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Essa tal de Filosofia

Por Marcia Tiburi

“O que é filosofia?” é uma das perguntas mais formuladas na atualidade. A


primeira resposta que vêm à mente para explicar a intensidade e frequência com
que esta pergunta é colocada é a seguinte: se estamos em tempos de crise em
campos tão diferentes quanto a ciência, a política, a arte e a religião, a filosofia nos
faz uma nova proposta, não de nos livrar da crise, mas de compreendê-la. Ela se
apresenta como uma promessa de lucidez no meio de toda a confusão que nos
cerca. Mas de onde vem a lucidez prometida?
O que a filosofia nos oferece é o próprio sentido do pensamento como
capacidade humana que pode nos mostrar outras dimensões da vida, nos oferecer
novas visões sobre o que existe. Mas isso porque em vez de nos prometer
respostas, a filosofia nos ensina a perguntar. A filosofia investiga o sentido das
múltiplas experiências, vivências e modificações de nossa época. Com isso, ela
pode ajudar a entender, com a urgência que conhecemos, as ansiedades coletivas
e nossas próprias angústias.

PERGUNTAR PARA QUÊ?


A pergunta pela essência (“o que é?”) se acompanha de outra: qual a função
da filosofia nos dias de hoje? Ou seja, qual a função prática de algo que nos
acostumamos a ver como apenas teórico.
A filosofia pode ser, acima de tudo, um lugar de exercício do imenso desejo
de saber sobre a vida, sobre nós mesmos, sobre tudo o que experimentamos. O
sentido das coisas é um problema que enfrentamos em nosso dia a dia mais
comum. Mas o sentido não está pronto e acabado, ele precisa ser construído. O
pensamento é a atividade de construção do sentido e, além disso, pensar também
é um prazer muito específico.

O EXERCÍCIO DA DÚVIDA
Há uma curiosidade aqui de início, pois ”O que é filosofia?” é uma pergunta
que também pode ser uma resposta. Pois a filosofia é um processo de perguntar
sobre todas as coisas – e que se inicia, desde os gregos, logo indagando sobre ela
mesma. Perguntar sobre o que é filosofia é o primeiro passo para a descoberta
essencial da própria filosofia: pois aquele que pergunta também é capaz de
elaborar uma resposta. E assim é possível entender como funciona o pensamento
filosófico.
Já entramos na filosofia quando perguntamos “O que é filosofia?”. A melhor
imagem para ilustrar esse caminho é a do labirinto. Claro que podemos ir embora
rapidinho, assustados, cansados, chateados com uma questão que pode nos soar
banal. Ou até pensando que este labirinto vai dar muito trabalho e que podemos
não encontrar mais a saída. Podemos também circular e continuar abrindo portas,
encontrando caminhos. É certo que, ao entrar nele, a cada possibilidade ficaremos
em dúvida sobre que caminho seguir. Direita, esquerda, em frente, um passo atrás?
O processo de pensamento a que chamamos filosofia é, sobretudo, um exercício
constante de dúvida. E toda dúvida exercita-se pela pergunta que se desdobra em
muitas outras e para as quais não há uma única resposta.
Por que não há uma única resposta? Veja, aí já apareceu outra pergunta
como uma nova possibilidade no caminho do labirinto. Não apenas nosso
pensamento é incansável e criativo e se diverte em seu próprio jogo, mas também
existem perspectivas diferentes de todos os que perguntam e também da época
em que perguntam: e tudo isso obriga a muitas interpretações. O que eu pergunto
hoje, aqui e agora, ou você ou ele, é diferente em função da realidade cultural,
social, histórica de cada um e exige, por isso, revisão das respostas. Mas é certo
também que existem respostas interligadas e, muitas vezes, respostas até iguais.
Tudo isso faz parte do grande labirinto a que chamamos pensamento. Não é à toa
que nas sociedades antigas o labirinto era uma imagem do autoconhecimento.
Como num labirinto, o pensamento nos leva de volta a nós mesmos.
Para muitos que desejam chegar direto à resposta, sem passar pelo
processo, isso será mesmo assustador. Os que desistem espantados sempre
escolhem alguma crença: a fé no trabalho, a fé religiosa, a fé no sistema financeiro,
no amor, na família. A filosofia não é, necessariamente, incompatível com a
multiplicidade da fé, mas ela certamente oferece espaço para a dúvida em nosso
cotidiano. Ela nos ensina a tomar cuidado com as certezas. É ela também que
fornece bases para a nossa vida mais comum, para compreender decisões,
omissões, posturas, imposturas, o que entendemos como verdadeiro e o que
percebemos como falso. Depois ela nos ensina a optar por algumas certezas. Sem
esta dúvida inicial não somos capazes de firmar nenhuma certeza que nos dê paz
de espírito.

EU PENSO, NÓS PENSAMOS


A filosofia precisa ser o exercício de cada um. Nossas ações dependem de
conceitos e ideias, de definições e entendimentos. Se não os temos, ou não os
compreendemos bem, acabaremos agindo com ideias, conceitos e definições que
não são nossos. Olharemos o mundo com lentes emprestadas. Por usar óculos de
outros é que nosso foco muitas vezes está errado, pois é impossível ver apenas
pela perspectiva de outro.
Mas precisamos ouvir os outros. É preciso saber, portanto, que este
momento individual se complementa pela conversação (que é outra das maiores
e mais importantes dimensões da vida de cada um). Se eu posso pensar sozinho,
devo pensar também junto. Tudo o que eu penso, ainda que seja meu, é marcado
pelo mundo onde nasci, pela língua e pela cultura que recebi. Não viemos do nada.
Somos totalmente influenciados pelo que vemos e sentimos quando elaboramos
nossos pensamentos. A filosofia melhora a forma da relação entre pessoas que se
dedicam a conversar. É dessa troca (pensamento e conversa) que ela surge.
A consequência do processo do pensamento foi definida ainda nos
primórdios da filosofia nas reflexões de Sócrates, o principal personagem dos
diálogos escritos por Platão. Ele batizou de “maiêutica” o método de perguntar e
responder, e afirmou que por meio disso se chegava ao conhecimento de si
mesmo. Mas para conhecer a si mesmo é preciso ter o outro. O outro sempre nos
põe em dúvida. A filosofia nos ajuda, neste caso, a nos descobrirmos, mas apenas
porque descobrimos antes o outro que nos ouve, que nos olha e que (literalmente)
“troca ideias” conosco. O caminho do autoconhecimento não é a meditação
solitária, sem contato com outras ideias diferentes. É abrir-se ao outro, seja outra
pessoa, seja o mundo lá fora. Pois a verdade sobre si mesmo se encontra naquilo
que se contempla.

FILOSOFIA É ENCONTRO
Quando pensamos juntos, a filosofia assume sua característica de encontro
e se torna uma forma de ética e política. Não é por menos que o surgimento da
filosofia na Grécia, por volta do século V a.C., é simultâneo ao nascimento da
democracia, ou seja, uma forma de política que é consciente da relação entre cada
cidadão e a sociedade. A filosofia clássica sempre trabalhou esta dimensão por
meio das ideias de indivíduo X totalidade, do que cada um é e do que a vida exige
que cada um seja.
Aquilo que chamamos ética, por sua vez, surgiu naquele tempo, logo depois
do primeiro questionamento da filosofia sobre a natureza e o cosmos, quando os
pensadores se voltaram para o humano e tentaram entender seu modo de ser
dentro do cosmos e juntos uns dos outros. Ética e política estavam juntas com a
filosofia, dependendo dela no trabalho da dúvida exigido na busca do
conhecimento. Com isso os filósofos antigos deixavam claro que toda teoria
envolvia uma prática, que os pensamentos moviam o mundo, que as ideias
sustentavam posturas, que os conceitos organizavam formas de vida. A ideia de
prática significava um modo de vida que orientava a pergunta pelo que “se deve
fazer” (que até hoje nos angustia em todas as horas da nossa vida).
E agora? A filosofia hoje precisa ser, para todos nós, mais que mera teoria
construída por filósofos que hoje habitam as estantes da biblioteca , deve ser mais
que bela prosa ou belo pensamento. Só será verdadeira a filosofia que estimular a
reflexão e nos orientar sobre o que estamos fazendo conosco, com o mundo, nossa
racionalidade e nossos afetos.

Fonte: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-cultura/5086684

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