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TEXTOS

FUNDAMENTAIS
DA LITERATURA
UNIVERSAL

Luara Pinto Minuzzi


O Renascimento em
Shakespeare: Hamlet
e a tragédia moderna
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar as características do Renascimento e relacioná-las com a


narrativa de Hamlet.
 Discutir o conceito de tragédia moderna e compará-lo com o conceito
de tragédia grega.
 Analisar trechos da obra Hamlet.

Introdução
“Ser ou não ser, eis a questão.” Você provavelmente já leu ou ouviu essa
frase em algum lugar. Mas você sabe de onde ela vem? Quem é o seu
autor ou a sua autora? E, afinal de contas, o que ela significa? Apesar de
famosa e emblemática, parece bastante misteriosa e enigmática quando
apresentada dessa forma, fora do seu contexto.
Neste capítulo, você vai descobrir que essa frase pertence à peça
Hamlet, do escritor inglês William Shakespeare. Você também vai conhecer
que tipo de narrativa é essa e que tragédia é vivida por Hamlet, o seu
protagonista. Para que você entenda esse clássico, vamos analisar o
contexto histórico em que viveu Shakespeare em que a obra foi escrita,
o Renascimento. Ainda, vamos discutir o conceito de tragédia moderna,
gênero ao qual Hamlet pertence.

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O Renascimento e a tragédia moderna


Hamlet é uma tragédia moderna escrita pelo autor inglês William Shakes-
peare entre o final do século XVI e o início do XVII. Essa foi a época do
Renascimento, período da história da Europa que vai do século XIV ao fim
do século XVI e pertence à Idade Moderna. Como Shakespeare nasceu em
1564 e morreu em 1616, ele vivenciou o movimento em seus últimos tempos
(Figura 1). Mesmo assim, várias das características do Renascimento podem
ser observadas nas suas obras e, por isso, é muito importante que você entenda
um pouco melhor no que consistiu essa fase da história europeia. Como a
peça aqui em foco é considerada uma tragédia moderna, também é necessário
discutir o que significa esse conceito.

Figura 1. William Shakespeare.


Fonte: William Shakespeare (2017).

O Renascimento foi um momento bastante rico na história do continente


europeu. A Itália foi o país de maior destaque no Renascimento, servindo de
inspiração para o resto do continente. O principal centro artístico era Roma.
Porém, outros países também foram importantes, e a Inglaterra de Shakespeare
foi um deles. Leonardo da Vinci e Michelangelo são dois exemplos de pintores
de enorme prestígio do Renascimento. No campo da literatura, predominavam

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nomes como o do italiano Dante Alighieri e do espanhol Miguel de Cervantes


— além, é claro, de William Shakespeare.
Você deve compreender como a concepção do homem sobre si mesmo e
sobre o mundo mudou completamente da Idade Média para essa época. Na
Idade Média, antecedente da Idade Moderna, a religião era um peso enorme
na vida das pessoas. Por um lado, isso era algo muito bom: imagine que algo
extremamente ruim acontece com você ou com alguém da sua família, como
uma doença grave ou um acidente. As pessoas, na Idade Média, possuíam
uma força muito grande na qual se apoiar, que era Deus e a religião — nesse
sentido, elas nunca estavam sozinhas. Por outro lado, elas também estavam
muito mais amarradas a uma situação específica, como uma situação de
pobreza, por exemplo. Isso acontecia por dois motivos em especial:

 acreditava-se que qualquer situação ou acontecimento ruim eram causa-


dos por vontade divina e que, portanto, não poderiam ser questionados;
 acreditava-se que o mais importante era a felicidade na vida após a
morte, quando as almas subiriam ao paraíso, por isso não havia motivo
para se preocupar com a infelicidade terrena.

Contudo, algumas descobertas colocaram em dúvida todas essas crenças


muito fortes e sólidas, e acabaram por ser fundamentais para a constituição do
pensamento renascentista. Uma das mais importantes é a de Nicolau Copérnico,
um polonês que descobriu, a partir das suas investigações, que a Terra não
era o centro do Universo. A sua famosa teoria, batizada de heliocentrismo,
afirma que o Sol fica no centro do Sistema Solar. Você deve imaginar o caos
quando Copérnico apresentou as suas conclusões: como a Terra, criada em
sete dias por Deus, o todo poderoso, não estava no centro? Depois, Galileu
Galilei ainda “piorou” as coisas: ele afirmou que não só a Terra não estava no
centro do Universo, como ainda girava ao redor do Sol. Todas essas descobertas
ajudaram a modificar a forma como as pessoas enxergavam a si mesmas e a
realidade ao seu redor.
Então, já podemos concluir que duas das características do Renascimento
foram o racionalismo e o experimentalismo: a única forma de se chegar ao
conhecimento é por meio da razão, de estudos, de observação da natureza, de
experimentos científicos que possam comprovar ideias, fenômenos, leis, etc.
A religião continua sendo importante, mas ela perde bastante terreno quando
comparamos a sua importância com a que teve na Idade Média.
Desse papel mais discreto da Igreja na vida dos indivíduos, é possível
tirar mais uma das marcas da época de Shakespeare: o individualismo e o

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antropocentrismo. O ser humano passa a ser a figura de destaque da criação


— diferentemente da Idade Média, quando Deus era o centro, crença que é
conhecida como teocentrismo. É claro que a maioria dos renascentistas con-
tinuava acreditando em Deus, mas o poder do homem de decidir sobre o seu
futuro e de realizar as suas vontades aumentou muito. Se, na Idade Média,
o coletivo estava acima do indivíduo, que devia obedecer cegamente às leis
divinas e terrenas, na Idade Moderna, o homem passou a ser o destaque. Por
isso, a necessidade de se conhecer, de afirmar a sua própria personalidade,
de mostrar os seus talentos e de perseguir as suas ambições.
Além disso, os renascentistas resgataram a cultura e alguns dos valores da
Antiguidade Clássica dos gregos e dos romanos. Dessa forma, há inúmeros
quadros, por exemplo, que retratam temas mitológicos de Roma e da Grécia,
como o Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, ou Alegoria do Triunfo
de Vênus, de Agnolo Bronzino. Claro que eles não se limitaram a copiar
a Antiguidade Clássica, apenas utilizaram algumas das suas referências.
Ademais, temas da tradição cristã eram igualmente muito frequentes, e Juízo
Final, pintura da Capela Sistina feita por Michelangelo Buonarroti, é um dos
exemplos mais famosos.
Você pode examinar muitas dessas características do Renascimento ob-
servando a pintura reproduzida na Figura 2.

Figura 2. O batismo de Cristo, Pietro Perugino.


Fonte: Renascimento (2017).

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Na Figura 2, é possível observar um quadro do pintor italiano Pietro Perugino,


do século XV, que está na Capela Sistina. Um dos primeiros aspectos que se nota
na pintura é o equilíbrio das formas e a simetria: temos duas figuras centrais
em destaque, para onde nossa atenção converge quando botamos os olhos no
desenho, que são Cristo e São João Batista. Acima deles, está a imagem de Deus.
Traçando uma linha reta bem no meio do quadro, entre esses personagens em
destaque, acabamos com duas metades muito simétricas: repare que o número
de pessoas de um e do outro lado é parecido; nos dois lados, no canto superior,
há a presença de uma vegetação; há dois anjos, um de cada lado de Deus; mesmo
o prédio ao fundo está quase no centro. Essa simetria e equilíbrio se relacionam
com o racionalismo, e muitos pintores faziam cálculos para saber exatamente
onde posicionar os elementos para que um quadro ficasse perfeitamente simétrico.
Além disso, Deus está presente na pintura, mas não está no centro dela: ele
fica pairando acima dos homens, como se estivesse olhando por eles sem inter-
ferir. Aqui é a sua representação carnal, humana, que é realçada: Jesus Cristo.
Ainda se faz presente no quadro a influência greco-romana a partir do
uso das mesmas proporções para a construção da figura humana, bem como
o conceito de belo da Antiguidade Clássica. As cores também são vivas e
alegres, o que remete para otimismo da época.
Agora você pode observar na Figura 3, o famoso quadro do pintor italiano
Rafael inspirado na Antiguidade Grega:

Figura 3. A escola de Atenas, Rafael.


Fonte: Renascimento (2017).

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Nessa pintura, além da simetria e do equilíbrio, você pode notar igualmente


a importância dada à razão e à ciência, pois aqui estão representados alguns
dos maiores filósofos e cientistas da Grécia Antiga: o matemático Arquimedes
e os filósofos Aristóteles, Platão e Heráclito são exemplos dos personagens
de destaque. Rafael, inclusive, pintou-se no quadro, situando-se em meio a
essas figuras lendárias, o que remete para a centralidade do indivíduo durante
o Renascimento.

No site da Universidade Estadual Paulista, há um acervo


digital de pinturas renascentistas com explicações e in-
formações que você pode conferir. O acervo está dividido
em duas partes:

https://goo.gl/ETWnjm

https://goo.gl/S7U5Lp

Dentro dessa tradição do Renascimento da Idade Moderna, encontra-se a


tragédia moderna. Primeiro, você deve notar que tragédia é aquele gênero
da dramaturgia que aponta para uma história dramática, com acontecimentos
tristes e desesperadores. A tragédia moderna foca um indivíduo e OS seus
conflitos, não um personagem que se constitui como um representante da
humanidade — como é característico da tragédia clássica, própria da anti-
guidade greco-romana.
Os problemas e os desastres ocorridos na vida dos personagens não são
mais inevitáveis (ao contrário dos definidos já no nascimento por meio de um
destino fixo, como na tragédia clássica), eles são consequência das escolhas
de cada um. A culpa também se torna uma culpa pessoal. Na tragédia clássica
Édipo Rei (SHAKESPEARE, 2010), por exemplo, o destino de Édipo é matar o
seu pai e casar com a sua mãe. Por assassinar o seu pai, porém, uma maldição
cai sobre todo o povo de Tebas, reinado por ele, na forma de uma peste.

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Já em Hamlet (SHAKESPEARE, 2010), o protagonista, que leva o nome


da peça, vive sozinho o dilema de saber que o assassino do seu pai é o seu
tio, com quem a sua mãe casa após ficar viúva. É ele sozinho quem se debate
entre o pedido do seu pai por vingança e a culpa por cometer um novo crime.
Além disso, se, na tragédia clássica, não havia possibilidade de redenção, de
correção do erro, visto que o destino de homens e deuses não podia ser mudado,
na tragédia moderna, isso é possível, pois nada é definitivo.
Na tragédia grega, as ações valiam mais do que o desenvolvimento do
personagem: acreditava-se que, por meio das ações, já se descobriam as
características dos indivíduos na trama. Na tragédia moderna, ocorre o
contrário: o desenvolvimento da psicologia do personagem é extremamente
importante. Quando você assiste a uma peça da tragédia moderna ou lê o
seu texto, consegue quase entrar na mente da personagem. Sabe o que ela
está sentindo, porque pratica determinada ação, como se relaciona com os
outros. E os sentimentos são extremamente complexos, misturando sensa-
ções ambíguas e, mesmo, contraditórias: amor e raiva, culpa e sentido de
vingança, ódio e compaixão.

Portanto, você pode concluir que as características principais do Renascimento podem


ser observadas na tragédia moderna. Primeiro, o antropocentrismo está visível no
relevo dado para o indivíduo na tragédia. Esse indivíduo é o responsável pelo seu
destino, pelo seu futuro. Contudo, por outro lado, por mais que ganhe liberdade, ele
igualmente perde um importante ponto de referência e a certeza de que o que quer
que acontecesse era o correto, porque era a vontade divina. O homem fica um pouco
mais perdido em relação ao mundo e em relação ao seu papel no mundo.
Segundo, o racionalismo e o experimentalismo surgem justamente nessa busca
solitária do herói da tragédia moderna pela verdade ou pela justiça, pela alegria —
ninguém apontará o caminho correto, e cabe a ele testar as distintas possibilidades.
Por fim, o individualismo parece uma consequência óbvia de todos esses elementos
citados acima: os heróis da tragédia moderna estão centrados em si mesmos.

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William Shakespeare e a tragédia


moderna Hamlet
Sobre a vida de William Shakespeare, o maior dramaturgo inglês, há algumas
certezas e muitas dúvidas. Nas biografias sobre o famoso escritor, expressões
como “talvez”, “não se sabe ao certo”, “provavelmente” e “ao que parece”
são muito comuns.
Você pode imaginar que essa falta de informações precisas abriu espaço
para muita especulação e para a criação de inúmeras teorias — algumas
plausíveis, outras nem tanto. Alguns dizem que Shakespeare nunca existiu e
que as suas peças foram, na verdade, escritas por autores diferentes. Outros,
que ele seria apenas um ator que, depois, se colocaria como autor das peças
em que atuou. Por outro lado, muitos acreditam que ele realmente existiu e
que foi o verdadeiro autor de todas as peças.
Porém, o que realmente importa é a enorme qualidade das suas produções,
que até hoje encantam leitores e espectadores. Parece que as suas peças são
como esponjas, absorvendo todas as questões e problemas de cada época, como
se fossem contemporâneas a cada uma. Shakespeare parece ser sempre atual,
mesmo que alguns séculos nos separem dele e do seu momento de escrita.
Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon, na Inglaterra, em 1564, mas
não se tem certeza do dia nem do mês. Entre as muitas profissões assumidas
pelo seu pai ao longo da vida, encontra-se a de aprovar verbas para companhias
teatrais visitarem a cidade — o que pode ter influenciado a opção do escritor
filho pela dramaturgia. A sua mãe possuía terras e a família sempre viveu
confortavelmente. Mas onde Shakespeare estudou e como foi a sua infância?
Não há resposta precisa para essas perguntas. O que se sabe é que ele casou
com Ana Hathaway quando tinha 18 anos, com quem foi casado por toda a
vida e com quem teve três filhos.
Apesar do casamento, a sua mulher e os seus filhos viviam em Stratford-upon-
-Avon, enquanto Shakespeare tentava a sorte em outros lugares. O período logo
após o seu casamento, de 1585 a 1592, é um grande hiato: nenhum pesquisador
foi capaz de descobrir com o que o escritor se ocupou durante todos esses anos.
Uma das hipóteses é a da sua ida para Londres, centro político e cultural do
País, onde ele poderia desenvolver a sua carreira como escritor e ator de teatro.
Naquela época, quem reinava a Inglaterra era Elizabeth I, o que foi muito posi-
tivo para Shakespeare, pois esse foi um momento de apogeu da cultura inglesa.

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Você pode visitar, em Londres, o Shakespeare’s Globe Theatre, uma reconstrução do que
seria o teatro onde Shakespeare apresentou algumas das suas peças mais famosas e
do qual foi sócio. Esse novo teatro foi construído quase no local do original, que foi
encerrado permanentemente em 1642.

Shakespeare começou a escrever em 1590, e as suas peças fizeram bastante


sucesso, o que lhe concedeu renome em vida. Ele ainda é autor de inúmeros
poemas, a maioria em formato de sonetos. Contudo, é muito difícil de precisar
quais as datas de publicação de cada uma das obras, com exceção de algumas
poucas, como Romeu e Julieta, em que é mencionado um terremoto que
realmente ocorreu em Londres em 1580.
A sua obra pode ser dividida em três fases. A primeira corresponde aos
anos iniciais de produção do escritor e conta com comédias, como A megera
domada, Sonhos de uma noite de verão e A comédia dos erros. Depois, surgiram
as tragédias, que estão entre os seus textos mais famosos e estudados: Romeu
e Julieta, Hamlet, Rei Lear e MacBeth são alguns exemplos. Por fim, Shakes-
peare escreveu peças históricas, como Ricardo II, Henrique IV e Henrique V.
Muitas das suas peças ficaram extremamente famosas: você provavelmente
conhece a história trágica dos apaixonados Romeu e Julieta ou dos ambiciosos
MacBeth e Lady MacBeth. A trama sobre o jovem príncipe da Dinamarca
Hamlet, que sofre pelo assassinato do pai, também é um desses exemplos. A
sua história ficou tão famosa que algumas cenas e frases são muito conhecidas
do público, e mesmo quem nunca leu a peça ou nunca assistiu a uma montagem
pode conhecê-las. Você já deve conhecer, por exemplo, estas citações: “Ser ou
não ser, eis a questão” ou “Há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe
a sua vã filosofia”. E já ouviu falar da cena em que Hamlet segura um crânio?
Tanto Hamlet quanto outras peças de Shakespeare já foram lidas, encenadas e
adaptadas tantas vezes que já fazem parte da nossa cultura (Figura 4).

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Figura 4. A atriz Sarah Bernhardt como


Hamlet.
Fonte: Hamlet (2017).

Hamlet integra um conjunto de sete tragédias que a autora Barbara Heliodora


(2008), na obra Por que ler Shakespeare, afirma tratarem do mesmo tema: como
o homem enfrenta o mal e o que o mal faz dele. Esse mal pode estar representado
na peça como um inimigo externo e concreto (como Cláudio, o tio de Hamlet),
mas o mais importante, de acordo com Heliodora, é que o mal está presente
dentro dos protagonistas, que devem lidar, portanto, tanto com o externo quanto
com o interno. As outras obras que comporiam esse grupo ao lado de Hamlet
são Júlio César, Otelo, Rei Lear, MacBeth, Antônio e Cleópatra e Coriolano.
Para que você entenda que mal é esse que há dentro e fora de Hamlet e que
ele deve enfrentar, primeiro é necessário um resumo do enredo do texto teatral.
A história começa com um Hamlet muito triste com a morte do pai, o rei
Hamlet. O seu tio Cláudio havia se casado com a sua mãe, Gertrudes, logo após
o óbito. Ainda, como contexto histórico, surge uma disputa entre a Dinamarca
e a Noruega e uma ameaça de invasão pelo príncipe norueguês, Fórtinbras.
Nas primeiras cenas, surge, inicialmente para sentinelas e depois para o
próprio príncipe Hamlet, o fantasma do antigo rei, que revela ter sido assas-
sinado pelo seu irmão, Cláudio, que desejava subir ao poder. O espectro pede
a Hamlet que vingue a sua morte.

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O protagonista tem dúvidas em relação à identidade do fantasma, mas o seu


comportamento muda e todos ao seu redor notam isso: ele está melancólico e
solitário. Por isso, Cláudio e Gertrudes convidam dois amigos de Hamlet para
lhe fazerem companhia, Rosencrantz e Guildenstern. Ofélia, jovem cortejada
por Hamlet, também fica preocupada, mas o seu pai, Polônio, e o seu irmão,
Laertes, passam a acreditar que a loucura do protagonista seja culpa do amor.
Contudo, o personagem principal apenas finge estar louco para poder investigar
o assassinato do pai sem levantar suspeitas.
Para tentar descobrir a verdade, Hamlet usa uma interessante estratégia:
uma companhia teatral iria apresentar-se à corte e ele pede que os atores
encenem uma história criada por ele em que o rei é assassinado pelo seu
irmão. A sua intenção era observar atentamente as reações de Cláudio ao
longo da apresentação para tentar descobrir se ele era culpado ou não. Aqui,
portanto, você pode perceber que Hamlet é um homem moderno: um fantasma
diz ser o seu pai assassinado e revela a identidade do criminoso; o príncipe,
porém, não confia totalmente na palavra do outro e elabora uma espécie de
experimento para comprovar ou não as palavras do espectro. Ele, apesar da
situação dramática na qual se encontra, não se deixa levar pelo puro instinto
ou pela pura emoção. Ele ainda precisa de provas.
Além disso, com a encenação da montagem produzida pelo protagonista, há
uma peça teatral dentro da peça teatral, as duas com o mesmo mote, o que leva
o leitor ou o espectador a pensar sobre o gênero e a sua constituição. Apenas
o título dado por Hamlet para a peça já é bastante explicativo: A ratoeira.
Enquanto a cena do assassinato é interpretada pela trupe, Hamlet nota uma
reação exagerada no seu tio, o que o leva a considerar o homem culpado. Essa
cena apresenta a ironia mordaz de Hamlet e a sua fingida inocência:

HAMLET
Ele o envenena no jardim por suas posses. Seu nome é Gonzago. A história
ainda existe, escrita em puro italiano. Ireis ver logo como o assassino
consegue o amor da mulher de Gonzago.

OFÉLIA
O rei se levanta.

HAMLET
O que, assustado com fogo falso?

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RAINHA
Como passa o meu senhor?

POLÔNIO
Parem a peça!

REI
Deem-me luz! Vamos.

POLÔNIO
Luzes, luzes, luzes.
(Saem todos, menos Hamlet e Horácio)

HAMLET
Que gema o veado na agonia,
E o cervo vá brincando
Enquanto um dorme, outro vigia;
E o mundo vai andando...
Será que isto, com uma floresta de plumas — se o resto da minha fortuna
me der as costas — com rosas de Provença em seus sapatos esfarrapa-
dos, não me daria lugar numa matilha de atores? (SHAKESPEARE, 2010,
p. 137-138).

Primeiro, Hamlet inventa uma suposta origem da peça criada por ele e
conta-a para Ofélia. Depois, há a sua reação à saída intempestiva do rei,
sugerindo, de forma extremamente mordaz, que ele teria se assustado com
um alarme falso de fogo. Por fim, ele fala metaforicamente que, enquanto o
seu tio se entretém com as funções de ser rei, Hamlet está vigiando todos os
seus passos. E termina perguntando se, caso ele perca a sua posição e o seu
dinheiro, não poderia tornar-se ator. O jovem usa, porém, um coletivo que
não é próprio para um grupo de atores, que poderia ser designado como trupe,
por exemplo. Ele utiliza, no lugar disso, o termo “matilha”, ou seja, grupo de
cães. Talvez o protagonista esteja se referindo ao seu objetivo ao montar o
espetáculo A ratoeira: caçar o assassino do seu pai com uma armadilha, agir
como um cão de caça com a sua presa.
Depois da encenação da peça, inúmeros acontecimentos trágicos se pre-
cipitam. A mãe de Hamlet, a rainha Gertrudes, chama o filho ao seu quarto
para conversar sobre o que havia acabado de acontecer. No caminho, o jovem
príncipe encontra Cláudio rezando e hesita em matá-lo. No outro dia de manhã,

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porém, ele mata Polônio sem querer, que estava escondido atrás da cortina,
acreditando ser Cláudio que lhe espiava.
Transtornada com a morte do pai, Ofélia começa a mostrar sinais de loucura
a acaba morrendo afogada. Os coveiros dão a entender que a jovem se suicidou.

Figura 5. Morte de Ofélia por Millais, 1852.


Fonte: Hamlet (2017).

Depois, Cláudio desafia Hamlet a um duelo com armas brancas — porém,


o rei havia envenenado a ponta da sua espada e também havia deixado um
cálice de vinho com veneno para Hamlet, a fim de garantir que o protagonista
não sairia vivo da contenda para estragar os planos do rei. O jovem, contudo,
deixa para beber o vinho após o duelo, e Gertrudes, sem saber do plano,
toma do cálice. Hamlet vence os dois primeiros assaltos e, enquanto a rainha
limpa o seu rosto, Laertes tenta feri-lo com a espada envenenada. O irmão de
Ofélia havia sido persuadido por Cláudio de que Hamlet matara o seu pai de
propósito e, por isso, estava transtornado. Hamlet reage e, no meio da luta,
os dois acabam trocando de espadas e o protagonista fere Laertes. No fim, o
plano de Cláudio é revelado a todos e Hamlet mata-o obrigando o rei a beber
do cálice de vinho envenenado. A rainha e Laertes morrem e Hamlet se mata,
proferindo a famosa frase “O resto é silêncio” (SHAKESPEARE, 2010, p. 235).
Muitos temas, portanto, são abordados nessa peça: vingança, dúvida, amor,
ganância, corrupção, loucura. Outro assunto debatido, que gera tanto o medo

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mais apavorante quanto o interesse mais avassalador nas pessoas ao longo dos
tempos, é a morte. Hamlet está no cemitério quando segura uma caveira (aquela
famosa cena da tragédia), que um dos coveiros diz ser de Yorick, um bobo da
corte com quem o príncipe muito conviveu quando criança. O protagonista
relembra os tempos passados com Yorick e não consegue acreditar que aquele
ser humano que provocava o riso pode ter se transformado em um punhado
de ossos. A partir dessas recordações, Hamlet inicia uma reflexão sobre o fim
da vida. Ele pergunta ao seu fiel companheiro, Horácio, se ele acredita “que
o próprio Alexandre tenha esse aspecto, dentro da terra” (SHAKESPEARE,
2010, p. 210). Então, ele afirma: “A que baixa condição nós temos de volver,
Horácio!” (SHAKESPEARE, 2010, p. 210). E segue confrontando a grandeza
de Alexandre, o rei da Macedônia, assim como a do imperador César, durante
as suas vidas de conquistas, com a sua pequenez na morte:

Alexandre morreu, Alexandre foi enterrado, Alexandre voltou ao pó, o pó


é terra, da terra se faz argila, e por que essa argila em que ele se converteu
não poderia ser usada para selar um tonel?
César, imperador, morto e em barro mudado,
Poderia vedar um furo contra o vento.
Essa terra que pôs o mundo apavorado,
Vai tapar na parede um sopro friorento! (SHAKESPEARE, 2010, p. 210-211).

Se Alexandre e César tiveram grandes conquistas em vida, apavorando o


mundo, depois de mortos e transformados em pó, eles poderiam apenas tapar
um buraco na parede, algo muito irrisório. Repare nessa grande contradição e
na bela metáfora criada por Shakespeare para falar de uma enorme angústia
humana: o que acontece depois da morte?

Enquanto o homem da Idade Média tem fé de que vai para o céu ou para o inferno
(tudo depende de como levou a sua vida), para o homem moderno, já não existem
mais certezas. Hamlet está sozinho e não tem em quem se apoiar, nem no pai, morto,
nem na família, nem em Deus. Ademais, se o rei Hamlet foi assassinado, esse crime não
faz parte de um destino seu que deveria ser respeitado ou, pelo menos, aceitado por
se constituir como algo inevitável. Por isso, o seu filho, o príncipe Hamlet, pode vingar
a sua morte: ele não é capaz de consertar a situação, já que a morte é irreversível, mas
pode cobrar de quem cometeu o erro.

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Com personagens tão complexos do ponto de vista psicológico e com


temas tão intensamente debatidos, como a morte, não é à toa que Hamlet, de
Shakespeare, tornou-se um clássico, inspirando as pessoas mais distintas ao
longo do tempo e em diferentes cantos do mundo. O enredo pode estar situado
na Dinamarca de séculos atrás, mas esse é apenas um pano de fundo para a
encenação de dramas universais.

1. Hamlet, de Shakespeare, é uma 2. Shakespeare viveu entre o final


tragédia moderna. Sobre o do século XVI e o início do XVII.
conceito de tragédia moderna, Sobre esse período histórico,
é possível dizer que: é correto afirmar que:
a) a tragédia moderna é bastante a) o teocentrismo era a crença
similar à tragédia clássica, visto principal desse período, em
que as duas trabalham muito que a religião ainda era muito
a ação, não se preocupando importante. Os quadros
tanto com a descrição com temas religiosos de
psicológica dos personagens. Michelangelo e Rafael, por
b) a tragédia moderna está exemplo, são prova disso.
relacionada com o período b) a Inglaterra de Shakespeare foi
histórico em que se o centro cultural dessa época.
desenvolveu: o Renascimento. Todos os artistas europeus
c) na tragédia moderna, o coro se inspiravam nos ingleses.
se constitui em um elemento c) Shakespeare foi uma exceção
bastante importante para ajudar desse período histórico,
a elucidar os sentimentos dos quando a maior preocupação
personagens. Ele é herança era com a ciência e com a
da tragédia clássica. razão, não com as artes.
d) na tragédia moderna, Deus d) o misterioso oriente serviu
ainda tem um papel bastante como inspiração para as
importante nos rumos criações artísticas da época.
tomados pela narrativa. e) descobertas como as de Nicolau
e) o número de personagens Copérnico e Galileu Galilei,
da tragédia moderna é que tiravam a Terra do centro
reduzido, não passando de do Sistema Solar e afirmavam
três na maioria das peças. que era ela que girava ao

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redor do Sol, não o contrário, d) o centro das peças de


foram muito importantes Shakespeare é o ser humano,
para o desenvolvimento do os seus medos, as suas
pensamento da época. angústias, dúvidas e alegrias.
3. Quando se trata da biografia de e) Shakespeare se preocupa
Shakespeare, surgem muitas dúvidas mais com o drama humano,
e poucas certezas. Em relação à com os sentimentos dos seus
sua vida, podemos afirmar que: personagens. Por isso, nas
a) ele nunca trabalhou como ator, suas peças, o pano de fundo
apenas escrevendo as peças histórico acaba por ser pouco
que outros encenavam. desenvolvido e ter pouco relevo.
b) escreveu apenas tragédias, 5. Em Hamlet, o protagonista
que ele considerava como reflete sobre o suicídio. É nesse
o gênero mais elevado. momento em que ele declama a
c) ao contrário de muitos famosa frase “Ser ou não ser, eis
escritores que morrem a questão”. Analise este trecho
anônimos, conheceu o e assinale a alternativa correta
sucesso em vida, sendo sobre a sua interpretação.
reconhecido pelas suas peças. Ser ou não ser, eis a questão:
d) nasceu em uma família será mais nobre
pobre e, por isso, desde Em nosso espírito sofrer
cedo precisou escrever para pedras e flechas
vender as suas peças. Com que a Fortuna,
e) entre 1585 e 1592, mudou-se enfurecida, nos alveja,
do interior da Inglaterra Ou insurgir-nos contra um
para Londres e iniciou o seu mar de provocações
trabalho com o teatro. E em luta pôr-lhes fim?
4. A obra de Shakespeare conta Morrer... dormir: não mais
com inúmeros títulos. Sobre Dizer que rematamos com
ela, é correto afirmar que: um sono a angústia
a) Shakespeare foi um dramaturgo, E as mil pelejas naturais —
e a sua obra é composta herança do homem:
por textos dramáticos. Morrer para dormir... é
b) as suas obras mais emblemáticas uma consumação
e estudadas são as comédias, Que bem merece e
pois Shakespeare utiliza o riso desejamos com fervor.
como forma de reflexão sobre a) Por um fim às provocações,
os problemas humanos. nesse trecho, significa
c) os personagens de Shakespeare por um termo à vida.
são guiados pelo destino. Por b) “Ser ou não ser” se refere à
mais que eles tentem mudar as dúvida do príncipe Hamlet entre
suas vidas, não são capazes. matar ou não o seu tio, entre

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82 O Renascimento em Shakespeare: Hamlet e a tragédia moderna

cumprir ou não o pedido de d) Nem todos passam por angústias


vingança do fantasma do seu pai. na vida, afirma Hamlet nesse
c) A luta da qual fala Hamlet seria trecho. Apenas aqueles que
a luta para passar por cima das passam desejam a morte.
flechas e pedras atiradas pela e) Hamlet não deseja a morte,
Fortuna e conseguir viver uma mas não vê outra solução
existência mais tranquila. para os seus problemas.

HAMLET. In: Wikipédia. 2017. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Hamlet>.


Acesso em: 7 ago. 2018.
HELIODORA, B. Por que ler Shakespeare. São Paulo: Globo, 2008.
RENASCIMENTO. In: Wikipédia. 2017. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Renascimento#/media/File:Pietro_Perugino_cat13a.jpg.>. Acesso em: 7 ago. 2018.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Rei Lear. MacBeth. São Paulo: Globo, 2010.
WILLIAM SHAKESPARE. In: Wikipédia. 2017. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/
wiki/William_Shakespeare>. Acesso em: 7 ago. 2018.

Leituras recomendadas
HUPPES, I. Tragédia clássica e tragédia moderna. Letras de Hoje, Porto legre, v. 22, n. 1,
1987. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/
view/17013/11036>. Acesso em: 7 ago. 2017.

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