vocês eu estaria ainda mais perdida. Obrigada pela generosidade e pela
paciência.

À Larissa Lopes, uma colega de escola de Belo Horizonte, por ter


emprestado o sobrenome Orsini para a protagonista. Obrigada pelo apoio e
por acompanhar minha carreira mesmo que de longe.
E por último, mas nunca menos importante, agradeço a você, leitor,
que dá uma oportunidade a esta história.
ACOMPANHE A AUTORA NAS REDES
SOCIAIS

Instagram: @gabiamorim_autora

Amazon: https://www.amazon.com/author/gabiamorim_autora
1

MANUELA

Toda vez que vou me vestir, abro meu guarda-roupa e lá está ele. Não
aguento mais vê-lo ou até mesmo pensar em sua existência ali, tão perto. O
que seria recomeço se tornou um peso, um fardo. E não tenho mais forças
para carregá-lo. Preciso me livrar logo disso.

Abro o guarda-roupa mais uma vez e o tiro de lá. Chega! Hoje você
vai sair do meu apartamento, da minha vida. Pego uma caixa grande e o
jogo lá dentro. Sei de um bazar da igreja e é para lá que vou. Procuro minha
chave do carro e saio.

Assim que paro o carro na porta da igreja minhas pernas ficam


bambas. Meu coração acelera. O ar parece entrar com dificuldade ao
respirar. Não posso desistir agora. Já estou tão perto.

Então pego a caixa, mas as lembranças me impedem de entrar na


igreja. As voluntárias do bazar já me viram. O que faço agora? Não quero
ter de explicar. Jogo a caixa na porta e volto às pressas para o carro. E assim
que ligo o motor posso ver a expressão de espanto das duas mulheres
quando tiram um vestido de noiva praticamente novo deixado ali, de
qualquer jeito. Parecem não saber se olham para o vestido ou na minha
direção.

Acelero e saio daquele lugar o mais rápido possível. Assim como em


uma onda, sou engolida pelas lembranças. Sinto como se vivesse aquele
fatídico dia mais uma vez.

Acordamos juntos em meu apartamento, assim como vinha


acontecendo nos últimos anos. Esse dia, porém, é diferente. Ele me olha
com um brilho nos olhos ainda mais intenso do que o normal.

― Não me olhe assim ― digo, envergonhada.

― Como devo te olhar se hoje você vai realizar o sonho da minha


vida?

― Não sabia que casar era tão importante para você.

― Casar não, mas casar com você é ― diz enquanto beija


suavemente meus lábios.

― Até agora não acredito que vou fazer isso.

― Por que não, Manu?

― Sei lá. Só achei que eu não seria capaz de amar um homem assim.

― Por causa do seu pai?

― É.

― Você precisa perdoar o que ele fez.

― Não começa, Samuca. Não quero ter de discutir isso de novo com
você.

Saio da cama jogando para longe a coberta.

― Desculpa, eu não queria...

― Eu sei ― repondo e logo em seguida bato a porta do banheiro.

Assim que saio do banho, Samuca já está de roupa trocada para ir


embora.

― É melhor eu ir, antes que sua mãe apareça falando que a gente não
pode se encontrar hoje porque dá azar. ― Ri, brincalhão.
― Pelo o que sei, você só não pode ver o vestido.

― Seja lá o que D. Ana pensa, é melhor não dar motivos. Hoje tudo
precisa ser perfeito. ― Ele me beija e vai embora.

“Perfeito”. Não sei nem mais o significado direito dessa palavra. E


não entendo tanta empolgação por conta de um casamento. Até que dou
mais uma olhada para o vestido pendurado.

― Você é mesmo lindo ― falo sozinha me rendendo à magia da


cerimônia.

A campainha toca. Para o porteiro não ter me avisado, só pode ser


minha mãe. Abro a porta e ela já entra falando mil coisas ao mesmo tempo.
Até parece que ela é a noiva e não eu.

― Você ainda está assim?

― Assim como, mãe?

― Com esta roupa. Achei que estaria pronta.

― Mas eu estou pronta. Só vou tomar um café.

― Hoje o dia é especial e você nem para se arrumar direito. Não


consigo te entender mesmo.

― Você não quer que eu vá de noiva para lá, né?

― Você entendeu, Manuela.

Adoro deixar minha mãe mais nervosa. Temos um relacionamento


muito bom, já que somos só nós duas. Mas nunca fui a menininha que ela
sempre sonhou. Para mim, as roupas precisam ser confortáveis. E por conta
disso a gente se desentende às vezes. Nada muito sério. Só essas
implicâncias normais de mãe e filha.

― Anda logo com esse café, minha filha, a gente vai se atrasar para o
salão.
Reviro meus olhos e bebo tranquilamente o último gole. Escovo meus
dentes e saio atrás da mãe de noiva mais nervosa que já conheci. O trajeto
até ao salão é rápido e logo chegamos para alívio de D. Ana.

Faço tudo o que tenho direito: depilação, sobrancelhas, unhas e


cabelo. E, preciso confessar, precisava de uma geral dessas. Estou me
sentindo até bonita. Minha mãe me olha, encantada. Ver sua filha casando
sempre foi seu sonho. Fico feliz por realizar isso para ela.

Agora só falta a maquiagem e trocar de roupa, mas isso será feito no


conforto do meu apartamento. E é para lá que a gente volta. Assim que
chego o porteiro me diz que chegou uma encomenda para mim e me entrega
um buquê de flores lindo com um cartão do Samuca. Deixo para ler
sozinha, pois ele tem o dom de me deixar sem graça com seu romantismo.

Enquanto minha mãe liga para o maquiador para avisar que já


chegamos, eu entro no meu quarto e leio o cartão:

“Minha Manu,

Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Não vejo a hora de te ver toda
linda de noiva entrando na igreja. Nunca esqueça o quanto eu amo amar
você. Conto os segundos para me tornar para sempre seu e provar que
jamais vou te abandonar, pois ao seu lado é o meu lugar.

Com amor,

Seu Samuca”

Involuntariamente abro um largo sorriso. Ele sempre sabe o que dizer.


Conhece meus defeitos e meus maiores medos e ainda assim consegue me
amar. Tê-lo ao meu lado para sempre é tudo o que eu poderia desejar, ainda
mais depois de tudo o que passei.

O maquiador chega e termina de me arrumar. Mal me reconheço


quando me vejo no espelho. Estou linda! Agora só falta o tão esperado
momento, colocar o vestido. Assim que o visto, vejo minha mãe chorando.

― Seu pai ficaria tão orgulhoso da mulher linda que você se tornou.

Meu coração aperta. Lembrar-me dele hoje é algo que me machuca


mais do que quero assumir.

― Ele escolheu não estar aqui há muito tempo, mãe.

― Não é verdade, minha filha, ele estava doente, você precisa aceitar
isso. Em outras circunstâncias jamais teria feito o que fez.

― Chega, mãe! Não quero mais ouvir isso!

O porteiro interfona avisando que meu carro já está me esperando.


Pego o buquê e saio do apartamento com minha mãe atrás de mim.

Chegando à igreja, fico sabendo que o noivo ainda não chegou. O que
é muito estranho, já que quem deveria se atrasar era a noiva. A hora passa e
nada dele. Nenhuma notícia.

O nervosismo me consome e resolvo sair do carro. Ligo para seu


celular, mas toca até desligar. Será que viu que se casar comigo era um erro
e fugiu? Como ele pôde fazer isso comigo justo hoje?

Mais de uma hora já se passou e todos fora da igreja começam a ficar


preocupados. Não é normal um noivo se atrasar tanto assim, ainda mais sem
dar notícias.

Até que uma viatura da polícia chega. Dois policiais descem e


parecem mais tensos do que a gente ali fora. Eles se aproximam e tudo o
que consigo escutar é um “sinto muito”, pois depois eu desabei. Assim
como todo meu mundo.
2

LUCCA

Desde que mudei para Roseta, para ser médico do SAMU, através de
uma transferência, sinto que não tenho mais tempo para nada. E, ao
contrário do que muitos pensam, é ótimo. O que eu menos preciso é de
tempo ocioso em casa. Quando fico à toa começo a pensar demais, e isso só
faz minha dor aumentar.

A culpa ainda é grande por não ter chegado a tempo. Salvei tantos
estranhos ao longo de minha carreira, mas não pude fazer nada por ela.
Justo por ela! Que tipo de homem eu sou? Não era para ter sido desse jeito.
Queríamos construir uma família, aproveitar o clima de cidade pequena
para ter nossos filhos, vê-los brincar no jardim de casa e crescer, tornando-
se homens ou mulheres de caráter. Nada disso será possível e a culpa é toda
minha.

Por um tempo até pensei em mudar de cidade mais uma vez.


Trabalhar em outros ares que não me trouxessem tantas lembranças. Depois
de muito pensar achei que não seria justo, devo muito a essa comunidade e
é aqui que vou tentar fazer a diferença, salvando o maior número de pessoas
possível.

É claro que essa missão não é nada fácil. Não pelo número de pessoas
que atendo em acidentes todos os dias, porque é bem grande, já que minha
base atende várias cidades menores em volta de Roseta. É difícil, pois a
cada dia que passa me sinto mais sozinho.

Meu melhor e único amigo é meu companheiro de plantão no SAMU,


Caio. Ele é o único que sabe o quanto as coisas andam difíceis para meu
lado. O problema que é casado, e me sinto deslocado quando saio com ele e
sua esposa. Chega uma época na vida em que sair para ser vela de um casal
não é algo nada atraente.

Caio até tenta me convencer de arrumar outra pessoa, de seguir em


frente já que ainda sou jovem e tenho uma vida inteira pela frente. Mas não
consigo. Não me sinto pronto para um novo relacionamento. Sinto que
estou traindo Cristiane por viver uma vida que ela não pôde ter. Sei que não
é isso que ela desejaria para mim, mas não consigo pensar diferente.

Até tentei uma vez conhecer uma pessoa, graças a muita insistência
de Caio. Uma prima dele estava na cidade e não queria sair só com o casal.
Ele, então, achou que eu seria a pessoa perfeita para apresentar a ela. Foi
um desastre. Há anos não sei como me comportar em um primeiro
encontro.

Depois desse dia vergonhoso em minha vida amorosa, decidi que tão
cedo não saio mais com alguém. Já tenho problema suficiente para ficar
criando mais um tentando me relacionar enquanto meu coração ainda
pertence a uma mulher mais do que especial.

Trabalhar hoje em dia é mais do que uma válvula de escape, é meu


bote salva-vidas. Emendo com frequência um plantão no outro sem
problema algum. Pelo contrário, acho ótimo quando alguém pede para
cobrir o plantão em seu lugar. Só assim o dia passa mais rápido e com
menos sofrimento.

Trabalho, trabalho, trabalho e depois volto para casa. Certamente, se


ela estivesse aqui, jamais aprovaria esse meu ritmo de vida. O fato dela não
me apresentar uma solução melhor me faz continuar assim.

Quando acaba o plantão a maioria fica louco para ir para casa,


encontrar seus familiares e às vezes até contar como foi maluco o resgate
que tivemos que fazer. Sinto muita falta de sentir isso. Volto para casa e não
posso contar com nenhuma dessas coisas para fazer. Nunca é fácil voltar.

Quando não posso mais adiar, volto para casa e vejo que tudo está
como deixei. Uma casa escura, sem barulho... Sem vida.
― Cheguei, meu amor.

Abro a geladeira e ainda tem alguns pedaços de pizza que sobraram


de ontem. Ou talvez de anteontem, não sei muito bem ao certo. Ligo o forno
para esquentá-los.

― Eu sei que não deveria viver de pizza, mas é muito mais fácil,
você tem de concordar.

Coloco os pedaços em uma assadeira e depois dentro do forno.

― Pelo menos agora ela é toda de calabresa, não tenho de pedir


aquelas coisas vegetarianas esquisitas que você tanto gostava. ― Rio,
sozinho. – Alguma vantagem eu preciso tirar de tudo isso, não é amor?

Enquanto espero, lavo a louça que está na pia. Deixo para tomar
banho depois de comer, porque além de a fome hoje está apertando, tenho
medo de cair no sono após uma longa chuveirada e ir dormir sem comer,
como fiz há alguns dias. Mas eu prometi a ela que aprenderia a me cuidar.
O mínimo que posso fazer é comer todos os dias.

Assim que esquenta, pego dois pedaços, coloco no prato e vou para
frente da televisão assistir a alguma coisa.

― Fica tranquila, não vou colocar no futebol. Quem sabe um pouco


do jornal, pode ser?

Repito a pizza e percebo estar com mais sono do que nos últimos
dias. O plantão dobrado acabou comigo. Preciso urgente de um banho. Ligo
o chuveiro e deixo a água massagear meus músculos retesados das costas.

― Você bem que podia fazer aquela massagem, não é amor. Hoje eu
mereço, você não acha?

Fico um pouco mais do que deveria embaixo do chuveiro até desligá-


lo. Coloco meu pijama e vou direto para cama. Olho para a foto do porta-
retratos do meu criado mudo e me despeço.
― Boa noite, meu amor! Amo você. Sinto sua falta, sabia? Sinto falta
de ouvir sua voz, nem que fosse para falar que estou fazendo algo errado,
não me importaria com isso.

Apago a luz e sou inundado novamente pela escuridão que se tornou


minha vida. O lugar vazio da minha cama parece aguardar alguém que
nunca mais virá se deitar. E cada dia que passa, seu cheiro doce no
travesseiro, nas roupas e até mesmo na casa se perde na mesma proporção
que minha saudade aumenta.

Aos poucos sou nocauteado pelo cansaço e logo pego no sono.


Novamente, sem ela.
3

MANUELA

AINDA PERDIDA EM SUAS LEMBRANÇAS

Como assim “sinto muito”? Era para eu ouvir “parabéns” pelo dia de
hoje e não “sinto muito”. Por um instante minha vida vira de cabeça para
baixo e não sei como superar mais essa. Que droga! Por que tudo isso tem
de acontecer comigo?

― Quero ir até lá. ― Pego todos de surpresa.

― Ele já se foi, minha filha, não tem por que você ir à cena do
acidente. Vamos esperar até...

― Não vou esperar nada! Ou alguém me leva ou vou a pé até lá. Eu


preciso vê-lo!

― Tudo bem ― disse um dos policiais. ― Levo você, mas fique


calma.

― Eu estou calma! ― Odeio quando me pedem isso.

Entro na viatura e em poucos metros já estamos no local do acidente.


Os pais de Samuca já estavam lá. Minha mãe e eu só conseguimos nos
aproximar por estarmos com os policiais, pois já havia muitos curiosos em
volta.

Caminho lentamente em meio à confusão, ainda vestida de noiva, no


mesmo ritmo que entraria na igreja. Da mesma forma, todos me olham ir
em direção ao noivo. Por sua vez, este não me espera no altar e nem pode se
emocionar como sempre disse que faria. Tudo o que vejo é sua mão
esquerda, que jamais terá uma aliança dourada e que agora repousa sem
vida no asfalto. O restante do corpo está coberto com um casaco de um dos
policiais em sinal de respeito à família.

Uma lágrima insiste em descer. Não era para ser assim o dia de hoje.
Seco bruscamente o rosto. Olho mais adiante e vejo a mãe de Samuca
chorar de maneira incontrolável e sendo confortada por seu marido, que
tenta ser forte, mesmo também chorando a perda de seu filho.

Quando o carro do IML chega para retirar o corpo, somos afastados


da cena. Caminho na direção contrária a do acidente e acabo passando pela
ambulância que está socorrendo o motorista do outro carro. Aproximo do
atendimento. Preciso olhar nos olhos dessa pessoa e dizer o mal que ela me
causou, todos os sonhos que destruiu, nem que seja a última coisa que eu
faça nessa vida.

Quando os médicos o levariam para dentro da ambulância eu os


alcanço.

― Espera!

Eles param e olham para o lado sem entenderem o que está


acontecendo. Chego ao lado da maca até que o motorista consiga me ver
mesmo com o colar cervical. Ele me olha com olhos azuis arregalados e
logo os vejo se encherem d’água. Naquele instante ele pôde entender que
acabou de interromper para sempre um casamento e que está diante da
noiva do homem que acabou de matar.

Minha garganta seca. Minha voz não sai. Minhas pernas tremem e
sinto meu coração terminar de se destruir. Prometi a mim mesma que jamais
sentiria essa dor novamente desde que tinha quinze anos, e hoje ela me
invade com toda força. Tudo o que eu consigo fazer é ficar olhando para
aqueles olhos azuis.

Ele, por sua vez, com as lágrimas escorrendo em meio aos ferimentos
de seu rosto, a única coisa que consegue dizer para mim é:
― Eu sinto muito...

No instante seguinte os médicos me pedem licença e o colocam na


ambulância, dizendo que ele precisa ir ao hospital. Como se eu me
importasse com isso, afinal, Samuca nem teve essa chance. Assim como
quando eu tinha quinze anos, não foi preciso hospital algum. Já era tarde
demais.

“Sinto muito”, é o que todos sabem me dizer. Eu também sinto. Sinto


por ter acreditado mais uma vez que um homem permaneceria na minha
vida. De um jeito ou de outro eles sempre vão embora. E eu os odeio por
isso.

― Vamos embora daqui! ― Encontro minha mãe.

― Você está bem, minha filha?

― Estou ótima, o que a senhora acha?

― Um dos policiais se ofereceu para nos dar uma carona.

― Então vamos!

Já dentro da viatura minha mãe pergunta:

― Por que não vamos para minha casa? Você não precisa enfrentar a
sua agora.

Penso bem na oferta, mas ter que enfrentar meu antigo quarto seria
bem pior. A conclusão é que nada me faria bem nesse momento. E quem
poderia segurar forte minha mão para eu não desabar já não está mais aqui.

― Eu vou para minha casa, mãe ― disse por fim. ― Quero ficar
sozinha.

Minha mãe entende bem o recado e se despede de mim assim que saí
do carro.

― Qualquer coisa me liga.


Entro em meu apartamento e tenho a maior surpresa. Ele está todo
enfeitado. Há pétalas de rosas vermelhas espalhadas pelo chão desde a porta
de entrada até em cima da cama do meu quarto, onde, na verdade, seria a
nossa cama.

Os pais dele não gostaram quando souberam que o filho moraria em


um lugar tão pequeno. Como ele é um dos herdeiros da fortuna da família
Manfredi seria de se esperar um lugar bem mais adequado. A questão é que
ele nunca se importou com isso, nem mesmo quis continuar trabalhando no
respeitado escritório de advocacia da família.

No lugar, ele comprou uma floricultura, realizando seu grande sonho


de mexer com rosas, já que a cidade é uma referência em plantação de rosas
de todos os tipos. Aproveitaríamos a minha formação em Botânica para
evoluir no negócio. A família ficou ainda mais indignada com Samuca
quando ele fez uma surpresa para mim e escolheu como nome da
floricultura o meu sobrenome. Floricultura Orsini. Disse que o toque
italiano daria um charme a mais aos negócios.

Vendo todas essas rosas, eu me vejo desejando como nunca no dia de


hoje a presença dele comigo. Está tudo tão a cara dele que eu posso jurar
até sentir seu cheiro ali.

Tiro o vestido, pois já estou parecendo uma louca andando de noiva


de um lado para o outro. Coloco no guarda-roupa para não ter que olhar
para ele. Pelo menos não hoje. Depois resolvo o que fazer com ele. Não
preciso fazer isso agora. Visto uma roupa mais à vontade porque eu mereço.

Vou à geladeira com o intuito de pegar água. É quando acho uma


garrafa de champanhe. Mais uma das surpresas de Samuca. Por que
desperdiçá-lo? Vou brindar à minha sorte, à minha vida amorosa, à minha
felicidade. Abro e bebo na garrafa mesmo.

― Precisava ter feito essa sujeira na casa toda com essas rosas e
deixado tudo para eu limpar sozinha? ― Bebo mais um longo gole.
Pego uma vassoura e tudo o que consigo pensar é me livrar de toda
essa bagunça que virou meu apartamento. O que seria uma lua de mel vira
um dia de faxina. Muito apropriado para a minha vida.

Começo a ficar com dor de cabeça. Não sei se é pelo cheiro das
flores, pelo estômago vazio ou por já ter tomado metade da garrafa de
champanhe. Talvez seja por tudo isso junto. Vou até a cozinha tomar um
analgésico e tomo dois por precaução.

Minha cama, agora livre das pétalas, torna-se um lugar cada vez mais
atrativo e acabo me rendendo a ela. Não quero saber de velório. Minha
última lembrança de seu rosto não será dentro de um caixão, sim, do último
sorriso que me deu, da última vez que saiu pela porta do meu apartamento
antes que minha mãe aparecesse para me levar ao salão. E com essa última
lembrança caio no sono, com o efeito do analgésico a mais que tomei.

Acordo só na manhã seguinte e me arrumo para ir ao cemitério.


Chego na hora do sepultamento. Passam alguns minutos e as pessoas já
começam a se dispersar. Alguns se despedem de mim e outros
simplesmente vão embora. E pela última vez ficamos a sós. De um jeito que
jamais imaginei que seria. Eu simplesmente não consigo ir embora dali. É
meu último adeus e não consigo dar. Não consigo deixá-lo ali e virar as
costas. A certeza de nunca mais estar com ele dói muito.

― Você disse que jamais me abandonaria. Você mentiu para mim! ―


digo minhas últimas palavras e jogo com força a flor que ainda estava em
minhas mãos.

Agora, sim, estou pronta para ir.

Caminho apressada para sair do cemitério e vejo de longe minha mãe


visitando outro túmulo. Um túmulo que eu jamais visitei, mas que sei muito
bem a quem pertence.
4

LUCCA

― Bom dia, gato!

― Hum, está cedo, por que você está me acordando essa hora?

Ela abre o sorriso mais lindo do mundo.

― Porque eu gosto de ficar mais tempo com você, e já fiquei muito


tempo te olhando dormir.

― Sabia que isso é esquisito? ― Rio, olhando para ela.

― Sabia, mas quem se importa? ― Ela dá uma gargalhada.

― Por que eu não consigo te ignorar e voltar para o canto e assim


continuar com meu sono que estava ótimo?

― Porque eu sou irresistível.

Agora foi minha vez de cair na risada, não que ela esteja errada, pois
é a mulher mais linda que já vi em toda a minha vida. E é toda minha.

― Você é ― digo, abraçando-a e ficando por cima de seu corpo. ― E


eu sou completamente louco por você. ― E assim nós fazemos amor logo
pela manhã.

Ainda de preguiça na cama ficamos conversando, pois o tempo


parecia parar para que nós pudéssemos ficar juntos.

― O que você quer fazer hoje? ― pergunto enquanto acaricio seu


cabelo ruivo.
― Quero que cozinhe para mim, adoro ver você fazendo isso ― diz
ela apoiando seu queixo em meu peito nu enquanto me olha.

― Achei que gostava da minha comida. ― Finjo estar ofendido

― Também, mas não é a melhor parte. ― Ela segura o riso.

― Você é terrível mesmo.

Levanto, coloco uma roupa e vou preparar o café da manhã do jeito


que Cristiane mais gosta. Ela aparece na cozinha logo em seguida. Senta em
volta da ilha e fica me olhando como se estivesse vendo algum espetáculo.

― Para de me olhar assim que você está me deixando sem graça.

― E desde quando você é um homem tímido?

― Vou ficar assim quando for sua vez de cozinhar também, quero só
ver sua reação.

― Vou te agarrar e deixar a comida queimar. ― Nós dois caímos na


gargalhada. Afinal, é bem a cara dela, superdespreocupada com tudo, vive o
agora. ― Até porque temos que aproveitar todas as oportunidades para
encher essa casa de pirralhinhos.

Viro as costas e vou lavar a frigideira que tinha acabado de usar.

― Desculpa! Não quis tocar nesse assunto justo agora.

― Está tudo bem ― respondo sem nem levantar a cabeça.

― Olha para mim.

Ignoro.

― Lucca, olha para mim.

Viro e olho em seus olhos.


― Não se preocupe com isso, a gente vai engravidar.

― Eu sei, Cris, não é com isso que me preocupo.

― É com o quê, então?

― Sei que na hora certa, quando Deus achar que estamos prontos
para sermos pais, vamos ter nossos filhos.

― Então por que você foge tanto desse assunto?

― Porque me preocupo com você. Está tão ansiosa para ficar grávida
que pode acabar te atrapalhando.

― Quer dizer que você acha que eu não engravidei até hoje por culpa
minha? ― diz em tom mais sério, já demonstrando estar chateada.

― Claro que não, meu amor. ― Dou a volta na ilha para chegar mais
perto dela. ― A culpa não é de ninguém, nada acontece se Deus não
permitir. O que estou falando é que essa ansiedade pode te fazer mal e até
fazer mal para o nosso relacionamento. Não quero transar com você na
pressão de te engravidar. Quero que continue sendo com prazer como a
gente sempre fez. Entende?

Ela abaixa a cabeça e vejo uma lágrima escorrendo em seu rosto.

― Não chora! Não disse isso para magoar você.

― Eu sei, gato. Eu sei. ― Ela se deixa ser abraçada por mim. ―


Você não me magoou. É só que... eu queria tanto te dar um filho. Sei o
quanto sonha com esse dia desde o momento em que nos casamos. É seu
maior sonho e até hoje não consegui realizá-lo. Sinto-me péssima por isso.

― Então, você está se sentindo péssima à toa, pois meu maior sonho
nunca foi esse. Claro que quero ser pai, mas meu maior sonho sempre foi
casar com alguém como você. E olha você aqui nos meus braços, me
fazendo feliz todos os dias quando abro os olhos e te vejo ali deitada ao
meu lado.
Ela abre um sorriso em meio às lágrimas.

― E outra coisa, se não for da vontade de Deus que você tenha um


bebê, a gente adota um ou vive sem filho. O importante é ter você ao meu
lado. Mas quero você tranquila, feliz. Promete que vai ficar bem com isso?
Que vai tirar essas ideias da sua cabeça e relaxar?

― Tem certeza de que você será feliz sem um filho nosso?

― Se eu ainda tiver você serei o homem mais feliz do mundo.

― Então, eu vou ficar bem. Prometo.

― Ótimo! Agora vamos tomar café porque já deve estar tudo frio.
Agora já sei por que você não gosta tanto da minha comida.

― Eu não disse que não gostava da sua comida, disse que gostava
mais de ver você cozinhando, é diferente. ― Abre um sorriso tímido.

― Mas é claro, você me distrai me olhando que eu fico nervoso e não


cozinho direito. Quando não me distrai com conversa séria só para fazer
minha comida gelar. Você é uma trapaceira.

E ela volta a dar aquela gargalhada que tanto amo.

De repente, escuto um barulho constante e custo para descobrir que se


trata de meu despertador. Acordo em minha cama. Olho para o lado e tenho
que enfrentar novamente a dura realidade... A de viver sem ela. Fecho meus
olhos por alguns segundos, desejando voltar ao sonho que estava tendo e
tudo que consigo é sentir ainda mais saudade. Saudade de sua voz, de seu
sorriso, de seu cheiro, de seus beijos, de seu jeito único de ser. E daquele
pequeno que, finalmente, estava em sua barriga, mas que nem chance teve
de vir ao mundo.
5

MANUELA

DIAS ATUAIS

Acordo com a sensação de já ter vivido uma eternidade desse jeito.


Os dias se arrastam, são enormes. Mas só faz meses. Meses que ele me
deixou sozinha nesse apartamento. E pior, com uma floricultura para cuidar.
Não acredito que vou ser obrigada a levantar da minha cama para abrir
aquilo. Fora a sujeira que deve estar.

Claro que eu posso muito bem pegar o dinheiro do seguro que ele me
deixou e sumir. Sim, ainda tive que passar por mais essa. Descubro que ele
fez um seguro de vida em que a beneficiária sou apenas eu. Seus pais
acharam tudo muito estranho. Como se tudo aquilo fosse ideia minha.
Como pode? Nunca quis o dinheiro dele em vida, o que vou fazer com ele
agora?

O que me impede de me afastar de tudo e voltar a me dedicar


exclusivamente às minhas fotografias é a floricultura. Não é apenas um
lugar que abrimos juntos, trata-se do grande sonho de Samuca. Como vou
fechar tudo, vender e ignorar tudo o que ele sonhou? É um peso muito
grande nos meus ombros. Não é justo eu ter de passar por tudo isso sozinha.
Ou melhor, não é justo eu ter de passar por isso, porque se ele não tivesse
me deixado, eu não teria de enfrentar todas essas questões.

Levanto, tomo meu café ainda amargo para tentar ter uma força a
mais. Visto a primeira roupa que encontro no meu guarda-roupa. Prendo
meu cabelo em um coque malfeito para não ter que arrumar muito e desço
para pegar meu carro. Tudo em cidade pequena é relativamente perto, mas
ir a pé hoje não é uma opção.
Chegando lá encosto meu carro na vaga mais próxima. Caminho em
direção à porta da floricultura e, antes de abri-la, fico olhando para a placa
de madeira que ele mandou fazer com o nome “Floricultura Orsini”. Meu
coração se aperta quando me lembro da surpresa que ele fez usando meu
nome e não o dele ou qualquer outro que poderia ser colocado. Antes que
alguém me veja parada ali à toa como uma maluca, afasto minhas
lembranças para o mais longe possível e, finalmente, entro.

Nada está como eu imaginei. Esperava flores mortas para tudo que é
lado e muita poeira para tirar. Mas encontro um lugar praticamente limpo e
com as coisas todas em seus devidos lugares. Eu só tenho que passar uma
vassoura de leve no chão. E toda essa arrumação tem um nome: D. Ana. Ela
é inacreditável! Cuida de mim até quando não mereço. E nesse momento
me faltam palavras para agradecer tamanho cuidado.

Pego meu celular e ligo para ela na hora.

― Oi, filha.

― Obrigada! ― digo, direta.

Ela faz um período de silêncio como se quisesse entender o porquê ou


como se estivesse surpresa, não sei ao certo.

― Só cuidei da floricultura para que ela estivesse pronta para você


quando você estivesse preparada para ela.

― Não sei se estou pronta ― assumo a contragosto.

― O primeiro passo você já deu. É o mais difícil, meu amor. É


sempre um passo de cada vez. Não queira fazer tudo em um dia só.

Fico em silêncio. Não gosto de conversar sobre esses assuntos.

― Mais tarde eu passo aí.

― Não precisa, mãe. Está tudo bem.


― Não perguntei se precisa, só te avisei que mais tarde eu vou passar
aí.

Abro um sorriso.

― Sim senhora, D. Ana.

― Um beijo. Fica bem.

― Beijo.

Desligo e olho para o chão ainda tentando criar coragem para varrê-
lo. Como é preciso começar o serviço de hoje por algum lugar, vamos pela
vassoura então. Depois de limpo já vou para o caderno de fornecedores,
afinal, uma floricultura sem flores não faz o menor sentido. Passo a manhã
toda ligando para todos, avisando que a Floricultura Orsini está retornando
aos serviços e faço os devidos pedidos.

Na hora do almoço minha mãe chega com uma marmita. Se não fosse
por isso eu nem lembraria que já estava na hora de comer. E nem teria
vontade também. Nesses últimos meses só estou fazendo as coisas por pura
obrigação. Ela trouxe uma para ela também e, assim, sentamos nós duas
para comer como há tempo não fazíamos.

― Não precisava ter esse trabalho, você sabe, não é?

― Eu estava muito ocupada em casa que não podia vir almoçar com
minha filha. Claro!

― Estou falando sério, mãe.

― Eu também, Manu. E não vou te deixar passar por tudo isso


sozinha. Sei o que é perder alguém que a gente ama. É uma dor que
ninguém consegue explicar.

― Não é a mesma coisa.

― O que não é a mesma coisa?


― Samuca não quis morrer! Ele não quis me deixar! A gente ia se
casar! Ter uma família!

― É você acha que seu pai queria? Que ele queria deixar a gente?

― Acho não, tenho certeza! Ele escolheu nos deixar. A senhora sabe
muito bem disso!

― Manu...

― Chega, mãe! Não quero mais falar disso!

― Tudo bem, então vamos terminar de comer.

― Já perdi até a fome. Você me deixou com indigestão. ― Levanto e


saio da pequena cozinha que tínhamos construído nos fundos da loja.

Passa um tempo e minha mãe aparece.

― Desculpa. Não queria aborrecer você. Só queria...

― Tudo bem, mãe. Só não vamos falar mais disso. Por favor!

― Tudo bem. Desculpa.

Passamos mais um tempo juntas até ela resolver ir embora.

― Vou estar em casa, qualquer coisa é só me ligar.

― Pode deixar, mãe. Não vou precisar de nada.

E cá estou. Novamente sozinha. Mal sabia eu que o pior do dia ainda


estava por entrar por aquela porta.

Escuto o barulho e olho em direção a entrada, achando estranho


porque a floricultura ainda não estava com a placa de “aberto” na porta.
Nisso quem entra é a D. Sônia Manfredi, mãe do Samuca. Fico
completamente sem ação. Ela não veio aqui nem na inauguração. Por que se
dá o trabalho de aparecer agora? O que essa visita significa? Tantas
perguntas passam pela minha cabeça enquanto ela se aproxima me olhando.

― Fiquei sabendo que estava aqui.

Como as notícias voam.

― Uma hora eu tinha de voltar.

― E por quê?

― Por que o quê? ― Não entendo aonde ela queria chegar com
aquilo.

― A floricultura sempre foi uma aventura maluca da cabeça do


Samuel. Uma forma que ele encontrou para afrontar o pai e não ir trabalhar
no escritório que era o lugar dele.

Quero poder dizer o quanto ela não conhecia o próprio filho, mas não
sei se eu tenho esse direito. Ela não sabe quantas noites ele passou só
falando em como queria tudo. Sonhando com cada cantinho desse lugar. E o
quanto ele tinha pavor de ser obrigado a ter de trabalhar ao lado do pai. Não
que ele não amasse o pai, mas não era o exemplo de vida que queria seguir.
Estava disposto a ter uma vida muito mais simples do que a que sonhavam
para ele.

Como não dou conversa, ela continua:

― Não acha que seria melhor acabar logo com isso e recomeçar a
vida?

― Não acho ― falo calmamente.

― E por quê? Você ainda é nova, pode fazer o que quiser da vida. Por
falta de dinheiro é que não vai ser problema agora.

Meu sangue já começa a ferver. Já vem ela com essa história de novo.

― O que te impede? ― insiste ela.


― Não é o que ele queria, droga!

Ela olha para mim, assustada. Não estou acostumada a responder para
ela. Sempre segurei minha língua para não ter problemas com Samuca, mas
ele não está mais aqui nem para me defender. E eu não consigo lidar com
essa mulher sozinha. Ainda mais querendo se meter na minha vida.

― Quem você pensa que é para falar assim comigo?

― A dona do lugar onde a senhora está.

― Quem comprou essa floriculturazinha foi meu Samuel, não você.

― Essa floriculturazinha está oficialmente no meu nome. E não falo


só da placa. Pelo visto o seu Samuel conhecia muito bem a mãe que ele
tinha.

― Olha aqui, a senhorita não tinha onde cair morta antes de conhecer
Samuel...

― Olha aqui a senhora! Ao contrário do que pensa, Samuca não me


achou debaixo da ponte. Eu já tinha meu apartamento e vivia muito bem
com o que ganhava. Ainda ajudava a minha mãe. Nunca precisei de um
centavo do dinheiro dele.

Ela já me interromperia, mas eu continuo:

― E se ele quis deixar tudo o que deixou para mim é problema dele,
eu não tenho nada com isso. A senhora acha mesmo que eu prefiro todo
esse dinheiro a ter me casado com ele naquele dia? Porque se acha, só pode
ser louca em pensar algo assim. Eu amava seu filho. Eu esperei que ele
aparecesse no meu apartamento todos os dias desses meses após o acidente.
Uma espera inútil e cruel. Então, não ache que vai aparecer aqui e me
mandar fazer o que quer que seja.

― Eu também perdi um filho naquele dia, não foi só você que perdeu
alguém ― falou entre lágrimas. ― Um filho que não falava comigo direito
por sua causa. Por causa dessa bendita floricultura.
― Se a senhora respeitasse mais seu filho, nada disso teria
acontecido. Agora terá de lidar com isso sozinha. Não poderei ajudar.
Então, por favor, saia da minha floricultura agora.

― Seu pai não viveu o suficiente para lhe dar a educação que meu
filho merecia em uma esposa. Até porque, não podia se esperar muito de
um homem que fez o que fez, não é? ― Vira às costas e caminha até a porta
sem antes parar e voltar a dizer. ― A única coisa boa naquele dia foi meu
filho não ter se casado com você.
6

MANUELA

Aquelas últimas palavras ficam em minha mente. Foi como um soco


no estômago. Nunca nos demos bem, mas nunca imaginei que nosso
relacionamento chegaria a esse ponto após a morte do Samuca. Como teve
coragem de fazer aquilo e, simplesmente, ir embora? E o pior de tudo é que
sou obrigada a concordar com ela. Eu não merecia um homem tão bom
como ele. Não é porque ele morreu que ficou perfeito, mas ele era incrível
em vários aspectos. Merecia uma vida muito melhor do que a que teve. Eu é
que deveria ter morrido, e não ele.

Eu já tinha chegado a essa conclusão há muito tempo, mas ouvir isso


de outra pessoa doeu muito mais do que eu queria confessar. Principalmente
alguém tão próxima à situação toda. As cenas do casamento voltam à minha
mente. Cenas da viatura chegando, dele deitado no asfalto... De tudo que eu
nem cheguei a ter.

Agora quanto ao meu pai, bem... Aí as coisas mudam. Fora que foi o
assunto da cidade quando tudo aconteceu. E eu só tinha quinze anos. Mas
nem sempre foi assim...

LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA

Estou brincando com minhas bonecas quando escuto de longe a


buzina do caminhão. O melhor som do mundo para mim. Largo tudo e
desço as escadas correndo.

― É ele! É ele! Ele chegou, mamãe! ― falo, enquanto passo


apressada por ela na sala.
Quanto mais se aproxima, mais festiva fica a buzina. Há essa hora já
estou no portão, esperando o caminhão apontar na esquina de casa. Quando
o vejo já começo a dar meus pulinhos de alegria e não paro até ele sair do
caminhão e me pegar no colo, jogar-me para o alto, passar a barba no meu
pescoço e me encher de beijos.

― Ai, papai, que saudade! Você demorou muito dessa vez.

Ele me coloca no chão enquanto dá um beijo discreto na minha mãe.

― Demorei não, foi só um pouquinho assim. ― Ele faz com o


indicador e o dedão.

― Foi não! Foi um tantão assim. ― Abro meus dois braços o


máximo possível.

― Nossa! Foi isso tudo?

― Foi! Um tempão!

― Ah, me desculpe, então. Você desculpa o papai?

― Desculpo. Mas você tem que ir falar logo com a “Margalida”, ela
também não aguentava mais te esperar.

Vejo-o olhando para minha mãe.

― Você esqueceu da “Margalida”, papai?

― Claro que não, princesa. Como vou esquecer justo da


“Margalida”? De jeito nenhum. Vamos lá falar com ela.

― Então corre, papai, você está muito lento.

Eu puxo a mão dele e nós dois entramos correndo pela casa até
chegar ao meu quarto. Pego minha boneca de pano em cima da cama e
entrego para ele.
― Aqui a “Margalida”, papai.

Ele pega ela no colo, joga para o alto, passa a barba no pescoço da
“Margalida” e ainda a enche de beijos.

― Você também estava com saudade de mim, “Margalida”?

― Claro que ela estava, papai, ela me disse.

― Agora eu voltei e vou ficar um tempão em casa, um tempão tão


grande que ninguém vai querer saber de mim mais.

― Impossível, papai! Por mim, você não viajava nunca mais.

― Mas o papai tem de trabalhar, meu amor.

― O pai da Aninha trabalha e ela vê ele todo dia.

― O pai da Aninha não é caminhoneiro.

― E por que você é caminhoneiro?

― Eu prometo que o dia que o papai conseguir guardar um dinheiro,


eu vou comprar um terreno bonito e começar a plantar rosa. É o grande
sonho do papai, sabia disso?

― Não.

― Pois é. Aí, quando esse dia chegar, não vou precisar mais viajar e
ficar longe de você.

― Mas vai demorar muito? ― pergunto meio desanimada.

― Para quê?

― Para esse dia chegar?

― Ah, vai! E você tem de crescer um pouco. Quem vai ajudar o


papai se não for você? Para uma missão importante dessa tem que ser a
melhor amiga dele.

― Eu sou sua melhor amiga?

― Claro que é! Só não conta para a “Margalida” ― diz ele bem


baixinho para ela não escutar e ficar com ciúmes.

― Pode deixar. É nosso segredo ― eu respondo rindo. ― Mas você


promete que esse dia vai chegar?

― Prometo!

― Jura de dedinho?

― Juro de dedinho. Agora vamos almoçar que seu pai está morrendo
de fome. Sou capaz de comer toda a comida se você não chegar a tempo ―
ele fala e desce as escadas correndo.

― Não fala isso, papai. ― Eu corro dando gargalhada atrás. ― Deixa


um pouquinho para mim, mamãe falou que estou em fase de crescimento.

― Eu também estou, olha o tamanho da barriga do papai. ―


Chegando à cozinha ele mostra a barriga levantando a camiseta.

― Não é da barriga que eu estou falando.

Depois disso eu tento esquecer esse assunto. Não quero pensar que a
qualquer dia ele ia embora de novo. Quero ficar ali brincando com ele para
sempre.

DIAS ATUAIS

Difícil lembrar que meu melhor amigo virou meu pior pesadelo.
Minha maior mágoa. E que suas promessas não valeram de nada.
7

MANUELA

Começo de mês é sempre a época mais complicada na floricultura,


com exceção das datas comemorativas, claro. Os boletos se acumulam e
preciso fazer um pequeno malabarismo para dar conta de deixar tudo em
dia. A loja é nova, o movimento aumenta aos poucos, mas ainda é muito
cedo para tirar grandes lucros dela.

Apesar do começo difícil, já posso contar com a ajuda de uma


funcionária, o que facilitou muito minha vida. Não gosto de me sentir presa
o dia todo, preciso de um tempo só para mim, às vezes, dar uma respirada.
A falta que sinto do Samuca tem hora que é sufocante. Era para ser nosso
projeto. Nosso futuro. Ele não tinha o direito de deixar tudo nas minhas
costas. Então, com a ajuda de uma pessoa fica um pouco mais fácil.

E assim como todo mês, temos um compromisso. Todo dia primeiro


um mesmo cliente faz um pedido especial. Encomenda sempre as mesmas
rosas e pede para que deixemos no cemitério, no túmulo de sua esposa. É
sempre a pior parte do meu dia. Odeio ter de voltar àquele lugar. Mas ao
mesmo tempo não gosto de deixar essa responsabilidade a cargo de minha
funcionária. É algo que deve ser feito por mim, não sei explicar o porquê de
pensar assim. Mas é um pedido tão específico que preciso atender da
melhor forma possível.

O cliente não é de falar muito. Acho até que nunca se identificou.


Também não faço questão de perguntar. Sinto algo em comum na sua voz.
Uma dor característica. A mesma que me acompanha todos os dias quando
acordo. O falecimento de sua esposa é recente, de acordo com a data na
lápide. Um pouco antes da de Samuca. Poucos meses de diferença. Talvez
ele esteja ainda tão perdido quanto eu. Porque não vejo muito sentido levar
flores todo mês se nem é ele que vai lá. Não existe mais nada lá, apenas um
vazio frio e silencioso. Mas quem sou eu para falar alguma coisa. Sigo seu
pedido à risca e dirijo até o cemitério.

Para a minha sorte o túmulo fica no lugar oposto ao de Samuca, o que


me permite nem ter de passar por perto. Retiro os restos do buquê antigo e
algumas folhas secas que insistem em ficar por ali e deposito ao lado da
lápide no chão o buquê do mês.

― Você devia mesmo gostar dessas flores. Ele nem muda o pedido.

Converso com a falecida.

― Ou talvez ele queira te dizer algo. Principalmente por se tratar de


uma rosa tão específica. Rosas azuis. Como não existem naturalmente,
sendo fruto do cruzamento genético de diversas espécies, representam o
inatingível. Então não sei ao certo o que ele quer dizer com isso. Mas,
certamente, o que vocês tinham era especial. Único. Talvez esteja aí a
resposta de tudo. O amor inatingível que tinham um pelo outro.

Passo os dedos delicadamente nas pétalas.

― Enfim! Não sei por que estou aqui divagando com alguém que
nem existe mais. Que nem aqui está. Só posso estar maluca mesmo. Ou
pode ser o cansaço desses últimos acontecimentos em minha vida. Só
espero que onde quer que você esteja, possa saber o que ele ainda faz. Não
é fácil ficar viva quando tudo em volta foi destruído. Você pelo visto
também foi cedo demais. Não foi muito justa com ele. Não deveria ser
assim. Vocês levam tudo de nós e somos obrigados a simplesmente seguir
em frente. É cansativo. Doloroso. E injusto.

Limpo minha calça após me levantar do chão.

― Ele parece ser um bom homem. Não é de falar muito, é verdade,


mas parece ser um cara legal. Não são todos que fariam o que ele faz por
você. Acho que Samuca até faria. Ele era romântico assim. Fazia tudo por
mim.

Paro um pouco perdida no meu devaneio.


― Ele me deixou tanto dinheiro de seu seguro de vida que nem sei o
que fazer. Não me parece certo, sabe? Tanto dinheiro, mas sem ele. Não sei
o que fazer. Queria tanto que fosse diferente. O acidente deveria ter sido
comigo e não com ele. Ele merecia mais da vida, muito mais. O que te resta
agora são suas rosas enquanto ficamos com todos os cacos de tudo o que
ficou pra trás e de tudo o que poderia ter sido. Provavelmente volto mês que
vem. Então, até lá.

Caminho de volta para meu carro com um peso no corpo que não sei
de onde veio. Dirijo calmamente para a floricultura quando no fundo queria
dirigir para bem longe de tudo.

Assim que passo pela porta da entrada, encontro minha mãe sentada
atrás do balcão.

― Você foi vê-lo dessa vez? ― ela pergunta.

― Não sei do que você está falando ― finjo-me de desentendida,


afinal, ela faz essa pergunta todo começo de mês, pois sabe da minha
encomenda especial.

― Seu marido.

― Não sou casada. Meu noivo não apareceu, você esqueceu?

― Tem dia em que é difícil conversar com você, hein, minha filha.

― Posso dizer o mesmo.

― Talvez você se sentisse melhor visitando seu túmulo. Conversando


com ele. Falando o que se passa dentro de você.

― Você sabe muito bem o que penso sobre conversar com um


túmulo.

Mal sabia ela que acabava de voltar de uma conversa longa com a
falecida esposa do meu cliente misterioso. Mas ela não precisava saber de
todos os detalhes.
― Conversar com ele poderia ajudar um pouco. Você sabe que eu
faço isso até hoje, me faz me sentir um pouco menos sozinho. Você
realmente deveria tentar.

― Não sou maluca. ― Tudo bem, talvez eu seja um pouco. Acho que
no fundo todo mundo é, mas não vou entrar nesse mérito da questão com
ela. Não quero complicar mais as coisas. ― Esquece esse assunto, mãe. Fui
lá apenas para fazer meu trabalho. E só. Se a senhora vai aparecer aqui todo
dia primeiro para me perguntar isso vai perder seu tempo. E o meu também.

― Você é mesmo cabeça-dura. Nunca vi. Mas se é assim que você


quer, não vou mais insistir. Só não diga que eu não tentei te ajudar.

Nisso escuto a porta da floricultura abrindo. Olho e só vejo problema.


Parece que minha vida se resume a isso agora. Minha ex-sogra mais uma
vez. Visita dela nunca é sinônimo de coisa boa. Minha mãe já sabendo disso
me olha e pergunta:

― Quer que eu fique mais um pouco?

― Não, está tudo bem. Pode ir. Mais tarde eu te ligo.

Ela se despede de mim, cumprimenta a dona Sônia e vai embora.

― Oi, Manuela, a gente pode conversar?

Ela parece mais séria do que o normal. Ou talvez seja uma


implicância minha, afinal, nunca foi muito simpática comigo. Mas após sua
última visita, achei que nós não nos veríamos tão cedo. Será que ela
esqueceu que me disse que eu deveria ter morrido no lugar do filho dela? E
agora vem com essa cara de pau maior do mundo querendo conversar
comigo.

― É claro! Pode me acompanhar até o escritório.

Deveria responder que não, que tenho muito serviço para fazer, mas
não consigo fazer isso sabendo que ela é a mãe do Samuca. Acho que devo
isso a ele. Vamos ver o que vem dessa vez.
Entramos no escritório e nos sentamos.

― Não se preocupe, não pretendo tomar muito do seu tempo.

― Tudo bem, pode falar.

Ela se ajeita na cadeira, parecendo meio desconfortável com o


assunto que veio trazer. Mas por fim acaba falando:

― Você sabia que Samuel congelou o sêmen dele?

Olho para ela, espantada. Jamais imaginei que esse seria o assunto.
Claro que eu sabia que de uma forma ou de outra se tratava do Samuca, mas
nunca isso. Sêmen congelado? Quando foi que ele fez isso? Nunca
conversamos a respeito. De onde ela tirou essa história?

― Não. Ele nunca mencionou essa história comigo. Como a senhora


descobriu isso?

― Estava mexendo no escritório dele. Encontrei um cofre. Depois de


arrombá-lo me deparei com diversos documentos nele. E um se tratava
disso, de sêmen congelado na clínica Alfagen.

― Bem, a clínica é muito respeitada, mas sobre o que ele fez,


realmente, não fazia ideia. Acho que estou tão surpresa quanto a senhora.

― Eu estava me sentindo tão triste quando resolvi entrar no


escritório. Lá ainda tem o cheirinho dele. Foi quando, sem querer, eu
descobri o cofre. Foi um sinal. Foi ele me dizendo que nem tudo acabou.

Continuo olhando para ela, mas prefiro ficar quieta. Não quero ter de
falar que ele não pode fazer nada lá de cima. Que isso não passa de ilusão
de sua mente. Só tenho medo de saber aonde ela quer chegar com toda essa
história. Por que me procurou para me contar isso se nunca gostou de mim.

― Meu filho me deixou um presente. Ele pode ter ido embora, mas
agora podemos ter um pedacinho dele aqui.
Como assim, um pedacinho dele aqui? O que ela está querendo que
eu faça?

― Você não parece feliz em saber que pode ter um filho do meu
filho?

― A senhora quer que eu tenha um filho do Samuca? Agora?

― É claro! Por que não? Achei que você ficaria tão feliz com a ideia
quanto eu. Afinal, você amava ou não Samuel?

Nessa hora a vontade que me dá é de mandá-la para aquele lugar.


Mordo minha língua, respiro fundo e tento explicar.

― Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É claro que eu o amo.
Nem é no passado. Eu ainda o amo. Não é um sentimento que morre do dia
para a noite. Mas isso não significa que eu queira ter um filho sem um pai.

― Eu te ajudo a sustentá-lo. Prometo que nada vai faltar para essa


criança, afinal, será meu neto também, um pedacinho do meu filho
novamente.

― Não é apenas uma questão de dinheiro. Não sei se era isso que
Samuca ia querer também.

― Claro que era. Ele deixou para você.

― Como assim, para mim? O sêmen não pode ser usado por outra
pessoa?

Ela me olha, mal-humorada, e responde:

― Não! Se pudesse eu nem estaria aqui. Você sabe que eu nunca


escondi o que penso a seu respeito. E nós nunca tivemos um bom
relacionamento. Mas estou disposta a deixar tudo isso de lado para ter meu
neto. Se você preferir, eu crio a criança, você só precisa gerar. Eu faço todo
o resto.
― Pouco importa se a criança vai ter um pai ou uma mãe. Desde que
você tenha um pedaço do seu filho novamente.

― Não é bem assim. Eu posso ser a mãe dele. Posso ser tudo para
ele. Só não posso gerá-lo. Para isso, infelizmente, dependo de você.

― A senhora só pode estar de brincadeira. Ou louca.

― Louca é você que se recusa a ter esse presente que meu filho nos
deixou.

― Olha, para mim chega! Não vou mais discutir esse assunto com a
senhora. Um filho não é um brinquedo novo que a gente compra numa loja
de um dia para o outro. Envolve muita coisa e eu não me sinto pronta para
fazer isso agora.

Ela me olha, contrariada, quando me vê levantando e indo em direção


à porta do escritório.

― Tudo bem. Não precisa se decidir agora. Como eu disse, eles estão
congelados, podem esperar.

Nisso ela se levanta e retira da bolsa uns documentos. Depois os


coloca em cima da minha mesa.

― Vou deixar com você todos os documentos que encontrei a


respeito do assunto. Tudo que você vai precisar está aqui. Espero que mude
de ideia, porque pelo Samuel vale a pena.

Ela passa por mim e nem se despede. Fecho a porta assim que ela sai.
Sinto um misto de emoção. Um alívio por estar, finalmente, livre dela e
uma angústia, um aperto no peito com toda essa história. Passo a mão na
minha barriga e me lembro do sangramento que tive uma semana após o
acidente de Samuca. Fui ao hospital e fico sabendo que estava tendo um
aborto espontâneo por estresse.

Sim, estava grávida e nem sabia. Aquele acidente não me tirou só o


amor da minha vida, também me tirou aquele pedacinho dele que ela tanto
fala. Não posso lidar com tudo isso novamente.
8

LUCCA

Todo dia primeiro do mês é um dia importante para mim. Não foi o
dia em que a perdi, mas é um dia que reservo para me lembrar do quanto
ainda a amo. Sei que ela se foi e que não faz muito sentido provar nada a
Cris, mas é como se parte dela ainda vivesse dentro de mim desde o dia em
que ela entregou seu coração para mim e eu entreguei o meu para ela. É o
dela que bate aqui dentro de mim, o meu ela simplesmente levou embora.

Rosas azuis. Tão raras como nosso amor. Nossa amizade. Nosso
relacionamento. E tão lindas quanto tudo isso.

A gente se conheceu ainda na adolescência. Ela foi a única mulher


que tive nos braços. A única a qual eu desejei. E agora só me resta seu
cheiro em suas roupas. Um cheiro que se perde a cada dia.

Não sei o que fazer com tanto amor que ainda existe em mim. Por
isso reservo esse dia para me conectar a ela e tentar extravasar um pouco
tudo o que sinto. Mas esse mês está um pouco complicado para cumprir
meu ritual porque estou de plantão no meu serviço. Não posso
simplesmente abandonar tudo e ir ao cemitério. É meu trabalho que me
mantém vivo nesses últimos meses. Foi ele também que me tirou ela, afinal,
se eu não tivesse de plantão ou se tivesse chegado a tempo nada disso teria
acontecido. É um sentimento muito contraditório. Mas é por causa dele que
levanto todas as manhãs.

Já liguei para a Floricultura Orsini e fiz minha encomenda. Eles


fazem sempre um ótimo trabalho. Fazem o buquê de rosas azuis mais
bonitos e depositam no túmulo da Cris. Gosto de imaginar seu sorriso todo
mês quando as flores chegam.
Hoje quando consegui passar para visitá-la já era bem mais tarde do
que o de costume. Convenci meu parceiro de plantão a dirigir a ambulância
até o cemitério e me deixar lá enquanto não tínhamos nenhum chamado.
Mas sabia que podia ser interrompido a qualquer momento pelo rádio.

As flores já estavam lá, como esperado. Lindas como sempre.

― Desculpa a demora, eu juro que tentei vir antes, mas estou de


plantão, esses dias são sempre mais apertados ― disse, sentando-me no
chão. ― Eu sei, não me olha assim.

Fecho meus olhos e esboço um sorriso imaginando seu olhar de


repreensão.

― Eu sei que você não quer que eu fique voltando aqui. Quer que eu
siga minha vida, mas eu estou tentando, juro que estou. Mas é mais fácil
para você que se foi do que para mim. Eu olho para o lado e tudo faz me
lembrar de você. Como eu faço? Ainda bem que nosso bebê se foi com
você. Como eu cuidaria de tudo sem você para me ajudar? Eu mal consigo
cuidar de mim. É tudo tão difícil, tão sem sentido. Eu não lembrava como a
vida é sem graça sem você.

Respiro fundo por uns instantes.

― Lembro-me de você falando um dia que se você morresse primeiro


era para eu encontrar uma mulher bem bonita para me casar novamente.
Você tem noção do quão inconcebível é isso? Já era naquela época que
falava, imagina agora. Não sei como vou conseguir fazer isso um dia. Tudo
bem que é horrível estar sozinho naquela casa. Sem ninguém para
conversar. Sem ninguém para sentir. Não sei também se queria alguém ou
se só queria você.

Sem dúvida é ela quem eu quero.

― Não venha com essa que se eu trabalhasse menos eu já estaria com


alguém. Não funciona assim. Se eu trabalhasse menos, com certeza já
estaria maluco. E, por falar em trabalho, recebi uma proposta de promoção.
Eles querem me transferir para a capital. Talvez nem trabalhasse tanto e
ainda tivesse um salário bem melhor. Agradeci a oportunidade, claro, mas
disse que precisava pensar. O que não passa de uma desculpa. Minha
resposta será não.

Fora de cogitação dizer o contrário.

― Como vou te deixar aqui? Deixar nossas lembranças naquela casa.


Ainda consigo te ver na cozinha com aquela camisetona. E seu cheiro? Sim,
alguns cômodos ainda cheiram a você. Cada vez menos, é verdade, mas
ainda te sinto lá. Como vou ignorar tudo isso? Não consigo, amor, não
consigo. Nossa vida ainda é aqui.

Nesse momento sou chamado no rádio. Temos uma emergência.

“Uma mulher grávida caiu no banheiro e parece que está com um


grave sangramento.”

Meu coração dispara. Sinto um gosto amargo na boca. Minhas pernas


fraquejam. Será que estou ficando louco ou tudo está se repetindo? Olho
para o lado e o túmulo da Cris está bem na minha frente, nada mudou. Não
voltei no tempo nem nada e não acredito estar sonhando.

― Vamos, cara, temos de sair logo daqui, você escutou a chamada.


― Escuto meu parceiro no rádio.

É real. Não é a Cris. Ela está mesmo morta. Tenho um chamado


aparentemente idêntico ao que matou a mulher da minha vida. Será que vou
chegar a tempo dessa vez? Não posso perder outra mulher nessas mesmas
condições, mesmo sendo uma completa estranha. Eu vou conseguir. Não
vou decepcioná-la como fiz com minha esposa. Não pode acontecer de
novo.

Levanto correndo, mas não sem antes me despedir:

― Tchau, meu amor, eu preciso mesmo ir. Volto mês que vem. ― E
dou de sair, até que paro e volto. ― Eu sei que você não quer que eu volte,
mas ainda não consigo. Tenha paciência comigo, por favor! Eu vou sair
dessa, prometo. Beijo.
Agora, sim, saio correndo em direção à ambulância estacionada do
lado de fora do cemitério.

― Por que você demorou tanto, você ficou maluco?

― Desculpa, cara, eu estava com problema de acreditar no chamado


do rádio. Não vai acontecer de novo.

― E por que não acreditar?

― Desculpe, não posso falar disso agora, não agora. Mas já disse,
não vai acontecer de novo, que droga. Agora dirija mais rápido, não posso
perder essa mulher.

― Você a conhece?

― Não.

Ele olha para mim cada vez mais confuso. Realmente estou
parecendo um maluco. Para quem não sabe da minha esposa pareço não
falar nada com nada.

― Você está bem? ― ele insiste.

― Estou... Quer dizer, não muito... É complicado. Por favor, não me


peça para explicar agora! Só dirija logo essa ambulância.

― Estou dirigindo, droga! Você sabe que não posso ir mais rápido do
que isso. Quer nos matar?

― Não! Esse é exatamente o problema. Não quero que ninguém


morra hoje. Não assim. Não posso. Não vou suportar. Não de novo.
9

MANUELA

Depois que minha sogra vai embora da floricultura e me faz pensar


em coisas que quero tanto deixar para trás, não tenho mais cabeça para
continuar trabalhando. A possibilidade de ainda poder ter um filho de
Samuca mesmo que ele não esteja mais vivo é tão maluca e surreal que não
sei nem como pensar nisso.

Como pode parecer tão simples para ela o fato de colocar uma criança
no mundo que não terá um pai? Ela só terá referência do homem que ele era
pelas lembranças de terceiros. Só o verá por fotos e vídeos.
Definitivamente, não quero colocar uma criança no mundo desse jeito.

Deixo a floricultura aos cuidados da funcionária e vou para casa. Pelo


menos, pensei que ia. Assim que paro o carro na porta do meu prédio
começo a mudar de ideia. Não quero ficar sozinha com esse turbilhão de
pensamentos.

Ligo o carro novamente e dirijo a casa da minha mãe. Por mais que a
gente pense diferente, ela não deixa de ser minha mãe.

― Está tudo bem, minha filha? – pergunta ela assim que entro.

― E por que não estaria? ― Finjo-me de desentendida.

― Há essa hora a floricultura deveria estar aberta.

― E quem disse que ela não está?

― Agora estou ainda mais curiosa. Você está aqui em casa enquanto
a floricultura está aberta. Boa coisa não deve ter acontecido. E algo me diz
que tem tudo a ver com a visita da sua sogra.

― Ex-sogra.

― Que seja! O que ela aprontou dessa vez?

― Nem no seu dia mais criativo a senhora descobriria.

― Acho que agora estou até com medo de saber.

Pego uma caneca de café na cozinha e nos sentamos ali mesmo.

― Ela quer que eu tenha um filho do Samuca.

Minha mãe me olha como se eu fosse maluca.

― Não, a senhora não ouviu errado. É isso mesmo. Ela descobriu que
Samuca congelou o sêmen dele, mas só autorizou que eu usasse. Nenhuma
outra mulher pode gerar esse filho a não ser eu.

― E por que ele fez isso?

― Não faço ideia. Nunca conversamos a respeito. É tão mórbido que


parece até que ele já sabia que ia morrer.

― Isso é impossível, minha filha!

― É claro que é, mãe, foi só uma maneira de dizer.

― E o que você vai fazer a respeito?

― Nada! O que mais eu poderia fazer? Aquela mulher só pode estar


bem louca se ainda tem alguma esperança de ter um neto dessa forma. Nada
contra quem faz isso, mas eu nunca quis ser mãe desse jeito.

― Você não acha que seria bom ter uma continuidade do amor de
vocês em casa, mesmo que não tenha mais Samuca?
Olho para ela, incrédula. Não acredito que só eu sou contra a essa
ideia.

― O que foi? Não deixa de ser uma possibilidade, Manu. Nem todas
as mulheres podem ter essa chance que você está tendo.

― Nossa! Como eu sou sortuda, não é mãe?

― Não estou falando isso, você entendeu muito bem, mas ama
distorcer tudo o que eu falo. Só estou dizendo que, talvez, ter um filho dele
possa te ajudar a passar por toda essa perda.

― Pensa no quanto vai ser difícil olhar para essa criança e me


lembrar do Samuca toda vez. Como vou superar alguma coisa desse jeito?

― Tudo bem, minha filha, só você pode tomar essa decisão. Saiba
que vou te apoiar seja ela qual for. Eu só acho que ter um filho é uma
dádiva de Deus.

― Não depois que o pai da criança já morreu. Pelo menos, não para
mim.

― Entendo você, não vou mentir. Criar uma criança sozinha não é
nada fácil. Depois de tudo o que aconteceu com...

― Não! Não começa com esse assunto de novo!

― Eu só ia dizer que...

― Já disse que não, mãe. Por favor! A senhora não pode comparar a
minha situação com a sua.

― Não estou comparando. Só queria reafirmar o quanto eu sei como


é difícil. Não desejo o que passei para ninguém, mas ao mesmo tempo, ter
você em minha vida me dava forças para levantar da cama todos os dias. E,
talvez, seja essa força que você precisa.

― Não sei, mãe. Acho que não consigo. Fora o medo que eu tenho de
perder de novo.
Ela me olha, espantada. É nesse momento que percebo que falei
demais.

― Como assim, Manuela?

― Como assim, mãe? Só quis dizer que não vou conseguir passar por
uma gravidez desse jeito. ― Tento fugir do assunto.

― Não. Não foi isso que você falou. Disse que tem medo de perder
“de novo”. Quero saber como assim “de novo”.

Olho para ela e dou por vencida.

― Tudo bem, já estava na hora da senhora saber mesmo.

― Saber o quê? O que você estava me escondendo esse tempo todo?

― Não estava escondendo, só não estava pronta para falar desse


assunto.

Ela continua a me olhar com surpresa, esperando o resto da história.

― Uma semana depois da morte do Samuca eu tive um sangramento.


Fui ao hospital e descobri que estava tendo um aborto espontâneo causado
por estresse. Desculpa não ter te contado antes.

Vejo seus olhos se enchendo d’água. Sabia que seria difícil para ela,
ficar sabendo disso.

― Não precisa ficar assim, mãe. Estou bem agora. Fica tranquila.

― Por que você não me contou, minha filha? Passou por tudo isso
sozinha?

― Como eu disse, não estava pronta para falar desse assunto. Foi um
misto de emoções saber que estava grávida no mesmo momento em que
também perdia o bebê. Não sabia como falar disso. E toda vez que eu
pensava a respeito mais a morte do Samuca me machucava.
― É claro que machucaria, era o filho dele. Não sei nem o que te
dizer. Sinto muito por não ter estado ao seu lado.

― Não sinta, a culpa foi minha. Não contei para ninguém.

― Venha aqui. ― Ela, então, me puxa para aquele abraço gostoso


que só mãe sabe dar.

Meus olhos se enchem d’água por me lembrar de como foi difícil


passar por tudo aquilo. Não sei ao certo se teria sido melhor que a gravidez
vingasse, afinal, cuidar de um filho ou filha do Samuca do jeito que eu
estou não seria nada fácil.

― Eu sei que um pai faria muita falta, mas saiba que você não estaria
sozinha. Estou ao seu lado para tudo.

― Obrigada, mãe! Sei que posso contar com a senhora. Só não quero
que meu filho sinta o que eu senti em relação ao pai.

― Você teve um pai.

― Sim, e depois ele fez a escolha de sair de nossas vidas. E desde


então ficou um vazio em mim. Não quero esse vazio no coração de um filho
meu.

― Você precisa tratar isso. Curar essa ferida. Seu pai amava você
mais do que tudo nessa vida, não gostaria de saber que você ainda sofre
tanto com isso.

― Se fosse verdade, ele ainda estaria aqui.

― Manuela...

― Por favor, mãe. Não vamos mais falar dele. O dia de hoje já foi
difícil o suficiente. Não vamos torná-lo ainda pior.

― Tudo bem, mas um dia você ainda vai ter de superar tudo o que
aconteceu. Só assim terá o coração leve para ser feliz de verdade.
― É... Quem sabe um dia?
10

LUCCA

Chegamos o mais rápido possível ao endereço informado para o


socorro. O marido da vítima está na rua, desesperado. Eu sei muito bem o
que ele sente. É um sentimento de impotência, de não ser bom o bastante,
de querer trocar de lugar com ela.

― É por aqui! Venham logo!

Subimos, então, as escadas correndo e encontramos a mulher no


banheiro com um sangramento na cabeça. Ela escorregou ao sair do banho e
bateu forte a cabeça na beirada da banheira.

― Fiquei com medo de movê-la e piorar no lugar de ajudar, quem


sabe até causar mais algum dano.

― Você agiu certo, fique tranquilo ― diz meu parceiro enquanto eu


me ajoelho ao lado dela e já preparo um curativo.

― Meu bebê! Meu bebê! Ele está bem? Por favor, olhe ele primeiro,
por favor! ― repete a mulher, apavorada.

Em nenhum momento ela demonstrou qualquer preocupação com ela.


Só conseguia pensar na criança em sua barriga.

― Vou olhar, fique tranquila. Só me deixe conter este sangramento e


já vou cuidar do seu bebê. ― Tento acalmá-la.

― Não! Você precisa olhar meu bebê primeiro!

― A senhora está perdendo muito sangue. Quanto mais rápido eu


estabilizá-la melhor será para seu bebê. Confie em mim e fique calma, por
favor!

Não posso contar a ela que já vivi este mesmo acidente com minha
esposa, mas que no caso dela não fui rápido o bastante. Preciso que ela
confie em mim e que me deixe trabalhar. Não posso perdê-la também. Não
assim!

Contenho o sangramento e logo pego o estetoscópio para tentar ouvir


os batimentos do bebê. Não sei se é o nervosismo com todas as
coincidências dos acidentes, mas demoro a encontrá-lo. A mãe fica cada
vez mais aflita olhando para mim em busca de notícias.

Finalmente! Sinto meu próprio coração voltar a bater quando escuto o


bebê.

― Ele está vivo! Ele está aqui! As batidas estão em ritmo normal! ―
falo ao mesmo tempo em que sinto meus olhos se encherem de lágrimas.

― É “ela” ― diz a mulher emocionada também. ― É uma menina,


vamos ter uma menina!

― Ótimo! ― Sorrio. ― Vamos levá-la logo ao hospital para que os


médicos possam olhar melhor a menininha de vocês.

― Obrigada! Muito obrigada! ― diz a mãe agarrada em minha mão.

― Está tudo bem, não precisa me agradecer. Só fiz meu trabalho.


Agora nós vamos colocá-la na maca para levarmos até a ambulância.

Meu parceiro entra atrás com ela, assim como o marido, e eu vou
dirigindo. Minha mente está a mil por hora. Tento me concentrar o máximo
possível para chegarmos com segurança ao hospital e o quanto antes.

Depois de tudo resolvido e de ter preenchido toda a papelada do caso,


peço uns minutos a sós para colocar minha cabeça no lugar. Não consigo
entender o porquê da minha esposa não ter sobrevivido. Ela merecia essa
chance, assim como a mulher de agora. Desejou tanto aquela gravidez, mas
tanto!
Claro que estou feliz pela moça de hoje ter sobrevivido, mas por que
a mesma coisa não aconteceu com Cristiane? Por quê, meu Deus? Sei que
não devo questioná-lo, mas sinto tanto a falta dela que chega a doer no meu
peito. É muito difícil continuar sozinho a vida de onde paramos. Não
consigo enxergar qual o sentido.

― Precisamos ir, cara, temos outro chamado, você ouviu.

Sou interrompido em meio ao meu lamento que nunca me leva a


lugar nenhum.

― Tudo bem, vamos lá!

― Você está bem, Lucca? ― questiona Caio.

― Estou. Claro!

― Você sabe que mente mal? E sabe como eu sei disso?

― Como? ― pergunto em meio a um sorriso discreto.

― Porque sou seu melhor amigo e sei tudo sobre você. ― Ele ri
também.

― Isso é esquisito, você sabe não é? ― Sorrio novamente.

― Eu sei, mas quem liga?

Olho para ele com admiração e sou obrigado a concordar.

― É, quem liga?

Entramos na ambulância e seguimos para o chamado.

― O acidente de agora.

― O que tem ele? ― Caio pergunta, confuso.


― No dia em que Cris morreu. Eu estava cobrindo o plantão do
Sérgio que precisou ir a uma reunião na escola do filho.

― Sim. Eu lembro.

― Foi exatamente assim. Como o de agora.

Ele me olha e continua dirigindo, deixando que eu continue a história.

― Ela caiu ao sair do banho e teve um ferimento muito grave na


cabeça. Não teve a mesma sorte daquela moça.

― Não sabia direito os detalhes. Você nunca me contou e achei que


gostaria que ficasse desse jeito.

― Sim, não gosto de falar daquele dia. Estou te contando agora


porque você, além de ser meu parceiro, é meu melhor amigo. Tem o direito
de saber. Foi por isso que fiquei tão estranho nesse último chamado. Parecia
que estava vivendo tudo aquilo de novo.

― Sinto muito, cara! Agora entendo porque foi tão difícil para você.

― Tudo bem. O que importa é que você já sabe agora.

― Estou sempre aqui. Você sabe.

― Sim, eu sei. Obrigado!

Chegamos ao próximo chamado e o assunto foi encerrado. E assim


preciso continuar, salvando uma vida após a outra, mesmo quando a pessoa
mais importante da minha vida não pôde ser salva.
11

MANUELA

Volto da casa da minha mãe, esgotada. O dia de hoje foi muito cheio.
Toda essa história de bebê sugou o pouco de energia que eu tinha. Quero
poder voltar no tempo e apagar da minha vida tudo o que aconteceu depois
que vesti meu vestido de noiva e fui à igreja para fazer uma coisa que jurei
que jamais faria: casar!

Vou à geladeira à procura de algo que amenize meus pensamentos,


meu dia... Minha dor. A única coisa que encontro é uma garrafa já aberta de
vinho tinto. Vai ter de ser isso mesmo. Encho uma taça e fico encostada na
bancada da cozinha enquanto aprecio cada gole.

Quanto mais eu bebo, mas as memórias voltam e mais dor de cabeça


eu tenho. Tínhamos tantos planos, tantas viagens programadas. Tudo
cancelado por conta de uma fração de segundos. E como se não bastasse
tudo o que já estou passando, agora tem mais essa, a possibilidade de ter um
bebê do homem que amei e que foi tirado de mim.

― Como você pode pensar que eu colocaria uma criança no mundo


para crescer sem pai, Samuca? ― grito. ― Você mais do que ninguém sabe
exatamente o que isso significa para mim. Que droga! Você não tinha esse
direito! ― Jogo a taça com vinho na parede mais próxima. ― Não tinha
esse direito! Não tinha!

Desabo aos prantos no chão, sem força para mais nada.

Choro copiosamente. Tento tirar do meu peito toda aquela dor que me
atormenta há tantos anos. Vencida pelo esgotamento emocional me arrasto
até minha cama. Fecho os olhos e torço para cair logo no sono. Não aguento
mais o dia de hoje.
Como há tempos não acontece, sonho com meu pai. Volto àquele
fatídico dia em que tudo mudou para sempre.

TREZE ANOS ATRÁS

Acordo com um dia bonito, como a maioria dos dias em Roseta. O sol
já raia forte em minha janela. Adoro acordar assim, apenas com o dia me
chamando e não com aquele bendito despertador. Hoje, para minha alegria,
é feriado, então, nada de escola. Não vejo a hora de ir para o ensino médio
no ano que vem, mas nada é ainda melhor do que um feriado prolongado.

Desço para tomar meu café da manhã e já procuro meu pai. Ele anda
muito estranho desde o dia em que perdeu o emprego de caminhoneiro na
empresa em que trabalhou desde antes de eu nascer. Está triste, quieto e
vive sozinho naquele jardim.

― Onde está meu pai?

― Exatamente onde você acha ― minha mãe responde enquanto


tenta disfarçar sua preocupação com o estado dele.

― No jardim!

― É.

Encho uma xícara grande de café e resolvo tomar ao lado dele.


Sempre desejei que ele ficasse mais tempo em casa, já que sempre foi meu
melhor amigo, meu herói, meu tudo. Só não imaginei que seria tão triste ter
esse sonho realizado. Suas viagens a trabalho pareciam intermináveis para
mim, principalmente quando eu ainda era criança. A saudade sempre foi
uma visita frequente.

― Bom dia, pai!

― Bom dia, princesa!


― Queria já poder cumprir com aquela promessa que te fiz.

Ele me olha confuso sem entender muito bem do que estou falando.

― Que promessa, minha filha?

― Aquela que eu te ajudaria a plantar rosas para o senhor não


precisar viajar tanto.

Ele abre um sorriso tímido.

― Você ainda se lembra disso?

― Nunca esqueço uma promessa.

― Você ainda é muito nova, tem muito que estudar. Não se preocupe
com essa promessa. Já faz muito tempo.

― Queria fazer algo para te ajudar. Não gosto de te ver tão triste
assim.

Ele me olha com um olhar de culpa. Parece que estou piorando a


situação do que ajudando. Sinceramente, não sei mais o que posso fazer.

― Vou dar um jeito nisso. Hoje mesmo. Você não vai precisar mais
me ver assim. Eu te prometo. ― Ele então me abraça forte e depois esconde
as lágrimas que escorreram de seus olhos.

Resolvo deixá-lo sozinho e vou para o meu quarto. O dia passa como
outro qualquer. Almoçamos juntos e depois resolvo tirar um cochilo.
Algumas amigas até me chamaram para sair um pouco, mas estou com
preguiça e prefiro ficar em casa.

Vou até a janela e abro a cortina. É nesse momento que sinto o chão
se abrindo debaixo dos meus pés. Fico, completamente, paralisada com o
que vejo. É como se meus olhos não acreditassem no que está bem diante
deles. Tento chamar minha mãe, mas minha voz não sai. Meu desespero
aumenta. Sinto dificuldade para respirar.
Minha mãe entra no quarto e fala alguma coisa comigo. Olho para ela
sem conseguir formar uma palavra e volto a olhar o jardim pela janela. Ela,
então, para ao meu lado e olha na mesma direção que eu.

― Meu Deus! ― grita e sai correndo pela porta.

Minhas lágrimas escorrem, mas continuo em estado de choque. Não


consigo ir atrás da minha mãe. É como se minhas pernas estivessem
amarradas ao chão.

Ela aparece correndo em direção ao meu pai que está pendurado por
uma corda na árvore que mais dizia gostar. Desesperada e um pouco sem
jeito, ela tenta levantar as pernas dele para diminuir a pressão em seu
pescoço. Nada acontece. Começa a chorar e fica perdida, sem saber o que
fazer.

― Socorro! Socorro! Alguém me ajuda! Por favor!

Escuto quando ela grita aos vizinhos na esperança de alguém aparecer


para ajudar. Nossa vizinhança é bem tranquila, um bairro bem familiar,
onde um sempre cuida do outro como se todos fossem membros de uma
grande família.

― Socorro! Por favor! Aqui no jardim! Meu marido precisa de ajuda


― insiste cada vez mais angustiada.

A porta da frente se abre e escuto alguém procurar por ela.

― Dona Ana! Sou eu, Pedro! Está tudo bem?

― Aqui fora! No jardim! Rápido!

Ele corre e também aparece do lado de fora.

― O que... Minha Nossa! ― Volta correndo para a cozinha e depois


aparece com uma faca grande na mão.

Enquanto minha mãe ainda tenta segurá-lo pelas pernas, Pedro se


apressa para cortar a corda e tirá-lo o mais rápido possível dali. Quando
conseguem, colocam meu pai no chão.

― Liga para a ambulância! Rápido! Meu celular não está aqui.

Ele olha para minha mãe sem dizer nada.

― Por favor, meu filho! Liga logo!

― Dona Ana, a senhora precisa se acalmar.

― Como vou me acalmar se acabei de encontrar meu marido


pendurado pelo pescoço na árvore do meu próprio jardim?

― Eu sei. Eu sei. Não sei nem o que falar para a senhora.

― Não é comigo que você tem de falar, meu rapaz, é com a


emergência.

― Dona Ana, não tem nada o que eles podem fazer aqui. Sinto muito,
mas já é tarde demais. O senhor Miguel faleceu.

― Ele não faleceu! Ele se matou! Ele não pode ter feito isso comigo,
ainda temos uma filha para terminar de criar. Como vou fazer isso sozinha?

Ela então se ajoelha ao lado dele e começa a socar seu peito na


esperança de fazê-lo voltar à vida.

― Acorda! Por favor, acorda! Você não pode me deixar assim! Não
assim! Por favor!

Pedro se ajoelha ao lado dela e, mesmo não sendo nenhum parente, se


compadece de sua dor, pois a abraça e tenta fazer o que deveria ser minha
tarefa: acalmá-la.

Ainda nessa posição, ele olha na direção da minha janela e me vê


parada lá. Sinto uma vergonha enorme. Um fracasso como filha. Não pude
ajudar meu pai e agora não sou capaz de consolar minha mãe. Ele disse que
daria um jeito nessa situação hoje. Mal sabia eu que esse “jeito” destruiria
não só a minha vida, mas deixaria meu coração completamente em pedaços.
DIAS ATUAIS

Sobressaltada, acordo completamente molhada de suor. Olho em


volta e custo a entender que tudo não passava de mais um pesadelo. Por
anos sofri com esse mesmo pesadelo, essa mesma lembrança. Fazia tempo
que não revivia isso. Queria poder acordar e pensar que nada daquilo
aconteceu e que não passa de mais um sonho ruim.

Pai e mãe são duas pessoas que deveriam viver para sempre. É muito
dolorosa uma vida sem eles. Sei que a situação financeira naquela época
estava muito complicada devido à demissão do meu pai, mas ainda assim,
para mim, nada justifica o que ele fez.

Minha mãe sempre fala que ele estava doente, e que pela criação que
teve dos pais dele, não sabia como pedir ajuda. Principalmente quando o
assunto era psicólogos ou psiquiatras. Um tabu muito grande enfrentado
pelas gerações anteriores.

Entendo que ele estava sofrendo. Entendo mesmo. Até porque, vi


com meus próprios olhos a dor que ele sentia por ficar em casa sem fazer
nada e recebendo uma recusa de emprego atrás da outra. Mas ele tinha uma
esposa. Uma filha. A gente precisava dele. Eu precisava dele, do meu
melhor amigo. Ainda não consigo perdoá-lo por ter me deixado dessa
forma.

Talvez, um dia, toda essa dor passe e eu consiga pensar nele como
aquele homem que tanto me inspirava e não como o pai que me deixou de
uma forma tão abrupta e cruel. Hoje, porém, vivenciando mais uma vez o
luto, perdendo mais uma vez um homem que tanto amava, não consigo
sentir outra coisa a não ser dor.
12

LUCCA

Alguns plantões sugam mais a nossa energia do que o normal. Tento


não levar as situações para casa e seguir com minha vida. Mas o que
aconteceu hoje é impossível deixá-lo da porta para fora. Reviver o acidente
da Cris daquela forma é algo que eu não imaginava viver. Pelo menos não
tão cedo.

Volto para casa sem vontade de fazer nada. Não quero comer. Não
quero tomar banho. Quero apenas fazer com que esse dia acabe logo. E
claro, também quero poder sentir seu abraço mais uma vez. Só ele seria
capaz de fazer toda essa dor passar.

Vou direto à cozinha e pego no armário uma garrafa fechada de


vodka.

― Eu sei, nem precisa me olhar desse jeito. Sei exatamente o que


você vai falar. Que beber não vai resolver nenhum dos meus problemas e
que ainda vai me deixar com uma baita dor de cabeça no dia seguinte.

Abro a geladeira e encontro uma caixinha de suco aberta. Misturo,


então, na vodka que já tinha colocado em um copo e acrescento bastante
gelo.

― Pode não resolver meus problemas e nem trazer você de volta, mas
sem dúvida vai me fazer dormir bem mais rápido.

Dou o primeiro gole e nisso escuto a campainha tocar. É muito raro


eu receber alguém aqui em casa, principalmente, depois que Cris faleceu.
Não quero que o perfume de ninguém interfira no cheiro que ela deixou
pela casa, um cheiro que some aos poucos à medida que o tempo passa.
― Já começou a beber sem mim? ― Caio pergunta assim que abro a
porta.

― Só um gole, mas ainda dá tempo de você me acompanhar. ― Abro


um leve sorriso.

Ele entra e vai direto para cozinha. Sempre foi uma das pessoas que
Cris e eu recebíamos em casa. Ele e sua esposa.

― No caminho para cá já encomendei uma pizza.

― Não precisava, cara, mal estou com vontade de comer hoje.

― Mas quem disse que é para você? Pedi porque eu estou com fome.
E a dona patroa não gosta que eu beba sem comer algo. Então, se eu quiser
continuar dormindo na minha cama, preciso seguir todas as regras.

― É, a sua dona patroa é brava mesmo. Melhor obedecer.

Sirvo a vodka com o suco e gelo. Pego meu copo de novo e ficamos
ali na cozinha mesmo, esperando a pizza chegar.

― Confesso que daria tudo para ter a minha “dona patroa” de volta
brigando comigo por coisas bobas ― falo olhando para o nada.

Caio permanece em silêncio.

― Ainda tenho dificuldades de entrar no meu banheiro. Olho para o


chão e tudo o que vejo é Cris com a cabeça ensanguentada. Fecho os olhos
para tentar tirar essa imagem da minha mente. Mas aí começo a escutar seus
gritos. Tudo o que ela falava naquele dia era sobre o bebê. Queria
insistentemente saber como ele estava. Foi igual hoje.

Caio apenas me olha.

― Foi tão difícil engravidar que achei que dessa vez tudo daria certo.
Mal sabia eu que perderia os dois ao mesmo tempo. E a culpa é toda minha.
― Pare com isso, irmão, você não poderia ter feito nada. Foi um
acidente. Você sabe disso.

― Eu trabalho no SAMU, cara! Eu tinha a obrigação de ter chegado a


tempo, pelo menos para minha esposa. Quando entrei no banheiro, ela já
tinha um pouco de sangramento no nariz e nos ouvidos. Logo em seguida já
começou a vomitar.

― Traumatismo craniano.

― É!

― Mais um motivo para você não se culpar, a gravidade do caso tem


a ver com o impacto, com a área afetada, e não necessariamente com o
tempo que levou o atendimento. E pior, ela poderia ter ficado com sequelas.

― As sequelas são o de menos, nós daríamos um jeito.

― De menos? Você parece que não conhece sua esposa. Ela não ia
querer viver com sequelas. Ainda mais sabendo que seria mãe em breve.

― Mas não é justo!

― Não! Não é! Eu sei.

Ficamos uns instantes em silêncio. Apenas bebendo. Mas a raiva vai


só crescendo dentro de mim. Uma culpa fora do comum. Levanto meio que
do nada e saio andando.

― Aonde você vai?

Finjo que não escuto e continuo andando em direção a garagem. Lá


encontro uma marreta grande. Ela deve servir.

― Você ficou maluco? O que vai fazer com isso?

Subo as escadas em direção ao banheiro onde tudo aconteceu. Olho


para a banheira pela última vez e dou a primeira marretada com toda a força
que tenho.
― Fui eu que escolhi colocar essa bendita banheira! Ela não queria.
Nunca quis.

Continuo com as marretadas.

― Se eu não fosse tão cabeça dura ela não teria se machucado.

Caio não tenta me impedir. Fica à porta apenas me olhando enquanto


eu deixo em pedaços aquela que ajudou a machucar fatalmente a mulher da
minha vida. Meu único amor. Minha melhor amiga.

― Chega! Já está toda destruída. Dá isso para mim. ― Pega a


marreta da minha mão. ― Vamos sair daqui. ― Segura pelo meu braço e
vai me guiando até a cozinha novamente.

Sinto como se estivesse anestesiado. Nem sei como minhas pernas


obedecem ao comando de andar. Desabo em uma das cadeiras que ficam
perto da bancada e volto para meu copo de vodka. Ainda descontrolado,
bebo um copo após o outro. Sem falar uma palavra.

Por fim, a pizza que o Caio pediu no caminho chega. Como apenas
uma fatia, assim mesmo por obrigação. Não quero ter que ouvir de ninguém
que preciso me alimentar. Mesmo que esse alguém seja meu melhor amigo.
Não estou no clima para sermão.

A hora já está avançada e por isso Caio precisa ir embora.

― Eu já vou, mas meu celular vai ficar ligado. Pode me ligar para
qualquer coisa, independente da hora.

― Obrigado! Não devo precisar, estou bem ― minto.

― Conta comigo, irmão! Para tudo!

― Eu sei! E, realmente, agradeço.

Assim que ele sai a casa volta a ter o silêncio dos terríveis últimos
meses.
― Fica tranquila, prometo que amanhã arrumo toda aquela bagunça
que fiz lá em cima.

Volto a conversar com Cris.

― Agora vai ficar do jeito que você sempre quis. Com bastante
espaço, inclusive. Justo agora que o espaço é o que menos preciso. Sinto
muito por não ter te ouvido antes.

Viro o resto da garrafa na boca e vou para o quarto.

― E, sim, amanhã cedo vou tomar café com o que sobrou da pizza.
Não posso deixar estragar. Então, por favor, feche os olhos ou finja que não
vai ver.

Deito na cama me sentindo bem alterado por conta da bebida. Faz


tempo que não bebo tanto. Ainda bem que amanhã não estou escalado para
trabalhar, porque certamente vou acordar bem ruim de ressaca. Sempre fui
muito fraco com bebidas alcoólicas. Não é à toa que nunca exagero. Mas
alguns dias são bem pesados.

Fecho meus olhos para tentar dormir e dar um fim nesse dia
horroroso.

― Estou cansado! Cansado dessa vida. Cansado de ficar aqui


sozinho. Pede para Deus me levar também, Cris. Você sempre me disse o
quanto sou forte, mas não existe força o suficiente para viver em um mundo
onde você não está. Não sei fazer isso, e, sinceramente, nem quero
aprender.

Em meio às minhas lamúrias o sono chega. Eu apago sem desejar


acordar no dia seguinte.
13

MANUELA

Como acordo com o pijama molhado de tanto suor por conta do


pesadelo, resolvo ir direto para o chuveiro. Não tenho condições de voltar a
dormir nesse estado. Pouco me importa se ainda são quatro horas da manhã.

Tomo uma ducha gelada e tento tirar da minha mente a imagem do


meu pai na árvore. É impressionante como algumas cenas ficam em nossa
memória como se fosse algo recente.

Já de banho tomado, troco toda a minha roupa de cama. Mesmo assim


não consigo voltar a dormir. Não existe sono que resista a um banho gelado.
Fora o medo que estou de voltar para o mesmo sonho.

Ainda é cedo para fazer qualquer coisa. E para falar a verdade, não
estou com cabeça para ir à floricultura organizar pedidos para pessoas
felizes e apaixonadas. Decido dar uma faxina no meu apartamento, o que
não faz muito sentido, já que acabei de tomar banho. Devo ser a única doida
que faz uma coisa dessas.

São 8h da manhã e já não tenho mais nada para fazer. Não sei o que
acontece comigo, mas decido ir à casa da minha mãe fazer o que evito há
anos. Acho que chegou a hora. Preciso conversar com alguém a respeito
dele. Há muita coisa guardada em mim. Estou sufocando.

Paro o carro em frente à casa dela e já vou entrando.

― O que aconteceu?

― E por que a senhora acha que aconteceu alguma coisa?


― Deve ser porque são apenas oito e pouco da manhã e você está na
minha casa, não acha?

― Queria te dar bom-dia ― brinco

― Ah! Claro! É bem sua cara fazer algo assim mesmo. ― Ela cai na
gargalhada.

Caminhamos até a cozinha e lá encontro um bolo de fubá com queijo


parmesão, quentinho ainda.

― A senhora pelo visto acordou ainda mais cedo hoje também.

Corto um pedaço do bolo e saboreio calmamente. Comida de mãe é


sempre a melhor do mundo.

― Pois é! Não consegui dormir muito bem essa noite. Já estava com
dor nas costas de ficar rolando de um lado para o outro. Aí resolvi levantar.
E como você sabe que não consigo ficar parada, fiz um bolinho. Parecia que
estava adivinhando que você viria aqui hoje.

― Estou mesmo precisando de um bolinho de mãe.

― Conta. O que aconteceu?

Olho para ela e corto mais um pedaço do bolo.

― Conheço você, minha filha, melhor do que pensa.

― Eu sei!

Continuo mastigando.

― Voltei a ter pesadelos ― falo por fim.

― Como aqueles que você acordava gritando?

― Sim. Já tem um tempo que estava livre deles. Mas acho que com o
acidente do Samuca tudo voltou.
― Sinto muito por isso, minha filha.

Olhamos uma para outra em silêncio. Afinal, ela é a única que


entende a dor que foi ter vivido aquele dia.

― Às vezes sonho com ele também ― confessa ela. ― Graças a


Deus vem sendo sonhos bons esses últimos anos.

― A senhora sente falta dele?

― Todos os dias. Saudade não tem cura, mas com o tempo dói um
pouco menos. Agora que você perdeu Samuca, vai me entender melhor.

― Eu só consigo sentir dor.

― É porque ainda é muito recente. Vai passar. Você vai ver.

― Estou falando do papai.

Ela me olha, surpresa, pois sabe muito bem que não gosto de falar
desse assunto.

― Não consigo esquecer a imagem dele naquela bendita árvore ―


continuo.

― Você precisa preencher suas lembranças com memórias boas. Ele


não foi só um homem que tirou a própria vida. Acima de tudo, foi um pai
maravilhoso. E você sabe muito bem disso.

― Eu sei. E é por isso que não consigo perdoá-lo. Como ele foi capaz
de fazer algo assim comigo? Eu só tinha quinze anos! Ainda precisava dele.

Ela se levanta sem dizer uma palavra. Após alguns minutos volta com
uma caixa pequena nas mãos.

― O que é isso?
― Você nunca me deu abertura para falar a respeito. Então preferi
guardar e esperar o momento certo. Não sei bem se existe momento certo
para algo assim, mas talvez você esteja precisando disso agora.

Pego a caixa e começo a abrir, um pouco receosa. Não sei se vou


gostar de saber o que tem dentro. Só que a curiosidade fala mais alto, como
sempre.

― O que significam essas coisas, mãe?

― Achei no guarda-roupa, dias depois da morte de seu pai. Tem uma


carta para mim, uma para você e a...

― “Margalida” ― completo a frase pegando minha boneca. ―


Sempre me perguntei onde eu a havia guardado.

Coloco a boneca na mesa e tiro da caixa os dois envelopes.

― A senhora leu a minha também? ― pergunto mais em um tom de


curiosidade do que de acusação.

― Claro que não! Jamais faria isso.

― Não teria problema, pelo menos eu poderia perguntar o que


esperar antes de ler.

― Sinto muito, mas você vai ter de ler para saber. Talvez aí estejam
algumas das respostas que tanto procura durante todos esses anos.

Olho para o envelope mais uma vez. Ainda não sei se tenho forças
para isso. E se suas palavras aumentarem ainda mais a dor que sinto dentro
de mim? Será que estou mesma preparada para algo assim? Mas é como
minha mãe disse, só vou ter certeza de tudo isso se ler.

Minha princesa,
Se você está lendo essa carta é porque não estou mais tão perto de
você como sempre desejei ficar. Talvez eu tenha cometido o maior erro da
minha vida. No fim, acho que nunca saberei.

Como sempre tivemos um relacionamento muito próximo, sei


bastante do que esperar de você. Acredito que esteja com o coração em
pedaços e se perguntando “por quê?”.

Aqui, então, estão as palavras que escondi de você por uns tempos.
Após algumas semanas que já estava em casa, resolvi ir ao médico
escondido de sua mãe. Não queria preocupá-la ainda mais, ela já tinha
problemas suficientes com a atual queda no nosso orçamento.

De um tempo para cá comecei a ter muita fraqueza, dor no corpo e


nos ossos. Achei que se tratava de uma má alimentação e por passar muitas
horas dirigindo. Nunca quis dar muita atenção a isso. Mas nos últimos
meses os sintomas foram se agravando, a ponto de eu nem conseguir
dormir direito mais.

Após alguns exames o médico me disse tudo o que eu não queria


ouvir. Estava com câncer. Mais especificamente, câncer de próstata grau 4,
o que significava que o tumor já tinha invadido outras áreas como o reto,
esfíncter e músculos.

Se havia tratamento? Sim, mas seria agressivo demais, devido ao


grau avançado da doença, e, consequentemente, caro demais. E o pior, as
chances eram mínimas de sucesso. O fim, então, seria doloroso e triste
demais.

O que fiz pode até ter sido um ato de desespero, concordo, e por isso
não recomendo essa solução para ninguém. A questão é que eu já não tinha
força suficiente para passar por tudo isso. Nunca desejei passar meus
últimos meses de vida sofrendo dessa forma. E, acima de tudo, não queria
ver vocês sofrendo ainda mais por minha causa. Fora as dívidas
astronômicas que deixaria para sua mãe.

Vocês mereciam mais. Mereciam mais de mim. Sempre foram as


melhores coisas que fiz na minha vida. Meus maiores amores.
Sei o quanto decepcionei você, minha eterna princesa. Nem mesmo a
“Margalida” teria orgulho do que fiz. Ainda assim, peço que tente me
perdoar um dia. Quero que saiba que não teve um minuto que deixei de te
amar. E certamente teria muito orgulho da mulher que se tornará.

Peço também que nunca desista dos seus sonhos, de nenhum deles. E
mais do que tudo, não se sinta na obrigação de cumprir aquela promessa
que me fez quando ainda era criança, sobre termos nossa própria produção
de rosas. Era um sonho meu, e não seu. Então, tudo bem você seguir seus
próprios sonhos. É o que mais desejo.

E, por fim, deixando meus ciúmes de lado, kkk, encontre um homem


que te respeite de verdade, que te ame do fundo do coração, que seja seu
melhor amigo. Posso ter muitos defeitos, mas sei que fui esse homem para
sua mãe, não porque eu sou uma pessoa incrível, mas porque era o mínimo
que ela merecia. E com você é a mesma coisa, você merece isso mais do
que ninguém. Não feche seu coração, por favor! Nem todos os homens de
sua vida vão te decepcionar assim como eu fiz.

E, por fim, mas não menos importante, saiba que eu parti, mas nunca
te abandonei. Estarei em seu coração pelo resto de seus dias. Estarei nas
lembranças de todos os momentos incríveis que vivemos juntos. Fomos
muito felizes. E, por isso, você deve continuar assim, feliz.

Amo você para sempre!

Seu pai e seu melhor amigo.

Termino a carta soluçando de tanto chorar. Minha mãe se levanta e


me abraça forte. Não existem mais palavras para esse momento, e ela sabe
muito bem disso.

― Se quiser ler a carta que ele deixou para mim, tudo bem ― minha
mãe fala enquanto seca as lágrimas do rosto.
― Não! Não aguento mais! Pelo menos não hoje. Quem sabe um dia.
― Guardo a carta na caixa de novo.

― Não vai ficar com ela?

― Acho melhor não. Não sei como me sentiria tendo essas palavras
tão perto assim de mim.

― Tudo bem, minha filha, faça o que for melhor para você.

― Se a senhora quiser ler, tudo bem também.

― Como você mesma disse, hoje não.

― Quando a senhora me falava que ele fez o que fez porque estava
doente era sobre o câncer que falava?

― Também. Mas me referia, principalmente, à mente. Acredito que


se ele tivesse conversado com um profissional a respeito de tudo o que
passava em seu coração, certamente não teria feito o que fez. A dor faz a
gente tomar decisões inimagináveis.

― Como vou conseguir perdoá-lo se nem ao menos consigo tirar da


minha mente aquela imagem horrível dele na árvore? Como a senhora
conseguiu? Não consigo entender.

― Minha filha, perdoar não significa esquecer. Perdoar é um ato de


decidir não se machucar mais com tudo aquilo que tira sua paz. Quando
perdoamos, desistimos da ideia de que o passado deveria ser diferente.

― Mesmo assim, ainda parece ser tão difícil.

― Acredito que se fosse fácil não teria valor algum.

― Pode até ser. ― Volto minha atenção para o bolo.

― Pode pegar mais, Manu, não precisa ficar namorando não. ―


Minha mãe sorri.
Retribuo e ataco o bolo novamente. Acho que nem vou conseguir
almoçar depois de comer tanto na parte da manhã.

― É melhor eu ir embora.

― Vai para a floricultura?

― Não sei, mas acho que não. Não estou com cabeça para isso hoje.
Se eu passar lá vai ser coisa rápida. Só para saber se está tudo certo.

Despeço-me da minha mãe e vou embora. Faço o que acabei de falar,


dou uma passada rápida na floricultura. Vejo com Raquel, a funcionária
nova, se ela precisa de alguma coisa. Reviso uns pedidos que chegaram e
aviso que não estou me sentindo muito bem, e que por isso não vou ficar lá.

Pego meu carro e saio andando pela cidade, sem rumo. Queria ter um
lugar onde pudesse espairecer minha mente. Mas não sei aonde ir. Ainda
mais em cidade pequena onde as pessoas ainda ficam me olhando sabendo
do acidente do Samuca, algumas preocupadas comigo e outras apenas por
curiosidade mesmo. Tudo é muito recente e não me acostumo com esses
olhares. Sempre fui muito discreta. Gosto de passar despercebida por onde
vou.

Como se fosse guiada pelo meu inconsciente, dirijo em direção a


minha casa antiga, onde morei com meus pais até tudo acontecer. Logo
depois que meu pai morreu, minha mãe decidiu vender a casa, era difícil
demais continuar ali com tantas lembranças, principalmente com a
lembrança do jardim.

Paro o carro bem em frente ao portão dos fundos da casa. O atual


morador derrubou o muro que ficava em volta e instalou grades, então, é
possível ver todo o jardim mesmo que na rua.

Desligo o motor e, ainda dentro do carro, olho em direção à árvore


que me separou do meu melhor amigo. Ela ainda está lá. Intacta com o
tempo. Nem parece ter testemunhado algo tão terrível. Elevo um pouco meu
olhar e vejo a janela do que antes era meu quarto. Fui muito feliz nele, mas
a visão panorâmica de todo o acontecido me massacrou nos dias que se
seguiram. Sendo esse o maior motivo para minha mãe vender a casa.

Um jardim que tanto nos unia, com nossas conversas intermináveis na


horta, hoje é o marco de tudo de ruim que aconteceu na minha vida.
Ironicamente, ainda trabalho com aquilo que meu pai mais gostava: flores.

Ligo o carro novamente e saio. Não tem porque ficar parada ali
esperando que o passado mude e que eu volte a ser feliz como tanto fui
durante meus primeiros quinze anos de vida. Nunca foi uma questão de ter
ou não dinheiro para manter uma vida confortável, sim, ter ao meu lado
aqueles que tanto amava. E isso eu tinha.

Começa a chover enquanto ainda vago pela cidade. Quando, de


repente, levo o maior susto. O carro que está a poucos metros na minha
frente sai da pista, do nada. É o acidente mais estranho que já vi. Não que
eu tenha presenciado muitos, mas o que vejo é algo bem suspeito.

A estrada está com pouco movimento. Por isso paro o carro no


acostamento e observo melhor o acidente. Chove muito no momento. O
veículo bateu em uma pedra e capotou algumas vezes, parando de cabeça
para baixo no meio do mato.

Pego meu celular e não consigo sinal para ligar para a emergência,
para os bombeiros, para a polícia ou para quem quer que seja.

― Não acredito que isso está acontecendo comigo! ― esbravejo. ―


Hoje, definitivamente, não é um bom dia. Agora vou ter que me molhar
com essa chuva toda para socorrer esse maluco.

Saio do carro e corro na direção do veículo capotado. Custo para


conseguir chegar perto de onde está o motorista, porque esse infeliz veio
parar no meio do mato. Quase caindo na ribanceira, inclusive.

― Senhor? Consegue me ouvir?

Ele nem sequer se mexe.


― O que eu faço agora, meu Deus?

― Senhor? Acorda! Pelo amor de Deus, fala comigo. O senhor me


escuta?

Novamente, nenhuma resposta.

Encharcada, volto para meu carro e pego meu celular que havia
deixado lá. Saio na chuva e ando mais um pouco com o braço para cima em
busca de sinal.

― Um sinalzinho só, por favor, é tudo o que preciso.

Olho para a estrada e tenho a sensação de ser a única pessoa da


cidade naquele momento. Não posso simplesmente fingir que não vi o
acidente e ir embora para casa. E se eu for de carro até um socorro mais
próximo? Sem dúvida demoraria muito.

― Isso! Consegui! Um ponto de sinal.

Faço correndo a ligação para o número 191 da Polícia Rodoviária


Federal. Toca algumas vezes e escuto uma pessoa do outro lado, mas a
ligação está entrecortada. Não dá para entender nada.

― Preciso de ajuda. Acabei de presenciar um acidente aqui na


rodovia, perto da entrada da cidade de Roseta. O motorista parece
inconsciente.

― Senho... está me ouv.. Alô? Oi! A ligação está muito ruim.


Alguém me ouve? O motorista precisa de uma ambulância, com urgência.

A ligação cai.

― Só pode ser brincadeira!

Corro para o veículo e tento novamente falar com o bendito


motorista.

― Senhor? Pode me ouvir?


Dessa vez vejo que ele começa a se mexer. Parece tentar olhar em
minha direção.

― Aqui fora, senhor. Meu nome é Manuela. O senhor sofreu um


acidente. Está me ouvindo?

Finalmente ele vira a cabeça para mim e meu coração gela. Não
consigo acreditar no que vejo. Aqueles olhos me encaram, assim como da
última vez que os vi. Aqueles mesmos olhos azuis.
14

LUCCA

Tudo parece meio escuro. Minha cabeça dói. Não sei onde estou e
muito menos o que aconteceu. Tento mexer meu pescoço, mas sinto uma
fisgada forte na coluna. Escuto bem distante uma voz de mulher. Não
consigo entender o que ela fala.

― Cris? É você, meu amor? Você voltou?

Olho ao meu redor, mas minha visão está turva. Levanto um dos
braços para tentar passar a mão nos meus olhos. Uma dor alucinante no
ombro me atinge.

― Ajude-me a sair daqui, Cris, está um pouco apertado. É! Você não


tem porque me ajudar mesmo, não estive ao seu lado quando mais precisou
de mim, então, por que você faria algo assim por mim agora?

Sinto um sono fora do comum. Tento fazer força para manter meus
olhos abertos. Tenho medo de dormir e perder Cris mais uma vez.

― Não me deixe de novo! Por favor! Fica aí mais um pouco. Não


estou pronto para te ver partir novamente. Por fav...

Caio em um sono pesado. Estranho.

― Você está de volta em casa?

― E onde mais eu estaria, Lucca? ― Cristiane responde, confusa.

Mais confuso fico eu. Como Cris pode estar viva aqui? Há quase um
ano que morreu.
― O médico disse que pela gravidez ser de risco, é melhor evitar
fazer certas coisas. Então, nem adianta reclamar, mas a faxina pesada da
casa vai ser responsabilidade sua agora.

― Gravidez?

Ela para o que está fazendo e me olha com um sorriso. Aquele


mesmo sorriso me fez eu me apaixonar por ela anos atrás.

― Sim, gravidez, bebê, barriga! ― fala com ironia e aponta a barriga


levemente maior.

Ando em sua direção. Ajoelho aos seus pés e a abraço pela barriga.

― Quanta saudade sinto de vocês. Achei que nunca mais nos


veríamos aqui.

― Imagino! Tem muito tempo mesmo, meu amor. Você saiu de casa
ontem na parte da manhã e só voltou hoje, por conta do serviço. Nesse
tempo, nosso filho e eu até cogitamos fugir, mas pensando melhor, não seria
tão fácil assim. Como disse antes, precisamos de um faxineiro e uma casa
limpinha. Então, desfizemos as malas e permanecemos aqui.

Nós dois caímos na gargalhada.

― Casar com você foi a melhor coisa que fiz na minha vida. Nunca
duvide disso.

― Nunca vou duvidar, Lucca. Você é o príncipe que tanto esperei.

― Prometo, a partir de hoje, que cuidarei melhor de você. Ou melhor,


de vocês. ― Dou um beijo demorado em sua barriga. ― Ninguém vai nos
separar.

― Então você está bem com a ideia de faxinar a casa?

― Para te ver bem de novo, eu faxino a cidade toda se for preciso.

― Não! Tudo bem! Só a nossa casa já está de bom tamanho.


Ela me faz levantar do chão e se inclina para me beijar.

Antes mesmo de sentir o gosto de seus lábios, sinto uma pontada forte
na cabeça. Abro meus olhos e estou preso de cabeça para baixo dentro do
meu próprio carro.

― Queria tanto ter sentido seu beijo de novo. Por favor, me leva para
casa. Quero ficar com você e com o nosso bebê. Só mais um pouco.

Olho para o lado de fora e não é mais Cris que está lá. É uma mulher
que não para de falar sozinha e andar de um lado para o outro na chuva. Por
que ela não me tira logo daqui? Podia pelo menos chamar uma ambulância.
Já seria de ótima ajuda. Mas não. Fica agindo como uma louca.

A mulher me parece conhecida. Mas estou confuso. Minha mente está


confusa. Não me lembro de ter conhecido ninguém recentemente. Ela só me
olhou nos olhos uma única vez. E foi uma situação muito estranha.
Arregalou os olhos e depois começou a chorar e a esbravejar. Não consigo
entender.

Tudo no meu corpo dói. Parece que fui atropelado por um caminhão.
E estar preso de cabeça para baixo não ajuda em nada. Nem consigo pensar
direito.

Fecho meus olhos e apago mais uma vez.

― Você prefere um menino ou uma menina?

Olho em volta e estou de volta na minha cozinha.

― O quê?

― Menino ou menina? ― Cris aponta para a barriga.

Ela voltou.

― Quero uma menina desde que ela tenha seu sorriso, seus olhos e
seu bom humor. Quanto ao gosto para comida ela pode ser como eu, porque
você como umas coisas muito estranhas.

Ela dá uma gargalhada.

― O que eu como de tão estranho assim, meu Deus?

― Pizza com abacaxi. ― Faço uma careta. ― Quem em sã


consciência come pizza com abacaxi?

Ela ri mais uma vez.

― Saiba que pizza com abacaxi é muito chique.

― Eu como para me dar prazer e porque sinto fome, não para ser
chique.

― Ok. Não importa! Vamos voltar ao assunto que realmente


interessa.

― Tudo bem! Qual?

― Quer dizer que você não quer um menino?

― Não é que eu não queira. Serei um pai babão e muito orgulhoso


independente do que vier, porque sei que é o fruto do nosso amor. Mas
acharia lindo ter uma princesinha. Uma versão sua em miniatura correndo
pela casa.

― É, seria gostoso mesmo. Mas eu quero que venha com esses seus
olhos azuis. Ela merece.

― Mas assim ela vai me dar muito trabalho. Esses olhos azuis lindos
que tenho vão deixá-la irresistível quando for mais velha. Já vou avisando,
só começa a namorar depois dos quarenta.

― Só depois dos quarenta então? ― Ela mal consegue falar de tanto


que ri.
― Sim, porque aí já vou estar meio velhinho, meio gagá. Não vou
ligar muito.

― Ah! Quer dizer que é só por isso?

― É claro!

― E se você não estiver gagá ainda?

― Aí vamos ter de alterar as regras e passar para cinquenta.

Ela dá a volta na bancada e me abraça por trás.

― Cada dia que passa, sinto que amo ainda mais você. Não sei como
é possível.

― Entendo você, porque é exatamente assim que me sinto.

Viro de frente para beijá-la.

Mais uma vez uma dor me assola e acordo dentro do meu carro.

― Só pode ser brincadeira! Por que não consigo beijá-la?

A mulher do lado de fora se aproxima do carro, mesmo que debaixo


de chuva, e se agacha para me olhar. Quando seus olhos param novamente
nos meus, sinto um aperto forte em meu coração.

Não pode ser. É ela! A noiva! A noiva do rapaz que matei naquele
terrível acidente.

― Sinto muito! ― balbucio para ela.

Ela volta a chorar e vejo que a dor que ela sente pela perda é talvez
tão grande quanto a minha pela perda da Cris. A diferença é que ela não
teve culpa alguma na morte do homem que tanto amava.

Agora tudo faz sentido! Você não vai me ajudar a sair daqui. Sou o
responsável pela morte de seu marido no dia do casamento de vocês.
Mereço morrer em um acidente assim também. Causei muito mal. Chegou a
minha hora. Estou pronto.

O cheiro de gasolina já está muito forte, mas o problema maior é que


começo a sentir um cheiro de queimado. Com muito sacrifício consigo ver a
frente do carro. A fumaça vem de lá.

Tudo bem que estou pronto para morrer, mas confesso que não quero
ter uma morte tão dolorosa como ser queimado ainda vivo. Talvez seja
castigo. Por todo mal que causei.

Volto a olhar para a mulher do lado de fora. Ela também parece ter
visto a fumaça. Está tão apavorada quanto eu. Mas, ao mesmo tempo,
continua parada, não move um músculo na minha direção.

Minha cabeça está doendo cada vez mais, assim como minha visão
fica mais turva com o passar do tempo.

― Sei que não mereço, Deus, mas peço que o Senhor me leve antes
de esse fogo me atingir. Estou com muito medo. Perdão por tudo que fiz!
Perdão pelas vidas que tirei e pelas outras vidas que arruinei! Perdão!

Fecho meus olhos, pela última vez, e espero acordar ao lado da Cris
novamente, mas agora, para todo sempre!
15

MANUELA

Não consigo acreditar no que meus próprios olhos veem. Dentre todas
as pessoas no mundo para eu ter de salvar, tem de ser justo ele? Justo o
homem que destruiu todos os meus sonhos?

Saio de perto do acidente. Agora nem a chuva me incomoda mais.


Minha mente parece ferver. Como posso fazer algo assim com Samuca? Ele
nunca vai me perdoar.

Porém, ao mesmo tempo, como vou ser capaz de seguir com minha
vida levando na consciência o peso e a responsabilidade de não ter salvado
uma vida? Mesmo que essa a seja a desse homem.

Ando de um lado para o outro sem saber o que fazer.

― Por que o Senhor está fazendo isso comigo, Deus? Já não sofri o
bastante? Já não perdi o bastante? Agora tenho de perder minha paz de
espírito também?

As lágrimas descem dos meus olhos com urgência.

Será que ele ao menos se lembra de mim? Lembra o mal que causou
naquele dia? O dia que era para ser um dos mais felizes da minha vida se
tornou um pesadelo. E a culpa foi toda dele. Um irresponsável que, segundo
a polícia, dormiu ao volante.

E que acidente mais estranho foi esse. Meio que do nada o carro saiu
da pista. Será que ele fez de propósito? Presenciei uma tentativa de suicídio
e não um acidente? Não sei o que é pior. Tanto um quanto o outro me
trazem lembranças que quero muito esquecer.
O que muda agora nessa confusão toda é a minha responsabilidade.
Se foi suicídio, ainda tenho de tentar salvá-lo? Talvez eu possa só virar as
costas e ir embora. Deixar que os ferimentos se encarreguem de concluir o
que ele mesmo começou.

Apesar de que eu gostaria muito de dizer um monte de coisas para


ele. Fazê-lo se arrepender amargamente de ter entrado em um carro naquele
dia. Falar tudo o que causou para mim. Todos os sonhos que destruiu. O
bebê que inocentemente morreu dias após o acidente devido ao meu estado
emocional. E, por fim, fazê-lo se arrepender de ainda estar vivo.

Continuo andando de um lado para outro. Na chuva. Como uma


louca. Talvez seja isso que devo fazer. Fingir de louca e ir embora. Quem
vai conseguir me julgar por não ter ajudado o assassino do meu noivo?

— A que ponto cheguei, meu Deus? Como sou capaz de pensar


nessas coisas? Como fui me tornar esse tipo de pessoa?

No fundo, sei muito bem quando tudo mudou dentro de mim. Uma
mágoa cresceu em meu coração desde o dia em que meu pai me deixou
daquela forma tão cruel e egoísta. Com a ajuda de Samuca e com toda a
paciência que ele tinha comigo, consegui melhorar um pouco. E para quê?
Para perdê-lo também. De outra forma cruel.

Olho ao redor a procura de alguém. Não sei se é melhor ver que outra
pessoa pode vir ajudar, pois vai perceber o quanto me recuso a tirar este
homem do carro.

Decido tentar chamar por socorro mais uma vez. Meu celular
continua sem sinal, então, caminho um pouco e consigo um mísero ponto,
assim como da primeira vez.

― Agora precisa dar certo. Não posso fazer isso, tem de ser vocês!

Após os primeiros toques uma voz de mulher atende. Ainda


entrecortado.
― O sinal está péssimo, mas, por favor, alguém precisa me ajudar.
Tem um homem quase morrendo em um acidente de carro. É urgente!

― Senh... está me ou...

― Estou na rodovia perto da entrada de Roseta. Mandem alguém.


Logo! ― grito, como se fosse resolver alguma coisa.

A mulher não é surda, só a ligação que está ruim.

Irritada, desligo o celular.

― É inútil! Estou sozinha. Por que esse tipo de coisa só acontece


comigo? Por quê?

Mais uma vez decido me aproximar e ver em que estado ele se


encontra. Às vezes até já morreu e ainda estou aqui fora, sofrendo por algo
que nem posso mais fazer. Abaixo-me perto do carro. Ele parece sentir que
tem alguém perto e, mesmo com dificuldades, vira a cabeça na minha
direção.

Como é difícil olhar para estes olhos de novo. Porém, desta vez o
olhar dele se transforma. Fica arregalado, assustado. Tenho a impressão de
que finalmente se lembrou de mim. Lembrou tudo o que me fez. E percebe
a ironia da vida, pois agora depende justamente de mim para tirá-lo dali.

Não consigo falar nada. Sinto que até se perguntar como está estarei
traindo Samuca de alguma forma. E não consigo fazer isso com ele.
Ficamos apenas paralisados, olhando um para o outro. É quando vejo uma
lágrima escorrendo de seus olhos. Agora não há mais dúvidas, ele se lembra
de mim!

Talvez este acidente tenha sido a forma que ele encontrou para acabar
com a própria vida depois de tantas vidas que destruiu. Só não imaginava
que teria de me ver mais uma vez. Será que ajudá-lo a sair dali seria uma
forma de castigo, obrigando-o a continuar vivo para sofrer com toda a culpa
que deve carregar?
De repente, ele olha para a parte da frente do carro e começa a ficar
um pouco mais aflito. Olho na mesma direção e entendo seu desespero. O
carro está começando a pegar fogo. E pior, muita gasolina já escorreu do
tanque. Não há dúvida de que vai explodir a qualquer momento.

Fico mais nervosa também. Preciso tomar uma decisão e precisa ser
agora. Salvo o homem ou deixo o fogo consumir todos seus pecados?

Ele olha para mim mais uma vez.

― Sinto muito! ― balbucia ele, depois apenas fecha os olhos e


parece esperar a morte chegar.

Faço o mesmo. Com meus olhos fechados, penso pela última vez. Ele
deve ser filho de alguém, marido de alguém e até mesmo pai de alguém.
Não posso deixar que essas pessoas paguem com a dor da perda pelos erros
que não são seus. Não posso infligir a eles o mesmo sentimento que carrego
por anos e que está ainda mais forte após a morte de Samuca.

Ele precisa viver!

Volto para meu carro correndo e pego o canivete que sempre carrego
no porta-luvas. Assim que chego perto do homem, com muita dificuldade,
corto o cinto de segurança que o mantinha de cabeça para baixo. Tenho a
preocupação de tentar segurá-lo para não bater a cabeça. Acabo dando um
pequeno mau jeito no meu ombro, afinal, o homem é bem grande e pesado
para meu humilde braço.

O fogo está se intensificando.

― Acorda! Você precisa me ajudar a te tirar daqui ou nós dois vamos


morrer queimados e isso será tudo culpa sua também!

Ele apenas abre os olhos, assustado comigo. Mas à medida que tento
puxá-lo para fora, ele sente ainda mais dor e não consegue fazer nada a não
ser se contorcer.

― Que droga! Você precisava ser tão grande?


A perna dele está presa, aparentemente, no painel. Desesperada,
começo a chutar o local na tentativa de quebrar e remover a perna.

Nada acontece!

Corro mais uma vez para meu carro, abro o porta-malas e pego uma
barra de ferro. Não queira saber o porquê de eu carregar isso.

Já no acidente, faço da barra uma alavanca para levantar um pouco o


painel e, finalmente, soltar aquela bendita perna.

― Funcionou! ― grito.

Com toda a força que tenho puxo o homem para fora e saio
arrastando-o para o mais longe possível. Em questão de segundos o
inevitável acontece. O carro explode. Se eu demorasse mais um pouco,
seria o fim para nós dois.

Nesse momento escuto também o som de sirenes. Olho na rodovia e


vejo uma ambulância e o carro dos bombeiros.

― Claro! Agora! Bem na hora! ― ironizo.


16

LUCCA

No intervalo de um apagão e outro, consigo ficar acordado uns


minutos, apesar de ainda estar muito confuso com tudo. Nada à minha volta
parece fazer sentido. A dor no meu corpo agora está pior, mas, para meu
alívio, vejo que não estou mais dentro do carro. Sinto uma grama debaixo
de mim. Será que já estou no céu?

― Cris, onde está você? ― Tento chamá-la, mas percebo o quão


fraca minha voz está.

Com dificuldade movo minha cabeça e vejo a bola de fogo que virou
meu carro. Não estou no céu. Muito menos ao lado da Cris. Aquela mulher
me salvou! A pessoa que mais tem motivo para me ver morto me salvou!

Ainda distante, escuto umas sirenes. Não consigo mexer de novo, mas
aquele som é muito familiar aos meus ouvidos. O socorro chegou.

A mulher ao meu lado reclama de alguma coisa que não consigo


entender, já que estou mais concentrado na sirene do que nela. Ela parece
bem cansada depois do esforço que deve ter feito para me retirar das
ferragens. Antes dos médicos se aproximarem, tenho tempo de olhar para
ela e fazer a pergunta que não quer calar.

― Por quê?

Ela me olha sem dizer nada. Não sei ao certo se já se arrependeu do


que fez, mas sem dúvida não está nem um pouco com vontade de ser
simpática comigo. Não posso reclamar, mereço.
― Porque não sou como você! ― diz ela por fim. ― Não tiro vidas!
― continua e sai de perto de mim para que os médicos me ajudem.

― A central recebeu o chamado, mas a ligação estava tão ruim que


não foi possível entender muito bem ― diz um médico. ― Estávamos
rodando pela cidade toda. Só conseguimos encontrar vocês depois que
escutamos a explosão. Sinto muito, senhora!

― Tudo bem! A culpa não é de vocês. Só tirem esse sujeito da minha


frente.

Abro os olhos a tempo de ver meus colegas de profissão olhando para


a mulher de forma confusa, mas graças a Deus não insistem no assunto e
continuam o trabalho que vieram fazer.

Mais uma vez sinto uma vontade incontrolável de dormir. Não resisto
e fecho meus olhos.

― Cris! Sinto muito, meu amor! Perdão por não ter chegado a tempo.
A culpa é toda minha.

Ainda meio acordado e meio dormindo, sinto que sou carregado. Fora
a coisa dura que agora comprime minhas costas fazendo com que eu sinta
mais dor.

MANUELA

― Cris! Cris! Não vá embora! Não me deixe sozinho, não de novo.

― Se a senhora quiser acompanhar seu marido na ambulância, está


tudo bem ― diz, gentilmente, um dos rapazes.

― Ele não é meu marido. É só o responsável por eu não ter um


marido.

O rapaz me olha, confuso, enquanto ajuda o colega a colocar a maca


na ambulância.
― A senhora o conhece, então? Pode nos dizer o nome dele?

― Não! Eu não o conheço.

Ele parece não entender nada, já que acabo de falar que o homem é o
responsável por eu não ter um marido. Então, como posso não conhecê-lo?

― Ele matou meu marido.

O médico, mais assustado ainda, olha na direção do carro pegando


fogo que está sendo controlado pelos bombeiros.

― Seu marido ainda está dentro do carro?

― Deus me livre, não! ― Agora é a minha vez de ficar assustada, já


que a ideia de ver o Samuca morrer queimado é bem pior do que a cena que
presenciei naquele dia. ― Não foi hoje, já tem uns meses. Foi em outro
acidente.

― Parece que este rapaz é chegado em um acidente, então! ― diz


mais como uma afirmação do que como uma pergunta.

― É o que parece ― respondo, indo embora.

Sento no banco do meu carro e sinto um peso enorme nas pernas e


nas costas. Parece que carreguei peso o dia todo. Sei que essa dor não é só
pelo fato de ter carregado uma pessoa pesada para fora de um carro que está
de cabeça para baixo, mas toda a luta emocional que envolveu o resgate.

O pouco de energia que tinha foi completamente sugada. Tudo que


mais quero agora é ir para minha casa e deitar. Fingir de alguma forma que
o dia de hoje nunca aconteceu.

Porém, ligo o carro e tenho uma vontade enorme de seguir a


ambulância até ao hospital.

Por quê? Não sei.


Para ver se sobreviveu mesmo? Certamente não.

Mesmo não fazendo sentido algum é o que faço. Dirijo até ao


hospital. Fico na sala de espera por um homem que nem ao menos conheço.
Por um homem que não merece absolutamente nada de mim. Devo ser
mesmo maluca. O que Samuca deve estar pensando de mim agora me
vendo aqui?

Um dos rapazes que conversou comigo no local do acidente me vê


sentada ali e vem conversar comigo.

― Não sei se a senhora quer notícias dele, devido às circunstâncias.


E, sinceramente, nem sei se posso passar esta informação, já que não são
parentes.

― Tudo bem, não precisa falar nada. Para falar a verdade, nem sei o
que estou fazendo sentada aqui.

― O estado dele requer atenção. Vão precisar fazer alguns exames


para constatar se há ou não hemorragia interna e se houve alguma lesão na
coluna. É tudo o que sei.

Apenas balanço a cabeça em forma de agradecimento. Não sei bem o


que desejo, mas ter informações é sempre melhor do que ficar no completo
escuro.

― A senhora salvou a vida dele, isso é um fato. Independente do que


aconteça a partir de agora, nada vai mudar isso.

― A questão é justamente essa: será que eu deveria ter salvado? Meu


marido, quer dizer, meu noivo, não teve a menor chance. Morreu na hora. A
caminho da igreja para o nosso casamento. O que ele pensaria de mim
agora sabendo que salvei o homem que o matou?

― Ele diria que escolheu a mulher certa para se casar. São raras as
pessoas tão íntegras como a senhora foi.
Apenas olho para ele e sinto meus olhos se encherem de lágrimas.
Aquelas palavras tocam muito meu coração de um jeito que não sei
explicar.

― Sinto muito por tudo o que a senhora passou. É muito nova para
perder alguém assim. Não consigo imaginar a dor que deve carregar. Mas se
tem uma coisa que aprendi com meu trabalho é que acidentes acontecem
com mais frequência do que imaginamos. É preciso seguir em frente.
Principalmente se queremos honrar quem se foi.

― Obrigada! ― É tudo o que consigo dizer.

Ele abre um discreto sorriso e começa a andar em direção a porta.

― Manuela ― digo.

Ele para e olho de novo para mim.

― Perdão?

― Manuela. Meu nome é Manuela. Não precisa continuar me


chamando de “senhora”.

― Gustavo. ― Ele abre outro sorriso. ― O meu é Gustavo. Foi um


prazer te conhecer... Manuela.

Abro um pequeno sorriso também e o vejo indo embora. Enquanto


isso, permaneço sentada nesta cadeira dura sem ter a mínima ideia do que
desejo ou que espero para o fim deste tenebroso dia.
17

MANUELA

O dia amanhece e continuo aqui, sentada na sala de espera do


hospital. O quão isso faz de mim uma louca, não sei.

Uma enfermeira se aproxima e questiona.

— A senhora está aqui esperando alguém?

Hospital de cidade pequena em um dia sem muito movimento


acontece isso. Você é notada.

— Vim acompanhando um homem que se acidentou bem na minha


frente.

Não quero mentir, mas também não conto toda a verdade. Ela não
precisa de detalhes.

— É parente dele?

E agora? Já está na hora de começar a mentir?

— Não. — Resolvo não complicar ainda mais minha vida e continuo


na verdade.

— Infelizmente a política do hospital não nos permite dar qualquer


informação para pessoas que não sejam da família. Sinto muito!

— Tudo bem. Sei disso. Acho que vou esperar mais um pouco. Quem
sabe ele acorda e aceita falar comigo.
— Sem problema. Assim que ele acordar, aviso que a senhora está
aqui fora aguardando por ele. Acredito que vá gostar de saber, já que deve
amá-lo muito por passar a noite inteira aqui. Vi quando a senhora chegou
toda molhada da chuva.

— É. Talvez. — Dessa vez não quero explicar o “relacionamento”


que existe entre nós dois como fiz com Gustavo, o médico.

Para falar a verdade, nem sei o porquê de ter falado tanto naquela
hora. Não sou muito de me abrir com estranho. Pode ter sido meu
esgotamento emocional. Mas ele pelo menos é um cara legal. Foi bem
gentil comigo. Não posso reclamar.

Passadas algumas horas percebo que já são quase 11h da manhã. Meu
estômago ronca e me lembra de que não como nada desde o bolo de fubá na
casa da minha mãe. Daqui a pouco serei eu a ser internada.

Vou até a uma máquina de salgadinhos e compro qualquer um deles.


Nem me dou muito ao trabalho de escolher direito. Só quero colocar algo
salgado na boca e não desmaiar, obrigando alguém a me socorrer.

Meu celular toca. É minha mãe. Sem dúvida quer saber como estou
depois do nosso encontro na manhã anterior. Como vou mentir para ela ou
como vou contar toda a verdade? Odeio essas coisas.

— Oi, mãe, bom dia! — Atendo a ligação.

— Oi, filha, bom dia! Já está na floricultura?

Nossa! Tem horas que até esqueço que sou dona daquele lugar. Sem
dúvida vou à falência desse jeito.

— Não, mãe, passei a noite no hospital — falo por fim.

— No hospital? Como assim, minha filha? O que aconteceu? Por que


não me avisou antes? Estou indo para aí agora!

— Não, mãe! Estou bem. Não sou eu que estou internada. Estou bem.
É só... complicado.
— Como assim “complicado”? O que está acontecendo de verdade,
Manuela.

Quando mãe chama o filho pelo nome assim é porque a situação vai
ficar feia.

— Presenciei um acidente e fui obrigada a ajudar, a socorrer. Estou


no hospital desde então para ter mais notícias. É só isso.

— E por que eu tenho a impressão de que você está me escondendo


alguma coisa?

— Porque mãe tem um sexto sentido inexplicável. — Abro um leve


sorriso.

— Então, continua falando. Isso se não quiser que eu apareça aí e


descubra por mim mesma tudo o que está acontecendo.

— Não precisa vir, mãe, já disse. Está tudo bem comigo. Pelo menos
fisicamente.

— Continua. Estou ouvindo — ela insiste.

— O motorista.

— O que tem ele? É seu amigo?

— Não. Pelo contrário. É o homem que matou Samuca.

— Samuca não foi assassinado, Manuela. Foi um acidente!

— É sério que é isso que a senhora tem para me falar?

— Não, minha filha, desculpe. Só acho que pensar dessa forma te


deixa ainda pior.

Prefiro não comentar e permaneço em silêncio.


— Mas por que você está tão interessada no estado de saúde desse
homem que foi capaz até de passar a noite no hospital?

Mais uma vez, continuo em silêncio. Como vou respondê-la se nem


mesma eu sei o porquê de estar aqui até agora?

— Manu? Ainda está aí?

— Estou, mãe, pode falar.

— Foi você quem causou o acidente? Foi de propósito? — ela


pergunta cochichando, provavelmente com medo de alguém escutar.

— Claro que não, mãe. Ainda não sou esse tipo de pessoa.

— “Ainda”?

— A senhora entendeu. Não complica. Por favor!

— Então, responde, o que você quer com esse homem?

— Não sei. Sinceramente, não sei. Acho que no fundo só quero a


oportunidade de despejar tudo o que sinto na cara dele e deixá-lo ainda pior
com a provável culpa que carrega.

— E acha que isso vai te deixar melhor?

— Também não sei. Só vou descobrir quando fizer.

Ela fica em silêncio. Sabe que não vai conseguir me convencer a


mudar de ideia e ir para casa.

— Tudo bem. Só vai com cuidado. Nunca sabemos de fato o que a


outra pessoa está passando.

— A senhora está preocupada com ele ou comigo?

— Você sabe a resposta. Só não quero que você se arrependa de algo


que não vai conseguir voltar atrás.
— Não se preocupe. Vou ficar bem. Até porque, pior é impossível.

— Se mudar de ideia pode vir aqui em casa à hora que quiser. Ainda
tem bolo de fubá. — Ela ri.

— Obrigada, mãe. Por tudo!

Desligo o celular.

Ela tem razão. Será que isso vai mesmo fazer com que eu me sinta
melhor em relação a toda dor que carrego no peito?

Nesse momento, a mesma enfermeira que falou comigo mais cedo


caminha em minha direção.

— Ele pediu que a senhora entrasse — ela diz com um sorriso largo,
como se fôssemos um casal apaixonados. Mal sabe ela.

— Ele está bem?

— Está, sim, não corre mais perigo. Só vai precisar de um pouco de


paciência com a fisioterapia futuramente, já que fraturou um ombro e uma
perna. Mas, perto do que poderia ser, ele está muito bem.

Não sei se essa notícia me deixa feliz ou triste.

— Pode me acompanhar, levo a senhora até lá.

— Obrigada! — respondo enquanto caminho até ao quarto.

— É aqui. Pode ficar à vontade.

Agradeço novamente e espero ela se afastar para abrir a porta. Não


quero que ela entenda que não somos um casal.

Respiro fundo e entro bem devagar no quarto do hospital. Ele me vê


entrando e tenta ficar em uma posição melhor na cama. Não sei o que ele
espera de mim. E para falar a verdade, não sei nem o que eu espero dele.
— Quando a enfermeira disse que uma moça que gosta muito de mim
passou a noite no hospital esperando por notícias minha, fiquei na dúvida se
tinha acordado mesmo ou se ainda estava confuso como no acidente.

Olho para ele e desvio o olhar. É tão difícil encará-lo assim de tão
perto. Por que ele teve mais uma chance de sobreviver após um segundo
acidente enquanto Samuca morreu na hora em seu primeiro? Por quê, meu
Deus? Ele não merecia isso. Não ele.

— Depois que ela descreveu a tal namorada, tive certeza que ainda
estava confuso. Ou melhor, ainda estou.

Continuo de costas, sem falar uma palavra.

— O que você faz aqui, afinal? Por que está aqui por mim?

— Não estou aqui por você. Você matou...

— Eu sei! Não precisa repetir isso! Sei muito bem o que aconteceu
naquele maldito dia. É por isso que pergunto mais uma vez: o que você está
fazendo aqui esse tempo todo se nem consegue olhar para mim?

— Ah! Então quer dizer que você quer que eu olhe para você? —
pergunto, finalmente, olhando para aqueles olhos azuis que nunca saíram da
minha mente. — Sente-se melhor agora?

— Não estava querendo dizer isso. Só não entendo o porquê de você


perder seu tempo depois do mal que te causei. Conheço muito bem a dor
que você carrega em seu coração. O peso das noites mal dormidas que traz
em seus olhos.

— Não! Você não conhece! — Assusto-me por perceber que estou


gritando dentro de um hospital. Diminuo o tom de voz e continuo: — Não
me venha com essa compaixão barata, porque você não sabe nada a meu
respeito. Não sabe o que é perder seu noivo no dia do próprio casamento.
Não sabe o que é voltar para uma casa vazia e só sentir o resquício do
cheiro dele. Não sabe o que é esperar por um telefonema que nunca vai
chegar. Não sabe o tamanho do medo que dá de um dia esquecer o som da
voz dele. Não sabe o que é ansiar por um toque que jamais vai sentir de
novo. Você não sabe de nada! Então, cala essa sua boca! — Volto a gritar
em meio às lágrimas.

Ele também não faz questão nenhuma de esconder as próprias


lágrimas. E é isso que quero. Quero que ele sinta o remorso bem à flor da
pele.

Ficamos alguns segundos em silêncio, apenas olhando um para o


outro.

— Você também não sabe nada a meu respeito.

— E nem quero! Não estou aqui para te conhecer melhor. O que sei já
é o suficiente para nem querer estar perto.

— Então, por que ainda está parada aqui?

Respiro fundo para não voar na cara dele.

— Tem uma coisa que você ainda não sabe. Você destruiu mais do
que imagina. Matou mais de uma pessoa naquele dia.

Ele me olha, espantado, não entendendo como aquilo é possível.

Ainda em meio às lágrimas, coloco a mão na minha barriga e


desabafo:

— Dias depois ao acidente, tive uma dor muito forte seguida de um


sangramento. Era um aborto espontâneo! Um aborto de um bebê que eu
nem sabia que carregava. O médico disse que meu estado emocional pode
ter contribuído. Então, você não matou só meu noivo. Matou o bebê que ele
tanto queria ter. O nosso bebê.

Atordoado com a notícia, ele tapa o rosto com as mãos e tem uma
crise incontrolável de choro. Não sei o que esperava dele, mas essa reação
me machuca mais do que imaginei. Quero destruí-lo assim como fui
destruída. Porém, nunca fui uma pessoa que sai por aí machucando os
outros. Então, sim, meu coração em pedaços se mistura com os pedaços do
dele.

― Eu... Eu sinto muito! Por mais que você não acredite ― diz ele,
tentando se recompor. ― Jamais desejei fazer algo assim.

― Você tem razão, eu não acredito. ― Na verdade, até acredito,


principalmente, por ver a reação que ele teve, mas não vou dar esse
gostinho para ele.

Uma coisa começa a me chamar a atenção. Desde que chegamos ao


hospital, ninguém veio procurá-lo. Como isso é possível? Será que é uma
pessoa tão insuportável assim que não possui nem um amigo?

― Era isso que você queria? ― Ele interrompe meu devaneio.

― O quê?

― Você me salvou e não entendi o porquê.

― E o que você concluiu?

― Morrer era fácil demais. A dor desaparece. Só posso continuar


sofrendo e me culpando se continuar vivo.

Não consigo esconder um leve sorriso.

― Pelo menos você é inteligente ― ironizo.

― É o que dizem.

― Por falar em continuar vivo, seu acidente de agora foi muito


estranho. Você simplesmente jogou o carro para fora. E para te manter vivo,
quase morri queimada para te tirar daquele bendito carro.

― Espera! Você acha que joguei meu carro para fora da pista de
propósito?

A indignação dele me surpreende um pouco.


― E não foi? Eu estava bem atrás de você, vi tudo.

― Pelo visto você acha que sabe tudo em relação a minha vida
inteira.

― Vai ser grosseiro agora?

― Por quê? Só você que pode?

Respiro fundo mais uma vez. Ele ainda vai me tirar do sério de
verdade. Mais do que já saí.

― Desculpa! ― Ele me surpreende. ― Não gosto de ser esse cara,


mas você também não está me ajudando.

Apenas olho para ele sem dizer nada. Cansada dessa conversa que
não vai levar ninguém a lugar nenhum.

― Pode não fazer diferença para você, mas faz para mim ― continua
ele. ― Não tentei me matar ontem. Meu carro deve ter sofrido de alguma
pane elétrica ou sei lá o quê, não entendo de carros. Só sei que nada
funcionava. Ele simplesmente apagou. Por isso perdi o controle. E para não
machucar ninguém, já que pelo visto já gastei essa minha cota, joguei o
carro para fora.

Fico surpresa e envergonhada pelo julgamento que fiz.

― Eu vi você dentro do carro ― insisto. ― Não parecia lutar muito


para sair de lá.

Ele abre um sorriso meio envergonhado.

― Você não quer me conhecer, então, é um pouco complicado


explicar. Mas em parte você tem razão. Enquanto estava lá, de cabeça para
baixo, preso nas ferragens e com uma dor alucinante, pensei em desistir.
Principalmente quando vi que o carro estava pegando fogo. Sabia que você
não tinha motivo algum para se arriscar por mim, e nem eu desejava isso.
Naquele momento em que fechei meus olhos, estava pronto para morrer.
Quanto mais eu o ataco, mais ele me surpreende, mostrando como
nem sempre as coisas são como parecem. Se ele não tivesse matado Samuca
talvez o achasse até um cara legal.

― Acho melhor ir embora. Já passei tempo demais aqui. E já fiz tudo


o que queria também.

Dou às costas e me dirijo à porta.

― Espero que se sinta melhor depois de tudo o que colocou para fora.
E não estou sendo irônico. Falo de coração. Apesar de não acreditar, sei
realmente como é sentir essa dor e não a desejo para ninguém.

Meus olhos se enchem de lágrimas de novo enquanto olho para ele


pela última vez na vida.

― Você é jovem e uma mulher muito bonita, ainda tem o direito de


ser feliz. Estarei torcendo para que consiga.

Seco meus olhos e saio o mais rápido possível dali. É mais fácil odiá-
lo quando não é tão simpático.
18

LUCCA

Um ombro quebrado, uma perna quebrada, uma concussão na cabeça


e um carro destruído. Este, sem dúvida, é o significado de um dia ruim.

Fico uma semana internado, já que precisei de uma cirurgia para


corrigir a fratura na perna. E por conta da concussão eles também quiseram
me observar melhor, devido a uma pequena confusão mental.

No dia em que recebo a visita daquela mulher que me salvou, lembro


que não tenho mais ninguém como meu contato de emergência desde o
falecimento da Cris, então, preciso eu mesmo avisar algumas pessoas sobre
o ocorrido. Ligo para meu chefe no SAMU e conto que vou precisar me
afastar por alguns meses por conta das fraturas. Depois ligo para Caio, que
vem correndo me visitar.

Ele sempre foi um amigo incrível. Começamos a nos dar bem de uma
forma muito rápida. Foi em nosso primeiro plantão juntos, assim que me
mudei para Roseta. Ele também não é da cidade, então, já começamos com
algo em comum. E para ajudar, ele havia acabado de se casar com Roberta,
queria que sua esposa fizesse amizade na cidade. Cristiane era a pessoa
certa para esse papel. Tanto, que depois de seu falecimento, Roberta foi a
pessoa que mais sofreu depois de mim.

No dia da visita, ela acompanha Caio. Chega ao meu quarto, toda


preocupada. Fazia um tempo que não a via, já que fujo todas as vezes em
que ele me chama para sair. Nunca estou no clima. Não sei mais como é sair
sem a companhia da minha esposa. É sempre muito estranho. Sinto que
falta algo. E, na verdade, falta mesmo: minha melhor companhia.
Agora já faz um mês que estou em casa. Não via a hora de esse dia
chegar. Não aguentava mais aquela cama de hospital e ser acordado toda
hora para que as enfermeiras pudessem saber meu estado. Fora a comida
que, misericórdia, nem preciso comentar.

O que falta agora é voltar a trabalhar. Estou contando os dias, que na


verdade, serão meses. Ainda estou com uma proteção na perna e com a
tipoia para o ombro. É um saco não conseguir fazer nada direito. É nessas
horas que a raiva de estar viúvo bate mais forte.

Ao mesmo tempo, desde o acidente, sinto uma paz dentro de mim.


Alguma coisa mudou e não sei explicar bem o que foi. Ainda sinto saudade
da Cris, claro, porque isso nunca vai mudar, pelo contrário, só tende a
aumentar. Mas agora parece que não dói tanto. É como se ela tivesse falado
comigo por meio das minhas alucinações.

É como se ela me mostrasse através do último acidente que não está


na minha hora de ir embora. Tenho muito que viver. Que nossa história se
encerrou, mas que isso também abriu as portas para algo completamente
novo.

Quando penso nisso, sobre as novas possibilidades, vem em mente


aquela mulher, que nem ao menos pude perguntar o nome. Preciso ajudá-la
de alguma maneira a passar por todo esse luto. Luto que eu mesmo causei.
Preciso fazer isso por ela e por mim, já que nunca vou conseguir seguir em
frente sem seu perdão.

Saber que também fui o responsável pela perda de seu bebê mexeu
muito comigo. Não esperava por mais essa. Já bastava o noivo e Cris em
minha consciência. Já era peso o suficiente. Agora tenho que aprender a
lidar com mais esse. Um bebê inocente, que poderia ser o refrigério que ela
tanto merece.

O problema é como encontrá-la. Se não sei nem seu nome, como vou
descobrir o endereço? Nesse momento vem um estalo em minha mente. Ela
me visitou no hospital e para entrar é necessário ser identificada. Mas já faz
um mês, será que conseguirei ter acesso a esses registros?
Sem pensar duas vezes, troco de roupa e vou para garagem. Quando
lembro que não tenho nem condições físicas para dirigir, que dirá um carro,
já que ainda não consegui outro do seguro. Preciso resolver isso também.
Porém tenho algo mais importante hoje.

Pego meu celular e peço um Uber. Não quero perturbar Caio, muito
menos falar desse assunto com alguém agora. Algumas coisas a gente
precisa fazer sozinho. E essa é uma delas.

Assim que o carro chega, peço para ir direto para o único hospital da
cidade. Estando lá procuro pela enfermeira Márcia, foi ela quem me avisou
que uma moça havia ficado a noite inteira esperando por notícias minhas.
Será mais fácil convencê-la do que qualquer outra pessoa do hospital, já que
ela acha que eu e a tal moça temos um relacionamento amoroso.

Para minha sorte, ela está de plantão hoje. E logo é chamada para
falar comigo.

― Boa tarde! ― diz ela me cumprimentando.

― Boa tarde! Não sei se a senhora se lembra de mim, dona Márcia.


Há mais ou menos um mês que recebi alta daqui. Dei entrada após um
acidente de carro e...

― Senhor Lucca, certo? ― Ela abre um sorriso.

― Exatamente ― falo aliviado pela boa memória dela. ― Mas só


Lucca, por favor!

― Tudo bem. Lucca. Como tem passado? Está melhor?

― Sim, graças a Deus. Só não aguento mais ficar parado em casa.


Não vejo a hora de voltar a trabalhar.

― O senhor, quer dizer, você trabalha no SAMU, não trabalha?

― Trabalho. Sou médico há um tempo.


― Quando esteve internado, eu tinha certeza de que já te conhecia de
algum lugar. Agora tudo faz sentido. Somos assíduos frequentadores deste
hospital. ― Ela ri.

― Somos, sim, senhora. ― Rio também, sem conseguir esconder


minha aflição para ir direto ao assunto.

― Aconteceu alguma coisa? ― pergunta, confusa por não entender o


que eu tanto queria especificamente com ela.

― Não! Não, senhora. Mas preciso de um favor. Um grande favor, na


verdade. E acredito que só a senhora vai poder me ajudar.

― É claro, terei o maior prazer em ajudá-lo, se for possível.

― Aí que está o problema. Não sei se a senhora tem autorização para


fazer o que quero pedir. Se não fosse de extrema importância para mim,
jamais colocaria a senhora nesta posição.

― Pode falar, meu rapaz, se é importante o suficiente para estar tão


aflito prometo fazer de tudo para ajudá-lo.

― Lembra aquela moça que passou a noite no hospital esperando por


notícias minhas e que a senhora levou ao meu quarto no dia seguinte?

― É claro. ― Ela abre um sorriso. ― Como me esqueceria dela? Tão


linda e ao mesmo tempo tão triste. Ela estava realmente preocupada com
você naquele dia.

― Mais ou menos ― confesso.

Ela me olha, confusa.

― Nós não temos um relacionamento. Na verdade, foi ela quem


salvou minha vida naquele dia. Estava preso nas ferragens e o carro
começou a pegar fogo. Se ela não tivesse arriscado a própria vida naquela
hora, sem dúvida eu não estaria mais aqui.
Não quero entrar em detalhes sobre nosso outro passado, mas não
deixo de ser sincero ao demonstrar grande gratidão pelo que ela fez.

― Minha nossa! Não fazia ideia. Mas ela está bem?

― Está! Quer dizer... Não sei. Como não a conheço, também não a
vejo desde aquele dia. É por isso que estou aqui. Preciso muito agradecê-la
de uma forma melhor. Quando estava internado não consegui demonstrar
toda a minha gratidão. O problema é que não sei como encontrá-la. Nem ao
menos seu nome eu sei. Foi aí que me lembrei da visita que ela me fez e
que para entrar no quarto é preciso ser identificada.

― Acho que já entendi. Você quer que eu descubra o nome dela?

― Acha que é possível? ― pergunto, envergonhado.

Ela olha para um lado e depois para o outro. Nisso se aproxima mais
de mim e para ninguém ouvir fala bem baixinho:

― Como você imaginou, isso não é permitido, mas como é uma


situação especial, acredito que posso dar um jeitinho. Já volto.

Quase não acredito quando ela se afasta toda determinada a resolver o


problema que lhe dei. Fico na recepção aguardando, ansioso. Ela demora
mais do que estava disposto a esperar, mas entendo que não seja fácil
acessar essa informação de um mês atrás. Será que demorei muito para ter
essa ideia? Será que agora é tarde demais para encontrá-la?

Logo dona Márcia aparece no corredor. Caminha tranquilamente


como se nada estivesse acontecendo. Fico mais aflito por não conseguir
descobrir por sua feição se conseguiu a informação que tanto preciso.

Ela estica a mão para me cumprimentar. Retribuo o gesto e logo


entendo tudo. Um papel dobrado é colocado discretamente na palma da
minha mão.

― Boa sorte! ― Ela sorri, satisfeita com o resultado.


Assim que ela se afasta eu caminho com pressa para fora do hospital.
Abro o bilhete e lá está o nome: Manuela Orsini.

Agora ela não é só mais um rosto em minha memória. É uma mulher


com nome e sobrenome.

Orsini. Por que tenho a impressão de já ter ouvido esse nome? Não
faz sentido. Só me lembro de ter encontrado com ela nos dois acidentes que
sofri, e em nenhum dos dois dias foi falado esse nome.

Chamo o Uber. Peço para ser levado para casa. No caminho, forço
minha memória para me lembrar do porquê de este sobrenome me ser tão
familiar.

― O senhor mora em Roseta há muito tempo? ― questiono o


motorista.

― Nasci e fui criado aqui. E se depender de mim, não saio daqui nem
para morrer. ― Ele sorri.

― O nome Orsini é familiar para o senhor?

― Orsini? Olha, com esse nome conheço só a nova floricultura, que


inclusive está fazendo o maior sucesso na cidade. O trabalho deles é
diferenciado. Minha esposa ama.

É claro. Floricultura Orsini. Como não me lembrei disso antes? A


dona de lá deve ser parente ou conhecer Manuela, afinal, numa cidade
pequena todo mundo conhece todo mundo. E com o mesmo sobrenome a
chance de serem parentes é enorme.

― Mudança de planos, amigo. Preciso ir para a Floricultura Orsini.


Por favor!

― Sim, senhor!

Assim que o carro para em frente à floricultura, começo a sentir um


nervosismo que há tempos não sinto. Não sei o que está acontecendo
comigo. Em outra época, encontrá-la seria algo irrelevante. Já hoje, é
crucial.

Agradeço ao motorista por ter me ajudado nessa missão mais do que


achei que seria possível e, finalmente, entro na floricultura. Assim que vejo
quem é a mulher que está atrás do balcão, meu coração acelera.

― Posso ajud... ― Ela para no meio da frase quando me reconhece.

Não sei como começar a conversa. Fico um tempo parado, só olhando


para ela. Perdido e nervoso.

― O que você faz aqui?

― Na verdade, estou atrás de você, mas não sabia que trabalhava


aqui. Achei apenas que a dona pudesse ter alguma informação que me
ajudasse.

― Eu sou a dona daqui.

― Não sabia, mas preciso confessar, você faz um trabalho incrível.

Ela me olha, confusa, nunca estive ali antes, então, como posso saber
da qualidade de seu serviço.

― Não que seja importante, mas sou cliente daqui desde que abriu.
Sou o cliente de todo dia primeiro do mês.

― Rosas azuis ― ela fala meio que sem querer, como quem pensa
alto.

― Rosas azuis ― confirmo com um sorriso sem jeito.

Sem dúvida, sou a única pessoa a fazer um pedido tão específico


assim.
19

MANUELA

Não é possível. Em meio a tantas pessoas, ele tem de ser justamente


meu cliente mais fiel? O que eu fiz para merecer isso?

― Era sua esposa? ― Assim que faço a pergunta, já me arrependo.


― Esquece! Não tenho nada com isso.

Abaixo a cabeça e finjo continuar verificando as notas fiscais em


cima do balcão.

― Sim, era minha esposa. Eu disse que conhecia sua dor.

Aperto os olhos, lembrando-me de tudo que despejei nele no hospital


quando disse isso. Como imaginaria que ele também era viúvo? O que não
ameniza o fato de ter me deixado sem marido. Mas, mesmo assim, eu me
sinto horrível por tudo que disse.

― Sinto muito!

― Não se preocupe, não estou aqui para te deixar envergonhada ou


culpada por qualquer coisa que tenha dito naquele dia. Sei que mereço cada
palavra.

Ele tem razão. Independente de qualquer coisa que ele tenha passado
em sua vida, continua sendo o cara que arruinou a minha. Nada e nem
ninguém vai mudar isso.

― O que você veio fazer aqui então? Ou melhor, o que você ainda
quer comigo? Já não acha que fez o bastante?
Ele parece constrangido com minhas palavras. Não consigo evitar.
Quando menos espero, já estou atacando-o de novo. Ainda existe muita
raiva dentro de mim. Tudo poderia ter sido diferente se não fosse por ele.
Como vou esquecer isso?

― Em meio a tantas farpas que trocamos naquele dia, lembro que não
fiz o mais importante, que era te agradecer. Na verdade, ainda não sabia se
queria mesmo estar vivo. Morrer significava reencontrar Cris. Significa
ainda. Principalmente com toda a culpa que também carrego pela morte
dela. Talvez morrer fosse o caminho mais fácil.

― Quer dizer que você não matou só meu noivo e nosso bebê, mas
fez isso com sua esposa também?

Ele abre um sorriso amarelo.

― Não como você está imaginando e nem como foi com seu noivo.

Fico olhando para ele, esperando o resto da história, sem nem ao


certo saber se quero mesmo ouvir.

― Ela caiu em casa, saindo do banho, quando eu ainda estava de


plantão. Quando cheguei, não foi possível fazer muita coisa.

― Você é médico?

― Sim. Trabalho no SAMU. Fui atender justamente o chamado do


acidente dela. Sem dúvida, foi o pior chamado da minha vida.

Fico em silêncio sem saber o que dizer.

― Ela teve traumatismo craniano. Em meio à dor e ao sangramento,


ela só conseguia pensar numa coisa...

Ele faz uma pausa como se fosse difícil contar aquilo em voz alta,
ainda mais para mim, que sou alguém que não o trata bem desde sempre.

― No bebê!
― Ela também estava grávida?

― Estava. Lutamos muito para conseguirmos engravidar. E quando


finalmente aconteceu, ele se foi. Com a mãe dele. Fiquei sozinho desde
então. Sei o que é voltar para casa e esperar por alguém que nunca mais vai
chegar.

E lá vem minhas palavras de novo. Não acredito que ele teve de ouvir
tudo aquilo quieto. Sou mesmo horrível.

― Como já falei, não estou aqui para jogar na sua cara essas palavras.
Só quero mesmo que saiba que eu realmente sei o que você está passando.
E ser o causador de tanta dor acaba comigo. Não quero e nem mereço seu
perdão. Até porque, eu mesmo não me perdoei.

― É difícil encontrar alguém que saiba como é.

― Eu sei. Os amigos tentam ajudar, inclusive sou grato por isso, mas
não é a mesma coisa do que conversar com alguém que entenda de verdade.

Ele tem razão. Além da minha mãe, ninguém sabe como é. Ainda
tenho de agradecer por tê-la ao meu lado esse tempo todo. Não sei o que
faria se estivesse sozinha, como ele.

― Não quero justificar o que eu fiz a você naquele dia, mas é


importante que saiba uma coisa.

― Por favor, não quero falar sobre aquele dia. Ainda mais com você.

― Eu entendo. E, acima de tudo, respeito. Mas imploro, só me deixa


explicar uma coisa. Como disse, não é uma justificativa pelo que aconteceu
e nem vai diminuir sua dor e sua raiva. Só é importante para mim que você
saiba, não que eu mereça algo de você.

― Tudo bem. ― Eu me dou por vencida.

― Naquele dia fazia quatro meses da morte da minha esposa e, claro,


do bebê que nem teve a chance de nascer. Desde o falecimento comecei a
dobrar meus plantões. Ficar em casa sozinho não era uma opção. O que
antes era um conforto, hoje é uma tortura, como você mesma sabe. Os
pesadelos eram mais constantes e, com isso, dormir era o que eu menos
fazia. Foi por isso que apaguei ao volante. Como falei, não ameniza o que
fiz, mas sei que muitos falaram que eu tinha bebido ou que talvez estivesse
virado de alguma festa. Quando a verdade não era esta. Só quero que você
saiba o que realmente aconteceu, acho que é seu direito.

Ele tem razão. Não muda nada o que aconteceu. Porém, de alguma
forma que não sei explicar, foi importante saber a verdade.

― Não sei o que você espera que eu diga depois de ouvir tudo isso.

― Não se preocupe, não espero que fale nada. Só queria mesmo que
você soubesse. E que ouvisse de mim. Nunca pense que quem matou seu
noivo foi alguém leviano. Sei que errei e vou carregar esta dor para sempre
comigo. Saiba que jamais vou me esquecer do que fiz. E se um dia você
precisar de alguma coisa, qualquer coisa mesmo, é só me falar.

Ele entrega um cartão de visitas para mim.

― Já tomei muito do seu tempo. Antes de ir embora, se possível,


você pode arrumar para mim um buquê de rosas azuis?

Fico sem graça de falar que não quero fazer nada para ele, mas
também não quero ter de envolver minha funcionária nesta história toda.
Então, é melhor eu mesma arrumar logo e ficar livre dele de uma vez por
todas.

― Vai precisar de cartão?

― Não, vou entregar pessoalmente.

Assim que estico a mão para lhe entregar, ele me interrompe.

― Rosas azuis representam o infinito, o inatingível, e são usadas


principalmente para expressar sentimentos como gratidão, respeito,
admiração, desejo e amor. Não é à toa que Cris gostava tanto. No meu caso,
agora eu quero apenas te dizer: gratidão! Gratidão por ter salvado minha
vida.

Ele me dá as costas e sai, deixando aquele lindo buquê azul em


minhas mãos.

Um buquê de flores.

Tem tanto tempo que não recebo um que até me esqueci da sensação
gostosa que dá no peito. O último foi Samuca que me deu, é claro. Ele
sempre me surpreendia com seu romantismo. Mas nunca ganhei rosas azuis.
Elas são tão lindas. Não consigo parar de admirar o buquê ainda em minhas
mãos.

― Nossa, que buquê mais lindo, Manu! ― comenta Raquel assim


que entra na loja.

― É! São lindas.

― Encomenda especial? Temos mais um apaixonado além do cliente


do dia primeiro?

― Mais ou menos isso.

Como explico que ganhei flores do mesmo homem que matou meu
noivo? É no mínimo uma bizarrice.

Fico tão hipnotizada nas flores que nem escuto o barulho da porta da
frente abrindo. Sou surpreendida pela pessoa que menos tenho prazer em
encontrar.

― Que história é essa que estou ouvindo por aí? ― pergunta minha
ex-sogra com sua simpatia de sempre.

― Boa tarde para a senhora também!

― Não me venha com sarcasmo agora, Manuela! O assunto é sério!


Respiro fundo e mentalizo a voz tranquila de Samuca me pedindo
para sempre ter paciência com a mãe dele, pois um dia ela ainda gostaria de
mim.

― De que história a senhora está falando? Pois como pode ver, estou
trabalhando e não tenho muito tempo sobrando para as fofocas das pessoas
a toas desta cidade.

― Mas tempo para salvar aquele sujeito você encontrou, não foi?

Olho para ela, espantada. Como já está sabendo disso? De todas as


pessoas do mundo, isso tinha de chegar justo aos ouvidos dela?

― Vejo que a fofoca não anda nesta cidade, ela voa.

― Como em toda cidade pequena. Se não está satisfeita é só se


mudar, é muito simples.

― A senhora amaria se isso acontecesse, certamente.

― Não mude de assunto. Quero saber onde você estava com a cabeça
quando arriscou a própria vida para salvar o sujeito que matou o homem
que você dizia amar. O meu Samuel.

― A senhora, então, está preocupada comigo agora? Que gracinha!


Achei que esse dia nunca chegaria.

― Pare de ironia! Você sabe que odeio isso! E também sabe que é a
única mulher nesse mundo que pode gerar meu neto. Fora o nome dos
Manfredis que você faz questão de jogar na lama.

Raquel me olha, espantada com o assunto e com o tom de voz da


conversa.

― Olha! Com todo respeito, não vou discutir isso com a senhora.
Estou no meu local de serviço.

― Vamos para aquilo que você chama de escritório, então ―


responde e vai entrando sem ser convidada, como se fosse dona do lugar.
É o que os Manfredis sempre pensam que são donos do mundo e de
todos nele. Odeio essa mulher!

― O que a senhora quer ouvir de mim? Quer que eu fale que é tudo
mentira o que estão falando por aí? Porque não posso fazer isso. É tudo
verdade.

― Vindo de alguém como você, não sei o porquê de ainda me


surpreender. Como você foi capaz de fazer isso?

― Como fui capaz de salvar a vida de um homem?

― Não! Como foi capaz de fazer isso com Samuel!

― E o que a senhora queria que eu fizesse? Que o assistisse


morrendo queimado?

― Como você vai explicar para o filho do Samuel que você salvou o
homem que matou o pai dele?

― E como eu explicaria que não fiz nada para salvar a vida de uma
pessoa? Que matei um homem, assim como mataram o pai dele?

Ela simplesmente fica muda e me olha, furiosa.

― E outra coisa, não vai existir filho de Samuel nenhum, então pare
de falar isso.

― Não consigo entender como meu filho foi se envolver com alguém
como você, quando poderia ter qualquer mulher que quisesse.

― O que seria esse “alguém como eu”? Alguém que não tem o
dinheiro que a sua família tem? Que precisa trabalhar para ganhar a vida?
Que se importa mais em manter uma consciência limpa do que com o que
as pessoas estão pensando?

― Consciência limpa? E você ainda acha que esse homem tem


alguma consciência do que fez para minha família.
― Ele tem! Acredite!

― Ah! Então agora a bonita resolveu defendê-lo também?

― Não estou defendendo ninguém, só comentei. Mas quer saber,


esquece. Não é importante mesmo.

― É claro que não é importante! Não muda o que ele fez. Não muda
o fato de que meu Samuel nunca vai voltar. Ele teria vergonha de ter
escolhido você para ser mulher dele depois disso que você fez.

― Pare de falar em nome dele! A senhora não o conhecia como eu!


Ele não era mais aquele playboy da juventude que não se importava com
nada ao seu redor. Ele era um homem bom. Não era mais o “seu” Samuel.

― Você não sabe o que está falando. E, sinceramente, nem sei o que
vim fazer aqui. Conversar com você é inútil. ― Ela pega a bolsa e começa a
se dirigir para a saída do escritório. ― Como disse da última vez, a única
coisa boa da partida repentina do Samuel é que não deu tempo de você sujar
a linhagem dos Manfredis.

― Mal sabe a senhora que eu não acrescentaria esse sobrenome ao


meu. Pelo contrário, era Samuca que assinaria Orsini. Ele falava que teria
orgulho de carregar o sobrenome da minha família.

― Orgulho? Como pode alguém ter orgulho de uma família cujo pai
se matou no próprio jardim de casa, deixando esposa e uma filha passando
necessidades?

― Chega! Agora a senhora passou de todos os limites! Não vou


admitir que fale assim, ainda mais dentro da minha loja. Saia daqui! Agora!
Ou eu vou chamar a polícia.

― Você não faria isso ― debocha.

― Faria! E com muito prazer!


― Tudo bem! Eu já terminei. ― Caminha para fora do escritório,
mas antes de sair da floricultura faz questão de dar outro recado. ― Não
pense que vou desistir fácil assim do meu neto. Vou lutar pelo material
genético que meu filho deixou. Custe o que custar.

Nem me dou ao trabalho de responder. De acordo com todo o


material da clínica Alfagen que eu li, é praticamente impossível que ela
consiga os direitos. A não ser que ela use o poder do dinheiro para comprar
alguém. Se isso acontecer, quem vai querer entrar nessa briga sou eu. E ela
ainda não sabe como posso ser incansável quando quero.

― Está tudo bem, Manu?

― Não se preocupe, Raquel. Sempre que essa mulher aparece é esse


tormento. Já estou me acostumando.

― Nem parece mãe do Samuca.

― Você o conhecia?

― Pouco, mas conhecia. Nesta cidade acho que todo mundo conhece
todo mundo. Ele sempre foi gentil comigo. É uma pena que pessoas assim
sempre partam primeiro. Acho que é porque o mundo não merece a
presença delas.

Apesar de tudo o que falei para a dona Sônia, a culpa começa a tomar
conta do meu peito. Um sentimento muito ruim me invade com uma força
avassaladora. Olho em volta e sinto vergonha por ganhar flores da
floricultura que Samuel deixou para mim. E justo de quem: Lucca
Albuquerque. O homem que mudou minha vida para sempre.

― Raquel, hoje nós vamos fechar a loja mais cedo.

― Por quê? Aconteceu alguma coisa?

― Por favor! Só fecha a loja e vamos embora.

Entro em meu carro e, ainda parada em frente à floricultura, choro.


Choro por ter deixado aquilo acontecer dentro da nossa loja. Nosso lugar.
Nosso sonho.
20

MANUELA

Ainda dentro do carro, parada diante da floricultura, olho para o


banco do carona e vejo o bendito buquê. Por que não jogo isso fora ou
simplesmente o coloco à venda de novo? Não! Tenho que trazê-lo comigo
para me torturar a cada lugar que eu for.

Falando em lugar, dirijo ao supermercado mais próximo para comprar


algumas besteiras para comer. Nada melhor do que comida para mudar o
humor.

Enquanto caminho pelos corredores empurrando meu carrinho, sinto


os olhares diferentes em cima de mim. Respiro fundo e tento pensar que
isso não passa de imaginação da minha mente perturbada pelas acusações
de minha ex-sogra.

Desisto logo. Não consigo fingir que nada está acontecendo e


continuar plena na minha paz. Até porque nem eu estou em paz comigo
mesma depois do que fiz. Como vou julgar os olhares se dentro do meu
coração a vergonha me corrói?

Pego o que tenho de pegar e volto para meu carro o mais rápido
possível. Porém, não consigo voltar para meu apartamento. Sinto-me
indigna de ficar no local onde mais ficávamos juntos. Onde passamos os
melhores momentos.

Quando me dou conta estou dirigindo para onde o vi pela última vez,
já sem vida, a caminho da igreja para nosso casamento. Depois da morte de
meu pai, nunca imaginei que algo tão ruim aconteceria comigo novamente.
Achei que já tinha gastado minha cota.
Minha mãe sempre diz que tudo em nossa vida acontece por um
propósito. Ainda não consigo enxergar nenhum propósito nessas duas
perdas tão repentinas. Mas talvez não seja para eu entender mesmo. Só sei
que tudo ainda é muito dolorido. Não concordo quando dizem que a dor
com o tempo passa ou ao menos diminui. A minha só cresce. A dor, a
indignação, a raiva e, agora, a culpa.

— Desculpa, meu amor! Talvez sua mãe esteja certa quando diz que
eu não merecia um homem como você. E, talvez, seja por isso que você
partiu tão cedo. Foi um livramento de Deus para que não tivesse de passar o
resto da sua vida com uma mulher como eu.

As lágrimas mais uma vez tomam conta de mim. Odeio chorar. Sinto-
me tão fraca e vulnerável nesse estado. Mas acho que chorar faz parte do
processo do luto. A dor, a saudade e o sentimento de vazio são tão grandes
que precisam sair de nós por algum lugar.

— Bem lá no fundo, gosto de pensar que você teria a mesma atitude


que a minha com aquele homem. Você era um homem bom. Muito melhor
do que eu, inclusive. Por que me sinto tão culpada e tão mal por tê-lo
salvado, então? Será mesmo que me sentiria melhor se tivesse
simplesmente passado direto e depois avisado alguém do acidente?

Meu celular começa a tocar. Minha mãe. No mínimo a fofoca da


cidade já chegou aos seus ouvidos. Deixo chamar até desligar. Mas envio
uma mensagem no WhatsApp para não preocupá-la sem necessidade.

MANUELA: Estou bem. Só não quero conversar agora. Já


imagino o assunto. Mais tarde ligo para a senhora. Desculpa. Beijo.

Aguardo um tempo. Logo a resposta dela chega.

ANA: Sem problema, minha filha. Só estou preocupada com você.


Sei que não está bem, mas respeito seu tempo. Quando quiser
conversar, você sabe onde me encontrar. Só não se torture demais. Não
fez nada errado. Amo você.

Pelo visto, o assunto é mesmo o acidente. Por que essas pessoas têm
tanto prazer em falar da vida alheia dessa forma? Não se contentam em
apenas espalhar o que aconteceu. Tudo tem de ser carregado de julgamento
e de críticas. Não suporto isso.

Volto para meu apartamento e por lá fico o restante do dia. Como as


coisas gostosas que comprei, que nenhuma nutricionista recomendaria, mas
me sinto cada vez pior. Abro uma garrafa de vinho e, quando vejo, já estou
virando a última gota na taça. Não acredito que tomei uma garrafa inteira
sozinha dessa forma. Acho que preciso ir para cama antes que eu faça
alguma besteira no estado em que me encontro. Não quero mais problemas.
Já tenho o suficiente para uns cem anos de vida.

Meu despertador toca e não consigo nem me levantar da cama. Como


essa noite passou tão rápido? A última coisa que quero é voltar à
floricultura. E se Lucca aparecer lá de novo, o que vou fazer? Colocá-lo
para correr? Não vou ter coragem de fazer isso. E se também espalhar pela
cidade que ele é cliente de lá e que, inclusive, me deu flores de presente?
Tudo bem que ninguém viu essa cena. Mas só de pensar em outra visita da
minha simpática ex-sogra me pedindo explicações já me deixa ainda mais
preocupada.

Está decidido! A floricultura não vai abrir hoje. Envio uma


mensagem para Raquel falando para ela tirar um dia de folga. Não entro no
mérito da questão, quero manter com ela um relacionamento estritamente
profissional.

Depois fico me questionando: por que Lucca voltaria à floricultura


depois de ontem? Aparentemente, ele já fez e falou tudo o que precisava.
Não tem por que voltar. Estou preocupada com isso à toa. É tanta coisa na
minha cabeça nesses últimos dias que a paranoia está tomando conta de
mim.
Mesmo assim não volto atrás na minha decisão de fechar a
floricultura, já que também me acho indigna de vê-la funcionando depois de
trair Samuca quando salvei Lucca.

Um dia termina e outro começa, e nesse ritmo já faz três semanas que
a floricultura permanece fechada. Raquel me enviou algumas mensagens
com medo de ser demitida, perguntando se deveria começar a procurar
outro emprego. E é claro que tive de tranquilizá-la, afinal, a última coisa
que preciso é perder uma funcionária boa igual a ela.

Minha mãe também já veio ao meu apartamento saber o que está


acontecendo. Tive de me abrir com ela. Expus tudo o que penso e sinto em
relação ao salvamento. Pelo visto, ela deve ser a única na cidade que
acredita que o que eu fiz foi muito honrado e corajoso. Acho que o mundo
precisa de mais pessoas iguais a minha mãe. Nem eu consigo ser assim.
Talvez eu seja adotada, por isso não me pareço em quase nada com ela.

Ela me coloca contra a parede. Quase me obriga a abrir a floricultura


imediatamente. Diz que fugir dessa forma é o que envergonharia Samuca, e
não o que as pessoas da cidade estão falando sobre mim. E se ela estiver
mesmo certa, preciso sair o quanto antes desse apartamento e voltar para
minha vida. Não posso decepcioná-lo, mesmo que ainda não esteja mais
aqui. E também não quero decepcionar minha mãe. É a única que me
mantém de pé até hoje. Preciso tomar uma atitude!

LUCCA

No dia seguinte a minha visita a Manuela me sinto um pouco


estranho. Não consigo deixar de lado a vontade de voltar lá, apenas para
saber como está. Sem dúvida ela não vai querer nem me ver, que dirá
aceitar conversar comigo. Preciso tirar essa ideia da cabeça. Nós não
podemos ser amigos. Não depois de tudo o que causei a ela. Em outras
circunstâncias, poderia até ser uma amizade legal, mas não com nosso
histórico.
O dia passa e me vejo completamente perdido em casa. Não vejo a
hora de voltar a trabalhar para pelo menos fazer o tempo passar mais
depressa. Odeio ficar à toa em casa, ainda mais sozinho, sem alguém para
conversar.

Resolvo procurar um filme para assistir na Netflix. O que não é nada


agradável, já que faz me lembrar de todas as vezes que Cris me chamou
para assistir alguma coisa com ela e eu disse estar cansado demais. Agora
daria tudo para assistir a um filme ao seu lado, mesmo que fosse aqueles
natalinos que ela amava. Essas lembranças são sempre dolorosas demais.
Desisto e desligo a televisão.

O dia seguinte chega e a mesma vontade continua dentro de mim.


Acho que dessa vez não vou conseguir mais ignorar. Tomo banho, troco de
roupa e peço um Uber, já que com a perna e o braço quebrados é impossível
dirigir.

Assim que chego à Floricultura Orsini, vejo que está fechada. Ainda é
dia de semana, não tem razão para não ter aberto. Abordo o comerciante ao
lado, identifico-me como um cliente e pergunto se ele sabe de alguma coisa.

― Não sei, amigo. Tudo que sei é que está assim desde ontem.

― Ontem também não abriu?

― Não. Mas, sinceramente, não me surpreende. Coitada dessa moça,


muito triste o que aconteceu no casamento dela. Ela é ainda muito jovem
para ter de lidar com mais essa perda.

― Fiquei sabendo do acidente. ― Finjo não ter nenhuma relação com


esse assunto. ― Ela deve enfrentar dias muito difíceis. O senhor disse
“lidar com mais essa perda”, como assim?

― Pelo visto você não deve ser da cidade.

― Moro aqui há poucos anos.


― Foi o que imaginei. É que todos daqui sabem a história do pai
dela. Ele se matou no jardim da própria casa quando ela ainda era uma
adolescente. Não sei até hoje como superou aquilo.

Saber o que Manuela passou quando jovem me deixa ainda pior por
ter trazido ainda mais sofrimento para a vida dela. Não a conheço o
suficiente, mas, sem dúvida, não é alguém que mereça passar por isso.
Acho que, na verdade, ninguém merece. É tudo muito triste. Sinto-me mal
por ela e, preocupado, resolvo deixar um bilhete enfiado debaixo da porta
da floricultura.

Volto nos dias seguintes e repito meu ritual. Não sei o que vai achar
disso tudo, mas talvez se sinta um pouco melhor sabendo que me preocupo
de verdade com ela. Minha rotina se repete todos os dias das três semanas
em que a floricultura permanece fechada.

Até que chega o primeiro dia do mês. Dia em que ela arrumaria as
rosas azuis para levar ao cemitério. Fico triste por saber que hoje não vou
ver as rosas no túmulo. Ainda não estou pronto para romper com esse
costume.

No lugar de ir à floricultura, vou ao cemitério, mesmo sabendo que


Cris não gostaria nada desse meu costume. Sei que não tem ninguém lá e
que passo um tempo conversando com uma pedra. O problema é que tudo
isso ainda me faz bem.

É quando chego lá que sou surpreendido.


21

MANUELA

Sei que preciso voltar a minha vida normalmente. Só não marco data
específica para isso. O problema que hoje é o primeiro dia do mês. Dia de
levar as rosas azuis para o túmulo de Cristiane.

Por mais que eu tenha minha mágoa com Lucca, não é justo fazê-lo
quebrar essa tradição com sua esposa por minha causa. Sei o quanto essas
datas são difíceis para quem perdeu alguém que tanto amava. Não quero
deixá-lo pior apenas para manter meu orgulho.

Envio uma mensagem para Raquel falando que hoje retomaremos


nosso serviço normalmente, mas que entendo se ela não puder ir, já que
aviso bem em cima da hora. Ela me responde, animada, falando que irá sem
dúvida e que não via a hora de esse dia chegar.

Parece que ela gosta mais da floricultura do que a própria dona. Em


parte é gostoso saber que alguém tem tanto carinho pelo projeto que
Samuca e eu idealizamos juntos. O ruim é que me faz sentir mais culpa por
não amá-la como deveria. Por não cuidar desse sonho como ele faria se
ainda estivesse aqui.

Chego à floricultura com Raquel. Assim que se aproxima, ela me


abraça. Não fala uma palavra sequer. Todos da cidade conhecem minha
história. Mais até do que eu desejo. Então, ela sabe que tenho enfrentado
uma barra bem grande. E nessas horas não há palavras que confortem. Um
abraço pode ser tudo.

Depois que nos afastamos, ela, mesmo percebendo meus olhos cheios
de lágrimas, continua em silêncio. Dá um sorriso, aperta minha mão e entra
na floricultura. Começa a fazer suas tarefas sem qualquer questionamento.
Mal sabe o quanto aquilo faz com que eu me sinta melhor. Conquistando
uma amizade que tanto relutei para evitar. Sinto-me menos sozinha. E esse
sentimento é bom.

Olho para as correspondências jogadas no chão, por debaixo da porta,


e meu coração dispara quando vejo o tanto de bilhete do Lucca.
Aparentemente, um por cada dia que a loja ficou fechada. Por quê?

Fico com medo da minha reação ao ler, então me afasto para meu
escritório e leio um por um. Pela primeira vez desde o acidente do Samuca
eu não sinto raiva por esse homem que virou meu mundo de pernas para o
ar. Os bilhetes são pequenos, com poucas linhas escritas. Em contrapartida,
são recheados de afeto e de preocupação. E apesar de ser o causador de toda
minha dor, sei que entende o que é estar de luto.

Um desejo de conversar um pouco com ele cresce em meu coração.


Poder colocar para fora tudo o que tenho guardado só para mim desde o dia
do meu casamento. Saber que ele não julgará nada do que eu falar por viver
um momento como o meu. E mais ainda, de que não me olhará com pena,
como todos os outros fazem. É enlouquecedor esse olhar.

Depois volto ao meu estado normal e percebo o quão absurdo tudo


isso é. Como posso desejar conversar justamente com ele? É tudo o que não
posso fazer nessa vida. Não posso trair Samuca dessa forma. Não é justo
com ele. Não é justo com o nosso amor, que apesar de destroçado, ainda
vive em mim. Só em mim agora.

Afasto todo esse sentimento de culpa que volta a florescer e saio do


meu escritório para preparar as rosas azuis para levar ao cemitério. Preciso
ficar livre disso logo.

― Ele já ligou encomendando?

Volto dos meus devaneios um pouco perdida.

― O quê?

― O rapaz das rosas azuis de todo dia primeiro. Ele já ligou hoje?
― Não. Só estou adiantando.

― Acha que um dia ele vai conseguir parar com esse ritual?

― Sinceramente, não sei. É difícil romper com certas coisas.


Algumas rotinas nos ajudam a manter o foco, a passar os dias de
aniversários, a suportar a vida que continua.

Pela primeira vez consigo falar como se ela fosse mais do que uma
funcionária incrível que tive a sorte de encontrar. É alguém que vem
conquistando aos poucos um lugar em meu coração.

Assim que termino de arrumar, aviso que vou ao cemitério.

― Você não vai nem esperar a ligação dele dessa vez como sempre
faz?

― Não! Vou ficar livre disso logo. Odeio cemitérios.

― Acho que no fundo ninguém gosta.

― Tem doido para tudo nesse mundo.

Trocamos um rápido sorriso e saio de carro para minha missão de


todo mês. Ainda no caminho, olho com o canto de olho para o buquê no
banco do passageiro. Essa cena faz me lembrar do buquê que ele me deu.
Sempre ganhei rosas vermelhas do Samuca, mas azuis foi a primeira vez
que alguém me deu.

Chegando ao cemitério me apresso para ir ao túmulo da Cristiane,


tentando afastar da minha mente as duas pessoas que também deixei por ali.
Os dois homens que me deixaram sem qualquer aviso prévio. Sem nem ao
menos um adeus.

Agacho para depositar o buquê e resolvo sentar um pouco ali no chão.


Nunca consigo deixar as flores e simplesmente virar as costas para
continuar com meus afazeres. Mesmo sabendo que às vezes me sinto uma
louca todas por conversar com alguém que não pode me ouvir mais.
Os minutos passam até que sinto a presença de alguém perto de mim.

LUCCA

Não consigo acreditar no que meus olhos veem. Até tiro meus óculos
escuros para enxergar melhor a pessoa que está sentada perto do túmulo da
Cris. É quando ela parece sentir a minha presença e vira em minha direção.

― Desculpa, não quis te atrapalhar ― digo assim que ela se levanta,


apressada e um pouco constrangida.

― Você não tem de me pedir desculpas.

Trocamos um olhar estranho por ser a primeira vez que ela diz algo
diferente de tudo o que já me falou.

― Pelo menos, não por isso ― ela conserta a frase.

Abro um sorriso entendendo muito bem o recado.

― Se quiser ficar mais um tempo, eu posso voltar depois.

― Claro! Até porque deve ser muito fácil andar por aí com essa perna
e o braço quebrado para voltar várias vezes ao cemitério.

― É a primeira piada que escuto saindo de seus lábios.

― Às vezes elas apenas escapam.

― Gosto de você assim. Não que eu tenha qualquer direito de apoiar


ou criticar alguma atitude sua.

― É! Não tem! ― Ela volta ao seu estado “normal” comigo.

Finjo não me importar e continuo a conversa.


― Achei que não fosse abrir a floricultura hoje.

Ela me olha, envergonhada.

― Não sei se estou pronta para voltar, mas hoje é dia primeiro. Tenho
um cliente que sempre faz uma encomenda especial nessa data. Não quis
deixar o dia dele pior.

Ouvir isso me pega de surpresa. Não imaginei receber dela um


tratamento assim.

― Não fique com essa cara, continuo não gostando de você.

― Acho que não tem como ser diferente.

― É!

― De qualquer forma, agradeço por você se importar. Mesmo eu não


entendendo muito bem o porquê, sendo eu quem sou.

― Não fiz para o homem que destruiu minha futura família, mas para
aquele homem que perdeu a sua.

Fico sem palavras. Vim ao cemitério me sentindo um pouco pior do


que de costume por acreditar que não teria ali as flores que Cris sempre
gostava. Ainda é importante esse meu ritual maluco. Não estou pronto para
deixá-la para sempre.

― É apenas uma trégua por saber que o dia de hoje deve ser mais
difícil que os outros. Sei como são essas datas. É só por isso.

― Obrigado! Foi importante para mim.

Trocamos um olhar estranho. Novo.

― Agora preciso voltar para a floricultura. Estou atrasada.

― É claro. ― Assim que acabo de falar, ela já caminha se afastando


de mim.
― Lucca? ― Ela pára e volta a falar comigo mesmo à distância. ―
Obrigada pelos bilhetes! Foi importante. ― Depois se afasta, indo embora
de vez.
22

MANUELA

De volta à floricultura sinto meu coração um pouco mais leve. Não


sei explicar muito bem. É um sentimento novo. De uma forma estranha me
sinto bem por ter uma conversa mais educada com Lucca. Não que eu tenha
esquecido tudo que aconteceu ou que o perdoado. Como disse para ele, foi
apenas uma trégua pelo dia de hoje.

Depois fico a maior parte do tempo no escritório, cuidando de toda a


papelada atrasada por conta das três semanas que fechei. Mal sinto o tempo
passar. Consigo fazer tudo que é necessário. E é gratificante dar conta do
trabalho sem me perder nos meus pensamentos sombrios, como
normalmente acontece.

Quando dá o horário de fechar, despeço-me da Raquel e, no lugar de


voltar para casa, dirijo até a casa da minha mãe. Apesar de já ter contado
para ela o motivo de não trabalhar por todos aqueles dias, faz um tempo que
não nos vemos.

― Oi, mãe ― falo assim que abro a porta com a chave que ainda
tenho.

― Estou na cozinha! ― ela grita de lá.

― Hum! O que está fazendo de gostoso por aí?

― Você parece adivinhar todos os dias que faço bolo. Certeza de que
colocou uma câmera escondida aqui em algum lugar.

― Desculpa, mas não era para a senhora descobrir tão rápido.


― Tem gente que está de bom humor hoje. Gostei de ver. Pode
contar.

Sento à mesa já pegando um pratinho para colocar um pedaço


generoso do bolo de chocolate com cobertura que ela fez.

― Pode contar o que, mãe?

― Não se faça de desentendida. Alguma coisa aconteceu para você


estar assim. Sou sua mãe e te conheço melhor até do que você mesma.

― Pior que eu sei. ― Dou um sorriso, ela o retribui. ― Não houve


nada. Acho que esse é o motivo. Nesses últimos meses aconteceram tantas
coisas ruins que já estava desacostumada com os dias normais.

― Com o tempo tudo se encaixa e volta à rotina. É o que sempre te


falei.

― Sim! Rotina às vezes é bom. E por falar nisso, abri a floricultura


hoje.

Ela arregala os olhos, ao mesmo tempo surpresa e contente com a


notícia.

― Fico muito feliz por você, meu amor.

Depois conto a ela sobre meu encontro com Lucca. Falo um pouco de
nossa primeira conversa como dois adultos civilizados e como me sinto
com tudo isso. Ela, certamente, será uma das poucas pessoas que não vai
me julgar.

― É bom ouvir isso de você, Manu. Quanto antes você tirar a mão do
pescoço desse rapaz, mais cedo vai conseguir ficar bem ou, ao menos,
melhor. Isso é o perdão.

― Não o perdoei, mãe. Não consigo, então, não se iluda.

― Perdão é um processo. Não será do dia para a noite.


― Mas o que as pessoas vão falar dessa história toda?

― Quem se importa, Manu? Você precisa parar de se preocupar com


os outros, eles sempre vão pensar e falar alguma coisa. Não está ao nosso
alcance controlar isso.

― Tem Samuca também.

― O que tem ele?

― Como posso fazer uma coisa dessas com ele?

― Como pode voltar a ser feliz? Sem dúvida ele seria o primeiro a te
apoiar nessa história. Ele te amava e amar é querer a felicidade do outro.

― Não acho que seja tão simples assim.

― Não acha ou não quer que seja?

― E faz diferença?

― Você sabe que sim. Para mim, você tem é medo de seguir em
frente.

Recuso-me a responder. Não quero brigar com ela. Odeio quando isso
acontece. E, no fundo, mãe sempre tem razão. Por isso é bom nunca
discutir.

Como mais um pedaço de bolo e mudo de assunto. Não quero


estragar o dia que tive. Depois me despeço e volto para meu apartamento.
Tomo um banho. Arrumo tudo que preciso e resolvo dormir mais cedo.
Quanto menos tempo eu ficar pensando, melhor é.

No dia seguinte, acordo bem e vou trabalhar. O tempo se arrasta um


pouco, já que não tem muito serviço. E é bom ter Raquel por perto, só
assim tenho alguém para me ajudar a me distrair e fazer a hora passar.

Poucas pessoas entram e saem. Não é nenhum dia comemorativo,


então, o movimento fica mais fraco mesmo. E é no período da tarde que
recebo uma visita que não esperava.

― Oi! ― ele diz para mim depois de cumprimentar Raquel.

O que ele faz aqui de novo? Achei que não o veria tão cedo.

― Oi... ― respondo meio relutante.

― Vim acertar as flores de ontem.

― Não precisa, você nem as encomendou. Eu que resolvi levá-las.

― Faço questão. Você apenas não quis quebrar meu pequeno ritual. E
já foi muito gentil por ter se preocupado com isso. Não tem de arcar com o
custo também.

― Se você insiste.

― Por favor! ― ele diz já abrindo a carteira.

― Não precisava ter vindo pessoalmente. Ainda mais nessas


condições. Você sempre me enviou Pix, pode continuar assim.

― Eu sei e agradeço. Mas preciso confessar que está entediante ficar


em casa o dia todo. Precisava sair um pouco, então, aproveitei.

Como vou discutir isso? Sei muito bem que ficar em casa à toa é a
parte mais complicada de estar sozinho. Apenas aceito o pagamento sem
falar mais nada e depois ele acaba indo embora.

O dia termina sem maiores acontecimentos. E, da mesma forma,


outro começa. Para minha surpresa, mais uma vez Lucca volta a aparecer.
Quero saber qual a desculpa de hoje.

― Oi! ― ele diz abrindo um sorriso discreto com um leve brilho


naqueles olhos azuis.

― Vou começar a achar que está me perseguindo ― falo em um tom


um pouco de brincadeira.
― Desculpa, está mesmo ruim ficar em casa esses dias. Pensei em te
trazer um café. ― Ele me entrega um copo quentinho de café.

― Não precisava.

― Eu sei, mas você parece ser o tipo de pessoa que não é capaz de
parar muito o serviço para comer ou ao menos tomar um café.

Olho para ele com estranheza, mas como é um crime recusar um café
fresquinho assim, acabo bebendo.

― Posso fazer uma pergunta? ― ele indaga.

Apenas balanço a cabeça positivamente.

― Como consegue transcrever cartões de amor, ver pessoas


apaixonadas passando por aqui, com tudo o que está passando?

Permaneço em silêncio. Pela primeira vez alguém demonstra entender


como é difícil estar em uma floricultura enquanto vive o luto. E mesmo que
ele seja o responsável por todo esse caos é importante saber que pelo menos
alguém me entende.

― Sei que não tenho nada com sua vida e que talvez você não queira
falar desse assunto justamente comigo. Então, esqueça minha pergunta. Não
deveria ter feito. Acho que é melhor eu ir. Não quero te atrapalhar mais ―
ele diz e já vira as costas para sair.

LUCCA

― Espera!

Eu a olho de volta.

― Tem dia que é mais difícil que o outro. A maior parte do tempo eu
penso em fechar tudo e me trancar em meu apartamento. Talvez ficar lá
esperando até ele aparecer, mesmo sabendo que isso nunca vai acontecer.

Ela faz uma pausa e me olha com ternura. Prefiro não interromper e a
deixo colocar o que sente para fora.

― É nesses dias que me forço a lembrar do quanto essa floricultura


era importante para ele. O quanto ele sonhou com cada detalhe. A
homenagem que fez colocando meu sobrenome. Era o nosso sonho. Acho
que devo a ele fazer dar certo.

― Talvez seja esse o segredo de tudo, não é? Seguir com os sonhos,


mesmo que sozinhos.

― Talvez!

Mesmo desejando passar o dia todo aqui apenas conversando com


ela, vou embora.

Quem sabe eu consiga inventar outra desculpa para voltar amanhã?


23

MANUELA

Não sei o que anda acontecendo comigo. Lucca sempre inventa uma
desculpa diferente para aparecer na floricultura todos os dias. Já faz um mês
dessas visitas. E o pior de tudo é que estou gostando das nossas conversas,
mesmo que rápidas. Às vezes é bom conversar com quem realmente
entende o que a gente está passando. E se tem alguém nessa cidade que sabe
o que é perder alguém, é ele.

A cada conversa que temos sinto aquele clima pesado que havia entre
nós diminuindo. Não esqueci o que ele fez e tudo o que causou, acredito até
que isso nunca vá acontecer. Perder um noivo no dia do próprio casamento
não é algo que se esqueça.

O que vem mudando é a forma como eu o olho. Não consigo fingir


que não vejo que ele é um homem decente. E que, acima de tudo, também
sofre com a perda da esposa e com o acidente que me destruiu. Posso até
mesmo dizer que é uma pessoa bem-humorada, pois já conseguiu arrancar
de mim alguns sorrisos.

Em algumas ocasiões me sinto importante para ele, quando


compartilha comigo alguns momentos de sua vida com Cristiane e como
vem lidando com sua ausência. Normalmente este é um assunto que
evitamos falar com qualquer um, sei muito bem disso. Eu, por exemplo, só
falo disso com minha mãe, mas ultimamente também divido um pouco com
ele.

O melhor de tudo é que ele é um bom ouvinte. Às vezes me pego


contando a mesma história duas ou três vezes. Ele nem demonstra se
importar. Ouve sempre com a mesma atenção e com o mesmo carinho.
Definitivamente, tem se tornado um bom amigo.
O problema é que não sei se devo nutrir essa amizade. Ainda me sinto
culpada por me aproximar dele tanto assim, quando deveria ser a última
pessoa do meu convívio. É inevitável considerar tudo muito estranho e
errado entre a gente. Minha mãe tem razão quando diz que o Samuca
gostaria de me ver seguindo em frente, mas mesmo assim não consigo achar
justo com ele. De todas as pessoas da cidade, por que devo ser amiga
justamente dele? É inexplicável!

Sei que hoje ele também vai aparecer na floricultura e me sinto cada
vez mais ansiosa por sua chegada. E para piorar a situação, não consigo
evitar um sorriso quando ele aparece todo feliz e me olha com aqueles olhos
azuis mais lindos que já vi em toda minha vida.

― Espero que você ainda não tenha me denunciado, não estou muito
em condições de correr ― ele diz olhando para a perna da cirurgia.

― Denunciar por quê? ― Fico confusa.

― Por perseguir você, talvez.

Sorrio com a lembrança dele do dia em que eu mesma falei isso.

― Acho que você não corre esse risco ainda.

― Ainda?

― É claro, não vou ser baixa a ponto de fazer um homem com apenas
uma perna boa correr da polícia. Consigo esperar até que você fique bom.

― Ah! Muito obrigado! Você é muito gentil.

Nós dois rimos.

― Acabei de passar um café, você aceita? ― Mal acredito que sou eu


quem faz esse convite.

O que deu em mim para fazer isso? Quando vi já tinha falado em voz
alta e não dava para voltar atrás.
― E alguém consegue recusar um convite desses? ― ele responde
com a cara mais cínica e linda do mundo.

Não consigo esconder minha vergonha.

― Acho que me expressei mal. Quis dizer, alguém consegue recusar


um café fresquinho? Porque eu não consigo.

Fico mais envergonhada por ver que ele percebe o quão sem graça eu
fiquei.

― Você me trouxe um café uma vez, acho que fiquei te devendo. Não
gosto de dever a ninguém, então, é melhor já ficar livre de uma vez.

Agora é a vez de ele ficar sem graça.

― Não que eu queira ficar livre de você, não foi o que quis dizer.

― Manu! Está tudo bem, eu entendi.

Manu. É estranho ouvi-lo me chamando por meu apelido. Parece que


foi ontem mesmo que despejei toda a minha raiva e dor em cima dele no
hospital. E agora estamos aqui, jogando conversa fora enquanto tomamos
um café.

Ficamos mais de hora sentados na cozinha, nos fundos da floricultura,


apenas conversando. Até me esqueço de que estou em meu local de trabalho
em plena tarde de sexta-feira. Há muito tempo não me sinto tão leve dessa
forma. Chego a me esquecer de quem ele representa para mim. Durante
esse tempo ele é apenas um amigo. Um bom amigo, inclusive. Uma pessoa
que tem me feito bem. E isso me assusta.

LUCCA

Às vezes eu desejo parar o tempo e aproveitar cada vez mais


momentos como esse na companhia da Manu. Fico surpreso por ela me
tratar bem, como vem acontecendo. Não mereço nem o respeito dela, quem
dirá a amizade que estou conquistando. Não sou digno de nada que ela
possa me proporcionar depois de tudo o que fiz.

Tento ir o mais devagar possível com ela. Não quero forçá-la a nada.
Muito menos a ter de conviver comigo. Ao mesmo tempo sinto uma
necessidade absurda de cuidar dela, de fazê-la feliz de novo da forma como
merece. Não sei de onde esse sentimento veio. Só sei que é bom, como há
tempos não sinto.

Por outro lado, também me sinto culpado por todo esse sentimento. A
única mulher que mexeu comigo dessa forma foi Cris. Sempre imaginei que
só sentiria isso por ela. Não esperava perdê-la tão cedo como foi. Por não
ter chegado a tempo naquele dia sinto que não mereço sentir algo assim
novamente. Porém, quanto mais tento evitar, mais me vejo correndo atrás
da Manu. Não consigo mais fugir.

De repente, ela interrompe meus pensamentos e diz que precisa voltar


a trabalhar.

― Desculpa, não queria te atrapalhar. Perco a noção do tempo


quando estou com você.

Ela desvia o olhar, sem jeito, e se levanta para sair.

― Não se preocupe, você não atrapalha.

Essas palavras são músicas para meus ouvidos. Não consigo disfarçar
minha alegria e abro um sorriso. Então, ela me acompanha até a porta da
floricultura, o que é uma coisa nova. A cada passo que dou sinto menos
vontade de ir embora e ficar longe dela.

― Posso te fazer um convite? ― pergunto assim que chego à porta.

― Depende. ― Ela abre um sorriso.

― Gostaria de comer uma pizza comigo, amanhã à noite?


Vejo seu semblante mudar completamente. O sorriso dá lugar a um
rosto sério e preocupado.

― Não se preocupe, não é o que você está pensando. ― Tento


consertar o convite o mais rápido que consigo. Sinto que posso perdê-la
aqui, agora, se não usar as palavras certas. ― É só uma pizza entre dois
amigos. Odeio comer sozinho e, como você sabe, não gosto de ficar em
casa sem fazer nada por muito tempo. Se não fosse por você, já estaria
louco.

Abro um sorriso para amenizar o clima estranho. Ela apenas me olha,


meio perdida, como se não soubesse o que dizer.

― Tudo bem se já tiver compromisso, podemos marcar outro dia.

― Não é isso. É que...

Ela interrompe a frase e desvia o olhar.

― Vamos fazer o seguinte... Você pensa mais um pouco e depois me


liga ou manda uma mensagem falando o que resolveu. O que acha?

― Acho ótimo. Aviso você, então.

Pelo menos não foi dessa vez que estraguei tudo. Ainda há esperanças
de ela aceitar.

― Maravilha! Aguardo você. Até mais! ― falo e saio, já entrando no


carro de aplicativo que me espera em frente.
24

MANUELA

Assim que Lucca vai embora, eu entro completamente perdida. Sem


reação.

— Está tudo bem, Manu?

Percebo que Raquel fala comigo, mas não sei o que diz.

— Oi?

— Você está bem? Parece preocupada, até um pouco aflita.


Aconteceu alguma coisa?

— Estou bem! — Tento abrir um leve sorriso para convencê-la da


minha resposta. — Preciso só resolver umas últimas coisas no escritório.
Qualquer coisa você me chama?

— Pode deixar. Não se preocupe.

Entro no escritório, fecho a porta e revivo em pensamento o convite


de Lucca. Sinto um pouco envergonhada por ter deixado transparecer o
quanto fiquei perdida, sem saber o que dizer. Devia ter falado não e pronto,
sem constrangimento algum. Ele sabe muito bem que nunca vai acontecer
nada entre nós dois.

Ao mesmo tempo penso que pode ser legal sair para comer uma pizza
com uma companhia agradável, só como amigos, como ele mesmo disse.
Posso ser um pouco precipitada também, afinal, estou tanto tempo “fora do
mercado” que acho que todo homem que se aproxima de mim está com
segundas intenções. Ele perdeu a esposa não faz muito tempo, ainda vive o
luto a ponto de enviar flores ao cemitério todo o mês. Não deve querer um
relacionamento agora. Ainda mais comigo, sabendo todo nosso histórico.

E como vou sair com ele em público? Aí que serei massacrada pela
cidade mesmo. Aqui na floricultura ainda tenho a desculpa de dizer que não
posso recusar um cliente, que preciso ser profissional. Agora, em uma
pizzaria, à noite, o que vou inventar?

Está decidido! Não vou! Não posso ir! Não posso querer ir!

LUCCA

A sexta-feira termina e nenhuma mensagem da Manu chega. Não


esperava que ela fosse aceitar de uma forma feliz e saltitante, mas achei que
pudéssemos sair como amigos. Ainda acho, inclusive. Principalmente
depois de todos esses dias que nos encontramos na floricultura e
conversamos muito mais do que pensei ser possível com ela.

Gosto de sua companhia. Gosto das nossas conversas. Gosto de


quando consigo arrancar um sorriso dela; ela fica ainda mais linda quando
sorri. Nesses momentos, chego até a me esquecer da dor que existe dentro
do meu peito desde quando perdi Cris.

Não que esteja deixando de amá-la, ela foi um capítulo importante da


minha vida, porém, por mais que eu resista, a minha história ainda continua.
Mais do que isso, precisa continuar ou será insuportável continuar vivo.
Assim como tem sido durante todos esses intermináveis meses.

Arrumo minhas coisas para depois dormir e confiro meu celular pela
última vez. Nada! Nenhum sinal dela. Viro para o lado e tento esquecer um
pouco isso. Por sorte, pego no sono rápido.

Acordo cedo. Já houve épocas em que dormia até mais tarde, mas
com um braço e uma perna quebrados é impossível ficar na cama por muito
tempo. O corpo todo começa a doer.
Após tomar banho, confiro meu celular pela terceira vez só neste
sábado. Talvez ela não quis mandar ontem, para não parecer que foi uma
decisão fácil e deixou para hoje. Ou eu sou apenas iludido mesmo e não
quero dar o braço a torcer de que ela recusou.

Prometo para mim mesmo que não vou à floricultura hoje. Não quero
dar a impressão de que a estou forçando a fazer qualquer coisa que seja. E
claro, nem parecer desesperado pela resposta dela.

Tento ocupar minha cabeça com outras coisas. Faço um malabarismo


para arrumar algo para o almoço que não seja comida congelada. É o único
jeito de fazer o tempo passar.

Depois de comer, deito no sofá para assistir alguma coisa e acabo


pegando no sono. Faz tempo que não durmo desse jeito na parte da tarde.
Tem sempre alguma coisa tomando conta da minha mente que nunca
consigo relaxar.

São 18h23.

Nenhuma mensagem e nem um sinal de fumaça. Ela não se deu ao


trabalho nem de falar que não poderia ou inventar alguma desculpa. E, por
um motivo que não sei explicar, fico com raiva dessa atitude.

Quando já desisto de olhar para o celular, recebo uma mensagem às


19h34.

MANUELA: Será que ainda dá tempo?

Não acredito quando leio. Meu coração acelera e esqueço por


completo a raiva que já estava sentindo.

LUCCA: Sempre dá!

Ansioso, aguardo por mais respostas dela.


MANUELA: Fica ruim ou estranho para você se for aqui em
casa?

LUCCA: Do jeito que você preferir, está ótimo para mim. Levo a
pizza! Tem alguma preferência por sabor?

MANUELA: Calabresa, por favor!

LUCCA: Graças a Deus que não vou ter de comer nenhuma


vegetariana ou qualquer coisa com abacaxi.

MANUELA: Esse risco você não corre comigo. kkkk!

LUCCA: Ótimo! Menos um problema, kkk. Vou só tomar um


banho, passar para pegar a pizza e já chego aí. Manda seu endereço
para mim.

Ela responde, avisando que está tudo bem, e me envia seu endereço.
Vejo que é em um prédio e torço para que tenha elevador ou vou precisar de
uma semana para subir as escadas e outra semana para descer.

Tomo banho, compro a pizza, entro no carro de aplicativo e às 20h30


em ponto já toco o interfone, tentando não deixar transparecer a ansiedade
na minha voz.

MANUELA

Quando escuto o interfone, meu coração acelera. Corro para fechar a


porta do meu quarto para que ele não veja que experimentei quase meu
guarda-roupa inteiro até conseguir escolher algo direito para vestir.

Ele logo chega à minha porta.

― Nunca agradeci tanto a pessoa que inventou o elevador.


Foi o melhor quebra gelo que eu podia querer.

― Desculpa ― respondo rindo. ― Nem me lembrei de te avisar do


elevador para que não ficasse preocupado com isso.

― Está tudo bem. Só preciso de uma mãozinha aqui, antes que eu


derrube a única garrafa de vinho que tinha em casa.

― É claro. ― Pego a caixa de pizza de sua mão boa enquanto ele


abraça a garrafa no braço quebrado. ― Entra aí! Fique à vontade!

― Obrigado!

Percebo que ele entra, mas que fica parado perto da porta, olhando
para mim. Não resisto e o olho de volta.

― Você está linda! ― ele elogia e abre um sorriso.

Sinto meu rosto queimar na mesma hora. Por que ele tinha de falar
isso logo depois de termos começado tão bem?

― Obrigada! ― digo sem jeito. ― Posso abrir o vinho? ― Mudo


logo de assunto para tentar voltar ao normal com ele.

― Por favor, com uma das mãos só é um pouco impossível. ― Ele ri.

Depois desse pequeno incidente ocorre tudo bem durante toda à noite.
Consigo me divertir muito na presença dele. Conversamos sobre tudo e ao
mesmo tempo sobre nada importante. Assuntos leves para uma noite leve.
Não sabia que precisava tanto de um momento como esse até vivê-lo.

Assim que acabamos de comer, ele me ajuda a levar as coisas para a


cozinha. Faz questão de me fazer companhia enquanto lavo tudo. Acho
graça da preocupação dele e não recuso sua companhia. É muito gostoso
estar com ele para já deixá-lo ir embora assim.

De repente, ele me olha de uma forma diferente. Vejo seus olhos irem
até meus lábios e se perderem por lá. Meu coração começa a bater meio que
descompassado. Ele se aproxima de mim, ao mesmo tempo em que não
consigo desviar meu olhar de seus lábios também. Sinto um frio na barriga
até que seus lábios se encostam aos meus.

Sei que devo pedir para parar e tirá-lo da minha casa o mais rápido
possível, mas à medida que ele me beija meu desejo de retribuir só
aumenta. De um beijo lento passamos para um beijo mais intenso, quente,
com uma necessidade de urgência.

Que beijo maravilhoso!

Sua mão que antes estava no meu rosto desce carinhosamente para
minha cintura e me aperta contra seu corpo, fazendo com que deseje fazer
coisas que achei ser impossível sentir por muito tempo.

Até que a imagem de Samuca deitado na estrada, sem vida, invade


minha mente.

― Pare! ― Eu o empurro de uma vez.

― O que foi? Achei que você estava gostando?

― Sai da minha casa! ― digo me virando de costas para ele, de


frente para a pia da cozinha.

― Descul...

― Agora! ― grito.

Não consigo voltar a respirar até escutar a porta da frente se


fechando. Depois disso, abaixo onde estou e desabo a chorar.
25

MANUELA

Passo em claro a noite de sábado para domingo. Choro por horas


depois que Lucca vai embora. Isso me deixa com uma dor de cabeça
horrível que me impede de dormir. Claro que não é só isso. A culpa por ter
retribuído o beijo daquela forma me corrói. Ele até podia ter me beijado,
mas eu jamais deveria retribuir, principalmente ter gostado.

Assim que clareia o dia, resolvo ligar a internet do meu celular.


Arrependo-me na mesma hora. A primeira mensagem que vejo é do Lucca.

LUCCA: Não sei muito bem o que aconteceu de errado ontem à


noite. Achei que você queria tanto quanto eu. Se entendi errado, peço
perdão. Não quero estragar nossa amizade. Você pode não acreditar
agora, mas ela é importante para mim.

Amizade! Pelo visto não era amizade desde o início. Ele já estava
com segundas intenções. E eu me culpando por não querer aceitar o convite
de comer uma pizza com ele, com medo do que pudesse acontecer. Pelo
visto, eu estava certa.

O pior de tudo é que ele tem razão quando diz que demonstrei que
também queria o beijo, assim como ele. Como vou falar qualquer coisa
agora? Por que fui fazer isso? Sou mesmo uma idiota!

Ainda bem que fui precavida e marquei no meu apartamento. Imagina


se estivéssemos na rua e alguém nos visse se beijando? Não poderia sair de
casa nunca mais de tanta pedra que jogariam em mim. Não consigo fazer o
que minha mãe disse e parar de me preocupar com a opinião dos outros. Sei
que é o passo mais importante para que eu fique melhor. Sem dúvida
evitaria muita dor de cabeça e dormiria muito melhor. Mas ainda não é uma
opção para mim. Ainda!

Desligo a internet do meu celular novamente para não ter notícias de


nada e de ninguém. Decido fazer faxina em casa na tentativa de não ficar
pensando no que aconteceu. Só fica o teto sem limpar, porque o resto eu
faço tudo.

Vou para a cama cedo e me assusto quando acordo na segunda-feira


com o som do meu despertador tocando. Vejo que estou toda molhada de
suor e me envergonho com o sonho que estava tendo. Aquele beijo não sai
da minha cabeça. É como se meu corpo pedisse mais daquela sensação que
tive quando ele tocou meus lábios.

Como faço para tirar esse desejo de dentro de mim?

Tomo um banho, coloco uma roupa qualquer para trabalhar e como


alguma coisa antes de ir à floricultura. Depois do que aconteceu ontem é
quase certo de que não vou receber a visita do Lucca como vinha
acontecendo nas últimas três semanas. Ele não vai ter coragem de aparecer
depois do que aconteceu entre a gente. Principalmente porque não respondi
sua mensagem.

Chego à floricultura e, apesar de contrariada, volto a ligar a internet


do meu celular. Graças a Deus Lucca parece ter desistido de me mandar
mensagem. No mínimo sabe que fez besteira e resolveu esquecer tudo. Não
é possível que tenha se apaixonado por mim em tão pouco tempo. Acredito
que deve ter sentido mais vontade de me beijar do que nutrir sentimento
mesmo por mim. É a única explicação mais plausível para tudo isso.

Assim como eu, ele perdeu alguém que amava e talvez esteja
sentindo falta de tudo o que viveu com ela. Eu mesma, que perdi a menos
tempo do que ele, já sinto falta. E esse é mais um motivo para eu não querer
relacionamento nenhum agora. Tudo é muito recente. Meus sentimentos
pelo Samuca ainda estão muito vivos mesmo que ele não esteja. Ele foi o
homem que me fez mudar de ideia sobre casamentos. Apesar de ter relutado
durante toda nossa relação, estava feliz por dar esse importante passo ao
lado dele. Jamais imaginei que seria possível perdê-lo daquela maneira.
Justo no dia que falava que seria o mais importante de sua vida. Mal sabia
ele que realmente viraria um marco, mas pela tragédia.

Ocupo minha cabeça o máximo possível com as coisas na


floricultura. Quando percebo, já está na hora de fechar e fico surpresa por
ter conseguido tirar um pouco da minha mente toda essa história de beijo.

Já em casa, invento uma massa para comer. Raramente estou com


disposição para cozinhar, mas hoje me deu vontade de comer algo assim. É
uma das poucas coisas que sei fazer também. A receita é do Samuca. Ele
adorava vir aqui e cozinhar para mim. Até o dia que me fez aprender a fazer
esse macarrão. No começo ele riu bastante da minha total falta de jeito para
cozinha. Depois de algumas tentativas fracassadas, consegui aprender.

Assim que termino de comer e lavar toda a louça que sujei, escuto o
interfone tocando. Quem será à uma hora dessas? O porteiro me diz que é
um homem chamado Lucca. Não acredito quando escuto esse nome.
Quando acho que desistiu, ele resolve aparecer na minha casa. Não posso
simplesmente falar que não é para deixá-lo subir.

― Oi... ― ele me diz mais sem graça do que nunca.

― Oi. Entra ― respondo quando, na verdade, quero dizer para ir


embora e nunca mais aparecer aqui. Ainda mais sem avisar.

― Desculpa por vir à uma hora dessas.

Esse não é o único problema, tenho vontade de dizer. No lugar, disso


continuo em silêncio esperando o que mais ele tem para me dizer.

― Ia mais cedo à floricultura, mas achei que você não ia querer falar
desse assunto lá.

― Se for sobre o que estou pensando, não quero falar disso em lugar
nenhum.

Ele me olha meio perdido, sem saber o que fazer.


― A gente precisa falar sobre o que aconteceu, Manu.

― Não! Não precisa.

― Então você quer continuar fingindo que nada aconteceu e pronto?

― Para mim, é uma ótima solução!

― Mas para mim, não!

Permanecemos em silêncio.

― Não consigo fazer isso. E, para falar a verdade, nem quero ― ele
insiste.

― E o que você quer então? Foi só um beijo e pronto! Coloca isso na


sua cabeça de uma vez por todas.

― Foi mesmo só um beijo para você? Porque eu senti mais do que


isso e não foi só da minha parte.

― Nós não podemos ter nada, você sabe disso.

― E por que não?

― Porque você matou meu noivo!

Assim que pronuncio a frase já me arrependo. Não é nenhuma


mentira, mas sei o quanto vai machucá-lo. E não é essa minha intenção. Sei
como ele se culpa por tudo o que aconteceu e não precisa ouvir de mim toda
hora o tanto que me fez mal.

― Então voltamos a isso! ― Ele não faz questão nenhuma de


esconder sua tristeza.

― Desculpa! Eu não...
― Para! Você é a última pessoa que precisa me pedir desculpas por
conta disso.

― Eu sei, mas também não preciso jogar na sua cara toda vez que
tenho vontade. Não é justo!

― Justiça! Não me lembro da última vez em que a vida foi justa


comigo. Mas ao mesmo tempo, achei que já tínhamos ultrapassado essa
barreira.

Não acho resposta para isso. Como vou falar que jamais chegaremos
a esse ponto se gosto de nossos encontros na floricultura e se desejei aquele
beijo tanto quanto ele?

― Acho que talvez seja melhor você ir embora e esquecer o que


aconteceu aqui ontem. Por favor!

― Sei que não mereço nada de bom vindo de você, mas não sou o
tipo de homem que esconde sentimentos. Principalmente depois de já ter
perdido tanto.

― Lucca! Por favor!

― Por favor, digo eu. Se você olhar em meus olhos e dizer que não
sentiu nada com aquele beijo, eu prometo que nunca mais volto a te
procurar.

Agora é a minha vez de ficar perdida, sem saber o que fazer.

― Fala pra mim! Eu insisto.

― A questão não é sentir ou não sentir, sim, não poder. Você sabe
disso.

― A única coisa que sei é isso ― ele diz e me beija novamente.

E mais uma vez eu retribuo. E quanto mais o beijo dura, mais eu


gosto.
Até que ele para, olha no fundo dos meus olhos e vai embora sem
dizer uma palavra. E eu permaneço parada, embriagada no meu próprio
desejo.
26

LUCCA

Agora tenho certeza de que não estou maluco. Ela tem, sim,
sentimentos por mim. Só está relutante por eu ser quem sou. E nem posso
julgá-la por isso. Não deve ser nada fácil começar a gostar justamente da
pessoa que virou sua vida de cabeça para baixo. Não sei o que faria se
estivesse no lugar dela.

Por saber de toda a história, vou agir com calma. Preciso respeitar
esse tempo dela. Não vai ser nada fácil a luta interna que ela vai travar até
decidir de fato o que quer. Nesse meio tempo, também preciso resolver
minhas próprias questões. Para começar um novo relacionamento não posso
carregar comigo algumas pedras.

Aproveito que hoje não está muito quente e vou ao cemitério. Para
minha vida continuar é preciso, primeiramente, deixar Cris partir.

— Oi, meu amor! Hoje não é dia primeiro, mas preciso conversar
com você. Sei que se estivesse me vendo agora, estaria rindo por eu estar
conversando com um pedaço de pedra. Mas esse foi o jeito que encontrei de
te manter por perto. É bem maluco, mas funcionou durante todo esse tempo.

Faço um esforço enorme para me sentar no chão, já que ficar em pé


por muito tempo com essa perna ruim também não é uma opção.

— Sei que era da sua vontade que eu encontrasse outra pessoa e que
não relutasse com a felicidade. Não é nada fácil seguir em frente, mas você
tinha razão, eu preciso continuar. E para conseguir fazer isso preciso,
primeiramente, te dizer adeus. Você sempre será o primeiro amor da minha
vida, a mulher que me ensinou a ser feliz e, sem dúvida, minha maior
saudade. Nada e nem ninguém vai ser capaz de mudar isso. Mas acho que
encontrei uma pessoa. Você gostaria dela, por falar nisso. Ela não é só uma
mulher bonita, é alguém que me faz querer ser melhor, que me faz rir, que
me faz bem. Não sei se vou conseguir conquistá-la. Nossa história é
complicada demais. Mas eu quero tentar.

Fico um tempo em silêncio, perdido em minhas lembranças.

— Durante todo esse tempo que estive sem você me culpei por coisas
que não poderia ter feito. Não posso mais carregar essa culpa. É pesada e
dolorida demais. Preciso aceitar que você se foi e que de alguma forma essa
era a vontade de Deus para a nossa vida. Por mais que eu tivesse planos
bem diferentes, esse era o Dele e não há nada que eu possa fazer para
mudar isso. Sei que amei você com todo meu coração e que fiz o possível
para te fazer feliz. Espero que você tenha sido mesmo feliz tanto quanto eu
fui durante todos esses anos que dividi minha vida com você.

Meus olhos se enchem d’água. São tantos momentos juntos, tantas


lembranças que meu coração se aperta.

— Acho que estou pronto para não vir mais aqui. Estou pronto para
continuar. Obrigado por tudo! Por tudo o que foi para mim. Amarei você
para sempre, meu amor.

Levanto com dificuldades e olho uma última vez para seu nome na
lápide.

— Casar com você, mesmo tão novo, foi a melhor decisão da minha
vida. E dizer adeus sempre será a mais difícil.

Seco a última lágrima insistente e começo a andar em direção à saída


do cemitério. Agora começa a segunda missão mais difícil da minha vida:
conquistar um coração em pedaços. Um coração que eu mesmo quebrei.
Preciso juntar caco por caco e fazê-lo ser capaz de bater por mim.

MANUELA
Esse homem ainda vai me deixar maluca. Assim que ele vai embora
daquela forma eu entro no chuveiro para tentar apagar do meu corpo todo o
desejo que sinto. Desejo este, proibido.

Hoje é domingo e não tenho nem a floricultura para ocupar meu


tempo e fazer meu dia passar mais rápido. Não posso ir à casa da minha
mãe, porque do jeito que ela é verá escrito na minha testa que tem algo
acontecendo. E ainda não estou pronta para falar desse sentimento que vem
nascendo dentro de mim. Não estou pronta nem para senti-lo, para ser
sincera.

Coloco um filme para assistir. De tão ruim que é, acabo dormindo.


Acordo, tomo um café e me vejo desejando a visita do Lucca para a gente
“conversar” de novo. Mas ele não aparece. Nem sequer manda mensagem.
Será que ele mudou de ideia? Ontem falava tanto que não podia esconder
seus sentimentos, então me beijou daquele jeito e depois, simplesmente,
sumiu.

Não sei também o que quero dele. Quando ele aparece aqui eu desejo
que vá embora e, quando não vem, desejo que apareça. Odeio esses
sentimentos conflitantes. Amar Samuca era tão fácil. Nosso único problema
sempre foi sua mãe. Quando estávamos juntos fingíamos que ela não existia
e pronto, seguíamos nossa vida. Agora como vou fingir que o acidente não
aconteceu, que Samuca não morreu no dia que nos casaríamos e que o
responsável por tudo isso não foi Lucca? É muita coisa para ignorar. E
muita coisa séria, inclusive.

E por falar na minha querida ex-sogra, ela continua sendo um


problema na minha vida. Pensa no inferno que não vai fazer quando
descobrir o que vem acontecendo entre mim e o homem responsável pela
morte de seu filho. Ela, sem dúvida, fará de tudo para impedir que algo
mais sério aconteça entre a gente. Até porque, ainda não desistiu daquela
ideia maluca de eu gerar seu neto.

Além de todos os contras, não posso colocar uma criança no mundo


para ter uma avó igual a ela. Nenhuma criança merece algo assim.
Principalmente por saber que ela vai interferir na criação querendo fazer o
que achou que tinha conseguido com Samuca. A criança não terá direito
nem a uma vida própria. Não posso permitir isso.

Domingo acaba. Segunda acaba. Depois acaba terça, quarta, quinta e


hoje já é sexta-feira. Nenhuma notícia do Lucca durante todos esses dias.
Confesso não ser bem isso que imaginei que ele fizesse depois do segundo
beijo que me deu.

Será que aconteceu algo mais sério ou só desapareceu da minha vida


para sempre como disse que faria? Lucca prometeu que faria isso apenas se
eu dissesse que não sinto nada por ele. E não foi isso que fiz. Pelo contrário.
Retribuí o beijo com mais desejo ainda. Por isso é tão estranho esse
comportamento dele.

Minha vontade é de procurá-lo. Ligar ou ao menos mandar uma


mensagem para saber se está tudo bem. E se ele passou mal e está em casa
desacordado, precisando de ajuda? Credo! Por que só penso em tragédias?
Não sou a única pessoa de sua vida. Certamente ele ainda tem amigos que
já sentiram sua falta e o socorreram se algo ruim aconteceu.

Preciso tirá-lo da minha cabeça. Fiquei a semana toda me torturando


com isso, esperando por notícias, sendo que no fundo do meu coração nem
sei o que quero. É claro que sei que Samuca desejaria que eu continuasse
com minha vida, encontrasse outra pessoa e, acima de tudo, fosse feliz
novamente. Mas será que entenderia se essa pessoa fosse justamente o
homem que o tirou de mim?

Por que tudo tem de ser tão difícil na minha vida? Tanta pessoa no
mundo para eu nutrir sentimentos e isso tem de acontecer com a única
pessoa proibida para mim? Não consigo entender. E o pior é que tudo
começou por conta daquele bendito acidente que presenciei e que fui
obrigada a salvá-lo. Se tivesse passado por aquela estrada um minuto antes,
nada disso estaria acontecendo agora. São tantos “se” que me matam. Tenho
de parar de tentar controlar as coisas dessa forma. Ou vou mesmo ficar
maluca.

Já é noite de sexta e estou deitada na cama para dormir, quando


recebo o que esperei durante toda a semana.
LUCCA: Quero começar do jeito certo. Preciso colocar todas as
cartas na mesa e ser o mais sincero possível com você, Manu. Não
consigo esquecer nossos beijos. E nem quero. O que sinto por você é
real, é sério, e não vou me culpar por ter me apaixonado pela mulher
do homem que matei. Não vou me culpar por mais nada que eu não
tenha culpa. Quero te beijar muitas e muitas vezes. Entendo o quanto
tudo isso é difícil para você. Mais difícil ainda do que para mim,
inclusive. Mas estou disposto a lutar por um espaço em seu coração.
Vou cozinhar amanhã à noite na minha casa, quero que você venha.

Sim! Dessa vez é um encontro! Um encontro entre dois adultos


solteiros que não estão cometendo nenhum crime por sentirem algo um
pelo outro. Espero mesmo que você venha. E saiba que não estou
disposto a desistir tão fácil desse sentimento mesmo que agora você
diga não. Vou esperar por você, em todos os sentidos. Um beijo,
daquele bem demorado.

Ele é completamente maluco. Só pode. Um maluco bem bonito,


inclusive. Não posso negar.

Leio e releio a mensagem várias vezes. E em todas elas meu coração


acelera quando chego à parte do beijo bem demorado. Só de lembrar, sinto
uma vontade louca por ele.

O que vou fazer agora?


27

LUCCA

Como já estou livre da tipoia no braço, tudo fica mais fácil. É ótimo
voltar a ter duas mãos funcionando. Tudo bem que estou longe de estar
100%. Tenho que passar um longo período na fisioterapia para recuperar os
movimentos e a força. Mas, com um pouco de paciência e de cuidado, já é
possível fazer minha própria comida.

Há tempos não cozinho em casa. E não é só porque estava


machucado. Desde que Cris morreu que não tinha ânimo para fazer nada.
Mal dava vontade de comer. Vivia à base de comida congelada ou de pizza.

Hoje é especial. É o primeiro encontro que tenho em anos. A última


vez que isso aconteceu eu ainda era jovem e já morria de amores pela Cris.
Ela foi a única mulher da minha vida. Então, é um pouco estranho fazer
tudo isso para alguém que não seja ela.

E ainda tem um detalhe muito importante que pode mudar tudo.


Manu pode não aparecer, já que nem respondeu à minha mensagem. Da
última vez em que nos encontramos para comer pizza no apartamento dela,
só recebi sua resposta ao meu convite bem em cima da hora. Estou na
esperança de acontecer algo assim novamente. Prefiro pensar isso a aceitar
a possibilidade enorme de receber um bolo.

Faço uma lasanha à bolonhesa, caprichada no queijo mussarela. É,


sem dúvida, um dos meus pratos preferidos. Deixo uma garrafa de vinho no
jeito para abrir quando ela chegar. Arrumo a mesa da melhor forma
possível. Acendo umas velas para dar um ar mais romântico. E ainda deixo
pronta a lembrança que comprei para ela. Como não tinha como comprar
flores sem ela saber, já que me recuso a ir a uma floricultura concorrente à
floricultura Orsini, onde ela é a dona, escolho uma caixa de chocolates na
Cacau Show. É muito difícil encontrar alguém que não goste de chocolate,
então, minha chance é grande de ela gostar do presente.

Então dá 18h... 19h... 20h... 21h... 22h... 23h e nada dela! Nem um
sinal de fumaça. Preciso aceitar que levei um bolo. Guardo o vinho, apago
as velas, mas aproveito a lasanha. Modéstia a parte, ela perdeu. Está
maravilhosa!

Não vou mentir. É horrível ser rejeitado dessa maneira. Não é algo
que eu esteja acostumado, já que me apaixonei pela Cris quando ainda era
muito novo e desde então estive com ela. Porém, se Manu pensa que vou
desistir no primeiro bolo está muito enganada. Falei sério quando disse que
esperaria por ela. E vou esperar. Pode levar um tempo para me aceitar. Para
ela, principalmente, aceitar dentro de si que tem sentimento justo por mim.

Que estratégia devo usar agora para conquistá-la? Será que devo
voltar às minhas visitas à floricultura ou sumo a semana toda e a convido
novamente para um encontro?

MANUELA

Não tenho coragem de ir ao encontro com Lucca. Por mais que no


fundo eu desejasse ir, sei que não posso. Não tenho o direito de me
apaixonar justo por ele. Não posso fazer isso com Samuca. Não posso fazer
isso com a nossa história juntos.

Agora é torcer para que ele não vá essa semana na floricultura,


querendo conversar. É muito difícil estar perto dele e não querer beijá-lo. E
pior, não corresponder quando sou beijada.

Por sorte precisava fazer uma faxina geral em meu apartamento.


Então, domingo passou bem rápido. Quando me assusto já é segunda-feira
de novo e já estou a caminho do trabalho.

Nessa semana ainda tenho a missão de todo o dia primeiro. Será que
devo esperar a ligação dele encomendando o serviço ou faço como no mês
passado? Se eu não estivesse fugindo dele, até ligaria ou mandaria uma
mensagem. Mas não tenho coragem. Como vou fazer isso e ignorar que não
fui ao nosso encontro? Não consigo ser assim. Vou esperar mais um pouco e
ver o que fazer.

Sentindo-me hakeada em minha própria mente recebo a seguinte


mensagem:

LUCCA: Oi Manu. Bom dia! Quero agradecer por todo o serviço


prestado nos dias primeiros durante esse tempo. Agradeço o carinho e
a atenção. Porém, ele não será mais necessário. Preciso deixar Cris
partir. Só assim terei espaço para outro alguém em minha vida. A
propósito, a lasanha que você perdeu estava incrível.

Inevitavelmente abro um sorriso com a última frase. Ainda mais que


segundos após a mensagem chegar, ele envia também uma foto da tal
lasanha. Não posso mentir, está com uma cara ótima. Fico com água na
boca. Sou apaixonada por massas. Honro meu sobrenome italiano. Não
nego minha origem.

Fico também muito feliz por vê-lo seguir em frente. Não é nada fácil
dar esse passo de parar as visitas ao cemitério. De deixar quem ama,
finalmente, partir. Aceitar que esse alguém deseja uma vida muito melhor
para nós do que a que insistimos em viver no período do luto.

Admiro sua atitude, mas não sei se estou pronta para fazer o mesmo.
Não vou ao cemitério, mas é como se levasse Samuca para onde vou. De
uma maneira um pouco estranha é como se ele ainda vivesse em mim.
Preciso apenas tomar cuidado para não deixar que ele vire um fardo. E que
continue sendo o responsável pelas minhas melhores lembranças.

Decido responder ao menos essa mensagem. Principalmente, por se


tratar de um serviço que eu prestava.
MANUELA: Olá. Respeito e admiro sua decisão. Espero que
fique bem seguindo em frente. Sua esposa ficaria feliz.

Ignoro por completo a história da lasanha. Não quero falar sobre esse
assunto. Por sua vez, ele apenas curte minha mensagem sem falar qualquer
coisa. Apesar de achar um pouco estranho, agradeço por não insistir no
assunto.

A semana passa sem maiores problemas. No fim da sexta-feira recebo


mais um convite do Lucca.

LUCCA: Para mim, promessa é dívida. Falei que não desistiria


fácil e não vou. Amanhã estarei te esperando mais uma vez para o
nosso encontro na minha casa. Vou fazer outra receita. Espero não ter
de comer sozinho de novo. E tem algo te esperando desde a semana
passada. Será que vou ter de comer também? Às 20h.

Após a mensagem, recebo a foto de uma sacola da Cacau Show. Ele


não só quer me vencer pelo cansaço, mas quer me ganhar pelo estômago.
Desse jeito vai conseguir, chocolate é meu ponto fraco. Mas é claro que não
vou falar isso para ele.

Não respondo. Dessa vez decido ir. Talvez seja bom seguir em frente.
Acho que mereço. Não tenho culpa pelo Samuca ter morrido tão cedo.
Ainda mais da forma que foi. E talvez eu queira tentar de novo ser feliz.

Passo o sábado todo escondendo de mim mesma a ansiedade pela


noite. Escolho mil roupas e nenhuma fica boa. Por fim, decido vestir uma
calça jeans preta, uma blusa um pouco mais trabalhada e uma sandália de
salto alto para dar uma leve sofisticada.

Pego minha bolsa, a chave do carro e quando estou para passar pela
porta derrubo um porta-retratos que fica ao lado da entrada. E claro que tem
de ser justo a foto que tenho minha e do Samuca no dia do nosso noivado.
Nesse momento meu coração se aperta e me sinto péssima por estar
de saída para um encontro com outro homem. A culpa me domina e não
consigo mais passar pela porta. Desabo em lágrimas.

E, diferente da semana passada que nem me dei ao trabalho de avisar


Lucca, hoje sinto que devo isso a ele. Ao menos uma satisfação.

MANUELA: Oi. Desculpa. Já estava pronta para sair, mas... Não


consigo. Sinto muito mesmo!

Sei que não preciso explicar mais do que isso. Ele vai entender. Logo
em seguida a resposta chega.

LUCCA: Oi, Manu. Está tudo bem, não precisa se desculpar.


Ainda não vou desistir. Você sabe disso.

Mesmo cheia de culpa, fico agradecida por ele ainda não desistir de
mim. No fundo, não quero perdê-lo também.

MANUELA: Só não coma meu chocolate ou suas chances estarão


arruinadas! kkkk

Tento amenizar o clima. Não quero que ele fique mal por mais um
bolo meu.

LUCCA: Vou tentar. kkkk Mas acho que eles duram até sábado
que vem!

Então é isso. Semana que vem tenho mais uma chance de ir a esse
encontro. Mais uma semana para me preparar emocionalmente. Quem sabe
eu consiga me desamarrar de algumas amarras do passado.
Troco de roupa, visto meu pijama e deito. Não sei o que me deixa
pior, o fato de ter desmarcado ou o fato de quase ter ido. É tão complicado
tudo isso.

Mais uma semana passa. Dessa vez sinto que demora uma eternidade
esses sete dias. Muito provavelmente se dê pela minha ansiedade para o
sábado. Estou decidida a ir dessa vez. Pelo menos, decidida a fazer de tudo
para ir. Quero estar pronta para esse momento.

E como na semana passada, uma mensagem do Lucca chega me


convidando para o encontro na casa dele amanhã à noite. E, como em todas
às vezes, não respondo. Hoje mais no intuito de fazer uma surpresa. Espero
que ele goste de me ver.

Assim que saio da floricultura na hora do almoço no sábado decido


fazer algo diferente. Compro um vestido para usar à noite. Quero estar
bonita hoje. Acho que mereço esse agrado depois de tudo o que passei após
meu quase casamento.

Já em casa, não faço mais nada a não ser me arrumar para o encontro.
E, quando vou passar pela porta, olho para o retrato que me impediu de sair
na semana passada.

― Preciso fazer isso, Samuca! Está muito difícil sem você aqui. Sinto
muito por ser justamente com ele. Mas aconteceu. Só aconteceu.

Levo o dedo carinhosamente em seu rosto e saio.

Já à porta da casa do Lucca, ajeito meu vestido e respiro fundo antes


de tocar a campainha. Ele abre a porta e parece não acreditar no que vê.

― Que bom que veio! Você está linda!

― Estava preocupada com meu chocolate.

― Ah! Claro! Será que eles ainda estão aqui? ― Ele ri e me chama
para entrar.
― Para seu próprio bem, espero que sim. E, obrigada, você também
está ótimo.

E nossa noite se deu de um jeito muito melhor do que imaginei


durante essas três semanas de espera e de relutância. Gosto de conversar
com ele. É inteligente e me faz rir. Fora que é um ótimo cozinheiro. Hoje
ele fez uma carne assada maravilhosa. E, para minha alegria, logo após o
jantar, ele me entrega o chocolate na condição de ganhar um pedaço.

Quando a noite acaba ele faz questão de me levar até a porta.


Pergunta até se eu não quero que ele me leve até em casa, afinal, já está
tarde. Mas não faz sentido algum, já que ele ainda está com a perna meio
ruim e meu carro está parado bem em frente.

Antes de falar tchau, eu o beijo. Não tenho pressa. Quero que dure o
bastante para matar meu desejo reprimido durante todo esse tempo. Quando
paro, olho no fundo daqueles olhos e só digo obrigada. Ele abre um leve
sorriso e volta a me beijar.
28

MANUELA

A noite de sábado foi incrível. Não vejo a hora de encontrar com


Lucca de novo. Combinamos de ir devagar. Tudo é muito novo para nós
dois. Não é fácil entrar em um relacionamento após o período de luto. E ele
sabe que para mim ainda tem o fator complicador de ele ser o responsável
pelo acidente do Samuca. Por mais que eu queira, não posso mudar isso.

Não nos encontramos no domingo, mas agora a conversa pelo celular,


mesmo que muitas vezes por mensagens, é mais frequente. Já na segunda,
enquanto trabalho, ele aparece de surpresa. Agora, com um brilho diferente
nos olhos e com um sorriso mais largo do que nunca.

Mesmo em lados opostos no balcão de atendimento, ele me beija


delicadamente no rosto, cumprimentando-me. Em resposta, eu seguro seu
rosto e lhe dou um selinho. Quero mostrar que não vou esconder de
ninguém o que estamos vivendo. Dessa vez estou disposta a ouvir os
conselhos de minha mãe e deixar o povo falar.

― Acho que assim é melhor! ― Ele sorri sem jeito.

Tomamos café juntos, conversamos um pouco e depois ele vai


embora. Assim que ele sai, Raquel vem para o meu lado sorrindo e me
abraça.

― Estou muito feliz por você ― ela diz.

― Você sabe quem é ele? ― Estranho o fato de ela não me julgar.

― Depois da última fofoca na cidade, ficou um pouco difícil não


saber. ― Ela ri. ― Mas quem te acompanha de perto sabe muito bem tudo
o que você passou e, como uma dessas pessoas, eu só consigo te desejar o
melhor que essa vida pode lhe dar.

Retribuo com um sorriso.

― Obrigada! Você não imagina o quanto é importante ouvir isso.

E ela tem razão. As pessoas que se importam realmente comigo não


vão se dar ao trabalho de julgar. Elas só querem que eu seja feliz. E são
nessas pessoas que preciso me concentrar. As outras eu só tenho de fingir
que não existem.

Claro que na prática é um pouco diferente. Um dos meus maiores


defeitos é me preocupar demais com o que as pessoas falam a meu respeito.
Não gosto de ser o assunto da cidade. Sempre preferi levar uma vida
discreta, para não chamar a atenção de ninguém. Mas com as duas tragédias
que aconteceram, o suicídio de meu pai e o acidente do Samuca, ficou
impossível.

Mesmo assim passei a semana toda me encontrando com Lucca na


floricultura. Até evoluímos um pouco, pois na sexta ele ficou até o horário
de fechar e nós passeamos pela cidade, tomamos um sorvete, sem
demonstrar muito afeto em público, mas só de estarmos juntos já é uma
evolução enorme.

Dito e feito. Nada passa despercebido para as fofoqueiras de plantão e


para as vigilantes da moral e dos bons costumes. A primeira a entrar em
contato comigo não podia ser outra a não ser minha querida ex-sogra. Dessa
vez até estranho o comportamento dela. Não foi atazanar minhas ideias na
floricultura, preferiu me ligar. Para falar a verdade, não sei o que é pior.

― Bom dia, Manuela! Sei que está um pouco em cima da hora, mas
preciso conversar com você. Ou melhor, minha família precisa. Podemos te
esperar para o almoço de hoje?

― Hoje?
― Sim. Por quê? Você já tem compromisso com outra pessoa que não
consegue vir almoçar com a família do seu noivo?

Preciso respirar fundo para não dar a resposta que ela merece. Não
consegue nem esconder o fato de já saber de mim e do Lucca. Pelo visto,
tenho de passar pela inquisição da família Manfredi.

― Não! Não tenho nada importante que não possa esperar. Aceito seu
convite. ― Que está mais para uma intimação, isso sim.

― Ótimo! Aguardamos você.

Tudo o que mais preciso para um sábado é de um almoço com os


Manfredis. Não entendo por que as pessoas boas morrem cedo enquanto
essas pestes parecem viver uma eternidade. Samuca era o único que se
salvava daquela família.

Pensando pelo lado positivo, esse almoço pode até ser bom.
Indigesto, mas necessário. É a melhor oportunidade que tenho para dar um
basta nas tentativas de influência deles na minha vida. Não somos parentes.
Não somos amigos. Nem mesmo nos gostamos. E para mantermos ao
menos o respeito por ser a família do Samuca é preciso distância.

Envio uma mensagem para Lucca, contando do “convite” que recebi.


Desmarco nosso almoço e remarco para algo à noite. Após alguns minutos
de envio, ele me liga.

― Você está bem? ― pergunta de pronto.

Adoro isso nele. Não fica de joguinhos e nem dá voltas. Vai direto ao
assunto. Sem medo de se expor.

― Um pouco mal-humorada por ser obrigada a fazer uma coisa que


não quero.

― Se não quer, não vá.

― Você não conhece dona Sônia Manfredi. Ela não larga o osso. Não
vai desistir de mim tão fácil, ou melhor, da gente. Vou usar o dia de hoje
para dar um basta nisso. Não aguento mais.

― Sinto muito por causar mais esse problema para você.

Não sei o que responder. Como vou falar que ele não tem culpa?
Prefiro o silêncio à hipocrisia.

― Aviso você quando sair de lá. Se eu não der notícias até à noite,
avisa a polícia para procurar meu corpo.

― Só você mesma para fazer piada em um momento como esse. ―


Ele ri.

― É o jeito para não ficar louca.

― Espero notícias suas então. Um beijo.

― Um beijo.

Fecho a floricultura e vou à minha sessão de tortura gratuita em pleno


almoço de sábado. O segurança ainda me conhece e me deixa entrar. A
governanta da casa é quem me recebe.

― Boa tarde! Eles já estão esperando a senhorita na sala de jantar.

― Obrigada! Não precisa me acompanhar. Ainda lembro o caminho


― brinco.

― Achei que nos deixaria esperando. ― Esse é o cumprimento


simpático da minha querida ex-sogra.

― Sônia! ― Seu marido a repreende.

― O que foi? Falei alguma mentira?

― Está tudo bem. Peço desculpas pela demora, mas esse é o horário
em que fecho a floricultura, por isso não pude vir antes.
Algumas pessoas trabalham, é o que tenho vontade de falar, mas
resolvo morder minha língua por enquanto.

A comida é servida assim que sento. Dona Sônia não perde tempo e
já vai ao que interessa. A ela, pelo menos.

― É verdade que você já está namorando?

Dou algumas garfadas na comida para amenizar a fome e,


consequentemente, meu humor.

― Não é bem um namoro sério, estamos nos conhecendo.

― Claro! Essa modernidade.

Finjo não ouvir o comentário e continuo comendo.

― De todos os homens do mundo, você escolhe justo aquele que


matou meu filho?

― Foi um acidente. Ele não é um assassino. E, não, eu não escolhi,


apenas aconteceu.

― Não importam os detalhes! ― Ela já começa a gritar. ― O


importante é que você namora o homem que me tirou meu filho! Como
você tem coragem de fazer isso com Samuel?

― Não estou fazendo nada com ele. Ele está morto! ― É a minha vez
de alterar a voz.

― Sim! Morto! Por causa do seu namorado!

― Chega! A senhora não vai falar mais assim comigo. Estou cansada
disso!

Os dois me olham, assustados. Nunca tive coragem de falar assim


com eles.
― Estou aqui por respeito ao Samuca e por tudo que vivemos juntos.
Mas não devo satisfações da minha vida para vocês. Essa interferência
acaba hoje e aqui! Se querem que eu mantenha o respeito que ainda tenho
por vocês é assim que será a partir de agora. É tudo o que tenho a oferecer:
respeito.

― Como você quer respeito se não respeita essa família? Se não


respeita a memória do meu filho?

― Como disse, chega! Já falei tudo o que precisava. Obrigada pelo


almoço!

Levanto da cadeira e dou às costas. Ela continua esbravejando atrás


de mim, mas finjo que não é comigo.

Saio de lá irritada e, pior, com fome.

― A senhorita merece ser feliz. É tudo o que desejo ― diz a


governanta enquanto abre a porta para mim, bem baixinho para ninguém
ouvir.

― Obrigada! Obrigada por todo o carinho com que você sempre me


recebeu nessa casa. Se um dia precisar de mim, já sabe onde me encontrar.
― Dou um beijo em seu rosto e vou embora.

Apesar de tudo, é um alívio pisar nessa casa pela última vez. Não é o
futuro que sonhei para mim e para Samuca, mas é o que foi possível devido
às circunstâncias. Espero que ele me perdoe de onde estiver. Fiz o possível.
Juro que tentei.

Assim que saio da casa do Samuca vou direto para meu apartamento.
Tomo um banho quente relativamente demorado para tentar tirar do meu
corpo toda a tensão da conversa do almoço. E por falar nisso, meu
estômago ronca, para me lembrar de que não comi direito. Faço um
sanduíche com as coisas que encontro na geladeira e está muito bom. Não
vou fazer almoço quase 14h. Nem faz sentido.
Quando vejo a hora, lembro que não avisei Lucca que já estou livre,
em todos os sentidos. Resolvo ligar para ele.

— Já estava quase indo à polícia — ele diz assim que atende.

— Graças a Deus não foi dessa vez. Você ainda vai ter de me
aguentar por um tempo.

— É tudo o que mais desejo.

Ele sempre me deixa sem graça quando é romântico. Pode até não
parecer, mas sou tímida quando o assunto é relacionamento. Demonstrar o
que sinto não é meu forte. Meio que bloqueei isso desde que perdi meu pai
daquela forma. Acho que é por isso que em todos esses anos nutri um
sentimento de raiva pelo o que fez. E manter esse sentimento dentro de mim
só me atrapalha nos demais relacionamentos.

— Posso passar o restante do dia com você ou só quer me encontrar à


noite?

— Sério que você quer que eu responda a essa pergunta? Acha


mesmo necessário?

— Às vezes você quer ficar sozinho até a noite, não custa perguntar.
— Rio.

— Tudo o que eu quero é você. Então, venha logo que já estou com
saudade.

— Vou terminar de me arrumar e já vou.

Desligo o celular e guardo as coisas que usei para fazer meu lanche.
Escovo meus dentes e saio rumo a casa dele.

Ele me recebe na porta com o sorriso que mais gosto e com o melhor
beijo do mundo.

— Você demorou muito.


Olho no relógio.

— Realmente. Quinze minutos. Uma eternidade.

— Sim. Uma eternidade de quinze minutos.

E me beija de novo, só depois me deixa entrar de verdade. É estranho,


fui poucas vezes à casa dele, mas já me sinto à vontade. Deve ser porque
estamos sozinhos e não preciso me preocupar com mais nada. Só viver o
momento.

― Sei que ainda é cedo, mas quer vinho? ― ele pergunta.

― E quem disse que tem hora certa para tomar vinho? Se há vinho é
sempre hora certa.

Ele ri e serve duas taças.

― Apesar de tudo, hoje é um dia para ser comemorado ― completo.

― E comemoramos o quê, exatamente?

― Minha vida nova!

Brindamos e bebemos. Depois passamos o resto do dia no sofá,


conversando e namorando. Melhor jeito de passar um sábado.

― Posso te fazer uma pergunta um pouco indiscreta? Se não quiser


falar do assunto é só dizer, que esqueço na mesma hora.

― Quando alguém começa com essa pergunta nunca é uma coisa boa.
― Rio.

― É melhor deixar para lá, então, esquece.

― Não precisa ficar sem graça. Estou só brincando. Pode me


perguntar sempre o que quiser. Você já conquistou esse direito.
― Só por isso que posso perguntar ou será que você ficou um pouco
curiosa.

― Fica feio eu responder que é um pouco dos dois? ― Finjo


constrangimento.

Ele ri e me beija.

― Pergunta, vai! ― insisto.

― É sobre seu pai.

Ele pára e me olha, preocupado. Talvez esperando uma reação minha


sobre o assunto. E claro que já sei o que ele quer falar.

― O que tem ele?

― Você sabe o que as pessoas da cidade falam a respeito dele. Mas


gostaria de ouvir a história de você. Se quiser falar desse assunto, lógico.

― Nunca é fácil falar sobre isso. Porém, hoje me sinto mais leve a
respeito disso.

Faço uma pausa e ele espera pela história.

― Eu tinha quinze anos. Foi quando ele perdeu o emprego. A


empresa já o achava velho demais e caro demais pelo tempo de serviço.
Não contou de nada uma vida inteira de dedicação à empresa. Em casa ele
passava o dia todo triste, quieto e sozinho no jardim. Eu não entendia tudo o
que estava acontecendo. Fazia o máximo para agradá-lo, afinal, ele era meu
melhor amigo.

Minha voz embarga quando me lembro da relação tão bonita que


tínhamos.

― Sem trabalho e sem conseguir outra forma de renda, começou a


faltar as coisas em casa. A depressão achou morada em seu coração. E com
a criação severa que teve, nunca concordou com a ideia de procurar uma
ajuda profissional. Era vergonhoso demais para um homem como ele. Eu
não sabia na época, tomei conhecimento apenas neste ano, mas ele também
estava com câncer. Câncer de próstata grau 4, o que significava que o tumor
já tinha invadido outras áreas como o reto, esfíncter e músculos, como ele
mesmo disse na carta de despedida que me deixou.

― Não tinha tratamento? ― É a primeira vez que ele me interrompe.

― Sim, mas seria agressivo demais, devido ao grau avançado da


doença e, consequentemente, caro demais. E o pior, as chances de sucesso
eram mínimas.

― Nossa! Fico pensando o turbilhão de sentimentos que não estava


na cabeça dele.

― Pois é! Mas mesmo assim, não consigo concordar com a decisão


que tomou. Será que ele não pensou o quão horrível seria vê-lo daquela
forma na árvore? Nunca consegui tirar essa imagem da minha cabeça. E
odeio lembrar como me senti vendo tudo aquilo. Não foi justo! Nem com
minha mãe, que foi obrigada a se reinventar para sustentar a casa sozinha,
nem com ele mesmo, já que foi um homem incrível e merecia muito mais
do que esse fim. Sem contar que não foi justo comigo! Caramba! Eu só
tinha quinze anos! E ele era meu herói.

Começo a chorar de verdade. Lucca segura minha mão e a acaricia


com carinho, mas não diz uma palavra. Fico à vontade para continuar a
história ou para parar. Decido colocar tudo isso para fora.

Hoje é meu dia de libertação!

― Não queria tê-lo perdido dessa forma. Não queria sentir a raiva
que senti dele durante todos esses anos. Fez tão mal para mim! Doeu tanto,
mas tanto!

Choro de soluçar nos braços do Lucca.

― Sabe o que é mais legal? Nós fizemos uma promessa. Eu ainda era
criança.
Rio da lembrança, agora já secando minhas lágrimas.

― Ele sempre sonhou em plantar rosas. Nunca vi uma pessoa gostar


tanto de plantar as coisas como ele. O jardim sempre foi seu lugar preferido.
Acho que por isso foi ainda mais difícil vê-lo acabar com a própria vida,
justo no lugar que mais amava. Bem... Nós teríamos a nossa própria
produção de rosas. Na minha cabeça ficaríamos ricos com isso. Prometi que
cuidaria dele para sempre. E que ele seria meu melhor amigo até eu ficar
velhinha.

Rio sem humor.

― No final, minha mágoa também é pelo fato de ele não ter me dado
a oportunidade de cumprir com todas essas promessas. Foram feitas por
uma criança ingênua, eu sei, mas levei a sério pelo menos até meus quinze
anos. Até ele jogar todos esses planos de vida pela janela.

― Manu. ― Ele me olha todo sério. ― Ainda dá tempo de cumprir


parte dessa promessa.

― Do que você está falando? Eu já tenho uma floricultura para


cuidar.

― Exatamente! Uma floricultura incrível, que seria ainda mais


valorizada se vendesse as próprias rosas. Você não estudou Botânica?
Então, agora só falta o terreno. E o dinheiro, é claro! ― Ele termina meio
sem graça por se lembrar do problema do dinheiro.

― Dinheiro!

Abro um largo sorriso por lembrar que eu tenho o dinheiro que


preciso e que nunca contei a ele sobre o assunto. Será que é esse fim que
devo dar àquele dinheiro? Será que consigo realizar o sonho que por anos
foi tão importante para mim?
29

MANUELA

Após a ideia que Lucca me deu sobre ainda ter tempo para realizar o
sonho de meu pai e que, no fundo do meu coração, ainda é o meu, conto a
ele sobre o dinheiro. Falo do seguro de vida que Samuca deixou em meu
nome.

— É um dinheiro que eu jamais queria usar. Não somente por saber


que só o tenho porque já não tenho Samuca e por me sentir suja
“enriquecendo” em cima da morte dele.

— Imagino o quanto deve ser estranho. Não tiro sua razão. Mas não
concordo com a ideia de se sentir mal por isso. Você não teve culpa de
nada. Nem sabia da existência desse dinheiro. E se ele quis deixar para
você, sem dúvida também gostaria de saber que fez um bom uso dele. E
investir nesse sonho pode ser o melhor uso possível.

— Você acha que ele gostaria dessa ideia?

— Não o conhecia, mas sabendo o quanto ele queria que a


floricultura desse certo, ter o próprio plantio de rosas me parece incrível.
No lugar dele, eu amaria.

Deito no colo dele, ainda no sofá da sala.

— Não sei se vou conseguir.

— Por quê, Manu?

— Mexer com isso me trará tantas lembranças do meu pai. Não sei se
dou conta.
— Você ainda não imagina a força que tem. Pelo pouco que te
conheço, e sabendo tudo que já sei, para mim você é a mulher mais forte
que já conheci.

— Você é suspeito. Não conta.

Ele ri.

— Sei que sou suspeito por ser seu namorado, mas isso não muda o
fato de você ser a mulher incrível que é.

Levanto do colo dele e olho fundo em seus olhos.

— Namorado? — Abro um discreto sorriso.

— Claro! Namorado! Não quero te dividir com ninguém. A não ser


que não queira namorar comigo.

— Não sei! Você nem me pediu.

Ele abre o sorriso que mais gosto.

— Não seja por isso. — Levanta do sofá, ajoelha-se aos meus pés e
segura uma de minhas mãos. — Manuela, sei que estou longe de ser o
homem ideal para você. Imagino o quão complicado é o nosso
relacionamento e quão difícil é me aceitar em seu coração, mas quero
dedicar o resto dos meus dias para te fazer a mulher mais feliz desse
mundo. Você fez renascer em mim a vontade de continuar vivendo.
Prometo recompensar tudo que te tirei. Você quer namorar comigo?

Imaginei um pedido de namoro simples, apenas um “quer namorar


comigo?” e não esse discurso todo. Meu coração aperta e se alegra ao
mesmo tempo. Gostar do Lucca é sempre esse misto de sentimentos. E tudo
o que sinto transborda em meus olhos em forma de lágrimas.

— É claro! — É tudo o que consigo dizer.


No lugar de palavras que podem até machucá-lo, escolho o beijo que
representa muito bem o quanto quero esse relacionamento.

— Pronto! Agora você é oficialmente minha namorada! — Ele ri e


seus olhos brilham.

Eu retribuo mais uma vez o beijando. E juntos no sofá passamos o


resto do sábado. Até que fica bem tarde e preciso ir embora.

— Fica! — Ele me pede.

Eu o olho sem saber como recusar esse pedido. Não estou pronta para
esse passo. É cedo demais. Ainda mais na casa dele. A casa onde morou
com sua esposa. O quarto dela. A cama dela.

— Lucca!

— Ei! Não é isso que eu quero. Só não quero que você saia tarde
assim. Tenho medo de perder você também. A gente não precisa nem
dormir no mesmo quarto. Tem um de hóspede.

Olho para ele e, por alguns instantes, sinto o mesmo medo. Medo de
perdê-lo cedo demais assim como perdi Samuca. Medo de passar por toda
aquela dor insuportável novamente. Medo da solidão. Do telefone que não
toca mais. Do silêncio.

— Tudo bem! Posso ficar no quarto de hóspedes.

— Obrigado! — Ele me beija delicadamente.

— Desculpa!

— Pelo o quê, Manu?

— Por querer ir devagar. Por não conseguir ainda...

— Para! Não me peça desculpas por isso. Também não é fácil para
mim. É tudo novo. E acho ótimo irmos devagar. No nosso tempo.
Apesar do nosso passado, meu coração se alegra ao ouvir essas
palavras. Ele, definitivamente, é o homem que preciso agora em minha
vida. Só ele entende tudo o que estou passando. Nossa perda e nossa dor
fazem parte de quem nós somos. E, por mais maluco que pareça, isso nos
une e nos completa.

— Venha! Vou pegar uma camiseta minha para você dormir mais
confortável.

Levanto do sofá e o acompanho até o andar de cima. Ele pega a


camiseta no seu quarto, mostra onde fica o outro banheiro e me leva ao
quarto de hóspedes.

— Fique à vontade. A casa é sua. Se precisar de alguma coisa é só me


chamar.

— Pode deixar!

— Boa noite! — Ele me beija.

— Boa noite!

Depois ele sai, fecha a porta do quarto onde estou e me deixa sozinha.
Tiro minha roupa e visto a camiseta dele. O cheiro maravilhoso que emana
dela me deixa com um desejo enorme de estar na mesma cama que ele,
sentindo seu corpo, suas mãos em mim. Mas não é esse tipo de
relacionamento que quero agora. Tudo tem a hora certa.

Deito na cama e tento afastar esses pensamentos de minha mente.


Preciso descansar. Ter uma boa noite de sono. Mas começo a virar de um
lado para o outro, sem conseguir me desligar. Agora minha mente vagueia
pelo sonho de ter a própria produção de rosas.

Pego meu celular e pesquiso possíveis terrenos à venda que não sejam
fora de mão. Não quero nada muito longe. Quanto mais perto, mais fácil
será de ir e mais simples toda a logística envolvida. Fora os custos que são
menores. A sorte é que aqui em Roseta há muitas opções. É uma cidade
pequena, mas possui muitos sítios em volta, fazendas e loteamentos para
esse fim.

Consigo encontrar vários lugares legais. Quanto mais procuro mais


animada fico com a ideia. E sou o tipo de pessoa que gosta de tudo para
ontem. Enquanto não conseguir escolher, não vou sossegar.

Apesar de entender de botânica devido ao meu curso, não entendo


nada de preço de terreno. Por isso espero o dia clarear para ligar para minha
mãe e ver se ela conhece alguém que possa me ajudar nessa missão. Aí que
não consigo dormir mesmo. Passo o tempo todo vigiando o relógio para
saber se já está na hora de ligar.

Assim que dá 7h, eu ligo.

― O que aconteceu, minha filha?

― Bom dia para a senhora também!

― Bom dia! ― Ela suspira do outro lado sem conseguir esconder a


preocupação. ― Agora fala, o que houve?

― Não aconteceu nada, mãe. Estou na casa do Lucca e não consegui


dormir, então...

― Você dormiu aí?

― Sim! Só dormi. Não aconteceu nada, então, nem começa. Inclusive


estou no quarto de hóspede.

― Entendi. O que você precisa tão cedo?

― Ontem estava conversando com Lucca e acabei comentando do


sonho do pai, aquele que eu ajudaria a realizar para a gente trabalhar junto.

― O plantio de rosas!

― Isso! Ele me convenceu de que ainda não é tarde demais para


realizá-lo. Mesmo o pai não estando mais aqui, posso de alguma forma
homenageá-lo.

― Ele amaria, Manu!

― A senhora está chorando?

― Desculpa! É que te ouvir novamente falando assim do seu pai


mexe muito comigo. Fico muito feliz. De verdade. Ele ficaria muito
orgulhoso de você!

Fico em silêncio, meio embargada com o misto de sentimentos que


tudo isso traz. Depois conto tudo a ela e o motivo real de minha ligação.
Quando percebo, estamos há mais de uma hora conversando sobre os
planos. Ela consegue ficar mais empolgada do que eu. Já estamos até com
ideias para o nome do lugar.

Assim que desligo, escuto barulhos na cozinha. Levanto e encontro


Lucca arrumando o café de manhã.

― Nossa! Você consegue ficar ainda mais linda assim que acorda!

― Do jeito que você fala, até parece verdade.

― E quem disse que é mentira?

Sem graça, olho para ele e o beijo.

― Dormiu bem?

― Para falar a verdade, nem dormi!

― A cama é tão ruim assim ou você é daquelas que não dorme sem o
próprio travesseiro? ― Ele não esconde o deboche.

― Vou nem comentar! ― Finjo estar brava.

Depois conto a ele minhas pesquisas e todos os planos para meu


empreendimento. E, assim, renasce oficialmente um sonho!
30

MANUELA

Aproveito que Lucca ainda não voltou a trabalhar por conta da perna
e uso e abuso de sua boa vontade. Mesmo não entendendo do assunto, faço
com que vá comigo a todos os terrenos para conhecer. Junto do especialista
que minha mãe me recomendou, é claro.

É muito gostoso ver como ele embarca no sonho comigo. Como fica
feliz pelo simples fato de me ver feliz. Às vezes, parece que nos
conhecemos há anos, de tão bem que nos damos. Temos os nossos
desentendimentos, como qualquer casal, mas nada muito sério e resolvemos
rápido.

Visitamos uns cinco lugares, tudo no mesmo dia. Quero resolver isso
logo e já começar a colocar em prática todos os meus planos. Lucca quase
me mata quando, após o quinto lugar, eu falo que meu preferido é o
primeiro.

― Por que mulher faz isso?

― Isso o quê? ― Finjo-me de desentendida.

― De fazer nós homens de bobos.

― Jamais faria isso com você, amor. ― Não aguento e começo a rir.
― Só precisava ver todos para ter certeza de que o primeiro é o certo.

― Claro!

― Por quê? Está tão ruim passar o dia inteiro comigo?

― Não distorce o que falei.


― Não estou distorcendo, apenas fazendo uma perguntinha.

― Uma perguntinha! Sei!

Nesse clima gostoso dirijo até a imobiliária e fecho a compra do


terreno. Com o dinheiro restante, pelas contas que faço, ainda é possível
investir em quase toda a estrutura necessária para que tudo funcione da
melhor maneira. Para o carro de transporte, que precisa ser climatizado, e
para contratar alguns funcionários eu faço um pequeno empréstimo. Nada
exorbitante.

Lucca me oferece umas economias que tem guardado, mas não quero
começar um relacionamento já pedindo dinheiro emprestado. Tudo bem que
não pedi, foi ele que ofereceu, mas mesmo assim recuso.

Tenho um fundo reservado para a floricultura, mas também prefiro


não misturar os dois negócios. Se um for à falência ainda posso viver do
outro. Então, faço questão de deixar tudo independente para não ter
problemas futuros.

Minha mãe acha um absurdo eu pedir um empréstimo enquanto ela


tem condições de me ajudar. Não acho justo fazê-la mexer em suas
economias depois de toda a dificuldade que enfrentou após meu pai perder
o emprego e ser obrigada a lidar com todas as contas da casa sozinha após a
morte dele. Não me perdoaria se meu negócio não der certo e acabar
arruinando a vida financeira dela.

Parte da vida adulta é ser responsável pelas próprias contas e, como


consequência, pelo próprio endividamento. Quero chegar lá na frente e
saber que não atrapalhei ninguém pelo caminho, pois é como dizem: o mais
importante não é chegar ao topo, mas todo o percurso até lá. Toda a
caminhada precisa valer a pena.

Assim que assino o documento e oficializo a compra do terreno, faço


questão de ligar para minha mãe. Ela precisa ser a primeira a saber da
novidade, da mesma forma que sempre foi a primeira a conhecer meus
problemas e a ajudar com eles.
Até meus quinze anos tive um melhor amigo, que foi meu pai. Depois
que ele nos deixou, eu me aproximei ainda mais da minha mãe. Nosso
relacionamento sempre foi bom, nunca fui aquela adolescente que sentia
vergonha da própria mãe, mas depois de sermos nós contra o mundo, como
gostava de dizer para mim, construímos uma relação inexplicável!
Inquebrável! Com cumplicidade e respeito que me fazem ser grata a Deus
todos os dias pela mãe que colocou em minha vida.

― Agora que já contou para sua mãe, precisamos comemorar.

― E o que você tem em mente? ― pergunto já animada com a ideia.

Porque agora estou assim, com uma felicidade que não cabe mais
dentro de meu peito. Sinto vontade de aproveitar a vida como se não
existisse o minuto seguinte. O que deveria ser feito por todo mundo, mas só
tomamos consciência disso ou só começamos a querer viver dessa forma
após enfrentarmos perdas que nos deixam com um buraco no coração e uma
urgência enorme de viver cada segundo.

― Só vai saber na hora certa. ― Ele sorri.

― Odeio surpresas!

― Mentira! Você só é curiosa demais para aguentar uma surpresa.

O pior de tudo é que nem posso falar que é mentira, porque é


exatamente assim que sou. Acabo caindo na risada com ele.

― Para o carro ali no supermercado para eu comprar uma coisa.

― Uma coisa! Quanto suspense!

― Quanta curiosidade, isso sim.

Assim que paro o carro ele sai e depois volta com uma garrafa de
champanhe barato com um saco enorme de copo descartável.
― Quantas pessoas você pretende convidar para a nossa
comemoração? ― Mal consigo falar de tanto que rio.

― Você já viu venderem dois copos descartáveis? Confesso que até


tentei, mas não deu muito certo.

Agora que rio mais ainda. Fico imaginando a cara do funcionário o


ouvindo perguntar se não vende apenas dois.

― Se ficar rindo vai ficar sem copo!

― Eu bebo no gargalo. Ou vai dizer que tem nojinho?

― A última coisa que tenho nojo é da sua boca. Pelo contrário, tenho
cada vez mais desejo por ela. ― Ele termina a frase e tenta a todo custo me
beijar.

― Estou dirigindo! Deixa de ser maluco!

― Então, para o carro! Vai! Para!

― Você está falando sério?

― É claro que estou!

Paro o carro no primeiro lugar seguro que encontro e ele me beija


como se fosse nosso primeiro beijo. Com tanto desejo que me faz não
querer parar nunca mais.

― Agora já podemos ir.

― Agora quem não quer dirigir sou eu. ― Puxo-o para mais perto de
mim e o beijo bem devagar. ― Agora, sim, acho que já podemos ir. ― Rio.

― Então dirija até seu novo terreno!

― Vai me fazer voltar lá?

Ele me olha, indignado.


― Deixa de ser reclamona e dirija para a nossa comemoração. Faça o
favor!

― Sim, senhor!

― Obrigado!

Vamos conversando e brincando até ele me fazer parar o carro bem


no meio do terreno. Saímos e sentamos no capô. Ele abre o champanhe e
nos serve em nossos copos descartáveis chiques.

― Um brinde!

― Ao que vamos brindar, exatamente? ― pergunto.

― Aos recomeços!

― Aos recomeços!

― Obrigado por me deixar fazer parte desse momento tão importante


como o dia de hoje. Amei cada segundo do dia!

― Mentira, você reclamou de ter visitado cinco lugares à toa.

― Não estrague meu momento romântico! Será que é possível? ―


Finge estar bravo.

― Desculpa! ― Rio sem conseguir segurar.

Depois paro e fico só o admirando.

― Sabia que é estranho quando você para e fica me encarando dessa


forma?

― Não estou te encarando, estou te admirando! E agradecendo a


Deus por poder ter alguém como você ao meu lado para me encorajar a ser
feliz.
E nos beijamos pela milionésima vez.
31

LUCCA

Adoro inventar uma desculpa para ter um momento especial com


Manu. Comemorar a conquista do terreno e o início desse sonho ao lado
dela é incrível! Toda vez que tenho um encontro com ela, sinto meu coração
acelerado da mesma forma que senti quando ela apareceu para nosso
primeiro encontro oficial em minha casa. É uma sensação tão boa.

Hoje, aqui deitados no capô do carro dela, no silêncio noturno e


olhando as estrelas, temos uma das noites mais especiais juntos. Ela é o tipo
de mulher que amo, que não se preocupa se está usando uma taça de cristal
cara ou um simples copo descartável. O mais importante é sempre a
companhia.

― Obrigada por ter me trazido aqui para comemorar o dia de hoje ―


Manu fala com os olhos cheios de gratidão.

Acaricio delicadamente seu rosto e uma mecha de seu cabelo. Como


esta mulher é linda! Tão diferente da Cris e, ao mesmo tempo, tão linda
quanto!

― Ver você assim, feliz novamente, é a minha maior conquista.

Ela não fala nada, apenas fecha os olhos enquanto curte o carinho que
faço.

― Queria ter entrado em sua vida de uma forma diferente.

― Já pensou que se fosse diferente nós não teríamos a menor chance


de ficarmos juntos? ― Tenta amenizar o assunto com um leve sorriso.
― Acho que não me importaria se isso significasse não te fazer sofrer
tanto quanto fiz.

― Não ia querer me beijar, então?

― Estou falando sério, Manu!

― Eu sei, Lucca, mas não quero falar disso, por favor! ― ela suplica.

― Sei que te machuca pensar naquele dia, mas eu preciso falar, por
favor!

Agora é a vez de ela se deitar de lado e fazer carinho em meu rosto.

― Se é importante para você, então, continue. Estou aqui para te


ouvir!

― Assim que o vi deitado no asfalto, eu sabia que tinha destruído a


vida de uma família. Torci muito para que ele não fosse casado ou que não
tivesse filhos. Mas aí você apareceu vestida de noiva e eu percebi que o
estrago era gigantesco. Acho que me doeu mais te ver daquele jeito do que
ter perdido minha própria esposa.

Minha voz embarga e vejo que uma lágrima também escorre de seus
olhos.

― Não quero te fazer sofrer, só quero que você saiba que daria tudo
para que você o tivesse de volta. Mesmo se isso significasse nunca ter você
assim, em meus braços, em minha vida. Eu te amo tanto, mas tanto, que sua
felicidade é muito mais importante para mim do que a minha. Nunca se
esqueça disso! Nem por um minuto duvide que meus sentimentos por você
são os mais sinceros e os mais profundos.

― Não se preocupe! Nunca duvidei! Sei que esse assunto não magoa
só a mim, mas a você também, e esse é um dos motivos por que não gosto
de falar sobre. Passe o tempo que for, sempre será um assunto complicado,
que nunca trará boas lembranças.

Ela faz uma pausa.


― Não quero que você fique se martirizando com essas lembranças.
Mesmo sendo ruins, hoje, são apenas lembranças. Vou sempre me lembrar
do Samuca com muito amor e carinho, mas estou cansada de viver no
passado. Quero aproveitar o presente, porque é tudo o que temos agora. E o
meu presente é você! Nosso relacionamento!

Depois ela me beija com tanto amor que meu coração fica até
apertado.

― Mas eu agradeço por você me falar essas palavras. Gosto de saber


como se sente. Gosto, principalmente, por você ser sempre muito honesto e
muito aberto comigo. Obrigada!

Não tenho mais palavras, então, troco todas por um beijo em seus
lábios delicados.

― Posso te fazer uma pergunta um pouco delicada?

Ela me olha e sorri.

― Não é nada ruim, prometo. Só é um tema complicado. Para nós


dois, inclusive.

― Posso não responder se for muito “complicado”?

Sorrio.

― Combinado! Dou essa opção para você.

― Então, pergunta.

― Você ainda tem vontade de ter um filho depois do que aconteceu?

Ela se levanta e senta no capô, ficando agora de costas para mim. E


não faz qualquer menção de que pretende falar alguma coisa.

― Ei! ― Acaricio suas costas. ― Está tudo bem se não quiser falar
sobre isso.
― Está tudo bem! ― Ela se vira para mim. ― Não vou mentir para
você. Desde que perdi o Samuca e, consequentemente, o bebê, que não
penso nesse assunto. Achei que não seria possível encontrar outro homem
que me fizesse sentir vontade de construir uma família. Quando meu pai
morreu, prometi para mim mesma que jamais colocaria um filho no mundo
para que sentisse o que senti quando ele me deixou. Depois conheci Samuca
e aos poucos ele foi me mostrando que não me deixaria da mesma forma
que meu pai e seria o melhor pai que eu poderia encontrar.

Faz uma pausa e eu já sei o que ela diria em seguida. No mínimo,


queria encontrar as melhores palavras para não me magoar.

― Acho que não preciso falar o que mudou. E voltei a pensar que de
uma forma ou de outra, os homens sempre partiam da minha vida. Que não
seria justo colocar uma criança no mundo para ficar sem pai logo cedo
como fiquei.

― Sei que não posso prometer que nunca vou morrer, porque isso não
é possível. Só Deus conhece meus dias! O que posso dizer é que, se
depender de mim, estarei sempre com você e que farei de tudo para ser o
melhor pai do mundo.

― Você seria um pai incrível mesmo. ― Ela sorri. ― Não posso te


prometer, porque agora não estou pronta para isso. Mas posso dizer que
acredito que, vivendo ao seu lado, eu vou desejar tudo o que tem de melhor
nessa vida, família é uma delas.

― Não estou com pressa. O que aprendi com todas as perdas é que
tudo tem um tempo certo para acontecer. No momento, o que mais quero é
aproveitar que tenho você só para mim.

― Ah! Então quer dizer que você será um pai ciumento?

― Não sei se ciumento é a palavra certa, porque serão meus filhos e


os amarei mais do que tudo, mas amo não dividir sua atenção com mais
ninguém.
― “Meus filhos”? Quer dizer que não será apenas um?

― Claro que não! Quero um time de futebol! Pode até ser misto, mas
um time completo.

― Acho que está tudo terminado entre a gente! Agora!

Dou uma risada alta. Nossos momentos juntos são sempre assim,
regados a amor e muito bom humor. Amo cada segundo deles.
32

MANUELA

Após o longo processo de escolha do terreno para comprar, depois de


toda a obra que resolvi fazer para ficar um local agradável para todos os
funcionários, o preparo da terra, o plantio e os cuidados para termos as
rosas mais bonitas do mundo, chega o dia mais esperado por mim: a
colheita.

Não lembro quando foi a última vez em que me senti tão ansiosa
como agora. E não vale quando estava me descobrindo apaixonada por
Lucca, porque sinto a ansiedade de vê-lo todas às vezes que vou encontrá-
lo. É como ter um primeiro encontro de novo, de novo e de novo. Amo e
odeio ao mesmo tempo essa situação. Sinto-me uma adolescente vivendo
meu primeiro amor, mas tenho raiva de me sentir tão frágil e vulnerável
assim. Talvez se apaixonar seja um pouco disso.

Acordo bem cedo e vou direto ao sítio. Mentira, primeiro passo na


casa de minha mãe para buscá-la porque ela disse que fazia questão de
acompanhar esse dia tão importante na minha vida. Para não falar nas
nossas vidas. Como era um sonho antigo do meu pai, também se tornou um
pouco sonho dela.

Lucca achou melhor não ir, principalmente quando soube que minha
mãe ia. Disse que nós duas precisávamos viver esse dia juntas e sozinhas.
Confesso que gostei da ideia quando conversamos e estou animada por estar
apenas com minha mãe, afinal, só nós duas entendemos de fato o que
significa o dia de hoje.

Alguns funcionários já estão à minha espera quando chego. Eles têm


ordem para não começarem sem mim. A primeira rosa vermelha colhida é
entregue em minhas mãos e a segunda para minha mãe. Já a primeira rosa
azul guardo para Lucca. Assim como fez parte do relacionamento dele com
Cris, agora também é parte importante do nosso.

O mais bonito é ver a alegria e a emoção dos funcionários. Quase


todos conheceram meu pai e, consequentemente, lembram como foi o dia
de sua morte. Quando esse projeto começou fiz questão de contar para
todos que aquele era a realização de um grande sonho dele. Agora eles
também estão felizes por fazerem parte disso com a gente.

Enquanto alguns colhem, outros cuidam do armazenamento, já que as


rosas são muito sensíveis e precisam de cuidados específicos. É tão bonito
assistir que fico encantada com tudo. Sinto como uma criança em um
parque de diversões.

Assim que recebi a primeira rosa colhida já soube o que faria com
ela. Conto para minha mãe e peço para que ela me acompanhe nessa
missão. Antes de fazer o que meu coração pede, preciso passar na casa do
Lucca. Despeço-me dos funcionários, não sem antes deixar as últimas
orientações, e volto para a cidade.

Chegando a casa dele, deixo minha mãe me esperando no carro e toco


a campainha. Como sempre, ele me recebe com o sorriso mais bonito do
mundo.

― Achei que viria mais tarde ― diz após me beijar respeitosamente,


já que viu minha mãe no carro.

― Quer que eu volte depois?

― Claro que não! Se dependesse de mim, eu te amarrava ao meu lado


para não ficar um minuto sequer longe de você.

Trocamos mais um beijo.

― Será que posso entrar ou tem alguém aí que não posso saber?

― Você sabe que no meu coração e em minha vida não tem espaço
para mulher mais nenhuma além dessa linda que está bem na minha frente.
― Acho bom!

Passo por ele ignorando o beijo que me daria e entro na casa. Ele
apenas acha graça de mim.

― Sua mãe não quer entrar? ― pergunta antes de fechar a porta.

― Não! Agora não posso demorar. Tenho outro lugar importante para
ir depois daqui.

― Hum! Tem um encontro?

― Tenho! Mas não é ninguém vivo, então, não precisa se preocupar.

Ele me olha, confuso, como se eu fosse maluca por ter um encontro


com alguém que já morreu.

― À noite explico tudo. Agora não posso.

Pego a rosa azul que está escondida em uma embalagem. Assim que
ele vê, já abre um sorriso.

― É a primeira rosa azul colhida! Peguei especialmente para você.


Entendo o quanto ela representou no seu relacionamento com Cris, mas
também me faz lembrar um pouco o início da nossa história. O
compromisso que eu tinha todo dia primeiro e como achava lindo o amor
daquele homem desconhecido por sua falecida esposa. E depois a primeira
rosa azul que alguém me deu. Pensei em você durante todo o dia depois de
ganhá-la.

Vejo seus olhos brilharem pelas lágrimas que surgem.

― Sei que você acredita que é um homem que me marcou pela morte
do Samuca no meu quase casamento. E, não vou mentir, não posso me
esquecer disso. Mas posso dizer que também é um homem que me ajudou a
me reerguer, que me mostrou o caminho de volta para a felicidade e para o
amor. Se eu consegui realizar o meu sonho e o do meu pai, foi tudo graças a
você. Então, essa rosa azul não é só mais um sinônimo de um amor que
você perdeu, mas um amor que conquistou, apesar de todos os contras.

Entrego a flor para ele.

― Eu amo você! Obrigada por tudo! ― Agora é a minha vez de


chorar.

― Também amo você! Muito mais do que imaginei que seria possível
amar uma mulher novamente.

Após um longo beijo, eu me despeço e saio para meu segundo


compromisso. Vou de carro ao cemitério e caminho de mãos dadas com
minha mãe até o túmulo que nunca visitei. Desde meus quinze anos que não
tenho coragem e muito menos vontade de fazer isso.

A morte do meu pai não apenas me machucou, ela também me


destruiu. Nunca mais fui a mesma pessoa desde aquele fatídico dia. Acho
que o processo de cura começou quando li a carta de despedida que ele
deixou. Saber o que passava em seu coração momentos antes de tomar
aquela desastrosa decisão me ajudou de uma forma que não sei explicar.

Trabalhar esse tempo todo com o plantio fez com que me


reaproximasse dele e de tudo o que sentia até os quinze anos. Foi como se
meu amor por ele renascesse mais forte e mais bonito. Consequentemente, a
saudade também ficou maior, mas agora é uma dor diferente que sinto.

Minha mãe permanece em pé, enquanto eu sento no chão. Sei que ele
não está mais aqui, principalmente, depois de todos esses anos. São
somente concreto, terra e restos mortais. Apesar disso, faço questão de ter
esse momento aqui. Foi a morte que nos separou, não só fisicamente, mas
emocionalmente, então, o recomeço precisa ser no cemitério. Ainda mais
que não fui ao enterro.

― Oi, pai. Sei que já faz muito tempo que não conversamos. Meu
coração estava em pedaços tão pequenos que era impossível sentir algo
além da raiva. Não esperava te perder tão cedo, muito menos da forma tão
cruel que foi. Culpei o senhor todos esses anos pela decisão que tomou, por
ter me deixado daquele jeito. Não foi justo! Doeu demais!
Seco as primeiras lágrimas que descem. Escuto minha mãe chorando
também, mas ela não diz uma palavra, deixa aquele momento todo para
mim. Ela, mais do que ninguém, sabe o quanto preciso disso. O quanto
preciso desse desabafo.
― Hoje, entendendo um pouco sua dor, consigo lidar melhor com a
minha. Parar de doer acredito que nunca vai acontecer. É só uma dor
diferente agora. E desde que comecei o nosso sonho, sinto o senhor mais
perto de mim e, ao contrário do que imaginei no início, isso me faz bem.
Olho para a única rosa vermelha em minha mão.
― Lembro quando o senhor me ensinava sobre os significados das
diferentes cores das rosas? Como eu gostava de aprender. Achava tudo tão
incrível! ― Sorrio com a lembrança. ― E para mostrar que aprendi
direitinho, trago para você apenas uma única rosa vermelha. Sozinha e
nessa cor ela tem o significado mais singelo e profundo possível. E é isso
que quero dizer ao senhor depois de todos esses anos: eu te amo! Amo da
mesma forma que amei por todos os quinze anos de nossa convivência.
Espero que, onde quer que esteja, possa sentir orgulho da filha que criou, da
mulher que me tornei e do nosso sonho, que acabo de realizar.
Dou um beijo na flor e coloco, delicadamente, em cima do túmulo.
Esse ato marca o início de uma vida nova para mim. Sinto um peso enorme
sair de meu coração. E, pela primeira vez, desde o dia de sua morte, eu me
permito chorar. Não de raiva como sempre foi, apenas de saudade do
homem incrível que tive o prazer de chamar de pai e de melhor amigo.

Despeço-me dele e saio do cemitério de mãos dadas com minha mãe,


rumo a uma nova vida. Uma vida repleta de possibilidades. Deixo minha
mãe em casa e volto me encontrar com o homem responsável por me fazer
ter vontade de recomeçar. E não qualquer recomeço, mas um digno da vida
que mereço ter.

Ao lado dele reencontrei a felicidade!

E é assim que sigo de agora em diante, feliz com Lucca, um viúvo


que me mostrou um amor enorme e que deu um novo sentido àquela noiva
perdida e de coração estraçalhado pela vida. Ele juntou caco por caco desse
coração e o fez bater cada vez mais forte por ele.

FIM
NOTA DA AUTORA

Nunca pense em suicídio como uma solução para seus problemas. A


melhor opção é sempre pedir a ajuda de um profissional qualificado. Pedir
ajuda é um ato de coragem e de amor próprio! E, lembre-se: por mais que o
mundo tente te destruir, você sempre será muito especial para Deus! Ele
conhece até seus pensamentos e cuida de cada fio de cabelo seu. O que Ele
pensa é muito mais importante do que qualquer coisa!

Você também pode gostar