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APRENDENDO NA DIVERSIDADE: IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS

Rosa Blanco
A exposição terá três partes. Em primeiro lugar tratarei sobre o conceito de
necessidades educativas especiais e as diferenças entre integração e inclusão,
porque sinto que incorporamos muito rápido esses termos à linguagem, mas muitas
vezes só estamos mudando o rótulo, o nome, para continuar chamando de
diferentes formas a mesma coisa. Por isso acredito que vale a pena abordar um
pouco a conceituação que supõe as necessidades educativas especiais e que
diferenças existem entre integração e inclusão. E finalizarei com as condições que
devem existir para se conseguir o desenvolvimento de escolas inclusivas; embora
Álvaro Marchesi, em sua excelente exposição, tenha abordado esse tema, iremos
aprofundá-lo no dia de hoje.
I

Em relação ao conceito de necessidades educacionais especiais, acredito que é


importante que partamos do papel da escola, da educação escolar. A educação
escolar e a escola, diferentemente de outro tipo de educação (familiar, por exemplo),
tem como importante finalidade promover, de forma intencional, o desenvolvimento
de certas capacidades, a apropriação de certos conteúdos da cultura que são
fundamentais para que as pessoas depois se tornem membros ativos dessa cultura,
o que se chama, no Brasil, Construção de Cidadania.
Como aponta Álvaro Marchesi, com essa finalidade a escola encontra-se perante um
duplo desafio: conseguir que todos os meninos e meninas de um país adquiram
essas bases da cultura que lhes permitam inserir-se com maior igualdade de
condições e, ao mesmo tempo, conseguir conciliar as diferenças individuais;
conseguir que todos os meninos e meninas tenham acesso a essa aprendizagem
básica, respeitando as diferenças culturais, sociais e individuais. Acredito que este é
um desafio que não é fácil de se resolver na prática.
1- Adaptação realizada a partir da transcrição da Conferência "Aprendendo em
la Diversidad: Implicaiones Educativas", apresentada no III Congresso Ibero-
americano de Educação Especial (Foz do Iguaçu - PR, 4 a 7.11.98).
2 - Rosa Blanc Guijarro nasceu na Espanha. É licenciada em Ciências da
Educação, com doutorado em Psicologia Evolutiva da Aprendizagem pela
Universidade Autônoma de Madri. Atua junto ao Escritório Regional de
Educação para América Latina e Caribe - OREALC, da UNESCO, em Santiago
do Chile. É Especialista em Necessidades Educativas Especiais, Educação
Infantil. Currículo e Inovação Educativa. Coordenou, em Foz do Iguaçu, de 2 a
4.11.98, a III Reunião Regional de Dirigentes de Educação Especial e dos
Conselhos Nacionais de Portadores de Deficiência da América Latina e do
Caribe - Acompanhamento do Marco de Ação de Salamanca, patrocinada pela
UNESCO

Então, nesse sentido, poderíamos falar de um contínuo de necessidades especiais.


Existem certas necessidades educacionais comuns que todos os meninos e meninas
compartilham. São aquelas aprendizagens que, no geral, são expressas no currículo
não oficial de cada país e são, via de regra, compartilhadas, constituindo referencial
de educação de todo menino e menina, esteja onde estiver e seja qual for sua
condição social, cultural e pessoal. Mas todos sabemos que cada menino e menina
chega na escola com uma bagagem pessoal própria. Todos eles sobem no "trem" do
aprendizado com uma "bagagem" particular, com suas próprias crenças, com sua
visão do mundo, sua cultura de referência, em alguns casos sua própria língua,
diferente da que é usada na escola, com condições pessoais diferentes, com
interesses distintos, com capacidades distintas. Essa é a "bagagem" da qual temos
que partir, se queremos realmente que progridam na aprendizagem. E essas seriam
as necessidades individuais que também todos esses meninos e meninas têm. As
diferenças são inerentes ao ser humano e, na diferença ou na diversidade, não
estão somente as minorias ou as crianças com deficiências. Essa seria, talvez, a
diversidade mais marcante. Todos somos diferentes. Às vezes se entende errado o
conceito de diversidade, porque falar de diversidade é falar de coletivo e, no interior
desse coletivo, também existem muitas diferenças individuais. Uma criança surda
não se iguala a outra. Ou seja, as diferenças são uma condição inerente a qualquer
ser humano.
No geral, todo professor e professora conhece muitas estratégias para dar resposta
a essas diferentes necessidades que se encontram em sala de aula. No entanto,
existem algumas necessidades individuais que não podem ser resolvidas pelos
meios que os professores conhecem para dar resposta a essas diferenças. Existem
necessidades educacionais individuais que requerem uma série de recursos e
apoios de caráter mais especializado. E aqui estaríamos falando já de necessidades
educacionais especiais, quando existem necessidades que requerem que se
proporcione ao aluno uma série de meios de acesso ao currículo. Uma criança com
uma deficiência visual não teria por que ter problemas para aprender matemática,
linguagem, ciências, se lhe fosse ensinado o Braille e lhe fossem proporcionados
materiais específicos. Esses meios de acesso lhe abrem a porta para progredir no
currículo escolar. Mas existem algumas necessidades que requerem modificações
no próprio currículo. Existem meninos e meninas que requerem que se lhes dê mais
tempo para aprenderem determinados objetivos ou conteúdos. Algumas vezes é
necessário introduzir conteúdos que não são necessários para os outros colegas,
mas são necessários para ele individualmente. Em alguns casos esses alunos
podem ter acesso aos mesmos conteúdos trabalhando-os em diferentes graus de
complexidade; em outros, o que temos que fazer é procurar estratégias de ensino
um pouco diferentes para que atinjam seus objetivos. Existem necessidades
educacionais que justificam a modificação do contexto onde a criança se desenvolve
e aprende. Nesse caso, deve-se modificar a prática educativa, a organização da
escola, da sala de aula, e também deve-se ter muito presente a importância do clima
afetivo ou emocional para que o aluno aprenda e se desenvolva adequadamente.
Vemos que as necessidades educacionais especiais não se definem pela origem do
problema: definem-se pelo tipo de resposta educativa e pelo tipo de recursos, de
ajudas que se deve proporcionar. Nesse sentido, até agora, só as crianças com
deficiência pareceriam ter direito a esses recursos e ajudas especiais. No entanto, a
nova idéia é que o conceito de necessidades especiais abra um leque muito mais
amplo e que "necessidades especiais" não seja sinônimo de "deficiência".
Eu sinto que fomos substituindo termos. Se substituiu incapacidade por deficiência,
quando são coisas diferentes. Os meninos e meninas com deficiência são,
provavelmente, crianças com necessidades educativas especiais, mas há muitos
outros meninos e meninas que embora não sejam portadores de deficiência, por
motivos diversos têm necessidades especiais que requerem um ensino um pouco
diferenciado. Portanto, o conceito de necessidades especiais é mais amplo, e
engloba mais alunos e não somente aqueles com deficiência. Trata-se de um tema
importante, porque, às vezes, falamos de necessidades especiais para nos
referirmos à deficiência, e não há nenhum problema de se referir à deficiência, pois
não se trata de uma questão de terminologia ou de linguagem: é uma questão de
mudar conceitos e práticas. E também não devemos chegar ao extremo: o fato de
falarmos de necessidades especiais não implica deixarmos de falar em deficiência;
necessidades especiais explicam, em parte, o problema do desenvolvimento da
aprendizagem, e isso não podemos esquecer. A deficiência, por sua vez, não define
a essência da pessoa, não define o que essa pessoa é em sua totalidade, não
explica totalmente o nível de desenvolvimento de aprendizado. Deficiência é mais
uma condição da pessoa. Às vezes, parece que quando dizemos "uma pessoa
cega", estamos explicando tudo o que a pessoa é e todo o seu desenvolvimento de
aprendizagem, e isso não é assim. Costuma-se dizer que as necessidades especiais
são dificuldades de aprendizagem ou defasagens das crianças com relação ao
currículo que lhes corresponde a idade.
Em uma recente reunião da UNESCO, com todos os responsáveis pelos Ministérios
de Educação, estivemos refletindo sobre a necessidade de começar a falar mais em
"necessidades especiais de ensino" e não tanto de "dificuldades de aprendizagem",
porque isso implica que se continuamos falando de dificuldades de aprendizagem,
estamos centrando o foco na criança e a idéia é ver como modificamos o sistema
educativo e a resposta educativa para daí acolher toda essa diversidade que temos
nas salas de aula. O conceito de necessidades educacionais especiais também tem
um caráter interativo. Essas necessidades são relativas, mutantes: algumas crianças
as têm maneira transitória; outras, de maneira mais permanente. Mas temos
observado que esse conceito de necessidades especiais transitórias não se dá na
prática. Quando se põe um rótulo, do tipo que for, ele se mantém. Isto é, crianças
que podem ter uma necessidade especial transitória, ainda que já a tenham
superado, continuam sendo vistas como crianças com necessidades especiais
durante toda a sua vida escolar.

II

Veremos agora o conceito, a diferença entre integração e inclusão. Sinto que faz
muito pouco tempo que só falávamos de integração, inclusive em Congressos desse
tipo o título sempre era integração, e agora se fala de inclusão. Também sinto que
se está substituindo o termo inclusão pelo de integração como se fosse a mesma
coisa, e não é assim.
A integração surgiu há muitos anos, na década de 60, em muitos países, e a
integração está relacionada, diretamente, com as crianças com deficiência. Foi um
movimento que se deu em uma época de uma grande movimentação social e civil,
de luta por direitos, especialmente dos mais desfavorecidos. O que a integração
busca é dar resposta a estas questões: Como incorporar, na educação geral,
meninos e meninas com deficiência que, durante muitos anos, têm estado em um
sistema segregado, paralelo, totalmente diferente? Como ir incorporando esses
meninos e meninas à escola comum? E é um movimento que surge, principalmente,
por uma questão de direitos, por uma questão de justiça e igualdade. O direito
desses meninos e meninas a uma educação num ambiente o mais normalizador
possível e com seus pares. Portanto, a integração está ligada aos meninos e
meninas com deficiência, e tem sido promovida pela Educação Especial. Portanto, é
um termo muito mais restrito que Inclusão. Ainda mais: dá-se o interessante
paradoxo que temos visto em alguns países da América Latina: por um lado, estão
sendo integrados meninos e meninas com deficiência à escola comum; por outro,
essa mesma escola comum, que integra essas crianças, segrega outros alunos de
diferentes maneiras. Adapta o ensino à criança rotulada como de integração, mas
não o adapta a outra criança que está na sua mesma sala de aula. Isso, no fundo,
também nos mostra que temos tido um paradigma em Educação Especial, instalado
há muito tempo, muito centrado no clínico, na reabilitação, no individual; assim,
quando se começa uma experiência de integração, é reproduzido, no interior da
escola, o mesmo enfoque da escola especial.
E a inclusão, como muito bem diz Álvaro Marchesi, parte do pressuposto da própria
natureza da escola básica, da escola da educação comum. A inclusão é a idéia de
que todos os meninos e meninas de uma comunidade tenham o direito de se educar
juntos na escola da sua comunidade, uma escola que não peça requisitos para o
ingresso; uma escola que não selecione crianças. O conceito de escola inclusiva é
ligado à modificação da estrutura, do funcionamento e da resposta educativa, de
modo que se tenha lugar para todas as diferenças individuais, inclusive aquelas
associadas a alguma deficiência. Logo,é um conceito muito mais amplo do que o de
integração. A inclusão não é um conceito novo. A escola rural é inclusiva. Na rural
vão todos os meninos e meninas da comunidade, inclusive os que têm deficiência.
Portanto, a inclusão não é algo novo, já existe, e qual é, então, o desafio? O que é
novo? Generalizar isso à totalidade do sistema educativo. Vimos também, em uma
reunião da UNESCO, como as zonas mais excludentes são normalmente as zonas
urbanas, de classe média alta. E as zonas mais inclusivas são as zonas rurais e as
zonas periféricas ou de menor nível econômico-social. Dessa forma, o tema da
inclusão está se dando: a idéia e o desafio - e acredito que isso não é fácil - é como
podemos generalizá-lo ao conjunto do sistema educativo.
A educação inclusiva não é uma ação da Educação Especial. É da escola comum.
Implica transformar a Educação Comum no seu conjunto e, assim, deveremos
transformar a Educação Especial para que contribua de maneira significativa ao
desenvolvimento de escolas de qualidade para todos , com todos e entre todos. Não
poderemos impulsionar a inclusão a partir da Educação Especial; esse é um desafio
da escola comum. É triste ver que a esse tipo de Congresso sempre vem gente que
já tem isso tudo muito claro, que está mais convencida, gente da Educação Especial.
Tomara que consigamos que mais gente da Educação Comum participe desse
processo, porque caso não seja desde a escola comum, não iremos conseguir.
Certamente a sociedade é muito excludente, e se dizia que de alguma maneira, em
algum momento, se eu não entendi mal, que havia de se esperar também que a
sociedade fosse mais inclusiva para que a escola fosse mais inclusiva. Acredito que
a escola tenha uma função social de transformação da sociedade. A escola não é
reprodutora do sistema social estabelecido. Obviamente a educação escolar tem a
missão de socializar as futuras gerações para que se insiram na sociedade, mas
numa perspectiva de transformar a sociedade. A abordagem da UNESCO é,
justamente que, à medida que consigamos uma educação inclusiva, vamos alcançar
sociedades também mais inclusivas. Às vezes, temos medo das diferenças, porque
não estamos acostumados a conviver com elas. Não podemos esperar que a
sociedade seja inclusiva ou nunca faremos a inclusão na educação. Acredito que a
escola pode contribuir para fazer sociedades mais inclusivas. Mas a educação, por si
só, também não vai resolver a inclusão social; vai representar sim uma pequena
parte, vai contribuir, mas não pode cair sobre os ombros da escola, da educação e
dos professores a responsabilidade da inclusão social.

III

Passarei agora a falar das condições que possam favorecer a construção de uma
escola inclusiva. Como aponta, também, Álvaro Marchesi, a inclusão educativa não
está resolvida em nenhuma parte do mundo. O que tenho visto é que há mais
inclusão nos países mais pobres, onde há menos recursos, onde existem menos
serviços paralelos, onde há uma educação especial menos instalada. Portanto,
temos que partir do ponto de que a inclusão é uma certa utopia, é um desafio ao
futuro que temos que construir. Veremos, em seguida, uma série de condições para
que as escolas se tornem inclusivas, algumas condições favoráveis para
desenvolver uma educação de qualidade para atender à diversidade.
Mas antes, gostaria de apontar duas coisas: a primeira é que existem muitas
coincidências entre os estudos que têm sido feitos de escolas eficazes para todos e
as avaliações e investigações que têm sido feitas sobre as condições desejáveis
para uma integração de sucesso. Logo, existe muita coincidência, o que nos leva a
perguntar se integrar crianças com deficiência não requer coisas muito diferentes do
que requer uma escola que dê resposta à diversidade em seu conjunto. A segunda
questão que quero apontar refere-se às condições. Não podemos esperar que todas
as condições existam para começar, porque senão nunca começaremos. O que
quero apontar é que as condições que veremos a seguir fazem parte do próprio
processo: a inclusão é um processo gradativo, que leva tempo, que é complexo, que
tem que ser construído aos poucos. Assim, as condições fazem parte do próprio
processo.
A primeira condição é a valorização da diversidade como um elemento enriquecedor
do desenvolvimento pessoal e social. Acredito que a inclusão educativa não é, em
primeira instância, uma questão técnica ou, como diria Nicola Cuomo, não é uma
questão de engenharia didático-pedagógica. É, em primeira instância, uma opção
ideológica, uma opção de valores, uma opção de vida e, em definitivo, é um
sentimento. Penso que professores muito bem formados didaticamente, se não têm
uma atitude de respeito e valorização em relação às diferenças, se não têm um
compromisso, não irão responder adequadamente a essas diferenças; pelo
contrário, um professor que respeite as diferenças, que seja comprometido com elas,
mesmo que não esteja muito bem formado, responderá bem a elas, porque depois a
parte técnica vem quase por si só. Eu acredito que o importante é a escola ou o
sistema educativo partir do ponto de que a Diversidade não é um problema, mas
pelo contrário, é uma oportunidade para nos enriquecer, pessoal e socialmente, e
para enriquecer o processo de ensino-aprendizagem. Todos temos a experiência de
que quando podemos compartilhar com pessoas que têm diferentes experiências,
opiniões, pontos de vista e conhecimentos, aprendemos melhor. Se sempre nos
juntássemos aos que têm a mesma capacidade, opiniões e pontos de vista, não
cresceríamos.
Dessa forma, acredito que esta é uma premissa fundamental, e acredito que é a
primeira: uma atitude positiva, um compromisso e uma valorização das diferenças
individuais, percebendo-as como uma oportunidade para aprender e não como um
problema a resolver ou um obstáculo que se nos apresenta. É muito importante
definir ações sustentadas de sensibilização da sociedade no seu conjunto e da
comunidade escolar, em particular, porque quando não há uma atitude favorável,
não é má intenção, é medo, às vezes, receio do desconhecido, todos nos sentimos
muito cômodos nos esquemas com os quais lidamos. As mudanças são difíceis,
gostamos que o novo que chega se encaixe mais ou menos na estrutura na qual
temos organizada nossa visão de mundo. Portanto, acredito que as atitudes, às
vezes negativas, estão ligadas ao medo do desconhecido. Temos que respeitar
esses medos e compreendê-los, e devemos levá-los em consideração e partir dali
para construir o processo. Os pais, muitas vezes, temem que suas crianças tenham
dificuldades, imaginam se vão servir de deboche ou se vão ser aceitas; outros pais
têm medo por seus filhos estarem com crianças diferentes: "os meus vão aprender
menos ou irão mais devagar". Os professores da sala de aula comum ou da escola
comum têm medo de não serem capazes de dar respostas a essas diferenças,
porque temos tido a homogeneização instalada na escola há tanto tempo que cada
vez mais vamos fixando diferenças. Faz pouco tempo, no Chile, em um instituto
secundarista, verificou-se a seguinte discriminação: queriam expulsar alunos que
tinham o cabelo comprido ou usavam brinco; ou seja, a escola tem muitas formas de
segregar e discriminar e isso está tão instalado que requer uma mudança cultural da
educação e da escola, que levará muito tempo para ser alcançada. As atitudes são
um assunto a ser considerado em dois níveis: o primeiro é o da aceitação; o
segundo - que é o importante - é da valorização. Existem pessoas que aceitam as
diferenças, mas não as valorizam, ou não as consideram como algo que pode
enriquecê-las. E existem pessoas que as aceitam mas não se comprometem. A idéia
é chegar ao compromisso.
Uma segunda questão, que tem a ver com outra condição, refere-se às políticas
educacionais, os marcos legais que favoreçam uma educação inclusiva em todas as
etapas educativas. Como também aponta Álvaro Marchesi, estamos falando de uma
transformação do conjunto do sistema educativo, onde a diversidade não é um item
a mais, e sim o eixo central da educação comum. Portanto, as políticas e os marcos
legais, por si sós, não asseguram o sucesso na prática. De fato, há rupturas entre os
marcos legais, as políticas e as práticas. Os tempos são diferentes, os políticos têm
pressa, porque querem que as coisas se mantenham antes que mude o governo e,
às vezes, isso ocorre porque se está falando de transformações que levam muito
tempo. Então, às vezes, há rupturas entre o discurso teórico, o legal e a prática. Às
vezes, também, ocorre que há escolas que estão mais avançadas e, às vezes, são
limitadas pelas políticas ou pelos marcos legais. Eu acredito que o tema da inclusão
educativa implica apostar em uma política educativa que assegure que a atenção à
diversidade seja o eixo central e que isso se verifique em todas as etapas
educativas, porque às vezes se diz: - Sim, a integração de crianças com deficiência
está muito bem na pré-escola, mas não no segundo grau! Não. Estamos falando de
uma opção para a vida toda. Como diz o informe da UNESCO para a educação para
o século XXI, "aprender a aprender, durante a vida toda, e de maneira inclusiva."
Este é outro tema muito importante: as políticas e os marcos legais podem facilitar
ou, às vezes, dificultar que isso seja levado à prática na sala de aula e nas escolas.
Uma terceira condição é contar com currículos amplos, equilibrados, flexíveis e
abertos. Obviamente, no meu país - a Espanha - começou-se a integração antes da
reforma educativa e partimos de um currículo muito fechado; ainda assim, começou-
se a integração. Quero dizer que também não temos que esperar que todos os
currículos sejam abertos e flexíveis para começar a ter uma educação para a
diversidade. Logicamente, quando se fez a reforma e se delineou um currículo
aberto, flexível, amplo e equilibrado, que considerava não somente capacidade do
tipo cognitivo ou conteúdos do tipo mais conceitual, mas que considerava também
conteúdos e capacidades relacionados com o social, com o afetivo-emocional, etc;
facilitou-se muito o processo de integração. Acredito que é muito importante contar
com currículos, desenhos curriculares oficiais abertos e flexíveis, mas não somente
isso, porque se temos um currículo aberto e flexível, que possa ser ajustado à
escola, aos alunos, etc, mas este currículo que, de inicio, é baseado nos tipos de
conhecimentos e capacidades, também não será suficiente. Portanto, são duas
condições importantes.
Outra questão que queria apontar é o fato de que o currículo comum deve ser o
referencial da educação de todo criança, esteja onde estiver. Ou seja, também tem
que ser o currículo, o referencial para as crianças escolarizadas em escolas
especiais, fazendo-se os ajustes pertinentes. Dessa maneira, asseguraremos uma
maior igualdade de oportunidades. Por isso, acredito que uma estratégia que está se
implantando em toda América Latina é começar a eliminar os currículos para atraso
mental, para crianças cegas e surdas. Eu me pergunto: O que de diferente têm que
aprender essas crianças como cidadãos futuros? Teremos que lhes dar ajuda e
recursos especiais para lhes ajudar a progredir nesse currículo comum até onde
puderem chegar, mas não aprendem de uma maneira muito diferente, nem têm que
aprender coisas muito diferentes dos outros alunos. Outro ponto: esses programas
que existem por deficiência não são currículos, e sim programas reabilitadores.
Portanto, o currículo comum, com os ajustes e diversificações necessários, deve ser
o referencial da educação de todo criança de um país onde estiver e seja qual for
sua condição social, cultural ou pessoal. E uma última reflexão sobre o currículo:
sinto que não nos temos detido na analise do fato de que havia matérias com o
mesmo nível de importância. Acredito que a escola ainda continua com matérias de
primeira e de segunda. Queria ressaltar que há tantas ciências, línguas ou
matemática, que esquecemos que há outro tipo de áreas curriculares que são mais
bem relacionadas com o desenvolvimento artístico, estético, físico. E é, justamente,
nelas que muitos alunos têm sucesso e onde podem ter maior auto-estima.
Entretanto, essas matérias ou áreas curriculares continuam sendo consideradas de
menor importância ou de segunda categoria.
Uma quarta condição: a inclusão educativa é um projeto de escola e não de
professores isolados. É preciso trabalhar no sentido de fazer projetos educativos
institucionais que incorporem a diversidade como eixo central da tomada de decisão.
Realmente a inclusão implica uma mudança cultural da escola, e a escola é um
cruzamento de culturas, a escola não tem, a instituição educativa não tem somente
uma cultura, mas muitos cruzamentos de culturas. Portanto, isso não é uma tarefa
fácil, mas se queremos que as mudanças sejam permanentes, tenham continuidade
e sejam profundas, temos que abordá-las conjuntamente e compartilhar certos
critérios, certas estratégias e certas condições que assegurem a continuidade e a
coerência.
Quero dar um exemplo relacionado com a integração, nesse ponto. Em muitos
paises a integração começa - na América Latina especialmente - com professores
voluntários e depois vem a angústia de dizer: - E no ano que vem, quem irá
promovê-la? Acredito que "professores voluntários" e "escolas voluntárias no seu
conjunto" são coisas distintas. Se o processo se inicia com um caráter voluntário, é
importante que seja a decisão da escola em seu conjunto e não de professores
isolados. Penso que esse é um assunto fundamental, haja vista que aquelas escolas
que têm um projeto educativo elaborado de maneira consensual e conjunta são
escolas que não somente atendem melhor à diversidade e ao desenvolvimento de
seus alunos, mas também são as que mais crescem como instituição. Trata-se do
fato de que, também na América Latina, estamos num momento em que a maioria
dos países tem currículos abertos, flexíveis, e há uma possibilidade de que cada
escola ajuste essas bases que dá a administração educativa as características
sociais e culturais de seus alunos. Creio que em muitos países da América Latina os
projetos educativos institucionais estejam caminhando. É importante frisar que o
projeto institucional não é um produto, na é algo que escrevemos em três horas, ou
em dois dias, porque o supervisor o solicitará. O projeto educativo institucional,
penso eu, é a desculpa para sentarmos juntos a refletir como atendemos as
diferenças, como podemos ensinar melhor, etc. Portanto, trata-se de um processo e
não de um produto. E é um processo vivo, dinâmico e mutante. Não é algo que
façamos em três dias e entreguemos, para depois não sabermos sequer o que
havíamos decidido ali.
Uma quinta condição - importantíssima - é que uma educação inclusiva somente é
possível se os professores têm apoios. Faz-se necessário um equilíbrio entre a
pressão da mudança que se propõe e a possibilidade real de alcançá-la. Há que se
propor mudanças, mas temos que ajudar os docentes para que possam realizar
essas mudanças. E a ajuda mais importante é a colaboração que possam efetivar os
docente entre si. Não temos que esperar que seja sempre a administração educativa
ou o especialista que venha a dizer o que tem que ser feito. Os professores são
peritos no que fazem e, portanto, a ajuda mútua entre docentes é uma estratégia
fundamental para se dar resposta à diversidade. Porque a gente não sabe tudo: a
gente tem de se juntar com outro para complementar o que não sabe, ou para que o
outro nos dê outro ponto de vista. Acredito que há uma tradição muito forte de
isolamento dos docentes e de trabalho solitário. Eu sei que estarão pensando: - Em
que momento se juntam? Sei que há muitos países em que há dois turnos, e em que
não há o momento para criar esses espaços. Mas eu volto a política: se há uma
política educativa que aposta nisso, é preciso empenhar-se para que os professores
tenham as condições mínimas para se reunir, para pensar juntos, etc. E o trabalho
em colaboração implica não somente os decente, implica também os pais. O
trabalho cooperativo implica, além desses elementos, um nível de igualdade na
relação, e uma complementação nos conhecimentos, pontos de vista e perspectivas.
No trabalho colaborativo, ninguém é mais do que ninguém; o especialista não é mais
do que o docente. São iguais. Têm conhecimentos diferentes, que juntos
potencializam a resolução dos problemas. Os professores não são mais do que os
pais: o nível de relação tem de ser o mesmo. Temos que começar a valorizar mais
os pais, e partir do que eles abem, resgatando o conhecimento que têm de seus
filhos. Às vezes, adotamos uma atitude impositiva frente aos pais, do que eles têm
que fazer. Eles conhecem seus filhos e, portanto, temos que levar em consideração
o ponto de partida dos pais. Por fim, a colaboração tem que se dar entre os alunos.
Dessa forma, estamos falando de uma escola colaborativa em seu conjunto.
Outra condição, muito relacionada com a anterior, é criar um bom clima na escola e
na sala de aula. Todos sabemos que os aspectos afetivos e emocionais são, às
vezes, os que mais incidência têm no aprendizado significativo por parte da criança.
Muitas vezes as crianças não se sentem pessoas, não se sentem indivíduos
particulares, se sentem, às vezes, um número. Nesse sentido, eu acredito que o
tema de cuidar dos aspectos afetivos e emocionais é fundamental para que a
aprendizagem seja significativa, e não só isso, para que o aluno se sinta bem na
escola. Outro aspecto complicado tem a ver com critérios e procedimentos flexíveis
de avaliação e promoção. É um dos maiores desafios que temos. Existem reformas
em andamento, inovadoras, e que partem de uma concepção construtivista do
ensino e da aprendizagem, em outras palavras, de que cada pessoa faz um
processo particular de construção do conhecimento e aprendizagem, partindo do
que traz. Como conciliamos uma concepção construtivista da aprendizagem e do
ensino com uma avaliação que afinal acaba sendo comum para todos? Como
conciliamos respeitar processo individual que cada criança segue para aprender e
ver que ajuda temos que lhe oferecer com critérios de avaliação que todos têm que
cumprir? Acredito que esse é um assunto que não está verdadeiramente resolvido
em nenhum país. Devemos ser conscientes das contradições que temos, e também
devemos diferenciar avaliação, promoção e certificação. São coisas diferentes, mas
afinal parece que as equiparamos. Acredito que na escola não temos que avaliar
tudo aquilo que a criança aprende ou tudo aquilo que lhe ensinamos. Deve-se fazer
uma seleção do que é mais importante avaliar em relação à promoção. Podemos
avaliar na totalidade o processo de ensino-aprendizagem, e depois podemos
selecionar quais são as aprendizagens realmente relevantes para a promoção.
Acredito que a promoção deva ser automática. Vimos que a repetência não resolve o
problema e complica muito a educação. Eu li, faz pouco tempo, em um trabalho do
Brasil, que existe uma cultura forte da repetência - como ocorre em muitos países - e
que a repetência não resolve nada, porque volta-se a fazer a mesma coisa, e vai-se
afastando do seu grupo de idade cronológica; por isso, no Brasil, existe uma
experiência interessante que é chamada de estudo ou cursos de aceleração, o que
nos leva a perguntar: - Como fazer para que não exista um aluno de dez anos junto
a outro de seis? Se vamos fazer uma seleção de currículo, vamos conseguir
trabalhar de outra maneira, vamos fomentar sua auto-estima para que volte, para
que retorne logo ao grupo de sua faixa etária. Acredito que esse assunto é um dos
mais complicados, e temos que ver que nisso a administração sequer pode ajudar
fazendo normas e leis que permitam uma maior flexibilidade da promoção e que
cada criança vá se promovendo com as adaptações curriculares que requeira.
Porque repetir de ano não resolve o problema da criança. Pelo contrário, o acentua,
compromete sua auto-estima, etc., e eu acredito que traça um problema grave ao
sistema educativo como um todo.
A condição nove é ter, como também aponta Álvaro Marchesi, uma série de recursos
que apóiem os professores. Não pode recair tudo no professor, nas suas costas.
Deve-se proporcionar a ele recursos humanos, financeiros e materiais. Mas deve-se
ser cuidadoso com isto. Nem sempre a resposta a determinadas diferenças tem que
ir junto com recursos de caráter especializado. Não é uma associação direta. Há
muitas crianças com deficiências que podem precisar de recursos por um tempo,
mas depois não; contudo, as escolas exigem que, no caso de existirem crianças com
deficiência, o recurso esteja ali o tempo todo, e nem sempre é necessário. Então
depois veremos se trata-se de uma escola inclusiva, teremos que ter recursos para
asa crianças com deficiência, para as crianças de outra etnia ou cultura. As pessoas
de Educação Especial não podem resolver as necessidades de toda a diversidade.
O docente da sala comum tem de resolvê-las, com o apoio e a ajuda de pessoas
que tenham conhecimentos de caráter mais especializado.
Temos visto, também, que quando se inicia a integração, em muitas escolas,
reproduzindo o esquema de atenção individual realizado na escola comum, retira-se
a criança continuamente da sala de aula para lhe dar apoio. O que ocorre? Primeiro,
a criança vai se distanciando do seu grupo; segundo, o professor da classe comum
não modifica sua prática, porque o problema está continuamente saindo da sala.
Então, o importante é que esse docente comum tenha ferramentas, instrumentos,
conhecimentos, para dar resposta a essa diversidade, com ajuda de recursos
humanos, com materiais e com recursos financeiros. O desafio é conseguir docentes
que quebrem o esquema de homogeneidade e que realizem essa passagem para a
Diversidade.
Finalmente, a formação e a investigação. Tudo o que estamos apontando é um
desafio, um caminho para o futuro que há que construir. E sabemos que, às vezes,
não temos as ferramentas, os conhecimentos necessários. Portanto, todas essas
novas exigências e desafios, que estabelece a educação inclusiva, devem ser
acompanhadas de processos de formação sustentados. De nada serve fazer um
curso de cinco horas para dar o básico; deve haver uma formação sustentada com o
tempo. Já se viu que a formação dirigida à escola como um todo é mais eficaz.
Geralmente, ocorre o seguinte: o professor muda de escola, e passa por várias.
Quando volta a sua escola, se encontra só: volta muito motivado a fazer mudanças,
mas se deixa envolver pela sala, não podendo mudar muita coisa, porque os outros
não estão com esse pensamento. Então, é importante que a formação se centralize
na escola para que as necessidades reais dessa escola - diferente de outras - sejam
traçadas, de modo que a formação esteja vinculada à construção do projeto
educativo institucional. Há escolas que estão fazendo experiências muito
interessantes e que não se conhecem. No momento, estou fazendo um trabalho na
UNESCO relativo a um teste de inovações educativas. Constatei que há muito pouca
informação sobre inovação a partir das escolas. Acontece que as escolas já têm
muitas coisas interessantes que possam compartilhar entre si. Pois, se temos as
mesmas dificuldades, devemos considerar o seguinte encaminhamento: - Como
você a resolveu? - Como nós temos resolvido a situação? - Como podemos nos
enriquecer mutuamente? Então, volto à idéia de que valorizemos o que nossos
colegas podem nos acrescentar, e não esperemos sempre isso de fora.
E, em conclusão, isso implica uma transformação considerável na formação inicial
dos docentes, que, às vezes, é o mais difícil de conseguir também. Quando vamos
subindo nos níveis de ensino, mais difíceis, às vezes, são as mudanças. A idéia é
que a formação docente inicial tem que dar instrumentos a todo docente para que
atenda à diversidade e que todos os docentes tenham um tronco de formação
comum, e que as especialidades, que também são necessárias, sejam a posterior
em relação a essa formação comum.
Bom, estas seriam as condições, espero que não se assustem, eu acredito que
temos que pensar que é um caminho a que percorrer, e há escolas que o estão
fazendo, que é possível - que não é fácil, mas é possível - e, portanto, devemos
trabalhar com otimismo, porque, às vezes, somos muito negativos, vemos sempre o
que não temos e não enxergamos o que vamos conseguindo. O importante é que há
escolas fazendo a mudança , mostrando que é possível. E, como dizia Antonio
Machado, "o caminho se fez ao andar". E se aprende fazendo. Acredito que esse
caminho seja muito mais fácil de percorrer, mais prazeroso e rápido se o
percorrermos juntos e nos ajudando uns aos outros.

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