Você está na página 1de 18

Arte no Cora – reabilitação do paciente oncológico

Regina Fiorezzi Chiesa

Arteterapia
Segundo a AATA (American Art Therapie Association), a arteterapia está
baseada na crença de que o processo criativo envolvido no fazer arte é
curativo aumentando a qualidade de vida. Criar arte e comunicá-la é um
processo que quando realizado junto com um arteterapeuta, permite a qualquer
pessoa uma ampliação de sua consciência. E, assim ela enfrenta seus
sintomas, seu estresse e suas experiências traumáticas com habilidades
cognitivas reforçadas, para então, desfrutar os prazeres da vida que se
confirmam, artisticamente, criativos (2003).
O paciente com câncer normalmente tem dificuldade para expressar
suas emoções e investe muita energia para contê-las. Também tem uma baixa
no sistema imunológico. Segundo Carvalho (2003) nas palavras de LeShan
(1992):
Os sentimentos afetam a química do organismo (que afeta o
desenvolvimento ou a regressão do tumor), assim como a
química do corpo afeta o sentimento... Descobrimos que o
sistema imunológico é fortemente afetado pelos sentimentos e
que determinados tipos de atitude psicológica podem
influenciar positivamente nosso sistema de defesa. (p.279)

A arteterapia é um excelente caminho para que o paciente oncológico


possa expressar seus sentimentos, suas sensações e seus pensamentos na
medida em que vai desenvolvendo o seu potencial criativo no fazer arte. De
posse dos seus recursos assim como também de suas limitações, ele pode
fortalecer a sua autoimagem ajudando no tratamento como um todo.
No Cora nós trabalhamos dentro de um ateliê terapêutico cujo objetivo é
explorar o potencial criativo, os recursos, tendo com meta a qualidade de vida.
Não importa em que estágio do tratamento os pacientes estejam, se é na fase
do diagnóstico, da cirurgia, do tratamento, da manutenção ou mesmo na fase
terminal. A experiência criativa pode ajudá-los a enfrentar seus medos, suas
dores, suas angústias na medida em que possam expressar, elaborar e re-
significar.
O produto final é o resgate da saúde e a doença é um processo afetado
pelo estado de consciência. Aceitar o processo e saber lidar com ele é tirar um
proveito da experiência optando pela saúde como um todo. A saúde dentro de
uma visão integral que integra o físico, emocional, mental e espiritual.
Segundo Vasconcellos e Giglio (2006) o trabalho artístico com pacientes
oncológicos pode ajudá-los na re-significação das suas próprias vidas
facilitando o encontro de diretrizes para que eles possam lidar com a difícil
realidade durante a trajetória da doença e do tratamento.
Ainda de acordo com os autores,Vasconcellos e Giglio (2006) em suas
pesquisas sobre arteterapia com pacientes oncológicos puderam destacar que
a arteterapia por meio dos recursos artísticos pode oferecer concretamente a
possibilidade de resgatar força e coragem.
Continuando em suas pesquisas Vasconcellos e Giglio (2006) citam
vários autores que tiveram experiência com a arteterapia e o paciente com
câncer tanto com crianças, adolescentes, adultos, transplantados, cuidados
paliativos como no processo de luto. Em todos os casos o resultado foi positivo.
Para Bahia (2002) que fez um estudo da expressão criativa com
crianças e adolescentes com câncer em casas de apoio pode perceber que na
exploração dos materiais era possível vencer desafios, a comunicação ficava
mais fluida e os pacientes mais equilibrados. Tarraf (1999) em um estudo
clínico com uma adolescente considerou que a arte alivia as tensões, facilita a
expressão, melhora a autoestima, organiza internamente, é uma experiência
prazerosa, possibilita o reconhecimento do estilo pessoal e também poder levar
esse trabalho artístico para a vida.
Para complementar Perina (2003) analisa o desenho de uma criança
com leucemia:
Desenha uma casa toda pintada de vermelho e uma árvore
com manchas vermelhas [...] a falta de apoio e de estrutura
para a casa e a árvore nesse momento inicial mostra
exatamente como internamente vivenciava o diagnóstico do
câncer [...] É assim que a criança essa invasão de seu corpo
pela leucemia (casa toda pintada de vermelho), como ameaça
à sua vida, algo que pode destruí-la. Percebemos claramente
nos desenhos que realizou ao longo do tratamento todo o
conhecimento e apreensão da realidade vivida. O ato de
desenhar era a possibilidade de elaborar a situação tão
catastrófica em que se encontrava. (p.84)

No Cora a nossa experiência com a arte foi mais com pacientes adultos,
terminais e no processo de luto. Sendo assim concordamos com os autores
citados por Vasconcellos e Giglio (2006) como Wood (1998) que aponta que a
intervenção com arte com pacientes terminais pode ajudá-los a compreender a
real situação, amenizando a dor emocional e fortalecendo os recursos para o
enfrentamento da situação que de certa forma aumentava a confiança. Bailey
(1997) da mesma forma se refere à arte como uma possibilidade de ajuda no
confronto com a finitude, um resgate do sentido da vida suprindo necessidades
espirituais.
No caso do processo de luto a arteterapia também entra tanto no
contexto familiar (os acompanhantes) como também num trabalho de grupo de
pacientes com câncer que no momento de morte o grupo precisa elaborar a
perda para que o luto seja vivido de forma normal, natural. Bromberg (2003)
cita Parkes que aponta as reações anormais do luto: luto crônico, o luto adiado
e o luto inibido. Com essa classificação como pano de fundo podemos fazer
uso da intervenção da arte para lidar com esse processo de forma natural.
Voltando ao Cora a arteterapia dentro de um ateliê terapêutico tem sido
uma experiência muito enriquecedora, onde o diálogo com diferentes materiais
favorece o encontro com o criativo, com aquilo que é essencial para que o
processo aconteça.
Ostrower (1995) nos fala que a recuperação do potencial sensível de
criatividade é vital para as pessoas e que “criar significa poder compreender e
integrar o compreendido em novo nível de consciência” (p.252). Complementa
que como se trata de um processo de conscientização a criação depende de
uma disponibilidade interior, motivação e capacidade para expressar
acompanhado de um sentimento de responsabilidade.
Caminhar na recuperação do ser sensível para Ostrower (1995) é ter
“condições internas, espirituais, que permitirão ao indivíduo ser criativo: sua
capacidade de engajar-se no que faz, de permanecer flexível face a certas
contingências da vida sem, no entanto, perder em coerências e integridade”
(p.251). Ainda Ostrower (1995) o importante é a motivação existencial porque o
“criativo na pessoa só pode aflorar e manifestar-se espontaneamente” (p.251).
Dessa forma, acreditamos que os processos criativos nada mais são do
que processos de crescimento que nas palavras de Ostrower envolve todos os
recursos afetivos e intelectuais da pessoa. O fazer arte na nossa compreensão
pode ser o caminho.
Para Kandinsky (1990): “quem quer que mergulhe nas profundezas de
sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide
espiritual que chegará ao céu” (p.57).
Finalizamos reconhecendo que o curador dentro de nós é sábio e que a
percepção de nossas atitudes, crenças e valores são o caminho para a
ampliação de nossa consciência. Mais conscientes e mais despertos, fica mais
fácil enfrentar os desafios da vida.

O método

O trabalho arteterapêutico no Cora acontece uma vez por semana em


um encontro de duas horas em grupo. Sempre começa com uma
harmonização em círculo, respiração e agradecimento pelo encontro. A
atividade artística normalmente acontece em cima de um tema escolhido pelo
grupo ou simplesmente um diálogo com os diferentes materiais, como pintura,
modelagem, colagem, desenho, etc. O trabalho corporal, a música, a escrita e
a verbalização estão sempre presentes como sensibilização ou avaliação da
atividade.
São 12 anos de trabalho arteterapêutico, muitos temas foram
desenvolvidos e muitas pessoas passaram pelo processo. Vamos destacar
nesse contexto os trabalhos que consideramos mais relevantes compartilhar
que são de duas pacientes: B. e J.
Os trabalhos foram desenvolvidos com todos que participaram nos
grupos. O primeiro tema escolhido foi O Caminho Quádruplo, uma pesquisa
desenvolvida por Angeles Arrien (1993) baseada nas tradições xamânicas que
recorrem ao poder dos quatro arquétipos: guerreiro, curador, visionário e o
mestre. Para Arrien (1993) aprender a viver esses arquétipos internamente é
uma forma de nos recuperarmos a nós mesmos. Uma harmonização entre o
meio ambiente (Natureza) com a natureza interior de cada pessoa.
Os princípios dos quatro arquétipos que a autora acima chamou de
Caminho Quádruplo são:
Mostrar-se ou optar por estar presente. O estar presente nos
permite ter acesso aos recursos humanos do poder, presença
e comunicação. Este é o caminho do guerreiro.
Prestar atenção ao que tem coração e significado. Prestar
atenção abre-nos para os recursos do amor, gratidão, respeito
e valorização. Esse é o caminho do curador.
Dizer a verdade, sem culpar e julgar. A verdade que não julga
mantém nossa autenticidade e desenvolve nossa visão e
intuição interiores. Esse é o caminho do visionário.
Estar aberto para os resultados, não preso a eles. A abertura e
o desapego nos ajudam a recobrar os recursos humanos da
sabedoria e da objetividade. Esse é o caminho do mestre
(p.23).

Esse trabalho foi desenvolvido num período de seis meses e cada


arquétipo foi trabalhado por mais de um mês, pelo menos seis encontros.
No arquétipo do guerreiro trabalhamos com o desenho e visualização do
animal de poder e animal aliado. Cada um desenhou seu animal aliado, aquele
que nos ajuda em nossas fases de transição, crescimento e dificuldades.
(ARRIEN, 1993). Tanto para B. quanto para J. essa experiência trouxe uma
maior percepção de si, do momento presente, do aqui/agora. B. fez um cisne
de luz e J. um bode expiatório, um passo de cada vez, momento de sacrifício.
No caminho do curador trabalhamos com argila para reforçar o contato
com a natureza, com a terra. Plantamos sementes na argila num processo de
renovação e reconhecimento das qualidades e força. Na modelagem com a
argila B. modelou o seu eu interior e J. modelou a menina triste.
No caminho do visionário trabalhamos com a pintura na tela no intuito de
lembrar o propósito de vida, a solução criativa ampliando a visão, a confiança
em si. B. pintou uma tela e deu o nome de Expansão em Movimento e J. deu o
nome de Renovação, minhas Raízes – Eu sou.
No último arquétipo, o mestre, usamos a aquarela, o elemento água para
fluir a energia, a entrega, o desapego e o não controle. B. trouxe na aquarela o
Dissipar da Bruma e J. A Fonte.
Em todos os encontros do trabalho do caminho quádruplo havia uma
sensibilização a partir da respiração, meditação, exercícios corporais, música,
leitura de textos e visualização.
Destacamos um trabalho de cada uma desse processo:
Fig.1 – B. (65 anos) Fig.2 - J. (45 anos)

Para B. “Hoje eu sou a expansão em movimento e vou ficando assim”.


Tirou as coisas do baú. Aprendeu a expressar, a liberdade de falar e um
espaço para receber sem sentir peso.
Para J. “Hoje eu sou mais inteira”. Antes era de fora para dentro.
Descobriu que as pedras são preciosas, a base de tudo. Descobriu a fonte, o
eu interno e teve uma sensação de alívio.
Na nossa compreensão B. expandiu num movimento ascendente. Fez
mais contato consigo mesma na medida em que foi se dando conta do seu
potencial.
J. começou bem devagar e descobriu a fonte, um lugar sagrado que
permitiu que ela entrasse em contato com o seu eu interno.
Viver o caminho quádruplo ajudou cada um dos participantes a entrarem
em contato com o poder, com o amor, com a verdade e a sabedoria que
habitam dentro de nossas almas.
Nesse caso, a arte dentro de um contexto terapêutico foi o alimento para
a alma. O próximo passo o reconhecimento da alma do grupo. Viver o caminho
fortaleceu a energia do grupo.
Depois desse trabalho o grupo foi se fortalecendo e teve que viver uma
situação de luto. Uma das pacientes do grupo estava num processo terminal
com câncer de pulmão. Nesse momento estávamos finalizando um trabalho
com mandalas com diversos materiais. Trabalhamos com a mandala de fios,
mandala de argila e a mandala de mosaico.
A palavra mandala é de origem oriental e significa círculo. No entanto,
encontra-se nas raízes de todas as culturas e portanto vive nas raízes de todo
o ser humano. Para Dahlke (2000):
Dentro de cada um de nós continua viva a totalidade do
desenvolvimento humano, e também no código genético do
nosso material hereditário, que é o mesmo para todos os seres
vivos”. (...) do mesmo modo que no físico conservamos na
alma as imagens e as experiências da nossa longa historia;
portanto, não é de se admirar que nela existam também
imagens da unidade, do paraíso, que outrona abandonamos. E
tais imagens da unidade são mandalas. É evidente, portanto,
que estão necessariamente em todos os homens e também em
todas as culturas; são, por assim dizar, uma herança psíquica
comum a todos os seres humanos. (p.47)

Jung, interpretou a mandala como expressão e símbolo do centro da


totalidade da psique ou do si mesmo. Pôde observar que essas imagens são
utilizadas para consolidar o ser interior ou para favorecer a meditação em
profundidade. A contemplação de uma mandala, supostamente, inspira a
serenidade e o sentimento que a vida reencontrou seu sentido e sua ordem. As
mandalas podem surgir nos sonhos e fantasias de qualquer pessoa, em
momentos de indecisão ou situações de caos interior.
Quando terminamos a mandala de mosaico, a paciente terminal pediu
para o grupo fazer uma grande mandala com mosaicos para ela. A paciente
trouxe um círculo de madeira para dar início ao trabalho. Não deu tempo, logo
a paciente morreu. O grupo se uniu fortemente para fazer o trabalho. Foram se
articulando com os desenhos que iriam fazer dentro do círculo. Começaram
com um grande coração no centro representando o amor, a mandala de força.
Dividiram o círculo em quatro partes: uma parte era um bolo, porque a paciente
sempre trazia um bolo para compartilhar com o grupo. Depois veio a árvore da
vida, o entardecer e a estrela.
Esse trabalho foi de suma importância para esse grupo, pois puderam
viver o luto de forma normal, natural e saudável. Fazer essa grande mandala
em grupo ajudou a organização interna de cada uma na medida em que foram
juntando os cacos, também foram se juntando, elaborando o luto dentro de si.
Com certeza esse grupo se fortaleceu mais uma vez.
Fig.3 – grupo

Do mosaico à colcha de retalhos, o grupo ainda precisava trabalhar


junto. Havia ainda uma necessidade de dar continuidade a um projeto realizado
em grupo, o mosaico da força.
Foi pedido para cada uma assistir o filme A Colcha de Retalhos. Depois
disto houve uma discussão do filme para escolher o tema da colcha que foi o
amor por si.
Começaram em grupo, mas logo foram percebendo que podiam voltar a
trabalhar individualmente e aí, cada uma, fez a sua colcha.

Fig.4 – B (68 anos) Fig.5 – J (48anos)

O depoimento de B. “A menina com os seus cachos era a criação de sua


mãe, amarrava com um laço de fita bem larga a cabeleira, sem discussões,
tudo era escolhido por mamãe”. “A casa tinha muitos jardins floridos e as flores
em suas hastes eretas pareciam dezenas de mocinhas comportadas”. “A
menina achava seu caminho solitário na música, profissão perigosa, mas era o
escape para seu equilíbrio emocional”. “Abdiquei da música, envelheci, veio o
câncer, os novos caminhos eram velhos. Libertação?”
Para B. a sua colcha representava um quadro de memórias. “O tempo
passa e o rato rói”.
Para complementar, B. trouxe uma poesia de Fernando Pessoa: “A
criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou. Mas
hoje vendo que quem sou é nada, quero ir buscar quem fui onde ficou”

Fig.6 – B (68 anos)

A colcha de J. são 28 retalhos divididos em 7 ciclos de 4:


1) A criança – a família
2) Eu adolescente
3) A juventude
4)Tornar-me adulta
5) A maturidade – Quem sou?
6) Os tributos – o que reverencio
7) Habitando a nova casa do meu ser.
Fig 7 – J (48 anos)

O depoimento de J. “A pequena borboleta nasceu! A vida assusta e


fascina”. “Gostava de estar só. O chorão era a necessidade de encontrar
recursos”. O acidente cortou o meu braço e o fluxo da minha vida, momento de
recolhimento”. “Gestei minha força”. “Desafiei Deus e reencontrei, naquele dia,
a minha fé”. “Luana! A filha da lua... Viveu apenas duas horas, mas
transformou a minha vida”. “O câncer chegou como uma realidade
devastadora, destruição, contato com a dor, com a tristeza, ter que reconstruir
tudo”. “Ao amor e à fé, a grande força que simplesmente ama e confia”. “À
feminilidade, a união feminina”. Reconheceu o apoio das mulheres da sua vida.
“As pedras são preciosas, a fonte, o eu interno, é para este lugar que eu vou
quando oro e medito”. “A borboleta estática aprendeu a voar e está inserida no
caminho com outras borboletas em ação, mas tenho comigo que onde quer
que os meus caminhos me levem, esse será o melhor lugar para eu estar. Essa
é a cura que alcancei”.
O programa Simonton foi trazido para o Cora em 1987 - um programa
para tratamento de pacientes com câncer.
Em 2007, foi ministrado um curso no Cora pela Magui (Maria Margarida
de Carvalho) sobre o programa Simonton revisitado, uma nova fase do trabalho
dele que vem reiterar a importância de suas propostas pioneiras enfatizando
seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Foi exatamente nesse momento de contato com o programa modificado
que as colchas das pacientes estavam ficando prontas. Aproveitei para
observar e analisar o conteúdo de cada retalho que compunha a colcha de
cada uma.
O programa então trazia:
Crença saudável x crença não-saudável
Razões de viver
Alegria – motor da nossa vida
Esperança, confiança, sabedoria interior, espiritualidade
Escolha, decisão, desapego
Benefícios da doença
Preparar para a morte dá energia à vida
Plano para 2 anos
Apoio familiar
Na colcha de B. o primeiro retalho foi trazer a criança com o seu laço
enorme. A criança veio para resgatar quem realmente ela era. Dessa forma
pode entrar em contato com suas crenças, transformando-as para encontrar
razões para viver. No momento de rever as crenças vem o desapego. A
escolha da poesia de Fernando Pessoa traz esperança, confiança,
sabedoria interior e espiritualidade.
Na colcha de J. a grande força, do amor e da fé expressa esperança e
confiança; a fonte, as borboletas em ação e a cura alcançada falam da
sabedoria interior e espiritualidade; a reverência ao feminino reconhece o
apoio das mulheres da família.
Simonton (1994) diz que as atividades desenvolvidas no seu programa
contribuem para o pensamento criativo e que aos poucos é possível perceber
como funciona a mente e como aprendemos. “Trata-se do mesmo processo
quando aprendemos novas crenças [...] simplesmente precisamos nos tornar
mais conscientes, mais afinados e dar um enfoque ao nosso pensamento”
(p.93, 94). Para Simonton, as transformações interiores são mais importantes
que as exteriores e o ritmo da recuperação vão depender da imaginação, da
atitude, das crenças, das escolhas, das decisões e da vontade de viver para
começar então a harmonizar os aspectos físicos, mentais e espirituais e aí
descobrir que a vida vale a pena ser vivida.
O tema da colcha, o amor por si, re-significou a doença e elas puderam
reconhecer suas emoções, pensamentos e crenças e algo foi aprendido.
Na nossa compreensão as pacientes estavam mais conscientes e as
transformações interiores eram visíveis. Com mais confiança, perseverança e
paciência podiam seguir seus instintos e ter coragem de ser.
Outro trabalho marcante foi a pintura a óleo onde foram feitas releituras
arteterapêuticas de obras de arte.
Kandinsky (1990) nos diz que “a obra da arte é o espírito que, através da
forma, fala, se manifesta, exerce uma influência fecunda” (p.152).
O fruir que vemos numa obra de arte recorda mil e uma coisas que
podem tanto agradar quanto desagradar. A beleza não reside na beleza do seu
tema. Os artistas planejam suas obras que não dão para converter em
palavras, é preciso senti-las. (GOMBRICH, 1989).
Para dialogar com obra de arte é preciso enriquecer o contato, a
sensibilidade e a imaginação. E, dessa forma, aprimorar o olhar que analisa e
que observa com atenção.
Para Arnheim (1996) o olho não é um receptor passivo de imagens, o
olho e toda a nossa percepção visual são criativos e a criatividade continua no
olhar de quem vê.
O exercício do olhar criativo que desconstrói e reconstrói, permite que a
pessoa possa configurar a sua vida, vendo as coisas com um olhar mais
amplo, de outra perspectiva, descobrindo novas possibilidades e caminhos. É
na linguagem da arte que a imagem é sentida e vivenciada sensorialmente e
pode então promover um estado diferenciado no espaço interno das pessoas.
(CHIESA, 2004)
Para explorar o potencial criativo foi pedido para cada paciente que
escrevesse o que via, o que sentia e o que imaginava das obras que cada
uma escolheu.
Essa análise sensível e criativa sustentou a construção da obra de arte
de cada uma.
B. escolheu a obra de Chagal, o Violinista e fez a sua análise:
“Eu vejo o violino, as pernas curtas e o corpo calado”.
“Eu sinto voltando no tempo: sinto as margaridas comportadas, o
passarinho engaiolado e a música”.
“Eu imagino como vou aprofundar os símbolos da infância”.
Fig.8 – B (69 anos)

B nesse trabalho resgatou a infância e ficou emocionada. Sentiu


saudades, desprendimento e aceitação. Disse: “Posso pedir carinho”. “O tempo
passa e o rato rói e a menina que já não toca violino, mas que tem um botão de
rosa artística não desabrochada dentro de si, não chegou a Fernando Pessoa,
mas de vez em quando, escreve poesias”.
Na nossa compreensão, B. está se libertando das amarras do passado
quando fica emocionada. Internamente há mais amadurecimento e
crescimento. B. quer buscar novos caminhos para se equilibrar melhor.
J. escolheu duas obras: uma de Frida Kahlo, As duas Fridas e outra de
Odilon Redon, Musa no Pegaso.
Na análise das Duas Fridas escreveu:
“Eu vejo duas mulheres sentadas, uma de ricas rendas vestida e a outra
com roupas simples. Estão de mãos dadas. A moça fina tem o coração
exposto. A camponesa o mantém intacto. Ambas têm o coração à mostra, fora
do peito. Seus corações estão ligados por um tênue fio. Por trás delas há um
céu carregado de nuvens escuras”.
“Eu sinto que embora a tempestade pareça eminente, as duas estão
calmas, se apoiando mutuamente. Sinto que seus corações expostos parecem
estar vulneráveis. A força vem da simplicidade. A que busca uma aparência,
fica mais na superfície e tem menos integridade”.
“Eu imagino que elas vão se levantar e tornar-se uma só pessoa. Que o
céu vai se abrir e deixar ver uma bela paisagem. Há montanhas ao fundo
destacadas pelo por do sol. Há uma árvore grande e pássaros que voam no
céu translúcido”.
Analisando a obra Musa no Pegaso disse:
“Eu vejo uma mulher montada num cavalo. Ela está relaxada, recostada
num cavalo que empina. Há um céu colorido e a terra também tem muitas
cores”.
“Eu sinto a liberdade e a possibilidade de estar á vontade e serena
diante da dinâmica da vida”.
“Eu imagino o galope pelo espaço. A moça é o cavalo. O cavalo é a
moça. Eles se lançam ao cosmo numa viagem infinita, gratos um pelo outro.

Fig.9 – J (49 anos)

J. fez um diálogo interno e resgatou o que perdeu, segundo ela, fez as


pazes consigo mesma.
O fechamento dos três “eus” – a menina, a moça e a mulher madura traz
a união feminina. Quem deu a mão foi a doença, é a mulher doente que dá
apoio para a criança interior. A mulher no cavalo está com o coração liberto e
solto. O coração saiu da mulher e foi para o cavalo no movimento da espiral. A
grande força é a mulher doente. Na nossa compreensão contextualizou a
doença que por sua vez origina a cura e aí é possível falar numa entrega mais
saudável, com consciência.
J. disse: “Hoje não sinto nada, tenho saúde, qualquer coisa que me
aconteça é o melhor para mim”.
Outro trabalho interessante foi a pintura em aquarela, onde com o papel
bem aguado, aquarela bem diluída e pincéis grandes, o grupo pode se soltar,
entregar-se, sair do controle num movimento de fluidez, deixando acontecer
aquilo que tinha que ser naquele momento. Foi um trabalho curto que fizemos
numa volta de férias, mas extremamente profundo e revelador.
B. observando sua aquarela percebeu uma pipa que estava empinada,
livre, leve e solta. Lembrou-se da colcha onde em um dos retalhos tinha a pipa
da menina que não sobe porque a mãe de B. não queria que a filha fizesse
uma pipa e disse que só tinha barbante. B. fez a pipa e ela não subiu, estava
presa num barbante pesado. Nesse momento se deu conta que não estava
mais presa que podia voar e ir além. A sensação era de libertação e de muita
alegria.

Fig. 10 – B (70 anos)


Para J. esse trabalho foi intenso e profundo. Ela pôde ver o que a água
contou.

Fig.11 – J. (50 anos)


J. escreveu: “O vento move o moinho. O moinho movimenta a roda da
vida. É o grão que se faz farinha e alimenta o povo. As pás deste moinho
trespassam um dos meus eus. Uma delas dilacera suas entranhas, atinge-o
nas costas, saindo pela bacia. A outra perfura o fígado e é projetada para fora
pelo períneo, passando pela coluna sacra. Um outro que também sou eu
recebe as emanações deste drama, pela nuca. Mas a dor não se espalha,
permanece localizada e não causa maior dano. Há uma face de mim que apoia
e protege, ampara e cuida esse segundo eu para que ele consiga manter-se
bem, em pé e radiante. Uma quarta J. se posta por trás daquela que protege,
nutrindo-a com vibrações de vitalidade e saúde para que ela possa, assim
plena, desempenhar o seu papel. Para comandar todo esse processo, ao
fundo, há o eu superior, aquele que sabe e sustenta. Aquele que ama e confia.
Que integra todos os outros eus nessa pessoa que sou. E a ele peço que me
toque e inspire. E ele me responde no alto tudo que necessito. E o moinho
...ah, o moinho capta no alto o ar que o faz vibrar. Acolhe em seu interior as
sementes da mãe terra e, processando-as gera a possibilidade de gerar mais
vida. Assim é a vida . Assim sou eu. Assim somos nós.”
Para fechar gostaria de falar do processo de passagem com arte que
aconteceu com a paciente J. acima. No caso de J.a arte por si só falava do
processo de passagem.
A morte faz parte da vida e a vida faz parte da morte. Quando se trata de
uma morte anunciada, como é o caso do paciente de câncer, o processo de
passagem ajuda na qualidade da morte. O despertar do potencial criativo por
meio dos recursos artísticos facilita o entrar em contato com os recursos para
enfrentar os desafios da vida e da morte.
Segundo Kovács “é preciso falar de morte enquanto há vida” (1992, p.9).
Leloup (2001), diz que no cristianismo a morte é um momento de
passagem, ou seja, passar de uma consciência para a outra, na medida em
que vamos descobrindo a eternidade que vive dentro de nós. Daí a
necessidade dos cuidados paliativos para que seja possível cuidar e
acompanhar uma pessoa nesse estágio.
Para Kübler-Ross (1991) a morte não existe, pois morrer é como mudar-
se de uma casa para outra mais bonita, o casulo em condição irreparável
libertará a borboleta, ou seja, a alma.
A passagem é a possibilidade de retorno à essência. O papel principal
de quem acompanha é sempre se lembrar da presença da luz. A arteterapia
serve de caminho nesse despertar de viver, morrer e ser na medida em que
facilita o encontro com o criativo e o despertar do potencial, resgatando essa
parte nossa que sabe e que é iluminada.
Para Gimenes (2001) a passagem precisa ser mais bem compreendida
para que se possa sistematizar um conjunto de atitudes e estratégias de
intervenção, assegurando o compromisso com a melhor qualidade de vida.
Para isso é preciso diluir deformações sobre a passagem e lembrar-se de
como atingir a passagem com êxtase e luz permitindo receber ajuda de seres
de luz.
J. começou devagar com certa desconfiança quando chegou ao Cora,
mas aos poucos foi se percebendo e se dando conta do seu caminho. Seu
primeiro encontro significativo foi descobrir a sua fonte no trabalho do caminho
quádruplo, lugar que passou a ir sempre que sentia necessidade.
O trabalho marcante da colcha de retalhos ajudou J. a fazer uma
profunda revisão de vida onde pode re-significar cada etapa. Em seguida veio
a pintura a óleo onde fez as pazes com a doença e as pazes consigo mesma.
O processo final, a entrega foi feito com a aquarela, material que traz a
fluidez. J. pode perceber o corpo se desintegrando, mas também o abraço e
um novo corpo. Logo depois morreu.
Gimenes (2001) fala das três etapas psico-espirituais na passagem, o
contexto da agonia, do autojulgamento e da entrega. Essa três etapas foram
observadas no trabalho arteterapêutico de J.
O processo arteterapêutico favoreceu essas etapas. Possibilitou à
paciente com câncer enfrentar as dificuldades da vida e buscar a sua essência
espiritual, sua conexão natural com o universo no amor por si mesmo.
Na nossa compreensão o processo de passagem foi feito com arte,
amor e gratidão.

Considerações finais
O trabalho criativo com essas pacientes possibilitou uma
sustentabilidade emocional importante tanto do ponto de vista energético
quanto do ponto de vista de recursos para lidar com a doença.
A meta atingida foi a qualidade de vida e o produto final, saúde, pois
quando a doença pode ser contextualizada facilita a cura como um todo e,
assim aceitar o processo e ter recursos para lidar com ele é tirar um proveito da
experiência optando pela saúde integral.

Referências Bibliográficas
AATA – THE AMERICAN ART THERAPY ASSOCIATION. Definition of
Art Therapy. Disponível em <http// www. Artherapy.org/aboutartherrapy/
about.htm>. Acesso em 08 de jul. 2003.
ARNHEIM, Rudolf. Arte & Percepção Visual. São Paulo: Pioneira, 1996.
ARRIEN, Angeles. O Caminho Quádruplo. São Paulo: Ágora, 1997.
BROMBERG, Maria Helena. Famílias Enlutadas in CARVALHO, Maria
Margarida (coord). Introdução à Psiconcologia. Campinas: Livro Pleno, 2003.
CARVALHO, Maria Margarida. Câncer como ponto de mutação in
CARVALHO, Maria Margarida (coord). Introdução à Psiconcologia. Campinas:
Livro Pleno, 2003.
CHIESA, R. F. O Diálogo com o Barro o Encontro com o Criativo. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
DAHLKE, Rüdiger. Mandalas - Formas que representam a harmonia do
cosmos e a energia divina. São Paulo: Pensamento, 2000.
GIMENES, Maria da Glória. Passagem um Desafio ao Amor. São Paulo:
editado pela autora, 2001.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara
Koogan, 1989.
KANDINSKY, N. Do espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes
Editora, 1990.
KOVÁCS, M.Júlia (coord). Morte e Desenvolvimento Humano. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
KÜBLER-ROSS, E. A Morte um Amanhecer. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
LELOUP, Jean-Yves. Além da Luz e da Sombra sobre o viver, o morrer
e o ser. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
OSTROWER, Fayga. Acasos e Criação Artística. Rio de Janeiro:
Campus, 1995.
PERINA, Elisa. Câncer Infantil: a difícil trajetória in CARVALHO, Maria
Margarida (coord). Introdução à Psiconcologia. Campinas: Livro Pleno, 2003.
SIMONTON, Carl. Cartas de um Sobrevivente. São Paulo: Summus
Editorial, 1994.
VASCONCELLOS, Erika e GIGLIO, Joel. Arte na Psicoterapia. São
Paulo: Vetor, 2006.

Você também pode gostar