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I Índice I

Thulo original :
1/mdumn

• 1999 Culmunn & King Ltd.


Este livro foi concebido por Cahnann & King l.td.• Londrc-,

TRADUÇÃO Pr61olltl5
Carmo Vasconcelos Romão Prrfikio7
Cronolo11i11 do Himluf.1111o 8
REVISÃO
Pedro Bernardo
1 Introdução ao Hinduísmo e aos hindus 11
DESIGN De CAPA
FilA . Hinduísmo e hindus 13
Dlwrma 14
llw.trnçao de capa:
Diversidade e unidade 15
Ganc:.ha. o deu:. da :.nbcdorin c aquele que n:mow O>
é aqui repre.cntado numa pintura ballk.
•) Corbis/VMI Gancsha 2 Bases filosóficas 18
ISBN: 9711·912-44· 1433· 1 Civili L.ações do Vale do Indo 18
ISBN DA I" EDIÇÃO: 972-44-10113·11
A primeira época védica 19
DEI'ÓSITO LI!GAI. N" 27659Kl011 Vedas 20 Pnnterio 21 Sacrifício do foxo 23
Criartio e .vacrifício 24
IMPRESSÃO E ACABAMENTO Especulação filosófica nos Upwrixadas 26
l'apclmum.lc Brama c Allmlll 27 c Karman 28
Direitos reservados pllr.t todos os puíscs de llngun portugucsu por Va nw.,·/rrama-dlumna 3 I
EDIÇÕES 70
3 Hinduísmo clássico e medieval 35
EDIÇÕES 70. Lda.
Ruo Luciuno Cordeiro 123. I" EMj.
I069-157 Lisboa. Portugal
As epopeias 35
Tclcfs. 213 190 240 Fux. 2 13 190 249 O Mahubharuw e o Rmnayana 36 O Bagavagita 38
c-mail. gcrnle• cdiccx.-s70.pt Teísmo clássico c medieval 4 1
Teísmo nos Puranas 42 Vixmt 44 Xiva 46
Esta obra estA protcgtda pela lei. N3o pode ser rcprodULidu. Devi 48 Divindades secrmdárias 50
no todo ou cm parte. qualquer que seja o modo utilit.ado.
incluindo fotocópia c xcrocópin. sem prévia autorizução do Editor. Teísmo e Tantra 52
Qualquer trnn>gressao :i lei dos Direttos de Autor Fi losofia e devoção combinadas 56
sem de procedimento judicial. Advaita Vedanta 56 Vishishta-advaita Vedanta 58
Destaque: o poder do som 57
CrMIIos
1'6ginas: 13 Museu Vi tório & Alberto. Londres: 22 Charles Amos Cummings Bcquc.•t Fund.
O movimento Bakti 59
cortesia do Museu das Belas Artes de Boston: 50 Edward Parkcr/Bibli01cca llutchinson: 52 O movimento Bakti inicial 59 Bakti medieval tardio 60
Rcx Fcaturcs: 65 Rogcr-Viollct. Pans: 73 Carlos Rcycs-Man7o/Andcs Picture Agcncy: 85
Bamaby's Picturc Libmry: l i ONancy Du.rrcll McKcnna/Panos Picturcs.
4 O período moderno 1: prática do Hinduísmo 64
I Prólogo I
O templo 64 .
Arquitectura 64 luwgt'll.f do templo 66 Rit11ai,\ do templo 70
Arte em Foco: o templo 68
Culto domésLico 7 1
Sanwários 71 E,çpecialisws religiosos 75 Dhurma da famflia 78
Samskaras: rituai s do ciclo du vida 80
Nascimento 81 Upanuyunn 81 Rituais da puberdade Jemin11w I! I
Ca.ramemo 82 Morte 83
Festividades 84
Religiões do Mundo
O Qllt/rl(} de Gane.\llll 84 Nuvar.ttri. nm't' 1witt'.\ 87

5O perfodo moderno 11: forças de mudança 89 Os cidadãos instruídos ou os estudantes precisam de um bom
conhecimento geral do nosso pequeno mas complicado mundo.
Ressurgimento e refonnu 89 Há cerca de cin4uenta anos atrás talvez tenhamos negligenciado
Bmhmo Samuj 90 Aryn Snmaj 91 as religiões. Hoje. porém, sabemos c percebemos que us religiões
Mi.vscio Ramakrisl11w 92 c as ideologias não só fom1atn civilizações como também
Hinduísmo e nacional ismo 94 influenciam directamente os acontecimentos internacionais.
O movimenw dt' indt'pendl'nria 95 Hindutvu 97 Estes pequenos livros fornecem guias sucintos. equilibrados c
Hinduísmo global 101
informati vos relativamente às religiões mais importantes. e um
6 Em direcção ao futuro 108 volumes faz também uma introdução ao cenário religioso
que surge agora à medida que entramos num novo milénio.
Urbanização 108 Hoje queremos não só estar informados como também ser
As mulheres c o 109 estimulados pela vida e crenças das várias c frequentemente com-
Tecnologia modem a 11 3 plexas religiões do mundo actual. Estas introduções, criteriosas c
A força do regionalismo 11 4 acessfveis, permitem ao leitor explorar as rique:z.as de cada tradi-
O movimento Chipko: forçu dus raizes 11 4 ção - compreender a sua história. crenças e práticas, c também
Swaminarayan: uma tradição regiunul torno-se internucionul 115 entender a sua influência no mundo moderno. Os livros foram
Religião mundial 11 6 escritos por uma equipa de excelentes jovens estudiosos que
Conclusão 11 8 representam uma nova geração de escritores na área dos estudos
religiosos. Conscientes das influência.;; políticas e históricas da
Not11s 11 9
Glossário 121
religião, estes autores pretendem apresentar o plano espiritual da
Duu Stmuu I' 123 religião de um modo novo c interessante. tanto o leitor que
Biblruxrtifitl 125 se interessa apenas por um conhecimento descritivo de uma reli-
gião, como aquele que pretende explorar a mensagem espiritual
das religiões. podem verificar como estas introduções possuem
um valor inestimável.
Nestes livros, o acento é colocado na Idade Modema porque
todas as tradições religiosas sofreram transformações face às
experiências traumáticas dos últimos duzentos anos, pelo menos.
O colonialismo, a industrialização, o nacionalismo, os revivalis-
mos religiosos, as novas religiões, as guerras mundiais, revolu-
ções e transformações sociais não passaram ao lado da fé; pelo
l Prefácio I
contrário, induziram as forças religiosas e anti-religiosas a darem
uma nova forma ao nosso mundo. A tecnologia moderna nos
últimos vinte e cinco anos- desde o Boeing 747 à Internet- fez
com que o mundo pareça um lugar muito mais pequeno. Até Cresci no norte da Califórnia numa altura em que as ideias
mesmo os mistérios da Lua foram desvendados pela tecnologia. religiosas se estavam a tornar parte da cultura popular. Muitos
Conheceremos nestes livros pessoas da era contemporânea amigos meus tinham pais que meditavam e que inscreviam os
que são exemplos das muitas alterações que se produziram nos filhos nas aulas de ioga da YMCA. Este interesse nas religiões
asiáticas continuou e hoje em dia os termos hindus fazem parte
últimos séculos. Ao mesmo tempo, cada um dos livros fornece do vocabulário quotidiano. A maior parte dos americanos está
uma visão valiosa sobre as várias dimensões da religião: os seus familiarizada com palavras como reencarnação, guru e mantra.
ensinamentos, narrativas, organizações, rituais e experiências. De facto, esta linguagem é tão comum que, no Sul da Califórnia,
Ao abordar estas características, cada um dos volumes fornece um cartaz recente da United Way prometia que "um bom carma"
uma visão ampla da tradição que permite ao leitor compreender adviria do facto de se fazerem doações de caridade.
o que é que significa pertencer a uma certa confissão. Como diz Porém, apesar da adopção destes termos e de uma compreen-
são geral do seu significado, poucos ocidentais têm verdadeira
um provérbio americano nativo: "Nunca julgues alguém sem ter consciência de como estas ideias emprestadas se inserem no enqua-
andado alguns quilómetros com os seus sapatos." dramento mas alargado do Hinduísmo. Centrando-nos em textos e
Para auxiliar o leitor, incluem-se algumas referências úteis. filosofias, retirámos as ideias do seu contexto próprio. Este livro
Cada um dos livros contém uma cronologia, mapa, glossário, lista tenta fornecer o contexto que falta, apresentando o desenvolvimen-
to histórico das ideias filosóficas, apenas como ponto de partida
de dias santos e festas, e bibliografia. Uma selecção de imagens para examinar o modo como os hindus cumprem as suas tradições.
fornece exemplos de arte, símbolos e práticas religiosas contem- O texto acentua especialmente as práticas modernas e os factores
porâneas. Os destaques "Arte em Foco" exploram com mais por- que actualmente moldam a vida religiosa. A actual ênfase remete
menor a relação entre a fé e certas expressões artísticas - pintura, o meu estudo do Hinduísmo ao local onde fui pela primeira vez
escultura, arquitectura, literatura, dança ou música. exposta à tradição. Nos últimos trinta anos o números de sul-asiáti-
Espero que estas introduções sejam agradáveis e esclarece- cos residentes na América do Norte e na Europa aumentou drasti-
camente, de modo que hoje em dia há templos hindus na Califórnia
doras para o leitor. Pensamos que a concisão é a alma do saber: que oferecem um ponto de encontro para todo um leque de práticas
ela pode ser também aquilo de que precisamos, em primeira ins- hindus. Assim, é ainda mais necessário adquirir conhecimentos
tância, para fazer uma introdução a temas culturais e espirituais. acerca do Hinduísmo, já que esta tradição, outrora considerada dis-
tante e exótica, faz hoje parte do ambiente religioso americano.
Gostaria de agradecer a Melanie White e a Darnian Thomp-
son, da Calmann and King Ltd, pela paciência que tiveram em
Ninian Sman coordenar este texto, e a Ninian Smart, pelo seu encorajamento.
Santa Barbara, 1998 Estou em dívida para com os revisores que leram o meu manus-
crito original e CUJas valiosas sugestões para o melhorar tanto enri-
queceram o texto final. Ainda os meus agradecimentos a Byron
Earhart, pelos conselhos acerca de como escrever textos introdu-
tórios e a Brian Wilson, pela ajuda dispensada a todo o projecto.
Cybelle Shattuck
Abril 1998
Cronologia do Hinduísmo Período Medieval

Civilização Pré-histórica e do Vale do Indo c. 700 d.C. Primeiros Tantras


c. 788-820 d.C. Sankara, fundador do Advaita Vedanta
c. 7000-6000 a .C. Prime im ag ric ultura na zona do vale do Indo c. 1025-1137 d.C. Ramanuj a. fundador do Vedanta vishisllla-advaita

c. 2500 a.C. C ivi lização urbana aparece ao lo ngo do rio Indo c. 1150 d.C. /ramavataram, versão tamil do Ramayana por
Kampan
c. 2300-2000 a .C. Ponto culminante da civilização do vale do rio Indo
1211 -1526 d.C. Sultanato de Deli . domínio muçulmano no norte da
c. 2000-1500 a .C. Mig mções indo-europeias para a Europa, Irão e Índia
Índi a
1290 d.C. Jnaneslnvari. tradução murnti do Bagavagitu com
c. 1900-1500 a .C. Declínio da c ivilização do Vale do Indo
comentário de Jnaneshwur Mal1araj
1440-1518 d.C. Kabir. poeta-santo
Perfodo Védico
c. 1498-1546 d.C. Mirabui . princesa Rajasthani e poeta-santo
1485-1533 d.C. C haitanya. poeta-santo bengalês
c. 1200-900 a .C. Co mposição dos Rigveda. Yajun,eda. Samaveda e
Awrvavedtl
1526-1757 d.C. Império Mogol. do mínio muçulmano sobre quase
c. 1000-800 a .C. Composição dos Brameas toda a Índ ia
1532-1623 d.C. Tulsi Das. autor de Ramchnritmwws. versão em
c. 900-600 a .C. Composição dos Aranyaka.1·
hindi de Ramayana.
c. 600-300 a .C. Composição d os
c. 563-483 a .C. GaUiama Buda. fundador do Budismo Perfodo Moderno
c. 527 a .C. Morte de Yardhamana Mahavira, último sáhio do
Jainismo 1722-1833 Ram Mohan Roy fu ndou Braluno Samaj cm 1828
1781-1830 Sahujanand Swami. fundou Swami Narayanan
1824-1883 Dayammda Sarasvmi fu ndou Arya Samtlj cm 1875
Perfodos Épico e Clássico
1836-1886 Yid<l de Ramakrishna B. G. Ti le k
1856-1920 Swami Yivckananda fundo u a missão Ramakrishna
c. 400 a .C.-300 a .C. Compil ação d o Mahablwrata em 1897
324-185 a .C. Império mauriano 1863-1902 Mohandas K. Ghandi
c. 200 a .C-200 d.C. Compi lação do Ramayana
1869-1948 Parlamento Mundial das Religiões em Chicago
1893 Índia independente da Grã-Bretanha
c. 200 a .C.-200 d.C. Composição do Manu Smriti 1947 Divisão da Índia c do Paquistão
c. 320-500d.C. Dinastia Gupta, época clássica da Índia 1964 Estabelecimento de Yishva Hindu Parishad
1973 Movime nto Chipko
c. 350-450 d.C. Samkhya Karika de lshvara Crixna. descrição clás-
1976 Consagração do Templo de Shri Yenkateshwam. em
sica d a filosofi a de Samkhya
Piusburg. Pe ns ilvânia
c. 400-500 d.C. Ioga Swra de Patanjali, descrição clássica do ioga
1977 Consagração do Te mplo Ganesh, em Flushing.
c. 400-1000 d.C. Composição dos 18 grandes Puranas Nova Io rque
c. 500-900 d.C. Alvars. Va ixnava Tamil. poetas do Sul d a Índia 1983 Procissão d o Sacriffcio pela Unid ade
c. 500-1200 d.C. 1987-1988 Séries televisivas de Ramayana e Mahabharata
Nayanars, Xai va Tami l, poetas do Sul da Índia
1992 Destruição de Babri Masj id
····, Introdução ao Hinduísmo
C III N A e aos hindus

ARUNACHAL
T IBETE PRADEXE Em 1987 e 1988 a te levisão a presentava todos os domingos de
manhã na Índia as versões por episódios do Ramayana e do Mahabhara-
ta. as grandes epopeias indianas. Dumnte a sua transmissão os hindus
reuniam-se em massa. diante dos te levisores. Os que os não tinham, jun-
tavam-se com os amigos ou iam para locais públicos o nde tinham sido
colocados aparelhos pam que as pessoas assisti ssem. Embora a série
fosse c m hindi, os hindus que não percebiam a Hngua, assistiam da
mesma mancim. Considemvam o episódio
um acontecime nto religioso, uma possibili-
dade de te r darslwn, uma "visão" do divino,
através do meio de comunicação de dur-
darslum . "visão-distante", isto é. te levisão.
Em muitos locais. antes do infcio de cada
tnmsmissão os te lespectadores realizavam
rituais tmdicionalmente usados para vene-
mr imagens das divi ndades. Os televisores
eram e nfeitados com grinaldas e recebiam
oferendas. De acordo com as notícias dos
jornais, o trabalho interrompia-se e m toda a fndia, e nquanto a popul ação
se reunia para ver as histórias divinas.
Estas epopeias são narrati vas complexas, centradas na luta pela
orde m no mundo. No Malwbharara. dois ramos de uma fa míli a real dis-
Mar putam o domínio da Índia (Bharat). O Ramayana é a história do deus
Rama, que te m de conquistar o demónio Ravana para restaurar a paz no
.. mundo. Em ambas as e popeias. a conservação da ordem depende dos
deuses, que tomam fonna ffsica e e ntram no mundo dos mortais; as his-
tórias relatam as acções de Deus na história humana, oferecendo ainda
N instruções divinas sobre a maneira como as pessoas devem viver a sua

t
vida. Nas discussões modernas sobre a identidade hindu, as refonnas
religiosa e social e o nacionalismo indiano, aparece material retirado
destas epopeias. Assim. embora as narrativas tenham aproximadamente
dois mil anos, ecoam a inda nas preocupações actuais do mundo hindu.
O cea n o f11di co • locais de peregrinação hindu O guião para a adaptação televisiva de Ramayana inspira-se na
o - rota de peregrinação rica diversidade de tradições hindus para criar uma versão modem a e
• cidades importantes pan-indi ana da epopeia. A mais antiga versão da história é o poema
o 400 ,...... clássico em sânscrito, compilado aprox imadame nte e ntre os anos 200
antes de Cri sto e 200 da em cristãm. Mais tarde foram compostas ver-
12 + Hinduísmo Introdução ao Hinduísmo e aos hindus + 13

sões em vernáculo tais como a tamil, feita por Kampan (entre os sécu- Nesta cena
los IX e XII) e uma em hindi, chamada os Ramcharitmanas, composta de um
por Thlsi Das no século XVI. As versões de bolso deste texto medieval manuscrito
estão entre os livros mais vendidos na Índia durante a maior parte do do século de XIX
século XX. É a obra de Thlsi Das que serve de guião para Ramnagar do Ramayana,
Raro Lila, uma grandiosa lila ou representação, levada a cabo todos os Rama e
anos na cidade de Berrares. Por toda a Índia há representações teatrais Lakshmana
de rua e declamações por contadores de histórias profissionais, que tor- atiram setas
nam a epopeia acessível a todos, independentemente da alfabetização ao peito
que possuem. do demónio
As representações festivas baseadas no Ramayana ou no Mahaba- Ravana,
rata são acontecimentos religiosos; na devoção hindu, a representação rei de Lanka.
teatral faz parte da realidade mais elevada dos deuses. Quando se repre-
senta o Ram Lila, a divindade está presente no mundo durante a repre-
sentação, ta] como acontece quando a história é reencenada. Aqueles
que nela tomam parte, como actores e espectadores, têm uma interac-
ção imediata com o divino. Do mesmo modo, os actores que tomaram
parte na série de televisão eram reverenciados como a encarnação dos
deuses e o realizador achou necessário exigir um comportamento reli-
giosamente puro a toda a equipa de filmagem. Ele próprio deixou de
fumar e de beber e obrigou todos a aderirem a uma dieta vegetariana.
Uma vez, a actriz que representou Sita, a esposa de Rama no Ramaya-
na, foi vista a fumar um cigarro num local público. Várias pessoas que
a tinham visto na televisão, censuraram-na, dizendo-lhe que Sita, sendo
o modelo do decoro no comportamento feminino, não podia fumar. No
espírito do público, os actores identificavam-se com as suas persona-
gens os deuses da epopeia apareciam de novo neste mundo para repre-
sentar o seu drama em nome de todo o povo.
A tremenda popularidade da epopeia televisiva mostra a vitalida-
de do Hinduísmo. Nenhum romance ou filme moderno provocou uma experiências dos que vivem fora do Sul da Ásia, como por aqueles que
reacção semelhante. Mas este novo meio electrónico para a mitologia ainda vivem em terras onde as grandes divindades hindus tomaram
também nos diz muito acerca da posição do Hinduísmo no mundo forma mortal para representar os seus feitos épicos.
moderno. As antigas tradições são adaptadas aos novos tempos e meios
de comunicação. As pessoas de diferentes regiões culturais podem par-
tilhar a assistência a uma única representação dramática. Essa repre- Hinduísmo e hindus
sentação, em vez de se bao;;ear na versão simples da narrativa, pôde ins-
pirar-se ná grande diversidade de possíveis tradições num esforço de O termo Hinduísmo é de origem recente, tendo sido aplicado prin-
criar um Ramayana para toda a Índia. A nova tecnologia e os factores cipalmente peJos ocidentais para designar a religião maioritária da
de unidade e pluralismo são forças activas no Hinduísmo moderno. Índia. Apenas os grupos que tinham identidades claramente não hindu,
Estas são ainda mais evidentes, quando nos apercebemos que as séries tais como os jainistas, budistas, parses, muçulmanos, judeus e cristãos,
televisivas Ramayna e Mahabharata são vistas, não só no sul da Ásia, não estavam incluídos naquela categoria genérica. O uso de uma desig-
onde Hinduísmo tem as suas origens, mas também noutras partes da nação estrangeira deriva do f.!lcto de não haver uma palavra correspon-
Ásia, Africa, Caraíbas, Américas e Europa. Os hindus vi vem agora por dente nas línguas do Sul da Asia. Aí, as pessoas definem-se gerahnen-
todo o mundo e a tradição modema está a ser moldada, tanto pelas te de acordo com a casta e a comunidade local e, entre elas, não há uma
14 -+- Hinduísmo Introdução ao Hindufsmo e aos hindus + 15

única escritura, divindade ou mestre religioso comum a tudo o que possa Diversidade e unidade
ser designado como o cerne do Hinduísmo. Porém, a falta de precisão do
termo torna-se útil. Isto, porque a palavra Hinduísmo vem de 'hindu', O Hinduísmo tornou-se uma tradição global. No Sul da Ásia é a
palavra usada pelos muçulmanos medievais para se referirem ao povo religião dominante da Índia e do Nepal; é uma tradição minoritária no
que vivia à volta do rio Sindu (Indo). Este tornou-se então um termo Sri Lanka e tem pequenas comunidades no Paquistão e no Bangladesh.
abrangente para todos os que residiam no subcontinente indiano. Daqui, No Sudoeste da Ãsia há alguns enclaves hindus, principalmente na ilha
que o Hinduísmo, como fé religiosa indígena dos Indianos, inclua a indonésia de Bali, que são o que resta das enormes populações que ali
maior parte das tradições regionais que se desenvolveram na Índia. chegaram durante a época medieval. Há também o crescimento de
As religiões indianas que se defmem como não-hindus, como o novas populações hindus em centros urbanos como Singapura e Kuala
Budismo e o Jainismo, tiveram de desenvolver fronteiras claras para se Lumpur. Fora da Ásia existem comunidades hindus bem enraizadas na
distinguirem dos Hindus. Mas o próprio Hinduísmo nunca as criou e as África Oriental e Austral, estados do Golfo Pérsico, ilha de Fiji, costa
práticas religiosas em todo o subcontinente mostram enorme variação nordeste da América do Sul, Caratbas, América do Norte e Europa.
regional. A qualidade amorfa do termo Hinduísmo torna-o uma desig- Apesar da sua globalização, o Hinduísmo está irrevogavelmente ligado
nação conveniente para as tradições muito variadas de aproximada- à cultura do Sul da Ásia e a compreensão da tradição hindu terá de
mente 80 por cento dos Indianos e das suas comunidades afins em todo começar pelas terras da Índia.
o mundo. Porém, é importante lembrar que a palavra é uma invenção O conjunto de crenças e práticas religiosas, cobertas pelo abran-
modema e que, projectar a religião "hindu" para trás no tempo é usar gente termo Hinduísmo, é uma das religiões mais ricamente diversifi-
uma categoria artificial para distinguir as raízes do Hinduísmo moder- cadas da história. É uma condição natural para uma tradição que se de-
no das outras religiões. senvolveu sistematicamente durante milhares de anos, das interacções
dos vários povos que se estabeleceram no sul da Ásia. A riqueza da
diversidade humana é evidente nas línguas do subcontinente. Há qua-
Dharma tro famílias linguísticas distintas: indo-europeia, dravídica, tibeto-bir-
manesa e austro-asiática. Delas vêm as 17 línguas oficiais reconhecidas
Tal como não existe uma palavra indfgena para designar a religião na Índia, cada uma delas com inúmeros dialectos e as línguas menores
da Índia, também não há uma palavra equivalente para o conceito oci- e não oficiais, faladas actualmente no sul da Ásia. As línguas indo-euro-
dental de "religião". Talvez o termo mais aproximado seja dharma. peias, descendentes do sânscrito, são faladas no norte da Índia e no
Dharma significa lei, dever, justiça, virtude. Do mesmo modo que a Nepal e incluem o hindi, marati, bengali e nepalês. Quatro línguas dra-
"moral" ocidental, refere-se a obrigações de comportamento, quer reli- vídicas, tamil, telugu, malayalam e kannada são faladas nos quatro esta-
giosas, quer sociais. Assim, o termo acentua a importância da praxis, dos do Sul da Índia. As outras duas farm1ias linguísticas têm um núme-
ou comportamento correcto, o que é essencial ao modo de um hindu ver ro muito inferior de falantes. As línguas tibeto-birmanesas são utiliza-
o mundo. O Hinduísmo é uma religião centrada mais no comporta- das nas áreas dos Himalaias e do nordeste, como o vale de Katmandu.
mento do que na crença. Há uma grande diversidade de crenças, há As línguas austro-asiáticas são ainda faladas pelos povos tribais que se
diferentes divindades, filosofias e caruínhos, mas todos eles requerem encontram no centro, oriente e nordeste da Índia.
o cumprimento de regras especiais de comportamento. A maior parte destas línguas estão associadas a regiões específi-
Para compreender aquilo que constitui o comportamento dhármi- cas. Este regionalismo, que é um dos apanágios do Hinduísmo, é um
co é necessário entender a visão de mundo hindu. Fundamental para subproduto da geografia asiática. O subcontinente tem regiões geogra-
esta visão, é a crença de que o sagrado é imanente no mundo. O mundo ficamente definidas que desenvolveram culturas próprias distintas. A
namral, a ordem social e a vida familiar estão todos correlacionados fronteira norte é formada pela cordilheira dos Himalaias. Estas mon-
com a ordem divina. Assim, todas as acções, quer ostensivamente secu- tanhas não impediram a imigração, vinda principalmente do noroeste.
lares, quer obviamente religiosas, têm implicações religiosas. Isto sig- Os povos daí oriundos estabeleceram-se a norte, nos vales junto aos
nifica que o lugar de um ser na ordem do mundo afecta o seu dharma. rios, onde interagiram com os anteriores habitantes. À medida que
A imanência do sagrado confere também significado religioso a coisas esses imigrantes percorriam gradualmente o caminho em direcção às
que podem não o parecer segundo as tradições ocidentais, tais como zonas orientais, as suas culturas iam sendo continuamente modificadas.
lugares, objectos, pessoas e momentos no tempo.
16 + Hinduísmo Introdução ao Híndufsmo e aos hindus + 17

Assim, por exemplo, os descendentes de uma tribo indo-europeia que uma pessoa do Punjabe (a noroeste) pode observar outra, oriunda de
tivesse entrado na Índia vindos do Noroeste, teriam uma cultura consi- Tamil Nadu (no sudoeste), celebrar uma festividade estranha a uma
deravelmente alterada na altura em que chegassem à costa oriental. divindade desconhecida e ter uma sensação de afinidade. Nas páginas
Assim, o Noroeste e Nordeste desenvolveram culturas distintas, mesmo seguintes, este livro descreverá algumas das crenças e práticas comuns
quando as influências que chegavam ao mesmo tempo a cada região às diversas tradições abrangidas pela sombra da ''árvore" hindu.
tinham origens idênticas.
Dentro do subcontinente, as culturas geográficas distintas foram
também criadas pela necessidade de se adaptarem ao clima. Nas planí-
cies a norte, as populações juntaram-se perto dos rios, que fornecem
recursos para a agricultura. Uma dessas regiões localiza-se junto aos
rios do Punjabe, a noroeste, e uma segunda existe ao longo dos rios
Ganges e Yamuna. A maior parte dos importantes centros urbanos nesta
área da Índia modema são também centros sagrados da história hindu.
Existem culturas regionais separadas, nas montanhas dos Himalaias,
onde a vida tem de se adaptar a um ambiente rude, e na costa, onde a
pesca acrescenta uma fonte alimentar alternativa. O norte do sub conti-
nente está separado do sul pelas montanhas Vindhya. Nessa região,
onde predomina a fanúlia linguística dravídica, há culturas regionais
disüntas no planalto Deccan e nas montanhas entre ambas as costas
marítimas. O clima do sul é mais apropriado do que o do norte a dife-
rentes produtos agrícolas e formas de criação de animais. Por fim,
encontra-se uma outra diversidade cultural entre os pequenos grupos
"tribais", muitos dos quais vivem em zonas periféricas, principalmente
nas montanhas.
Dentro de cada região cultural, há ainda as pluralidades causadas
pela sociedade. Três quartos da população da Índia é ainda rural, viven-
do em aldeias e centrada na agricultura. Mas as zonas urbanas estão em
crescimento e têm um tremendo impacto nas tradições. Existe agora
uma classe média que, em número, é quase igual à população dos Esta-
dos Unidos. Esta classe média, urbana e instruída, está a alterar o carác-
ter do Hinduísmo. Além disso, exerce wn impacto desproporcionado
no Hinduísmo global, porque a maioria dos emigrantes que vive nou-
tras partes do mundo provém desta classe.
Cada uma das culturas regionais sul-asiáticas tem a sua própria
língua, alimentação, arte, música, arquitectura, divindades e ri ruais. As
hierarquias sociais e sistemas matrimoniais variam de zona para zona.
Dentro da mesma região, as comunidades locais têm as suas próprias
divindades, mitos e tradições. Os deuses e festividades de uma aldeia
podem não ser reconhecidos noutra zona. É por isto que o Hinduísmo
é tão difícil de defmir, podendo apenas dizer-se que, como a palavra
indica, é a religião que se desenvolveu na Índia e é praticada pela maio-
ria dos Indianos c Nepaleses.
Porém, apesar da diversidade, há uma visão geral hindu do mundo.
Os nomes das divindades e as explicações dos rituais podem variar, mas
Bases Filosóficas + 19

do Indo sugerem que a economia era baseada nos cereais, tal como na
antiga Mesopotâmia. O povo do Vale do Indo tinha uma escrita gráfi-
I Bases Filosóficas I 2 ] ca, cujos exemplos se encontram em pequenos selos de barro, mas que
não foi decifrada, de modo que a maior parte das teorias sobre esta pri-
meira civilização é baseada em deduções retiradas de provas arqueoló-
gicas.
As raízes da tradição hindu remontam às primeiras civilizações da Há vários artefactos que sugerem práticas religiosas semelhantes
Índia. Com o tempo, as crenças e práticas dos vários povos que migra- às encontradas mais tarde nas tradições sul-asiáticas. Primeiro, há
ram para o subcontinente e aí estabeleceram residência interagiram de numerosas estatuetas de terracota representando uma mulher de ancas
tal modo, que a tradição modema é uma amálgama de influências uni- largas, seios proeminentes e um complicado turbante. Os eruditos espe-
das através de milhares de anos. As duas influências básicas, a respei- culam que esta imagem possa ser a de uma deusa associada à fertilida-
to das quais temos informações, foram as culturas da civilização do de humana e agrícola. Segundo, há imagens de animais, uns naturais,
Vale do lndo e as indo-europeias. Cada uma delas contribuiu para o outros míticos, em pequenos selos de barro. Uma delas mostra uma
desenvolvimento das tradições religiosas figura humana sobre um pipa!, tendo em baixo aquilo que parece ser
que se transformaram no Hinduísmo. uma fila de adoradores. Estes podem ser precursores do culto a certas
árvores e animais, descoberto em épocas posteriores. Há também
outros selos que mostram uma figura sentada no que é aparentemente,
A civilização do Vale do Indo uma postura de ioga. Finalmente, os grandes tanques de água podem
indicar uma primeira preocupação com o banho e a pureza ritual.
A primeira civilização da Índia é co-
nhecida como a civilização do Vale do
Indo, porque os arqueólogos escavaram A primeira época védica
importantes cidades no vale do rio Indo.
As duas maiores são conhecidas como Mohenjo Daro e Harappa. A cul- Entre os anos 2000 e 1500 a. C. os povos da Ásia Central come-
tura do Indo, a partir de cerca do ano 2500 a. C. (embora as suas ori- çaram uma grande migração. Uns estabeleceram-se em zonas da Euro-
gens datem do período Neolítico, entre 7000 e 6000 a.C.), atingiu o seu pa Ocidental e do Norte, outros seguiram mais para sul e para oriente,
ponto culminante por volta de 2300-2000 a. C.. Durante esse período em direcção ao Irão e depois à Índia. Estes últimos intitularam-se a si
teve laços comerciais com a Mesopotâmia, tendo sido muito abrangen- próprios Arianos, um termo que na Índia veio mais tarde a designar
te, no seu apogeu. Os vestígios arqueológicos da avançada civilização determinadas c1asses sociais. Devido às antigas ligações entre estes
do Indo foram descobertos em mais de 1500 locais, cobrindo uma zona vastos grupos de imigrantes, todos os povos da Índia, Irão e Europa
desde a parte superior do vale do rio Ganga-Yamuna a leste, até à fron- pertencem à família linguística indo-europeia. O sânscrito, o persa, o
teira iraniana a oeste, e para baixo até à costa de Guzarate. A cultura latim e os seus descendentes modernos, estão todos relacionados.
começou a entrar em declínio cerca de 1900 a.C. e desapareceu cerca Os imigrantes indo-europeus entraram na Índia pelo noroeste,
de 1500 da mesma era. mudando-se depois para a zona junto do rio Ganges, que era já habita-
As cidades do Vale do lndo eram extraordinariamente bem orga- da pelos descendentes da civilização do Vale do Indo. Os Arianos tor-
nizadas. Mohenjo Daro e Harappa abrigavam, cada uma delas, 40 000 naram-se a força predominante do Norte da Índia e a sua influência
pessoas. As cidades estendiam-se numa organização em grelha e as espalhou-se gradualmente para sul. Com o passar dos tempos, os siste-
zonas residenciais parecem ter sido determinadas pela ocupação. As mas agrícolas e sociais indígenas misturaram-se com a cultura dos
sofisticadas tecnologias hidráulicas forneciam sistemas de esgotos e migrantes para formar a amálgama que produziu a clássica civilização
poços para a maior parte das casas, e tanques enormes parecem ter ser-
indiana111 •
vido como zonas centrais de banho. Os enormes armazéns das cidades
20 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 21
Os Indo-Europeus eram um povo de pastores nómadas com tradi- parte os Bramanas, centrando-se nos rituais que não foram pormenori-
ções religiosas flexíveis. Quando se fixaram na Índia trouxeram consi- zadamente desenvolvidos nos primeiros textos. Desenvolvem também
go o sânscrito, a sua lfugua sagrada, a crença num panteão de divinda- a importância de se conhecer o significado dos rituais, descrevendo os
des, práticas religiosas centradas no sacrifício do fogo e numa estrutu- benefícios suplementares que advêm àquele que os realiza através des-
ra social hierárquica. tas informações especiais. Finahnente os Upanixadas, o terceiro tipo
de material adicional, continua a desenvolver as ideias do
Os Vedas explicando a sua verdadeira natureza e significado dos rituais numa
época em que o centro se afastava da realização em direcção ao conhe-
As primeiras composições religiosas na Índia são os Vedas, textos cimento. Os Upanixadas são os últimos acréscimos, provavelmente
indo-europeus em sânscrito. A palavra veda significa conhecimento e elaborados entre os anos 600 e 300 a.C.
estes textos contêm a informação necessária para a realização dos Embora os Vedas sejam respeitados como textos sagrados, poucos
sagrados ritnais do fogo. É difícil datar com precisão estes textos, mas hindus modernos os conhecem bem. Recitam regularmente alguns
os estudiosos crêem que foram elaborados entre os anos 1500 e 600 hinos no templo e nas lirurgias domésticas, mas os textos são princi-
a.C. Estes Vedas foram conservados oralmente. Famílias sacerdotais palmente manuais de ritual e a maior parte do seu conteúdo é estudada
passaram os textos de geração em geração, usando complicados siste- apenas por sacerdotes e eruditos. Apesar disso têm uma tremenda auto-
mas mnemónicos para os conservar fielmente. ridade na tradição hindu. Os Vedas são descritos como shruti, "aquilo
No sentido mais limitado, os Vedas são quatro ''colectâneas" que é escutado" pelos antigos sábios. Os textos contêm um conheci-
(samhitas) de material ritual. O Rigveda Samhita contém dez livros de mento considerado como transcendendo o humano e eterno. Este foi
hinos a várias divindades. Cada um destes livros foi composto por revelado aos sábios quando se encontravam em estado de meditação.
sábios pertencentes a faiD11ias sacerdotais responsáveis pela conserva- Algumas escolas teístas aftrmam que os Vedas foram escritos por Deus,
ção da herança dos hinos. Estes eram recitados pelos sacerdotes duran- mas outros acreditam que os textos não têm autor. Existem simples-
te os ritnais do fogo. O Samaveda Samhita é um livro de cãnticos base- mente como conhecimento eterno e os rishis védicos ("os que vêem")
ados no Rigveda com instruções para a sua recitação. O Yajurveda foram capazes de o ver e transmitir a outros.
contém fórmulas curtas em prosa e verso, os mantras, usadas nos
rimais. O Atarvaveda é uma colectânea de hinos e fórmulas mágicas, Panteão
muitas das quais não estão relacionadas com os rimais dos sacrifícios,
mas sim com temas da vida de todos os dias. Este texto foi a última Os deuses louvados nos Vedas formam um panteão associado às for-
adição e não recebeu o mesmo estatuto dos três primeiros, circunstân- ças naturais e culturais. Assim, por exemplo, há divindades identificadas
cia essa que levou os estudiosos a sugerir que pode reflectir tradições com o sol, a lua, a terra, o céu, o vento e a noite. Há também deuses e
populares não arianas em vez das sacerdotais. Muitas das fórmulas do deusas com esferas culturais específicas, tais como a guerra, a saúde e o
Atarvaveda destinam-se a preocupações vulgares, tais como a cura de ritual. As divindades, designadas por devas, podem ser organizadas de
doenças, o afastar de espíritos malignos e a prevenção da mordedura um modo geral de acordo com o seu lugar dentro dos três níveis do cos-
da serpente. mos: o domínio celestial, o domínio atmosférico e o domínio terrestre.
Cada uma das "colectâneas" védicas tem três tipos de material adi- De particular importância no domínio espiritual é o deus Varuna,
cional e o uso alargado da palavra veda incluiu-os a todos. Os primei- o senhor da ordem (riJa). Rita é o oposto do caos e Varuna é louvado
ros acréscimos dizem respeito à exegese rirual e chamam-se Brama- para manter a rectidão e impedir o cosmos de se dissolver no caos. Esta
nas. Os Bramanas descrevem regras para os rituais e explicam a sua tensão entre a ordem e o caos é um tema dos Vedas e das subsequentes
intenção e significado. Os segundos chamam-se ;<composições da flo- religiões indianas. Varuna é muitas vezes acompanhado por Mitra, deus
resta" (araniakas), porque, segundo a tradição, foram compostos na da noite, que é também o senhor dos contratos sociais. Juntos
floresta por sábios solitários. Os Araniakas acrescentam em grande sentam a ordem cósmica e social.
22 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 23

Ganga, a deusa do rio, divindade No domínio terrestre, as divindades mais importantes são Agni,
do panteão védico. A feminilidade deus do fogo, Soma, deus da bebida consumida durante o ritual do
como símbolo da abundiincia, das fogo, e Brihaspati, patrono dos sacerdotes. Todas estas divindades estão
árvores sagradas e da purificação directamente ligadas ao sacrifício do fogo. Actuam como mediadores
dos rios, persistiu na arte e nos entre os seres humanos e os deuses das regiões superiores. Brihaspati é
rituais indianos. o átbitro do ritual e Soma um participante indispensável. Mas Agni,
que é ao mesmo tempo o deus do fogo e o próprio fogo, é o meiO no
qual o saL'Tifício tem lugar. É Agni que transporta no seu fumo as ofe-
rendas para o céu no seu fumo. Transporta também os mortos para o
reino de Yama, o senhor da morte.
Um dos aspectos mais espantosos do hinos védicos é a tendência
para se dirigirem a todos os deuses em termos semelhantes. Assim, um
hino a Agni pode afirmar que Agni é supremo, embora outro hino diga
o mesmo a respeito de Indra. Alguns hinos identificam mesmo um deus
com outro, fazendo afirmações tais como: "Vós, ó Agni, sois !mira."
Estas passagens parecem ser aflrmações de louvor, mas tornam também
fluidos os papeis específicos e as identidades dos deuses, e permitem
que aqueles que conseguem popularidade suplantem divindades mais
antigas com relativa facilidade. Assim, os membros e a hierarquia do
panteão védico alteram-se constantemente.

Sacrifício do fogo

O sacrifício do fogo era o meio de comunhão entre a humanidade


e os deuses. O ritual deve ter-se iniciado como um simples rito de hos-
pitalidade, no qual as divindades eram convidadas a uma celebração.
As ofertas eram colocadas no fogo para ser levadas aos deuses por
Agni, o senhor deste elemento. Com o correr dos tempos, o ritual tor-
nou-se mais elaborado e ganhou maior significado, até se tornar tão
im(X)rtante, que a sua realização se considemva um erro, pois poderia
pôr em perigo a ordem do cosmos e lançar o universo num caos.
Havia dois tipos de sacrifício do fogo: shrauta, "baseado no shru-
ti (isto é, nos Vedas)", que eram os rituais públicos; e grihya ("domés-
Entre os deuses atmosféricos, o mais notável é Indra, a divindade
ticos"), os rituais da casa. Os rituais domésticos requeriam apenas o
guerreira associada à trovoada. Principalmente nos primeiros hinos lume e podiam ser realizados pelos próprios chefes de farru1ia. O objec-
védicos, Indra é o chefe dos deuses, conforme é apropriado a uma cul- tivo destes rituais era conseguir recompensas materiais na terra, tais
tura guerreira. Acredita-se que Indra conquistou as terras onde vivem
como saúde, longa vida, o nascimento de filhos homens e riqueza em
os Arianos e submeteu os seus inimigos. O seu mito mais famoso diz forma de gado. Todos os dias eram feitas oferendas simples, de ali-
respeito à destruição de uma serpente, que simboliza o caos, e à liber- mentos cozinhados no lume da casa, de manhã, a Agni e a Prajapati,
tação das águas do céu. À medida que os Arianos se vão sedentarizan- deus criador, e à noite, a Surya (deus do sol) e a Prajapati. Os rituais
do, o deus guerreiro perde o seu significado.
24 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 25

domésticos celebravam também a lua nova e a lua cheia, as estações do produzem recompensas, vida e imortalidade para os deuses apenas com
ano, os primeiros frutos da colheita, acontecimentos familiares espe- a sua ajuda. Sem a não haveria hinos, nem mantras e, portan-
ciais, como a construção de uma nova casa, o nascimento de um filho to, não existiria o poder ritual.
homem e as fases importantes da vida de uma criança. Mesmo quando O poder do sacrifício estava incorporado nos seus sons, nos hinos
os ri ruais como o casamento eram realizados por um sacerdote, a famí- védicos entoados pelos sacerdotes. Esse poder chamava-se Brame e os
lia tinha um papel importante nas cerimónias, levadas a cabo junto ao sacerdotes que o detinlmm eram os brâmanes ("que estavam relacio-
lume doméstico. nados com Brame"). ,
Os rituais shrauta eram naturalmente mais elaborados. Em vez de Esse termo referia-se ao seu conhecimento e uso do poder de Brame
utilizarem o lume doméstico, requeriam três fogueiras especiais e contido nos sons e nas palavras rituais. Gradualmente, a palavra ritual,
vários sacerdotes, cada um deles com a sua própria atribuição. Primei- deificado como a deusa Vach, acabou por ser vista como a base de todo
ro, os altares de fogo tinham de ser construídos. Não havia um local o cosmos. O poder do som ritual é tão grande, que se pensava que os pró-
com fogo sagrado permanente para estes rituais, reflexo, sem dúvida, prios deuses realizavam sacrifícios para chegar ao seu lugar no céu. Os
do anterior estilo de vida nómada dos migrantes indo-europeus. Eram deuses tal como os videntes, conhecem a verdadeira base das coisas, o
orientados para os pontos cardeais e construídos com formas específi- poder de Brame. Mas isto significa também que os deuses já não são
cas, circulares, semi-circu1ares e quadradas. Os altares eram normal- supremos, já não possuem o derradeiro poder. São parte do cosmos
mente montículos erguidos, feitos de areia, terra, seixos e bocados de manifestado, não os primordiais criadores. Esta mudança de posição e do
madeira. As formas identificavam os fogos. Um altar redondo repre- papel dos deuses foi parte de uma mudança na concepção do cosmos.
sentava a terra, o quadrado era o céu com quatro dimensões e o semicír- O poder da palavra justificava as formas de revelação do cosmos,
culo era a atmosfera entre a terra e os céus. À medida que os rituais se mas não a sua origem. Já não era possível atribuir a nenhum deus o
foram tomando mais complicados, utilizavam-se vários sacerdotes. Um papel de criador, pois eram vistos agora como parte da criação, de
era responsável pela recitação dos hinos do Rigveda, outro entoava cân- modo que os últimos hinos se confundiam com o problema do proces-
ticos do Samaveda, um terceiro realizava os deveres manuais de fazer so criativo. Um texto famoso, Rigveda [RV] X. 129, refere especifica-
as oferendas e realizar as oblações, enquanto que um quarto observava mente o problema do local da criação. Reparando que os deuses não
todos os procedimentos, assegurando-se de que não eram cometidos podem saber a verdade, porque apareceram apenas após a criação do
erros. Estes sacrifícios eram muitas vezes dedicados a Agni e a Soma, mundo, o hino faz a pergunta: "Quem sabe então de onde surgiu esta
a quem eram colocadas no fogo oferendas de leite, manteiga branquea- criação?" O verso final diz que só aquele que olha do mais alto dos
da, bolos vegetais, animais ou caules da planta de soma. céus pode saber e talvez nem mesmo ele saiba.
Embora os sábios não tivessem a certeza de quem ou daquilo que
Criação e sacrifício pôs em movimento a criação, sabiam como tinha sido feita. Alguns
hinos atribuíam-na a um artesão divino (RV, X.81), ou a um ferreiro
À medida que o ritual sacrificial ganhava cada vez mais impor- (RV, X.72), ou ainda a um embrião cósmico (RV, X.l21), mas em todos
tância, os deuses a ele associados eclipsavam as divindades dos hinos estes, o modelo do processo da criação era o sacrifício do fogo. O ritual
védicos mais antigos. Isto é particularmente evidente no caso de Agni. do sacrifício era a base de todo o cosmos, porque o cosmos vinha do
Num dos hinos, Agni é invocado como Indra, Vixnu, Bramanaspati, sacrifício. Esta ideia foi explicitada no famoso Purusha Sukla (RV
Varuna, Mitra, etc. e considerado como sendo todos os deuses. Como X.90), o "Hino à Pessoa". O hino tem duas partes básicas. A primeira
mensageiro, aquele que faz a ligação da humanidade com as divinda- descreve a pessoa cósmica, ou Purusha e estabelece uma identidade
des, Agni personificava o poder do sacrifício. Uma outra divindade ele- entre o Purusha e o universo.
vada por esta associação era Vach, a Palavra personificada enquanto
deusa. Nos Bramanas está ligada à criação e ao ritual. Há uma história O Purusha tem mil cabeças, mil olhos e mil pés.
que descreve como o devas pôde instituir rituais que sustêm o mundo e Invadiu o mundo por todos os lados e
26 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 27
estendeu-se para lá dele como os dez dedos. daqueles que viviam em retiros nos bosques, e fizeram alegorias da
Só o Purusha é todo este universo, dição sacrificial. Esta interiorização do ritual colocou uma nova ênfase
o que já foi e o que na pessoa individual, como meio do ritual mental. como
Governa igualmente o mundo da imortalidade que um sacerdote brâmane, meditando no significado do sacrifício e
isto é, os deuses, que faz crescer. alimentando-os. conseguindo o conhecimento sagrado. Este processo de reinterpretar o
Tal é a extensão da sua grandeza: e o Purusha é ainda maior. conhecimento e as práticas religiosas foi continuado nos Upanixadas.
Um quarto de si próprio são todos os seres, Estes reflectem uma época de intensa especulação filosófica, época
três quartos são o mundo dos imortais no céu. essa que produziu o Budismo e o Jainismo. Esta especulação foi leva-
(RV, X.90.1-3) da a cabo em escolas, em que os professores passavam as suas ideias
aos alunos e tomavam parte em enormes discussões públicas. As
Nesta passagem, o Purusha é todo o universo. Um quarto da Pes- niões eram encontros em que os grandes sábios, homens e mulheres,
soa forma o mundo manifesto dos seres criados, os outros três quartos podiam partilhar ideias e debater os seus méritos. A maior parte do
formam as regiões imortais e superiores. material dos Upanixadas encontra-se na forma de debates eruditos e
A segunda parte do hino descreve o sacrifício do Purusha e ofe- diálogos professor-aluno.
rece um extenso relato de correlações entre o corpo sacrificado e as
características do universo. Deste modo, o sacrifício é simultanea- Brama e Atman
mente a actividade e a substância do cosmos. A lua vem do seu espí-
rito, o sol da sua vista, o deus do vento do seu hálito, do seu umbigo Uma das questões mais significativas do período foi a da narure-
vem a atmosfera, dos seus pés chega a terra e dos seu ouvidos as za do cosmos. Nos últimos Vedas, os sábios sugeriam que havia um
direcções. As correlações entre o Purusha e o cosmos estendem-se único Absoluto subjacente a toda a existência. As especulações sobre
também à sociedade humana. Diz-se que os sacerdotes brâmanes vêm a Sua natureza centravam-se na alimentação, discurso, respiração ou
da boca de Purusha e a classe dominante (rajanaya, mais tarde cha- no deus criador, Prajapati. Mas, com o passar do tempo, o Brame subs-
mada xátrias) dos seus braços. Das suas coxas vêm os vaixiás, uma tituiu estes outros. Logo na alrura do Atarvaveda, alguns hinos tinham
palavra que significa literalmente "povo" e se refere aos artesãos, ido mais além da definição de Brame como o poder da palavra sagra·
comerciantes e agricultores. E dos pés chegam os sudras, a classe da e do sacrifício e começaram a considerá-lo como um princípio cós-
dos servos. Este hino contém a primeira lista das quatro classes que mico. Assim, por exemplo, Brame é "o ventre do que existe e do que
mais tarde se tomaram a base dos preceitos sociais e religiosos. As não existe" (1.4.1) e noutro hino, a terra, o céu e a aunosfera são esta-
associações específicas podem parecer arbitrárias, mas a ideia de que belecidos pelo Brame (10.2.25)). Nestas passagens, a antiga definição
o cosmos, o mundo da natureza, a sociedade humana e o sacrifício são védica de Brame como o poder da palavra sagrada e do sacrifício é
ordens paralelas da realidade, é fundamental para posteriores tradi- substituída pelo conhecimento de que Brame é a essência última e sub-
ções religiosas na Índia. jacente ao universo. Este Abso]uto é designado por Brama, a forma
\miversal.
Nos Upanixadas, Brama substitui todo os devas védicos. Em tex-
Especulação filosófica nos Upaníxadas tos anteriores, já os deuses tinham sido privados da sua fundamental
superioridade, tornando a sua existência dependente da criação. Os
Gradualmente, o conhecimento sagrado associado ao sacrifício deuses começaram a existir depois da criação e apenas receberam os
vai-se interiorizando. O ritual foi estendido de modo a incluir a reali- seus poderes e imortalidade através de um ritual de sacrifícios. O lugar
zação mental, em que o pensamento substiruiu as acções físicas. Os supremo pertencia então a Brama, conceptualizado nalguns textos
sábios ensinaram que o conhecimento era primordial, não o ritual exter- como Divindade Suprema c noutros como um Abso]uto impessoal.
no. Os Araniakas, os livros da floresta, reflectem os ensinamentos Uma passagem no Briha4aranyaka Upanixada (Ill.9.1.9) parece iden-
28 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 29

tificar o devas como os vários poderes de Brama. Aqui, perguntam ao O mecanismo que regulava este sistema era carma, uma palavra
sábio Yajnavalkya quantos deuses existem. Ele responde que há 3306. que significa literalmente "acção". Cada acção deve ter um efeito.
Quando lbe perguntam de novo, responde que são 33. Este processo de Assim, os efeitos das acções nesta vida determinam aquilo que a pes-
redução continua até ele af"lrmar que há apenas um deus. Mais tarde, soa experimentará depois da morte e que tipo de vida terá na incarna-
define esse Único como Brama. ção seguinte. Deste modo, mesmo que uma pessoa não pareça receber
O termo utilizado para Brama nesta passagem é sutra-atman, todas as recompensas ou castigos merecidos numa detenninada vida, a
"Eu-fio; o Eu que passa pelo universo como um fio". Este nome de balança será equilibrada numa outra.
Brama acentua o seu papel como o tecido subjacente ao universo. Mas O único modo de deter esse ciclo de reincarnação é conseguir o
Brama é também chamado antaryamin, o "Controlador Interior" que moksha, a "libertação" de samsara. Esta libertação obtém-se através do
existe dentro de cada ser. Os Upani:xadas devotam grande energia adis- conhecimento. Quando se entende verdadeiramente a natureza do
cutir a relação entre o aspecto externo e cósmico de Brama e o seu Brama e portanto a verdadeira natureza do próprio eu (o atman), então
aspecto interno, habitualmente chamado atman. O atman é o verdadei- não há mais acumulação de c arma e o indivíduo não volta a renascer.
ro Eu dentro do indivíduo, a essência pura e imortal de cada ser. Uma Os Vpani:xadas esclarecem que este conhecimento libertador de Brama
das mais famosas passagens descrevendo a relação de Brama e atman é separado da antiga sabedoria dos Vedas, agora descrita como "conhe-
é uma conversa entre Shvetaketu e seu pai no Chandogya Upanixada cimento inferior" e que apenas serve para nos preparar para o conheci-
(6.12-13). Shvetaketu recebe instruções para abrir a semente de uma mento "superior" de Brama.
árvore e descrever aquilo que vê. Nada descobre. O pai af"rnna que da Atingir este conhecimento mais elevado para conseguir o mok.sha
essência subtil da semente que não se consegue ver há-de crescer uma requer um esforço enorme. A disciplina conhecida como ioga desen-
árvore enorme. Todo o mundo tem esta mesma essência para o seu Eu. volveu-se como veículo para o moksha. A palavra ioga, da raiz sâns-
O pai pede então ao filho que dissolva sal na água e ensina-lhe que, tal critayuj "unir, controlar", refere-se a disciplinas de ascetismo e medi-
como o sal, que não é visível, impregna a água e não pode ser separa- tação que levam a um conhecimento inacessível à consciência huma-
do dela, também o Brama invade o individuo. O Brama dentro do indi- na vulgar. Ioga abrange uma disciplina moral, física e mental, porque
víduo chama-se atman. Este ensinamento é pontuado pelo refrão taJ o corpo tem de ser controlado antes de ser possível controlar e centrar
tvam "Tu és Aquilo". Nesta equação, o Tu significa atman e o o espírito para atingir um conhecimento superior. A palavra ioga apa-
Aquilo significa Brama. rece pela primeira vez no Katha Upanixada, onde é descrita como o
controle dos sentidos. Combinada com o controle da actividade men-
Samsara e Karman tal, julga-se que este ioga leva ao estado supremo(2). No Katha Upani-
xada 1.3.3-9, Yama, o deus da morte, usa a analogia de um carro puxa-
O conceito de um atman individual e eterno identificado com o do a cavalos para descrever o estado humano: o corpo é a carroça, os
Brama universal mudou o contexto e os objectivos das práticas religio- sentidos são os cavalos e o eu (atman) é o cocheiro. Tal como o
sas. Nos primeiros hinos védicos, o objectivo do sacrifício era procurar cocheiro controla os cavalos, assim a pessoa deverá controlar os seus
o beneficência dos deuses para assegurar uma vida boa na terra e, sentidos.
depois da morte, uma viagem segura para o céu. Mas nos Upanixadas, O tema do controle do corpo e a sujeição do espúito para obter
os deuses já não são supremos e a sua morada celeste não é um objec- libertação da reincamação aparece na maioria das tradições religiosas
tivo permanente e final. Nesta época, a crença num só tempo de vida indianas. Os grupos de ascetas que desenvolveram estes sistemas de
foi substituída por um sistema de reincarnação chamado samsara, o disciplina chamam-se sramanas, ''lutadores" que buscam a libertação
ciclo dos renascimentos. Segundo este sistema, na morte a pessoa passa através de austeridade e meditação. Viviam com simplicidade, abando-
para uma vida no céu ou no inferno, dependendo dos méritos daquilo nando casa e haveres para cultivar o desprendimento. Destas tradições
que fez em vida. Então, depois de um certo tempo, o indivíduo renasce de renúncia saíram as comunidades monásticas do Budismo, Jainismo
de novo na terra. e Hinduísmo.
30 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 31

A forma clássica da disciplina ioga hindu é descrita no Yoga Sutra, menta implica atingir pessoalmente o conhecimento acerca da verda-
atribuída a Patanjali e datada de entre o ano 400 a. C. e 500 da nossa deira natureza do eu. O ioga, como sistema de disciplina através do qual
era. Patanjali define o ioga como o cessar das flutuações da actividade se podem recriar os passos da criação e atingir um conhecimento mais
mental, que deve conseguir-se seguindo passos específicos. Os primei- elevado, tem um lugar importante nas tradições sul-asiáticas.
ros ensinam o comportamento ético, pessoal e social através de práticas
de não-violência (ahimsa), verdade, celibato, pureza, ascetismo e estu- Varnashrama-dharrna
do. Os segundos são um desenvolvimento do controle físico, de modo
a que o mundo externo e o corpo não distraiam o iogui, o que implica A obtenção do conhecimento que leva à libertação exige uma
sentar-se em posições específicas: controle respiratório e o afastamen- intensa devoção de tempo e energia. É evidente que não será apropria-
to das sensações do mundo exterior. Uma vez que o corpo e os sentidos do a todas as pessoas. De facto, apenas alguns têm inclinação e disci-
estejam controlados, o iogui pode progredir através de fases de medita- plina para passar a vida em busca da libertação. Para outros, o impor-
ção cada vez mais profundas, até atingir o estádio transcendente de tante é realizar acções correctas, que por sua vez garantirão benefícios
consciência que confere a liberdade da reincamação. na vida presente e uma reincarnação vantajosa. A defmição daquilo que
A consecução final é, essencialmente, o contrário do processo de constitui uma acção correcta foi cuidadosamente elaborada num siste-
criação conforme é descrito no sistema metafísico da filosofia de ma designado varnashramadharma, "deveres de acordo com a casta
Samkhya, associada ao ioga de Pantajali. Segundo esta, há dois princí- (varna) e o estádio da vida (ashrama)".
pios básicos, a Consciência inactiva, denominada purusha, e prakriti, A ideia básica do sistema de castas era evidente logo no hino
a Materialidade primordiaL Estes dois princípios estão completamente védico que descreve as quatro classes, ou varnas, da sociedade sacer-
separados um do outro. O prakriti tem três qualidades inerentes, os três dotes, governantes/guerreiros, artesãos/mercadores/agricultores e ser-
gunas: sattva, Hpureza", rajas, "actividade", tamas, "lentidão, inércia". vos mas esta divisão geral foi apenas o enquadramento ideológico
Quando o purusha se aproxima demasiado do prakriti, o equilíbrio des- para uma hierarquia social muito mais complicada. Dentro das quatro
tas qualidades é perturbado. Como resultado, o prakitri desenvolve os castas (varnas) desenvolveu-se uma multidão dejatis "grupos de nas-
vários elementos que formam o mundo visíveL Este modelo do desen- cimento", formados por comunidades que não se misturavam pelo
rolar da criação é também o caminho para reconstituir o processo. O casamento, a maior parte associada a ocupações específicas. Havia os
iogui, depois de treinar o corpo para permitir o acesso espiritual a um jatis para tecelões, carpinteiros, prensadores de azeite, ourives de ouro
conhecimento superior e escondido, consegue compreender que as e prata, artesãos de estanho, sacerdotes do templo que realizavam
diversas formas do mundo humano são meras manifestações de praki- rituais védicos e outros que ensinavam. A hierarquia destes grupos
tri e que purusha, a Consciência pura, está completamente separada da variava de aldeia para aldeia. Um tecelão poderia ter uma posição ele-
existência material. Com este conhecimento da distinção entre purusha vada numa povoação e inferior noutra. Em geral o estatuto de umjati
e prakitri, o iogui é libertado da influência do gunas. Assim que o era determinado pelo tipo de trabalho que realizava. Tarefas normal-
gunas deixa de ter efeito, prakitri volta ao seu estado original de equi- mente pouco limpas, tais como as que exigiam tocar em mortos, quer
líbrio ficando de novo isolado de purusha. fossem serviços funerários humanos ou a preparação de peles de ani-
Este sistema de criação a partir da interacção de dois princípios mais, tinham um estatuto inferior. Havia também a componente eco-
aparece noutras tradições indianas. Alteram-se as descrições dos prin- nómica. Uma farm1ia abastada podia ter um estatuto mais elevado na
cípios e da natureza da..., sua relações, mas reaparece a ideia de um par sua comunidade do que famílias mais pobres com a mesma ocupação
desempenhando um papel no processo da criação e a descrição do uni- noutra área. Mas uma casta alta não garantia uma posição económica
verso governado pelas três qualidades de pureza, actividade e inércia superior. Nalgumas aldeias, os mais ricos donos de terras são sudras e
faz parte da maioria das filosofias indianas. Tradições posteriores de- muitas vezes os brâmanes que servem de sacerdotes do templo em
senvolvem-se e aperfeiçoam-se a partir das antigas cosmogonias para pequenas comunidades são muito pobres. O sistema de castas organi-
incluír crenças diferentes, mas mantém-se a ideia de que o esclareci- zou a sociedade de acordo com as classes e ocupações e a posição de
32 + Hinduísmo Bases Filosóficas + 33
uma pessoa neste sistema determinava o modo como deveria compor- numa ordem social mais alargada. Porém, é notável que este programa
tar-se socialmente. tivesse tido um êxito limitado. Quem sente um chamamento para
Para os homens das três castas superiores, o comportamento era renunciar a tudo não espera até aos últimos anos para se decidir por
também regulado pelas fases da vida. Há quatro ashramas, quatro está- uma vida de asceta.
dios na vida. O primeiro é o de estudante. Os primeiros professores são Cada casta c cada estádio de vida deverá ter certos padrões, tendo
os pais, iniciando-se seguidamente a educação formal quando a crian- sido criados um corpo de textos legais para regular o comportamento
ça é enviada para esmdar com um professor profissional que lhe talha humano c defmir essas expectativas. Esses textos não são divinamente
a educação de acordo com o estatuto social da família. O segundo está- revelados como os Vedas, sendo sim considerados smitri "aquilo que é
dio é o de chefe de fanúlia. Adulta, a pessoa casa, constitui fanúlia e recordado". Por outras palavras, devem ser arquivos da tradição. É
trabalha para ela e para manter o seu lugar na comunidade. Quando os aqui, nestes textos legais, que os ideais filosóficos intersectam o quoti-
filhos crescem e começam também a ter a sua prole, a pessoa entra no diano. Estes textos definem a própria vida dhármica; explicam como
terceiro estádio e torna-se um "habitante da floresta". Os habitantes da realizar correctamente os deveres de uma casta ou de um estádio da
floresta deixam que os filhos se ocupem do negócio da fanúlia e come- vida. Assim, por exemplo, descrevem a idade apropriada para uma
çam a dedicar mais energia às preocupações espirituais. Finalmente há criança ser enviada para um professor e quais as matérias que deve
um quarto estádio de sannyasa, renúncia completa. Este não é para aprender. O saber ensinado deveria ser adequado à casta a que perten-
todos, mas se a pessoa deseja procurar libertar-se da reincarnação, pode cia. Um brâmane estudaria os Vedas e as práticas rituais. Se o rapazi-
deixar a família, desistir de todas as ligações sociais e tornar-se asceta. nho fosse xátria, depois de uma breve introdução aos Vedas, aprenderia
O sannyasin leva a cabo os seus próprios rituais funerários e toma um o uso de armas e a arte de governar. Mulheres e sudras não eram elegí-
novo nome para se separar da sua antiga vida. Pode então viver só veis sequer para ouvir os Vedas, de modo que eram excluídas do siste-
como um eremita ou num mosteiro, onde dedica toda a sua energia à ma educacional. Isto também significava que os sudras não podiam par-
meditação e a actividades religiosas. ticipar do sistema religioso bramânico, por não serem instruídos na lín-
A vida feminina não era organizada nestas mesmas quatro fases. gua c nos rituais.
Embora registos de mulheres sábias tomando parte nos debates dos Como os textos eram escritos pelos brâmanes, as preocupações dos
Upanixadas sugiram que as raparigas passavam por um estádio de estu- sacerdotes eram tratadas ao mais ínfimo pormenor. Obras posteriores
dante na época védica, no século primeiro as mulheres não eram auto- visavam também assuntos de Estado e consideravam o modo de aplica-
rizadas a esrudar os Vedas. A vida de casa e da família era considerada <;ão das leis aos diferentes níveis da sociedade. No sistema que surgiu,
a mais importante preocupação da mulher, de modo que a educação de alguns castigos eram muito mais severos para as castas inferiores do que
uma jovem era limitada à arte de governar o lar. Diz-se que a cerimó- para as elites. Era um crime muito maior um servo matar um sacerdote
nia do casamento era, para ela, o equivalente ao rirual que marca a do que um sacerdote matar um servo. Porém, pelo contrário, as castas
entrada de um rapaz na época de estudante, pois servir o marido era superiores tinham multas mais elevadas por roubo. Um sudra tinha de
como servir um guru (mestre espiritual) e as tarefas domésticas eram pagar oito vezes a quantia furtada, um vaixiá 16 vezes, um xátria 32
como rituais de fogoP>. As mulheres deviam acompanhar os maridos vezes e um brâmane 64. De acordo com um texto legal, esperava-se que
quando estes entravam na fase de habitantes da floresta, mas não exis- os que fossem instruídos seguissem padrões de conduta mais elevados.
tem provas textuais que sugiram que a mulher era encorajada a tomar-se O código legal apresentado nestes textos tem de ser tomado com
renunciante ou a conseguir para si o conhecimento espiritual. algumas reservas. Embora se destinasse a ser aplicado a todos, era
A maior parte dos estudiosos crê que a inclusão do sannyasin essencialmente um código para os três varnas superiores. A maioria
como um quarto estádio foi uma tentativa de impedir que as pessoas dos eruditos acTeditaque os níveis inferiores da sociedade funcionavam
abandonassem os seus deveres sociais e escolherem a vida de asceta. com os seus códigos próprios. Foi apenas no período moderno, quando
Ao advogar a renúncia como estádio final da vida, depois de completa- os Ingleses adoptaram estes textos imtigos como sistema legal em toda
das todas as obrigações sociais, a tradição asceta poderia ser integrada a Índia, que o código da ca."ita superior foi aplicado a todos os hindus.
34 + Hinduísmo

Embora os textos legais reflictam ideais bramânicos, e não observações


da realidade, mostram também o desenvolvimento de uma preocupação Hinduísmo clássico
com o comportamento virtuoso definido pela casta e pelo estádio da
e medieval
3
vida.

A mesma crítica que nos impede de aceitar o código legal pelo seu
valor nominal tem de se estender a todo os textos do período dos Vedas Durante os últimos séculos anteriores à nossa era, o Hinduísmo
e Upanixadas são textos de uma elite e não nos falam das vidas reli- teve menor visibilidade que o Budismo e o Jainismo na Índia. Os
giosas da maioria das pessoas. Esta situação desequilibrada começa a governantes do Império Mauriano (c. 324-185 a.C.) tinham apoiado
alterar-se no período seguinte. As grandes epopeias, o Ramayanna e o o Budismo e outros monarcas, em reinados posteriores, patrocina-
Mahabharata, têm aparentemente maior relação com as tradições ram do mesmo modo os monges budistas e jainistas. Há extensos
populares e mostram como o sistema bramânico se estendeu de modo a registos de doações feitas a estes mosteiros pelos membros das clas-
incorporar as crenças e práticas do povo. Estas são ainda mais eviden- ses superiores dessa época, mas poucas provas há de apoio aos brâ-
tes nos Puranas, o vasto conjunto literário que se desenvolveu após as
manes. Depois, no decorrer do século
epopeias e as colectâneas de poesia e canções retiradas do movimento
anterior ao início da era cristâ, os brâma-
de devoção medieval. O capítulo seguinte examina o entrelaçar de tra-
nes começaram a surgir da obscuridade
dições sacerdotais, práticas ascéticas e devoção popular que se trans-
como sacerdotes de uma tradição modi-
formaram no Hinduísmo clássico.
ficada. Esta nova tradição entrelaçava os
fios das práticas rituais sacerdotais,
devoção popular aos deuses e deusas e
práticas de meditação e renúncia asceta.
O conhecimento destes fios da tradição
chegam-nos de quatro notáveis conjun-
tos literários: as grandes epopeias, os Puranas, os Tantras e as can-
ções dos poetas-santos. O resultado desde processo de fusão foi a
colorida tapeçaria do Hinduísmo clássico e medieval.

As epopeias
A unificação das tradições sacerdotal e popular é evidente
nas epopeias e nos Puranas. As epopeias são o Ramayana e o
Mahabharata, dois enormes poemas. O Ramayana foi compilado
entre os anos 200 a.C. e 200 da nossa era e o Mahabharata entre
os anos 400 a.C. e 300 da nossa era. Ambos são textos complexos
que incorporam di versos mitos, lendas e filosofias enquadrados
por uma extensa narrativa. Grande parte do seu conteúdo é sem
dúvida oriundo de tradições populares. Os estudiosos apresentam
a teoria de que a narrativa central do Ramayana começou como
uma balada entoada por bardos errantes para divertimento da
36 + Hinduísmo
Hinduísmo clássico e medieval + 37
corte. Essas histórias adquiriram autoridade como textos religio- deuses. Voltam para reclamar o seu reino no fim do décimo ter-
sos que se crê contarem os feitos dos próprios deuses com forma ceiro ano, mas Duryodhana recusa-se a devolvê-lo, de modo que
humana.
os primos envolvem-se numa enorme guerra civil. Vencem os Pan-
davas, mas ficam perturbados pelo derramamento de sangue e pela
O Mahabharata e o Ramayana
perda de familiares e amigos. Afinal, os dois grupos de primos ti-
nham crescido no mesmo local e as pessoas posicionadas nas duas
O Mahabharata, que tem aproximadamente 100 000 versos, frentes da guerra eram todas conhecidas umas das outras. Yudhis-
é o mais longo poema épico do mundo. Contém uma enorme htira entrega o governo do reino a um jovem parente e os cinco
quantidade de lendas e tradições, incorporadas numa narrativa
irmãos, com a sua esposa, partem para o refúgio de Indra, nos
unificadora acerca da guerra pelo governo do norte da Índia. O
Himalaias.
enredo principal fala-nos da descendência de dois irmãos. Dhrita-
O Ramayana tem apenas um quarto da extensão do Mahabha-
rashtra, o mais velho, era cego e foi portanto preterido no gover- rata e fala-nos também de uma luta pelo governo de um reino !erre-
no do reino do pai, porém, foi rei mais tarde, quando Pandu, o ai, mas desta vez o conflito é entre humanos e demónios. Dashara-
mais novo, morreu. Como governaram os dois, os descendentes
tha, rei de Ayodhya, tem três esposas que lhe dão quatro filhos,
de ambos afirmavam ser os seus legítimos sucessores. O conflito Rama, Lakshmana, Shatrughuna e Bharata. Rama é o mais velho e
do Mahabharata centra-se na luta pelo poder entre estes dois gru-
deverá ser o herdeiro do pai, mas a esposa mais jovem conspira para
pos de primos. A história é contada da perspectiva dos Pandavas, que o seu filho venha a reinar. Recorda a Dasharatha que este lhe
os cinco filhos de Pandu: Yudhistra, Bhima, Atjuna, Nakula e prometeu uma vez uma graça, quando ela lhe salvara a vida, e exige
Sahadeva, que se opunham a uma centena de Kauravas, chefiados
que ela seja cmuprida, fazendo do seu filho rei e banindo Rama
por Duryodhana. Quando os Pandavas desafiam o direito de durante catorze anos. O rei tem de manter a sua palavra e Rama até
governar dos Duryodhanas, o velho Dhritarashtra tenta mediar a o encoraja a isso, porque é o que está certo. Rama, a esposa Sita e o
paz, dividindo o reino em duas partes. Entrega o governo do
seu irmão Lakshmana vão vi ver para a floresta e o velho rei morre
Norte a Duryodhana e o do Sul a Yudhishtira. Há paz até Du- de desgosto. Bharata, o irmão que assim recebe o trono, não teve
ryodhana visitar o Sul e cair num lago do palácio, provocando a
nada a ver com o que se passou e fica muito infeliz ao chegar a casa
troça de Yudhishtira. Sentindo-se insultado, Duryodhana desafia e descobrir o que se passou. Vai para floresta e pede a Rama que
o primo para mu jogo de dados. Yudhishtira tem mu fraco pelo regresse, mas este insiste em ficar para cmuprir a promessa do pai.
jogo e perde todo o reino, incluindo Draupadi, a esposa comum Bharata volta então para Ayodhya, coloca as sandálias de Rama no
dos Pandavas. Os Kauravas tentam humilhar Draupadi, rasgando- trono e governa como regente até o irmão poder regressar.
-lhe o sari, mas ela reza, pedindo ajuda ao deus Crixna e o tecido
Entretanto Ravana, o rei demónio de dez cabeças que governa
torna-se infinito. Então os homens disputam uma última partida Lauka, consegue raptar Si ta da cabana de Rama na floresta e leva-a
de dados, acordando que quem perder será exilado durante doze para sua casa. Rama reúne um exército de ursos e macacos) com o
anos e passará o décimo terceiro ano incógnito, ou perderá o seu
qual combate os demónios. O seu melhor ajudante é Hanuman, o
reino. Yudhishtira perde de novo e os Pandavas, com Draupadi, general macaco, filho do rei do vento. É ele quem descobre onde
vão para a floresta.
Sita está presa. O exército de Rama constrói mua ponte sobre o oce-
Os 12 anos passados na floresta trazem muitas aventuras e ano até Lanka e consegue derrotar os demónios. Sita é resgatada,
uma imensidade de oportunidades para acrescentar outras histórias mas antes de Rama a receber de novo, deverá provar que se mante-
à narrativa principal. Durante o seu exHio os Pandavas recebem ve casta durante o cativeiro. Fá-lo caminhando desarmada por den-
ensinamentos especiais dos santos e divindades e adquirem pode-
tro de uma fogueira. Assim, Rama e a famHia regressam a Ayodhya,
res especiais, como o uso de armas mágicas e habilidades de ioga, onde a rigorosa devoção do rei ao dharma garantem ao seu povo
através de práticas ascéticas, estudo com sábios e bênçãos dos uma idade de ouro.
38 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 39

O dharma é um tema proeminente em ambas as epopeias. No peitados. Então, Crixna começa a ensinar Atjuna a viver uma vida
Ramayana, Rama coloca a honra e o dever acima de todas as dhármica.
outras considerações quando insiste em respeitar a promessa do Primeiro, Crixna explica que o corpo não é o eu, portanto
pai e aceita o exílio. Sita é um modelo dharma de esposa, seguin- não é verdadeiramente a pessoa que morre. O verdadeiro eu é o
do-o para o exílio e conservando sempre diante de si a imagem do atman eterno, que não pode ser morto. Limita-se a habitar o
marido como escudo para a sua castidade durante o cativeiro. O corpo, como um conjunto de roupas, e depois abandona-o na altu-
Mahabharata ilustra as dificuldades que surgem quando o dharma ra da morte, tomando outro na altura de reincarnar. Isto continua,
parece contrário às expectativas de boa e má conduta. É o respei- vida após vida, até o eu ser liberto do ciclo do renascimento. No
to pelo dever filial que faz com que Draupadi se torne esposa dos Bagavagita, Crixna delimita três caminhos que conduzem a esta
cinco Pandavas. Aijuna vem revelar a Kunti, sua mãe, aquilo que libertação: I) a disciplina do conhecimento ou jnana-ioga, 2) a
ganhou numa competição. A mãe, de costas para ele, diz-lhe que disciplina da acção ou carma-ioga e 3) a disciplina da devoção
deve dividir o prémio com os irmãos. O prémio é Draupadi. Kunti ou bakti-ioga.
não pode retirar a sua sentença, de modo que todos os filhos con- A disciplina do conhecimento é essencialmente a tradição
cordam em partilhar Draupadi, se esta aceitar o plano. Uma lição dos Upanixadas. Deve atingir-se um entendimento da verdadeira
de dharma, ainda mais difícil, ocorre no fim do Mahabharata, natureza do eu como o atman que tem as mesmas características
quando Yudhistira chega ao céu. Aí encontra Duryodhana, seu de Brama. A pessoa sábia, que conhece o atman, é serena porque
grande inimigo, gozando de recompensas celestiais, pois comple- está livre de desejos. Não tem ligações ou medos; não é afectado
tou o seu dharma de guerreiro. Enquanto que Duryodhana cum- pelo prazer nem pela dor, já que ambos são aspectos da mesma
priu os seus deveres no reino dos mortais, Yudhishtira está desti- realidade ..
nado a reincarnar uma vez mais, de modo a vencer os vestígios das O caminho da acção requer que a pessoa cumpra os seus deve-
ligações que ainda lhe restam. Esta ligação foi evidenciada quan- res de acordo com o varnashrama-dharma, mas fazendo-o sem liga-
do se recusou a entrar no céu a menos que o cão, que se tinha tor- ções aos resultados. Por outras palavras, as acções devem ser leva-
nado seu companheiro, fosse também admitido. O cão era afinal o das a cabo sem medo de castigo ou esperança de recompensa, mas
próprio deus Dharma. apenas por serem um dever. A tentativa de Aijuna abandonar as sua
obrigação, de lutar como guerreiro, conforme lhe era exigido, não
O Bagavagita era a solução correcta para o problema de se expor ao karman atra-
vés dos seus actos. Uma pessoa não se pode recusar simplesmente a
A questão de como reconciliar as aparentes contradições no cumprir o seu dever. Crixna faz notar que ele mesmo é a divindade
dharma e aplicá-las vida quotidiana é o tema central do Bagavagi- suprema que cria e mantém o cosmos. Se cessasse de actuar, o uni-
ta. O Bagavagita faz parte do Mahabharata. O texto é um diálogo verso deixaria de existir. Do mesmo modo, toda a gente deve levar
entre Arjuna, o maior guerreiro dos Pandavas e o deus Crixna, tám- a cabo acções apropriadas ao seu dharma. Mas estas devem ser rea-
bém reverenciado pelas seus dons marciais. Crixna tomou o papel lizadas sem o interesse pelos seus frutos. Se assim for, não produzi-
de cocheiro e antes do início da batalha, Arjuna e Crixna dirigem- rão o karman de ligação. A melhor maneira de conseguir esta sepa-
-se ao campo e vigiam os exércitos alinhados um frente ao outro. ração é oferecer todas as acções a Crixna. Depois, a pessoa pode tor-
Aijuna olha para as tropas de ambos os lados e vê parentes e ami- nar-se perfeita, se trabalhar no interesse de lokasangraha, para "o
gos agrupados de ambos os lados. Apercebe-se de que terá de matar bem do mundo".
aqueles que ama e, entrando em desespero, deixa cair o arco. Crix- Durante todo o os ensinamentos de Crixna incorporam
na tenta convencê-lo de que é seu dever combater, mas Arjuna não práticas religiosas na vida quotidiana. As acções que levam à
encontra meio de conciliar a necessidade de levar a cabo o seu libertação não se limitam a ser rituais de sacrifício, qualquer acti-
dever com a de evitar o pecado de matar os parentes e mestres res- vidade diária pode ser oferecida a Crixna. O que importa é a ati-
40 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 41

tude com a qual são realizados os actos e não o tipo de actividade. ção, Crixna toma o papel de salvador. O devoto progride através de
Deste modo, os beneficias das práticas religiosas tornam-se aces- esforço pessoal, mas também ajudado por Crixna. Este liberta da
síveis aos não-brâmanes. Não será preciso uma pessoa realizar servidão através da graça divina, garantindo a paz eterna. Crixna é
rituais sacrificiais ou passar anos a meditar, para conseguir a Jiber- uma divindade de salvação pessoal, mas é simultaneamente identi-
tação. Pelo contrário, ao oferecer a Deus as suas acções, o trabalho ficado com o impessoal Brama. No Bagavagita, o Absoluto impes-
vulgar torna-se um ritual de sacriffcio. A actividade do comporta- soal dos filósofos dos Upanixadas é misturado com o teísmo da prá-
mento ritual é interiorizada e equacionada com as actividades quo- tica religiosa popular.
tidianas.
O Bagavagita continua, descrevendo um terceiro caminho, bale-
ti-ioga, o cantinho da devoção. O caminho do conhecimento neces- Teísmo clássico e medieval
sita de tempo e treino, podendo apenas ser seguido com o acom-
panhamento de um professor pois é demasiado difícil para não-brâ- A época que se seguiu ao período épico é considerada a Época
manes sen1 experiência, mesmo que com recursos. Mas o caminho Clássica da civilização indiana. Durante esse tempo, a dinastia
da devoção é mais vulgar e acessível a toda a gente, incluindo mu- gupta estabeleceu um império que controlou grande parte do Norte
lheres e sudras, excluídos da participação na religião védica. A sin- da Índia, ao mesmo tempo que influenciava culturalmente os reinos
cera devoção a Crixna substitui todo o conhecimento e até acções. do Sul. O período gupta que se situa aproximadamente entre os
Diz-se que até quem faça mal pode conseguir a libertação se adorar anos 320-500 da nossa era, marca o ressurgimento do Hinduísmo
Crixna com uma devoção íntegra, já que esta o obrigará a ser vir- como tradição dominante do Sul da Ásia. O apoio estatal ao Hin-
tuoso e, assim, o levará à paz eterna. Se o devoto fizer de Crixna o duísmo levou ao aparecimento de grandes templos nos centros
centro de todos os momentos da sua vida, será liberto dos laços do urbanos e ao apoio para a elaboração de estudos relacionados com
c arma. a religião. Desenvolveram-se sofisticados sistemas de astrologia e
O bakti-ioga é muito semelhante ao carma-ioga: ambos des- astronomia para calcular o calendário ritual. A necessidade de uma
crevem modos de transformar a vida quotidiana num caminho para transmissão e recitação precisas dos textos shruti levou à criação de
a libertação. Além do mais, este estado a atingir deve ser um esta- elementos de gramática, etimologia, fonética e métrica. As escolas
do de conhecimento, portanto são omitidos os três caminhos. Os de filosofia teorizaram sobre cosmologia, a natureza divina e
diferentes ensinamentos não são exclusivos. São modos alternati- humana e a sua relação entre si, modos de conhecimento que criam
vos de atingir uma meta comum. No Bagavagita, os ensinamentos ignorância e servidão e outros que visam atingir o conhecimento
de Crixna incorporam os modos de vida dos diferentes níveis da superior e a libertação. Desenvolveram-se também outras áreas
sociedade numa forma de dharma mais alargado. Numa passagem, culturais relacionadas com a religião. A tradição médica era basea-
Crixna diz a Aijuna que é melhor cumprir o seu próprio dever de da nas ideias das escrituras sobre a correlação entre o corpo huma-
maneira imperfeita, do que cumprir bem um dever alheio (I 8, 47). no e o cosmos. Arte, música, dança e teatro centravam-se no mito
O texto sublinha o dharma básico das diferentes castas, mas é e no ritual. A arquitectura dos templos tomou novas formas e sig-
notável que os deveres dos brâmanes e xátrias sejam descritos por- nificados.
menorizadamente, enquanto se diz menos acerca do vaixiás e o A característica principal para a definição deste Hinduísmo
único dever atribuído aos sudras é servir (18, 41- 44). Mesmo clássico é o teísmo, um teísmo que eivava o ritual público e as prá-
assim, o texto oferece um modelo para a inclusão dos diversos ticas ascéticas. Nos rituais públicos, os grandes templos eram cen-
grupos dentro de tun sistema consistente com o mais tardio sin- tros de culto das divindades trazidas para dentro da esfera da auto-
cretismo hindu. ridade bramânica. Eram divindades locais, transformadas em deuses
A característica que separa o bakti-ioga do jnana-ioga e do universais através de uma identificação com Brama. Entre as tradi-
carma-ioga é a relação entre o devoto e Deus. No caminho da devo- ções ascéticas, o teísmo fundia-se com o ioga para formar o sistema
42 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 43

esotérico conhecido como Tantrismo. Popularizaram-se então ideias locais de peregrinação (tirthas), dádivas/caridade (dana), meios
sobre o Tantrismo, que foram reabsorvidas na corrente das tradições de subsistência, manifestações de seres superiores, libertação da
devotas. Desenvolveram-se novos sistemas teológicos para sinteti- reincamação e Brama como apoio subjacente ao cosmos. Estes
zar a filosofia dos Upanixadas com a devoção medieval e o ioga. textos oferecem uma janela para a verdadeira vida religiosa do
Depois, já no fim do período medieval, quando o norte da Índia era Hinduísmo, em toda a sua rica complexidade e miríade de mani-
governado pelos muçulmanos, o centro da vitalidade hindu transfe- festações.
riu-se para os poetas-santos, inspiradores de um movimento que Cada Purana tende a centrar-se numa determinada divindade
transcendia o ritualismo tradicional e acentuava as experiências pes- como Ser supremo responsável pela criação e ordenação do mundo.
soais da divindade. Os mitos acerca dos deuses explicam as origens dos locais sagrados
e dos rituais. As descrições filosóficas dos modos de comportamen-
Teísmo nos Puranas to correctos e objectivos de vida são relatadas em forma de conver-
sa entre sábios e divindades, ou mesmo entre os próprios deuses. Os
Os Puranas, "antigos" livros do período clássico e medieval deuses e as deusas discutem como devem ser realizados os rituais ou
são compêndios de mito, lenda e história que reflectem as populares o culto e as atimdes mentais que conduzem a metas como ficar
tradições teístas. Há 18 grandes Puranas, considerados escrituras liberto da reincarnação.
pela maioria dos hindus e muitos outros menores com autoridade O teísmo que domina os Puranas não era novo. Alguns dos
regional. Algumas escolas de Hinduísmo consideram-nos shruti ou Upanixadas comparavam Brama às divindades especificas. Porém,
revelação, tal como os Vedas. O conjunto dos Puranas e das epo- no Bagavagita, Crixna é uma divindade salvadora, bem como o
peias designa-se muitas vezes como o Quinto Veda e como estes deus que cria e governa o cosmos. O papel de Crixna como salva-
textos são acessíveis a toda a gente, independentemente da casta, dor torna-se explícito quando diz que entra no mundo para bem dos
têm de facto uma muito maior influência do que os quatro W,das ori- seus devotos.
ginais. Ao contrário daqueles, estes textos nunca foram codificados
para utilização em rituais. Foram passados como tradição oral, com Sempre que existe um decréscimo da equidade, Atjuna,
numerosas variações locais e escritos em diferentes épocas e luga- E há um crescimento da iniquidade, então, Eu manifesto-me.
res) em versões vernáculas e sânscritas. O conteúdo dos Puranas Para a protecção do deus e destruição dos malévolos,
individuais mostra uma evidência de interpolações e acrescentos Para bem do estabelecimento da equidade, eu nasço em cada época.
que tornam quase impossível datar claramente os textos. De um (BG. 4.7-8)
modo geral, grande parte dos elementos foram provavelmente cria-
dos por volta do fim do período gupta (c. 500 da era cristã), mas os Nesta passagem, Crixna explica aquilo a que se haveria de
acrescentos continuaram a ser feitos até muito tempo depois. Uma chamar a doutrina avatara. A palavra avatara significa "uma des-
data alargada para os 18 grandes Puranas, seria entre os anos 400 e cida, uma incarnação". Sempre que há algum problema no mundo,
1000 da nossa era. Deus toma a forma física e desce para restabelecer a ordem.
Segundo a tradição, os Puranas têm cinco tópicos: a criação Assim, Crixna não é apenas o cocheiro de Arjuna, é uma forma do
do mundo, a dissolnção do mundo, as épocas do mundo, genealo- Deus supremo que cria, mantém e destrói o universo. No Bagava-
gias e histórias sobre os descendentes das dinastias descritas nas gira, Atjuna é autorizado a entrever a forma cósmica de Crixna.
genealogias. De facto, estes tópicos são apenas uma fracção do Vê todo universo, sol, estrelas e planetas e toda a gente reunida no
conteúdo purãnico. Outros, que receberam maior atenção, incluem campo de batalha, dentro do corpo de Crixna. Este diz-lhe que
os quatro objectivos da vida (que são riqueza, prazer, dever social tudo o que existe faz parte de si, mas que não está limitado a isso.
e a libertação da reincarnação), observâncias religiosas (vratas), Por outras palavras, tal como o Purusha védico estendeu dez vezes
rituais para os antepassados mortos (shraddha), descrição de o comprimento de um dedo, para lá do universo criado, também
44 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 45

Crixna é todo o cosmos e mais ainda. Como avatara do Supremo, Porém, a manifestação de Vixnu não está limitada aos ava-
a divindade é simultaneamente o transcendente Brama e o ima- taras. Segundo a história da criação Vaixnava, todas as divinda-
nente Crixna. Isto junta a filosofia bramânica ao teísmo popular. des provêm de Vixnu. Vixnu é Brama, a causa e substância <lo
A equiparção de uma divindade a Brama torna-a naturalmen- cosmos. É simultaneamente o consciente purusha e o material
te suprema. Mas havia muitos deuses e deusas no Sul da Ásia e o prakriti, os dois princípios primordiais da filosofia Samkhya,
povo não desistia das suas tradições locais, por ter simplesmente bem como o tempo (kala) que provoca a ligação e a separação de
adoptado a crença num Princípio supremo. Pelo contrário, o Hin- purusha e prakriti. Na antiga teoria Samkhya, os princípios pri-
duísmo desenvolveu modos de incluir as múltiplas divindades mordiais estavam fundamentalmente separados, mas nos Pura-
dentro da filosofia bramânica. Assim, as diferentes divindades nas fazem todos parte do infinito Vixnu. A criação começa quan-
acabaram por ser vistas como manifestações da que é Suprema. O do Vixnu perturba o equilíbrio das três qualidades (gunas) de
único Brama tomou todas as diversas formas do universo revela- prakriti, fazendo-o desenvolver os elementos da existência. Este
do, o que incluía os vários deuses e deusas descobertos nas tradi- elementos reúnem-se para formar um vasto ovo que descansa nas
ções regionais. Este sistema de múltiplas formas divinas estendia- águas cósmicas. Yixnu entra neste mundo-ovo como deus cria-
-se para lá dos deuses, incluindo imagens sagradas, escrituras e dor, Brama e encarrega-se da criação. Toma depois o papel de
santos. Vixnu, aquele que preserva e mantém a ordem no cosmos. Torna-
Surgiram três tradições básicas definidas pela divindade identi- -se finalmente Xiva, o destruidor, e dissolve a criação no grande
ficada como Suprema, da qual surgiram todos os outros deuses e oceano.
deusas. Os que consideram Vixnu como o deus mais importante Vixnu dorme então nas águas até ser tempo de uma nova
chamam-se Vaixnavas. Os que nomeiam Xiva como Suprema são criação. Na arte hindu aparece muitas vezes a imagem do deus
os Xaivas . Os devotos de Devi, a deusa, chamam-se Xaktas por- dormindo sobre uma serpente que flutua no oceano. A criação
que o cosmos manifesta-se em Xakti, uma energia feminina. Estas recomeça na altura em que um lótus cresce no umbigo de Vixnu
são as três grandes divindades que dominam a literatura purânica e e Brama surge <la flor para criar de novo os mundos. Este é um
são o centro do Hinduísmo desde a época clássica aos tempos nível secundário da criação, pois a destruição do cosmos não vol-
modernos. tou a reverter para o prakriti unificado. Dentro destes períodos de
actividade e descanso há os ciclos mais pequenos da criação. O
Vixnu menor é formado por quatro épocas. A primeira é o período idi1i-
co em queo dharma é forte, mas nos subsequentes, o dharma
Das três grandes divindades, é Vixnu que se enquadra mais facil- entra em declínio. O quarto período denomina-se Kali Yuga, a
mente na filosofia bramânica. É descrito como um deus rei muito pre- Idade das Trevas, em que o dharma é mais fraco e as pessoas dei-
ocupado com o dharma. Está irrevogavelmente associado à doutrina xam de cumprir os seus deveres ou mesmo de lutar pela virtude.
avatara. É Vixnu que entm no mundo para preservar a ordem, sem- O mundo está actualmente num Kali Yuga que teve inicio em
pre que a iniquidade ameaça. A ideia de sucessivas incarnações per- 3102 a. C .. Quando dharma está completamente esgotado, o
mitiu-lhe absorver outras divindades, reunindo assim diferentes tra- mundo é destruído e recriado para que se inicie uma nova Idade
dições religiosas num único sistema. Por exemplo, nos Vedas incar- de Ouro. O conjunto das quatro épocas, chamado manvantara ou
nou num anão para reclamar o universo aos demónios que tinham "vida de Manu", dura 4 320 000 anos. Mil destes rnanvantaras
desapossado os deuses. O número de incarnações varia conforme os formam um dia de Brama. A cada dia segue-se uma noite de
Puranas, mas a tradição mais popular apresenta dez avataras. Des- Brama, durante a qual Vixnu dorme. Um dia e uma noite perfa-
tes, os mais reverenciados, são Crixna e Rama, heróis que asseguram zem um ka/pa. Em seguida, Yixnu desperta e há um novo ka/pa.
o triunfo do dharma no Mahabharata e no Ramayana. Depois de 100 anos de 360 dias e noites, todo o processo de cria-
ção recua até Vixnu ter absorvido de novo em si próprio purusha,
46 + Hinduísmo Hindulsmo clássico e medieval + 47

prakriti e o tempo. O sistema cíclico do tempo experimentado do a Brama como fonte do universo no Shvetashvatara Upanixada.
pelas pessoas que são apanhadas pela roda da reincarnação é Faz várias aparições nas epopeias, em que ensina, outorga conheci-
amplificado a nível cósmico. mentos e recompensa os que praticam as austeridades do ioga. Pare-
Pensa-se que os diferentes avataras aparecem para suprir as ce claro que a divindade tem uma longa história dentro das tradições
necessidades das épocas específicas. Vixnu incarnou em Rama na ascéticas não-bramãnicas, sendo admitido de má vontade na tradição
época anterior, enquanto existia ainda dharma suficiente para pos- principal. A relutância em incluir Xiva no Bramanismo é ilustrada
sibilitar a sua governação íntegra. Depois, quando começou a pela história de Sati.
Idade das Trevas, as práticas religiosas tiveram de ser modificadas Sati era esposa de Xiva e filha de Daksha. Soube um dia que o
e foi com esta intenção que Vixnu tomou a forma de Crixna. Não pai ia realizar um ritual de sacrifício e que tinha convidado todos os
só auxiliou os Pandavas durante a grande guerra, mas também deuses excepto Xiva. Humilhada pelo desprezo a que fora votado o
ensinou o caminho da devoção, atalho para a salvação quando marido, suicidou-se através do fogo do seu poder de ioga. Xiva
existe tão pouco dharna no mundo e não basta o esforço de cada enraiveceu-se, tomou uma forma terrível, destruiu o sacrifício e
um. matou Daksha. Depois fê-lo ressuscitar bem como ao sacrifício e o
O Crixna dos Puranas poucas semelhanças tem com o conse- ritual prosseguiu já incluindo Xiva.
lheiro divino do Bagavagita. As histórias purânicas centram-se Nos Puranas Xaiva, Xiva é o absoluto, o Deus responsável
em Crixna, ainda pequeno, que mata miraculosamente aqueles pela criação, preservação e destruição do cosmos. Parama Xiva
que são enviados para o assassinar, o menino travesso que conduz (Xiva Supremo) cria, dividindo em dois aspectos, o masculino Xiva
as outras crianças da cidade para dentro e para fora de situações e o feminino Xakti. Xakti, o poder activo do divino, é a agente da
difíceis, o jovem divino que encanta as gopis (ordenhadeiras) criação. Torna-se manifesta em todos os nomes e formas do cosmos.
com a música que extrai da sua flauta e que dança com elas na A unificação destes dois aspectos é ilustrada numa imagem de Xiva
floresta com a metade direita do seu divino corpo tomando forma masculi-
na e a esquerda feminina. Xiva e Xakti estão também unidos no
Xiva Xiva lingam, um falo que descansa dentro de um yoni circular, que
representa a feminina Xakti.
Xaiva confere a Xiva o papel supremo e vê Vixnu e todas as Embora Xiva seja conhecido como destruidor e as suas ten-
outras divindades como formas do seu grande deus. Xiva foi des- dências ascéticas associadas a formas ferozes, há também relatos
crito como uma divindade paradoxal por ser simultaneamente um da sua compaixão e protecção. Quando os deuses e os demónios
renunciante, um chefe de família, um iogui celibatário e um marido. queimaram o oceano para obter o néctar da imortalidade soltaram
Porém, não se trata de uma contradição no sistema de crença hindu, um veneno que ameaçava destruir toda a vida. Xiva engoliu o vene-
já que o ascetismo gera energia interna, intimamente ligada à ener- no, que era tão forte que lhe manchou a garganta de azul. As ima-
gia sexual. A força dessa energia pode ser ao mesmo tempo criativa gens do deus mostram normalmente esta diferença de cor e também
e destrutiva e o Xivismo acentua o extraordinário poder e diversi- um rio a correr-lhe do cabelo desgrenhado. Trata-se do rio Ganges,
dade de Deus, descrevendo Xiva simultaneamente como criador e que desce dos céus em cascata até ao mundo mortal. As águas
destruidor. Diversas seitas suas seguem práticas que não fazem teriam destruído a terra se tivessem tombado com toda a sua força;
parte do sistema bramânico. Isto, combinado com as pistas encon- assim, Xiva apanhou o rio com o cabelo e amorteceu a força do
tradas nos mitos de Xaiva, sugere que Xiva possa ser uma divinda- impacto.
de não ariana. Xiva é também conhecido como Nataraj, o deus da Dança. A
Xiva não representou um papel nos hinos védicos, embora mais imagem deste deus a dançar, captada com tanta beleza nas escultu-
tarde se identifique com Rudra, divindade védica. É mencionado ras de bronze dos reinos cholaga do Sul, é um tratado compacto de
nalguns Upanixadas e descrito como divindade suprema, equipara- teologia xaiva. Representa a criação e a destruição, o controle e o
48 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 49

Lingam Deusa suprema foi o Devi Mahatmya, compilado entre os séculos


de Xiva quinto e sétimo da nossa era. Neste texto, a deusa intervém três
com yoni vezes para destruir demónios que ameaçam o mundo. Primeiro,
num pedestal impede dois de interromperem o processo de criação. O seu segun-
de /ótus. do aparecimento é como a guerreira Durga, inspiração para uma das
suas imagens mais populares. Um demónio chamado Mahisha
derrota os deuses numa batalha, de modo que apelam a Xiva, Brama
e Vixnu. Quando estas divindades sabem do que está a acontecer,
enfurecem-se. Depois dos seus rostos irados surgem três luzes que
se fundem, transformando-se numa bela Deusa. É Durga, que vai
derrotar Mahisha com as armas de cada um dos deuses. Tem tam-
bém o dom de emanar de si outras deusas, tal como quando Durga
se zanga e a sua ira toma a forma de Kali, deusa das trevas, que
triunfa sobre outro demónio. A terceira intervenção importante tem
também lugar na batalha, quando a Deusa, como Ambika, atrai a si
todas as suas múltiplas formas, incluindo Kali, para matar os demó-
nios Shumbha e Nishumbha. No fim do texto, os deuses louvam-na
como mãe do universo e ela promete proteger a sua criação sempre
que necessário.
Assim que a ideia de uma Deusa suprema conseguiu aceita-
ção. todas as deusas passaran1 a ser formas de Devi, a Única.
Devi é a força activa, a Xakti, que se manifesta como o universo.
abandono, a transcendência e a imanência. A criação ergue-se do É a mãe de tudo, mas não se limita a ser uma suave figura mater-
tambor numa das mãos, uma segunda mão faz um gesto tranquili- nal, pois incorpora tanto o poder criativo, como o destrutivo.
zador, prometendo protecção, enquanto uma terceira mão transpor- Pode ser representada como Lakshmi, a deusa da boa fortuna,
ta o fogo da destruição. Por baixo do pé do deus está um anão que oferecendo recompensas, ou como Kali, a deusa das trevas do
representa o mal cósmico e a fraqueza humana, ambos vencidos campo de batalha, bebendo o sangue dos inimigos. Estas formas
pela graça de Xiva. A própria dança chama-se "dança da destrui- não são antitéticas, mas sim duas ilustrações do poder de Devi,
ção". Mas, a nível cósmico, a destruição é o prelúdio da recriação e representando ao mesmo tempo os aspectos doce e feroz com os
a nível pessoal a destruição é o meio de soltar os laços que ligam o quais cuida do mundo. Quando é a terna Lakshmi, a deusa trata
devoto ao ciclo da reincarnação. dos seus devotos com benefícios mundanos, quando está enfure-
cida, destrói os inimigos que ameaçam o mundo. A harmonia
destes dois aspectos é ainda mais evidente no modo como os
Devi devotos, que se dirigem a Kali como "Mãe", fazem a alegoria da
sua forma feroz. A faixa de braços cortados que a deusa das tre-
Embora algumas divindades femininas sejam veneradas nos vas tem à volta da cintura, representa o carma do qual resgata os
Vedas, antes dos Puranas há poucos testemunhos de adoração de seus dedicados filhos e a grinalda de cabeças decapitadas à volta
uma Deusa como divindade suprema. Porém, aparecem muitas deu- do pescoço simboliza as falhas humanas, tais como a avidez e a
sas locais em vários textos e estas foram por certo incorporadas gra- luxúria, que ela destrói para que os seus devotos possam atingir
dualmente na tradição bramânica. A primeira obra a glorificar a a libertação.
50 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 51

das de ouro. É a deusa da boa fortuna, que trás prosperidade aos


seus fieis. A sua imagem ornamenta as moedas indianas, enquanto
que todos os anos se realiza o Divali, ou festival das luzes, para
invocar o seu auxílio.
Uma das maneiras como as deusas do Sul da Ásia estão rela-
cionadas é através de um mito que confere origem comum aos seus
locais sagrados. Neste relato, Sati, esposa de Xiva, morre como já
foi descrito na história de Xiva e Daksha. Desgostoso, Xiva pega
no corpo dela e leva-o pelo mundo (Ímlia). O seu alvoroço provo-
ca uma perturbação cósmica, de modo que Vixnu o segue e corta
bocados do corpo de Sati, até Xiva se encontrar de mãos vazias e
conseguir põr de lado o desgosto, voltando então para a morada da
montanha, onde mergulha e profunda meditação. Os locais da terra
onde caíram os bocados do corpo de Sati ficaram sagrados, tornan-
<.lo-se santuários das várias deusas. A história mostra ainda a asso-
ciação física entre a Deusa e a terra da Índia que, nos tempos
modernos, foi personificada como a divindade Bharat Mata, a Mãe
Índia.

Divindades secundárias

Há numerosas divindades vagamente combinadas com Xiva,


Vixnu e Devi, que realmente retêm as suas identidades. Uma delas
é Ganesha, o deus com cabeça de elefante, que é filho de Parvati e
enteado de Xiva. Ganesha é um dos mais largamente venerados deu-
ses da Índia e encontram-se pequenas imagens <.!ele sobre as portas
de muitas casas. É conhecido por eliminar obstáculos, de modo que
A grande deusa Durga, representada aqui cavalgando um tigre, é con- as pessoas lhe fazem oferendas antes de empreender qualquer tare-
siderada o princípio activo que triunfa sobre as forças demonfacas. fa. Outra divindade relacionada com Xiva, é Murukan, o mais popu-
lar da tradição tamil. Embora Murukan tenha uma longa história
Embora todas as deusas estejam teoricamente agrupadas em como deus da guerra não-bramânico, acabou por ser identificado
Devi, as entidades individuais são adoradas por direito próprio. com Skanda, filho de Xiva. No sul da Índia realizam-se grandes fes-
Duas das mais populares são Sarasvati e Lakshmi. Sarasvati é co- tas em honra deste deus. Hanuman, o macaco que ajudou Rama no
nhecida como a deusa da aprendizagem, sendo também patrona da Ramayana, também criou adeptos e é venerado como o perfeito
música. Vestida de branco e montada num cisne, toca um instru- exemplo da devoção.
mento de cordas chamado vina e segura um manuscrito e um fio de Além <lestes, há ainda inúmeras divindades regionais, perten-
contas. O manuscrito liga-a à escritura e, nalgumas tradições, diz-se centes a aldeias. Muitas são deusas que protegem determinadas
que criou ela própria o devanagari, o "texto divino" em que o sâns- terras e são normalmente representadas em forma não pictórica,
crito está escrito. Lakshmi é muitas vezes representada de pé, sobre muitas vezes junto a um pote de água, uma árvore ou pedra coberta
um lótus, ladeada por elefantes, enquanto das mãos lhe caem moe- de tinta vermelha, ou um espinheiro a que são atadas tiras de pano.
52 + Hinduísmo
Hinduísmo clássico e medieval + 53

lação que tem raízes tão antigas como o Purusha Sukta do Rigveda,
foi elaborada em textos chamados Tantras. A maior parte deles data
do século XVIII da nossa era ou são até posteriores. Neles a filoso-
fia esotérica ioga está misturada com o teísmo popular. Daqui surge
um novo conjunto de práticas que são depois reabsorvidas noutras
tradições<1J.
Basicamente, o Tantrismo elabora ideias já conhecidas da filo-
sofia Samkhya acerca do alcance da libertação do conhecimento
através de práticas de iogas destinadas a reverter o processo de
criação, mas sendo a interpretação de tal processo adaptada à cos-
mologia purãnica. A criação é originada pela divisão de Brama em
dois aspectos, um masculino e outro feminino. Estes são identifi-
cados com Xiva e Xakti por Xaiva ou Xakta Tantries, conhecidos
como Vixnu e Shri Lakshmi no Vaixnavismo shri e referidos como
Crixna e Radha, no Vaixnavismo gaudiya. Xakti, o aspecto femi-
nino, desenrola-se então em todas as formas do cosmos. O proces-
so de criação passa de um estado não-manifestado a uma forma
subtil e depois a uma manifestação material. No Tantrismo, o todo
não-manifestado recebe muitas vezes o nome de ShahdaBrama ou
Num aparente milagre, em 1995, o leite escorre lentamente de uma colher Brama como a Palavra, e o processo do desenrolar de Xakti é o de
para a tromba de uma estátua de Ganesha. O deus de cabeça de elefante é um som subtil que se torna audível.
adorado como criador e o que remove obstáculos (ver página 84). O corpo humano é um produto deste processo de manifestação
tal como todo o cosmos. Como a Xakti que se transforma no uni-
Os aldeãos podem reconhecer estas divindades como manifestações verso, também vem a ser o indivíduo, o corpo é um microcosmos do
locais dos grandes deuses, cujas imagens residem nos templos, mas universo, com níveis suhtis e materiais. Assim é possível reconsti-
abordam-nos a maior parte das vezes como forças independentes. tuir o processo da criação dentro do corpo humano. Através deste
Uma segunda categoria de divindades locais é constituída por seres reverter da criação, Xakti é reunificado com Xiva e o individual
humanos que foram divinizados. Há dois tipos de seres neste grupo: consegue libertar-se da reincarnação.
heróis e espíritos infelizes. Os heróis são pessoas que viveram vidas O Tantrismo apresenta descrições precisas deste processo.
extraordinárias, principalmente com um dharma perfeito. Os espíri- Xakti está adormecido no corpo, na base da espinha, como energia
tos infelizes são os que morreram em más circunstâncias. Tornam-se Kundalini. Quando a Kundalini desperta, ergue-se através da
então espíritos perigosos, que permanecem junto aos vivos, fazen- coluna vertebral. Dentro do corpo, passa pelos centros específicos
do-lhes mal. Estes espíritos devem ser apaziguados com oferendas chamados chakras. O número de chakras varia nos textos, mas a
para se afastarem da maldade. descrição clássica nomeia seis centros, cada um deles associados
com letras do alfabeto e divindades específicas. Por fim, o Kun-
dalini-Xakti chega ao alto da cabeça, morada de Xiva e os dois
Teísmo e Tantra fundem-se de novo como Brama, o Todo assexuado e não-mani-
festado. Enquanto decorre este processo, o discípulo adquire pode-
O poder dos espíritos e heróis reflecte a correlação entre a res especiais de controle mental e físico. Também deverá adquirir
humanidade e a divindade que impregna o Hinduísmo. Esta corre- capacidades mágicas, como a levitação.
54 -+ Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval -+- 55

O processo requer uma cuidadosa disciplina sob a orientação mo era aberto a homens e mulheres de todas as castas; o requisito
de um mestre espiritual qualificado, um guru, que adequa as práti- para empreender tal caminho era um desejo sincero de libertação e
cas ao discípulo individual. O guru retira a sua autoridade da reali- a iniciação feita por um guru.
zação espiritual pessoal e da capacidade de auxiliar os outros a con- O Tantrismo desenvolveu duas escolas distintas: a ala esquer-
seguirem a iluminação. Diz-se que é espantoso encontrar um pro- da do Tantra e a ala direita do Tantra. A ala esquerda encontrava-se
fessor qualificado que possa conduzir a pessoa à realização, pois completamente fora da tradição bramânica. Esta escola utilizava
poucos possuem o conhecimento e apenas alguns entre estes têm uma prática que ia contra as regras habituais, para ajudar os discí-
disposição para ensinar. Pessoas assim deverão ser veneradas pulos a ultrapassar os limites da sua percepção acerca da natureza,
mesmo até acima de Deus, pois é pela graça do guru que o devoto do eu e do mundo. O objectivo era ser como a pessoa sábia que
atinge o conhecimento do Senhor. Os gurus tântricos pertenciam a aderira aos princípios dos Upanixadas e do Bagavagita, aquele que
linhagens de mestres e não precisavam de ser brâmanes. O Tantris- tudo vê, como Brama, e que não diferencia o prazer ou a dor. Uma
pessoa assim encontrar-se-ia liberta das restrições das normas
sociais. Utilizava-se um sistema de violação das regras religiosas
normais para purificar o aluno. Isto incluía o consumo ritual de
substâncias proibidas tais como carne, peixe. álcool e grão seco,
bem como a prática de relações sexuais rituais. Normalmente pen-
sava-se que estas coisas inibiam a realização religiosa, de modo
que os tântricos utilizavam-nas para aprender o verdadeiro des-
prendimento. A escola Direita não se envolvia nestas acções tradi-
cionalmente impuras e advogava a adoração mental em substitui-
ção dos rituais externos.
Há de facto muito poucos grupos tântricos no Sul da Ásia e
o número dos seus membros é muito reduzido, mas as ideias tân-
tricas passaram a fazer parte da tradição. A utilização de mantras
está muito difundida. Os nomes dos deuses tornaram-se mantras,
imbuídos de todo o poder daqueles que identificam. Os devotos
de Crixna que entoam H are Rama Hare Krishna, "salvé Rama,
sal v é Crixna", recitam um mantra que é também uma prece. Os
yantras, também conhecidos como mandatas, são largamente
utilizados na meditação e encontram-se na arte do pavimento dos
templos.
Os poderes especiais que se supõe desenvolverem-se como
efeitos colaterais da prática tântrica são parte de uma crença mais
alargada que diz que a realização religiosa traz consigo capacidades
invulgares. Mesmo nos 1kdas, aparece a descrição de alguém com
conhecimentos nestas escrituras corno tendo atributos divinos. No
Yoga Sutra, o adepto do ioga tem o mesmo tipo de poderes que o
tãntrico. Na cultura rural os ioguis são muitas vezes abordados com
O yantra é um diagrama que simboliza a relação de Xiva e Xakti, que pedidos de ajuda para problemas do dia-a-dia. Pedem-lhes que aju-
serve de ponto de convergência para o espírito em meditação. dem as mulheres a conceber, que curem doenças e até que façam
56 + Hinduísmo Hindulsmo oláseico é médieval + 51'

chover em tempos de seca. Deste modo o iniciado humano tem mui-


tos dos poderes do herói divinizado.
O som tem grande )loder no Hindu- 0 p d
ísmo. No primeiro período védico, era er()
Filosofia e devoção combinadas através dos sagrados que o sacer- do Som
dotes cornumcavarn com os deuses.
Vedanta, o "fim dos Vedas", é o nome dado à filosofia mais Mais tarde, o próprio som identificado
influente do período medieval. Há, de facto, várias escolas distintas como Brama, acabou por ser a personi-
dentro do Vedanta, cada uma delas com os seus grandes mestres e ficação do poder divino e a essência
doutrinas. O ponto essencial destas escolas é o entendimento da subjacente ao universo. Alguns Puranas
relação entre Brama e atman, baseado na interpretação de trés descrevem o som como o meio através
obras: os Upanixadas, o Bagavagita e o Brahma Sutras. O Brahma do qual o Brama não-manifestado se
Sutras (c. do primeiro século da nossa era) contém aproximada- transforma no cosmos. O som continua
mente quinhentos aforismos que se julga resumirem a sabedoria dos a representar um papel importante na
Upanixadas, mas estas frases concisas são difíceis de entender, de prática religiosa através do uso dos
modo que os Vedantins as interpretaram em relação aos outros dois mantras. No Tantra correlacionam-se
textos. mantras específicos com os chakras do
corpo subtil. Os sons como o mantras
Advaita Vedanta formam o corpo humano, o corpo divino
e o cosmos através destas correlações.
A tradição Vedanta mais vulgar no ocidente está associada a O significado cósmico do som pode ser demonstrado com o
Sankara (c. 788-820 da era cristã), o filósofo que primeiro reuniu mantra OM (ou AUM). OM é compreendido como, simultanea-
uma interpretação coerente dos textos que vieram a formar a base do mente, som equivalente ao cosmos e o meio de criação cósmica. É
Vedanta. A filosofia de Sankara denomina-se Advaita Vedanta, Brama em forma de som. Isto faz do OM um meio de libertação,
"Vedanta não-dual", porque descreve Brama como sendo não-duplo. pois o entendimento de que tudo tem OM como essência subtil, é
Há apenas uma realidade que é Brama. O atman individual é idênti- também a percepção da verdadeira natureza de atman e Brama. Os
co a Brama (conforme ensinam os Upanixadas). Mas as pessoas componentes do mantra ilustram a progressão de consciência, da
vêem-se como entidades distintas num mundo de formas diversas ignorância ao esclarecimento. O som A representa a percepção nor-
devido a maya, "ilusão". Ao compreender essa ilusão, a pessoa mal do estado de vigília, U é o estado de sonho centrado no interior,
apercebe-se de que não há nada senão Brama. Depois o ciclo da M é o estado de sono profundo e o silêncio que se segue é a pura
reincamação termina e, na morte, o atman individual funde-se com tranqnilidade do entendimento.
Brama. Nas tradições devotas, os maiores mantras são nomes de deuses.
O caminho de Sankara para a libertação é essencialmente um Ao repetir constantemente um nome divino, o devoto recorda-se
ioga de conhecimento. É através da percepção de Brama que a ilu- continuamente de Deus. Esta repetição purifica o corpo e o espírito
são é vencida e se atinge o entendimento. O Brama que as pesso- e atrai a graça divina. Bhaktas também entoa mantras. As teorias
as percebem é infinito e inqualificável como nos Upanixadas. estéticas ligam algumas escalas musicais e melodias com diferentes
Mas há também Upanixadas teístas e Sankara combinou-os com estados de humor. As melodias podem evocar sentimentos de devo-
a sua filosofia, descrevendo dois níveis de Brama saguna e nir- ção, serenidade ou elúàSiadá beatitude. Quando o nome de Deus é
guna. Saguna Brama é o Brama com atributos, o Senhor pessoal entoado numa determinada melodia, o próprio som provoça nns pes--
que cria, mantém e destrói, o Deus que recebe sacrifícios e é soas a consciência do divino. '
58 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 59

objecto de devoção. Este Senhor é um foco apropriado para os que e vive em comunhão eterna e beatífica com o Senhor. Tem de haver
ainda não conseguem compreender a verdade mais elevada do uma distinção entre a alma e Deus para tomar possível esta relação.
supremo Deus não-manifestado que é o nirguna Brama. Deste A escola de Ramanuja inverte a hierarquia de saguna e nirguna
modo, carma-ioga e bakti-ioga são incorporados no Advaita estabelecida por Sankara. Aqui, a experiência do atman fundido
Vedanta como estádios preparatórios que treinam o devoto para num Brama inqualificável (que é a mais importante realização de
jnana·ioga. Advaita Vedanta) é um estádio preliminar de purificação, anterior ao
Sankara fundou a ordem monástica Dashanani para o seus eu recuperar uma sensação de identidade pessoal para passar a atin-
seguidores e fundou mosteiros (chamados maths) onde os discípu- gir o estádio mais elevado de permanente comunhão com o Senhor
los podiam estudar os seus ensinamentos. Os seus seguidores viaja- pessoal. Este não-dualismo qualificado é muito mais aproximado do
ram pelo Sul da Ásia, para espalhar a sua filosofia. Os chefes dos Hinduísmo doméstico e do templo do que da filosofia monástica de
maths sankara estão ainda entre as mais respeitadas autoridades reli- Sankara. A teologia de Ramanuja combinou a filosofia dos Upani-
giosas da Índia. xadas com a experiência da devoção a um Deus pessoal, populari-
zado no sul da Índia pelos grandes poetas-santos.
Vishishta-advaita Vedanta

O sistema de Sankara, que não foi concebido para a vida de O movimento Bak1i
chefe de família nem para uma baixa devoção teísta, é muito menos
representativo da maioria do Hinduísmo do que os ensinamentos de A filosofia Ramanuja reflecte a poderosa influência da devo-
Ramanuja. Ramanuja (c. 1025-1137 da era cristã) utilizou o teísmo ção no desenvolvimento do Hinduísmo medieval e moderno. O
da literatura medieval na sua interpretação dos textos do Vedanta movimento bakti (piedoso) começou no Sul da Índia no século
para formular a escola denominada Vishishta-advaita ou "não-dua- sexto da nossa era e espalhou-se para norte. Este movimento sur-
lismo qualificado". Aqui, o supremo Brama é o Senhor pessoal; por giu das experiências religiosas dos poetas-santos que viajavam de
outras palavras é Brama com atributos. Brama é a base da existên- local sagrado em local sagrado, entoando hinos aos deuses. Os
cia, mas as almas individuais e a matéria são partes eternamente dis- santos vinham de todos os níveis sociais, incluíam mulheres e
tintas de Brama. Assim, embora Brama seja tudo, por conseguinte homens e usavam as línguas vernáculas, em vez do sânscrito, para
não-dual, esse não-dualismo é qualificado pela existência divina das exprimir a sua devoção. Portanto, faziam parte do mundo religio-
almas e da matéria. so popular e não da elite sacerdotal. Porém, tão grande era o seu
Como as almas e a matéria existem eternamente dentro de impacto, que até os teólogos brâmanes os reconheciam como
Brama, o mundo é real e as almas retêm a sua individualidade devotos ideais e as suas canções eram incorporadas nas liturgias
mesmo na libertação. As almas individuais são apanhadas em sam- do templo. Assim, os poemas pios acabaram por ser misturados
sara devido a ignorância e karman. Esta servidão pode ser ultrapas- com as tradições sacerdotais, de modo que as experiências dos
sada por meio de três tipcs de esforço: 1) acção com desprendimen- poetas-santos influenciaram interpretações teológicas, tais como
to; 2) estudo de Vedanta para compreender a natureza de Deus, alma as obras de Ramanuj a.
e matéria: 3) devoção (bakti). Ramanuja descreve esta devoção
como uma auto-entrega e uma contemplação constante de Deus. O movimento Bakti inicial
Estas três actividades levam ao mais elevado bakti, que é o conhe-
cimento imediato e intuitivo de Brama. O primeiro grande ímpeto para o movimento bakti chegou da
Este Brama é um Deus pessoal que possui atributos perfeitos, região do Tamil, no Sul da Índia. Havia dois grupos anteriores de
tais como a onmisciência e a omnipotência. A alma liberta, livre de poetas-santos, os 12 Alvars, que cantaram Vixnu e os seus avataras
toda a ignorância e karman negativo, torna-se semelhante a Brama do século VI ao século IX, e os 63 Nayanars, que louvaram Xiva
60 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 61

entre os séculos VI e XII. Ambos se encontravam no Sul da Índia, Entre os séculos XIII e XVII, a maior parte destes poetas-san-
mas a sua influência espalhou-se por todo o subcontinente. tos viviam no Norte e na Índia Ocidental. Muitos atraíam grandes
O tema principal nas obras dos Alvars era a graça salvadora de grupos de seguidores, alguns dos quais continuam até hoje como
Deus. Os seus cânticos descrevem os esforços de Vixnu para auxi- seitas hindus distintas. Como os primeiros santos tamil, os do Norte
liar as pessoas, entrando no mundo como um avatara ou passando provinham de todas as classes sociais e de ambos os sexos, bem
a residir na imagem de um templo. Cantavam frequentemente tanto como de diferentes seitas, venerando divindades diferentes, mas
Vixnu como Crixna, mas realçavan1 este último como o jovem e partilhavam a experiência pessoal da presença do divino no mundo.
amado vaqueiro, em vez do temível mestre do Bagavagita. Muitas Essa presença tomava duas formas distintas nos cânticos dos santos.
vezes, os Alvars descreviam-se como os gopis, as ordenhadeiras que Alguns poetas acentuavam a natureza pessoal de Deus, descreven-
desejavam a presença de Crixna. Na sua poesia reverbera o intenso do com grande pormenor os atributos divinos, enquanto que outros
desejo de uma visão do Senhor. Estes poemas foram reunidos no louvavam Deus como o informe Absoluto. Os primeiros denomi-
século XI e considerados revelados, como os Vedas, na tradição Shri nam-se saguna bhaktas, "aqueles que amam um Deus com atribu-
Vaixnava. tos", e os segundos são nirguna bhaktas, "aqueles que amam um
Os Nayanars seguiram um caminho semelhante. Vinham de Deus não representável." Por vezes os poetas-santos vacilavam
todos os níveis da sociedade, dos sudra aos brâmanes, incluindo entre ambas as concepções do di vi no.
homens e mulheres e exprimiam a sua devoção na lfngua Ta mil, que Quando a divindade era descrita em termos pessoais, a forma
todos entendiam e cantavam. Como os dos Alvars, os seus cânticos de Deus era frequentemente a imagem do templo local. Os santos
exprimiam relações emocionais com um Deus pessoal e não com experimentavam a presença divina no murli, o ícone do templo, e
um Brama abstracto e inqualificável Também estes hinos foram celebravam a religião pessoal da devoção. Os seus cânticos descre-
recolhidos e passaram a fazer parte da base teológica das posterio- viam as experiências de Deus, os templos locais e a importância da
res seitas Xaiva, principalmente da Xaiva Siddhanta. peregrinação. Por vezes, nas histórias desses santos, o murti toma
vida e interage com o devoto, encontrando-se talvez com ele quan-
Bakti medieval tardio do está impedido de ir ao templo ou permitindo que o santo se funda
com a imagem e desapareça do mundo mortal.
Uma segunda grande corrente de pietismo surgiu no norte da Por vezes os santos exprimiam filosoficamente a sua devoção,
Índia, tendo início no século XIII. As duas grandes influências no como acontece na obm de Jnaneshwar Maharaj (século XIll) que
Hinduísmo do norte da Índia durante o fim do período medieval traduziu o Bagavagita para marati, acrescentando-lhe um extenso
foram o Islão e o seu movimento bakti. Os invasores muçulmanos comentário para interpretar o texto segundo a experiência bakti. A
começaram a fazer sentir a sua presença no princípio do século XI. devoção pode também tomar voz numa linguagem emocional que
Em 1211 a fundação do sultanato de Deli marcou o início do domí- descreve as relações pessoais do santo com Deus. Mirabai, a prin-
nio muçulmano sobre enormes áreas do Norte da Índia. O Islão e o cesa Rajput do século XVI, considerava Crixna como seu esposo.
Hinduísmo não estavam destinados a uma interacção pacífica, mas Descreve em muitos dos seus poemas a adoração que sente pelo
os muçulmanos eram em menor número e não faziam tentativas moreno Crixna, Senhor de Braj, que uma vez ergueu uma monta-
constantes para neutralizar a religião indígena. Esta relativa tolerãn- nha para oferecer abrigo aos seus durante uma terrível
cia terminou durante os reinados dos Mogóis, de 1526 a 1757. tempestade.
Durante o período moj(ol foram destruídos muitos templos hindus
no norte e no oeste da India. Nesta era de tensão social e polftica, os Irmã, sonhei ter desposado
populares santos hindus celebravam a importância das experiências o Senhor dos necessitados:
religiosas de devoção pessoal, com maravilhosas prosas e poesias vieram quinhentas e sessenta mil pessoas
em vernáculo. e o Senhor de Braj era o noivo.
62 + Hinduísmo Hinduísmo clássico e medieval + 63

Em sonhos ergueram o arco matrimonial: Criticou muçulmanos e hindus por praticarem rituais ocos,
em sonhos tomou a minha mão: sem sentirem verdadeira devoção ou se aperceberem neles da pre-
em sonhos conduziu-me à volta da fogueira matrimonial sença de Deus. Por vezes fazia troça das práticas religiosas, dizen-
e tornei-me inabalavelmente sua noiva. do que se andar nu como um asceta fosse o meio para atingir a ilu-
Foi oferecido a Mira o seu Senhor que ergue de montanhas: minação, então os veados na floresta seriam todos iluminados. Os
como prémio por ter vivido vidas passadas.(2) santos do nirguna bhakta proclamam constantemente que o divino
está dentro de cada pessoa e não na mesquita ou no templo, e que
Os Bhaktas deram um novo significado aos ensinamentos de a verdadeira devoção nos pode conduzir a Deus, sem recitar textos
Crixna acerca do bakti-ioga no Bagavagita. Havia quem afirmasse sânscritos como um brâmane ou rezar cinco vezes por dia como um
que Crixna aparecia no mundo do início do Kali Yuga para prestar muçulmano.
ensinamentos a respeito do bakti porque este é o caminho mais Estes santos ensinaram que a comunhão com Deus se conse-
apropriado a uma época na qual já não há suficiente equidade no guia através do satsang, acompanhando outros bhaktas, e do kirtan,
mundo para que a salvação seja acessível através do esforço huma- cantando hinos de louvor. Rejeitavam as antigas práticas de ritos
no de cada um. Utilizam a antiga analogia ioga na qual o corpo é o sacerdotais, o estudo das escrituras e o cumprimento do dever. Mais
carro e os cavalos os sentidos que têm de ser controlados, mas é importante que qualquer dharma, era a completa devoção. Um dos
agora Crixna, e não o eu individual, que representa o cocheiro. modos de se manter sempre centrado em Deus era entoar o Seu
Nesta idade de trevas, as pessoas têm de confiar na graça de Deus e nome, quer em voz alta quer para si mesmo. Claro que os seguido-
praticar a devoção para se libertarem do ciclo da reincarnação. Um res de diferentes seitas utilizam nomes diferentes, uns dizem
poeta-santo, Chaitanya (século XVI) era visto pelos seus seguidores "Rama" outros mas o princípio é o mesmo para todos.
como a incarnação de Crixna. Chaitanya dançava muitas vezes em
êxtase, entoando o nome de Crixna. Estes cânticos e danças torna- O teísmo que invadiu o Hinduísmo no período clássico man-
ram-se práticas populares de devoção. tém-se bem vivo na tradição moderna. Durante o período medieval,
Ao contrário dos saguna bhaktas, que descrevem Deus em ter- combinou-se esse teísmo com práticas iogas e correlações elabora-
mos pessoais e veneram as formas sagradas no templo, os nirguna das entre a humanidade e a divindade em Tantra, sendo sintetizado
bhaktas rejeitam habitualmente todas as imagens de Deus, escar- com a filosofia dos Upanixadas na teologia Vedantin. A voz mais
necendo da ideia de que o Infinito pode ser representado numa esclarecedora do teísmo hindu surgiu dos poetas-santos, cujas obras
substância finita, ou que o omnipresente Brama pode demorar-se tiveram uma tão grande influência, que passaram a fazer parte da
mais num local do que noutro. Kabir, o mais poeticamente flaman- liturgia do templo e da filosofia conformada. No fim do período
te destes nirguna bhaktas, chega a ridicularizar a ideia de diferen- medieval, todas estes fios se entrelaçaram de modo a que a imagé-
tes religiões. tica do corpo-sólido tãntrico pudesse aparecer na poesia de um
inculto tecelão e um poeta-brâmane pudesse rejeitar rituais e casta e
Viverá Khuda numa mesquita? dizer a todos que a única prática religiosa necessária era repetir o
Então quem vive em toda a parte? nome de Deus com verdadeira devoção. As práticas públicas e pri-
Estará Ram nos ídolos e na terra sagrada? vadas que formam a vida religiosa hindu solidificaram durante o
Havei-lo procurado e encontrado aí? período medieval e mantiveram-se bastante constantes até aos tem-
Hari no Oriente. Alá no Ocidente ... pos modernos.
Assim gostais de sonhar.
Procurai no coração, no coração apenas
Af vivem Ram e Ka.rin! (l)
Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 65

presidi-lo, por vezes acompanhado de outras divindades associadas,


Período Moderno 1: e normalmente há a história da sua criação que conta como a divin-
prática do Hinduísmo 4 dade veio para ali residir. Deste modo, a India é a terra onde as
divindades se manifestaram.
Antes do século XX, os templos eram vulgarmente construídos
e mantidos pela realeza e pelos ricos. Estes patronos faziam ofertas
Os principais padrões da prática modema do Hinduísmo man- em dinheiro, jóias e produtos da terra. Devido a isto, os templos
têm-se consistentes com a vida religiosa descrita nos Puranas. Os mais populares acabavam por ser muito abastados. Os mais impor-
renunciantes meditam e cultivam o afastamento do mundo social, os tantes ainda possuem terras e recebem dádivas dos seus devotos.
sacerdotes entoam cânticos e fazem oferendas e os chefes de famí- Nos tempos modernos, os fundos dos templos são utilizados para
lia praticam o culto público e privado das divindades. Estes últimos apoiar instituições de caridade, estabelecimentos de ensino e hospi-
são a maioria, bem como o tema deste capítulo. O culto tem lugar tais, bem como patrocinam ainda a construção de outros templos
em duas esferas: o domínio do templo e para os hindus que vivem fora do Sul da Ásia.
a esfera doméstica. A distribuição da Há uma grande diversidade regional na arquitectura dos tem-
maior parte das práticas religiosas pelos plos hindus, mas as estruturas podem ser categorizadas de acordo
dos dois domínios é cuidadosamente com dois tipos de esquema: um para o Norte e outro para o Sul. Em
regulada. A nível individual, os rituais ambos, a planta do templo tem correlações com o cosmos e com o
podem ser realizados para assinalar corpo divino. O estilo sulista tem um santuário central, localizado
pontos de transição na vida de uma pes- num pátio aberto. Está rodeado por um muro com quatro portões
soa ou reagir a situações familiares. A encimados por torres denominadas gopurams, situadas nos pontos
um nível mais geral, os rituais reali-
zam-se em alturas específicas do dia,
mês e ano, conforme o determinado pelo calendário lunar-solar que
regula o Hinduísmo.

O templo
Arquitectura

Um dos gmndes contrastes entre a antiga tradição védica e o


Hinduísmo é a localização da religião quando foram construídos
templos permanentes como centros de culto. Os rituais védicos
eram transportáveis, podiam ser realizados onde quer que se cons-
truísse devidamente um altar de fogo. Porém, no período clássico
(c. 320-500 da era cristã), os templos tornaram-se o centro dos
rituais e, em vez dos deuses residirem na atmosfera sendo venera-
dos por intermédio do fogo que transportava as oferendas ao céu,
estavam agora estabelecidos em determinados locais. Hoje esses
templos são a morada de divindades, lugares em que o divino é ima-
nente no mundo mortal. Cada templo tem um deus ou uma deusa a Templo Rajanari em Bhunaveshmar, Orissa, a norte da Índia.
66 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 67

cardeais. O gopuram é normalmente formado por camadas de como murtis centrais. Os templos de Vixnu têm imagens do deus ou
degraus, com imagens de divindades decorando cada um dos níveis. dos seus avataras de forma humana e os de Devi podem ter formas
Estas torres podem ser enormes, erguendo-se a mais de 60 metros. figurativas ou não. Os devotos chegam ao templo para o darshan, a
Os templos maiores parecem pequenas cidades. O devoto passa um "visão" por meio da qual vêem a divindade e são por ela vistos. O
portão e entra num pátio interior onde encontra pequenos altares às facto do divino estar presente no murti não significa que Deus este-
várias divindades que rodeiam o santuário colocado no centro e ja limitado à imagem. O divino é infinito e pode tomar qualquer
dedicado ao deus ou deusa principal. O esquema está ligado ao número de formas sem se minimizar. A imagem física no templo é
padrão do yantra já descrito, com as quatro direcções marcadas e os uma forma estabelecida pam benefício do devoto.
altares interiores cuidadosamente situados, de modo que a atenção se Claro que alguns hindus não aprovam o culto do murti. Afir-
dirija gradualmente para a imagem central da divindade, denomina- mam que o divino é infinito e informe, portanto nenhum objecto
da bindu, o ponto no centro. Assim, o templo espelha o cosmos. ffsico poderá ser mais do que urna representação simbólica. Sanka-
Os templos do norte são quase sempre caracterizados por um ra, o grande filósofo vedantin, mediava entre estes pontos de vista,
cúpula cónica denominada shikara. Nos primeiros, havia apenas ensinando que o culto de urna imagem era o modo de focar a devo-
uma shikara, que se erg11ia sobre a imagem central. Mais tarde, a ção de cada um e de o preparar para uma veneração mais elevada do
shikara cresceu até cobrir todo o templo, que por sua vez se tor- Absoluto sem forn1a. Porém, é notável que até os Vedantins tenham
nou mais elaborado, de modo a incluir zonas diante do santuário, tendência a prestar culto em santuários.
onde os fieis se pudessem reunir. Estas podiam estar cobertas por Os templos têm a história da sua criação, descrevendo como as
um telhado direito ou por uma segunda shikara, mais pequena. divindades ali vieram morar. Muitas delas estão ligadas às narrati-
Muitos templos acabaram por ter múltiplas shikaras de maiores vas épicas e dos Puranas. Um dos mais populares templos de Vtxnu
dimensões, erguendo-se em direcção ao céu como uma cordilhei- é em Tirupati. Aqui, o deus chama-se Venkateshwara, o Senhor do
ra de montanhas. monte de Venkata. Segundo a tradição este monte foi trazido para a
Os templos podem ainda incluir uma zona reservada aos tradi- sua actual localização a pedido de Vtxnu, quando este aí decidiu
cionais rituais védicos de fogo. Nos tempos modernos, estes rituais descansar, depois de ter incarnado num javali e salvo a terra da sub-
realizam-se apenas em certas ocasiões. Muitos deles foram histori- mersão nas águas universais. Algumas histórias de templos contam
camente patrocinados pela realeza e realizados em momentos espe- o modo como o deus ou a deusa se manifestaram naquele local,
ciais relacionados com a de modo que, quando as devido à devoção por um determinado santo. Um templo pode ter
monarquias desapareceram os rituais deixaram de ser necessários. sido construído por um rei ter orado e pedido a Deus que se tornas-
Algumas famílias brãmanes ainda conservam a antiga sabedoria e as se permanentemente presente num determinado local, tendo o Se-
fundações de investigação tentam patrocinar a sua realização, para nhor decidido honrar essa súplica. Muitas vezes, num templo dedi-
que possa ser gravada em vídeo, de modo a que as antigas práticas cado a Xiva a narrativa conta a chegada do deus, que depois despo-
não se percam completamente. Um novo respeito pela riqueza da sou a deusa local. É o caso do templo de Minakshi em Madurai.
tradição inspirou também esforços para apoiar a realização mais fre- Xiva veio para Madurai a fim de se casar com Minakshi, rainha do
quente de antigos rituais. reino de Pandyan, e de governar com ela como Sundareshwara.
Todos os anos o casamento das divindades é celebrado no templo.
Imagens do templo Certos santnários dedicados a Devi são identificados com a história
do desmemBramento de Sati, anteriormente relatada. Os templos
Quer sejam ao estilo do norte ou ao do sul, o coração de cada podem também ser construídos quando urna divindade local neces-
templo é o garbha-griha, a "casa-ventre" ou "casa-ovo". em que sita de nova morada. Na região de Konku no Tamil Nadu, a deusa
reside a imagem central da divindade. Deus está fisicamente pre- Kali (conhecida na região como Kaliyatta) visitou uma família e
sente dentro do garbha-griha na forma de murti, o ícone do templo. exigiu que lhe construíssem um templo. Antes residia num coquei-
Os templos de Xiva têm normalmente lingams desta divindade mi, onde um trishula (tridente) era a representação simbólica da sua
68 + Hlndu!smo Perfodo moderno 1: prática do Hinduísmo • 69

ARTE EM FOCO O templo liga o mundo mortal qual irradia a energia divina. A ascensão junto a este eixo é equiva-
com o domínio do divino. Esta ligação lente a percorrer caminho da luz, tendo o cume como objectivo final

o compreende-se de vários modos. Ao


nível mais básico, o templo é a morada
de libertação da reincarnação. Na imagética cósmica, o eixo supor-
ta os céus. Na imagética antropomórfica, é a espinha dorsal de
da divindade, o local onde o divino se Purusha, cujo corpo é o cosmos. Isto corresponde ainda a uma sub-
Templo manifestou e se tornou acessível às til coluna vertebral de práticas tântricas, ao longo da qual KunlÚili-
pessoas. Mas a própria estrutura arqui- ni-xakti se funde em Xiva.
tectónica também é sagrada. Isto,
porque a sua planta é urna réplica físi-
ca da ordem do universo.
A ideia do templo como réplica do -
cosmos pode ser ilustrada olhando para
a arquitectura de um templo do sul. A I - -1 1:
i LI*""TII:I
sua planta é um mandala seguindo o
padrão do universo: um quadrado divi-
I
i-I- __ ... I I ---l.-- b1m·
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dido em rede. A área central, onde se !_ '1 I b-1----- -


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localiza o santuário interior, identifica-
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se com uma divindade principal, como
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Brama, o deus criador. Rodeando Brama, está o reino divino, povoa-
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do por deuses populares e guardiães orientadores. O círculo f--1-r 1;r1 - f- -1- --1--'
seguinte é a esfera dos seres humanos. Numa peregrinação simbóli- 1-i-- I I u
ca, os devotos saem do mundo exterior da vida mortal, passam pela 1-H=I;; ,;;;; 1;:; 1:
esfera do devas e atingem o santuário interior, onde reside Deus. A
actividade física exterior da aproximação de uma pessoa ao deus,
I. 1-·
I t--[·'
I I I ' _,_ '
reflecte a viagem interior de um interesse pela vida mundana até à --- --L i I L.-'-
absorção pelo culto.
As ligações entre os domínios humano e divino são também
expressas em imagens do templo, como uma montanha e o corpo de Planta do Templo de Brhadeshvarana lruiia,
Purusha. A primeira é a mais comum no norte, onde alguns temp- mostrando o padrão em mandala.
los recebem o nome das grandes montanhas mitológicas de Meru e
Lailasa. Diz-se que os deuses residem nesses cumes, de modo que Legenda:
uma visita ao templo substitui a viagem às montanhas. A shikara ]. Santuário com caminho interior (Brama)
em forma de montanha ergue-se sobre a garbha-griha, local da 2. Caminho circum-ambulatório (esfera dos Deuses)
imagem principal e centro das forças do templo. O cimo da shikara 3. Muro do circuito (esfera dos humanos)
e o centro sagrado estão ligados por um eixo central, ao longo do 4. (esfera dos demónios)
70 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 71

presença. Mas quando a cidade cresceu, o coqueiral foi substituído cos. Dentro de um templo há uma actividade constante. Não só os
por casas e a deusa quase esquecida, pois a sua morada desaparece- sacerdotes efectuam pelo menos três vezes por dia os rituais a cada
ra. A construção de um templo proporcionou-lhe uma nova casa. imagem, mas há uma contínua corrente de pessoas a entrar e a sair
do local. Alguns prostram-se diante da divindade e oferecem as suas
Rituais do templo preces, enquanto outras se sentam calmamente a meditar. Podem vir
em grupos para entoar em conjunto cânticos pios. Há doentes que se
Os rituais dentro dos templos são realizados por sacerdotes sentam no templo aguardando pacientemente que os deuses os
profissionais. O ritual central chama-se puja, o culto do murti. No curem. As crianças brincam enquanto os adultos se sentam nos can-
puja a divindade é tratada como um hóspede real. É banhada, ador- tos a ler as escrituras ou a conversar com os amigos. O templo é uma
nada com vestes e grinaldas de flores, sendo-lhe oferecido de colmeia de actividade. Porém, a interacção entre devoto e divinda-
comer e de beber. Quando as imagens portáteis são levadas em pro- de tem lugar a nível pessoal.
cissão, as divindades vão protegidas por sombrinhas. Oferecem-lhe Em geral, o puja é realizado para agradar aos deuses. Se as
espectáculos de música e dança para que se distraiam. Os sacerdo- divindades são convenientemente veneradas, a comunidade deverá
tes fazem-lhes oferendas de frutos, flores ou cocos. A última parte prosperar sob a protecção divina e se, pelo contrário, as divindades
do ritual é o arati, no qual os sacerdotes acendem lamparinas ou estiverem ofendidas, poderá haver dificuldades. Alguns sacerdotes
velas de cânfora diante dos murtis. Durante o arati muitos devotos dizem que os problemas modernos são o resultado da realização
levam as mãos à testa com as palmas juntas num gesto de saudação. incorrecta dos rituais. Mas afirmam imediatamente, que mesmo que
O sacerdote mostra então a vela de cânfora à multidão que a rodeia os rituais sejam levados a cabo com toda a perfeição, a divindade
com as mãos tocando depois nos olhos. Com este gesto, o poder da não é obrigada a agir de determinada maneira. Os deuses não podem
divindade e a sua graça protectora são transmitidos aos devotos. ser controlados pelos mortais.
Depois do puja, estes recebem a prasada, que significa literalmen- Embora idealmente o culto seja motivado pelo amor a Deus, de
te "graça". A prasada pode ser composta por frutos ou flores ofere- facto a maioria das pessoas vão aos templos pedir bênçãos. As
cidos ao murti, ou água e outros líquidos que eram usados no banho divindades são solicitadas para auxiliar a comunidade em tempos de
ritual da divindade. Nos templos de Xiva a prasada muitas vezes seca, inundações, fome ou epidemias. São também abordadas para
consiste em cinzas brancas, substância especialmente associada ajuda pessoal, no que diz respeito a assuntos tais como doença, fer-
com esse deus. Os alimentos são para ser comidos, a água pode ser tilidade ou finanças domésticas. Porém, diz-se muitas vezes que
salpicada na cabeça, e alguma engolida, e a cinza é geralmente mar- estes problemas quotidianos são demasiado insignificante para os
cada na testa, embora se possa também engolir uma pequena por- grandes deuses sendo então levados à divindades locais. Estes actos
ção. Todas essas substâncias estiveram em contacto com a divinda- entram na categoria do culto doméstico.
de durante o puja e, assim, ficaram imbuídas de graça e poder divi-
nos que são então transferidos para o devoto que os recebe. Pram-
da é o culminar do ritual puja. Culto doméstico
O cenário no interior do templo onde tem lugar este puja é
muito diferente do serviço religioso na congregação de uma igreja Santuários
cristã. Os devotos não tomam parte numa liturgia de grupo, simples
e sincronizada. Embora se reúnam para observar os sacerdotes que O culto doméstico tem muitos dos atributos da tradição do tem-
fazem as oferendas, a experiência do templo é em !,'fande parte pes- plo. Cada casa tem uma área separada para as divindades domésti-
soal É como indivíduos que as pessoas se aproximam da divindade, cas, numa sala especial ou até numa prateleira na sala. O altar
para lhe oferecer preces e receber darshan, para escutar as recita- doméstico tem em geral várias imagens, pois os membros da mesma
ções dos sacerdotes, fazer doações ao templo e receber prasada. Isto família podem venerar divindades diferentes. Cada pessoa têm uma
não significa que não haja uma componente social nos rituais públi- ishtadevata, uma "divindade escolhida", com a qual mantêm uma

III,
72 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 73

relação especial. Uma família pode ter Xiva como divindade tutelar,
mas a mulher de um irmão poderá provir de uma família devota da
deusa Durga, enquanto outro im1ão poderá ser agora devoto de
Crixna. Assim, estas três divindades podem estar representauas no
altar da família, sob a forma de esculturas ou gravuras. Outras divin-
dades com funções específicas, como Ganesha, aquele que elimina
obstáculos, e Sarasvati, a deusa do conhecimento, podem acompa-
nhar as imagens principais. Pode haver também gravuras dos gran-
des santos. São comuns em todas as casas imagens não figurativas
como o linf<am de Xiva e a pedra shalagrama, que tem a marca de
um peixe fossilizado representando Vixnu. A shalagrama é colo-
cada num pequeno cofre de prata, como é o caso da grande serpen-
te em que Vixnu dorme, na mitologia dos Puranas.
Os deuses e deusas locais são muitas vezes mais proeminentes
no culto doméstico do que Vixnu, Xiva e Devi porque muitos hin-
dus crêem que estes últimos estão preocupados em primeiro lugar
com a criação, preservação e destruição do cosmos, enquanto que as
divindades regionais se encarregam das preocupações do dia-a-dia.
Estes deuses e deusas são normalmente específicos de um local. A
maior parte das alueias têm uma divindade protectora, geralmente
uma deusa. Pode haver também determinauos deuses ligados a gru-
pos familiares. Devido aos seus fortes laços com os locais e com as
pessoas, essas divindades estão activamente preocupadas com o
bem estar da comunidade, sendo instados para auxiliar, interferindo
com o tempo e com as colheitas, bem como especialmente úteis nas
doenças e na fertilidade.
Algumas deusas locais têm associações particulares com
determinadas doenças. Sitala, no Norte, e Maryamman, no Sul, são
as deusas da varíola (já erradicada). Estas duas divindades têm
seguidores regionais que não se limitam a determinadas aldeias,
mas que não são pau-hindus. A teoria da temperatura ritual tem um
papel importante na explicação das epidemias. As deusas das
aldeias associadas com as doenças epidémicas podem tornar-se
física e emocionalmente sobreaquecidas. Se ficarem demasiado
quentes e irritadas, a sua fúria acalorada pode manifestar-se em
doenças febris. Considera-se que as pessoas infectadas estão pos-
suídas pela deusa e podem ajudá-la a libertar o calor contido, que
se tornou demasiado. As vítimas são veneradas com rituais de
refrescamento e realizam-se sacrifícios animais para aplacar e arre-
fecer a divindade. Em todos os cantos das vilas e cidades indianas altares religiosos
dedicados a divindades locais.
74 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 75

Em geral, o tipo de oferendas feitas aos deuses diferia entre os Os espectros malévolos são os espíritos das pessoas que sofreram
templos dirigidos pelos brâmanes e as tradições populares das mortes terríveis, tais como assassinatos, suicídios, acidentes, doen-
aldeias. Os deuses e deusas que vivem em grandes templos recebem ça, nado-morto ou qualquer outro acontecimento que as tenha pre-
vulgarmente oferendas vegetarianas, enquanto que as divindades maturamente levado. A vítima morre sem se realizar, sendo portan-
das aldeias podem também requerer álcool e sacrifícios com sangue to infeliz e querendo provavelmente causar dor aos vivos que gozam
de galinhas, cabras e por vezes búfalos. Se numa aldeia uma divin- daquilo que lhe faltou. Assim, por exemplo, mulheres que morrem
dade consegue um maior número de crentes e é adoptada na tradi- sem filhos podem tornar-se espíritos perigosos para as crianças
ção sacerdotal do templo, podem ser feitas substituições do sangue pequenas. Ao oferecer ao espírito um altar e veneração, o espúito
por água tingida nessas oferendas não vegetarianas. A distinção malévolo pode ser controlado e até transformado num que seja
entre divindades vegetarianas e não-vegetarianas tem excepções benéfico. Normalmente este culto é realizado pelos membros da
especialmente no caso da Deusa que recebe por vezes os dois tipos família do defunto, mas se o fantasma deificado ganhar reputação
de oferendas. Durante uma festividade, Devi pode ser representada por ajudar as pessoas, pode granjear maior número de seguidores.
sob duas formas, uma como imagem não figurativa, tal como um Por vezes, as divindades locais têm pequenos templos que lhes
pote de água, e outra como um murti de bronze. Os sacrifícios de são dedicados, mas é mais vulgar serem venerados em simples alta-
sangue serão feitos para o pote, enquanto a imagem de bronze rece- res ao ar livre. Os murtis desses altares são frequentemente não
be apenas oferendas vegetarianas. Deste modo, as tradições popula- figurativas: talvez um pote de água, uma árvore, um tridente cha-
res e as práticas sacerdotais são efectuadas lado a lado. mado trishula ou uma pedra pintada de vermelho. O altar da deusa
Os deuses principais ficam sobreaquecidos e necessitam da da aldeia fica dentro dos limites da comunidade, onde pode proteger
ajuda humana para manter um equilíbrio térmico, tal como as deu- as pessoas das malévolas forças exteriores. Os deificados são geral-
sas locais das doenças. No templo do monte, em Palani, Murukan, mente venerados nos seus túmulos.
o deus tamil, é venerado como aquele que cura. Mas estas suas qua-
lidades podem ser afectadas por influências sazonais e astrais, bem Especialistas religiosos
como pela ansiedade causada por ter de atender aos pedidos de
inúmeros devotos. São realizadas duas festividades, urna no pino da Para além dos sacerdotes br-âmanes, há numerosos especialistas
época fria e outra durante a quente, de modo a ajudar a equilibrar a religiosos que tomam parte nas experiências religiosas domésticas.
temperatura do deus. Na estação quente, os peregrinos trazem potes Entre estes encontram-se renunciantes, curandeiros populares, exor-
de água do rio Kaveri, que se diz ser tão refrescante como a do pró- cistas e médiuns possuídos pelas divindades. Os renunciantes, deno-
prio Ganges, para o banho do murti. Durante as festividades de minados sadhus, aparecem com vários aspectos. Há os que perten-
Inverno, os peregrinos levam a Murukan oferendas de açúcar não cem a organizações monásticas como as fundadas por Sankara, e os
refinado, acreditando ser uma substância que emana calor. eremitas solitários. Uns usam vestes ocre. outros andam nus como
Certas divindades locais são seres humanos endeusados, heróis parte da sua disciplina para se libertarem de todos os laços. Uns
ou espúitos apaziguados. Os heróis podem ser santos que levaram envolvem-se em rigorosas práticas ascéticas, outros se.b'Uem o
vidas de devoção, guerreiros que morreram em defesa da comuni- padrão do jnana·ioga, combinando a meditação com o estudo e con-
dade, ou mulheres que levaram o dharma conjugal até à última templação das escrituras. Apesar de seguirem diferentes caminhos,
expressão, tornando-se sati, isto é, suicidando-se na pira funerária os sadhus são venerados como sagrados, pois abandonaram a segu-
do marido. Estas pessoas atingem a divindade através da pureza das rança da vida mundana, dedicando-se inteiramente à demanda reli-
suas acções em vida. Podem então ajudar aqueles que os veneram. giosa. Estes sahdus podem passar por uma comunidade durante uma
Como têm origens humanas, são considerados como tendo uma afi- peregrinação ou estabelecer-se perto de uma cidade para se dedica-
nidade especial com os cuidados do mundo dos mortais, principal- rem às suas práticas ascéticas. A comunidade auxilia-os com ofe-
mente com as pessoas que viviam nas suas antigas comunidades. rendas de alimentos e diidivas. De vez em quando, o asceta propor-
Por outro lado, os espíritos são venerados para que não façam mal. ciona conselhos ou ensinamentos religiosos a quem o consulta.
76 + Hinduísmo Período moderno l: prática do Hinduísmo -+ 77

IIII III!
Acredita-se que tenham poderes extraordinários, pois praticam ioga. uma alimentação desadequada, esforços excessivos, espíritos maus
Consequentemente, a sua ajuda é procurada para resolver problemas e exposição ao calor ou ao frio. Para curar as doenças, receitam
locais, como, por exemplo, a seca. rituais e mudanças na alimentação.
Pode ainda procurar-se conselho junto dos gurus. Estes são A possessão é comum no Hinduísmo rural, principalmente no "III
mestres religiosos que trabalham com um pequeno número de dis- sul da India. Há diversos tipos de possessão. Nas possessões inde-
cípulos, mas também interagem com uma comunidade mais alarga- sejadas, os espíritos ou demónios apoderam-se da pessoa e têm de
da de pessoas que os veneram pela sua realização espiritual e capa- ser expulsos por um exorcista profissional. Há também institui-
cidade peculiar de auxiliar os outros no caminho religioso. Alguns ções rituais formalizadas de possessão. Entre elas encontram-se os
gurus são sadhus, porém outros são chefes de família. Os gurus che- adivinhos profissionais que actuam como médiuns e num modelo
fes de família podem ter desviado a atenção da vida material para se de possessão relacionado com o cumprimento de promessas.
dedicarem às actividades espirituais, mas não acharam necessário Quem procura a ajuda de uma divindade promete venerá-la toman-
tomar votos de renúncia. Os membros da fallll1ia fazem geralmente do parte numa peregrinação ou procissão durante a qual é geral-
parte do grupo de discípulos e a posição de chefe espiritual pode ser mente possuído pelo deus ou deusa. Há também especialistas que
passada a um descendente. se deixam possuir regularmente por uma divindade no contexto de
Juntamente com estas figuras notoriamente religiosas, há pes- determinados rituais. Um exemplo será o camiyati, "deus dançari-
soas, como os curandeiros, cujo trabalho depende dos seus conheci- no" do Sul da Índia. O camiyati é possuído e serve como porta-voz
mentos da relação entre o corpo físico, os espíritos e o funciona- temporário da divindade durante as festividades. Os dançarinos
mento do cosmos. Os curandeiros utilizam antigas práticas medici- são famosos pelos seus feitos ascéticos, como caminhar sobre car-
nais baseadas na ideia de que a doença é o resultado de desequilí- vões em brasa, que servem de prova do seu estado de possessão e 'li
brios no interior do corpo. Estes são causados por factores como atestam o poder da divindade que os protege da dor e do mal. I

Enquanto o deus dançarino está possuído, pode pedir-se-lhe con- 11

selho e encorajamento.
Muitas vezes, os vários papéis de curandeiro, conselheiro e adi-
vinho estão reunidos, já que se trata de atributos divinos e a pessoa
possuída é semelhante a uma divindade. Isto é evidente no caso de
Valliyama, uma mulher do Sul da Índia que foi chamada para servir
Murukan. Valliyama tinha doze anos e foi possuída pelo deus duran-
te a peregrinação. Este instruiu-a para que jejuasse e guardasse
silêncio durante seis meses. Depois de cumprido este período, teve
um sonho no qual Murukan lhe disse para caminhar durante sete
dias à volta das aldeias vizinhas com uma agulha espetada na língua
e que depois voltasse ao templo de Palani. Durante esta jornada, a
rapariga foi possuída pelo deus e dançou pelas ruas das aldeias, de
tal forma que lhe começaram a chamar camyiati, o deus dançarino.
Quando chegou ao templo, o deus possuiu-a de novo e ofereceu-lhe
um mantra secreto que lhe permitia curar doenças e predizer o futu-
ro. A partir daí, os devotos dirigem-se-lhe em busca de curas e con-
selhos. Realiza pujas a uma gravura emoldurada de Murukan, no
seu quarto que transformou numa "casa-templo" e, exactamente
Este nepalês consegue atinf?ir estados de transe, nos quais serve como porta-voz como se fosse um sacerdote, distribui cinzas sagratlas e água aos
espiritual de uma divindade durante os rituais. devotos, depois do ritual"'·

:111
I!
78 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 79

Dharma da família O puja não é a única forma de culto doméstico: durante o dia
há várias oportunidades de devoção. Cada pessoa deverá começar a
O lar é a esfera do dharma da família, onde as pessoas cum- manhã recordando-se de Deus e oferecendo-Lhe mentalmente todo
prem os seus deveres tradicionais, praticam as devoções quotidia- o trabalho a realizar nesse dia. As mulheres da aldeia efectuam as
nas e realizam determinadas celebrações para marcar acontecimen- preces matutinas quando vão ao rio buscar água e banhar-se. Quan-
tos importantes, como nascimentos e casamentos. Teoricamente do voltam para casa, fazem uma pausa para orar e oferecem um
todos os membros da família deveriam viver segundo as obrigações pouco de arroz, um pau de incenso ou uma concha de água às divin-
do dharma. O cabeça de casal masculino deve trabalhar para sus- dades que presidem aos altares locais da beira da estrada. Nas áreas
tentar a família e manter o seu lugar na sociedade. Deve zelar pela urbanas, as pessoas param para fazer oferendas em santuários e tem-
instrução dos filhos e ensinar-lhes a actividade da família. A mu- plos que ficam a caminho do trabalho ou dos seus outros afazeres.
lher é responsável pelo governo da casa e pela preparação das refei- Durante o dia podem oferecer alimentos aos sahdus que apareçam à
ções, dons que transmite às filhas. Uma família extensa tradicional porta. Tais dádivas, denominadas dana, tem uma longa história no
pode incluir irmãos mais novos com as suas respectivas famílias, Hinduísmo e são oferecidas aos sadhus, homens santos que devo-
que ajudam no negócio e no trabalho da casa. Os membros da famí- tam toda a sua vida à religião e trazem mérito a quem os auxilia.
lia que trabalham fora contribuem normalmente para o orçamento Fazem ainda parte da prática religiosa quotidiana o estudo de textos,
doméstico. Os avós ajudam também, principalmente tomando o entoar de cânticos devotos e a repetição dos mantras.
conta das crianças. Geralmente são eles que relatam aos pequenos As mulheres realizam frequentemente uma variedade de
os mitos e as lendas hindus, transmitindo-lhes a sabedoria da tradi- rituais em determinados dias, de acordo com o calendário lunar.
ção. Espera-se que os mais jovens aprendam a ser respeitosos e a Este ritos ou práticas votivas, chamados vratas, estão relacionados
servir os mais velhos. com as ideias de dharma, pois preenchem as obrigações religiosas
Todas as casas têm um altar, geralmente na cozinha, onde as da mulher em relação à família. De acordo com a tradição, elas têm
regras de pureza dos alimentos asseguram o ambiente apropriado. o poder de proteger as famílias através de um comportamento
As divindades domésticas são veneradas com o mesmo ritual puja exemplar, pessoal e ritual. Assim, a mulher cujos marido e filhos
que a imagem do templo, mas de uma forma simplificada. O devo- sejam saudáveis é considerada virtuosa e abençoada, embora uma
to oferece água para beber e para o banho, alimentos e por vezes viúva seja pouco auspiciosa. Em geral, as práticas votivas come-
incenso. Se as imagens domésticas são esculturas, podem estar çam com uma decisão, feita pela pessoa a si própria ou a um sacer-
cobertas com vestes de seda. Quer as gravuras, quer as esculturas dote, de levar a cabo um vrata. As verdadeiras práticas incluem a
são adornadas com flores. Os pujas domésticos devem ser realiza- realização de pujas e a observação de jejuns. Destes há vários tipos,
dos regularmente, o ideal seria todos os dias, mas em certos casos que vão desde uma dieta de apenas fruta ou leite, até ao jejum com-
uma vez por semana. As famílias ricas de casta superior contratam pleto, incluindo água. Estes actos de austeridade, combinados com
muitas vezes brâmanes para oficiar os seus pujas, principalmente a devoção expressa no puja, atraem a graça das divindades a quem
durante as festividades mais importantes, mas a maior parte dos são oferecidos. Diz-se que estas práticas são realizadas em benefí-
rituais domésticos são realizados por pessoas vulgares. Embora os cio da fanúlia e da comunidade, já que muitas delas têm como
homens sejam especialmente eminentes em ocasiões especiais. o objectivo a aquisição de um marido, o nascimento e saúde dos fi-
culto diário tem tendência para ser da responsabilidade das mulhe- lhos, a longevidade de um esposo, a prevenção das secas ou a me-
res. O puja é realizado antes do pequeno-almoço e de novo à noite, lhoria das doenças.
antes do jantar. Todos os alimentos preparados para a falll11ia são Mas os vratas são também parte importante da vida religiosa
oferecidos à divindade antes de ser servidos. O principal objectivo das mulheres. Embora um sacerdote possa ser convidado para reali-
do culto doméstico é a protecção do lar, mas os rituais são ainda rea- zar um puja, são elas geralmente as celebrantes activas destas práti-
lizados como expressão da relação pessoal entre o devoto e a divin- cas. Realizam normalmente os seus próprios pujas e reúnem-se para
dade da sua escolha. partilhar refeições, contar histórias e entoar cânticos votivos. Fazem
80 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduismo + 81

peregrinações a templos e rios sagrados. As mulheres estabeleceram canto dos antigos hinos e festas comunitárias. Os rituais mais fre-
deste modo uma tradição rica, que lhes permite exprimir a sua devo- quentemente observados são os do nascimento, da iniciação, do
ção e desenvolver relações com o divino, apesar da estrutura patriar- casamento e da morte. Há no entanto inúmeros outros, regionais e
cal da sociedade'''. realizados por mulheres para celebrarem a puberdade, adquirir bons
A peregrinação é outro ritual importante do Hinduísmo prati- maridos, assegurar o bem estar das suas famílias e apoiar-se mutua-
cacto por chefes de família e por sadhus. Como o transcendente se mente durante a gravidez.
tornou imanente em certos locais, estes tomaram-se tinhas, "vaus"
ou "locais de travessia", onde se encontra a graça divina. O peregri- Nascimento :I' i
no viaja a estes tirthas para sentir a manifestação do Divino. As
peregrinações são regidas por regras complexas que incluem jejum, As cerimónias que rodeiam o nascimento de uma criança
celibato e a realização de práticas ascéticas, por exemplo dormir no incluem doações aos pujas do templo local e recitar preces, implo-
chão e não na cama, como preparação para a viagem. Teoricamente rando uma longa vida acompanhada de boa sorte. É importante ano-
o peregrino deveria fazer a pé todo o caminho até ao seu destino, tar o momento exacto do nascimento, de modo a que possa ser feito
mas os modernos transportes públicos e até os automóveis particu- um horóscopo para a criança, que será especialmente importante
lares, tomaram-se alternativas aceitáveis. O destino pode ser um para arranjar um casamento adequado quando crescer. Podem tam-
templo, onde resida a divindade a quem se fez a promessa, pedin- bém fazer-se celebrações especiais para marcar a atribuição do
do-lhe ajuda, ou um dos rios sagrados. Normalmente o peregrino nome, o primeiro alimento sólido e o primeiro corte de cabelo. As
viaja ao tirtha durante a época das festividades. crianças devem receber nomes auspiciosos, geralmente de divinda-
Milhões de peregrinos, leigos e sadhus, chegam a Allahabad des ou de heróis.
(Prayaga) para a festa de Kumbla Mela. Allahabad é um dos locais
mais sagrados da Índia pois os três rios, o Ganges, o Yamuna e o Upanayana
invisível Sarasvati juntam-se aí. O Ganges é o rio mais sagrado da
Índia; o banho nas suas águas purifica os peregrinos e a sua família O ritual de iniciação denominado upanayana, marca a entrada
até sete gerações. Um banho na confluência dos três rios à hora aus- da criança na fase estudantil. Foi originariamente criado para os
piciosa do nascer do sol em determinados dias do calendário, con- rapazes das três castas mais elevadas, mas hoje só é comum entre os
fere à alma a liberdade do ciclo da reincamação. Esta liberdade pode brâmanes. O rapaz é ritualmente banhado e coberto com vestes
ser do mesmo modo conseguida ao longo do Ganges em Benares especiais antes de ser entregue a um professor da antiga tradição
(também chamada Varanasi e Kashi), um dos mais populares locais védica. Este investe-o de um cordão sagrado, uma trança de três fios
de peregrinação na Índia. Benares é considerado o centro do cos- para ser usada sobre o ombro esquerdo e dá-lhe a sua primeira lição
mos, um local onde todos os deuses se reúnem e todos os locais de nos Vedas, que será a memorização do mantra Gayatri: "Medito no
peregrinação se juntam. Morrer aí garante libertação, por isso a brilho do sol, possa ele iluminar o meu espírito". O rapaz deverá
cidade tem vastos locais de cremação para os que fazem deste local recitá-lo todos os dias do resto da sua vida. No passado, o jovem ini-
sagrado o culminar da sua última peregrinação. ciado iria viver e estudar com o mestre, mas actualmente o ritual
tem apenas uma função social. Há uma festa depois da cerimónia e
o rapaz recebe presentes.
Samskaras: rituais do ciclo de vida
Rituais da puberdade feminina
Os samskaras são considerados os sacramentos do Hinduísmo.
Trata-se de rituais que conduzem o hindu ao longo do caminho do Os ritos femininos não fazem parte da tradição textual sâns-
I! I!
dharma, da vida virtuosa. A palavra samskara significa "aperfeiço- crita, mas sim das culturas regionais do Sul da Ásia. Encontra-se a
amento''. Estas cerimónias combinam os elementos do puja, preces, celebração do primeiro período menstrual da rapariga em quase
I
82 + Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 83

todas as comunidades rurais, embora a tradição já não seja mnito comprometerem com o casamento. Hoje em dia, a vida moderna e
observada nas zonas urbanas. Entre as mulheres Aiyar, de Tamil a educação escolar mista aumentou o número de "casamentos por
Nadu, a rapariga mantém-se três dias num quarto escurecido. Ao amor'\ mas os "arranjados" são ainda muito vulgares.
quarto dia purifica-se com um banho ritual e celebra-se uma festa. O verdadeiro ritual do casamento inclui preces, caminhar à 1

A mãe leva-a ao templo e em seguida a visitar outros lares onde as volta de um altar ao fogo e a recitação de mantras auspiciosos por
mulheres mais velhas lhe acenam com luzes arati. Noutras zonas, um sacerdote. As preces matrimoniais pedem força na adversidade, i1l'
a família comemora vestindo a filha com roupas novas, adornan- saúde, filhos, longa vida e fé um no outro. São estes os ingredien-
do-lhe o cabelo com flores e alimentando-a com comida especial. tes de uma vida feliz. Pelo casamento, a noiva e o noivo tornam-se
Os festejos podem tomar a forma de um casamento em miniatura, parceiros no dharma doméstico. Cumprem juntos as suas obriga-
no qual a rapariga recebe da família dinheiro ou roupas. ções para com os antepassados da família tendo filhos (homens)
que assegurem a continuação dos rituais ancestrais, e cumprem os 1111,

Casamento seus deveres para com os deuses, realizando rituais domésticos no


seu lar.
O casamento é o maior ritual do ciclo de vida. Quando duas O casamento é também uma importante celebração social com
pessoas se casam, entram na fase doméstica das suas vidas, na qual procissões, troca de presentes e festejos. Os convidados são recebi-
cumprem os seus deveres para com a família e sociedade. O casa- dos com música, dança e fogo de artifício. Os casamentos são a
mento é uma importante transição para a responsabilidade. expressão do estatuto social e as famílias gastam o que podem, endi- Ji
Os rituais de casamento diferem de região para região. Em pri- vidando-se até, para conseguir um espectáculo elaborado. Por vezes
meiro lugar, os pais deverão arranjar um parceiro adequado. Ser- os festejos duram vários dias, embora o ritual do casamento pro-
vem-se da sua extensa rede familiar para encontrar esposo em pers- priamente dito requeira apenas algumas horas.
pectiva, podendo ainda consultar os anúncios classificados dos jor-
nais, onde encontram informações sobre partidos disponíveis nas Morte
zonas mais distantes e até noutros países. O ideal seria o noivo e a
noiva serem oriundos da mesnm zona, falarem a mesma língua e Na morte, a fanu1ia prepara o corpo do defunto e transporta-o
pertencerem à mesma casta. Os pais responsáveis tentam encontrar em procissão até ao local da cremação, recitando determinadas pre-
para os filhos parceiros com educação semelhante e bom tempera- ces enquanto o corpo arde. O deus da morte é chamado para ofere-
mento. A fanu1ia da rapariga levará também em consideração a cer ao falecido um bom lugar entre os seus antepassados e são tam-
capacidade do noivo para ganhar dinheiro, garantindo assim a sua bém invocadas outras divindades para intercederem em favor do
·III
segurança futura e tentando escolher um que não tenha muitos ente querido. Pede-se ao deus do fogo que transporte o morto em
irmãos mais novos, já que a esposa pode acabar por ter de trabalhar segurança até ao reino dos antepassados. Uma vez cremado, as cin- 'lii
'I
demasiado para os servir. zas e os ossos do defunto ou são deitadas a um rio sagrado ou enter-
Os horóscopos da noiva e do noivo devem ser compatíveis. Na radas. Os sadhus e as crianças pequenas são geralmente sepultadas
moderna época tecnológica, a correspondência dos horóscopos é sem cremação.
geralmente feita por computador. Não só os sinais astrológicos Depois de um funeral, os membros da fanu1ia dirigem-se a um
deverão ser complementares, n1as acredita-se também que a vida de ribeiro ou a um rio para se purificarem com um banho ritual. Devido
cada pessoa tenha períodos de boa e má sorte. Os altos e baixos pre- ao defunto, a família encontra-se num estado de impureza ritual
vistos para duas pessoas devem alinhar-se e contrabalançar-se, para durante um determinado período de tempo e terá de limitar a sua
evitar demasiadas dificuldades. Assim que se encontra um parceiro interacção com outros. Nos primeiros dias, o espírito do morto é um
apropriado, a fanu1ia encontra-se em grupo e mais tarde a noiva e o fantasma e tem de ser alimentado por meio de um ritual denominado
noivo terão também oportunidade de se reunir. Por vezes o casal shraddha até partir para o reino dos antepassados. O rito centra-se em
insiste em ter algum tempo para se conhecer melhor antes de se oferendas de alimentos e preces pelo bem estar dos parentes do fale-
84 • Hinduísmo Período moderno 1: prática do Hinduísmo + 85

cido. O filho mais velho oferece água e bolas de arroz ao fantasma


para arrefecer o espírito após a cremação e lhe dar forças para a via-
gem. Assim que o espírito parte para o outro mundo, o filho mais
velho terá de continuar a realizar o ritual shraddha para os seus ante-
passados, na primeira lua nova de cada mês durante o ano seguinte à
morte dos pais. Depois o ritual passará a ser realizado anualmente.
Como o shraddah é dever do filho homem, os hindus dão grande
importância ao nascimento de um varão. Sem ele para realizar estes
rimais, o defunto fica para sempre como fantasma.

Festividades
No Hinduísmo há incontáveis festividades, algumas quase
pan-hindus e outras observadas apenas em comunidades locais.
Todos os templos têm determinadas festividades associadas às suas
principais divindadeS e estes acontecimentos atraem enormes mul-
tidões. O acontecimento principal destes festejos é uma procissão
em que o murti é transportado através da cidade. A maioria dos
templos têm imagens especiais das suas divindades para ser utiliza- ,,11
das nessas procissões. Por vezes são transportadas aos ombros dos
Carros festivos com cerca de quinze metro.'! de altura domioom esta cena
devotos, mas nos templos maiores, o murti pode ser deslocado numa
de rua em Puri, durante uma procissão em honra do deus hindu Jagganath.
carroça que acaba por ser um templo sobre rodas. A procissão do
murti pode integrar elefantes, cavalos, músicos e sadhus que tenham
vindo para a celebração. Participam na procissão enormes multidões os obstáculos. Também ajuda os devotos a terem acesso a outras
e as pessoas lançam flores, frutos e moedas para a carroça. É essen- divindades e proporciona sucesso e bem-estar. Os hindus vene-
cialmente um cortejo real com a divindade como soberano. ram-no antes de dar início a rituais, partir em peregrinação ou nou-
Os rituais domésticos fazem também parte da celebração des- tras viagens, iniciar as aulas ou um negócio, ou no início de qual-
tas festividades hindus. Não é possível fazer uma descrição porme- quer actividade quotidiana. As crianças escrevem o mantra de
norizada de todas as festas, mas alguns exemplos darão ideia do Ganesha no cimo das folhas de exame e os poetas começam os
modelo por elas seguido. O primeiro exemplo será a festa de Gane- seus textos com invocações a este deus. É o guardião da casa e
sha, que é largamente venerado em Maharashtra. Esta descrição()' protege o lar e as divindades domésticas de influências pouco aus-
vai explorar a natureza da presença do divino na celebração. O piciosas.
segundo exemplo será a de Navarati, em honra da deusa. As diver- O dom de Ganesha para proteger de forças malévolas e
sas interpretações do acontecimento mostram a variedade que pode garantir começos auspiciosos é considerada particularmente útil
existir num festival a que assiste quase todo o sul da Índia. em determinadas alturas do calendário hindu. O ano religioso
segue um ciclo lunar, com cada mês dividido em metades lumi-
O Quarto de Ganesha nosas, durante as quais a lua cresce, e metades obscuras, durante
as quais a lua decresce. A metade luminosa é auspiciosa e é boa
Ganesha, o deus de cabeça de elefante, é venerado antes de altura para começar novos projectos, enquanto que a metade obs-
todos os empreendimentos por ser o criador e aquele que elimina cura traz mais possibilidades de insucesso. O quarto dia desta
86 + Hinduísmo Período modema 1: prática do Hinduísmo + 87

metade é o mais perigoso, de modo que as pessoas fazem pro- Navarati, nove noites
messas ao deus desejando evitar dificuldades. As promessas ,,,
incluem geralmente oferendas de doces que são especialmente Os festejos de Navarati duram nove noites e dez dias. É uma I

apreciados pelo deus, como também pujas e jejuns. Esta combi- festa do tempo das colheitas, realizando-se na lua nova entre mea-
nação de ascetismo e devoção é uma maneira de pedir protecção dos de Setembro e o mês de Outubro, dedicada às deusas Sarasvati,
e invocar o poder que Ganesha possui para eliminar obstáculos. O Lakshmi e Durga (ou Parvati). O simbolismo agrícola de Navaratri
quarto dia da metade luminosa do mês é conhecido como "Quar- é quase pan-hindu. Durante os nove dias das celebrações são postos
to de Ganesha" e é o período mais auspicioso para iniciar novos a germinar grãos de cereal, principalmente de cevada, como mani-
projectos. festação da Deusa. Mas as festividades têm ainda outros significa-
Quando o Quarto de Ganesha acontece no mês de Bhadrapa- dos que variam consideravelmente de região para região. Em Ben-
da (Agosto/Setembro), no estado de Maharashtra há grandes fes- gala, a festa chama-se Durga Puja e é considerada uma celebração
tejos em sua honra, durante os quais os chefes de família colocam do triunfo da deusa Durga sobre Mahisha, o demónio búfalo. Em
um murti do deus, feito de barro nos seus altares domésticos. sintonia com o aspecto marcial desta deusa, soldados e governantes
Antes da sua chegada a casa tem de ser purificada com uma lim- veneravam as suas armas e no décimo dia imploravam a Durga êxi-
peza completa e toda a família deve tomar um banho ritual. Em tos militares. Os Bengaleses erguiam estátuas de Durga que se tor-
seguida coloca-se o deus no altar da família, consagrando-o para navam incarnações da sua presença durante os dez dias em que eram
se transformar na incarnação viva do deus. Esta consagração é rea- adoradas. Enquanto está presente nos festejos em sua honra, a deusa
lizada sob a orientação de um brâmane, mas o chefe de família é recebe sacrifícios animais de cabras, ovelhas e até búfalos. Quando
j,,,
o actor principal neste rito. Ganesha é então venerado como um o Navaratri termina, as imagens são despojadas do seu estatuto
hóspede de honra com um elaborado puja. O culto inclui um divino e mergulhadas em água.
banho ritual a uma noz de bétele que actua como substituto da Nalgumas zonas, aos últimos dois dias do Navaratri chama-se
imagem de barro, já que esta se dissolveria se fosse molhada. O Ayudha Puja, "veneração das armas e máquinas". O Ayudha Puja
murti pode manter-se no altar doméstico entre um a dez dias e deve servir para comemorar o dia em que Arjuna, o grande guerrei-
durante todo esse período é venerado de manhã e à noite com reci- ro do Mahabharata, recuperou as armas que escondera e as vene- l1ll
tações, canções devotas e oferendas de flores, incenso e lanternas rou, antes de se dirigir para a batalha. Hoje em dia, os hindus vene- I

rituais. ram os seus instrumentos e veículos modernos. Os carros e os auto-


Quando termina o número de dias da visita, efectua-se um carros andam engalanados, os computadores e máquinas de escre-
ritual simples para despojar a imagem do seu estatuto especial. A ver são abençoadas e o dia é feriado. No nono dia, designado como
imagem recebe, de novo, alimentos, flores e preces. Depois o Sarasvati Puja, é venerada a deusa do ensino e da música. Os ins-
patrono fecha-lhe simbolicamente os olhos e o barro deixa de con- trumentos musicais) os utensílios de escrita e os manuais são colo-
ter a presença viva de Ganesha. A família leva então a imagem a cados diante da imagem de Sarasvati a fim de serem abençoados
uma fonte de água próxima e mergulha-a. O barro dissolve-se e para o resto do ano. O décimo dia é dedicado a Lakshmi, deusa da
retorna ao seu estado informe, ao mesmo tempo que a divindade boa fortuna. Abrem-se novos livros de contabilidade, dá-se início a
regressa ao seu estado cósmico primordial. Durante as festivida- novos projectos e começam-se novos estudos depois de todos escre-
des, Ganesha entra na imagem e reside com benevolência na casa verem ritualmente a palavra shri "bela", o nome d.a deusa. Prospe-
por algum tempo, para permitir que o venerem e que consigam ridade) sabedoria e música sãos as suas bênçãos ao ser venerada nos
maior intimidade com ele, que é, afinal, informe e infinito. O pro- festejos de Navaratri.
cesso de consagrar uma imagem como a incarnação viva do divi- Em Tamil Nadu, Navaratri é uma festa quase exclusivamente
no durante um ritual faz parte de muitas festividades hindus e feminina. Reserva-se uma sala, onde se arranjam quadros com
reflecte-se também no modo como as pessoas entendem o murtis bonecas representando cenas das epopeias e dos Puranas. Todas as
do templo. noites, mulheres e crianças vestem-se a preceito e reúnem-se para
1'111
88 + Hinduísmo

admirar a exposição, entoando cãnticos de louvor à deusa. Os últi- I

mos dois dias são dedicados a Sarasvati e Lakshmi. Diante da expo- Período Moderno 11:
sição tias bonecas colocam-se gravuras destas duas divindades, que
assim são veneradas e enfeitadas com coroas de flores. forças de mudança 5 Iiii I

Em Guzarate, Navaratri é celebrada com danças de roda. A


manifestação da deusa é uma lamparina sagrada, colocada no meio 11'
/ I

do círculo. Alguns hindus associam Navaratri ao Ramayana e acre- As crenças e práticas descritas nos capítulos anteriores ainda li
ditam que marca o período de tempo no qual Rama combateu o prevalecem na vida hindu do mundo moderno, porém novos pro- 1
demónio Ravana. Em Ramnagar, perto de Benares, a última parte tio gressos nos séculos XIX e XX causaram algumas mudanças no
Navaratri recebe o nome de Dassera, celebração do triunfo de Hinduísmo. O século XIX trouxe movimentos revivalistas e de
Rama sobre os demónios, que tem lugar no final do Ram Lila, que reforma dentro da própria tradição e um novo esforço para definir o 'I
dura um mês.
dharma hindu em relação às outras religiões do mundo. Esta neces-
sidade de definição continuou no século XX quando se tomou parte
O calendário de práticas festivas e rituais mostra a diversidade da formação do nacionalismo indiano.
e unidade do Hinduísmo. As festividades vulgarmente observadas Hoje em dia, a definição de Hinduísmo
em todo o sul da Ásia podem ter múltiplos significados e activida- está intimamente ligada aos problemas
des. Ao mesmo tempo, as culturas regionais efectuam celebrações ·t··
da identidade indiana, quer dentro dos 1,11

desconhecidas aos hindus de outras zonas. No entanto, os padrões limites do subcontinente, quer noutros
gerais do espaço e tempo sagrados são partilhados nas divisões países em todo o mundo. O moderno
regionais e sectárias do Hinduísmo. dharma hindu está também a ser refor-
mulado pela necessidade de se adaptar a
novos cenários sociais nesta época de
urbanização e migração global.

1'1
Ressurgimento e reforma I'

O século XIX foi uma época de ressurgimento e reforma na li,,


vida religiosa hindu. Durante este período, os hindus resolveram I

definir conscientemente a sua tradição religiosa. Foi necessário


I
11

fazê-lo para distinguir uma tradição de outra e ao longo da história


do Sul da Ásia as religiões, como o Budismo e o Islamismo, distin- •·
guiram-se como sendo diferentes da tradição bramânica; portanto, 11.1

anteriormente não era a tradição que necessitava ser definida. No 11

século XIX, sob o governo britãnico, alguns hindus começaram a


sentir a necessidade de estabelecer conscientemente a sua tradição.
Foram influenciados por factores vários, tais como as pressões dos
missionários cristãos, a experiência de viajar a Inglaterra, o facto de
se encontrarem numa terra onde não estavam presentes as bases do 'l'll
seu sistema cultural, bem como urna educação em escolas britâni-
cas. A educação ocidental trouxe consigo o pressuposto de uma dis- ,I
,,,,
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90 + Hinduísmo Período moderno 11: forças de mudança + 91

tinção entre as práticas religiosas e sociais que, por sua vez tornou nixadas, sermões e hinos. Roy trabalhou ainda no estabelecimento
possível criticar estas últimas com não sendo aceitáveis, mesmo da educação científica ocidental na Índia. Pouco depois da sua
estando imbuídas de autoridade através das instituições religiosas. morte, ocorreu um cisma entre os membros que deixaram de usar os
Isto preparou o terreno para uma reforma, cujos chefes, porém, não cordões sagrados para mostrar a sua crença em que não existia qual- ll!ilill
desejavam pôr de lado o Hinduísmo e substituí-lo pelas tradições quer desigualdade entre as castas inferiores e superiores e os mais
ocidentais, mas apenas para eliminar práticas consideradas indignas conservadores, que acreditavam uma hierarquia de castas.
de uma grande religião mundial. Os chefes dos movimentos refor- Este cisma e os problemas referentes ao grupo reflectem a loca-
mistas tinham um tremendo orgulho na sua herança religiosa, prin- lização dos seus membros na ordem social. O casamento infantil e
cipalmente na sofisticada filosofia dos Vedas e Upanixadas. Assim, o sati eram essencialmente práticas da casta superior, anteriores ao
a reforma foi acompanhada de um ressurgimento do interesse pelos século XX. A rejeição do teísmo popular em favor da crença num
textos antigos. Brama impessoal é a posição de uma elite instruida e não do vulgar
camponês para quem a devoção pessoal é a parte mais importante
Brahmo Samaj da experiência religiosa. O Brahmo Samaj atraía os brâmanes que
não eram demasiadamente ortodoxos e a recém t.-riada classe média
O primeiro movimento de reforma foi o Brahmo Samaj, funda- urbana. O conjunto dos seus membros não era grande, mas o movi-
do em 1828 por Ram Mohan Roy (1772-1833). Roy era oriundo de mento estabeleceu um precedente ao fazer a distinção entre as prá-
uma família brâmane bengalesa e foi educado numa universidade ticas sociais e a religião, exigindo seguidamente a reforma daquelas I
''•
muçulmana, tendo trabalhado para a British East India Company, em termos de "correcçãolt na ética religiosa. Esta crítica desafiou a
cm Calcutá. No decorrer dos seus estudos, explorou as filosofias definição da ortodoxia hindu.
oriental c ocidental e no seu movimento reformista apoiou-se em
ideias provenientes dos Upanixadas, no Advaita Vedanta de Sanka- Arya Samaj
ra, na teologia sufi do Islão, no Unitarismo e no Deísmo. Acredita-
va num Deus ao estilo deísta, um criador transcendente que não Em 1875, Dayananda Sarasvati (1824-1883) criou um segundo
podia ser conhecido porque a sua essência era inefável. Pensava que movimento refonnista chamado Arya Samaj. Ao contrário do Brah-
todas as religiões tinham no cerne esta mesma concepção, apesar mo Samaj, que aceitava a superioridade da ciência e de alguma ética
das diferenças das suas práticas externas; advogava, assim, a tole- social ocidental, este movimento acreditava que os Vedas eram a
rância e a crença que todas as religiões eram essencialmente uma. mais importante fonte de conhecimentos e ética no mundo. Consi-
Roy centrou-se na razão e na ética. Através da razão e da observa- deravam até os textos sânscritos tardios como sendo de menor valor, I'
ção do mundo natural divinamente criado, poderia conhecer-se encontrando-se a verdadeira revelação nos hinos do Rigveda. O
Deus e compreender-se as leis morais universais. Arya Samaj inspirava orgulho na antiga herança do Hinduísmo e
Ram Mohan Roy considerava os ensinamentos dos Upanixa- opunha-se activamente aos esforços missionários de cristãos e '.111111,

das e os Brahma Sutras como sabedoria suprema e queria purificar mnçulmanos.


o Hinduísmo eliminando as degenerações éticas que tinham entrado
na tradição durante os últimos séculos. Fez campanha contra práti-
Baseado nos primeiros hinos Vedas, o Arya Samaj preconizava I III
o culto a um Deus impessoal e a rejeição de práticas "supersticio-
cas como o casamento infantil e o sati, nenhum dos quais tendo fun- sas", como a adoração tle imagens, a crença nas incarnações e nos
damento na religião dos Upanixadas. Deplorava as práticas rituais mitos das epopeias e dos Puranas ou nas suas práticas, tais como a
purânicas e tântricas. principalmente a veneração de imagens. De peregrinação. Nada disto fazia parte dos puros ensinamentos dos
facto, nutria pouca simpatia pela religião popular e aceitava apenas Vedas. Dayananda trabalhou activamente em prol das reformas
a concepção do divino como um Absoluto impessoal proveniente sociais, como a eliminação do casamento infantil, de modo a redu-
dos Upanixadas. As práticas do Brahmo Samaj eram decalcadas dos zir o número de viúvas, permitindo um matrimónio por escolha e
serviços religiosos cristãos. As reuniões incluíam leituras dos Upa- não por contrato e encorajando a educação de rapazes e raparigas.
1:1)1!
92 + Hinduísmo Período moderno 11: forças de mudança + 93

Acreditava que a escolarização era o meio de se ensinar a ser bom caminho era idêntico, de modo que concluiu serem todas as reli-
hindu e a promover a unidade nacional. Para levar a cabo estes giões verdadeiras, tomando apenas atalhos diferentes para chegar a ,!'

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objectivos educacionais, o Arya Samaj criou em toda a Índia esco- uma meta final.
las denominadas gurukulas. Ai ensinava-se o sânscrito, símbolo lin- Ramakrishna foi reconhecido como santo ainda em vida e tem
guístico da herança indiana e o hindi, que Dayananda promovia inúmeros segui<.lores. Entre estes esteve Narendranath Datta,
como língua nacional. jovem membro do Brahmo Samaj, que se tornou sannyasin depois
O realce dado ao hindi demonstra os laços regionais do Arya de se encontrar com ele, tomando o nome de Vivekananda. Swami
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Samaj. Teve enorme êxito no Norte da Índia, onde conseguiu Vivekananda (1863-1902) teve um tremendo impacto no desen-
mesmo reconverter pessoas do Cristianismo e Islamismo. A cele- volvimento da moderna identi<.lade hindu, quer no Sul da Ásia,
bração da herança védica confere orgulho à identidade indiana, quer no ocidente. Chegou aos Estados Unidos em 1893 para tomar
tendo o movimento tido gramle aceitação pela classe de comercian- parte no Parlamento Mundial de Religiões, em Chicago, e a des-
tes do século XIX e pelos hindus estabelecidos na África do Sul e crição do Hinduísmo que apresentou nesse fórum tornou-se a base
nas Ilhas Fiji. Mas, tal como com o Brahmo Samaj, houve uma fraca da maior parte das interpretações ocidentais da tradição durante
resposta por parte das massas para quem a vida religiosa significa- grande parte do século seguinte. Vivekananda criou uma empatia
va devoção e uma experiência pessoal do divino. Porém, apesar do com o seu público ocidental, e tornou-se de imediato uma celebri-
limitado número de membros, o movimento foi influente na criação dade na América. As pessoas estavam tão interessadas nos seus
de laços entre o Hinduísmo e a identidade nacional, que mais tarde ensinamentos que em 1895 criou a Sociedade Vedanta, em Nova
surgiria na política moderna. Iorque, para partilhar as suas ideias com os americanos. O suces-
so <.!e Vivekananda trouxe-lhe fama mundial e fez dele um herói
Missão Ramakrishna nacional da Índia. O seu êxito motivou grande orgulho nos hindus
que, pela primeira vez, deram conta que os ocidentais aplaudiam
Tanto o Arya Samaj, como o Brahmo Samaj foram movimen- publicamente a sua fé em vez de a considerarem uma tradição
tos de reformas sociais saídos de uma classe superior com educação retrógrada de que deveriam desistir, substituindo-a pelo Cristia-
ocidental. Outra influência chegou por parte da tradição devota ben- nismo, religião mais "moderna". Com os esforços de Vivekanan-
galesa através das experiências do santo Ramakrishna e do seu dis- da, o Hinduísmo granjeou o respeito como religião mundial, no
cípulo Vivekananda. Ramakrishna (1836-1886), nascido numa mesmo pé de igualda<.le que o Ju<.laísmo, o Cristianismo, o Isla-
família brâmane Vaishnava, serviu como sacerdote num templo mismo e o Budismo.
perto de Calcutá dedicado à deusa Kali. Passava o tempo em práti- A sua filosofia baseia-se no Advaita Vedanta. Vivekanan<.la .I
cas devotas como a meditação e canto dos hinos, tendo começado a acreditava que o divino é omnipresente e que a meta de vida deve-
entrar em estados de transe durante os quais tinha visões de Kali. ria ser obter a identidade com esse deus. A partir deste objectivo,
Por fim, uma tal concentração nestas devoções fez com que fosse Vivekananda desenvolveu programas sociais. Como o divino existe 'li
I•
necessário nomear outro sacerdote para realizar as actividades do em tudo, não pode haver estatutos inferiores ou superiores. O esfor-
templo. Ramakrishna continuou a viver Já e a progredir no seu ço para ver o divino em si próprio e nos outros leva à compaixão por
caminho espiritual através da orientação de dois gurus. Um era uma todas a gente. A Missão Ramakrishna estabeleceu-se em 1897 para
mulher brâmane que lhe ensinava práticas tântricas para controlar as prestar ajuda através da educação, reformas sociais e auxílio aos
emoções e encaminhar as energias físicas. O outro era um sadhu que doentes. É orientada por uma ordem de monges que dirigem os seus
o instruía nas técnicas da meditação, <.!e mo<.lo a experimentar a colégios, escolas secun<.lárias e hospitais. Na altura da sua criação,
identidade entre o eu e Brama. Ramakrishna tinha visões de muitas esta ordem monástica era única na Índia porque os seus membros
divindades, incluindo Jesus Cristo. Estudou o Cristianismo e o Isla- tinham de viver dedicados ao mundo e não num isolamento ascéti-
mismo, seguindo os seus ensinamentos até sentir ter atingido a meta ca. A ordem ensina o Hinduísmo "Neovedanta" de Vivekananda,
final de cada uma das tradições. Na sua experiência, o fim de cada que acentua a i<.leia da tolerância hindu. Todas as seitas dentro do
11111'1

94 + Hinduísmo Período moderno 11: forças de mudança + 95

Hinduísmo e, afinal, todas as outras religiões são diferentes cami- continente. A ligação entre a identidade indiana e a hindu, persistiu
nhos para a mesma meta. Esta opinião foi criticada por ter simplifi- após a independência da Índia e desempenha um papel na política e
cado em demasia as tradições hindus, mas teve grande aceitação nos movimentos sociais.
entre a classe urbana de educação inglesa, que precisava de um
modo de equilibrar a sua herança tradicional com o mundo moder- O movimento de independência
no em que tinha de viver.
O impulso em direcção à reforma religiosa não era novo no Os chefes do movimento de independência da Índia usaram
século XIX. Muitos dos grandes poetas-santos também tinham cri- práticas e ideais hindus para granjear o apoio do povo. Acentuaram
ticado as distinções de casta, o menosprezo das mulheres e o ritua- as diferenças dos Ingleses como seguidores de uma fé estrangeira e
lismo oco. Mas equiparavam as suas queixas no ãmbito da vida reli- caracterizaram as leis do governo que afectaram as tradições há
giosa. Tentavam fazer notar que a casta e o sexo não eram factores muito estabelecidas como ataques à religião hindu. Assim, por
determinantes na relação com Deus e que a verdadeira devoção exemplo, quando o governo ilegalizou o sati e decretou que as viú-
tinha mais valor do que os rituais sacerdotais. Os poetas não tenta- vas podiam voltar a casar, muitos indianos consideraram as novas
vam reformar a ordem social para além do dontinio das práticas leis como fazendo parte de uma conspiração cristã para subverter o
devotas. No século XIX, os reformistas começaram a criticar as prá- Hinduísmo, não obstante os membros do Brahmo Samaj e do Arya
11,
ticas sociais que já não pareciam aceitáveis, mesmo que popular- Samaj terem tentado obter estas mesmas reformas. A percepção de
mente consideradas como possuindo sanção religiosa. Estes de- uma perseguição religiosa estrangeira ajudou a criar um sentido de
safios à tradição foram reforçados por um revivalismo do interesse unidade entre os indianos hindus.
pelas revelações contidas nos Vedas e Upanixadas. Os antigos tex- B.G. Tilak (1856-1920) utilizou o Hinduísmo como forma de
tos tornaram-se uma fonte de religião e ética "puras" utilizadas para apelo popular nos seus esforços de união do povo em grupos nacio- 1

condenar as práticas sociais que não tinham a sanção das escrituras nalistas, particularmente na região de Maharashtra, de onde era na- 111!

e eram consideradas incongruentes com os ideais védicos. Gradual- tural. Através do jornalismo em marati, a língua regional, deu voz
mente, os poetas-santos medievais acabaram por ser vistos como à oposição às leis inglesas que desafiavam as tradições culturais.
precursores dos reformistas dos séculos XIX e XX e as suas críticas Utilizou os festejos religiosos tradicionais como ocasiões para dis-
feitas a instituições religiosas estenderam-se à ordem social, num cursos patrióticos e educação política de massas; fez reviver as fes-
sentido mais lato. Hoje em dia, a maior parte dos hindus pensa que tividades de Ganesha como modo de tocar um nacionalismo espe-
santos como Kabir, que desafiou as tradições, são de facto refor- cificamente hindu; apoiou as Sociedades de Protecção à Vaca, que
mistas sociais. tinham aceitação universal na Índia pois para muitos, a vaca é um
símbolo do Hinduísmo: como representação da fertilidade e das
dádivas da natureza a vaca é um símbolo-mãe venerado, apesar dos
Hinduísmo e nacionalismo limites sectários. O ideal hindu de não matar (ahimsa) é largamen-
te aplicado à crença de que não se deve fazer mal a estes animais,
O Hinduísmo representou um papel vital no desenvolvimento pelo que a preocupação de os proteger dos inimigos, isto é dos bri-
do nacionalismo indiano. O nacionalismo requer uma administração tânicos e dos muçulmanos que comem carne de vaca) foi um pode-
central e um sentido de identidade partilhada como um corpo que rosos unificador.
suplanta a identidade pessoal e local. O dontinio britânico na Índia Tilak também se aproximou da lenda de Xivaji, o grande chefe
forneceu ao nacionalismo moderno a necessária administração cen- de Maharashtrian que lutou com êxito contra os Mogóis do século
tralizada, mas a ideologia que reuniu o povo era baseada no idioma XVII. Tal como Xivaji tinha expulso os Mogóis também os Ingle-
comum do Hinduísmo. Apesar das diferentes línguas e culturas, ses teriam de partir. Criou festejos em honra do nascimento de Xiva-
apesar das divindades e seitas díspares, esta religião ofereceu sím- ji para promover o ideal de svaraj, "auto-governo". O próprio Tilak
bolos e ideais que atraíram diversas regiões e classes sociais do sub foi visto como a reincarnação de Xivaji e houve quem o conside-
96 + Hinduísmo Período moderno 11: forças de mudança + 97

rassc um avatara de Vixnu, vindo, como Rama ou Crixna, parares- sarvodaya, a "elevação total". Estendeu à nação indiana e a todos
taurar o equilíbrio da equidade. os cidadãos a ideia tradicional de dharma como dever para com a
Um dos efeitos secundários da utilização de alegorias de heróis fanu1ia e a comunidade.
hindus do passado foi criar um nacionalismo implicitamente anti- Em 1947, o subcontinente conseguiu a independência mas não
muçulmano e antibritânico. Nos movimentos literários bengaleses como uma nação. Foi dividido para criar o Paquistão, país de maio-
da mesma época surgiu um padrão semelhante. A literatura benga- ria muçulmana, que ocupou as duas regiões onde esta população era
lesa estava eivada de um nacionalismo místico que realçava o pas- maioritária. Mais tarde, o Paquistão Oriental tornou-se o Bangla-
sado da Índia, principalmente em relação aos feitos dos guerreiros desh. A separação fez com que milhões de hindus e muçulmanos
Rajput que combateram contra os invasores muçulmanos. Nessas abandonassem os seus lares e o processo foi acompanhado por um
obras. estes simbolizavam todos os governos estrangeiros e eram terrível derramamento de sangue. A perda de vidas, de terras de
essencialmente substitutos dos Ingleses, mas com o passar do família e de meios de subsistência criou conflitos de ambos os lados
tempo, todos os muçulmanos foram demonizados. da fronteira. Nos anos subsequentes tem havido surtos periódicos de
Um segundo tema na literatura bengalesa era a imagem da violência entre as duas comunidades religiosas, pois o sentimento
Índia como terra sagrada, personificada como deusa. O ideal da de identidades separadas baseado na religião tem continuado a for-
devoção altruísta a Kali foi transferido para a Mãe Índia. Bharat talecer-se.
Mata. A Mãe Índia era um símbolo unificador, uma divindade A tensão entre hindus e muçulmanos é apenas o exemplo mais
maternal de todos os filhos hindus. Mas também aqui não havia evidente de uma situação denominada comunalismo. O comunalis-
espaço para outras religiões: a terra sagrada era uma Deusa hindu. mo significa a definição de interesses sociais e políticos através de
Mohandas K. Gandhi ( 1869-1948) lentou incluir outras religiões. referências primárias a comunidades religiosas. Esta divisão em ter-
principalmente o Islamismo na sua visão da Índia independente. mos religiosos pode também transformar-se numa outra de linhas
mas utilizou também a linguagem do Hinduísmo para espalhar a sua sectárias. Os membros de um mesmo grupo partilham uma língua
mensagem nacionalista. comum e é sempre fácil considerar como "outros'' aqueles que não
Gandhi surgiu como um chefe que combinava a vida tradicio- lhe pertencem. A partir do princípio do século XX, a prática de con-
nal de um santo religioso com as aspirações de um povo à procura ferir privilégios especiais e representação no governo a grupos
da liberdade do domínio estrangeiro. O seu grande triunfo foi tra- minoritários contribuiu para esta dissensão. Para além disso, os fra-
zer a população para o movimento de independência, dando ao cos são encorajados a manterem-se fracos para reter os seus privilé-
povo uma sensação de envolvimento no destino da sua nação e tor- gios. Isto perpetua as divisões de classe e ensina a pensar em termos
nando a identidade individual parte da nacional. A autoridade de grupos partidários e não como nação.
vinha-lhe do seu estatuto de sadhu, homem santo, vivendo segun-
do o dharma hindu. Acredita-se que o ioga confere força ao corpo. Hindutva
ao espírito e até ao próprio cosmos. Como iogui, seguindo as prá-
ticas tradicionais de meditação, jejum. silêncio, celibato e não A Constituição da Índia define a nação como um Estado secu-
agressão de outros seres, Gandhi tinha o poder c a autoridade de um lar, mas confere privilégios de protecção a vários grupos minoritá-
mestre religioso: tornou-se o guru das massas c usou ainda mode- rios, de modo a que tenham representação e oportunidades apesar
los religiosos na sua campanha pela independência. Partiu cm pere- dos seus números limitados. Alguns destes grupos são de religiões
grinações para educar o povo c protestar contra as leis. Preconiza- minoritárias como o Islamismo, o Cristianismo, o Siquismo ou o
va o protesto não violento de acordo com a crença hindu de evitar J ainismo. Outros são comunidades de casta inferior que tem estado
agredir outros seres (ahirnsa). Descreveu a meta da independência tradicionalmente no fundo da hierarquia social. Assim, por exem-
para criar oRam Rajya, "o Reino de Rama", o governo da ordem plo o governo reserva um determinado número de lugares no fun-
dhánnica associada ao Senhor Rama no Ramayana. Gandhi asso- cionalismo público para as castas intocáveis que são hoje em dia
ciou também o Hinduísmo ao trabalho social através do ideal de denominadas Dalits ("oprimidos").

li. I
98 + Hinduísmo Período moderno 11: forças de mudança + 99

Este sistema de reservar lugares e representações políticas a sadas e intocáveis. Enquanto que dantes estas pessoas não eram
grupos minoritários criou conflitos. Muitos hindus sentem que, autorizadas a entrar nos templos, hoje em dia o VHP encoraja-as
como maioria. deveriam ter um estado organizado de acordo com as activamente a tomar parte nos rituais hindus.
suas crenças e que as minorias, como os pequenos grupos dentro Nos anos oitenta e noventa, a popularidade do VHP cresceu. No
dele, não deveriam receber tratamento preferencial. O conflito é domínio político, o aumento exponencial do apoio eleitoral dado a
ainda mais exacerbado pela falta de empregos para trabalhadores membros do Partido Bharatiya Janata (PBJ), que usa a ideologia
especializados e não especializados. Nestes últimos anos surgiram nacionalista hindu do VHP, mostra a sua difusão. Este aumento de
várias organizações para promover os direitos da maioria e advogar apoio e a subsequente utilização dos ideais do VHP na política surgi-
a criação de um Estado hindu. ram de campanhas estratégicas notavelmente eficazes. Uma delas foi
Destas organizações, uma das primeiras foi o Mahasahha o cortejo do Sacrifício pela Unidade realizado em 1983. Tratou-se, na
Hindu, formado em 1906 para salvaguardar o modo de vida hindu. verdade, da formação de três enormes desfiles alimentados por
Os seus memhros envidaram esforços políticos para apaziguar as inúmeras procissões mais pequenas que para eles confluíram de todo
minorias contrárias aos interesses dos hindus. A adopção de ideias o subcontinente. O ponto de encontro em Nagpur foi comparado à
seculares ocidentais e as "excessivas" concessões aos muçulmanos confluência dos três rios sagrados em Allababad.
feitas para preservar a unidade durante a luta pela independência Os desfiles seguiam o formato dos cortejos das festividades do
foram consideradas traições à herança hindu. A organização ressur- templo. Cada um deles incluía uma carroça (neste caso tratava-se
giu nos anos vinte. Nessa altura, V.D. Savarkar. um dos seus chefes, antes de um camião e não de um carro que tivesse de ser empurra-
criou o termo Hindutva para explicar a ligação entre a identidade do ou puxado) em que seguia uma imagem de Bharat Mata, um
religiosa e nacional e que significa "ser hindu". Para Savarkar, um enorme pote cheio de água do rio Ganges e outro mais pequeno con-
hindu é aquele cujos antepassados viveram na Índia c que a consi- tendo água sagrada da região. Bharat Mata é equiparada a todas as
dera terra sagrada e hcrço da religião. Com esta dcrinição descreveu deusas locais veneradas na Índia e de facto, como a incarnação da
um Hinduísmo cultural partilhado pelo povo da Índia. Esta identi- própria terra, contém dentro de si todos os locais sagrados. Do
dade estende-se aos siques, budistas e jainistas porque a sua religião mesmo modo, toda a água sagrada da Índia provém, em última aná-
se desenvolveu na Índia, mas exclui o Cristianismo e o Islamismo. lise, do rio Ganges. Assim, a Mãe Índia e a água do Ganges são
O Vishva Hindu Parishad (VHP). fundado em 1964, é a orga- ambos símbolos da unidade hindu. Esta estende-se para além das
nização mais intluente a trabalhar para promover o ideal do Estado fronteiras do subcontinente com a participação internacional no
hindu. O VHP reúne os chefes religiosos de um largo número de sei- Sacrifício pela Unidade. Um pequeno desfile vindo do Butão viajou
tas c inclui representantes de fora da Índia. Trabalha para rcvilalizar até à Índia para se juntar a um dos grupos principais. Uma delegação
o dharnw hindu em todo o mundo. Segundo o VHP. o termo da Birmânia trouxe água do seu rio sagrado e outras trouxeram-na
''hindu" refere-se a ''toda a gente que acredita, respeita ou segue os das Maurícias, do Paquistão e do Bangladesh.
eternos valores da vida éticos e espirituais que surgiram cm Bha- O VHP tenta criar um Hinduísmo moderno como religião
rat Índia.'' A organização trabalha para l'ortalecer a comunidade nacional da Índia. Vêem a unidade como fonte de força para ajudar
hindu, uni ricando-a. Isto consegue-se renovando os templos, os hindus a resistir a forças exteriores que os ameaçam através da
reconstruindo escolas, promovendo o estudo do sânscrito, protegen- conversão a religiões estrangeiras e problemas internos causados
do as vacas, trabalhando para elevar as castas inferiores e comba- por conflitos entre eles. A oposição a tradições estrangeiras isto é,
tendo activamente a conversão para outras religiões. ao Cristianismo e ao Islamismo foi um dos temas da organização.
O VHP não é um movimento puramente conservador. Embora Este assunto representou um papel importante quando, em 1992, os
apresente o ideal de uma sociedade hindu, afirma ao mesmo lempo hindus destruíram a mesquita muçulmana chamada Babri Masjid,
que o antiquado código dhánnico de conduta tem de ser reorganiza- emAyodhya.
do para suprir as necessidades dos tempos mudemos. A aplicação Babri Masjid foi construída em 1528 por um seguidor de
deste princípio está evidente nos esforços para incluir as castas atra- Babur, o governante mogol. Segundo a tradição, a mesquita foi
100 + Hinduísmo Período moderno 11: forças de mudança + 101

construída no local de um templo hindu mais antigo, para comemo- truir um novo templo de modo a contrapor a desunião causada pelos
rar o lugar onde nasceu Rama, herói do Ramayana. Antes da inde- confrontos contra a reserva de lugares. Durante este cortejo, L.K.
pendência, os muçulmanos prestavam culto dentro da mesquita e os Advani, líder do PBJ, tomou o lugar do deus Rama. O governo
hindus fora dela. Em 1947. o governo indiano fechou o edifício a nacional posicionou-se a favor do secularização e o cortejo não foi
ambas as comunidades. Depois, cm 1949. alguém colocou uma ima- autorizado a chegar à mesquita. Como tal, o PBJ retirou ao governo
gem de Rama dentro da mesquita durante a noite e espalhou-se o o seu apoio no parlamento e os líderes que resistiram ao movimento
boato de que a divindade teria aparecido para reclamar o seu tem- perderam poder. A publicidade às marchas de Ayodhya contribuíram
plo. Os confrontos que se seguiram foram dominados pela polícia e para o êxito do PBJ nas eleições e, em 1991, conseguiram o contro-
a mesquita manteve-se fechada. le do governo do estado em Utar Pradexe. Em 1992, o VHP e o PBJ
Em 1984, o Vishva Hindu Parishad retomou a questão de recla- organizaram um conúcio em Ayodhya e a mesquita foi demolida.
mar o local do templo como parte do seu movimento nacionalista. O governo nacional condenou este acto e foi instaurado o donú-
Levaram em cortejo imagens de Rama e Si ta até Ayodhya, seguin- nio presidencial em Utar Pradexe, sendo demitidos os governos do
do depois para a capital, Deli, organizando comícios e fazendo dis- PBJ noutros três Estados. As organizações hindus como o VHP, que
cursos. Nos anos seguintes, a questão do templo-mesquita prosse- tanto contribuiu para a campanha de Ayodhya, foram banidas. O
guiu nas programas eleitorais dos partidos políticos, tornando-se a governo afirmou ainda que reconstruiria a mesquita. Mas o proble-
questão central para o Partido Bharatiya Janata. A história do deus ma não se limitou a Ayodhya. A violência comunal estalou em cida-
Rama tem uma ressonância especial como ideal político. Rama era des importantes como Calcutá e Mumbai (Bombaim), onde a maio-
o rei divino, o senhor do dharma que governou numa idade de ouro. ria das baixas foram entre os muçulmanos. Como resposta, houve
O próprio Gandhi invocou a imagem de Ram Rajya, o ';governo de confrontos no Paquistão e no Bangladesh quando os muçulmanos
Rama", como sociedade ideal. Um partido político que pudesse atacaram o comércio indiano e os templos hindus. Na Grã-Bretanha,
aliar-se à imagem do deus Rama e dos seu virtuoso reinado teria alguns templos e centros culturais hindus, uma mesquita e uma
uma poderosa aceitação cm toda a Índia. gurudwara sique foram atacados à bomba. Os negros muçulmanos
A força da imagem de Rama tornou-se evidente entre 1987 c protestaram diante da Nações Unidas em Nova Iorque.
1988, quando a série de televisão Ramayana foi para o ar e milhões A destruição da mesquita e as repercussões internacionais dessa
de pessoas na Índia e noutros países a ela assistiam todos os domin- acção mostram como a ligação entre religião e identidade nacional se
gos. A popularidade da série inspirou talvez, os políticos para reno- tomou poderosa. Mas o rescaldo mostra também que as crenças que
varem a sua insistência na imagem de Rama e do seu reino em levaram alguns a cometer acções violentas não são universais. A
Ayodhya. Em 1989, o VHP organizou cortejos para trazer tijolos até maior parte dos hindus condena a destruição e o derramamento de
Ayodhya, de modo a poderem construir um novo templo na terra sangue. Recordam a campanha de Gandhi para a não-violência como
natal de Rama. Essas pedras vieram de aldeias de toda a Índia e de um alto ideal e uma verdadeira marca da grandeza do Hinduísmo. A
apoiantes nos Estados Unidos, Canadá, Caraíbas c África do Sul. As reacção à violência que se seguiu à destruição de Babri Masjid pare-
autoridades não permitiram que os manifestantes desmantelassem o ce ter abafado o entusiasmo das campanhas políticas baseadas no
Babri Masjid mas alguns dos tijolos foram utilizados para construir comunalismo. Os políticos baseados na retórica "nós contra eles"
um alicerce num poço do exterior da mesquita. perderam terreno nas eleições desde 1992.
O esforço para acabar com a mesquita ganhou vigor em 1990,
depois de dois acontecimentos políticos. Primeiro a contínua dispu-
ta entre o Paquistão e a Índia pelo controle da região de Caxemira Hinduísmo global
conheceu um novo surto de violência. Depois, o governo indiano
tentou aumentar a reserva de lugares para as castas menos importan- Os ecos do conflito de Ayodhya em Londres e Nova Iorque
tes nas instituições educacionais c no funcionalismo público. O VHP demonstram a extensão global do Hinduísmo moderno. Durante os
começou outro cortejo ritual para Ayodhya com o objectivo de cons- séculos XIX e XX, os Hindus espalharam-se a partir da sua terra
102 + Hinduismo Período moderno 11: forças de mudança + 103

natal de modo que hoje cm dia vivem por todo o mundo. As expe- ros "centros culturais" onde se podiam reunir. Nos anos sessenta
riências da "diáspora" afectaram a sua definição de Hinduísmo. As havia um enorme sentido de identidade indiana comum que trans-
tradições tidas como certas quando faziam parte da religião princi- cendia todas as divisões culturais regionais entre os imigrantes. Se
pal tomaram novos significados c adequaram-se a novos cenários. um centro cultural mostrasse um filme bengalês, até mesmo os que
Ao mesmo tempo as adaptações e avaliações feitas no estrangeiro não entendiam a língua ficavam encantados com a oportunidade de
repercutem-se até ao Sul da Ásia, onde inlluenciam os aconteci- ver algo "indiano".
mentos da Mãe Índia. À medida que os imigrantes começaram a formar farm1ias sen-
No período moderno houve duas ondas de emigração hindu. A tiam cada vez mais a necessidade de instituições religiosas. A reli-
primeira ocorreu durante o século XIX e princípios do século XX. gião é o meio de transmitir aos filhos os valores culturais e muitos
No século XIX. a busca de trabalho levou os Indianos a emigrar preocupavam-se que aqueles absorvessem os maus hábitos das
para a Birmânia (Mianmar). Sri Lanka, Malásia. África do Sul, Ilhas sociedades ocidentais ou que fossem levados a converter-se ao Cris-
Fiji c Índias Ocidentais. Nos anos vinte havia aproximadamente tianismo. Na Índia, os avós são o veículo principal para a educação
dois milhões de indianos a viver no estrangeiro, principalmente cm religiosa: levam os mais novos aos santuários e templos locais e
colónias e domínios britânicos. A maior parte eram trabalhadores contam-lhes histórias de santos e divindades. Mas não existe esta
1'1
contratados, mas apesar da descriminação, da falta de oportunidades geração mais velha nos lares dos imigrantes. Além do mais, é muito
de educação escolar e das elevadas taxas de mortalidade. prospera- diferente aprender uma religião no país em que esta faz parte da
ram no seu novo ambiente. Viviam geralmente em comunidades vida diária e é praticada por todos do que noutro, em que residem
étnicas em que podiam seguir as tradições da pátria. Ergueram tem- apenas meia dúzia dos seus crentes. Nos países ocidentais não há
plos e usaram sacerdotes (não necessariamente brâmanes) para cele- feriados nacionais hindus, nem os sadhus vagueiam para partilhar a
brar os ritos tradicionais. As práticas incluíam todas as tradições sua sabedoria espiritual, não há contadores de histórias itinerantes
populares anteriormente descritas. para dar a conhecer as grandes epopeias. Assim, os pais têm de
A segunda vaga, que de facto ganhou importância nos anos arranjar maneira de explicar às crianças que crescem num meio cul-
sessenta c continua até aos nosso dias, formou-se com a população tural diferente uma tradição que a maior parte deles nunca tentou
urbana, instruída e de classe média. Esta gente das cidades emigra conscientemente definir.
para os centros urbanos dos Estados Unidos, Grã-Bretanha. Cana- Os templos tornaram-se pontos fulcrais para preservar a tradi-
dá e para centros económicos da Ásia, como Singapura. São pro- ção. Porém, mesmo quando as comunidades começaram a angariar
fissionais, médicos, engenheiros e programadores de computador, dinheiro para a sua criação, fizeram logo numerosas adaptações aos
em busca de oportunidades económicas por não haver emprego novos ambientes. Os primeiros templos eram edifícios reconverti- 1:
suficiente na Índia para todos os licenciados. Ao contrário dos imi- dos, muitas vezes igrejas. Depois, as comunidades arranjaram fun-
grantes refugiados do Leste europeu e do Sudoeste asiático, estes dos para construir templos de arquitectura tradicional. Muitos deles
hindus de classe média não se estabelecem em guetos étnicos, são réplicas parciais dos da Índia que os apoiam. Mas os templos da
mudam-se para as áreas suburbanas onde há boas escolas para os diáspora são singularmente ecuménicos. Num esforço para ir de
filhos. A maior parte destes imigrantes consegue rapidamente um encontro às necessidades das diversas comunidades de imigrantes,
estatuto de classe média nos novos países, porque são instruídos e contêm imagens de numerosas divindades e não apenas uma princi-
falam inglês. Os indianos orientais que vivem nos Estados Unidos pal e o seu respectivo séquito. Assim, é vulgar encontrar Xiva e
são conhecidos como a comunidade imigrante mais bem sucedida Vixnu lado a lado, rodeados por várias deusas e divindades regio-
da história da nação. nais. O Templo de Shri Venkateshwara no sul da Califórnia tem
Durante os primeiros anos na sua nova terra, os imigrantes con- duas áreas de culto adjacentes. O complexo principal é dedicado a
centraram-se no sucesso económico, não se preocupando com a Vixnu e abriga imagens de várias incarnações do deus, mas Xiva, a
falta de oportunidades para a prática da vida religiosa. Porém, sen- sua esposa Parvati e Ganesha presidem ao segundo complexo do
tiam a falta de uma identidade, de modo que foram criados inúme- outro lado do muro. As imagens destes templos da diáspora são fei-
,,;1

104 + Hinduismo Período moderno 11: forças de mudança + 105


I

tas na Índia por artesãos tradicionais e respeitosamente instaladas nas comunidades hindus formadas pelos trabalhadores rurais na pri-
por sacerdotes brâmanes. Alguns templos tentaram mesmo satisfa- meira vaga de migrações, em geral não se encontram na segunda.
zer os seus membros, oriundos de toda a Índia, arranjando imagens Isto reflecte as diferentes origens de classe dos imigrantes.
de mármore branco para os do Norte e de pedra negra para os do A criação de instituições religiosas hindus em terras estrangei-
Sul. ras foi acompanhada de alguns novos problemas. Um deles tem sido
O facto de se viver num país não hindu trouxe também altera- a falta de comunicação entre os hindus e a sociedade maioritária.
ções aos calendários do templo. As festas são muitas vezes celebra- Tem havido problemas menores com o ruído das celebrações noc-
das aos fins de semana e não na data própria de acordo com o calen- turnas e queixas acerca do excesso de automóveis estacionados em
dário lunar hindu. Assim. as pessoas têm maior facilidade cm assis- bairros residenciais perto dos templos, na altura das festividades; há
11
tir. principalmente se tiverem de fazer uma longa viagem. A maior ainda problemas maiores quando os moradores cristãos de uma 11

parte dos templos realiza serviços regulares aos fins de semana, pois cidade receiam que uma comunidade indiana possa querer tentar
os frequentadores são mais numerosos nessa altura. Organizam tam- construir uma novo Rajneeshpuram'"· Estes problemas resolvem-se
bém acampamentos c aulas para ensinar às crianças o dharma e os geralmente através do debate. Os hindus aprendem agora a oferecer
1
valores hindus, bem como as línguas indianas. As crianças dizem ter e facultar informações acerca da sua religião, de modo a que os 11 l!l

uma sensação de alívio e integração nas suas experiências nos vizinhos não comparem as suas tradições a cultos New Age; por sua
acampamentos, pois encontram-se num ambiente totalmente hindu, vez, os ocidentais aprendem que o Hinduísmo é uma tradição dife-
onde não se sentem obrigadas a explicar o que estão a fazer ou rente e que não são representativas dela as poucas imagens extre-
naquilo que acreditam. Mesmo num país ocidental "secular", o Cris- mistas que apareceram nos orgãos de comunicação social mundiais.
tianismo prevalece no calendário escolar (Domingos livres, férias Uma outra questão para as instituições da diáspora é o apoio ao
no Natal e na Páscoa) e as crianças de outras confissões sentem-se templo. É muito mais fácil convencer as pessoas a fazer doações 11
muitas vezes desadaptadas em relação aos colegas. A forte necessi- para o projecto da sua construção, do que obri,gá-las a fazer contri-
dade de preservar as tradições culturais para as gerações seguintes buições regulares para a sua manutenção. Na India, os templos são
levou à criação de aulas de música e dança indiana. Muitos templos mantidos por receitas públicas, mas noutros países têm de recorrer
possuem auditórios para representações e cozinhas para preparar aos seus membros, o que fez reaparecer o problema do comunalis- 11

festas, de modo que são centros comunitários ao mesmo tempo que mo. À medida que as comunidades imigrantes crescem, têm ten-
locais religiosos. dência a subdividir-se ao longo de linhas regionais e culturais, aca-
O processo de explicar o Hinduísmo é auxiliado por uma indús- bando com a atitude ecuménica dos pequenos grupos iniciais. Os
tria em expansão de literatura educativa, a maior parte da qual publi- Guzarates começam a exigir o seu templo próprio com divindades
cada sob os auspícios do Vishva Hindu Parishad. Será este o passo regionais e onde os cânticos serão entoados em guzarate, bem como
lógico para uma organização que quer melhorar o dharma hindu c os Bengaleses, que também desejam, um local só para si. O apare- 1.1111
evitar a conversão a outras religiões, mas significa ao mesmo tempo cimento desta tendência para a divisão é comum em todo o mundo.
li
que o Hinduísmo ortodoxo está a ser definido por um determinado Em Toronto, no Canadá, há tensões entre os tamiles de Tamil Nadu
grupo. O VHP na Índia é essencialmente urbano e de classe média. e os do Sri Lanka. Os naturais do Sri Lanka chegaram mais recen-
portanto as suas definições podem não incluir a religião popular, temente mas são mais numerosos que os hindus de Tamil Nadu e
mas como o público imigrante pertence a esta mesma classe, as estão a modificar o modo como as coisas eram feitas no templo fre-
interpretações adequam-se às necessidades. quentado por ambos os grupos. Este comunalismo an1eaça prejudi-
Na diáspora, faltam elementos da vida religiosa consi- car a subsistência dos centros religiosos, pois as comunidades imi-
derados tradições populares. Nos países ocidentais. as divindades grantes constroem mais templos do que os que podem manter.
do templo recebem apenas oferendas vegetarianas. Não há deusas Outro problema vem do conflito de gerações entre pais e filhos. I,,
de aldeia para apaziguar ou acalmar com sacrifícios de sangue e as Os filhos crescem servindo de medianeiros entre duas culturas.
tradições da possessão e técnicas de cura que se podem encontrar Muitos deles sentem grande orgulho na sua herança indiana, mas
f
106 + Hinduísmo tll Período moderno 11: forças de mudança + 107

são também afectados pelo meio cultural cm que passam a maior :1 belecer o Hinduísmo no mundo como uma grande religião, equipa-
parte do seu tempo de escola. Como crescem em sociedades oci- ' rada ao Cristianismo e ao Islamismo. Isto, por seu lado, contribuiu
dentais sentem-se por vezes pouco confortáveis com algumas práti- para o desenvolvimento do nacionalismo, ao qual o Hinduísmo ofe-
cas do Hinduísmo, principalmente o culto das imagens. A visita ao receu a língna comum para dar ao povo da Índia nm sentido de iden-
templo nos fins de semana e o passar algum tempo nos acampa- tidade partilhada como nação. Mas, mesmo apesar desta identidade
mentos de Verão não é o mesmo que viver na terra tornada sagrada nacional ter sido criada, o Sul da Ásia mantém-se como área de
pela presença física de divindades acompanhadas dos seus mitos. A grande diversidade cultural e há numerosas forças trabalhando para
maior parte dos indianos criados na América prefere um Hinduísmo influenciar o Hinduísmo moderno. Examinaremos a seguir algumas
do tipo Neovedanta, favorecendo um Brama impessoal. das tendências predominantes que dão forma ao futuro desta tradi-
Porém, lentamente, a terra fora da Índia tem sido sacralizada ção infinitamente variável.
pelo Hinduísmo. Os fiéis nos Estados Unidos podem substituir os
rios Ganges e Yamuna pelo Mississipi e Missouri, consagrando
assim as águas norte-americanas. As imagens de barro de Ganesha
c outras divindades são levadas em procissão pelas ruas europeias c
americanas c imersas cm cursos de água locais. Os maiores templos
da Europa e dos Estados Unidos com a sua arquitectura tradicional
e imagens consagradas, transformam-se pouco a pouco cm locais de
peregrinação e um lingam de Xiva manifestou-se no Golden Gate
Park. em São Francisco.
A pedra em forma de cúpula apareceu no parque, numa encru-
zilhada de três atalhos, onde foi notada pelos hindus que por lá pas-
savam muitas vezes. Sabiam que a pedra não se encontrava ali antes
e imediatamente a reconheceram como um lingam, uma manifesta-
ção do deus Xiva. A notícia espalhou-se e o parque começou a ser
muito visitado por pessoas que levavam oferendas de flores e fru-
tos. Gente do Xakti Mandir (templo) cm São Francisco cm breve
começou a observar um culto regular, de modo que a pedra fui
sendo gradualmente coberta com uma pasta de madeira de sândalo
e adornada com coroas de tlores. O lingam tomou-se um local de
peregrinação para os hindus de Bay Area. Afinal, era originaria-
mente um pilar ou uma barreira de estrada que a câmara abandona-
ra no parque. Reconhecendo que tinha um significado religioso, esta
ajudou a transportar a pedra para uma propriedade privada, pois não
são permitidos locais religiosos na propriedade pública da cidade.
1

I .11"
O Hinduísmo moderno partilhado pelas comunidades urbanas 1

em todo o mundo tem as suas raízes e ideais iniciados pelos refor-


mistas que começaram a redefinir a sua religião no século XIX. Vol-
taram-se para a herança da filosofia védica na sua busca de princí-
pios religiosos que se pudessem adaptar ao mundo moderno. O rea-
vivado respeito pela sabedoria das antigas escrituras ajudou a esta-
Em direcção ao futuro + 109

o Neovedanta de Swami Vivekananda. A maioria dos seus seguido-

[ Em direcção ao futuro I6 1
res combinou a religião com as preocupações sociais. Opõe-se à
ideia de que pode haver diferenciação de casta e sexo na educação
espiritual e sentem que o espírito hindu necessita de uma renovação.
Acreditam que as religiões se devem concentrar no bem estar das
corimnidades e não apenas na meditação. Estão consequentemente
Diz-se muitas vezes que o Hinduísmo nunca abandona coisa envolvidos em tentativas para "elevar" os intocáveis e construir hos-
alguma, sendo as ideias e práticas novas simplesmente acrescentadas pitais missionários hindus. Mostram também interesse pela vida
a antigas filosofias e reinterpretadas. O Hinduísmo é essencialmente espiritual das comunidades no estrangeiro. As necessidades dos
uma tradição de eterno renascer e as impressões cánnicas do passado emigrantes, a maior parte deles de classe média, são praticamente as
e do presente são as forças que dão forma ao futuro. Este processo con- mesmas que as dos seus irmãos na Índia. Ambos os grupos hindus
tinuará sem dúvida. O Hinduísmo tem mais de três mil anos de tradi- falam de crescimento individual e preocupações sociais e conside-
ções diversas de onde retirar ideias e força. A religião será adaptada ram a religião como um código de conduta. Centram-se principal-
para responder a futuras necessidades. mente numa vida de sucesso.
Presentemente, algumas tendências que Os gurus modernos tomaram-se muito populares entre uma
afectam a forma do Hinduísmo são a grande variedade de cidadãos urbanos. São eles os árbitros vivos da
urbanização, as mudanças nos papéis reli- tradição, adaptando os ensinamentos antigos às necessidades da I!

giosos da mulher, a tecnologia moderna, o vida moderna. Muitos abraçam um tipo de Neovedanta, destacando
regionalismo contínuo e a globalização. a sabedoria das escrituras pré-purânicas e a visão mística dos poe-
tas-santos. Afirmam que as filosofias hindus contidas nos Upanixa-
das são a essência de todas as religiões e assim os seus ensinamen-
Urbanização tos transcendem o sectarismo. Descrevem Deus como um Absoluto
impessoal, que tudo permeia. Consequentemente não pode haver
Embora quase três quartos da população do Sul da Ásia conti- conspurcação de castas. Acentuam a importância de práticas reli-
nuem a viver em aldeias, as áreas urbanas crescem rapidamente. Den- giosas pessoais que treinam o espírito e o corpo, tais como a medi-
tro das cidades, os padrões tradicionais dão lugar a novas adaptações tação, o pronunciar o nome de Deus e o entoar de cânticos devotos.
à vida e à religião. Há uma considerável disparidade nas circunstân- Estes ensinamentos combinam a instrução para viver neste mundo
cias económicas de quem vive nas cidades, pois alguns são trabalha- uma vida virtuosa e conseguir uma sabedoria elevada em vista à
dores pobres e outros fazem parte de uma classe média em expansão libertação dos laços da reincamação. Mas as tradições são também
de profissionais instruídos, embora as alterações sociais sejam de menos localizadas do que a religião de aldeia. A importância das
vários modos partilhadas pelos dois grupos. As profissões herdadas práticas pessoais não exige a residência num determinado local nem
foram substituídas por novos tipos de trabalho. O estatuto económico a frequência de um templo específico. Estes ensinamentos ade-
e social já não é baseado na posse de terras, gado, bem como nas co- quam-se perfeitamente à mobilidade da vida urbana.
lheitas, mas sim nos rendimentos em dinheiro. É menos provável que
as pessoas da cidade vivam em famílias extensas e não podem contar
da mesma maneira com as estruturas familiares. Na cidade, as divi- As mulheres e o Hinduísmo
sões de casta têm geralmente menos peso, excepto nas questões de
casamento. As filiações sectárias variam muitas vezes, pois as divin- Dada a importãncia patriarcal do Hinduísmo no último milénio,
dades do templo da aldeia podem não estar representadas na cidade. é surpreendente que um número tão elevado de gurus modernos
O crescimento da classe média urbana na Índia levou à divul- sejam mulheres. A sua maior visibilidade como chefes religiosos é
gação de um Hinduísmo "moderno" com muitas semelhanças com uma das importantes mudanças na religião moderna. Esta alteração
11 O + Hinduísmo Em direcção ao futuro + 111

te com os homens e saindo-se admiravelmente. Os reformistas utili-


zavam estas referências para preconizar uma educação mista como
,. base necessária para uma sociedade hindu ideal. Além do mais, como
as mulheres dos lkdas podiam falar em discussões públicas e passar
na escola o mesmo número de anos que os homens, havia causas para
rejeição de práticas como o purdah (o isolamento das mulheres), o
casamento infantil, o sati e a viuvez permanente. Devido a este acti-
vismo, quer dentro do Arya Samaj, quer do Brahmo Samaj, surgiram
organizações sociais de mulheres.
O uso da imagética feminina no movimento nacionalista e nas
seitas modernas contribuiu para a aceitação popular das mulheres
como líderes religiosos. Em particular os literatos bengaleses escre-
veram acerca da mãe Índia, Bahrat Mata, que teve de ser salva dos
infiéis que a profanaram. A imagem da Índia como deusa mãe espa-
lhou-se e continuou a granjear popularidade, recordando aos hindus
de todas as seitas que o Absoluto pode tomar uma forma feminina
tão facilmente como masculina. O símbolo da divina mãe passou
gradualmente a ser visto como realmente incorporado no ascetismo
feminino. O reconhecimento do aspecto feminino de Deus foi tam-
bém reforçado no passado século por chefes religiosos cujos ensi-
namentos incluem a ideia tântrica de Xakti como o poder feminino
de Deus. Ramakrishna impulsionou esta tendência ao venerar a sua
esposa como incarnação do divino feminino. Desde aí, a noção de
Xakti tornou-se uma vulgar legitimação do poder da mulher guru.
houve um enorme envolvimento feminino na luta
pela independência. Gandhi apresentou as mulheres como modelos
Duas raparigas praticam o puja, ou culto, no pequeno altar da sua casa morais ideais, pois personificavam a abnegação e a fortaleza interior.
em Calcutá. De.fde a independincia, em 1947, que os direitos educacionais O seu movimento independentista inspirou uma forte resposta às que
pertenciam à classe média e alta que, ao aperceberem-se das suas
e legais das mulheres melhoraram nas cidades indianas, embora nas áreas
rurais a desigualdade seja ainda jTequente. próprias capacidades, se viram transformadas pela experiência na
IIII
luta pela liberdade. O movimento de independência ofereceu-lhes
runa saída para as suas energias e capacidades. Trabalharam para !

tem as suas raízes em várias áreas, mais notavelmente nos movimen- organizar o povo e fornecer informações, entravam em manifesta- I

tos refonnistas, nacionalistas e independentistas hindus dos séculos ções e foram presas. Os seus contributos foram reconhecidas dentro
XIX e XX, os quais lançaram as bases para o respeito pela espiritua- do movimento, em que obtiveram posições elevadas e influência.
lidade feminina e a criação de oportunidades para a sua expressão. Desde a independência que muitas mulheres continuaram a tra-
Os movimentos refonnistas dos séculos XIX e XX advogavam balhar para a melhoria da sociedade seguindo as ideias de sarvoda- Ii
um retomo às puras tradições hindus do passado conforme estão des- ya, "a elevação total". Porém, os progressos sentidos pelas que per-
critas nos Vedas e nos Upanixadas. Nestes textos, as mulheres eram tenciam às classes instruídas são pouco evidentes nas zonas rurais.
educadas na herança védica, tal como os homens. Aparecem neles As taxas de literacia feminina são muito mais baixas que as mascu-
mulheres como Gargi, tomando parte dos debates eruditos juntamen- linas porque os rapazes recebem mais escolarização que as rapari-
112 + Hinduísmo Em direcção ao futuro + 113

gas. As leis da Índia tentam conferir direitos iguais às mulheres, mas sacerdotes ajuda as mulheres a aceitarem estes novos encargos, o
há grande diferença entre as leis escritas e a prática comum. As mu- que acontece principalmente nas comunidades hindus fora do Sul da
lheres de aldeia, incultas, ignoram geralmente os seus direitos Asia, onde os especialistas da tradição são poucos e as mulheres se
legais. Segundo a Constituição Indiana homens e mulheres herdam i;: encontram a desempenhar novas funções.
de maneira igual, porém, a propriedade rural mantém-se quase
exclusivamente em mãos masculinas. Em muitos estados, as assem-
bleias têm um lugar reservado para um membro do sexo feminino, ! Tecnologia moderna
mas as mulheres raramente têm conhecimento de tal facto e, mesmo '
que quisessem ser eleitas e tomar posse, teriam de enfrentar a terrí- A tecnologia moderna traz novas mudanças ao Hinduísmo.
vel perspectiva do desafio às antigas tradições. Como a dicotomia Pode ouvir-se música religiosa na rádio ou em fitas gravadas sem ter
entre a lei e a realidade tem sido publicitada, fizeram-se esforços de tomar parte nas reuniões. Utiliza-se o vídeo para gravar os rituais,
para informar as mulheres das aldeias, organizando-se programas quer para que sejam vistos, quer para preservar rituais já raramente
conduzidos quase exclusivamente por mulheres, de modo a educar realizados, de modo a que não se perca o seu conhecimento. A tele-
e tornar possíveis recursos para ajudar as outras. visão e o cinema são também um novo meio para contar a história
Os herdeiros dos movimentos reformistas trouxeram às mulheres dos deuses. Recentemente, um filme acerca de Santoshi Ma, uma
novas oportunidades para a vida religiosa. Sarada Math é uma comu- deusa local muito pouco conhecida, granjeou grande popularidade de
nidade monástica feminina que saiu da Missão Ramakrishna de Vive- modo que o seu templo se tornou subitamente um importante local
kananda. Este esperava criar o grupo, porém considerou que a altura de peregrinação.
não seria ainda apropriada. A sua visão tornou-se realidade em 1954. As alterações ocorreram também na prática da peregrinação.
A Sarada oferece às mulheres uma oportunidade de viverem numa Enquanto antigamente as pessoas se deslocavam a pé para os locais,
comunidade monástica com uma direcção exclusivamente feminina, agora podem usar transportes modernos para percorrer longas dis-
onde se combinam as práticas espirituais com o alcance social através tâncias. Além do mais, o cinema e a televisão deram a conhecer aos
das suas escolas e hospitais. O moderno reconhecimento da vida espi- hindus todos os importantes locais de peregrinação no Sul da Ásia.
ritual da mulher não é limitado a maiores oportunidades apenas na vida Os lugares onde as grandes divindades se manifestaram na terra, tais
monástica; são agora também reconhecidas como gurus. Vários gurus como o Vrindavan de Crixna, os templos de Xiva em Benares e o de
homens nomearam mulheres como suas sucessoras, passando-lhes a Devi em Madurai, tornaram-se agora ainda mais populares pois são
responsabilidade de continuar a transmitir ensinamentos às suas discí- acessíveis a muita gente, que vem de todo o mundo para participar
pulas. Algumas tornaram-se mesmo gurus independentes. Jnanananda das festividades.
Ma foi reconhecida pelo Sankaracharya de Kanchipuram, um dos mais ;!} Houve quem exprimisse a sua preocupação de que os meios de
respeitados árbitros da ortodoxia hindu. Há muito que era uma bem
sucedida líder espiritual, desde os seus dias de dona de casa, quando
1: informação pudessem levar à uniformização e que se perderia a
riqueza das tradições regionais se os hindus vissem televisão e
foi ter com ele para tomar votos de renunciante(!>. começassem a pensar que a religião lá apresentada era a "verdadei-
Outra notável oportunidade para as mulheres surgiu em Maha- ·•I ra". Muitos se preocuparam com isto durante a transmissão das epo-
rashtra, onde as mulheres foram preparadas para cumprir os deveres peias, pensando que a série tentava impor uma única versão "correc-
de sacerdotes do templo. A ideia de haver sacerdotisas é aceitável ta" do texto. Porém, outros observadores afirmavam que esta preo-
para muita gente das classes instruídas, que dizem pensar que as cupação era exagerada, pois acreditam que os hindus que amam as
mulheres são mais honestas e piedosas que os homens. Os sacerdo- suas tradições regionais acrescentarão novos elementos à cultura já
tes ortodoxos apresentaram objecções com a justificação de que per- existente, sem perder qualquer das antigas ideias. Provavelmente
mitir que as mulheres realizem os rituais é uma violação da lei védi- estão ambos certos: algumas tradições regionais estão a ser substi-
ca, porém os apoiantes afirmam que nos Vedas não há qualquer ··&, tuídas, sendo outras adaptadas utilizando o mesmo processo vindo
proibição real contra as sacerdotisas. A escassez cada vez maior de :j.. já dos tempos da civilização do Vale do Indo.
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114 -+- Hindufsmo Em direcção ao futuro + 115

A força do regionalismo cação foi uma marcha a pé, baseada na peregrinação religiosa que
levou os porta-vozes do Chipko a aldeias remotas onde pudessem
O regionalismo é certamente um dos factores que continuarão espalhar informações. As canções populares mostraram ser um meio
a afectar o Hinduísmo no futuro. Os movimentos locais têm sido eficaz de fazer chegar a mensagem sobre o valor das árvores, e esta
sempre o centro dinãmico das tradições hindus, já que a identidade teve um eco imediato pois a reverência por elas tem uma longa tra-
individual está mais intimamente ligada à lealdade à família e à dição dentro do Hinduísmo, vinda do Rigveda. O Chipko organizou
comunidade, mesmo nesta época de nacionalismo. Há um poder ainda acampamentos educacionais muito semelhantes a retiros espi-
enorme num grupo unificado com preocupações comuns. As pesso- rituais. Mas uma das melhores maneiras de chegar a uma vasta
as podem voltar-se para a comunidade local como fonte de força audiência era através das histórias dos heróis populares.
para enfrentar os problemas que afectam a vida da aldeia tradicio- Urna das mais famosas e inspiradoras fala-nos de Amrita Devi,
nal, bem como a vivida na diáspora urbana. O movimento Chipko é uma mulher da tribo Bishnoi, em Rajasfhan. Desde o século XV que
um exemplo da unificação de uma zona para confrontar problemas este povo proibiu o abate de árvores para conservar a sua ecologia.
que afectam a aldeia, enquanto que a tradição Swaminarayan ilustra Quando o rei enviou homens com machados para cortarem árvores
a força da identidade regional longe da pátria. para o novo palácio, Amrita Devi tentou proteger uma, abraçando-se
a ela. Foi cortada, bem como os outros 362 aldeãos que lhe seguiram
O movimento Chipko: força das raízes o exemplo. O rei soube do massacre e jurou nunca mais cortar árvo-
res dos Bishnoi.
No movimento Chipko, as comunidades regionais uniram-se Do igual modo os modernos trabalhadores do Chipko usaram o
para desafiar os grandes negócios e as práticas do governo que seu corpo para proteger as árvores e a sua dedicação pôs fim ao
criam questões locais. Chipko, o movimento do "abraço das árvo- corte indiscriminado. O abate já não é permitido em áreas banhadas
res", surgiu dos problemas criados pela desflorestação dos Hima- por rios e os projectos de reflorestação incluem árvores para lenha
laias, pois as árvores estavam a ser cortadas para as indústrias das e forragem, bem como pinheiros e árvores de fruto que produzam
planícies. As aldeias das montanhas não recebiam qualquer benefí- culturas comerciais. O governo apercebeu-se de que o lucro ime-
cio económico desse abate, perdendo, pelo contrário, as suas fontes diato não justifica os problemas a longo prazo, tais corno a destrui-
próprias de lenha e forragem. Além disso, a perda da vegetação pro- ção dos meios de subsistência das aldeias e a perda de linhas de
vocava o desgaste da camada superior do solo, arruinando a agri- água que provoca inundações e ciclos de seca. O êxito deste movi-
cultura local e obrigando os homens a migrar para as planícies, em mento é uma inspiração para outras áreas do sul da Ásia, onde os
busca de trabalho. As mulheres deixadas sós viam os seus afazeres projectos do governo vão contra as necessidades locais e para
aumentados, sendo obrigadas a governar a casa sem os maridos e a comunidades em todo o mundo com problemas semelhantes'"·
deslocar-se a maiores distãncias para apanhar lenha. A desfloresta-
ção reduziu também a retenção de água da chuva nas montanhas, Swaminarayan: uma tradição regional torna-se
causando inundações na planície, a que se seguiam secas. internacional
Este desastre ambiental cada vez mais grave, conduzido pelos
lucros económicos e a necessidade de madeira para a industrializa- A força da religião como parte da identidade regional e cultu-
ção, fez erguer o movimento Chipko. O primeiro ímpeto surgiu da ral pode encontrar-se na tradição Swaminarayan, que é uma forma
parte dos trabalhadores sarvodaya seguidores da filosofia de Gandhi guzarate do Hinduísmo Vaixnava. Utiliza textos hindus, centra-se
que repararam nos problemas que a desflorestação estava a criar aos no culto a Vixnu, deus de todos os hindus, e pratica rituais desta
aldeões. Começaram a espalhar informações sobre o valor das árvo- religião que seriam reconhecidos em todo o sul da Ásia. Porém,
res e a incentivar os locais a fazerem protestos não violentos contra toda a tradição está ligada a urna determinada etnicidade guzarate
o abate. Os métodos utilizados para construir o movimento inspira- porque a língua, o vestuário, a cozinha, a arquitectura, a iconogra-
ram-se nas tradições da religião hindu. O primeiro modo de comuni- fia, a música e a dança baseiam-se na cultura regional de Guzara-
116 + Hinduísmo

te, onde se encontram também os chefes religiosos e os locais


sagrados.
Este Hinduísmo regional e étnico teve início no século XIX,
'
"-''

Em direcção ao futuro

tais. Estes apreciam particularmente a importância dada à crença


+

num Absoluto impessoal, a tolerância para com as outras religiões e


117

o aperfeiçoamento do indivíduo. Como a maior parte dos ocidentais


com Sahajanand Swami (1781-1830), seguidor do não dualismo interessados no Hinduísmo se limita a ler textos, têm tendência a
qualificado de Ramanuja. O fundador acabou por ser conhecido com aceitar as suas filosofias sem assimilar a cultura popular. As práti-
Swaminarayan e considerado o avatara de Vixnu na época modema. cas de ioga e meditação já mostraram ser particularmente apropria-
Os seus ensinamentos preconizavam uma combinação de devoção e das à presente época de "privatizaçãon da religião. Estas práticas
culto com uma conduta moral (dharma) determinada pela idade, podem ser seguidas pelo indivíduo para uso particular no caminho
sexo e posição social. Os seguidores têm que tomar parte em cânti- da sua realização espiritual. A sabedoria do Oriente está a ser utili-
cos, venerar as imagens do templo, escutar as prédicas religiosas e zada como alternativa à doutrina fossilizada do "Ocidente".
praticar o culto mental de constantemente se lembrarem de Deus. Mas esta abordagem deixa de fora a riqueza da tradição e prá-
Esta tradição está espalhada em Guzarate, mas é ainda mais tica populares. Os ocidentais que seguem o ioga podem divorciá-lo
proeminente entre os emigrantes guzarates que vivem na África completamente de todo o contexto religioso, considerando-o um
oriental, Inglaterra e Estados Unidos. Na diáspora, os Guzarates exercício físico e mental designado para acalmar o espírito e forta-
juntam-se a Swaminarayan para preservar a sua cultura étnica ao lecer o corpo. A maior parte dos praticantes de ioga nunca esteve
mesmo tempo que partilham da vida religiosa hindu. Erguem tem- dentro de um templo hindu, nunca viu a arte e a arquitectura que tor-
plos e organizam aulas culturais para transmitir as tradições aos fi- nam o sagrado presente na terra, nunca fez oferendas nem deu gra-
lhos. A língua ritual do templo, as vestes festivas, os alimentos e os ças pela cura de um filho doente, nunca entoou o nome de Deus na
divertimentos são todos de Guzarate, de modo que a tradição é dife- esperança de receber uma visão divina, nem marca no seu calendá-
rente da do resto da comunidade imigrante. rio as festividades em honra do nascimento de Crixna e do triunfo
Este Hinduísmo etnicamente guzarate tornou-se uma tradição de Rama sobre Ravana, o demónio.
internacional. Realizam-se agora festejos na África Oriental, Ingla- A meio caminho entre os ocidentais que apreciam a filosofia
terra e Estados Unidos. Vem gente de todo o mundo para assistir a hindu e os imigrantes tradicionalistas ficam os filhos que cresceram
esses acontecimentos que oferecem uma oportunidade global de con- na diáspora. Esta segunda ,geração foi obrigada a equilibrar a sua
tactos sociais e económicos, bem como de observância religiosa. A herança cultural do Sul da Asia com os ideais adoptados pela socie-
tecnologia modema torna possível que esta tradição internacional dade ocidental. Para eles, o Hinduísmo faz parte da sua identidade
mantenha uma estreita ligação com a sua pátria étnica. As viagens cultural e de uma genuína espiritu,aJidade. Nas suas crenças pesso-
aéreas levam os peregrinos a visitar os locais sagrados de Guzarate, ais costumam preferir o Neovedanta, pois os mesmos atributos que
para os fazerem voltar depois aos seus respectivos países levando o tornam atraente a quem está fora da esfera cultural e tradicional
consigo publicações Guzarate, cassetes áudio com cânticos guzarate hindu também funcionam para os indianos americanos e europeus.
e vídeos de sermões religiosos pronunciados por sadhus guzarate"'. As crianças que crescem em países ocidentais têm também o
seu efeito próprio nas tradições. Apesar dos esforços educacionais
da parte dos pais, os membros da segunda geração raramente são
Religião mundial fluentes nas línguas indianas. Podem falá-las e percebê-las mas não
as lêem suficientemente bem para entender as grandes obras reli-
O Hinduísmo, tal como o Judaísmo, tornou-se uma religião giosas. Em consequência disso, o inglês torna-se mais proeminente
mundial por meio da migração e não do trabalho missionário. A tra- em textos e rituais. A perda das línguas com laços regionais e cul-
dição religiosa está intimamente ligada a culturas étnicas do sul da turais pode ser um factor no sentido alterado de uma identidade alte-
Ásia. Apesar de tudo isto, o Hinduísmo urbano, de classe média ou rada da segunda geração. Enquanto que os pais se consideram guza-
neovedanta adoptado pela comunidade internacional como mais rates e tamiles, os filhos crêem ser "indianos" e ter pouca paciência
apropriado aos seus novos estilos de vida, atrai também os ociden- para as diferenciações regionais e de casta feitas pelos pais. Alguns
118 + Hinduísmo

jovens exprimiram a esperança de que a sua geração, com a expe-


riência comum de ter crescido entre duas culturas, possa ser capaz I Notas I
de ultrapassar tais preconceitos, A identidade unificada da segunda
geração levará a novas adaptações no Hinduísmo, principalmente se
essa juventude começar a sentir um maior interesse pela religião
quando começar a formar a sua própria farm1ia.
Capítulo 1
hindus, sugere uma partilha ilifundida
Conclusão É difícil datar as epopeias (e muitos de ideias e práticas
outros textos sul-asiáticos). Foi elabo-
rada uma versão completa em sânscrito 2 John Stratton Hawley e Mark Juergens-
Nos dois últimos séculos, o Hinduísmo tomou-se uma religião no século I da nossa era, mas a narrati- meyer. Songs of the Saints of bulia
mundiaL Durante este processo, os hindus esforçaram-se por definir va central do Ramayana pode ser origi- (Nova Iorque: Oxford University
externamente as suas tradições relativamente às outras religiões, e nária do século IV a. C. ou até anterior. Press. 1988), p. 137.
internamente, onde as divisões sociais e regionais criam uma enor-
me diversidade, Os estudiosos que se centram na riqueza desta 3 Linda Hess e Shukdev Singh, The Bijak
Capítulo 2 of Kabir (Deli: Motilal Banarsidass.
diversidade, afirmam que não se deve falar de "Hinduísmo", mas
1983). p. 50
sim de "hinduísmos". Porém, apesar de tais variações na tradição, 1 Os estudiosos discordam acerca da rela-
os hindus modernos reconhecem-se como pertencendo a uma comu- ção entre as civilizações do Vale do Indo
nidade religiosa. Esta identidade comunal, cada vez maior e que se e a ariana. Uns pensam que havia uma Capíulo 4
considerável coincidência cultural entre
estende muito para além da obediência local e sectária, será um fac- Relato baseado no artigo de Manuel
os povos, sugerindo que a língua dos
tor importante no traçar do futuro da religião. Vedas e a sua civilização eram produtos Moreno "God's Forceful Call: Posses-
O processo de adaptação religiosa e de redefinição que tem dela. Ver Subhash C. Kak, "On the sion as a Divine Strategy" em Gods of
decorrido desde há milhares de anos não chegou de modo algum ao Chronology of Ancient InUia", Indian Flesh, Gods of Stone (Pensilvânia:
fim. A moderna comunidade hindu vai continuar este processo, Joumal ofHistory ofScience 22 (1987): Anima Publications, 1985).
influenciada por tensões entre tradição e inovação, necessidades 22-34. Segundo a teoria de David Fra-
wley, a civilização do Vale do Indo tinha 2 Retirado do livro de Anne Mackenzie
rurais e urbanas, diversidade e unificação. Apoiando-se na riqueza já os atributos religiosos vulgarmente Pearson "Because It Gives Me Peace of
do passado e na força de sistemas experimentados, usando-os para atribuídos aos em Gods, Mind": Ritual Fasts in the Religious
filtrar ideias novas e dar forma a modificações, o Hinduísmo adap- Sages and Kings: Vedic Secrets of Lives of Hindu Women (Albany: State
ta-se às necessidades de uma extensa comunidade globaL As tradi- Ancient Civilization (Salt Lake City: l.Jniversity ofNew York Press, 1996).
ções locais oferecem bases para estruturar inovações locais mais Passages Press, 1991).
3 Baseado na obra de Paul Courtright em
apropriadas do que quaisquer mudanças impostas do exterior. A
2 Katha Upanixada 2.3.10-11 Ganesha: Lord of Obstacles, Lord of
tecnologia moderna oferece as comunicações e ligações para a Beginnings (Nova Iorque: Oxford Uni-
construção dessa extensa comunidade, embora, ao mesmo tempo, 3 M anu Smriti 2.67 versity Press, 1962).
torne possíveis novas informações e ideias que inspirem as mudan-
ças locais. À medida que as circunstâncias se alteram, as filosofias Capítulo 5
Capítulo 3
adaptam-se, os rituais são revistos e reinterpretados e o Divino é re-
imaginado. Através de tudo isto, o Hinduísmo, corno o Eu indivi- 1 As teorias tântricas reflectem ideias des- 1 Rashneeshpuram era uma comunidade
dual, aceita repetidamente novas inclusões num ciclo contínuo. religiosa criada perto da cidade de
envolvidas em muitas tradições do sul
Antelope, no Oregon, pelos seguidores
É urna tradição que renasce eternamente. da Ásia durante urna determinada
de um guru indiano. A comunidade era
época. A utilização destas teorias nas
tão grande a ponto de conseguir que
seitas budistas. bem como nas escolas
houvesse mudanças no governo da
120 + Hinduísmo

cidade durante as eleições. Alguns dos


líderes acabaram acusados de
tamento criminoso e a maior parte dos
I Glossário I
membros partiu.

Capítulo 6
Advaita não-dualidade, nome de uma guru mestre espiritual.
Os elementos acerca da cnaçao dos escola de Vedanta. Rindutva o ser-se hindu.
papeis da mulher no Hinduísmo ahimsa não-violência. ioga disciplina.
erno foram retirados do artigo de Aranyaka livro da floresta, textos explica- iogui praticante de ioga
Nancy Falk "Shakti Ascending: Hindu tivos dos rituais védicos. ishtadevata o deus escolhido de cada um.
Women, Politics and Relígious Leader- arati acenar com uma chama ou lamparina jati grupo de origem. casta.
ship during the Nineteenth and Twenti- durante o culto. jnana-ioga o caminho do conhecimento.
eth Centuries" em Religion in Modern ashrama estádio de vida. Kali Yuga idade das trevas.
bulia, organizado por Robert D. Baird atman o eu individual. kirtD.n cântico devoto.
(Nova Deli: Manohar Publishers, '& avatara a incarnação de um deus. lila representação, principalmente uma
1995). bakti-ioga o caminho da devoção. representação di vi na.
baktl amor, devoção. lingam a imagem não representável de
2 Uma boa versão da história de Chipko é hindu ponto no centro de um mandala. Xiva.
apresentada por Thomas Weber em Brahmana texto explicativo da realização lokasangraha pelo bem do mundo.
Hugging the Tree.s: The Story of the e significado dos rituais védicos. mandala diagrama usado na meditação.

I
Chipko Movement (Nova Deli: Penguin Brama deus criador. mantra palavra ou fórmula sagrada.
Books, 1989). Brama o Absoluto. math mosteiro.
bramâne casta sacerdotal ( varna). maya ilusão divina.
3 A descrição do aparecimento do Swami- Brame poder divino, poder dos mantras moksha libertação do círculo de reincarna·
narayan como tradição internacional é védicos. ção.
baseada na obra Religions of lmmi- camiyati deus dançarino do Sul da Ásia. murti incarnação do divino, imagem.
grants from lndia and Pakistan: New carma acção, actos que afectam as expe- nirguna Brama Brama sem atributos.
Threads in the American Tapestry de t riências de cada um depois da morte prakriti materialidade, matéria feminina
Raymond Brady Williams (Cambridge: e na outra vida. da qual o cosmos é fom1ado.
Cambridge University Press, 1988). carma-ioga o caminho da acção. prasada graça de Deus; oferendas rituais
chakra "círculo"; centra-se ao longo da dadas aos devotos.
espinha dorsal no Tantra. puja culto.
comunalismo definição de um grupo pela Puranas livros antigos.
identidade religiosa. Purusha a pessoa divina.
darshan visão. estar na presença do divino. purusha Consciência que associa prakriti
deva divindade. na criação.
Devi a grande Deusa. rishi vidente.
dharma lei, virtude, dever, comportamen- rita ordem cósmica.
to correcto, religião. sadhu homem santo, renunciante.
garbha-grihya casa ventre; o santuário saguna Brama. Brama com atributos
interior de um templo. samhita colectânea., colectâneas védicas de
Gayatri mantra védico. hinos, canções cânticos e fónnulas.
gopi ordenhadeira, devotas de Crixna. samsara ciclo de reincamação.
gopuram portão-torre de um templo do sul samikara ritual do ciclo de vida.
da Índia. sannyasa renúncia.
gunas qualidades inerentes ao universo. sannyasin renunciante.
122 + Hinduísmo

sarvodaya elevação total. varnashrama-dharma dever segundo a


Sati esposa de Xiva; termo para o suicídio casta e o estádio da vida.
das viúvas. Veda Conhecimento; as primeiras escritu-
satsang acompanhar os bahktas (devotos ras.
de Deus). não dualidade qualifica-
shalagrama imagem não representacional da que dá o nome a uma escola de #
r
de Vix:nu. Vedanta. ,,T
shikara cúpula cónica sobre os templos do Vixnu divindade suprema para muitos Dias Santos e Festividades
norte. hindus: associado a 1O incarnações,
shraddha rituais dos mortos. conhecido como Aquele Que Pre-
shruti "aquele que é ouvido"; revelação. serva.
smriti "aquele é recordado"; tradição. Vrata ohservãncia votiva.
sudra casta de camponeses (varna) Xaiva devota do deus Xiva. Dipavali ou Diva/i, Festival das Luzes
Thntra sistema de práticas. Xakta devoto da deusa Devi.
Divali, que ocorre na lua nova do mês de Kartik (entre o 15 de Outubro e 14 de
tirtha local de passagem, local de peregri- Xakti poder divino feminino.
Novembro) é uma festividade quase pan-indiana, celebrada com a decoração
nação. xátrias casta de guerreiros (varna).
upanayana iniciação, cerimónia do cor- Xiva divindade suprema para muitos hin-
das casa com luzes, roupa nova e fogo preso. Nalgumas zonas é mesmo consi-
dão sagrado. dus: deus do ioga, conhecido como derada a festa de ano novo. As lâmpadas e ruídos são um modo de afastar a
Vpanixadas textos, última adição dos deus da criação e destruição. infelicidade e arranjar espaço para que Lakshmi, a deusa da boa fortuna venha
Vedas. yantra diagrama utilizado para auxiliar a residir em cada casa no ano que se segue. Neste dia os comerciantes começam
vaixiá casta de cornerciantes/artesãos/crun- meditação. Os padrões representam novos livros de contabilidade e, nas zonas rurais, os agricultores veneram as
poneses (vama). o cosmos e o processo de criação. culturas acabadas de recolher, oferecendo sacrifícios de cabras e ovelhas.
Vaixnava devoto do deus Vixnu. yoni imagem não figurativa de Devi.
vama as quatro castas yuga eternidade, era. Xivaratl, a noite de Xiva
Esta festa é celebrada em Marga (Novembro-Dezembro) por Sahivas e por
aqueles Vaishnavas que consideram Xiva o primeiro devoto de Vixnu. Nesta
noite o lingam é banhado em leite e mel.

Holi
Holi é uma festa ruidosa celebrada em Phalguma (Fevereiro-Março). Numa
atmosfera carnavalesca, as pessoas salpicam-se com água tingida e pós. Segun-
do a lenda que explica H ali, havia uma demónio fêmea chamado Holika que
todos os dias comia uma criança. Certa vez um monge sugeriu que todo o povo
se juntasse para fazer frente à deusa com uma barreira de insultos e impropé-
rios. Como resultado, Holika morreu de vergonha e fúria. Tradicionalmente
Holi é o dia em que os papéis sociais são postos de lado e as pessoas se podem
insultar com impunidade.

Pankuni Uttiram
E mna festa do sul dedicada ao deus Murukan. Há urna importante celebração
de dez dias em Março-Abril, durante os quais a divindade faz uma procissão
desde o templo Palni, que fica no alto da montanha, até à base desta. Os devo-
tos que fizeram promessas ao deus, principalmente respeitantes a curas, parti-
cipam na procissão.
-;r

124 + Hinduísmo

Bibliografia

t
Textos gerais

GAvm FLOOD, An Introduction to Hinduism (Nova Iorque: Cambridge Uni-


versity Press, 1966)
Estudo global pormenorizado do Hinduísmo, recorrendo às mais
recentes investigações.
Crixna Jayanti, aniversário de Crixna JoHN STRAITON HAWLEY e MARK JUERGENSMEYER, Songs of the Saints of
O dia do aniversário de Crixna é observado em toda a Índia no mês de Shrava· lndia (Nova Iorque: Oxford University Press, 1988)
na (Julho·Agosto). Depois de um dia de jejum, o aniversário é celebrado à meia Introdução a alguns dos poetas-santos do Norte da Índia durante a
noite, hora em que o Senhor nasceu na casa. prisão em Mathura. época medieval.
KLAUS K. KLosTERMAIER, A Survey of Hinduism, 2' ed. (Albany: State Uni-
Rakhi Bandham, dia de Raki versity ofNew York Press, 1994)
O Dia de Rakhi celebra· se na lua cheia em Shravana (Julho-Agosto). As rapari· Abordagem actual do Hinduísmo que mostra a diversidade dentro da
gas e mulheres atam fios coloridos aos pulsos dos innãos. O ritual tem como fina- tradição religiosa.
lidade protegê-los e recordar· lhes que os homens são os protectores das irmãs. .., WENDY DONIGER O'FLAHERTY Hindu Myths: A Sourcebook Translated
Jrom the Sanskrit (Baltimore: Penguin, 1975)
Naga Panchami, o Quinto da Serpente Uma boa amostragem da mitologia hindu.
É uma festividade comemorada principalmente no Sul da Índia durante o mês BENJAMIN RowLAND, Art and Architecture of lndia (Nova Iorque: Penguin
de Savan (Julho-Agosto). Tem lugar durante a época da monção, quando as ser- Books, 1984)
pentes procuram refúgio em terrenos mais elevados e aumenta o número das Estudo geral da arte e arquitectura do Sul da Ásia.
suas mordidelas. As mulheres desenham estes animais nas paredes das casas e CHANDRADHAR SHARMA, Indian Philosophy: A Criticai Survey (Nova Ior-
oferecem-lhes leite e flores. Pedem às serpentes que não ataquem os membros que: Bames & Noble lnc., 1962)
da família. Uma introdução clara às ideias básicas da filosofia indiana.
The Bhagavadgita in the Mahabharata: (Chicago: University of Chicago
Ganesha Chaturthi, o Quarto de Ganesha Press, 1981)
Durante Bhadrapada (Agosto-Setembro) Ganesha é invocado e venerado Tradução inglesa e edição bilingue do Bagavagita.
durante vários dias. Ver Capítulo 4.

Navaratl, Nove Noites Vivendo o Hinduísmo


Festival das colheitas dedicado à deusa e celebrado durante nove noites cm
Ashvina (Setembro-Outubro). Ver Capítulo 4. LAWRENCE BABB, The Divine Hierarchy: Popular Hinduism in Central
bulia (Nova Iorque: Columbia University Press, 1975)
Dassera Um dos primeiros livros a apresentarem o Hinduísmo como é vivido nas
O décimo dia de Navaratn·, habitualmente celebrado para marcar o triunfo de práticas populares e na vida quotidiana, não na filosofia antiga.
Rama sobre o demónio Ravana, conforme é relatado no Ramayana. DIANA L. EcK, Dan;an: Seeing the Divine /rnage in bulia (Pittsburgh:
Anima Books, 1985)
Este pequeno texto explica maravilhosamente a importância da visão
como meio de interacção entre a divindade e o devoto no Hinduísmo.
126 -+ Hinduísmo

C.J. The Camphor Flame: Popular Hinduism and Society in India


FuLLER,
(Princeton: Prioceton University Press, 1992)
Estudo do Hinduísmo popular em relação a interpretações subjacen-
tes sobre o funcionamento do cosmos.
ANNE GRODZINS GOLO, Fruitful Journeys: The Way of Rajasthani Pilgrims
(Berkeley: University ofCalifomia Press, 1988)
Uma análise erudita da prática de peregrinações no norte da Índia.
DAVID L. HABERNAN Journey Through the 1\.velve Forests: An Encounter
with Krishna (Nova Iorque: Oxford University Press, 1974)
Uma viva introdução à mitologia de Crixna relativamente aos ciclos
de peregrinação de Vrindavan.
JOHN STRATION HAWLEY e DONNA MARIE WULFF, orgs. Devi: Godesses of
India (Berkeley: University of Califomia Press, 1996)
Antologia que explora 12 diferentes deusas hindus. A obra combina
análise textual com trabalho de campo para revelar como as deusas
são veneradas na vida quotidiana.
ANNE MACKENZIE PEARSON, "Because it Gives me Peace ofMind": Ritual
Fasts in the Religious Life of Hindu Women (Albany: State University
of New York Press, 1996)
Um excelente estudo acerca dos vratas centrando-se não só nas práti-
cas, mas também no seu significado na vida das mulheres.

Questões do Hinduísmo moderno

LAWRENCE A. BABB, Redemptive Encounters: Three Modem Styles in the


Hindu Tradition (Berkeley: University of Califomia Press, 1986)
Discute padrões de adaptação ao mundo moderno através de três tra-
dições distintas.
PETER V ANDER VEER, Religious Nationalism: Hindus and Muslims in India
(Berkeley: University of Califomia Press, 1994)
Análise das ligações entre religião e nacionalismo no mundo moder-
no, utilizando hindus e muçulmanos da Índia como exemplo.
RAYMOND BRADY WILLIAMS, Religions of lmmigrants jrom lndia and
Pakistan: New Threads in the American Tapestry (Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1988)
Um estudo abrangente dos grupos religiosos formados por imigrantes
indianos e paquistaneses nos Estados Unidos.
KATHERINE K. YoUNG, "Wornen in Hinduism", em Today's Woman in the
World Religions, org. por Arvind Shanna (Albany: State University of
New York Press, 1994)
Abordagem global do estatuto da mulher na religião hindu e as ques-
tões que a afectam no final do século XX.
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