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Ecos Do Silêncio - 240126 - 004019
Ecos Do Silêncio - 240126 - 004019
Cassandra Pereira França A sexualidade humana é inerentemente traumática, escreve Este livro é um relato ampliado de
França
Joyce McDougall. Se já não conseguimos alcançar uma nar- múltiplas estratégias psicanalíticas
É doutora em Psicologia Clínica rativa que comporte o sexual freudiano, imagine quando para acolher e dar palavra aos acon-
pela PUC-SP, onde também reali- estamos diante dos excessos, do que transborda, do que tecimentos traumáticos que perfu-
zou o pós-doutoramento. É profes- não tem contorno, representação, do que não tem palavra. raram o tecido psíquico e compro-
sora da graduação e da pós-gradua- A sessão de análise é o lugar de narrar a dor, de transfor- meteram a vida desses pacientes. O
E c o s d o S i l ê n c i o : R e v e r b e r a ç õ e s d o t r a u m at i s m o s e x u a l
ção em Psicologia da UFMG, onde abuso na infância e na adolescência
mar a dor. Um sujeito que narra a própria dor, dá conti-
também coordena o curso de espe- acontece em uma época em que
nência e existência ao que era apenas silêncio e trevas. No
cialização em Teoria Psicanalítica e não há palavras suficientes. Mais
entanto, é preciso ter coragem para ser narrador da própria
o Projeto CAVAS (Crianças e Ado- que a intensidade da dor, que o
história, narrador dos excessos vividos, do excesso do
lescentes Vítimas de Abuso Sexual). excesso de dor que cortou a pala-
sexual e do traumático.
É autora dos livros Ejaculação preco- vra, o verdadeiramente traumático
Marina Ribeiro foi o segundo momento, do des-
ce e disfunção erétil: uma abordagem
C
2001), Disfunções sexuais (Coleção ente humano que não deu crédito
ao acontecido. O eu se encontrava,
CM
CY
cólogo, 2005), Nem sapo, nem prin-
cesa: terror e fascínio pelo feminino maior demanda é que se possa
CMY
Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Índice para catálogo sistemático:
Blücher Ltda. 1. Vítimas de abuso sexual
Conteúdo
Introdução 13
Cassandra Pereira França
(Clarice Lispector)
A boca de Lara
Nas entrevistas iniciais que a psicanalista realizou com os pais,
eles lhe contaram que haviam procurado ajuda terapêutica porque
2 A Fundación San Javier para el Desarrollo Integral de Ninõs y Jóvenes tem sua
sede em Buenos Aires (Argentina) e cuida daqueles sujeitos que se encontram
em situação de risco social, desenvolvendo projetos orientados para a proteção
e desenvolvimento social, psíquico e cultural.
3 Material clínico publicado em 2013 sob o título “La boca de Lara”, compondo
um dos capítulos do livro Abuso sexual infantil: la palavra arrebatada (Buenos
Aires: Fundación San Javier).
26 do grito de silêncio à reconstrução subjetiva
por mamãe, papai, filha e empregada, e que recebia visitas dos tios,
dos primos paternos e até mesmo das colegas do jardim de infân-
cia e das freiras (que falavam todo o tempo de pecados). Em todas
as encenações, havia segredos que não podiam ser revelados. Lara
recomendava aos bonecos: “As coisas que acontecem na família
não se pode contar. Tem de guardar segredo, porque senão vai
para o inferno”. Quando a mãe tocava a campainha para buscá-la,
Lara ficava sempre sobressaltada. Interrompia, imediatamente, o
que estava fazendo e guardava tudo como se não quisesse deixar
rastros de sua produção. Antes de ir embora, sempre recomendava
à analista: “Não vá contar a ninguém o que fizemos!”. Recomen-
dação que nos remete a uma dúvida que poderia ser reformulada
mentalmente pela analista da seguinte maneira: o que fizemos ago-
ra, ou o que fizemos em família?
Essas encenações repetitivas de Lara, durante os primeiros me-
ses de análise, lembram-nos das palavras de Freud:
Tempos de perlaboração
O fato de não mais haver risco de Lara continuar sendo abu-
sada sexualmente permitiu à analista respeitar os tempos de re-
velação do segredo e, na época, nada dizer a seus pais.4 Apenas
aumentou o número de sessões, para que a paciente pudesse ter
espaço para trabalhar aqueles conteúdos tão penosos e que tinham
encontrado uma chance de se vincular às representações-palavras.
Assim, ao longo de um extenso ciclo de sessões, a compulsão à
repetição cumpriu sua missão: fazer o sujeito repetir, incansavel-
mente, os mesmos roteiros, em busca de uma significação capaz de
transformar a vivência traumática.
O roteiro da dramatização que subia ao palco a cada sessão era
então o seguinte: um avô bom que pegava a neta no colégio, dizia
que o avô lhe fazia. Dizia à bonequinha: “Não tenha medo, eles não
vão se zangar com você, e nem vão castigá-la!”. Vemos, portanto,
que ela estava começando a vislumbrar outras possibilidades de
reação à intromissão violenta dos atos sexuais do avô em seu corpo
e em seu psiquismo. Mesmo assim, a boneca/neta continuava as-
sustada, e jurava ao avô não contar o segredo deles.
O exercício da possibilidade de tapar a boca do avô e abrir a
sua para dizer “não” às investidas dele fez com que essa garota pu-
desse se apropriar do seu desejo e de sua potência, desarmando,
assim, o sintoma instalado. Poucas semanas depois, a mãe ligou
para contar que estavam contentes porque, havia vários dias, Lara
não mais fazia a tal careta. A partir de então, estavam postas em
circulação outras possibilidades existenciais que não a obrigatorie-
dade de postar-se numa passividade radical diante da invasão de
um adulto perverso. Não havia mais necessidade daquela fixação
à boca/oca que tanto nos lembra o mais famoso dos mil quadros
pintados pelo norueguês Edvard Munch em Paris e que pode ser
uma analogia perfeita para o que sente uma criança que é abusada
sexualmente por um adulto/cuidador. A expressão facial da figura
humana na pintura do quadro O grito (1893) condensa tanto a an-
gústia pessoal do pintor (a negatividade de suas emoções) quanto
a dramática solidão que a todos ronda, e que reapresenta o desam-
paro primordial do ser humano ante um mundo que não responde
a seus desejos e a suas necessidades.
É certo que, mesmo o traumatismo sendo conectado às séries
psíquicas, ainda na infância, não deixará de determinar vias de li-
gação diretas com as fantasias originárias (que ocupam a cabeça de
todas as crianças) e que buscam criar “teorias” explicativas para o
enigma das origens. Assim, a realidade traumática da história vivi-
da por Lara se imiscuiria às suas fantasias originárias: a fantasia da
“cena primária” seria afetada pelo fato de ela ter tido intimidades
cassandra pereira frança 37
corporais com o avô, e sua mãe ter sido a terceira excluída, deixada
de fora da cena. A “cena de sedução” (que busca explicar a origem
da sexualidade) seria atravessada pelo discurso do avô que dizia
gostar mais dela do que de qualquer outra pessoa, fazendo com
que Lara se sentisse a predileta na rivalidade edipiana; e as fanta-
sias relativas à “cena da castração” seriam ainda mais fustigadas pe-
los temores de ser expulsa da escola e ir para o inferno. É por todas
essas imbricações que essa análise ainda teria de se desenrolar por
um bom tempo.
Necessário se faz colocar aqui um ponto-final para essa nar-
rativa. Contaremos apenas que, na sessão que se seguiu, Lara co-
meçou a repetir a mesma história, mas, quando o boneco/avô quis
tocar o “bumbum” da boneca/neta, esta não deixou e, aos gritos,
chamou os bonecos papai e mamãe para que viessem ajudá-la. Os
bonecos vieram correndo e a bonequinha lhes disse: “Não quero
mais ver o vovô, porque ele é mau e me toca o bumbum”. Após
fazer esse enunciado, Lara olhou bem no fundo dos olhos da ana-
lista e lhe perguntou: “Você pode dizer à minha mamãe que eu não
queria que ele morresse?”. Posso sim, responderíamos. Posso dizer
também, com Martin Luther King, que nós, adultos, não devemos
nos preocupar apenas com o grito dos corruptos, dos violentos,
dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... devemos, sobre-
tudo, nos preocupar com o silêncio dos bons.
Referências
Alkolombre, P. (2013). Violencia y abuso em la infancia: su inci-
dencia en la construcción de la subjetividad. In A. Díaz (Org.),
Abuso sexual infantil: la palabra arrebatada (pp. 73-78). Bue-
nos Aires: Fundación San Javier.
38 do grito de silêncio à reconstrução subjetiva
Ecos do Silêncio
Reverberações do traumatismo sexual
Cassandra Pereira França (Org.)
ISBN: 9788521212393
Páginas: 248
Formato: 14 x 21 cm
Ano de Publicação: 2017
Peso: 0.280 kg