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JUDAÍSMO RABÍNICO

I - Enquadramento
1. Antecedentes históricos do séc. I
BIBLIOGRAFIA
BROWN, Raymond E. – J. FIZMYER – R. MURPHY (ed.), The New Jerome Biblical Commentary, 2.ª
ed., Geoffrey Chapman, London 1989, II.75:91ss (trad. bras. Comentário Bíblico de
S.Jerónimo).
FREND, W. H. C., The Rise of Christianity, DLT, London 1984.
JOHNSON, Paul, A History of the Jews, Phoenix, Orion Books, London 1994.
LOURENÇO, João, O Mundo Judaico em que Jesus Viveu, UC Editora, Lisboa 2005(?).
SHÜRER, Emil, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ, 2 vol., ed. Revista por
Geza Vermes, T. & T. Clark, Edinburgh 1987.

1) O Exílio
A Deportação para a Babilónia deu-se no ano 587 a.C.; o Regresso, no reinado de Ciro, em 537
a.C. Foram cinquenta anos de Exílio ao longo dos quais é possível perceber uma abertura crescente,
no interior do povo, à dimensão universalista da sua Fé (cfr Is 49, 6; 53, 12; 56, 3; 60, 1; 65, 17; ...).
Mas com o Regresso sobreveio gradualmente uma «regressão» teológica. Talvez a tolerância dos
persas tenha tornado inconveniente e aparentemente ingrata qualquer atitude mais ostensiva de
missão. Talvez o reduzido número dos que regressaram à Palestina tenha afastado quaisquer
veleidades triunfalistas e vontade de proselitismo. Foi ganhando corpo, por isso, uma vida religiosa
fechada, que colocava o acento na manutenção da identidade étnica, cultural e religiosa através do
cumprimento minucioso da Lei. «Yahveh torna-se de novo um deus tribal» 1.

2) Alexandre Magno e os Selêucidas


No ano de 322 a.C. ALEXANDRE MAGNO conquistou o Império Persa, e com a sua vitória
iniciaram-se profundas mudanças económicas e culturais em todo Médio Oriente. Alargaram-se as
possibilidades de comércio e foi ganhando supremacia a cultura helénica. Alexandre morreu pouco
depois, e os territórios conquistados foram repartidos entre os seus generais.
No ano 200 a.C., a Judeia, inicialmente sujeita ao domínio dos Ptolomeus, a sul, acabou por cair
sob o controle dos Selêucidas, a norte. Acentuou-se a partir daí a atracção que a cultura helénica
exercia já sobre muitos judeus, sobretudo nas zonas urbanas (cfr I Mac 1, 11-15; II Mac 4, 12-14).
Sempre menos permeáveis às alterações culturais, as zonas rurais conservavam-se fiéis às tradições
antigas.
Quando ANTÍOCO IV EPIFANES (175-163 a.C.), num erro de cálculo político, procurou acelerar a
helenização da Judeia, erguendo um altar em honra de Zeus no Templo de Jerusalém, a reacção foi
violenta e profunda. Irrompeu uma duríssima guerra de guerrilha com base nas populações rurais e, ao
fim de cerca de 25 anos de luta e negociação diplomática, o império selêucida cede e a causa judaica
sai vitoriosa.
Para os Judeus no tempo de Cristo, estes continuavam a ser os acontecimentos decisivos que
marcavam o seu modo de pensar. Empreendeu-se uma luta pelo direito de prestar culto
livremente a Yahveh, conforme as tradições, e ela acabou por ser levada a bom termo... (A)
convicção manifestada pelos judeus que se insurgiram e a ferocidade desta primeira guerra
religiosa de que há registo na história da humanidade, deixaram uma marca indelével nas

1 W. H. C. FREND, The Rise of Christianity, London 1984, p. 15.


relações entre Judeu e Grego um pouco por todo o mundo mediterrânico... A nação judaica
que emergiu desta guerra vitoriosa contra (Antíoco IV) e os seus sucessores trazia, porém, a
marca do etnocentrismo e da intolerante para com todos os gentios, quer fossem eles amigos
ou inimigos... O jugo dos gentios foi retirado de Israel (I Mac 13, 41), mas o de Israel pesaria
agora sobre os gentios que entrassem no seu domínio. 2

3) Os Asmoneus
Quem dirigiu o combate contra o império selêucida foi SIMÃO MACABEU, de família sacerdotal.
Mas Simão foi assassinado no ano 135 a.C., juntamente com dois dos seus filhos. A dinastia
sobreviveu, porém, na pessoa de outro filho JOÃO HIRCANO (135–104 a.C.) que, após algumas
dificuldades iniciais,
lançou numa série de campanhas agressivas contra os seus vizinhos com o duplo objectivo de
restaurar as fronteiras da Terra Prometida, ou seja, as fronteiras do reino de David,
assegurando que só quem cresse no Deus único nela viesse a habitar. Primeiro foram
subjugados os samaritanos (128 a.C.). Siquém e o Monte Guerizim, com o seu templo, foram
arrasados. Jerusalém libertava-se assim de uma alternativa à sua supremacia religiosa. Os
samaritanos consideravam-se descendentes directos de Israel, pretensão contestada pelos
judeus da Judeia por considerarem que eles se haviam casado com gente pagã por altura do
exílio, perdendo a sua pureza étnica... Por fim, a própria cidade da Samaria foi destruída,
como castigo pelos seus habitantes se terem aliado em determinado momento aos Selêucidas
(c. 107 a.C.). Nada de menos surpreendente, portanto, que judeus e samaritanos não se
falassem no tempo de Jesus (cfr Jo 4, 9). 3

ARISTÓBULO (104-103 a.C.), filho de João Hircano, subordinou partes da Galileia e da Itureia ao
domínio judaico. A Judeia assumia-se agora como reino independente, e o sumo sacerdote tornara-se
em tudo um rei — embora não seja possível confirmar se o título chegou a ser usado antes da subida
de Alexandre Janeu ao poder.

ALEXANDRE JANEU (103-76 a.C.) conduziu o reino a um ponto alto de prosperidade. Contratou
mercenários gentios para combater nas suas guerras. Completou a conquista da Galileia e subjugou as
cidades gregas estabelecidas pelos Selêucidas além Jordão.
Quando faleceu, deixou um reino quase tão extenso como o de Salomão, e maior do que alguma
vez os judeus voltariam a ter até aos tempos de hoje. Jerusalém havia se tornado um centro de poder
respeitado, no Mediterrâneo Oriental; fiel da balança entre os Ptolomeus, o que restava dos domínios
dos Selêucidas e a Parta.
Mas apesar de uma aparência cosmopolita, o reino de Janeu não criou laços de boa vizinhança.
Diz Flávio Josefo que a independência permitiu aos judeus separarem-se dos outros povos 4. Agora,
quando os gentios entravam na sua esfera de domínio, as autoridades judaicas recusavam-lhes o
direito de praticarem as suas tradições. A política dos Asmoneus foi dura e consequente. Dava a
escolher aos povos conquistados a alternativa de perderem a sua terra ou de se tornarem judeus.
Parece que mesmo as cidades gregas se submeteram a esta exigência. Só de Pela temos informação de
que resistiu. A Galileia, com os seus terrenos férteis, tornou-se um pólo de atracção para colonos
judeus, e estes, pouco a pouco, transformaram em maioria a minoria judia local.
A entrada destes povos recém-convertidos representou, no entanto, um crescimento carregado de
ambiguidades. Os habitantes de origem não judaica odiavam sobre eles exercido por Jerusalém, e por
isso acolheram, mais tarde, de bom grado, a chegada dos romanos, optando em muitos casos pelo
domínio de Roma. A Idumeia viria a ser o único desses povos integrados pelos Asmoneus que,
segundo Flávio Josefo, se quis manter sob domínio de Jerusalém. E foi da Idumeia que, depois de
várias vicissitudes, os judeus acabariam por receber a dinastia de Herodes.

2 W. H. C. FREND, op. cit., p. 17


3 W. H. C. FREND, op. cit., p. 18.
4 Antiguidades, XIII, 247.
OS ROMANOS surgiram no horizonte do povo judeu por altura das guerras dos Macabeus (I Mac
8, 17 ss). Mas só aquando das disputas pela sucessão de ALEXANDRA (76-67 a.C.), viúva de
Alexandre Janeu, vieram a envolver-se na Judeia por intermédio de Pompeu.
A intervenção de POMPEU foi motivada pelo conflito que deflagrou entre HIRCANO II e
ARISTÓBULO II, filhos de Alexandra. O membro do triunvirato romano encontrava-se em Antioquia
quando deflagrou a guerra civil na Judeia. Começou por apoiar Aristóbulo II, mas por fim interveio
directamente e tomou Jerusalém em 63 a.C. Chegou a entrar no Templo, mas não o profanou como
Antíoco IV. Procedeu, então, ao desmembramento do Estado Judaico, reduzindo-o à Judeia e à
Idumeia a sul, e à Pereia e Galileia a norte. As duas regiões territoriais passavam a estar separadas
pela Samaria, liberta do domínio de Jerusalém. Também as cidades gregas recuperaram a sua
independência, e aquelas que se situavam para lá do Jordão formaram a Liga das Dez Cidades, ou
Decápole, hostis ao judaísmo e uma realidade político relevante no tempo de Jesus (Mc 5, 20; 7, 31).
Roma deixou aos judeus um semblante de independência: a HIRCANO II foi permitido que tomasse o
título de Sumo Sacerdote e etnarca (não «rei»), mas o poder efectivo passou a residir com o seu
protector ANTIPATER II, chefe guerreiro e Governador da Idumeia.
A partir de então o Reino da Judeia transformou-se num joguete subordinado aos interesses e à
política geral de Roma no Médio Oriente. A integração progressiva na esfera do domínio romano
trouxe, porém, alguns benefícios. Em troca dos serviços prestados por Hircano II e Antipater, durante
a guerra civil deste contra Pompeu, Júlio César concedeu aos Judeus plena liberdade religiosa e
permitiu que as muralhas de Jerusalém fossem reconstruídas. Mais do que isso, ordenou que fosse
respeitada nas cidades gregas a completa liberdade religiosa das comunidades judias da diáspora e que
fossem legalizadas as suas associações sociais e religiosas (collegia) — numa altura em que algumas
das associações dos gregos eram proibidas... 5

4) Herodes
Nos Idos de Março de 44 a.C. Júlio César foi assassinado. Os assassinos fugiram para o Oriente e
um deles, Cássio, apoderou-se da província da Síria e das suas legiões. Antipater II e seu filho
Herodes recolheram 700 talentos em seu apoio, na Judeia e Galileia. Um ano depois Antipater foi
envenenado por um sequaz de Hircano. Para se antecipar às reacções previsíveis, Hircano ofereceu a
sua neta Mariamme em casamento a Herodes.
Os Partos invadiram, entretanto, a província romana da Síria e apoiaram a causa de Antígono —
filho de Aristóbulo II e portanto sobrinho de Hircano II. Antígono depôs Hircano II e durante três
anos assumiu os títulos de sumo sacerdote e de rei (40-37).
Herodes fugiu para Roma e aí tornou-se amigo Marco António e mais tarde de Octávio, que viria
assumir o título de César Augusto. Em 40 a.C., o Senado proclamou-o «Rei da Judeia». Mas só três
anos depois, com o auxílio de tropas romanas, ele conquistou finalmente o reino que lhe fora
atribuído. Roma permitiu-lhe então alargar o seu domínio para norte, sobre a Samaria.
Era a suprema afronta para o povo judeu. Por imposição dum império gentio, e com o apoio no
terreno de tropas estrangeiras, um homem da raça dos povos anteriormente dominados, um
«convertido» da política dos Asmoneus, tornara-se rei do Povo Eleito!
Atleta, mestre da intriga política, autocrata sem escrúpulos HERODES (37-4 a.C.) foi um rex
socius de Roma, com plena autonomia na política doméstica e direito a recolher tributos, mas
dependia do Imperador em questões de guerra e de negócios externos. O seu reino pode ser dividido
em três períodos:
 37-25 a.C. - anos de consolidação do poder, marcados pela eliminação fria e sistemática de
todos os que podiam contestar o seu poder (entre os quais um cunhado, a sua própria esposa,
Mariamme, e a sua sogra).
 25-13 a.C. - inicia um gigantesco projecto de obras públicas, construindo teatros, hipódromos,
ginásios, banhos públicos, novas cidades e até templos dedicados à memória do imperador.

5 Cf. W. H. C. FREND, op. cit., p. 20.


Mas a sua obra por excelência é a renovação do Segundo Templo de Jerusalém — só
completada no ano 63 d.C., ou seja, sete anos antes da sua destruição. Herodes rodeou-se de
filósofos e conselheiros gregos, revelando a sua admiração pelo helenismo, e nunca se
interessou verdadeiramente pelo Judaísmo. Não conseguiu conquistar o coração dos seus
súbditos, que o encaravam como idumeu, e só «meio judeu». Em consequência deste
diferendo permanente, o rei recorreu à violência para dominar o povo judeu, construindo
fortalezas por todo o território.
 13-4 a.C. – lutas familiares marcaram os seus últimos anos de vida. Casou dez vezes.
Repudiou algumas das suas esposas e filhos. Durante a doença final, dois escribas judeus
incitaram a multidão a derrubar uma águia de ouro colocada, por ordem de Herodes, por cima
do pórtico de entrada do Templo de Jerusalém. O rei mandou queimá-los vivos. Quando
faleceu, um grande cortejo acompanhou os seus despojos até ao Heródium, a poucos
quilómetros de Belém. E aí caiu um pano sobre os acontecimentos. As precauções tomadas
por Herodes em vida para o momento do seu funeral revelaram-se tão eficazes e as suas
indicações foram tão meticulosamente seguidas que o lugar preciso da sua sepultura
permanece, até hoje, um enigma.
2. O desafio teológico: Pecado / Conversão
Ao invés da relativa tranquilidade e abertura cultural do Judaísmo da Diáspora, na Judeia e
Galileia do início do séc. I EC a recordação dos momentos de glória de um passado recente
contrastavam vivamente com a ignomínia da situação a que um povo orgulhoso se via agora reduzido.
E a insatisfação de cariz ideológico era aumentada por perturbações de ordem económica e social. A
essa luz, começamos a entender a complexidade das expectativas político-religiosas do tempo de João
Baptista e Jesus de Nazaré.
A perda de independência sentida pelos judeus residentes na Judeia foi, naturalmente,
interpretada à luz da tradição bíblica. Explicava-se em termos de culpa do povo e castigo de Deus.
Como noutras épocas, também agora Deus permitia que o Povo Eleito fosse submetido ao jugo dos
gentios. Certamente, como então, porque o povo não Lhe fora fiel.

JUDAÍSMO IMPÉRIO ROMANO

Um povo (etnia) com longa tradição Um conjunto de povos, unidos por uma
cultural e religiosa. administração romana e uma cultura
comum helénica.
Visão do mundo: um universalismo
etnocêntrico, condicionado pela Visão do mundo: um universalismo
fidelidade à Aliança. Donde uma cultural, centrado na cultura helénica (o
tendência fortemente autocrítica resto é barbárie).

Choque inevitável de duas ideologias e


de duas culturas, sendo a judaica aquela
que apresenta bases socio-económicas
mais débeis.

Dependência económica e política.

Relativa autonomia interna (cultural,


religiosa, governativa)

Indefinição, ambiguidade institucional


(oscilações de Roma quanto à
autonomia reconhecida à Judeia).

Crise de identidade nacional...


... e memória viva do passado recente.

A interpretação religiosa: infidelidade à


Aliança traz como castigo o não
cumprimento das Promessas...
...a não ser que haja uma purificação.

Fragmentação de propostas:
Saduceus
Zelotas (Sicários)
Fariseus
(Herodianos)
Essénios
João Baptista
... e Jesus
3. Facções do Judaísmo Palestiniano do séc. I

BIBLIOGRAFIA
BROWN, R. E. – J. FIZMYER – R. MURPHY (ed.), The New Jerome Biblical Commentary, Geoffrey
Chapman, 2London 1989 (tr. bras. Comentário Bíblico de S. Jerónimo).
JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus. Pesquisas de história econômico-social no período
neotestamentário, Ed. Paulinas, São Paulo 1983 (trad. da 3ª ed. alemã; original Jerusalem
zur Zeit Jesu, Göttingen, 1969).
THEISSEN, G., The First Followers of Jesus. A Sociological Analysis of the Earliest Christianity,
SCM, London 1978 (original alemão Soziologie der Jesusbewegung: Ein Beitrag zur
Enstehungsgeschichte der Urchristentums, Munich 1977 — existe uma trad. francesa na
Biblioteca João Paulo II).

QUADRO I

SICÁRIOS ESSÉNIOS FARISEUS SADUCEUS JESUS ROMANOS

Base de Apoio Província Deserto Intelectuais Jerusalém Província Império

Etnia Etnia Etnia Etnia (Etnia) Território


Definição de Território Cultura Cultura Território Fé Cultura
Povo Cultura Ortopráxis Ortopráxis Ortopráxis Caridade
Ortopráxis Ortodoxia Ortodoxia Cultual

Soberano Deus Deus Deus Deus Deus Autocracia

Messias Comunidade Lei Governo Conversão Prefeitos


Mediação (Chefes Messias futuro Vontade (Sumo Jesus
carismáticos) (Intérpretes) Sacerdotes,
Sinédrio)
Templo

Êxodo Macabeus Exílio Período de Profetas Administração


Modelo David Apocalíptico Diáspora domínio Persa e jurídica e
Estratégico Macabeus Identidade Selêucida policiamento
cultural militar

Táctica Agressão a Segregação. Pedagogia da Promover a Exigência de Centralização /


ad intra traidores e Esperar a Lei. centralidade do Amor e de Descentralização
colaboracionist intervenção de Marginalização Templo Perdão
as Deus dos pecadores

Táctica Guerrilha Segregação. Segregação Colaboração em Universalismo. Anexação


ad extra Esperar a troca de Abertura a
intervenção de autonomia estrangeiros
Deus interna

Intensificaram Intervieram Os grandes Eliminados com Igreja Católica Eliminaram


Consequência normas nas grandes sobreviventes a destruição do oposição armada.
Conflito. revoltas e do Judaísmo, Templo Foram vencidos
Aniquilados. foram na sequência pela Igreja.
aniquilados. de 70 e 150
d.C.
1) Essénios

Referidos por Plínio o Moço6, assim como por Filão de Alexandria e Flávio Josefo 7, sabia-se
pouco a seu respeito até à descoberta dos célebres Manuscritos do Mar Morto. Hoje, a maioria dos
especialistas concorda em identificar os membros da Comunidade de Qumran com os Essénios.
A hipótese mais aceite coloca as suas origens por volta do ano 167 aEC. Uma passagem de um
dos manuscritos sugere que o momento de ruptura se deu no reinado de Antíoco Epifânes (4QpNah).
Talvez se possa identificar esta facção nascente com a ala hassídica da revolta dos Macabeus (cfr I
Mac 2, 42). Os hassîdim, ou «piedosos«, enfurecidos com as blasfêmias dos judeus favoráveis ao
domínio selêucida e com a substituição do Sumo Sacerdote Jasão, da linhagem de Sadoc, por
Menelau, que não era dessa linhagem, associaram-se à revolta dos Macabeus. A sua motivação era,
por isso, essencialmente de ordem religiosa e não estavam dispostos a tolerar cedências por razões
políticas. Surge então, segundo os escritos dos essénios, uma figura cujos contornos históricos estão
ainda hoje envoltos em mistério. Conhecido pelo título honorífico, Mestre da Justiça (referência a Joel
2, 23), é apresentado como personalidade irradiante e de uma grande espiritualidade. À sua presença
se deve a consolidação da identidade do movimento. As tentativas empreendidas por alguns
comentadores de o apresentar hoje «como tendo sido o messias, e de afirmar que terá sido crucificado
e que regressou à vida, ou de o considerar [em termos de mensagem] precursor de Jesus Cristo não
têm qualquer fundamento» 8. Foi, isso sim, ele quem consumou a ruptura com os outros apoiantes dos
Macabeus.
A ruptura terá ocorrido no ano 152 aEC em virtude, possivelmente, de Jónatas Macabeu ter
aceite das mãos de Alexandre Epifanes, filho de Antíoco, o cargo de sumo sacerdote — os Macabeus
eram de linhagem sacerdotal mas não da linhagem de Sadoc (cfr I Mac 10, 18-21 e, nos mss. de
Qumran, 1QpHab). Um segundo motivo para a ruptura terá sido também o facto dos Macabeus não
terem restaurado o velho calendário solar e terem, portanto, mantido a marcação das festas com base
no calendário lunar — prática inovadora introduzida sob o domínio de Antíoco Epifanes.
O Mestre e os seus discípulos terão sido expulsos por ocasião da grande festa anual da Expiação,
o Yom Kippur (1QpHab 5, 10-11; 9, 9). Mas, apesar de perseguido e exilado, tudo indica que o Mestre
morreu de morte natural e que as expectativas entretanto por ele alimentadas se orientavam menos
para si mesmo do que para a vinda de um futuro Messias.
De acordo com os dados da arqueologia, a comunidade de Qumran foi devastada por um fogo e
destruída por um terramoto, seguindo-se um período de abandono de 30 a 40 anos. O início desse
período coincidiu aproximadamente com o tempo em que Roma começou a exercer o seu domínio
tutelar sobre a Judeia (c. 67-63 aEC). A «povoação» só voltou a ser ocupada nos primeiros anos da
nossa era, mantendo-se vigorosa até ao ano 68 EC.
A linguagem dos qumramitas comprova a sua oposição aos romanos (chamavam-nos os kittim,
ou os das trevas). Por fim, os membros da comunidade vieram a associar-se à revolta contra o Império
Romano desencadeada nos últimos anos da década de 60, e foram varridos da história. Mas não sem
que antes tivessem escondido cuidadosamente os seus manuscritos nas grutas onde, quase dois
milénios depois, foram descobertos em estado muito diversificado de conservação. Diga-se de
passagem que alguns manuscritos tinham já sido encontrados no tempo de Origines (séc. III EC);
outros apareceram c. 785 EC; outros ainda terão, provavelmente, sido recolhidos e estudados em data
que hoje não é possível precisar, tendo contribuído para o pensamento de uma seita judaica chamada
os Caraítas.
A relação exacta entre os essénios e João Baptista, por um lado, e a sua influência quer na
mensagem de Jesus Cristo quer na estruturação do Cristianismo nascente, são motivo ainda de
polémica. Mas se não deixam de ser surpreendentes as semelhanças, são marcadas também as
diferenças. Sobretudo no que diz respeito à relação com os estrangeiros. Vejamos, por isso, algumas
características deste movimento.
Só os israelitas tinham acesso à comunidade de Qumran. A entrada fazia-se mediante uma série
de «escrutínios» conduzidos por um «supervisor». Seguia-se uma purificação ritual e dois anos de

6 Nat. Hist. 5.17.73


7 Cf. Journal of Bib. Lit., 77 (1958), pp. 106-15.
8 The New Jerome Biblical Commentary, London 1990, 67:98.
noviciado. Parece ter existido o celibato, mas não imposto nem adoptado por todos. A oposição ao
divórcio aproximava-se dos termos em que Jesus também a explicitou. Não é claro se em Qumran se
praticavam sacrifícios cruentos, mas está bem atestada a ideia de que toda a vida podia e devia ser um
sacrifício. As refeições estavam carregadas de significado religioso — 1QSa fala de uma refeição de
pão e de vinho em contexto escatológico, e é mencionada a possibilidade de nela aparecer o Messias.
Tudo características próximas, portanto, do estilo de vida adoptado pela comunidade cristã em
Jerusalém.
Quanto à organização da comunidade: os membros distribuíam-se por dois grandes grupos
claramente diferenciados entre si, a Casa de Aarão (clero) e a Casa de Israel (leigos); a comunidade
repartia-se simbolicamente por 12 tribos; havia uma assembleia geral, chamada a «Sessão dos
Muitos» (1QS 6, 8ss), com autoridade judicial e executiva (reunia pelo menos uma vez por ano, por
altura do Pentecostes, para renovar a Aliança e acolher os novos membros); havia também um
Conselho Supremo (órgão permanente) composto por 12 homens e 3 sacerdotes (não é claro se 12+3
se 9+3).
Para além da Assembleia e do Conselho, havia funcionários específicos com a sua
autoridade respectiva. Aqui temos de descrever a situação em CD e em QS separadamente.
CD 13, 2-7 sublinha que mesmo os grupos mais pequenos da seita (os grupos de 10) deviam
incluir duas figuras com autoridade: um sacerdote conhecedor do «Livro da Meditação» e um
supervisor (mebaqqer) conhecedor da lei. O sacerdote cuidaria da liturgia, e as tarefas do
supervisor eram indicadas em 13, 7ss: ele devia instruir a congregação, ser como pai e pastor
para com eles, e examinar e aprovar os recém-chegados. Se esta é a organização para os
pequenos grupos, CD 14, 7-9 propõe algo de semelhante para a congregação toda. Aqui, uma
vez mais, é o sacerdote que inscreve [...] os membros da congregação e é conhecedor do
«Livro da Meditação», e com ele se encontra o supervisor de todos os acampamentos. Este
último parece ter exercido grande autoridade sobre os membros individuais e intervinha para
resolver disputas entre eles. A totalidade dos vencimentos da comunidade era colocada nas
mãos deste supervisor, que, auxiliado pelos juízes, distribuía o apoio pelos órfãos e outros
necessitados. [...]
Se nos virarmos agora para a organização apresentada em 1QS, não é claro se as
autoridades são as mesmas ou se houve uma adaptação a circunstâncias diferentes. Para os
grupos de dez há, de novo, duas autoridades: o sacerdote que preside às deliberações e
abençoa os alimentos, e o homem que estuda a lei e tem a seu cuidado a conduta dos membros
(1QS 6, 3-4). Parece evidente que este último é igual ao «supervisor» de CD. Mas, 1QS fala
de modo mais vago sobre as autoridades da comunidade em geral. Refere um «supervisor dos
muitos» (6, 12), que tem um papel importante nas assembleias e cuida dos bens da
comunidade (6, 20). Há também «aquele que preside [paqid, da raiz pqd] à testa dos muitos»
(6, 14) e que examina os candidatos. O texto de 1QS deixa-nos a impressão de que este
«cabeça» (paqid) seria a mesma pessoa que o principal supervisor (mebaqqer), ao passo que
em CD o sacerdote que inscreve (yipqod) é distinto do mebaqqer.
Apresentámos a organização de Qumran com todo este detalhe por nos permitir
estabelecer paralelos extremamente importantes com a organização da Igreja cristã nascente.
Também essa Igreja tinha uma Assembleia Geral (a «multidão» dos discípulos de Actos 6,
2.5; 15, 12 [...]). Também ela tinha um grupo especial de Doze, os seguidores mais próximos
de Jesus. Para além disso, o bispo cristão revelar-se-á um paralelo excelente do supervisor de
Qumran. O próprio título, episkopos («supervisor»), traduz de forma literal tanto paquid como
mebaqqer; e as funções que lhe são atribuídas são muito semelhantes às do supervisor de
Qumran, como p. ex., o ser pastor do rebanho, guardião e administrador da propriedade da
comunidade, e aquele que examina da doutrina dos fiéis. 9

Quanto às expectativas messiânicas da comunidade de Qumran. Uma cópia de 1QS, redigida c.


100-75 aEC, fala da «vinda de um profeta e dos Messias de Aarão e de Israel». O profeta seria
provavelmente um profeta como Moisés (cfr. Dt 18, 15.18) ou Elias (Mal 4, 5). Quanto aos Messias
de Aarão e de Israel, importa lembrar que o significado de Messias na tradição judaica é mais
genérico do que no contexto cristão; tratar-se-ia, portanto, de figuras eleitas e ungidas por Deus a fim

9 Ibid.
de levarem por diante a Sua obra. Um deles seria Ungido por Deus como Sumo Sacerdote,
restabelecendo a linhagem de Sadoc, outro como Rei, restabelecendo a linhagem de David.

2) Fariseus
O nome (gr. Pharisaioi, aram. Perisayê, hebr. Perusîm) parece ter significado originalmente «Os
Separados», título talvez atribuído por se lhes reconhecer a vontade de evitarem qualquer contacto
com os gentios, os impuros, os pecadores e até com judeus dignos mas menos observantes da Torah.
O movimento terá surgido de entre os escribas e doutores da Lei ao longo do período helenista, e é
referido como grupo organizado já no tempo de Jónatas Macabeu (c. 150 a.C.). É provável que o
movimento tenha estado, de início, associado aos hasîdîm (hebr. «os piedosos») que apoiaram a
revolta dos Macabeus («Então juntou-se a eles um grupo de assideus, israelitas valentes, todos eles
cheios de zelo pela Lei» – I Mac 2, 42; cfr. 7, 12-25).
O movimento era de cariz essencialmente laical e atribuía valor normativo não só à Torah escrita
como também à Torah oral. Compunham esta tradição oral os «dizeres dos pais», considerados
vedação protectora erguida em torno da Lei e mais tarde recolhidos na Mishná. Influenciados talvez
por algumas das ideias helenistas que combatiam, os Fariseus encaravam os deveres e proibições da
Torah como paideia (ou formação segura) de uma vida piedosa. Esta atitude levou-os a os separarem-
se, com alguma sobranceria, dos ‘am ha’ares, «o povo da terra», «gente que desconhece a Lei» (Jo 7,
49).
Caracterizava-os a observância meticulosa do sábado, das regras de pureza ritual, do
dízimo, como questões de orgulho ancestral. Todavia, por causa dessa ênfase nas
interpretações orais, os fariseus provaram ser capazes de se adaptar a novas circunstâncias e
revelaram uma vitalidade e uma flexibilidade que fez deles os «liberais» da época.
Movimento de inspiração essencialmente religiosa, os Fariseus exerceram grande influência
sobre os demais judeus em virtude do seu saber e da sua piedade, apesar de, provavelmente,
nunca terem sido mais do que 6.000. Para além da interpretação da Torah, acreditavam numa
certa liberdade humana sob o controle da providência divina, na ressurreição geral, nos anjos,
na vinda do Messias, e no regresso de Israel e das suas tribos no final dos tempos.
Embora um movimento essencialmente religioso, o Farisaísmo acabou por se envolver em
questões políticas [durante o período dos Asmoneus]. […] Opuseram-se por diversas vezes
aos Saduceus […].
A perspectiva religiosa do Farisaísmo deixou marca permanente no Judaísmo. Após a
destruição de Jerusalém [70 d.C.], quando o culto do Templo deixou de ser possível, foram
fariseus quem reanimou os sobreviventes. A sua tradição deu então origem ao Judaísmo
rabínico e persiste, até certo ponto, no Judaísmo ortodoxo dos nossos dias. […] A avaliação
feita dos Fariseus nos evangelhos cristãos, redigidos possivelmente nas últimas décadas do
século I, foi condicionada pelo contexto apologético e é excessivamente negativa, pois não
lhes reconhece a influência construtiva que de facto tiveram na evolução da espiritualidade
judia.10

3) Sicários / Zelotas
Multiplicidade de grupos, aparentados pelo estilo de actuação violenta que preconizavam. Sem
unidade orgânica até à primeira grande revolta contra a tutela romana (66-70 EC). Bandos
nacionalistas, organizados em torno de chefes carismáticos, e armados de punhais (sicae, donde o
nome sicarii, embora as autoridades preferissem classificá-los simplesmente de lestai, ou bandidos).
Assassinavam figuras de relevo que consideravam colaboradores dos romanos, normalmente, por
ocasião de grandes ajuntamentos públicos. A violência e o desprezo com que o último dos
procuradores romanos, Géssio Floro (64-66), tratou a população judaica levou à formação dum
movimento de Zelotas, assim chamados em virtude do zelo fanático com que se opunham ao domínio
romano na Galileia e na Judeia. Foi desse movimento de revolta que explodiram os confrontos
armados em 68 e 135 (I e II Guerra Judaica).

10 The New Jerome Biblical Commentary, [75: 146-148], p. 1243.


4) Saduceus
Movimento de origem aristocrática e sacerdotal, os Saduceus, como o nome indica,
consideravam-se descendentes do sacerdote Sadoc (I Rs 1, 26). A sua influência fazia-se sentir junto
dos ricos mas não entre o povo em geral. Abertos à filosofia e cultura helenistas, não deixavam de
simpatizar com os poderes estrangeiros que dominavam a Palestina. Desde os tempos do domínio
Persa que à classe sacerdotal cabia a responsabilidade de gerir as relações políticas com os dirigentes
estrangeiros. Naturalmente conservadores, não lhes interessava perturbações que pusessem em causa
os entendimentos possíveis a esse nível, pois fariam perigar simultaneamente a segurança do povo e
as suas prerrogativas. Opunham-se à noção de uma tradição oral, sobretudo porque representava uma
intromissão laical no que consideravam um domínio dos sacerdotes. Rejeitavam, portanto, a ideia de
desenvolvimento ou modernização da Torah. Paradoxalmente, a sua perspectiva geral era
secularizante e pouco interessada em questões teológicas. Havia que manter o ritual do Templo e o
equilíbrio político. Questões de outra natureza, como a interiorização da fé e a sua articulação com a
vida quotidiana, pareciam-lhes pouco relevantes. Flávio Josefo diz que rejeitavam a noção de
providência divina, insistiam na responsabilidade absoluta do indivíduo pelo seu comportamento e
negavam a doutrina de um juízo final, após a morte. Com a queda de Jerusalém, no ano 70, os
Saduceus desapareceram como movimento.
II - Fim do modelo teocrático
BIBLIOGRAFIA
BARNAVI, Élie (dir.), História Universal dos Judeus: da Génese ao Fim do Século XX (1992),
Contexto, Lisboa, s.d.
KÜNG, Hans, Judaism, SCM, London 1993.

1. Queda de Jerusalém
Paralelamente aos acontecimentos da vida de Jesus, e como pano de fundo quer da sua execução,
quer das tensões enfrentadas pelas comunidades judeocristãs na Palestina, desenvolve-se ao longo do
séc. I da nossa era uma profunda crise política e religiosa entre o judaísmo palestiniano e as forças
romanas ocupantes. A presença romana era tanto mais odiosa quanto se viu representada por
sucessivos procuradores que se revelaram politicamente incompetentes e economicamente
gananciosos. A sua actuação em nada contribuiu para apaziguar o orgulho nacional da população ou
apaziguar o ambiente de revolta que se respirava.
Cerca de quarenta anos depois da morte de Jesus, entre os anos 66-70, a tensão atingiu o rubro
com uma insurreição geral. Flávio Josefo, judeu filo-romano, defendeu a tese de que houve uma
conspiração contra o domínio do Império, liderada pelos Zelotas. Os historiadores hoje duvidam da
objectividade dessa análise. Os dados disponíveis apontam para «uma guerra nacionalista e popular
contra o domínio de Roma. Uma guerra que se apresentou, simultaneamente, como luta social contra
uma aristocracia economicamente favorecida e acolhedora do poder romano.» 11
A CRONOLOGIA DOS ACONTECIMENTOS:

66 d.C. – Nero concedeu maiores direitos aos gentios de Cesareia do que aos judeus. Os
helénicos construíram lojas diante das portas da sinagoga, bloqueando o acesso. O
procurador, Floro não interveio e, pouco depois, exigiu à tesouraria do Templo de
Jerusalém um tributo especial de 17 talentos. A comunidade judaica em Jerusalém,
num gesto de sarcasmo, passou entre os seus membros um cesto a pedir ofertas para o
procurador «indigente». Insultado, Floro entregou parte da cidade aos seus militares
para saquearem. Houve mortos e os judeus refugiaram-se no recinto do Templo,
cortando os acessos. Sem força suficiente para tomar o Templo, Floro retira-se para
Cesareia e a revolta alastra rapidamente. Uma tentativa de intervenção do governador
romano da Síria é repelida.
67 – O Imperador Nero ordena a reconquista sistemática do território, e nomeia para tal os
generais Vespasiano e Tito. Em Jerusalém as facções judaicas desentendem-se e lutam
entre si. Segundo a tradição, a comunidade cristã de Jerusalém emigra, nesta altura,
para Pela, na Transjordânia.
68 – Morte de Nero. Vespasiano isola Jerusalém do resto do território.
69 – Vespasiano dá início ao cerco de Jerusalém, mas, aclamado Imperador pelas legiões do
Oriente, parte para Roma e deixa a campanha em mãos do filho, Tito.
70 – Inicia-se o ataque a Jerusalém. Em Agosto os romanos saqueiam, derrubam e queimam
o Templo. Em Setembro ganham controle da cidadela. A violência e a mortandade são
aterradoras.
71 – Cortejo triunfal de Tito em Roma. Traz consigo a menorah, candelabro de sete ramos,
retirado do Templo de Jerusalém.
74 – Um pequeno núcleo de forças judaicas resiste na fortaleza de Massada. Só quatro anos
após a queda de Jerusalém as tropas romanas conseguem forçar a entrada da
fortificação. Encontram morta quase toda a guarnição de 960 pessoas, que se havia

11 H. KÜNG, op.cit., 124.


suicidado num derradeiro gesto de desafio (sobreviveram duas mulheres e cinco
crianças). Hoje, essa resistência e a fortaleza de Masada, são apresentadas como gesto
heróico e monumento nacional de Israel. Na altura, porém, o acontecimento foi visto
pela maior parte da comunidade judaica como uma catástrofe insensata.

Calcula-se que um terço da população judaica da Palestina terá perecido nesta Primeira Guerra
Judaica conta o Império Romano — cerca de 600.000 pessoas, segundo cálculos de Flávio Josefo e de
Tácito.
Décadas depois, entre os anos 132 e 135, eclodiu nova revolta na Palestina, dirigida por Simenon
ben Coseba. Aclamado Messias pelo Rabi Aquiba, o mestre mais influente da época, foi-lhe atribuído
o título de Bar Cocba, ou filho da estrela. Outros, porém, acusaram-no de ter desviado o povo (veja-
se, por exemplo, o Talmude) e chamaram-no por isso Bar Cosiba, ou filho das mentiras. 12
Mais uma vez os romanos intervieram em força e esmagaram a insurreição da forma metódica e
total que lhes era própria. Calcula-se que tenham morrido cerca de 850.000, nesta Segunda Guerra
Judaica. A população da Palestina de origem judia, ainda mal reconstituída do desastre nacional da
guerra anterior, foi literalmente dizimada. Os seguidores de Bar Cocba foram mortos ou vendidos
como escravos. Sobre as ruínas da velha Jerusalém, sistematicamente saqueada e demolida, os
romanos edificaram uma nova cidade inteiramente helenizada a que deram o nome de Colonia Aelia
Capitolina. Colónia romana, com santuários dedicados a Júpiter Capitolino, a Juno e a Minerva, era
vedado o acesso, sob pena de morte, a qualquer homem circuncidado13. Vibrou-se assim um golpe
profundo na consciência e sentido de identidade do povo judeu cujas repercussões se fizeram sentir
inclusivamente no interior do Cristianismo. A comunidade cristã, que se considerara até então parte
da matriz social e cultural do Judaísmo, cortou nessa altura o cordão umbilical que a prendia ainda à
Palestina e a Jerusalém e passou a assumir abertamente o diálogo com as culturas gentílicas
envolventes, nomeadamente com a cultura helénica que então predominava no Império Romano.

2. O novo paradigma Rabínico


Quem empreendeu a transição do Judaísmo bíblico para o Judaísmo pós-bíblico foram os
FARISEUS. Se exceptuarmos o judeo-cristianismo, as outras facções judaicas contemporâneas do Novo
Testamento foram eliminadas nas duas guerras judaicas. Assim se explica, em parte, a acentuada
polémica com o farisaísmo nos evangelhos. Ela permanecia actual mesmo quando o tempo e as
circunstâncias haviam distanciado o Cristianismo e o Judaísmo remanescente do contexto religioso e
político vivido na Palestina na primeira metade dos séc. I.
Os fariseus eram, na sua maior parte, leigos. Encontravam-se disseminados entre o povo e
identificavam-se não tanto pela ligação ao culto, às instituições públicas ou à luta política, como pela
preocupação cultural e religiosa com o cumprimento minucioso da Lei.
Durante a primeira Guerra Judaica, JOHANAN BEN ZACCAI, membro do Sinédrio e
representante dos fariseus moderados — que desde o início se haviam envolvido com pouca
convicção na guerra — conseguiu evadir-se de Jerusalém, durante o cerco do ano 70,
transportado pelos discípulos num caixão. De seguida entregou-se aos romanos, que lhe
permitiram abrir uma escola (bet midrash) em Jabneh (Jamnia em grego; também grafado, por
vezes, Yabné e Iamnia), na costa mediterrânica, perto de Jafa. Depois da queda e destruição
de Jerusalém, a escola de Jamnia atraiu um pequeno núcleo de estudiosos que formava rabis e
calculava o calendário judaico para cada ano. Sempre com a anuência dos romanos, a escola
assumiu gradualmente algumas das funções judiciais que haviam pertencido ao antigo
Sinédrio de Jerusalém. [...] após a revolta de Bar Cocba, no início do século II, a academia de
Jabneh transferiu-se para a Galileia. A partir dessa altura, os rabis passaram a advogar o
princípio da não-violência, por mais justas que pudessem parecer as motivações para o
combate armado.14

12 Ibid., 125.
13 Ibid.
14 Cf. H. KÜNG, op.cit., 129.
Após um período de definição interna de poderes e de alargamento de influência externa, a
escola de Jamnia iniciou um processo de uniformização das leis e opções doutrinais no interior do
Judaísmo. E fê-lo, naturalmente, segundo a tradição do farisaísmo moderado.
* AS ESCRITURAS? Os rolos da Torah passaram a assumir o relevo antes atribuído ao altar dos
sacrifícios, e o estudo da Torah — juntamente com a oração e as boas obras — substituiu o
culto do Templo.
* OS ESCRIBAS? Os rabis tornaram-se os sucessores da casta sacerdotal; o estatuto de rabi,
atingido no termo de um processo de formação, foi substituindo o estatuto hereditário do
sacerdote e do levita.
* A SINAGOGA? O espaço em que se realizavam as assembleias locais, a oração e outras
expressões da vida comunitária passou a substituir o Templo de Jerusalém. 15

Ao longo do tempo a religião nacionalista cede por completo o lugar à religião da Torah:
* Jerusalém apaga-se em favor da Diáspora e os seus centros culturais.
* O território pátrio (Palestina) apaga-se em favor de uma pátria espiritual que é a vida e a fé
judaicas assumidas em obediência à Torah.
* A unidade nacional cede lugar a uma pureza ritual e moral que transcende todas as nações.
* A Bíblia cede lugar à tradição normativa: Mishná e o Talmude.

Apesar da dificuldade que representou o facto de os seus membros terem sido espalhados pelas
nações do mundo, o Judaísmo conseguiu manter ao longo dos séculos a sua identidade em virtude de
três factores essenciais:
* A Torah oral, fixada no Talmude.
* Uma língua comum — hebraico, aramaico, yidish.
* A autoridade dos rabis.

Mas, a acompanhar o povo judeu ao longo do seu percurso geográfico e histórico, encontramos o
fenómeno malévolo e obscuro do anti-semitismo. Entre os motivos do anti-semitismo pré-cristão
destacam-se os seguintes:
* O monoteísmo radical da sua religião e a consequente rejeição de imagens provocam uma
tensão permanente com o ambiente cultural circundante
* A afirmação agressiva de uma história de salvação etnocêntrica conduz a reacções mútuas de
exclusão.
* A circuncisão é encarada como uma prática bárbara pela cultura helénica, que tanto valor
atribui à beleza e harmonia do corpo humano.
* As regras de pureza alimentar e as leis que regulam o convívio com os gentios impedem a
participação dos judeus em muitas actividades comuns, como as festas, e a realização de
casamentos mistos.

15 Ibid.

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