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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA BÍBLIA J. M.

ABREGO DE LACY

C o n selh o de D ir e ç ã o
José M anuel Sánchez Caro (Coordenador)
A lfonso de la Fuente Adánez
Rafael A guirre M onasterio
Julio Trebolle B arrera
Santiago G uijarro Oporto

OS LIVROS
P lano

PROFÉTICOS
geral da obra
1. A Bíblia e seu contexto*
2. B íblia e Palavra de Deus*
3. O Pentateuco e a historiografia bíblica
4. Os Livros Proféticos
5. Livros Sapienciais e outros escritos*
6. Evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos*
7. Escritos paulinos
8. Escritos joaninos e cartas católicas
9. Literatura judaica intertestam entária (suplem ento I)
10. Literatura e exegese cristã prim itiva (suplem ento II)

EDITORA
* Volumes publicados ou no prelo. AVE-MARIA
193

C a p ít u l o V I

Ezequiel e o segundo Isaías

I. HISTÓRIA DA ÉPOCA E SUA PROBLEMÁTICA

Bibliografia básica: Os pontos fundamentais da época histórica encontramo-los


em J. Asurmendi / F. Garcia, IEB 1,221-227 (AM cdições, 1994, 183-191). Para comple­
tar este estudo, podem ser consultados também Bright, Historia, 409-432 (Paulinas, 1978.
417-459); Cazelles, Historia política, 193-208; Herrmann, Historia, 367-380.

1. Pontos históricos fundamentais

A história deste período apresenta problem as e é de grande interes­


se. Os prim eiros não são excessivos e se devem , sobretudo, à dificuldade
em c o n ju g a r c ro n o lo g ic a m e n te a lg u n s d o s v á rio s te s te m u n h o s
extrabíblicos de que dispom os. Os livros citados na bibliografia em espa­
nhol colocam em realce os pontos m ais im portantes da história da
Babilônia ou de Judá. N ão vam os repetir o que esses livros já disseram .
Convém ter presente que a figura de N abucodonosor preenche o período
até a chegada de Ciro, pois a seus sucessores no trono da B abilônia faltou
tino político. Foram A m el-M arduk, transcrito com o Evil-M erodac em 2
Rs 25,27-30, que reinou som ente dois anos (562-560 a.C.); o seu cunha­
do Nergalsar-Usur, cham ado N ergal-Sereser em Jer 39,3.13, reinou 4 anos
(560-536); e finalm ente N abonid (556-559), reinou até que foi derrotado
por Ciro. H istoricam ente só a figura de N abonid atraiu a atenção dos
historiadores.1 Para com preender o grau de desprezo que este m ereceu

I. Temos um texto contra Nabonid, publicado parcialmente em J. Briend, Israely Judá en los
textos dei Próximo Oriente antiguo: Doc. em tom o a Ia Bíblia 4 (Estella 1982) 90-91, equivalente a
ANET 3 15-3 16 (versão em espanhol, SAO 243-246). Cf. também ANET 306-307 (SAO 240-241).
194 EzeqaieI e o segundo Isaías História da época e sua problemática 195

em certos vestuários sacerdotais babilônios, convém recordar a boa re­ com unidade devia ser o húm us do qual nasceram alguns textos bíblicos,
cepção que fizeram a Ciro. O dom ínio deste novo senhor do m undo se especialm ente as Lam entações (e o SI 74 ou Is 63,7-64,12).
fundam entava no restabelecim ento das tradições religiosas e cultuais de Na B abilônia se encontrava a aristocracia política, religiosa e inte­
cada povo, o que lhe granjeou não som ente as sim patias dos povos lectual do povo. Foram chegando em três deportações sucessivas nos anos
vassalos, mas tam bém da m esm a capital. de 597, 586 e 582. O rei Jeconias, a sua fam ília e os mais influentes
Se nos perguntarm os pelo povo judaico da época, nós o encontrare­ políticos e sacerdotes chegaram na prim eira deportação. N ão foram m ui­
mos dividido em três regiões principais: as novas colônias do Egito e da to numerosos. Já vimos que Bright dim inuiu a cifra para 20.000 deporta­
Babilônia, e os poucos que perm aneceram na Palestina. Dos que fugiram dos, mas o seu influxo posterior foi enorme. Entre eles nasce um a nova
para o E gito não podem os d izer m uito: chegaram ali fu g in d o dos form a religiosa que conhecem os com o nom e de judaísm o, fundam enta­
babilônios, e desprezando expressam ente o apoio dos am onitas. Junto do nas reuniões oracionais, na falta do culto sacrifical do tem plo e nos
com Joanã e seus capitães (Jr 41,11 -18), chegou uma porção de judeus e, elem entos diferenciadores de seu modo de ser (circuncisão e sábado). A
contra a sua vontade, o profeta Jerem ias. Estabeleceram -se em Tafnes e grandiosidade da B abilônia e o esplendor de seu culto aum entaram -lhes a
logo se dispersaram por outras regiões egípcias. A colônia ju d aica no saudade de Jerusalém , mas apresentavam -se tam bém com o um a tentação
Egito tornou-se, com o passar do tem po, m uito im portante, mas neste para a sua fé. A riqueza literária e religiosa da época do exílio se deve em
m om ento mal tiveram com que sobreviver. É notório que os docum entos grande parte ao grupo dos deportados para Babilônia. D a releitura sacer­
bíblicos seguem por m otivos teológicos os passos desta com unidade (2 dotal que fizeram das tradições originais nasceu posteriorm ente a Torá.
Rs 25,25-26; Jr 41 - 44), que não tem m uita im portância para o m om ento. Reescreveram a sua história com m entalidade deuteronom ista, conserva­
Em Judá a situação era m uito difícil diante do evidente despovoa- ram as tradições proféticas e as adaptadas à sua realidade. D esenvolve­
m ento (se atinge a cifra de 20.000 habitantes2). N ão é precisam ente uma ram, em síntese, um intenso labor catequético e literário.
situação de abandono, mas sim de instabilidade. D eixa-se sentir a influ­
ência dos reinos vizinhos que durante algum tem po conservaram um a
relativa independência, com o são A m on e Edom: o prim eiro interveio na 2. Os problemas teológicos
morte de Godolias e provocou, sem querer, a conseqüente fuga de um
O fato de que o m om ento m ais crítico da existência do povo judaico
grupo de judeus para o Egito; o segundo expandiu o seu território por
se convertesse num dos mais fecundos para a sua fé se deve à audácia
Judá, chegando inclusive até Hebron. Se o reino do N orte era adm inistra­
com que um grupo de fiéis encarou a crise teológica do m om ento. Por
do diretam ente com o província babilônica, não se sabe com certeza a
isso, há um especial interesse em querer apresentar, em bora de uma for­
situação de Judá. Talvez dependesse de Samaria. Os dirigentes agrários
m a breve, alguns aspectos que foram fundam entais na pregação profética
que não pertenciam à aristocracia cortesã tom aram as rédeas da situação
do momento.
precária e cuidaram da sobrevivência. A pesar de a capital e o tem plo se
encontrarem destruídos, as suas ruínas atraíam de algum a form a a pieda­
a) O m onoteísm o radical
de popular e os peregrinos se reuniam esporadicam ente (Jr 41,5). A reli­
gião carecia do ornam ento cultuai do passado e é possível que o seu A queda de Jerusalém e a destruição do tem plo supõem algo m ais do
javism o estivesse minado. Os irm ãos do N orte não ajudaram de um a for­ que um a sim ples desarticulação das esperanças históricas de um povo;
ma precisa a salvaguardar a tradição em sua pureza. N o entanto, esta para aqueles que sobreviveram , supôs a com provação histórica da falsi­
dade de sua fé. Todos os dogm as de sua fé caíram por si sós: a prom essa
davídica, a A liança, o dom da terra, o seu nascim ento para a liberdade, a
2. Cl'. Bright, Historia, 410. Para uma visão dc conjunto deste período, com as suas devidas unicidade de Deus... O esplendor do culto babilônico, apesar das dificul­
implicações políticas e religiosas, cf. a obra mais completa até o momento, W. D. Davies /L . Finkelstein dades por que passou no reinado de Nabonid, lhes fazia pensar que Javé
(eds.), The Cambridge History o f Judaism. /. Introduction. The Persicin Period (Cambridge 1984); pode ter sido um deus forte e poderoso nas épocas históricas, mas que no
cf. também uma síntese sobre este período e o capítulo seguinte, centrado 110 nascimento do judaís­
mo, em J. M. Sánchez Caro, Esdras, Nehemías y los orígenes dei judaísmo, “Salmanticensis” 32 presente a glória e o poderio de M arduk eram incontestáveis; Javé tinha
(1985)5-34. sido derrotado. É verdade que a pregação profética sem pre sustentou que
História da época e sua problemática 197
196 Ezequiel e o segundo Isaías
exilados ao regim e hierosolim itano. Num prim eiro m om ento, o proble­
a derrota não era de Javé, mas do povo; que Javé tinha lutado contra o
ma era teológico, mais tarde se acentuou o aspecto sociológico. O acento
povo pecador e rebelde. Pois bem, esta voz continuou sendo ouvida com
estabelecia a qual m entalidade organizativa deveria impor-se. Estas dife­
um a grande audácia: não som ente M arduk não era mais forte do que o
renças teológicas dão um a idéia da dispersão em “correntes” dos judeus
D eus de Israel, mas que Javé é o único Deus e os ídolos são nada, são
fiéis, m as não parece que causaram diretam ente as perplexidades que en­
vacuidade, obra de mãos hum anas, apesar de serem recobertos de ouro e
frentou a com unidade que em seu m om ento em preendeu a reconstrução
prata. Som ente o D eus de Israel é o D eus criador e o Senhor da história.
de Jerusalém . H ouve outras causas, entre as quais não era acidental a
Tais afirm ações são típicas desta época (Jr 10,3-5.14; C arta de Jerem ias;
diferente extração social das pessoas (Jr 39,10).
Ez 7,20; Is 41,24; 44,9-20). A pregação de Elias, afirm ando que Javé era
o único D eus de Israel, fica ultrapassada e transcendida. Esta audácia
crente é a que possibilitou a esperança num m om ento tão crítico. Esta
c) A retribuição individual
visão proporcionou tam bém um a visão universalista da religião judaica.
O problem a do mal e da dor sem pre foi um problem a para Israel e
para toda religião m onoteísta. A o não existir um a divindade negativa so­
b) A origem geográfica da salvação bre a qual se possa descarregar a culpabilidade, é preciso buscar outras
vias de explicação. A culpabilidade reside no pecado do povo: esta foi a
Certam ente, nem todos os judeus alim entaram pensam entos de es­
solução adotada por Israel, tanto na pregação profética com o na catequese
perança. Houve os que se separaram num a adaptação total aos costum es
deuteronom ista. A pesar de tudo, Javé nunca pôde livrar-se de certas nó­
da região, na qual viviam. Outros se resignaram com a sua situação, lim i­
doas em relação ao mal e à dor, com o se pode ver na m esm a m ensagem
tando-se a sobreviver. N ão foram muitos os que sonharam com um a ação
de Isaías.
salvífica do Senhor. Talvez, a princípio, fossem num erosos os que espe­
O problem a se aguça neste mom ento crucial da vida do povo por
ravam um a rápida restauração e reconstrução de Jerusalém e do reino.
duas razões: pela radicalidade do desastre e pela m entalidade individual
Tam bém sabem os que a possibilidade de um longo exílio provocava rápi­
que vai adquirindo foros de cidadania. O tem a do “fim do povo” já o
das reações contra a desm oralização (Jr 29). A pesar disso, a destruição de
trataram com todo o seu vigor profetas com o Amós e Oséias vários sécu­
Jerusalém no ano de 587/586 deve ter representado sério revés para suas
los antes da destruição de Jerusalém . Porém , devido à m entalidade
esperanças. Por isso, as dificuldades encontradas por aqueles que anim a­
“corporativa” do povo, nunca tiveram que defrontar-se seriam ente com o
vam o povo a regressar no m om ento decisivo foram m uito grandes (Esd
problem a do castigo do justo. O inocente sofre perseguição e opressão
2; N e 7; Ag 1,2-11; Zc 5,1-5) e tiveram que anim ar o povo (Is 40,27;
por parte do m alvado; dele Deus tem que livrá-lo através de sua justiça
43,18; 49,14) e insistindo para que partissem (Is 48,20; 52,11). Contudo,
vicária nos tribunais ou direta em sua intervenção. Quando D eus castiga
para aqueles que sem pre esperaram pela salvação, se levantava um pro­
todo o povo pelo seu pecado, é normal que o inocente sofra o castigo
blem a de difícil solução. A partir de 597 havia duas possibilidades de
coletivo. Isto é justo? Esta era a pergunta com a qual tiveram que se de­
encará-la: alguns pensavam que Jeconias, o rei exilado na B abilônia, era
frontar tanto Jerem ias com o Ezequiel, respondendo ao refrão que se tor­
o legítim o e dele se devia esperar a restauração da m onarquia davídica;
nou popular na época: “Os pais com eram uvas verdes e os dentes dos
outros aceitavam Sedecias com o rei e pensavam que a salvação residia
filhos ficaram em botados” (Jr 31,29-30; Ez 18,2). Estes profetas defen­
naqueles que permaneceram em Judá. Jeremias alinhou-se claram ente com
deram incansavelm ente a justiça do agir de D eus, mas nunca puderam
o segundo grupo (Jr 22,24-30; 24; 32). Ezequiel provavelm ente com o
proporcionar um a solução intelectualm ente satisfatória. O tem a alcança
prim eiro grupo (os seus oráculos datam da época de Jeconias e a Sedecias
o seu ápice literário e de proposta no livro de Jó, no qual se fundem a
não cham a de rei, Ez 17,11-15). Esta dúvida se m anteve com força até
poesia e o m istério. Som ente no caldo de cultivo desta problem ática é
que no ano de 586 foi destruído o templo de Jeaisalém . Parece que Jeremias
im aginável um a solução tão audaz como a que oferece a figura do servo
esperava a salvação para aqueles que perm aneceram no território palesti­
(segundo Isaías), na qual, conforme veremos, se funde a pessoa individual e
no (Jr 42,10). As duas posturas tiveram certa força na sua época, mas
seu valor corporativo numa função salvífica misteriosa e grandiosa.
nunca se duvidou de que a restauração passava pela incorporação dos
198 Ezequiel e o segundo Isaías História da época e sua problemática 199

3. Observação cronológica sobre a queda de Jerusalém Abril 573-Abril 572: ano 3 2 2 de N abucodonosor, 2 5 2 da deporta­
ção (Ez 40,1), 14 2 depois da queda de Jerusalém (Ez 40,1).
São vários os problem as cronológicos que se costum a encontrar ao D este m odo, o cerco de Jerusalém durou do dia 5 de janeiro de 587
estudar esta época histórica. M uitos deles permitem , além disso, chegar a a 18 de julho de 586, isto é, um ano e meio. A prim eira atividade profética
especificar dados m uito concretos, inclusive mês e dia. M as os abundan­ de Ezequiel vai de 31 de julho de 593 a 18 de julho de 586, isto é, 7 anos.
tes dados que neste aspecto nos oferece o A ntigo Testam ento são em si A paralisia de Ezequiel e a sua m udez vai do dia 18 de julho de 586 a 5 de
m esm os problem áticos. Para conjugá-los corretam ente é preciso levar em janeiro de 585, num total de 25 semanas. Tam bém em Jr 52,4 aparece a
consideração vários aspectos. Em prim eiro lugar, alguns (por exem plo, data da queda de Jerusalém . Para muitos é um dogm a que Jerusalém caiu
aqueles que são apresentados nos livros de Jeremias e dos R eis) seguem em 587, m as para m anter tal data seria necessário corrigir 4 dados bíbli­
em sua cronologia o rei Sedecias, enquanto outros (por exem plo, Ezequiel) cos.
som am os anos do deportado Jeconias. E Vogt nos convida a ter presentes
algum as questões:
II. O P R O F E T A E Z E Q U IE L E A S U A O B R A
a) A través de vários docum entos de N abucodonosor sabem os que
Jerusalém se subm eteu no dia 16 de março de 597, quer dizer, 4 sem anas
antes do início do novo ano (13 de abril de 597). Por várias razões passa­ Bibliografia básica: O comentário fundamental em espanhol do texto do profeta
ram m ais de 4 sem anas antes que Sedecias com eçasse a reinar e antes que Ezequiel é o de Alonso / Sicre, Profetas II, 667-855 (Paulinas, 1991, 687-883). Pode ser
útil completá-lo com Asurmendi, Profetismo, 56-62 (Paulinas, 1988, 68-76); Id., Ezequiel:
tivesse acontecido a deportação. CuadB 38 (Estella, 4 - ed., 1990, Ed. em português, Ed. Paulinas, número 33); Beaucamp,
b) Sedecias, portanto, com eçou a reinar quando já se havia iniciado Profetas, 177-220; Garcia Cordero, Librosproféticos, 779-982; L. Monloubou, Un sacer­
o novo ano. Por isso o ano de 597/6 era incom pleto e, portanto, conside­ dote se vuelve profeta: Ezequiel (Barcelona 1973); von Rad, Teologia II, 275-297 (Aste,
rado com o “ano da ascensão ao trono” ; o seu “prim eiro ano” com eçou S. Paulo, 1974, 211-228); Schmidt, Introducción, 305-316; Sicre, “Con lospobres", 378-
em abril de 596. De fato o “ano da ascensão ao trono” de Sedecias é 407 (Paulinas, 1990, 512-553); E. Zurro/ L. Alonso Schôkel, Ezequiel, Los libros sagra­
dos 11 (Madri 1971).
m encionado em Jr 49,34.
c) Finalm ente, este modo de contar os anos não servia para os depor­
tados, por isso o 597/6 era “o prim eiro ano da deportação” . Esta diferença
1. O profeta sacerdote
de num eração se encontra em vários lugares no A ntigo Testamento. O
esquem a seguinte do calendário sinótico resum e a visão deste autor e
E ntre os deportados de 597, junto com o rei Jeconias, viajava com a
ajuda a interpretar os dados encontrados nos textos bíblicos.
sua fam ília um jovem cham ado Ezequiel, filho de um sacerdote de Jeru­
Abril 597-Abril 596: era o oitavo ano de Nabucodonosor (2 Rs 24,12),
salém de nome Buzi (Ez 1,3). Certo dia, em pleno exílio3 perto do rio
o ano em que Sedecias sobe ao trono (Jr 49,34), o prim eiro ano da depor­
Kebar, recebeu a sua vocação profética. A data é detalhada: era o dia 5 do
tação. quarto mês do “quinto ano da deportação do rei Jeconias” , segundo a
Abril 596-Abril 595: foi o ano 9 2 de Nabucodonosor, o prim eiro de
glosa de Ez 1,2, seria o dia 31 de julho de 593. Este dado é precedido de
Sedecias, o segunda da deportação. um m isterioso “ano 30” (Ez 1,1), que alguns entendem com o a sua idade
Abril 588-Abril 587: era o ano 1 7 - de N abucodonosor, o 9 - de
no m om ento da vocação. Teria nascido, portanto, no m esm o ano da refor-
Sedecias (conform e 2 Rs 25,1, com eça o cerco de Jerusalém no dia 5 de
janeiro de 587), o 102 da deportação.
A bril 587-A bril 586: ano 182 de N abucodonosor, ano 1 0 ” de
3. Foram propostas diversas teorias sobre o lugar da atividade de Ezequiel. A discussão centrou-
Sedecias, ano 112 da deportação. se em supor uma atividade profética de Ezequiel em Judá. Urna síntese destas teorias se encontra em
Abril 586-Abril 585: ano 192 de N abucodonosor (2 Rs 25,8: queda Alonso / Sicre, Profetas II, 660-670 (Paulinas, 1991, 689-697). A maioria dos autores conserva a
de Jerusalém ), ano 11 2 de Sedecias (2 Rs 25,2: 18-07-586), ano 122 da proposta que apresentamos como a mais coerente com os dados do livro. E verdade que Ezequiel fala
de Jerusalém e do templo. Mas os traços que apresenta se devem ao conhecimento direto que tinha
deportação (Ez 33,11: o fugitivo chega no dia 5 de janeiro de 585). deles e correspondem melhor às “visões”.
200 Ezequiel e o segundo Isaías História da época e sua problemática 201

ma de Josias, no ano de 622. M as nem todos entendem desta form a.4 2. O livro de Ezequiel
Segundo Flávio Josefo (Ant. 10,98), o jovem era um a criança; poderia ter
nascido cerca do ano de 605 ou pouco antes. Em todo caso, parece lógico a) Cronologia ou teologia?
supor que a sua atividade profética se deu no início do ano de 592. Por
N o livro de Ezequiel falta os contornos de um período histórico de­
outra parte, o último oráculo datado que encontramos no livro corresponde
lim itado, um a localização geográfica clara e um grupo de ouvintes defi­
a 26 de abril de 571 (Ez 29,17). Entre estas duas datas se desenvolvem
nido. Estes foram, pelo menos, os problem as nos quais se tem centraliza­
todos os dados de seu livro.
do a exegese crítica. M as a característica mais peculiar do livro de Ezequiel,
Podemos distinguir duas etapas em sua pregação, coincidindo a divisão
em relação aos dem ais livros proféticos, radica na abundância de datações
entre elas com a notícia da destruição de Jerusalém no ano de 586. O objeto
e na ordem quase estrita das mesm as (exceto nos casos que irem os assi­
central da primeira parte é uma mensagem dura que explica o exílio como
nalar com asterisco).
conseqüência do pecado de Judá e anuncia ainda um castigo maior. A segun­
O texto data os acontecim entos a partir da deportação de Jaconias.
da com eça depois da má notícia de 586, e oferece fundamentalmente uma
D esta form a, a vocação do profeta acontece no ano quinto da prim eira
mensagem de esperança alicerçada na reconstrução que o Senhor vai operar.
deportação (593 a.C.), segundo a glosa de Ez 1,2. N o ano seguinte, sexto
Não parece que a sua formação sacerdotal favorecesse uma pregação profé­
da deportação, dá-se a visão do pecado no tem plo (8,1). N o sétimo está
tica, mas certamente não a impediu. Essa formação deixou seus vestígios nos
datada a reflexão sobre a rebeldia de Judá (20,1). N o nono, a visão da
temas como a pureza ou a santidade (22,26; 24,13-14) e no interesse que ele
panela de barro (24,1). No ano décimo se data um prim eiro oráculo con­
ou os seus seguidores manifestaram pelo templo. Esteve casado e a morte
tra o Egito (29,1). N o décim o prim eiro, um oráculo contra Tiro (* 26,1) e
repentina de sua mulher teve para ele um valor simbólico (24,15s): ao ser-lhe
dois contra o faraó (30,20; 31,1). No ano décim o segundo se situa um
arrebatado “o encanto de seus olhos” (24,16) e não poder conservar luto,
oráculo contra o Egito (32,1) e a chegada do m ensageiro de Jerusalém
entende que o Senhor vai destruir seu santuário, “o encanto dos vossos olhos”
(33,21). Daqui pulam os para o ano vigésim o quinto, que é quando se
(24,21). Até o seu silêncio se converte, desta forma, em mensagem divina
inicia a descrição do novo tem plo e da nova terra (40,1). O últim o texto
(3,25-26; 24,26-27).
em ordem cronológica seria o oráculo sobre a conquista do Egito por
A sua personalidade deu m uito o que falar. Os psicólogos e até os
N abucodonosor (* 29,17).
ufólogos se interessaram por este profeta. Chegou-se a afirm ar que Ez 3-
Este cuidado com a ordem cronológica é, sem dúvida, m ais aparente
24 é o diário de um enferm o. Sem dúvida, tudo isto é um exagero, pois
do que real, pois, quando não temos motivo para duvidar das datas, não
torna-se quase im possível destrinchar a realidade pessoal do profeta e a
sabem os exatam ente a que passagem concreta se referem. Podem os su­
interpretação posterior acrescentada no livro. Porém é verdade que no
por que o livro está ordenado seguindo um critério bem mais teológico do
seu livro abundam visões e ações um tanto estranhas. As visões, relacio­
que cronológico, se bem que não saibam os interpretar cabalm ente o cri­
nadas com a mão do Senhor (1,1-3,15; 3,16.22; 8-11; 37,1-14; 40-48),
tério teológico. Com o indícios sobre os quais basear esta afirm ação,
assim com o algumas de suas atuações, estão cheias de elem entos que
aduzim os o fato de que os oráculos das nações (capítulos 25-32) inter­
convidam a pensar em patologias psíquicas: com e um livro (3,3), perde a
ro m p em o an ú n c io e o cu m p rim e n to da c h e g a d a do m e n sa g e iro
fala em duas ocasiões (3,26; 24,17), perm anece durante oitenta dias dei­
hierosolim itano (24,25-27; 33,21-22), e que na apresentação histórica do
tado de um lado ou do outro (4,4-8), com eça a dançar (6,11) ou a aplaudir
plano de Deus (cap. 12.16.20) transcende claram ente qualquer tem po cro­
(6,11; 21,9), rapa totalm ente a cabeça (5,1), diante de todos prepara o
nológico.
fardo e se põe a cam inho com o rosto coberto (12,3-7)... Só o que de real
haja em tudo isso dá um a idéia da im pressão que sua pessoa e a sua m en­
sagem causaram entre os seus com patriotas exilados.
b) A estrutura do texto
O livro está claram ente dividido em três seções: no conjunto 1-24
4. E ste “ano 30” faz referência a um novo calendário im plantado por m otivo da reform a
predom inam os oráculos de condenação contra Judá e Jerusalém ; os capí­
deuteronôm ica? N ão o sabemos. tulos 25-32, com os oráculos contra as nações, ocupam a parte central; na
202 Ezequiel e o segundo Isaías História da época e sua problemática 203

parte final, form ada pelos capítulos 33-48, predom inam os oráculos de 3. O estilo literário de Ezequiel
salvação para o novo Israel. N esta últim a seção se distinguem , além dis­
so, os capítulos 38-39, com posição de caráter escatológico dedicada aos O estilo de Ezequiel é m uito pessoal. A prim eira característica notá­
m íticos inim igos G og e M agog, e a unidade form ada pelos capítulos 40- vel é a abundância de imagens. Sem o intento de serm os com pletos, po­
48, nos quais se colocam os fundam entos do novo Israel em torno ao dem os enum erar várias: o profeta é um “vigia” ou “atalaia” (33,2; 3,17);
novo tem plo.5 G lobalm ente se pode afirm ar que os oráculos da prim eira os falsos profetas são com o “caiadores” de um m uro que vai ser derruba­
parte pertencem à época anterior à destruição de Jerusalém e os da tercei­ do (13,8-16); Jerusalém com o um a panela (11,3; 24,1-14); os reinos de
ra supõem a destruição do reino de Judá. Judá e Israel com o dois “bastões” (37,15-28); o vinho está presente nos
capítulos 15; 17 e 19; a espada é utilizada em 11 e 21; o cedro em 17 e 31.
c) A form a çã o do livro Por outra parte, as im agens se desenvolvem em alegorias que explicam a
m ensagem . D esta forma, a videira queim ada se assem elha a Jerusalém
O livro de Ezequiel. adquiriu a sua forma atual no transcorrer de uma
(15); a história da criança abandonada (16) ou das duas irm ãs (23) expli­
complicada história. Nele, tanto ou mais do que nos demais livros proféticos,
cam a história do povo; da natureza tom a as figuras da águia e do cedro
é importante o trabalho de reinterpretação que tem sofrido. O mais evidente é
(17; 31) para explicar outros aspectos mais concretos. A presenta visões
a estrutura cronológica que apresenta. Além disso, podemos citar a apresen­
grandiosas e de grande força com o as três da glória do Senhor (1,1-3,15;
tação do profeta como “vigia” , provavelmente original em Ez 33, mas se
8-11; 40-48) ou a dos ossos secos que se unem e recom põem (37,1-14).
combinou com a discussão de Ez 18 e volta a ser retomada em 3,17 como
Com a m esm a sinceridade com que afirm am os as qualidades plásticas
categoria geral sobre a qual interpretar todo o ministério profético. A coloca­
das im agens e das visões, é preciso confessar a perda de força com unica­
ção dos oráculos das nações (25-32), interrompendo a seqüência literária ci­
tiva nas explicações que as acom panham . Porém esta abundância de ele­
tada anteriormente, reinterpreta o material. Com efeito, acusadas as nações
mentos visuais confere à linguagem de Ezequiel um a notável plasticidade.
por razões diferentes das de Israel, geralmente pela sua vingança contra o
Para falar de Deus atuando, utiliza geralm ente a im agem de sua “m ão”
povo e pela sua arrogância, são julgadas antes da restauração de Israel com
(cf. 14,9 e todas as vezes que atua sobre Ezequiel 1,1-3,15; 3,16.22; 8-11;
imagens semelhantes (espada, desolação) e com a mesma finalidade (“Co-
37,1-14; 40-48. Existem referências anteriores em 1 Rs 18,46; 2 Rs 3,15;
nhecerás que eu sou o Senhor” , 25,11.17). Curiosamente, os oráculos contra
Is 11: Jr 15,17).
Gog e M agog (38-39) não se incluem nesta seção e são colocados explicita­
Tam bém é preciso colocar em realce a linguagem jurídica do profe-
mente atacando Jerusalém restaurada e perdoada.6
ta-sacerdote. Não é a m esm a linguagem forense de Amós; não há “pleito”
Talvez com o conseqüência de tanta rein terp retação , o livro de
(rib, salvo no acréscim o 44,24), nem juízo (dtn), nem outros term os pro­
Ezequiel teve algumas dificuldades para ser adm itido no cânon judaico.
féticos anteriores. O seu âm bito é sacerdotal, caracterizado por um gêne­
O judaísm o oficial, reunido em Jâm nia ou Yabne no final do século I
ro casuístico no qual o sacerdote responde a um a questão de pureza ou de
d.C., considerou perigoso o fato de que Ezequiel tivesse visto o trono de
sacralidade. Exem plos clássicos são os capítulos 14; 18 e 3 3 ,l-2 0 7 (cf.
Javé (Ez 1 e 10) fora da Palestina. A leitura deste texto foi proibida aos
além disso 44,23-27; 4,14; 6,13; 8,6; 18,5-7; 36,17). Zim m erli assinala
m enores de 30 anos e nunca foi lido na sinagoga. Tam bém foram desco­
que a sua m ensagem se form ula em term inologia forense. D esta form a, a
bertas contradições entre a Torá proclam ada por Esdras e á aceita pelo
história da desobediência não é levada em consideração com a fórm ula
ju d a ís m o e alg u n s d e ta lh e s de E z 4 0 -4 8 . A e x istê n c ia de te x to s
típica da invectiva, mas com a própria do “estudo de um caso” (18,1 ss), e
apocalípticos reconhecidos, com o em Zacarias e em Daniel, ajudaram a
o caso se contem pla em term os de juízos sacerdotais, da ação ju sta ou
sua aceitação no cânon.
injusta (13,1 ss; 36,17).
No marco destas questões é necessário colocar em realce o uso exclusi­
vo, ou pelo menos abundante, de certas fórmulas literárias. As mais típicas
5. Costuma-se assinar uma série de textos “deslocados”, como 33,23-33; 34,1-10.17-19 (cujo
lugar natural parece ser a primeira parte), 35,1-36,15 (pertencem aos oráculos contra as nações) ou
os oráculos de salvação 11,17-20; 17,22-25; 20,40-44.
6. Cf. B. S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture (Londres 1979) 366-367. 7. Exemplos deste estilo se encontram em Lv 13-16.
204 Ezequiel e o segundo Isaías
História da época e sua problemática 205
são duas,8“Filho de Adão” (ou “filho de homem”) e “Saberás/ereis que eu
• Visão (com cinco elem entos)
sou o Senhor” . A primeira fora forjada provavelmente pelo mesmo Ezequiel.
Ezequiel sempre utiliza a referida imagem na boca de Deus. Esta fórmula 1) 1,5-12: viventes com o quatro asas
sublinha possivelmente o contraste entre a criatura humana (simples homem 2 )1 ,1 3 -2 1 : fogo
ligado à terra, débil e mortal)9 e a majestade divina (2,1 e mais 93 vezes). É 3) 1,22-26a: firm am ento ou plataform a com trono
preciso distingui-la da visão da “espécie de figura humana” (1,26) que estava 4) 1,26b-27a: figura hum ana no trono
sentado no trono, semelhante à figura humana que Daniel cita (7,13; 10,16- 5) 1,27b-28a: resplendor com o o arco-íris
18).10A segunda fórmula mencionada, que se costuma cham ar de “fórmula Conclusão: “Era a aparência visível da glória do Senhor. Ao
de reconhecimento” (6,7.13, etc.), pode assimilar o fim dos anúncios sobre contem plá-la , caí o rosto por terra” (1,28b).
uma intervenção do Senhor, e o une com o seu significado; se encontra 54
vezes no livro do profeta. Mas há outras fórmulas: “Eu, o Senhor, o disse” •Vocação (com audição e missão):
(5,14.17; 17,25; 37,14) ou as de introdução “Veio-me esta palavra do Se­
Audição: 1, 28c-2,2: “Ouvi um a voz que m e falava e me dizia: ‘F i­
nhor”, que é repetida inumeráveis vezes.
lho de A dão, coloca-te em pé, que eu vou falar-te’. Penetrou em mim o
Talvez relacionado com a m entalidade casuística sacerdotal (cf.
seu espírito... e me colocou em pé e ouvi aquele que m e falava” .
14,3.13), é preciso consignar o m étodo das “controvérsias” , nas quais o
profeta dialoga com o seu auditório direta ou ficticiam ente (12,21-28;
M issão: 2,3 - 3,11 (3 partes e retorna aos deportados)
16,44; 18; 20,32; 33,10-11.17-20), inclusive com povos estrangeiros (26,2;
28,2; 29,3; 36,13).
1) A núncio da m issão
a) 2, 3-5: Envio-te a um povo rebelde, para que saibam que há
4. Leitura de alguns textos um profeta no meio deles.
b) 2,6-7: N ão temas; tu dirás as m inhas palavras.
a) A vocação: 1,1-3,15
O texto da vocação de Ezequiel está m uito retocado por intérpretes 2) O rdenação profética
sucessivos do profeta, que pretenderam explicar os aspectos m isteriosos, a) 2,8-10 : Com e o que te vou dar; um livro escrito com elegias,
relacionando-os provavelm ente com detalhes do tem plo, por exem plo, lam entos e ais.
identificando os “viventes” com os querubins que cobriam a arca ou situ­ b) 3,1 -3: Ordem de com ê-lo, cum prim ento e sabor doce.
ando o abandono do tem plo por parte da glória de D eus no m arco de um a
procissão. O texto original, tal com o o definem E. Vogt e W. Zim m erli, é 3) M issão propriam ente dita
m uito sim ples." Poderíam os resum i-lo desta forma: a) 3,4-9: Ordem de ir e falar; nem língua difícil nem muitos
povos (obedeceriam ); são rebeldes; tu és forte.
b) 3,10-11: Ordem de aprender as palavras e com unicá-las aos
8. J. Asurmendi, Ezéchiel, em AA. W ., Les prophètes et les livres prophétiques (Paris 1985)
deportados.
199-233, especialmente 219-220 (Paulinas, 1992, 273-283).
9. Alonso / Sicre, Profetas II, 688 (Paulinas, 1991, 707). i
10. Nenhuma delas parece ter algo a ver com as especulações sobre um hipotético título (“O Retorna aos exilados (3,12-15): “O espírito ergueu-me... ( 14) e
filho do Homem”) que a literatura apocalíptica (cf. I Henoc, fundamentalmente o livro das parábo­
las, nn. 37-71) teria aplicado ao Messias. Esta teoria parece ser defendida por F. C om ente / A. Pinero,
m e levou; eu fui... amargurado, enquanto a mão do Senhor me
Libro 1 de Henoc, em A. Díez Macho (ed.), Apócrifos dei A T IV, (Madri 1984), 95, nota 14, enquan­ em purrava com fo rç a (15). Cheguei aos exilados de Tel-Aviv,
to, na p. 30 admite uma linha de tradição nesta direção. A opinião contrária é sustentada por J. que é onde habitavam e perm aneci ali sete dias, consternado,
Mateos / F. Camacho, El Evangelio de Mateo (Madri 198 1) 86 - 87 (cf. ed. em português, Paulinas,
1993). no m eio d e le s”.
11. Tanto J. Asurmendi (CuadB 38) como A lonso/S icre seguem a explicação destes autores,
principalmente a de E. Vogt. Asurmendi reproduz o suposto texto original; Alonso o coloca em
A ousadia de ter com unicado a sua vocação no m arco de um a visão
cursivo ou assinala os acréscimos com parênteses ou com defesa.
da glória de D eus custou ao profeta muitos problem as posteriores com o
206 Ezequiel e o segundo Isaías Histórici da época e sua problemática 207

judaísm o oficial. Não foi m elhor com seus contem porâneos. A ssim o in­ creve a execução do castigo. A realidade ilum inou a desem baraçada notí­
dicam as repetidas qualificações de povo rebelde ou a necessidade de ser cia do profeta (cf. 2 Rs 25,9; Lm 2,3-4; 4,11; Jr 39,8). Por outro lado,
forte diante deles (cf. Jr 1,17-19). Ezequiel teve uma grandiosa visão (narra responde a um a pergunta prem ente: Com o é possível que tenha sido
o que vê de baixo para cima); recebeu sua vocação profética; é preciso destruído o tem plo? A resposta é porque a glória de Javé o tinha abando­
anunciar oráculos que causarão dor (é o conteúdo do livro que com e); nado previam ente, devido à profanação que se conta a partir de Ez 8. O
anunciou-se-lhe resistência por parte do povo; não estranha que fique percurso que segue a glória divina ao abandonar o tem plo é retilíneo: vai
abatido no meio deles (3,15). Em sua sobriedade narrativa aparece pouco da câm ara ao átrio, depois à porta oriental e finalm ente ao m onte das
ativo, tudo é iniciativa divina. Porém ficou evidente que o Senhor se Oliveiras.
m anifestava onde queria (tam bém no exílio). Além disso, o profeta foi Explicações posteriores mudam a pergunta numa outra: O que se pas­
constituído testem unha da história divina (a qual é narrada em outras par­ sou com a arca ao ser destruído o templo? A cam inhada da glória de Javé se
tes, com o no capítulo 16); um a testem unha que continua atuando no exí­ identifica com uma procissão da arca em seu correspondente carro.
lio; testem unha da fidelidade divina e de sua liberdade de ação, até o
ponto de o Santo se revelar fora do tem plo ao povo obstinado. c) Outros textos de Ezequiel: 4-24
N ós vam os nos deter brevem ente só em alguns exem plos de sua
b) A glória do Senhor abandona o templo: 10-1 / prim eira atividade. Outros textos são explicados de um a form a m elhor
M uito relacionada com o capítulo da vocação, por ter sofrido o m es­ nos livros citados na bibliografia em espanhol. Alguns não se pode deixar
mo tipo de reinterpretações, apresenta-se a narração da glória de Deus de ler. Cingim o-nos, agora, som ente às três ações sim bólicas iniciais (4,1 -
abandonando o templo. Essa é a base de Ez 10-11, conclusão da visão da 5,4a) e no final de sua prim eira atividade profética (cap. 24). A m bos não
profanação do tem plo que com eça em Ez 8. O texto, várias vezes retoca­ foram explicados em espanhol e apresentam dificuldades.
do, se transform ou num dos mais com plicados do A ntigo Testam ento. O
texto original, de acordo com os autores citados anteriorm ente, era sim ­ • Ações sim bólicas iniciais
ples e poderia ser dividido em duas cenas mescladas entre si. A com pa­ O profeta descreve três m om entos do cerco de Jerusalém e, em se­
nha-as um a conclusão de toda a visão. guida, explica estes m om entos através de um oráculo.
Prim eira cena. O castigo de Jerusalém (10,2.7, unido ao capítulo O início (4,1 -2): Grava o cerco, num tijolo. Temos oito frases no impe­
anterior): “(2) Disse èle então ao homem vestido de linho: Entra na cela rativo e três palavras em cada frase. Os quatro primeiros imperativos descre­
do tem plo (= a casa)... e enche am bas as mãos de brasas... e espalha pela vem a preparação do cerco, os quatro seguintes descrevem o ataque mesmo.
cidade. E vi que ele entrou... (7). Estendeu a sua mão em direção ao fogo..., E o acréscimo do v. 3 serve para sublinhar a severidade do castigo.
ele o pegou e saiu” . A fo m e na cidade assediada (4,9-11): D epois do im perativo são enu­
Segunda cena: A glória do Senhor abandona o tem plo (10,4.18-19; m erados seis artigos que escasseiam corho conseqüência do cerco. E o
11,23): “ (4) A glória de Javé ergueu-se sobre os querubins e se pôs no mom ento crítico. Na realidade Jeremias esteve a ponto de morrer (Jr 37,21).
um bral do templo; a nuvem encheu o tem plo e o resplendor da glória de N a trilogia se introduz, por conexão externa, outra ação sim bólica
Javé encheu o átrio. A seguir a glória de Javé saiu... do tem plo... (19) e se (4,12-15) sobre a pureza dos alim entos durante o exílio. Além da diferen­
deteve junto à porta oriental da casa de Javé. (11,23) D epois, a glória de ça de conteúdo com as outras três, apresenta várias diferenças form ais
Javé se elevou sobre a cidade e se deteve sobre o monte, ao oriente da (com o a ausência de um a introdução).
cidade” . Os habitantes durante o cerco (5,1-2): Ezequiel teve que rapar a
C onclusão de toda a visão (11,24-25): “Então o espírito me arreba­ cabeça e separar em três partes os cabelos. Pessoalm ente esta ação supõe
tou e m e levou pelo ar ao exílio da B abilônia, em visão; a visão desapare­ um a grande dureza (cf. 2 Sm 10,4), mas sim bolicam ente relem bra a m e­
ceu. E eu relatei aos exilados o que Javé me havia revelado” . táfora de Is 7,20. A sorte dos cabelos (expurgado o texto de suas am plia­
N este texto se conclui o castigo da cidade, um a vez m arcados e sal­ ções) explica a sorte dos habitantes. Os vv. 3-4a am pliam a ação com pli-
vos os inocentes (cap. 9). O instrum ento de castigo é o fogo. N ão se des­ cando-a.
208 Ezequiel e o segundo Isaías História da época e sua problemática 209

Explicação das três ações sim bólicas (5 ,4 b -17): Prim eiro, revela de 3,25-26 m udaram de lugar.12 A m orte da m ulher do profeta serve com o
qual cidade se trata: Jerusalém (4b-5a). É a sua prim eira m ensagem pro­ sinal da conquista da capital. Os ouvintes com preenderão que nesse m es­
fética e preludia o que vai acontecer com a sua atividade durante quase mo dia a cidade tinha sido tom ada; é um a paixão sim bólica na vida do
sete anos. Segue-se o anúncio do juízo divino num oráculo, que na ori­ profeta. Q uando o fato for com provado, então voltará a falar. D urante
gem com preenderia a acusação (5b-6a) e a sentença (8-9.14-15). Jerusa­ sete anos anunciou aos seus concidadãos e estes não acreditaram nele.
lém desprezou sua dignidade, não cum prindo nem com Deus, nem entre Agora, num estado de paixão não prediz, testem unha o que aconteceu.
os concidadãos (leis e m andam entos), por isso seria desprezada pelos D urante seis m eses viveu pessoalm ente a destruição de Jerusalém . A sua
povos. O anúncio é duro, nunca se escutou algo sem elhante antes e ja ­ paixão será concluída em 33,21-22, quando um m ensageiro confirm a o
mais se voltará a escutar algo assim. Para um sacerdote não será fácil sinal. A partir deste m om ento, com eçará a falar de esperança.13
sem elhante m ensagem , por isso a rubrica final: “Eu, o Senhor, o tenho
dito” . Ezequiel não é nacionalista; fala de povos, não de nações, e são
m elhores do que Israel. Os vv. 16-17 reinterpretam a falta de pão. 5. A mensagem de Ezequiel

D epois de tudo aquilo que temos afirm ado, torna-se claro que a
• O fin a l da prim eira atividade profética: Ez 24 m ensagem deste profeta contém duas épocas, claram ente divididas pela
queda de Jerusalém . N a prim eira, procura justificar o castigo sofrido (é o
O capítulo 24 consta claram ente de duas partes, que com eçam com a que falta ainda) com o pecado im perante em Jerusalém e no povo. So­
m esm a fórm ula (vv. 1-14 e 15-27). m ente se salvará quem for justo (cap. 18). N a segunda etapa só anuncia a
N a prim eira parte se propõe a parábola do cozinheiro. Ezequiel pôde salvação, pois nunca voltará a se repetir sem elhante castigo. Nas duas
relatar m uitas (cf. 21,5). A contece antes do cerco de Jerusalém (vv. 1-2) e partes procura opor-se à m entalidade imperante, eufórica e teologicam ente
tem que escrever a data. A estrutura do conjunto é sim ples. Prim eiro, se segura num prim eiro m om ento (cf. 11,3; 12,22.27), deprim ida e resigna­
desenvolve a parábola (3-5); em seguida, sua interpretação (9-10); outro da num segundo m om ento (37,11). O profeta faz de revulsivo, se bem
autor prossegue a parábola (11-12) e a interpreta (13-14). Os vv. 6-8 pare­ que não será ouvido (2,6). A sua função de “vigia” ou “sentinela” (33,1-
ce que foram enxertados posteriorm ente. O contexto esclarece o signifi­ 9; 3,16-21) cum pre-a em sua dupla vertente, anunciar aquilo que se apro­
cado do conjunto. Ezequiel com eça com o um trovador popular cantando xima (norm alm ente o inimigo) e oferecer aos ouvintes a possibilidade de
um alegre “canto do cozinheiro” . Os ouvintes conhecem o refrão que era se preparar. Não som ente anunciava, mas oferecia ao m alvado a possibi­
dito com orgulho em Jerusalém , “A cidade é um a panela e nós som os a lidade de se converter e ao justo a de segui-lo (cap. 18); esta função é de
carne” (11,3). Estavam seguros de que voltariam a Jerusalém , pois o tem ­ responsabilidade dò profeta, sobre a qual se lhe pedirá conta (33,6.8.9).
plo não seria tocado. O canto poderia ter um final feliz e anunciar o retor­ Esta variedade, contudo, é enraizada em concepções tradicionais da
no (cf. Is 22,13). D ificilm ente podiam esperar a explicação que se ofere­ fé javista que lhe dá coerência. No seu livro Deus ocupa o lugar preem i-
ce (9-10): Deus é aquele que acende o fogo para a panela de Jerusalém . nente. A sua santidade transcendente (“glória”) é prejudicada pelo peca­
A o continuar a parábola (11-12), o novo autor não trata de m om ento da do; abandona a cidade. Ela será também a causa da restauração, ao não
destruição da carne de seu interior, m as de destruir a panela (pois já co­ poder perm itir que o seu N om e seja m anchado entre os povos (20,14-22;
nhece a sorte da cidade). Explica-o (13-14) pelo seu estado de im undície. 25,3.8; 26,2; 28,2; 35,10; 36,3-6.20; etc.). A idolatria, ou seja, a profana­
N a segunda parte (15-27) a referência histórica é o m om ento final ção do tem plo é o cum e de toda a classe de pecados, denunciados de
do cerco. Os vv. 15-20 servem de introdução aos dois oráculos, um para m odo alegórico (cap. 16 e 23) ou realista (cap. 8 e 20); resum e um a atitu-
todo o Israel (21-24), outro para Ezequiel (25-27). Torna-se estranho que
a chegada do fugitivo anuncie que o profeta poderá voltar a falar (v. 27).
N ão se tinha afirm ado que estivesse mudo. O fugitivo não chega no dia 12. Ez 3,17-19 também foi tirado de um outro lugar (do cap. 33), mas se tem mantido literal­
mente também em seu lugar original.
em que Jerusalém foi tom ada; isto contraria o dado de 33,21. Buscaram - 13. O texto 3,4-8 reinterpreta a paralisia de Ezequiel. Os vv. 4. 8 fazem exatamente isto; os vv.
se todas as soluções. Talvez, a mais simples seja supor que os versículos 5.6.7 são três sucessivas reinterpretações dos aspectos concretos.
210 Ezequiel e o segundo Isaías História da época e sua problemática 211

de de abandono do Senhor e justifica o desastre. A relação entre o Senhor de um a form a especial os cap. 18; 22 e 34. É quase im possível entender a
e o seu povo está fundam entada na Aliança, esclerosada na atitude dos profanação do tem plo e da cidade, esta é a acusação fundam ental de
crentes, por isso um a restauração da prim eira tem que passar por um a Ezequiel, sem perceber a relação com a justiça.
transform ação fundam ental da segunda, inserida no coração m esm o dos Finalm ente, seria bom ler algum dos oráculos de salvação da segun­
fiéis (16,60; 36,26-27; 37,26). A lei, especialm ente a sua versão sacerdo­ da atividade de Ezequiel. São m uito conhecidos os cap. 36-37, e a im a­
tal, sustenta a A liança e a vida do povo (11,12; 18,9.17.27; 20,13, etc.). A gem usada no cap. 34. Poderia com eçar por este: antes de ler o com entá­
com preensão individual do cum prim ento desta lei trata de evitar o casti­ rio de Sicre “Con los p o b res”, procurar as palavras ou frases repetidas,
go dos justos (9,4) ou a restauração dos ímpios (20,38). A lgo de funda­ deter-se no tem po dos verbos, assinalar o sujeito e o objeto das ações.
mental está m udando na problem ática teológica israelita. O interior do D esta form a podem os procurar uma divisão form al e tem ática deste capí­
Tem plo de Jerusalém tinha sido o lugar privilegiado desta relação (8-11), tulo, que ajudará m uito para um a posterior leitura de algum com entário.
porém o Senhor transcende a geografia e prepara para o futuro um a nova
ordenação com um a nova cidade e um novo templo (40-42), ao qual vol­
tará a sua glória (43,1-5). N a nova etapa será selada a reunificação dos 7. Bibliografia complementar
dois reinos (37,15ss) sob um m esm o pastor com o Davi (34,23-24).
O livro de Ezequiel não parece ter exercido um influxo im portante São fundam entais os com entários de Eichrodt (ATD 1966) e de
no N ovo Testamento, pelo mênos quarito às citações explícitas a que se Zim m erli (BK, 13. N eukirchen-V luyn 1969, 2 a ed.,1972). Dos num ero­
refere. M as algum as de suas im agens sim .14 O seu influxo - em bora com sos estudos e desenvolvim entos concretos, assinalo alguns para posterio­
p ro b lem as - tem sido m aio r no ju d a ísm o p o sterio r e na literatu ra res aprofundam entos:
apocalíptica que com eça a partir deste m om ento a abrir cam inho. J. Alonso D íaz, E zequiel el profeta de ruina y esperanza: CuB 25
(1968) 290-299; P. Auvray, Ezékiel: DBS 8 (1970) 759-791; D. Baltzer,
Ez.ech.iel u n d D e u te ro je sa ja (B erlim 1971); W. B rü g g e m a n n , La
6. Exercícios de leitura im aginación profética (Santander 1986); Th. Carley, Ezekiel am ong the
Prophets (Londres 1975); A. Colunga, La vocación dei profeta Ezequiel:
D escobrir as datas que alguns textos contêm e com provar a sua or­ EstBíb 22 (1942) 121-166; R. Criado, M esianism o en Ez 21,32?: XXX
dem “cronológica” . Seria bom ler alguns textos da prim eira atividade Sem ana Bíblica Espanola (M adri 1970) 263-317; E. G arcia Hernando,
profética de Ezequiel, levando em consideração o hiato de tem po que Aspectos pastorales en el m inistério profético de Ezequiel: “Lum en” 19
transcorre entre o anúncio profético da destruição de Jerusalém e a con­ (1970) 412-437; J. G arscha, Studien zum Ezechielbuch (Berna / Frank­
firm ação m esm a do fato. N este hiato acontece a atividade dos falsos pro­ furt 1974); F. L. H o ssfeld , U ntersuchungen zum K om position und
fetas e o costum e de alguns de consultarem os adivinhos (cap. 13-14). Theologia des Ezechielbuches (Wurzburgo, 1977); A. Hurvitz, A linguistic
Tam bém aqui aparecem em realce as alegorias históricas dos cap. 16 e study o f the relationship between priestly source and the book o f Ezekiel
20. É possível averiguar as suas referências históricas? C onviria enum e­ (P aris 1982); R. W. K lein, E zekiel: The P rophet a nd H is M essage
rar a lista de “pecados” dos quais Jerusalém é acusada no cap. 22. (C olum bia 1988): Th. K rüger, G eschichtskonzepte im E zechielbuch
Seria útil percorrer o livro de Ezequiel, procurando elencar as ações (Berlim / N ova York 1989); E. Kutsch, Die Chronologischen D aten des
sim bólicas e as alegorias utilizadas. N ão é um m ero exercício literário; Ezechielbuches (Friburgo / Gõttingen 1985); J. Lust, Ezekiel and his book
sem ultrapassar o “ponto de com paração” , é possível penetrar no seu pen­ (Lovaina 1986); G. dei Olmo Lete, Estructura literaria de Ez 33,1-20:
sam ento teológico. EstBíb 22 (1963) 5-31; H. van Dyke Parunak, The Literary Architecture
A m entalidade sacerdotal de Ezequiel o leva a interessar-se pelas o f EzechieVs M a r ’o t "elohim : JB L 99 (1980) 61-74; J. Ribera, Fragm ento
questões de pureza, mas tam bém pelo tem a da justiça. J. L. Sicre estuda babilónico-yem ení sobre los profetas (Ez 45, 17-25, hebreo y arameo),
em Hom. J. Prado (M adri 1975) 553-571; G. Savoca, Un profeta interro­
ga la storia. Ezechiele e la teologia delia storia (Rom a 1976); H. Simian
14. Cf. A lonso / Sicre, P rofetas I, 679-680 (Paulinas, 1988, 699-700). Y ofre, D ie th e o lo g isc h e N a c h g e sc h ic h te d e r P ro p h etie E ze c h ie ls
212 Ezequiel e o segundo Isaías O segundo Isaías 213
(W urzburgo 1974); D. Veiweger, D ie Spezifik d er B erufungsberichte 2. A pessoa do segundo Isaías
Jerem ias und Ezechiels im Umfeld ühnlicher Einheitens des ATs (Frank­
furt 1986); E. Vogt, U ntersuchungen zum Buch Ezechiel (Rom a 1981); N ada sabem os deste profeta, tão anônim o que esteve durante 25 sé­
W. Zim m erli, Ezechiel. G estalt und B otschaft (N eukirchen-V luyn 1972). culos escondido atrás do nom e de Isaías, o grande profeta do século VIII
a.C. A sua época de atuação deve ter sido ligeiram ente posterior à de
Ezequiel; um a certa desilusão se deixa sentir no ânim o da com unidade
judaica exilada. O segundo Isaías conhece a sorte dos exilados, o seu
III. O SE G U N D O IS A ÍA S (IS 4 0 - 5 5 ) desânim o e falta de fé (40,27; 41,10; 49,14ss), as suas m urm urações con­
tra o plano divino (45,9). Conhece tam bém de perto o governo de Ciro
(41,5-25; 44,1.28; 45,1). A sua época lhe concedeu a oportunidade de
Bibliografia básica: O comentário mais completo em espanhol é o de Alonso /
Sicre, Profetas I, 263-340 (Paulinas 1988, 267-350); também são de interesse os pontos assistir à queda da B abilônia (47,1; 48,14). Tudo isto nos perm ite susten­
de vista de Asurmendi, Profetismo, 63-69 (Paulinas, 1988, 77-78); Beaucamp, Profetas, tar que este profeta coincidiu com a época avançada do exílio e que ele
221-272; Gelin / Monloubou, em Cazelles, Introducción, 467-479; von Rad, Teologia II, mesm o o sofreu em sua própria carne (42,24).
299-325 (A s te - São Paulo, 1974, 229-252); Schmidt, Introducción, 317-332; Cl. Wiener,
El segundo Isaías. El profeta dei nuevo éxodo, CuadB 20 (Estella, 6 - ed., 1992) (Paulinas,
1980, “Cadernos Bíblicos” 5).
3. A obra literária do segundo Isaías

1. O contexto histórico do profeta Sua obra transluz um estilo peculiar e ardente, m ajestoso e apaixo­
nado. G osta das repetições (40,1; 43,11; 48,11; 43,25; 48,15; 51,9.12.17;
Se no com eço os exilados na Babilônia sonharam com um rápido 57,6.14; 55,1; 51,10), utiliza as imagens com poderio, mas carentes de
retorno, o passar do tem po e as notícias de um a cadeia de desgraças fo­ rigor e de construção. O seu vocabulário é m uito rico no cam po sem ânti­
ram m inando o seu tem peram ento. O ódio que alim entaram contra a co da alegria. U tiliza não poucos epítetos para o nom e do Senhor (42,5;
B abilônia (cf. Jr 51,34-35; SI 137; Is 13; 21,5-10) perm ite descobrir algo 43,15; 45,18; 43,14; 44,6.24; 47,3) e expressões particulares com o “toda
dos sentim entos desta com unidade no exílio. Ali, onde estavam , não era a c a r n e ” (4 0 ,5 .6 ; 4 6 ,1 6 .2 3 .2 4 ; 4 9 ,2 6 ), “ ilh a s ” (4 0 ,1 5 ; 4 1 ,1 .5 ;
mais possível reunir-se para rezar, cantar os cânticos de Sion e recordar 42,4.10.12.15), “os confins da terra” (40,28; 41,5.9; 42,10; 43,6; 45,22).
as antigas tradições de seu povo. No entanto, o tempo não passa inutil­ Tam bém foram assinalados alguns aram aísm os em sua sintaxe.
m ente. A m aioria procurou acom odar-se à nova situação de um m odo ou A obra se divide em duas partes que não são nem homogêneas, nem
de outro, até o ponto de perder a esperança de um novo retorno. A carta de iguais (40-48; 49-55), a ponto de alguns comentaristas afirmarem que é obra
Jerem ias (Jr 29) já não era tão escandalosa em todos os seus aspectos. de mãos diferentes. Cada uma das partes consiste num mosaico de diversos
M ais ainda: quando surgiu Ciro, o político que mostrou a sua inteligência oráculos, adornada com seções possivelm ente autônom as ao m odo de
num a das prim eiras proclam ações públicas de liberdade religiosa, os ju ­ incrustações literárias. É desta forma que se considera o ciclo de Ciro (42,24-
deus - evidentem ente - o receberam com alegria, mas não tinham m uita 48,12) na primeira parte e os cânticos do servo, na segunda. Entre os gêneros
vontade de em preender o cam inho de regresso à sua pátria. Podiam ouvir literários utilizados se podem assinalar os oráculos de salvação (Is 41,8-13.14-
com anuência que por meio de Ciro o Senhor ia realizar o seu plano, que 16), controvérsias (Is 40,12-17.21-24.27-31), pleitos (especialmente polêmi­
ele era o seu “eleito” ; mas poucos se colocaram a cam inho. Foi nesta cos com outros deuses 41,1-5.21-29; 43,8-13), e hinos escatológicos.
situação que este profeta pregou com força poética e vigor expressivo a
sua m ensagem de esperança e de retorno à pátria. A frase que dá início
aos seus oráculos, “Consolai, consolai o meu povo” , fez com que todo o 4. A mensagem do segundo Isaías
conjunto recebesse o nome de “livro da consolação*’.
O tem a essencial do segundo Isaías é, sem dúvida algum a, a restau­
ração de Israel, o final do exílio e o retorno dos exilados. Este único tem a
Ezequiel e o segundo Isaías O segundo Isaías 215
214

é transm itido com a ajuda de alguns conceitos teológicos próprios de não tanto no aspecto literal, mas na sim bologia. A estrutura de base é
indubitável repercussão no futuro: o m onoteísm o, o segundo êxodo, o m antida (libertação-deserto-posse), em bora com algumas m odificações
servo. significativas. Para libertar o povo, o Senhor sai (42,13) ou pronuncia a
sua Palavra (55,11); precede e oculta o seu povo (52,12). Com o outrora o
a) O monoteísm o libertou da escravidão e dos trabalhos forçados, desta form a liberta o povo
da escravidão, do cárcere ou da escuridão (40,1-2; 42,7; 47,6; 49,9; 51,14;
A pregação do único Deus é a base teológica da esperança que o
52,2.4). O Senhor reivindica o seu título de redentor. O cam inho é seguro
segundo Isaías prega. Tiveram que esperar os últim os anos do exílio para
e rápido, o deserto se transform a em paraíso (40,3; 41,17-19; 43,19-20;
ouvir nos lábios do povo judeu a confissão m onoteísta por excelência:
44 ,3 -4 ; 55,1). D esaparece o caráter de prova, m as as resistências são
não há D eus fora do Senhor. Quando os exilados foram tentados pela
m antidas, encarnadas nos outros deuses, na m esm a Babilônia e inclusive
história a ler a grande derrota de seu D eus na queda do reino e de Jerusa­
no próprio povo (40,27; 41,13-14; 42,18-20; 43,18; 45,9-11; 48,1-8;
lém, e quando a m agnificência do culto babilônico que contem plavam
49,14). Porém a Palavra do Senhor vencerá com facilidade; esta seguran­
com os seus próprios olhos tornava m ais dolorosa sua nostalgia e mais
ça abre e conclui o texto profético (40,8; 55,11). Por fim , chega a m eta
temível e atrativo outro culto, justam ente nesse m om ento, um profeta
final, a posse. O povo é conduzido ou retorna (44,22) porque a Palavra do
teve a ousadia de confessar não só que Javé continua sendo Deus, mas
Senhor (55,11) ou o Senhor m esm o (52,8) volta. A terra, m eta do prim ei­
que perm anece com o o único Deus de Israel, e tam bém que é o único
ro êxodo, se concentra em Jerusalém (49; 54); a Jerusalém é anunciada a
Deus: os deuses dos outros povos não são deuses. Javé é o único Senhor
m ensagem salvífica (41,27) e é a interlocutora do Senhor (51,17-52,6).
da história e do cosmos, é o seu criador e o seu governante. A duz com o
Com ela se abria o poem a (40,2) que se encerra com a B abilônia (55,12).
prova a sua atividade criadora e o seu dom ínio sobre a história (40,27-31;
A mão que salvou Israel e que o castigou fará nascer o novo povo com o
41,21-29; 44,6-8; 46,1-7.8-13). No Deus criador radica a autêntica espe­
seu poder (43,12-13; 50,2).
rança de novidade (43,18-19), no “redentor” de Israel (41,14; 43,14; 44.6-
24; 47,4; 48,17; 49,7.26; 54,5.8) a esperança de salvação.
c) Os cânticos do Servo
A esta confissão m onoteísta corresponde a abertura universalista de
Israel. O horizonte da m issão do povo se alarga e retom a a am plitude da “Se excluirm os o problem a do Pentateuco, não existe no A ntigo Tes­
prom essa a Abraão: “Com teu nom e serão abençoadas todas as fam ílias tam ento um problem a m ais com plicado ou mais controvertido do que os
da terra” (Gn 12,3; cf. 40,5; 42,10; 45,14). Israel é o m ediador da salva­ poem as ou os cânticos do Servo” , é assim que com eça dizendo A. Feuillet
ção, com o outrora foram Abraão, M oisés ou Davi. M as esta função m edia­ no capítulo dedicado ao servo.16 Duhm (1892) foi o prim eiro a enfrentar o
dora continuará sendo plural: em relação com ela terá que contem plar, problem a: das 21 vezes que a palavra “servo” aparece em Is 40-55 (sem ­
tam bém , a de Ciro ou a do servo. Israel ocupa o centro da história, porque pre no singular, exceto em 54,17), 14 vezes se aplica direta ou indireta­
D eus o tem colocado aqui (43,1-7), e o tem cham ado com um a vocação m ente a Israel. As outras 7 ocorrências (42,1; 44,26; 49,5.6; 50,10; 52,13;
(41,8-16), e lhe tem confiado a sua m issão (43,8-13). 53,11) parecem aludir m elhor a um indivíduo, de m odo que se torna difí­
cil aplicá-las a um a coletividade. Às vezes, inclusive, o texto contrapõe o
b) O segundo êxodo servo ao povo (49,5-6; 53,8). Duhm procurou solucionar o problem a e,
ao propor a existência de 4 cânticos (42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12),
N o m om ento de im aginar a salvação é natural que surja com força
originariam ente independentes do segundo Isaías, historicam ente o com ­
renovada a tradição do êxodo. É verdade que a ela se alude esporadica­
plicou. As questões que foram debatidas em torno deste tem a podem ser
m ente no texto (43,16-17; 51,9) e não de modo unívoco.15 Porém o pa­
resum idas nestas: a) a legitim idade de individualizar alguns textos, não
drão canônico do êxodo é reconhecido pela grande m aioria dos autores,
relacionados com o seu contexto, que possam ser denom inados de cânticos

15. H. Sim ian-Y ofre pensa que estas alusões se referem m elhor à m ítica luta inicial de Deus
contra o caos. Seria portanto um a questão de teodicéia. De fato, a essa luta alude tam bém a épica do
16. A. Feuillet, Étucles d ’exégèse (Paris 1975) 115.
Êxodo, por isso é m uito difícil identificar a referência.
216 Ezequiel e o segundo Isaías O segundo Isaías 217
do servo; b) um a vez reconhecida a sua existência, determ inar a interpre­ se pode dar por definitivo. Quem é o autor? A quem se refere com esta
tação m ais objetiva dos mesm os; c) finalm ente, definir a doutrina destes figura?
textos e a origem da mesma. As diversas propostas sobre o autor pretendem fundam entar-se nos
argum entos literários e teológicos. Duhm e outros com entaristas supõem
• A existência dos cânticos um a origem e, portanto, um autor totalm ente diferente do profeta deno­
O prim eiro ponto a ser estabelecido é a partir das diferenças existen­ minado segundo Isaías; outros com entaristas atribuem ao segundo Isaías
tes entre o texto atribuído aos cânticos e seu contexto. C onseqüentem en­ a com posição dos quatro cânticos ou, pelo menos, alguns deles. G eral­
te, o fato de colocar o acento nas diferenças não anula, mas supõe, as mente a aceitação destes textos com o cânticos do servo pode conter em si
sem elhanças: m onoteísm o, relação com as nações, ação do Senhor, etc. o convencim ento de que o profeta os tom ou de algum outro lugar.
O núm ero e a am plidão dos textos individualizados com o cânticos do A identificação do servo tem sido a questão m ais debatida. Se pres­
servo variam de acordo com os autores; por exem plo, Duhm propõe qua­ cindirm os da interpretação mítica, de escasso eco crítico, podem os redu­
tro cânticos, enquanto G ressm ann fala de sete. Os problem as sobre a ex­ zir a quatro as correntes interpretativas sobre a identidade do servo:
tensão serão versados logo a seguir. Com parando-os com o contexto, - O servo é Israel. É uma interpretação coletiva, fundamentada no múl­
podem os observar as diferenças seguintes: tiplo uso de tal denominação no conjunto do texto, como já se tem afirmado.
A maior dificuldade que esta teoria encontra é a contraposição servo-Israel
- O diverso uso do título de “servo”, identificado algum as vezes
em alguns momentos (49,5-6; 53,8). Tem-se procurado evitá-la, identifican­
com Israel e aplicado a um personagem anônim o nos supostos cânticos.
do o servo não com todo Israel, mas com um grupo seleto e fiel.
- O com portam ento distinto dos dois servos. O servo Israel é um a
- O servo é um personagem histórico. A história desta interpretação
nação indócil e pecadora, fustigada pelos profetas, cujos pecados lhe têm
individual produziria uma longa lista de personagens identificados com o
m erecido o exílio (40,2; 42,24-25; 43,25-28), povo surdo e cego (42,18-
servo. A única que merece um a certa atenção é aquela que descobre no servo
20). Nos cânticos, pelo contrário, se sublinham os m éritos do servo, a sua
o profeta mesmo. Neste caso, o quarto cântico teria sido composto por um
santidade, a sua docilidade heróica (50,4-6; 53,7), a sua inocência (53,4-
discípulo, mas a idéia se une com a tradição de Jeremias. Certamente, os
5.9), o seu m artírio expiatório (53,10). cânticos mantêm uma relação textual íntima com as passagens do livro de
- A m issão é diferente de ambos. Israel realiza a sua m issão de teste­ Jeremias.
m unha (43,12; 44,8) de modo passivo; a sua m aravilhosa libertação fará - Personalidade corporativa. Esta interpretação mista está ganhando
com preender aos pagãos a sabedoria e poder do Senhor. O servo anônim o ultimamente muitos adeptos. Os seus defensores sustentam que nenhuma
tem, pelo contrário, um a m issão ativa de ensinam ento e deverá lutar para das correntes anteriores faz justiça ao texto e simplificam o problema. O
levá-la ao seu pleno êxito. O oferecim ento voluntário de sua vida assegu­ servo no segundo Isaías é uma figura complexa. Se em algum momento se
ra o êxito final do plano divino. Inclusive, tem um a m issão dentro do torna necessário m anter a identidade individual do servo, não faz falta
povo com o “aliança do povo” (42,6), o que dificilm ente perm itirá a sua identificá-lo com um personagem concreto. São muitas as pessoas inocentes
identificação com Israel. que expiam com seus sofrimentos os delitos dos outros. Assim como o rei
- C onfrontada a perspectiva escatológica. O profeta anuncia a res­ personifica o povo, estas pessoas encarnam o autêntico Israel. Bonnard apre­
tauração material na Palestina da nação escolhida, sem tratar de sua con­ senta em relação a isto uma interpretação muito interessante.
versão ou o aperfeiçoam ento moral. Nos cânticos, por outra parte, se dis­ - A interpretação m essiânica não contradiz as anteriores. Porém se
tingue estritam ente o ponto de vista espiritual e político: carece do porvir é legítimo o uso que o N ovo Testamento faz da figura do servo (M t 12,18-
hum ano, som ente encontra hostilidade entre os seus, sua m issão univer­ 21; 8,17; Lc 22,37; At 8,32-33; etc.), não parece que o texto de Isaías
sal está ligada aos seus sofrimentos. identifique diretam ente o servo com o M essias.

• A origem dos cânticos e a identidade do servo • O conteúdo dos cânticos

O eunuco de Candace (At 8,26-40) personificou detalhadam ente a D e um a form a breve desenvolverem os os dados básicos sobre o con­
perplexidade que produz o personagem anônim o do “ servo” . Q uase nada teúdo de cada um dos cânticos do servo.
218 Ezequiel e o segundo Isaías O segundo Isaías 219

Primeiro cântico (Is 42,1 -4.5-9): Is 42,1 -4 continua a ser a extensão A m enção do Senhor (v. 9) convida a estender o cântico até o v. 9,
atribuída pelos autores ao prim eiro cântico do servo. A lguns autores in­ apesar do tom triunfal e seguro dos dois versículos. O tem a translada para
cluem tam bém os vv. 5-9. O Senhor introduz o seu servo com o o eleito, o Novo Testamento: Cristo confia na defesa do Espírito (Jo 16,8-11), o
revestido com o seu Espírito (cf. Is 11,2) com a finalidade de im plantar o cristão conta com Cristo com o defensor (Rm 8,33ss). A pertença dos vv.
direito e a lei nas nações, isto é, difundir a revelação de sua vontade (cf. 2 10-11 ao conjunto se fundam enta na ocorrência do vocábulo “servo” e na
Rs 17,26-27). É apresentado diante de testem unhas desconhecidas, num m enção do Senhor (v. 10); mas é estranha a interpretação direta aos ou­
cenário universal. A justiça não é im plantada quebrando o débil (cf. Eclo vintes e a dura postura do servo, contrária à sua m ansidão inicial.
20,4; 30,20), mas tam pouco ele se quebrará. O seu m étodo paciente re­ Quarto cântico (Is 52,13-53,12): A extensão do cântico não oferece
corda a figura de M oisés (cf. Nm 12,3). dúvidas. O texto é sim ples e enigmático ao m esm o tempo; o conjunto
A relação com os versículos seguintes é m odificada pelo v. 5. No constitui o poem a por excelência do servo paciente e glorificado; canta o
oráculo de 42,5-9 o Senhor se dirige ao servo (no estilo do SI 2). Este sentido soteriológico de seu martírio e exaltação. A tendendo ao sujeito
recebe um a vocação ao estilo daquela recebida por Jerem ias, com isto que fala e ao tem po dos verbos, podemos distinguir três partes: a) intro­
fica estabelecido com o m ediador de um a aliança, cujas cláusulas (v. 4) dução (52,13-15), b) corpo do poem a (53,1-9), e c) epílogo (53,10-12).
deve anunciar. Pertencem ao poem a a indeterm inação do servo, do grupo “nós” e certas
Segundo cântico (Is 49,1-6.7.8-12): Fala o servo, apresenta as suas dificuldades textuais (52,15; 53,3; 53,8.9).
credenciais, recorda a sua vocação. A partir do v. 5 o servo reproduz as - N a introdução, o Senhor oferece uma chave interpretativa do con­
palavras que o Senhor dirigiu a ele. As novas introduções de suas pala­ junto, apresentando o êxito com o meta final, apesar do aparente fracasso.
vras nos vv. 7.8, assim com o o conteúdo dos versículos finais, apresen­ A m aioria dos com entaristas corrige o texto (v. 15) segundo a tradução
tam dificuldade para determ inar a extensão do cântico. Se a m issão do grega, m odificando a “aspersão” purificadora do TM em “ficarão estupe­
servo com eça em Israel e se estende a todo o m undo (v. 6), dificilm ente fatas ou m aravilhadas” . Contudo, o TM viu-se confirm ado em Q um rân e
se pode identificar com o povo, por isso é considerada um a glosa a m en­ alude provavelm ente à aspersão de M oisés (Ex 24,6-8) ao estabelecer a
ção de Israel no v. 3. Porém a sua identidade não fica clara. L. A lonso A liança (cf. Is 42,6). Ezequiel prevê uma aspersão m etafórica para parti­
S chõkel17 com para o texto com a tradição patriarcal de Jacó no Gênesis: cipar dos bens m essiânicos (Ez 36,25-26). Skinner oferece a seguinte in­
a sua eleição desde o ventre (Gn 25,23), a sua luta com D eus pelo nom e terpretação: “D a m esm a form a que muitos se espantarão dele... assim
(Gn 32,29; 35,10), o seu trabalho por um salário finalm ente reconhecido purificará muitos povos” .
(Gn 30-31), o seu retorno com os filhos e a fam ília (Gn cap. 31 e 33). - O corpo do poem a consta de duas seções. N a prim eira (vv. 1-6)
O esquem a é de vocação profética: cham ado prim ordial, destinado à um grupo m anifesta a sua adm iração na prim eira pessoa do plural diante
palavra, objeção do trabalho inútil, confirm ação divina, enunciado da do inaudito m istério que lhes é revelado, um inocente sofre as conseqüên­
missão. O aparente fracasso diante de seu povo é o paradoxo da missão. cias que correspondiam a eles pelas suas rebeliões; na segunda (vv. 7-9)
O Senhor o reconforta anunciando-lhe que o glorificará e anunciando-lhe desaparece o grupo, mas continua a descrição do m istério. A queles que
que será luz e salvação do m undo inteiro. proclam am a m ensagem , expressam a sua participação, dão testem unho
Terceiro cântico (Is 50,4-7.8-9.10-11): No terceiro cântico o servo de sua transform ação profunda. Não som ente se descobre a inocência do
se apresenta com o fiel discípulo do Senhor, vítim a da m aldade dos ho­ perseguido e m altratado, mas o sentido salvífico de seu martírio. O servo
mens: cospem -lhe no rosto e o esbofeteiam . A presenta características de é um leproso (vv. 4.8) que deve ocultar o seu rosto diante das pessoas (v.
profeta e sábio. A sua língua pronuncia o que o Senhor lhe indica; o seu 3). Os vv. 8-9 concluem este mistério de inocência e castigo que une o
ensinam ento procura consolar o abatido (cf. 42,3). A ceita a sua m issão servo e os espectadores m aravilhados. Poderíam os traduzi-lo desta for­
sem resistência (“com o um cordeiro m anso” - Jr 11,19), conhece as difi­ ma:
culdades no seu íntimo, o seu único apoio está na sua confiança. (8) A rrancaram -no da terra dos vivos por causa dos pecados do
meu povo, o golpe recai sobre ele? (9) D estinaram -lhe um a se­
pultura entre os maus, entre os ricos está o seu túm ulo, em bora
17. A lonso / Sicre, P rofetas 1, 315-316 (Paulinas, 1988, 323-325). não tivesse praticado violência...
220 Esequiel e o segundo Isaías O segundo Isaías 221

- N a terceira parte se proclam a a exaltação do servo. O horizonte se cício m uito prático consiste em ler o quarto cântico, estruturando as suas
am plia no tem po e no espaço até a universalidade de sua vitória. Deus partes de acordo com os tempos verbais utilizados ou os sujeitos destes
m esm o volta a tom ar a palavra (pelo m enos a partir do v. 11), com o fez no verbos; não esquecer de com provar as características de universalidade
início, e confirm a o êxito anunciado em 52,13. O triunfo do servo é a no início e no final do cântico.
realização do plano do Senhor (v. 10). Não será difícil elencar, no transcorrer de vários textos deste profe­
ta, os elem entos com uns das discussões de D eus com os falsos deuses.
Quais são os atributos do Deus verdadeiro?
5. Observação sobre o uso da figura do servo no Novo Testamento

N ão é fácil apresentar o influxo que a figura do servo exerceu no 7. Bibliografia complementar


N ovo T estam ento.18 É evidente que num erosas passagens do Novo Testa­
m ento parecem releituras profundas de cada um dos cânticos. O batism o B. W. A nderson, Exodus Typology in Second Isaiah, em IsraeVs
de Jesus no Jordão, antes de iniciar a sua missão, recorda a apresentação P rophetic H eritage, H om . M uilenburg (L ondres 1962) 177-95; E.
do servo no prim eiro cântico. Inclusive, se utiliza Is 42,1, fundindo com o Beaucam p, Le II Isàie (Is 40,1 -49,13). Problème de lúnité du livre: RevSR
SI 2,7, para apresentar Jesus. Nos sinóticos, as predições da paixão con­ 62 (1988) 218-226; Id., Le livre de la consolation d ’Israel. Isaie X I-IV
cluem com um fracasso parcial de Jesus na G aliléia e inauguram um novo (Paris 1991); P. Beaucham p, Lectures et relectures du quatrièm e cha n td u
período de seu ministério; nelas, Jesus é com o o servo no segundo cântico, Serviteur. D ’Isaie à Jean, em J. Vermeylen (ed.), The Book o f Isaiah
anuncia abertam ente aos seus discípulos que tem que sofrer. A transfigu­ (Lovaina 1981) 325-355; G. M. Behler, Le prem ier chant du Serviteur, Is
ração recorda o batismo, com o Is 49,1-9 recorda Is 42,1-4; é tam bém a 42,1-7: VSp 120 (1969) 253-281; W. A. M. Beuken, Mispat. The fir s t
contrapartida consoladora das obscuras predições de dor e deixa entrever Servant Song and its Context: VT22 (1972) 1-30; J. Blenkinsopp, La
a glorificação de Jesus. Nos relatos da paixão, as cusparadas e os golpes Tradition de TExode dans le Second Isaie, 40-55: “C oncilium ” 20 (1966)
são a realização im pressionante do texto do terceiro cântico. M as, apesar 41 -48; versão castelhana em 20 (1966) 397-407; P. E. Bonnard, Le Second
do interesse em querer m ostrar o cum prim ento das Escrituras, os E van­ Isaie. Son disciple et leurs éditeurs (Paris 1972); D. J. A. Clines, /, He,
gelhos não citam explicitam ente o cântico. Há ecos do m esm o em Lc We, They. A Literary Approach to Isaiah 53 (Sheffield 1976, 2 a ed., 1983);
9,51 ou em Rm 8,33-34. O quarto cântico contém as idéias dos textos A. Colunga, Los vaticinios proféticos de la pasión y los sentidos de la
evangélicos, nos quais Jesus expressa o sentido de sua vida e de sua m or­ Sagrada Escritura: “Salm anticensis” 4 (1957) 634-641; J. Coppens, Les
te. Constitui um a antecipação prodigiosa do m istério central da Páscoa origines littéraires des poèm es du Serviteur de Yahvé: “Studia Biblica et
cristã. M as a linguagem é diferente, o que prova que a com unidade cristã O rientalia” I (Rom a 1959) 114-124; Id., La m ission du Serviteur de Yahvé
não pôs artificialm ente nos lábios de Jesus a linguagem de Is 53. et son statut eschatologique: ETL 48 (1972) 343-371; P. E. D ion, Les
A pesar de tudo isto, é inquestionável que a com unidade cristã pri­ chants du Serviteur de Jahvé et quelques passages apparentés d 'Is 40-
m itiva viu na m orte e ressurreição de Jesus o cum prim ento por excelên­ 55. Un essai sur leurs limites précises et origines: Bib 52 (1970) 17-38;
cia da função do servo. A. Feuillet, Études d ’exégèse (Paris 1975); P. G relot, Les poèm es du
Serviteur. De la lecture critique à Therm eneutique (Paris 1981); M. C.
Lind, M onotheism, pow er and Justice; a study in Isaiah 40-55: CBQ 46
6. Exercícios de leitura (1984) 432-446; R. E M elugin, The Servant, GocVs call, and the Structure
o f Isaiah 40-48: SBLSP A nnual M eeting 1991 (A tlanta 1991) 21-39; H.
Sugerim os ler os cânticos do servo, sublinhando as palavras ou as H. Rowley, The Servant o fth e Lord and other Essays on the O T (Oxford
frases que relem bram outras encontradas no livro de Jerem ias. Um exer­ 1952, 2 a ed., 1965); J. L. Sicre, La mecliación de Ciro y la dei siervo de
D ios en Deuteroisaías: EstE 50 (1975) 179-210; Id., El Cântico dei nuevo
18. Cf. as corretas m alizações que se apresentam em Alonso / Sicre, P rofetas I, 275-276
Exodo (Is 42,14-17), em M iscelânea Augusto Segovia (G ranada 1986)
(Paulinas, 1988, 279). 1336; H. Simian-Yofre, Exodo en Deuteroisaías: Bib 61 (1980) 530-553;
222 Esequiel e o segundo Isaías

62 (1981) 55-72; F. Smyth, Les espaces du II Esaie: De la route im périale


1’avenem ent de la parole: “Foi et Vie” 85 (1986) 31-41; N. H. Snaith,
Isa ia h 40-66. S tu d y o f the Teaching o f the se c o n d Isa ia h a n d its
Conséquences, em Studies in the Second Part o f Isaiah (Leiden 1977); J.
Steinm ann, Le livre de la Consolation d ’Israel et les prophètes du retour
de T exil (Paris 1960); C. Stuhlm üller, D eutero-Isaiah: M ajor Transitions
in the P rophet’s Theology and in Contem porary Scholarship: CBQ 42
(1980) 1-29; Cl. W estermann, D as Buch Jesaja, Kap 40-66 (Gõttingen
1966); R. N. W hybray, T h a ksg ivin g f o r a L ib e ra te d P rophet: an
Interpretation o f Isaiah Ch. 53 (Sheffield 1978); Id., The Second Isaiah
(S heffield 1983); P. W ilcon/P atton-W illiam s, The S erva n t Songs in
D eutero-Isaiah: JSO T 42 (1988) 79-102; Studies in the Second Part o f
the B ook o f Isaiah (Leiden 1977).

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