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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A


CIÊNCIA E A MATEMÁTICA

LUCIANO CARVALHAIS GOMES

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DOS AUTORES DOS LIVROS


DIDÁTICOS DE FÍSICA SOBRE O CONCEITO DE CALOR

MARINGÁ
2012
LUCIANO CARVALHAIS GOMES

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DOS AUTORES DOS LIVROS


DIDÁTICOS DE FÍSICA SOBRE O CONCEITO DE CALOR

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação para a Ciência e a
Matemática do Centro de Ciências Exatas
da Universidade Estadual de Maringá,
como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Educação para a
Ciência e a Matemática.

Área de concentração: Ensino de Ciências e


Matemática

Orientadora: Profª. Drª. Luzia Marta Bellini

MARINGÁ
2012
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
Gomes, Luciano Carvalhais
G633r Representação social dos autores dos livros didáticos de
física sobre o conceito de calor / Luciano Carvalhais
Gomes. -- Maringá, 2012.
199 f. : il., tabs., figs.

Orientador: Profª. Drª. Luzia Marta Bellini.


Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Maringá,
Centro de Ciências Exatas, Programa de Pós-Graduação em
Educação para a Ciência e a Matemática, 2012.

1. Livro didático. 2. Representações sociais. 3.


Retórica. 4. Calor - física. 5. Ensino de física. I.
Bellini, Luzia Marta, orient. II. Universidade Estadual de
Maringá. Centro de Ciências Exatas. Programa de Pós-
Graduação em Educação para a Ciência e a Matemática. III.
Título.

CDD 21.ed. 530.07


AHS-000910
EPÍGRAFE

A escola depende, mais que de leis, mais que


do aluno, mais que da própria família deste, de
um elemento capaz de modificar todos estes
pela sua ação consciente, pela sua visão geral
da vida, pela sua disposição de constante
devotamento a um ideal, ainda sabendo-o de
realização tardia, sentindo-o cumprir-se muito
depois da sua ansiedade e do seu labor. A
escola depende, antes de tudo, do mestre.
(Cecília Meireles)
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho àqueles que me são caros:

aos meus pais, Luiz e Lucinda, e às minhas


irmãs, Patrícia e Joice, por compartilharem
uma boa parte das alegrias e tristezas de minha
vida;

à Cláudia, pelo incentivo, companhia, amizade


e carinho, e à Joanna de Ângelis por me fazer
lembrar que um dia eu fui uma criança.
AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que acreditaram em mim, em especial, à minha orientadora, professora Luzia
Marta Bellini, por ter me apresentado aos grandes pensadores e ter me ajudado a criar uma
compreensão melhor do mundo.

Aos professores Marcílio Hubner de Miranda Neto, Jurandir Hillmann Rohling, Alice Sizuko
Iramina e Sônia Lucy Molinari pelo apoio, incentivo e confiança depositada em mim.

À Cláudia por me ajudar a superar os contratempos no percurso deste trabalho.

À minha filha, Joanna de Ângelis, por alegrar os meus dias com a sua presença.
RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi fazer uma análise crítica dos livros didáticos de Física
brasileiros, tanto do Ensino Médio quanto do Ensino Superior, para detectar e descrever a
representação social de seus autores sobre o conceito de calor. Por meio da apresentação de
algumas reflexões dos estudos feitos sobre as concepções alternativas, mostramos que os
resultados dessas pesquisas não foram satisfatórios na mudança conceitual almejada. Assim,
no caso do conceito de calor, fomos além da simples catalogação das representações dos
autores dos livros didáticos de Física em certas ou erradas. O nosso interesse foi explicar os
mecanismos utilizados pelo grupo social para estabelecer a representação que lhe dá certa
identidade grupal e orienta suas ações. A nossa preparação teórica para a execução da
pesquisa constou de uma revisão bibliográfica alicerçada em quatro pilares: o entendimento
de como se deu a evolução dos conceitos físicos de energia e calor na história da ciência; a
leitura de textos sobre Representações Sociais baseados na perspectiva teórica de Moscovici;
a leitura de textos sobre Retórica e Argumentação sintonizados com a perspectiva teórica que
Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca apresentam em o “Tratado da Argumentação – A
nova Retórica”; e o estudo e a análise dos resultados das pesquisas sobre o conceito de calor.
Os resultados mostraram que há uma representação social dos autores de livros didáticos de
Física, tanto do Ensino Médio quanto do Ensino Superior, sobre o conceito de calor. O núcleo
central dessa representação é constituído pela metáfora “Calor é uma substância, um fluido
sutil”.

Palavras-chaves: livro didático; representações sociais; retórica; calor; ensino de Física.


ABSTRACT

The aim of this research was to make a critical analysis of some Brazilian didactic books of
physics, intended to secondary education and also to Higher education, to detect and describe
the author’s social representation about the heat concept. By means of the presentation of
some reflections of the studies made on the alternative conceptions, we showed that the
results of these researches were not satisfactory in the aimed conceptual change. Thus, in the
case of the heat concept, we went beyond of a simple cataloging as correct or incorrect the
representations of the authors of didactic books of physics. Our interest was to explain the
mechanisms used by the social group to establish the representation that gives certain group
identity and guides its action. Our theoretical preparation to the execution of the research
consisted of a well-estabilished bibliographical revision in four pillars: Understanding how
occurred the evolution of the physical concepts of energy and heat in the history of science;
the reading texts of Social Representations based on the Moscovic theoretical perspective; the
reading of texts on syntonized with the Rhetoric and Argument with the theoretical
perspective that Chaïm Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca presented in the “Treaty of the
Argument - the new Rhetoric”; and the study and analysis of the research results on the heat
concept. The results showed that there is a social representation of the didactic book of
physics authors, intended to secondary education and also to Higher education, about the heat
concept. The central core of this representation is constituted by the metaphor “Heat is a
substance, a subtle fluid”.

Keywords: didactic book; social representations; rhetoric; heat; physics education.


RÉSUMÉ

L’objectif de cette recherche a été de faire une analyse critique des manuels scolaires
brésiliens, aussi bien de l’enseignement secondaire que de l’enseignement supérieur, dans le
but de détecter et décrire la représentation sociale qu’ont leurs auteurs du concept de chaleur.
A travers la présentation de quelques résultats issus d’études faites sur les conceptions
alternatives de la notion de chaleur, nous montrons que ces recherches n’ont pas permis de
détecter le changement conceptuel espéré. Ainsi, en ce qui concerne le concept de chaleur,
nous nous sommes efforcés de dépasser la simple classification des représentations des
auteurs des manuels scolaires de physique en deux catégories, correctes ou erronées. Ce qui
nous a intéressés a été d’expliquer les mécanismes utilisés par le groupe social pour établir la
représentation qui donne au groupe une certaine identité et qui oriente ses actions. Notre
préparation théorique pour la conduite de la recherche a consisté en la lecture d’articles de
revue, avec les axes d’analyse suivants: la compréhension de l’évolution des concepts
physiques d’énergie et de chaleur dans l’histoire de la science ; la lecture de textes sur les
Représentations Sociales basés sur la perspective théorique de Moscovici ; la lecture de textes
sur la Rhétorique et l’Argumentation basés sur la perspective théorique présentée par Chaïm
Perelman et Lucie Olbrechts-Tyteca dans “Traitement de l’Argumentation – La nouvelle
Rhétorique”; ainsi que l’étude et l’analyse des résultats des recherches sur la notion de
chaleur. Les résultats montrent que les auteurs des manuels scolaires de physique, aussi bien
de l’enseignement secondaire que de l’enseignement supérieur, ont bien une représentation
sociale du concept de chaleur. Cette représentation a pour point central la métaphore “la
chaleur est une substance, un fluide subtil”.

Mots-clés : manuel scolaire ; représentations sociales ; rhétorique ; chaleur ; enseignement de


la physique.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................................................. 20
2.1 Os livros didáticos escolhidos .................................................................................... 20
2.2 Organização do corpus do material discursivo: técnicas da análise de conteúdo ..... 21
2.2.1 Pré-análise ............................................................................................................ 23
2.2.2 Exploração do material......................................................................................... 23
2.3 O porquê da análise retórica ....................................................................................... 24
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA ......................................... 26
3.1 Uma tarefa nada fácil ................................................................................................. 26
3.2 Origens e primeiros usos da palavra........................................................................... 28
3.3 Constância no meio de mudança ................................................................................ 31
3.3.1 Algumas contribuições de Galileu ...................................................................... 33
3.3.2 Algumas contribuições de Descartes................................................................... 38
3.3.3 Leibniz e a controvérsia da vis viva...................................................................... 40
3.4 O conceito físico de trabalho no contexto das máquinas ........................................... 46
3.4.1 Algumas contribuições de Lazare Carnot ............................................................ 47
3.4.2 Algumas contribuições de Navier ........................................................................ 48
3.4.3 Algumas contribuições de Coriolis ...................................................................... 49
3.4.4 Algumas contribuições de Poncelet ..................................................................... 50
3.4.5 O problema do rendimento ................................................................................... 50
3.5 A conservação da energia para além da mecânica ..................................................... 52
3.6 O equivalente mecânico do calor ............................................................................... 59
3.6.1 Algumas contribuições de Mayer ......................................................................... 59
3.6.2 Algumas contribuições de Joule ........................................................................... 69
3.7 A conservação da energia na forma como a conhecemos .......................................... 84
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR.............................................. 88
4.1 Delimitando o espaço e o tempo de análise ............................................................... 88
4.2 A ascensão da teoria do calórico ................................................................................ 89
4.2.1 Algumas contribuições de Joseph Black .............................................................. 89
4.2.2 Algumas contribuições de Lavoisier .................................................................... 99
4.2.3 Os postulados e o poder explicativo da teoria .................................................... 101
4.3 Críticas à teoria do calórico: o caso do Conde Rumford .......................................... 115
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .................................................................................. 125
5.1 Uma visão geral ........................................................................................................ 125
5.2 Alguns princípios filosóficos e epistemológicos da teoria ....................................... 128
5.3 A identificação dos fenômenos de representação social .......................................... 131
5.4 A teoria do núcleo central ........................................................................................ 134
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO ........................................................................... 137
6.1 Uma breve introdução .............................................................................................. 137
6.2 Tratado da argumentação: a nova retórica ............................................................... 141
6.3 A metáfora como figura argumentativa.................................................................... 150
6.4 A metafóra na constituição do núcleo central das representações sociais ............... 152
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO ........................... 154
7.1 O que é calor para os pesquisadores da área de ensino de ciências?........................ 154
7.2 O discurso escolhido como representante do universo reificado ............................. 156
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS ...................................................................... 163
8.1 Resultados obtidos.................................................................................................... 163
8.1.1 Ensino Médio ..................................................................................................... 163
8.1.2 Ensino Superior .................................................................................................. 167
8.2 Interpretação e inferência ......................................................................................... 170
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 182
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 185
1 INTRODUÇÃO

Você é um homem ou uma mulher livre? Há duas maneiras de se pensar em uma resposta a
essa pergunta: fisicamente e mentalmente. A mais imediata é referir-se à liberdade Física.
Muitos afirmariam que, pelo fato de não estarem presos em uma cela ou cativeiro, são livres.
Mas quantos empecilhos surgiriam se decidíssemos, por exemplo, ir amanhã à Paris? Fatores
como dinheiro, família, emprego e burocracia impediriam muitos de nós em concretizar esse
desejo. Ou seja, a liberdade Física conceituada como a capacidade de ir e vir quando e onde
quiser jamais é irrestrita em uma vida em sociedade.

Será que gozamos de uma liberdade irrestrita em pensamento? Argumentariam alguns:


“Podemos ir mentalmente à Paris superando muitos entraves que nos impediriam fisicamente,
desse modo, pelo menos em pensamento, somos totalmente livres. Assim, podemos pensar o
que quiser, quando quiser e como quiser, sem influência de terceiros”. Essa foi a nossa
opinião durante muitos anos. Não suportávamos a ideia de ter a nossa conduta guiada por
outros. Assim, como muitos, poderíamos ter vivido nessa ilusão por toda a vida. Felizmente,
estamos saindo desse estado de torpor intelectual. Quem são os responsáveis por esse
despertar? Thomas Kuhn (1922-1996), Jean Piaget (1896-1980), Paul K. Feyerabend (1924-
1994), Sigmund Freud (1856-1939), Karl Marx (1818-1883), Michel Foucault (1926-1984),
Michel Pêcheux (1938-1983), Chaïm Perelman (1912-1984) e, entre outros, Serge Moscovici
(1928). Esse último nos presenteia com a seguinte reflexão:

Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do aspecto


convencional da realidade e então escapar de algumas exigências que ela
impõe em nossas percepções e pensamentos. Mas nós não podemos imaginar
que podemos libertar-nos sempre de todas as convenções, ou que possamos
eliminar todos os preconceitos [...] (MOSCOVICI, 2003, p. 35) 1.

O problema de se acreditar que não somos influenciados em nossas percepções e pensamentos


é a manutenção da relação ingênua que temos com o mundo. O sujeito não se questiona sobre
o que produz e o que ouve nas diferentes manifestações da linguagem. Não percebe que “[...]

1
De acordo com a professora Alcina Maria Testa Braz da Silva, em comentário feito na defesa desta tese, é
necessário ter cuidado ao analisar essa citação. Pois, embora aqui Moscovici apresente duas funções das
representações sociais, a convencionalização e a prescrição, não podemos nos esquecer de sua característica
transformadora.
1 INTRODUÇÃO 11

não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos”
(ORLANDI, 2000, p. 09). O que acarreta algo pior do que a ignorância, que é a alienação. Na
área da Educação, mais especificamente para o Ensino de Ciências, é muito importante que o
professor tome consciência desse aspecto convencional da interpretação da realidade. Caso
contrário, pode-se pender para dois extremos: o empirismo e o apriorismo. Tanto o primeiro –
ao sustentar que o conhecimento se baseia e se adquire por meio do que se apreende pelos
sentidos – quanto o segundo – ao atribuir exclusiva confiança na razão humana como
instrumento capaz de conhecer a verdade – negam o papel fundamental que tem a negociação
de significados na construção dos conceitos científicos.

Um professor que não tem o hábito de promover a negociação de significados domina o


pensamento de seu aluno, tolhendo a sua liberdade de pensar, relegando-o “[...] a uma
condição de passividade, impondo-lhe uma situação de apatia frente ao próprio saber”
(SILVA, 2005, p. 55). Nas aulas desse tipo de professor não há um diálogo reflexivo, a fala
do aluno não é considerada dentro de um contexto de argumentação e sim como algo que tem
que ser purificado para que a “verdade” seja “revelada”. Posição análoga a de Bacon (1979),
ao defender a eliminação dos ídolos e das noções falsas. “Isso, em grande parte, deve-se ao
senso comum que impera na prática docente e diz que há um modelo certo a ser seguido e
reproduzido, sendo que qualquer construção diferente dessa deve ser abolida e extirpada”
(SILVA, 2005, p. 58).

Somos simpatizantes da linha teórica que afirma que o conhecimento científico é, ao mesmo
tempo, simbólico por natureza e socialmente negociado, e que os “[...] objetos da ciência não
são os fenômenos da natureza, mas construções desenvolvidas pela comunidade científica
para interpretar a natureza” (DRIVER et al., 1999, p. 32). Desse modo, há que se considerar
os processos de ensino e de aprendizagem “[...] como uma interação constitutiva entre o
indivíduo e a sociedade, entre a interiorização e a atividade do indivíduo, ou entre o sujeito e
o objeto do conhecimento” (CASTORINA; BAQUERO, 2008, p. 10). Afinal, “[...] nenhum
discurso é persuasivo por si mesmo, ou seja, somente o conteúdo apresentado não basta para
ganhar a adesão do auditório. É preciso haver interação entre as partes envolvidas, sem o que
as mais consistentes propostas caem no vazio” (MAZZOTTI; OLIVEIRA, 1999, p. 01).

Esse aspecto argumentativo da ciência não soa natural para muitos docentes, por estarem
imersos na visão positivista. Essa foi a nossa principal inspiração para a execução dessa
1 INTRODUÇÃO 12

pesquisa. Intencionamos em contribuir, principalmente para aqueles envolvidos com as


chamadas “ciências duras” – Física, Matemática, Química e Biologia –, para uma nova
interpretação da ciência e do ato de conhecer. Optamos, dessa maneira, por exemplificar o
nosso ponto de vista, analisando como a construção do conceito de calor se deu ao longo da
história da ciência, e, por intermédio da teoria da argumentação e da teoria das representações
sociais, como ele é apresentado pelos livros didáticos de Física. Esse estudo servirá, também,
a exemplo de Braz da Silva (1998), como uma nova perspectiva de análise das concepções
alternativas.

Mortimer (2000, p. 40) menciona que a “[...] maioria dos autores que optam por explicitar as
idéias prévias dos estudantes lançam mão do conflito cognitivo como estratégia para mudança
conceitual, se baseando, explícita ou implicitamente, na teoria piagetiana da equilibração”.
Para esses autores, as ideias prévias dos estudantes são fundamentais aos processos de ensino
e de aprendizagem, já que só se aprende a partir do que já se sabe. Numa perspectiva
piagetiana, “[...] isso seria o mesmo que dizer que a acomodação de uma idéia nova envolve a
modificação dos esquemas de assimilação anteriores que o sujeito dispunha para tentar
assimilar a novidade” (MORTIMER, 2000, p. 42). Essa leitura da obra piagetiana ocasionou
entre os investigadores em ensino de ciências, nas décadas de 1970 e 1980, um grande
empenho em estudar mais profundamente as concepções alternativas que os alunos traziam
para a sala de aula. De acordo com Nardi e Gatti (2005), as primeiras pesquisas nesse tema
são creditadas à Doran (1972), Driver e Easley (1978), Viennot (1979), Watts e Zylbertajan
(1981), McDermott (1984) e Driver (1989).

Esses estudos foram realizados na área de mecânica e mostraram que existem padrões de
respostas a várias situações Físicas em contradição com o conhecimento científico, tornando-
se um obstáculo à sua assimilação. O que não causaria tanto espanto se não fosse o fato dessas
concepções persistirem após anos de instrução, sendo encontradas, inclusive, entre
professores em situações de ensino. No início, essas concepções receberam nomes variados,
por exemplo, “pré-concepções” e “misconception”. Após as críticas de Driver e Easley (1978)
a essas denominações, o termo concepções alternativas ficou como o preferido pelos
pesquisadores, pois “pré-concepções” e “misconception” remetem à ideia de um
conhecimento incompleto e errôneo que precisa a todo custo ser modificado, enquanto que
concepções alternativas sugerem que essas têm toda uma estrutura lógica e são úteis para
interpretar os fenômenos tanto quanto as concepções científicas.
1 INTRODUÇÃO 13

Depois de inúmeras pesquisas, conhecemos uma gama enorme de concepções alternativas.


Por exemplo, para ficarmos somente na Física, sabe-se que muitos estudantes acreditam que o
movimento está associado à aplicação de uma força (POZO, 1987; DISESSA, 1982;
CLEMENT, 1982; HALLOUN; HESTENES, 1985; CARVALHO, 1985; ANJOS, 1996); que
a corrente elétrica é consumida em uma bateria (SAXENA, 1992; BORGES; GILBERT,
1999; RUIZ; ROSADO; OLIVA, 1991), que o calor está contido nos corpos (ROGAN, 1988;
ERICKSON, 1979), entre outros exemplos. As conclusões provenientes dessas pesquisas
mostraram que as concepções alternativas têm um caráter universal para cada conceito
analisado, estando presentes em diversas idades, gêneros e culturas, sendo o ensino tradicional
incapaz de modificá-las. Muitas delas fizeram parte da história da ciência e foram
consideradas científicas por décadas. Após a constatação dessas concepções, começaram a
surgir trabalhos com propostas para promover a mudança conceitual. Ao fazer uma revisão
crítica desses trabalhos, Aguiar Júnior (2001, p. 2) nos informa que:

Grosso modo, podem-se dividir os trabalhos em duas categorias, segundo a


preocupação e a abordagem predominante - epistemológica ou psicológica.
Os primeiros consistem em propor modelos para mudanças conceituais
inspirados em trabalhos derivados da filosofia das ciências, ou seja, em
projetar para a educação científica desafios semelhantes àqueles enfrentados
historicamente pelas comunidades científicas quando do debate entre teorias
rivais em um dado domínio do conhecimento. O segundo grupo de estudos
insere-se no campo da psicologia cognitiva, no sentido de precisar o modo
como as crianças pensam e os fatores que determinam ou favorecem
mudanças ao longo de seu desenvolvimento e no curso da aprendizagem
escolar em domínios específicos do conhecimento. Embora o olhar para a
mudança seja distinto, quer se considere a perspectiva filosófica ou
psicológica, não há, tampouco, consenso sobre a natureza das mudanças no
interior de cada uma dessas abordagens.

O primeiro trabalho da categoria epistemológica foi proposto por Posner, Strike, Hewson e
Gertzog (1982) e foi chamado de modelo PSHG em função dos nomes dos autores. As suas
ideias são baseadas em estudos histórico-filosóficos, principalmente, de Stephan Toulmin e
Thomas Kuhn. Toulmin fez uma analogia com a Teoria de Darwin sobre a evolução das
espécies para explicar a evolução dos conceitos, teorias e métodos nas ciências. Os
mecanismos de inovação e seleção seriam parecidos em ambos os casos, pois as ideias novas
são transmitidas às gerações seguintes por meio de um processo seletivo. Ou seja, novos
conceitos têm que demonstrar sua superioridade para serem considerados. Kuhn afirma que o
desenvolvimento da ciência é intercalado por períodos de ciência normal, crises e revoluções
científicas. No período de ciência normal, há o predomínio do consenso entre os cientistas
1 INTRODUÇÃO 14

quanto à análise e as conclusões de algum fenômeno, compartilhando todos do mesmo


paradigma. Uma teoria pode se transformar num paradigma desde que seus seguidores a
considerem melhor do que suas competidoras, embora não precise explicar todos os fatos com
os quais pode ser confrontada. Com o avanço da ciência normal, surgem problemas
extraordinários ou anomalias, que não são explicadas, satisfatoriamente, pelo paradigma
vigente, gerando uma crise. Essa culminará em uma revolução científica, forçando os
cientistas a uma transição para um novo paradigma. Fazendo uma comparação com as teorias
de Toulmin e Kuhn, Posner et al. (1982) afirmam que a aprendizagem de ciências segue um
modelo de mudança conceitual parecido com os dos cientistas em seus trabalhos e com o caso
biológico darwiniano. Esse modelo é composto de dois componentes básicos: a ecologia
conceitual e as condições para que as mudanças ocorram.

A ecologia conceitual é constituída por elementos que organizam,


selecionam ou impedem o avanço do conhecimento do sujeito, sendo
composta por anomalias, compromissos epistemológicos e crenças
metafísicas. Quanto às condições para mudanças, estas decorrem de uma
avaliação por parte do sujeito da aprendizagem quanto à plausibilidade,
inteligibilidade e poder explicativo das novas concepções, assim como de
uma certa insatisfação quanto às concepções anteriores (AGUIAR JÚNIOR,
2001, p. 03).

Ao longo da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990, a mudança conceitual


tornou-se sinônimo de aprender ciência (EL-HANI; BIZZO, 2002; MORTIMER, 2000). El-
hani e Bizzo (2002) nos informam que numerosas abordagens de ensino apoiadas na mudança
conceitual foram propostas e testadas. No entanto, os resultados mostraram um número
significativo de fracassos. Boa parte dos alunos não conseguiu promover a mudança
conceitual das concepções alternativas para a concepção científica. Enquanto que o restante,
que parecia ter tido êxito, meses depois voltou a apresentar as concepções antigas. Esses
reveses fizeram com que aparecessem críticas vigorosas ao modelo, como, por exemplo, de
que ele não considerava os fatores motivacionais e contextuais envolvidos no ensino e na
aprendizagem, ou não dava a devida atenção à relação entre o conhecimento científico e a
visão de mundo dos alunos.

Após revisarem os trabalhos que utilizaram o modelo de mudança conceitual como pano de
fundo, Posner, Strike e Hewson reavaliaram-no e publicaram dois novos artigos – Hewson e
Thorley (1989) e Strike e Posner (1992) – propondo algumas modificações. Hewson e
1 INTRODUÇÃO 15

Thorley (1989) dão mais ênfase nas condições necessárias para que um aluno promova a
mudança conceitual; afirmam que os estudantes classificam as concepções envolvidas de
acordo com a sua plausibilidade, inteligibilidade e poder explicativo, criando um status para
cada uma. Desse modo, “[...] a mudança conceitual não envolveria escolha de idéias rivais,
mas o aumento ou a diminuição do status das concepções com base nos elementos presentes
na ecologia conceitual” (AGUIAR JÚNIOR, p. 03, 2001). Strike e Posner (1992) consideram
que a ecologia conceitual deve incluir fatores sociais e psicológicos, além dos fatores
epistemológicos sugeridos pela história e filosofia da ciência. Os autores ainda ressaltam que
as concepções dos estudantes e os elementos que compõem sua ecologia conceitual possuem
caráter dinâmico, interativo e evolutivo, e é com esta visão que devem ser trabalhados. Após
analisar outros trabalhos de conotação epistemológica – VILLANI, 1992; DUSCHL;
GITOMER, 1991; NERSESSIAN, 1987, 1992 –, Aguiar Júnior (2001, p. 5) chega à seguinte
conclusão:

Essa breve panorâmica nos mostra a complexificação dos modelos e estudos


desenvolvidos e o afastamento progressivo do modelo “ingênuo” da
mudança radical e definitiva. Pelo contrário, os estudos revelam tensões
entre elementos de continuidades e rupturas nos processos de mudança, tanto
na história da ciência quanto nas salas de aula. Além disso, as comparações
entre as condutas de comunidades científicas e as condutas de estudantes em
situações de aprendizagem escolar passam a ser consideradas a partir das
práticas sociais desses grupos, evidenciando suas diferenças em termos de
propósitos e contextos.

Na categoria psicológica encontramos outros inúmeros trabalhos, cujas preocupações se


voltam para “[...] a natureza dos conceitos científicos e das concepções dos estudantes, os
fatores considerados centrais nas mudanças, a tensão entre as dimensões sociais e individuais,
as variáveis de contexto e seu papel na aprendizagem, entre outros” (AGUIAR JÚNIOR,
2001, p. 5). Nessa perspectiva, os trabalhos de Driver et al. (1999) e Mortimer (2000) nos
chamaram mais a atenção, por apresentarem visões da aprendizagem em sala de aula
semelhantes àquelas que nos baseamos para realizar a nossa pesquisa. Driver et al. (1999)
consideram que o mundo simbólico da ciência é o resultado de uma série de normas,
convenções, procedimentos de medida e de experimentos, motivo pelo qual dificilmente um
indivíduo por meio de suas próprias observações seria capaz de construí-lo sozinho. Muitas
entidades como átomos, elétrons, íons, campos, genes e cromossomos não são fenômenos da
natureza, mas construções desenvolvidas pela comunidade científica para interpretar a
natureza e comunicadas por meio da cultura e das instituições sociais da ciência. Ainda de
1 INTRODUÇÃO 16

acordo com esses autores, as concepções alternativas estão alicerçadas em esquemas


fortemente apoiados pela experiência pessoal e, na maioria das vezes, são perfeitamente
adequadas para interpretar e orientar as ações nas experiências do dia-a-dia das pessoas.
Desse modo, eles concluem que:

[...] as idéias informais não são apenas visões pessoais do mundo, mas
refletem uma visão comum, representada por uma linguagem compartilhada.
Essa visão compartilhada constitui o ‘senso comum’, uma forma socialmente
construída de descrever e explicar o mundo (DRIVER et al., 1999, p. 35).

Mortimer, um dos autores do artigo anterior, complementa a discussão sugerindo um novo


modelo para a análise da evolução conceitual em sala de aula. Baseado na noção de perfil
epistemológico de Bachelard, ele propõe o modelo de perfil conceitual. Nesse, não há
necessidade do abandono das concepções alternativas por parte dos alunos para a construção
de novos conceitos, almeja-se apenas uma tomada de consciência do contexto em que elas são
aplicáveis. “O objetivo do ensino torna-se, portanto, a evolução de um perfil conceitual,
através da construção de novas zonas desse perfil e da tomada de consciência do domínio
onde cada zona é aplicável” (MORTIMER, 2000, nota do autor). Para explicar a origem do
modelo, o autor apresenta, em detalhes, um trabalho que realizou com o objetivo principal de
detectar e descrever a evolução das explicações atomísticas para os estados físicos da matéria,
entre estudantes da oitava série do Ensino Fundamental. Inicialmente, a sua intenção era
descrever a evolução das ideias atomísticas dos estudantes utilizando-se do conceito de
equilibração majorante de Piaget (1975) e do modelo de mudança conceitual proposto por
Posner et al. (1982).

Mortimer (2000, p. 25) esclarece que tomou esse caminho por acreditar “[...] que uma visão
contínua da matéria era incompatível com a visão atomística e que a construção desta
pressupunha a superação da primeira num processo de equilibração”. Mas, com o
desenvolvimento da pesquisa, o autor não detectou a mudança conceitual esperada, além de
ter percebido a convivência entre outras diferentes concepções alternativas e científicas. O
que o levou a mudar o rumo da pesquisa incluindo a noção do perfil conceitual em sua análise
e a chegar à seguinte reflexão:

Pensar a mudança conceitual como a evolução e a construção de um perfil de


concepções nos obrigou a rever as relações entre os diversos níveis dos
conceitos científicos e entre estes e as idéias dos estudantes. Qual a natureza
1 INTRODUÇÃO 17

dessas idéias e qual a relação de continuidade entre elas e o pensamento


científico? Que obstáculos à construção de idéias científicas encerrariam as
idéias dos estudantes? Qual a natureza desses obstáculos? (MORTIMER,
2000, p. 27).

Acreditamos que algumas das respostas dessas perguntas podem ser obtidas pela teoria das
representações sociais. De acordo com Braz da Silva (1998, p. 49):

A perspectiva proposta pelos estudos das representações sociais aborda as


concepções alternativas de uma forma produtivamente diferente quando
comparada àquela dos teóricos da mudança conceitual. O foco no
enraizamento social para se procurar entender tanto as origens, quanto a
permanência dessas concepções, o predicado de erro não associado a estas,
seja da maneira direta como o fazem aqueles que defendem a substituição
das idéias prévias [...], ou indireta [...], consistem em diferenças
significativas entre esses referenciais.

Nessa ótica, a origem de algumas concepções alternativas extrapola o próprio indivíduo e


deve ser pesquisada como um constructo social. A nossa proposta de pesquisa foi estudar a
estrutura e a dinâmica interna da representação social dos autores dos livros didáticos de
Física brasileiros, tanto do Ensino Médio quanto do Ensino Superior, sobre o conceito de
calor. O objeto de nosso estudo diz respeito ao conceito de calor que permeia os livros
didáticos de Física brasileiros tanto do Ensino Médio quanto do Ensino Superior. Para
orientar esse estudo delimitamos como problemas de pesquisa as seguintes questões: Como o
conceito científico de calor é re-significado pelos autores dos livros didáticos de Física? Qual
a estrutura que fundamenta a sua re-significação? Qual a relação de continuidade entre ela e o
pensamento científico? Quais obstáculos que essa estrutura cria na construção das ideias
científicas?

Desse modo, o objetivo central desse trabalho é detectar e descrever as representações sociais
dos autores dos livros didáticos de Física sobre o conceito de calor, identificando a sua
estrutura e a sua dinâmica interna. Parafraseando Ausubel (1980), se tivéssemos que reduzir
os processos de ensino e de aprendizagem a um único princípio, diríamos que o fator singular
mais importante é o que o aluno já conhece. Descubra o que ele sabe e baseie nisso os seus
argumentos para negociar os significados, auxiliando-o na construção da aprendizagem de
determinado conceito. No entanto, o problema central dessa dinâmica está na resistência e/ou
persistência do aprendiz em manter as suas concepções alternativas. Ampliando a
compreensão do porquê isso acontece, vamos além das explicações tradicionais, utilizando,
1 INTRODUÇÃO 18

neste trabalho, assim como Braz da Silva (1998), a concepção teórica das representações
sociais “[...] na qual as concepções prévias passam a ser compreendidas como parte de um
processo socialmente construído” (BRAZ DA SILVA, 1998, p.35-36).

Ou seja, após anos de estudos sobre as concepções alternativas, poucos avanços foram
alcançados. Destacamos, principalmente, a constatação de que a aprendizagem é mais eficaz
com o envolvimento ativo do aprendiz na construção do conhecimento e de que só é possível
aprender com base no que já é conhecido. Apesar de essa conscientização, as propostas de
mudança conceitual não tiveram o êxito desejado na modificação das concepções alternativas
pelos conhecimentos científicos. Assim, no caso do conceito de calor, fomos além da simples
catalogação das representações dos autores dos livros didáticos de Física em certas ou erradas,
pois “[...] as representações organizam as condutas e atitudes das pessoas e, nesse sentido, são
‘verdadeiras’ para o grupo social que as construiu” (MAZZOTTI, 1997, p. 89). O nosso
interesse foi “[...] explicar os mecanismos utilizados pelo grupo social para estabelecer a
representação que lhe dá certa identidade grupal e orienta suas ações” (MAZZOTTI, 1997, p.
89), com o intuito de “[...] fornecer elementos tanto para uma reorientação do olhar das
demais áreas da psicologia – psicologia do desenvolvimento, psicologia da aprendizagem –
como para a epistemologia em geral, e para a epistemologia genética, em particular”
(MAZZOTTI, 1997, p. 89) 2. A justificativa dessa pesquisa, portanto, está no desenvolvimento
de uma nova forma de analisar o problema das concepções alternativas sobre o conceito de
calor.

Com esse propósito, dividimos o nosso trabalho em nove seções. Nesta, a primeira, após as
considerações iniciais, apresentamos o nosso objeto de estudo, problemas de pesquisa,
objetivos e justificativa. Deixamos para a segunda seção a descrição dos procedimentos
metodológicos adotados. Na terceira e quarta seção, apresentamos, respectivamente, um breve
histórico sobre a evolução do conceito físico de energia e calor. Mostramos como o
desenvolvimento desses conceitos esteve repleto de controvérsias, muitas ainda não
resolvidas. Na quinta seção, discorremos sobre a teoria das representações sociais que
juntamente com a teoria da argumentação apresentada na sexta seção formaram o arcabouço
teórico de nossa pesquisa. Na sétima seção, argumentamos sobre o que é calor para os

2
Gostaríamos de esclarecer que a intencionalidade da fala de Mazzotti referenciada é diferente daquela que
propomos em nosso trabalho, apesar de serem convergentes em muitos pontos. A título de comparação,
sugerimos a leitura na íntegra do texto citado.
1 INTRODUÇÃO 19

especialistas e elegemos o discurso representante da ciência. Na oitava seção, expomos os


resultados de nossa análise crítica sobre os livros didáticos. Na nona e última seção,
apresentamos as considerações finais de nosso trabalho.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

2.1 OS LIVROS DIDÁTICOS ESCOLHIDOS

A seleção das obras examinadas do Ensino Médio foi feita a partir de leituras de artigos,
originários de vários estados, que tiveram entre seus objetivos a análise dos livros didáticos de
Física mais utilizados em sua região. Por exemplo, Araújo e Nonenmacher (2009) no Rio
Grande do Sul; Santana e Queiroz (2007) no Rio de Janeiro; Souza e Germano (2009) no Rio
Grande do Norte; Souza Filho (2004) e Del Carlo (2007) em São Paulo; Souza e Sousa (2007)
no Pará e Resquetti (2007) no Paraná. No Ensino Superior, a escolha se deu entre os livros
mais utilizados nas disciplinas de Física geral – ou congêneres – adotados pelos cursos de
Física das principais universidades públicas do país, tais como: USP; UNICAMP; UFMG;
UFRGS; UFRJ; UEM; UFPR; UEL; UFPE; UFSC; UFSCar; UFF; UNESP; UNB e UFBA.
Após verificar, para a definição do conceito de calor, que o texto das edições mais recentes
dos livros selecionados não apresentava uma diferença significativa das edições anteriores,
optamos por analisar as edições que fazem parte de nosso acervo pessoal, a saber:

• Ensino Médio:

1. Título: Física – v. 2
Autor(es): Gaspar, A.
Editora: Ática
Edição: 1ª
Ano: 2000

2. Título: Curso de Física – v. 2


Autor(es): Máximo, A.; Alvarenga, B.
Editora: Scipione
Edição: 5ª
Ano: 2000

3. Título: Física – v. 2
Autor(es): Cabral, F.; Lago, A.
Editora: Harbra
Edição: 1ª
Ano: 2002
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 21

4. Título: Os fundamentos da Física – v. 2


Autor(es): Ramalho Junior, F.; Ferraro, N. G..; Soares, P. A. T.
Editora: Moderna
Edição: 9ª
Ano: 2007

• Ensino Superior:

1. Título: Fundamentos de Física – v. 2


Autor(es): Halliday, D.; Resnick, R.; Walker, J.
Editora: LTC
Edição: 8ª
Ano: 2009

2. Título: Física para Cientistas e Engenheiros – v. 1


Autor(es): Tipler, P. A.; Mosca, G.
Editora: LTC
Edição: 6ª
Ano: 2009

3. Título: Física II – Termodinâmica e Ondas


Autor(es): Sears, F.; Young, H. D.; Freedman, R. A.; Zemansky, M. W.
Editora: Pearson Addison Wesley
Edição: 10ª
Ano: 2003

4. Título: Curso de Física Básica – v. 2


Autor(es): Nussenzveig, H. M.
Editora: Edgard Blücher
Edição: 4ª
Ano: 2002

Ao todo, examinamos quatro volumes do Ensino Médio e quatro do Ensino Superior. Para nos
auxiliar nessa tarefa, utilizamos as técnicas da análise de conteúdo para organizar o corpus do
material discursivo presente nos livros didáticos.

2.2 ORGANIZAÇÃO DO CORPUS DO MATERIAL DISCURSIVO: TÉCNICAS


DA ANÁLISE DE CONTEÚDO

A análise de conteúdo, do modo que a conhecemos hoje, tem a sua origem ligada a análise de
material jornalístico no início do século XX nos Estados Unidos. Ocorrendo um avanço entre
1940 e 1945, período da Segunda Grande Guerra, quando “[...] o Governo americano exortou
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 22

os analistas a desmascararem os jornais e periódicos suspeitos de propaganda subversiva


(principalmente nazista)” (BARDIN, 1977, p. 16). Ela é utilizada para a análise de quaisquer
materiais oriundos da comunicação verbal ou não-verbal, como cartas, cartazes, jornais,
revistas, informes, livros, relatos autobiográficos, gravações, entrevistas, diários pessoais,
filmes, fotografias, vídeos e outros. Para Bardin (1977, p. 42), a análise de conteúdo constitui:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter, por


procedimentos, sistemáticos e objeticvos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas) destas mensagens.

Podemos dizer que o procedimento metodológico da análise de conteúdo leva-nos a uma nova
compreensão do material textual, ultrapassando a leitura superficial em busca do que está
escondido, latente, ou subentendido na mensagem. De acordo com Bardin (1977, p. 95-101),
esses procedimentos podem ser divididos em três etapas, assim resumidas por nós:

a) pré-análise: fase de organização e sistematização do material;

b) exploração do material: fase em que os dados brutos do material são analisados;

c) tratamento dos resultados obtidos, inferência e interpretação: nesta fase, apresentam-


se as inferências e as interpretações resultantes da análise feita sobre os dados brutos.
Antes disso, quando for necessário, pode-se ser feito o tratamento dos resultados obtidos
por meio de operações estatísticas, o que não aconteceu com a nossa pesquisa.

A maneira com que o pesquisador conduz cada etapa depende do tipo de comunicação a ser
analisada, do tipo de investigação, do corpo teórico adotado e das seis possíveis questões que
podem ser feitas sobre o texto: 1) “Quem fala?” 2) “Para dizer o quê?” 3) “A quem?” 4) “De
que modo?” 5) ”Com que finalidade?” 6) “Com que resultados?” Nesse leque de possíveis
caminhos a serem seguidos, existem várias técnicas desenvolvidas na análise de conteúdo que
podem ser utilizadas pelo pesquisador, tais como: desmembramento do texto em categorias;
análise estatística de indicadores; análise de co-ocorrências; análise da enunciação, entre
outras. Em nossa pesquisa, a questão que nos guiou na leitura dos textos foi “De que modo?”
e a técnica que mais utilizamos foi a análise de co-ocorrências. De acordo com Bardin (1977.
p. 198):
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 23

A análise das co-ocorrências procura extrair do texto as relações entre os


elementos da mensagem, ou mais exactamente, dedica-se a assinalar as
presenças simultâneas (co-ocorrência ou relação de associação) de dois ou
mais elementos na mesma unidade de contexto, isto é, num fragmento de
mensagem previamente definido.

Ou seja, a nossa intenção foi identificar quais palavras estavam associadas ao conceito de
calor para, em seguida, fazer a análise retórica do fragmento. Vejamos como foi feito.

2.2.1 PRÉ-ANÁLISE

A unidade de registro 3 central de nossa pesquisa foi a palavra-polo “calor”, então escolhemos,
após uma “leitura flutuante”4, apenas os textos em que ela estava presente. Ao falar sobre a
escolha da amostra em pesquisas que envolvem a análise de conteúdo, Bauer (2002, p. 197)
faz o seguinte comentário: “Uma amostra pequena, sistematicamente selecionada, é muito
melhor do que uma grande amostra de materiais escolhidos ao acaso”. Foi o que fizemos.

2.2.2 EXPLORAÇÃO DO MATERIAL

Escolhidos os textos, lemos cada um novamente de uma maneira mais minuciosa definindo as
unidades de contexto 5. Essas variaram muito de um texto para outro, indo desde o próprio
parágrafo no qual estava a unidade de registro em alguns artigos, até o texto todo em outras
situações. Por último, fizemos a análise retórica para identificar e compreender as
representações sociais sobre o conceito de calor. Os resultados obtidos bem como o
tratamento e a inferência encontram-se na oitava seção.

3
“É a unidade de significação a codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a considerar como unidade de
base, visando a categorização e a contagem frequencial. A unidade de registro pode ser de natureza e de
dimensões muito variáveis” (BARDIN, 1977, p. 104).
4
“A primeira actividade consiste em estabelecer contacto com os documentos a analisar e em conhecer o texto
deixando-se invadir por impressões e orientações. Esta fase é chamada de leitura <<flutuante>>, por analogia
com a atitude do psicanalista. Pouco a pouco, a leitura vai-se tornando mais precisa, em função de hipóteses
emergentes, da projeção de teorias adaptadas sobre o material e da possível aplicação de técnicas utilizadas
sobre materiais análogos” (BARDIN, 1977, p. 96).
5
“A unidade de contexto serve de unidade de compreensão para codificar a unidade de registo e corresponde ao
segmento da mensagem, cujas dimensões (superiores às da unidade de registo) são óptimas para que se possa
compreender a significação exacta da unidade de registo” (BARDIN, 1977, p. 107).
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 24

2.3 O PORQUÊ DA ANÁLISE RETÓRICA

Não há uma metodologia de pesquisa específica para as representações sociais. Embora seja
comum dentro da psicologia social o uso de métodos sistemáticos para observar, analisar e
compreender os fenômenos. A complexidade das representações sociais exige a utilização de
vários métodos (ABRIC, 1994; CAMARGO, 2005; MOSCOVICI, 1978, 2003; ALMEIDA,
2005). Farr (1993 apud Almeida, 2005, p. 135), em uma reflexão sobre teoria e método no
estudo das representações sociais, confirma esse caráter plurimetodológico da pesquisa nesse
campo, afirmando que a “[...] teoria é compatível com o uso de uma ampla variedade de
diferentes métodos de pesquisa”, sendo “[...] uma característica singular da teoria não
privilegiar qualquer método particular de pesquisa”. Sá (1998, p. 80) tece o seguinte
comentário sobre essa afirmativa:

Quando Rob Farr diz que nenhum método é especialmente privilegiado, ele
não está dizendo que todos os métodos servem para a pesquisa das
representações independentemente de seu enquadramento teórico-conceitual.
O que ele está constatando é que a adoção de diferentes quadros teóricos
específicos de referência – ou seja, as chamadas teorias complementares –
resulta em opções preferenciais por diferentes métodos, de modo que a teoria
geral das representações sociais não se vincula obrigatoriamente ela própria
a nenhum método.

Complementando o seu raciocínio, de uma maneira esquemática e simplificada, Sá (1998, p.


81) nos diz que: “[...] à perspectiva de Jodelet correspondem os métodos ditos qualitativos; à
perspectiva de Doise, os tratamentos estatísticos correlacionais; à de Abric, o método
experimental”. Mas, em seguida, ele nos alerta que essas preferências, embora originalmente
verdadeiras, estão hoje interpenetradas entre si. O que fazer, então? Uma boa opção é seguir a
sugestão de Almeida (2005, p. 136):

Assim, parece-nos que uma boa pesquisa deve ser, antes de tudo, clara
quanto ao seu engajamento teórico e deve permitir que as características do
objeto investigado orientem a escolha das técnicas e métodos de pesquisa
privilegiados para elucidá-lo.

Nesse caso, concordando com Mazzotti (1999, p. 7) de que as “[...] metáforas, por serem
analogias condensadas, podem ser examinadas de maneira a expor o esquema analógico
utilizado pelos entrevistados viabilizando uma interpretação mais controlada de seus
argumentos”, e de que as “[...] metáforas condensam e coordenam significados, logo operam
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 25

os núcleos das representações sociais, uma vez que estabelecem e agenciam os predicados e
lugares comuns (topoí koiná)” (MAZZOTTI, 2002, p. 04), adotamos a análise retórica como
metodologia para a identificação e exposição das metáforas das representações analisadas.
Ainda de acordo com Mazzotti (1999, p. 7):

[...] As técnicas usuais ou na hermenêutica ou na teoria da argumentação


(retórica) são adequadas para a realização dessa análise das metáforas, bem
como de outras figuras argumentativas e de linguagem presentes das
representações sociais, permitindo maior controle das interpretações
produzidas pelos pesquisadores. Isto porque, aquelas técnicas são bastante
conhecidas e confiáveis: elas foram produzidas, testadas e desenvolvidas
desde o século V a.C., no Ocidente.

Assim, com base na análise do corpus do material discursivo coletado nos livros didáticos de
Física, analisamos a dinâmica da representação social do conceito de calor apresentada por
seus autores, por meio da figura retórica da metáfora usada em seus discursos que funda os
acordos sobre os quais constroem suas argumentações (DUARTE; MAZZOTTI, 2004).

A nossa preparação teórica para a execução da pesquisa constou de uma revisão bibliográfica
alicerçada em quatro pilares: o entendimento de como se deu a evolução dos conceitos físicos
de energia 6 e calor na história da ciência; a leitura de textos sobre Representações Sociais
baseados na perspectiva teórica de Moscovici; a leitura de textos sobre Retórica e
Argumentação sintonizados com a perspectiva teórica que Chaïm Perelman e Lucie
Olbrechts-Tyteca apresentam em o “Tratado da Argumentação – A nova Retórica”; e o estudo
e a análise dos resultados das pesquisas sobre os conceitos de energia e calor. Desse modo, as
próximas seções tratarão desses assuntos.

6
Em contato com a bibliografia sobre o desenvolvimento histórico e as concepções alternativas do conceito de
calor, percebemos o entrelaçamento que o mesmo tem com o conceito de energia. O que também foi verificado
ao longo do exame dos livros didáticos. Desse modo, foi necessário fazer primeiro um estudo sobre a
emergência do conceito físico de energia.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA

3.1 UMA TAREFA NADA FÁCIL

Escrever sobre a história da evolução de qualquer conceito científico é uma tarefa árdua. O
primeiro obstáculo é a escolha das fontes. Em quais confiar? As fontes primárias são uma
unanimidade, no entanto, o trabalho torna-se hercúleo, quiçá impossível, quando o assunto
abordado não é exclusivo deste ou daquele pensador e tem-se a pretensão de esgotá-lo ao
longo do espaço e do tempo. Por exemplo, os temas sobre energia e calor que serão abordados
aqui. Quem, porventura, se aventurar nessa empreitada, tem que preencher certos requisitos,
dos quais um é ser poliglota e ter um bom conhecimento do conteúdo que está sendo
estudado. Outro é despender muitos anos – até mesmo décadas – de leitura.

Se a opção for por fontes secundárias, os problemas não são menores. O principal é que quem
escreve faz recortes, interpreta e emite a sua opinião sobre os fatos. Não há uma escrita
neutra. Diante desse panorama, surge uma pergunta: “[...] quem deveria poder escrever sobre
história da Física?” (MARTINS, 2001, p. 113). A pergunta está na condicional de propósito,
afinal:

[...] qualquer pessoa pode escrever sobre história da Física. Da mesma


forma, qualquer pessoa pode escrever sobre cosmologia relativística, sobre
Física nuclear ou sobre mecânica quântica - não existe nenhum impedimento
legal sobre isso. Assim, se um psicólogo, um jornalista ou um sociólogo
resolverem publicar livros sobre a teoria da relatividade, ninguém poderá
impedi-los. A obra poderá estar repleta de erros, o autor pode mostrar uma
total ignorância sobre o assunto, o trabalho poderá levar conceitos incorretos
a muitos leitores - mas isso não pode ser impedido, em nossa sociedade
(MARTINS, 2001, p. 113).

Martins (2001) refere-se à divulgação de conceitos científicos por não especialistas, como se
esses estivessem a falar em nome dos cientistas e não da classe a qual pertencem. Parece
óbvio que o mais habilitado a explicar, qualitativa e quantitativamente, em nome da Física, o
que essa ciência entende sobre a Mecânica Quântica, seja um físico que tenha se dedicado
anos a fio ao estudo desse assunto. A mesma lógica é estendida à história da ciência, “[...]
somente uma pessoa com um conhecimento e treino adequado nas técnicas de trabalho de
história da ciência deveria poder escrever sobre história da ciência” (MARTINS, 2001, p.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 27

114). A crítica do autor tem um endereço certo, os físicos que acreditam que basta saber
Física para ser competente em história da Física. Quem se aventura a escrever sobre história
da ciência, ou do desenvolvimento de algum conceito científico, sem um conhecimento e
treino adequado, não reconhecerá muitos tipos de erros em artigos e livros nesta área. Como
observa Heisenberg (1971 apud MARTINS, 2001, p. 114): “Um especialista é alguém que
conhece alguns dos piores erros que podem ser feitos em seu campo, e sabe como evitá-los”.
Exemplificando a sua argumentação, Martins (2001) cita uma passagem de um livro do
Marcelo Gleiser – “A dança do universo: dos mitos de criação ao big-bang” – em que aparece
o seguinte comentário:

Por mais de 2 mil anos, do século IV a.C. até o século XVII, o pensamento
de Aristóteles exerceu profunda influência no mundo ocidental. De fato,
podemos até dizer que a história da ciência durante esse período se resume,
grosseiramente, em duas partes. Na primeira, encontramos uma série de
tentativas semidesesperadas de fazer com que a Natureza e a teologia cristã
se adaptassem ao legado aristotélico. Na segunda, que ocupou os últimos
cem anos desse longo período, presenciamos o nascimento da ciência
moderna, que por fim levou ao total abandono das idéias aristotélicas
(GLEISER, 1997 apud MARTINS, 2001, p. 115).

De acordo com Martins (2001), um físico não especialista em história da ciência não
perceberia que esse pequeno excerto está repleto de enganos. Muitos diriam que essa citação
está presente em vários outros livros sobre história da ciência. No entanto, como vamos saber
se não estão todos copiando uns aos outros e repetindo os mesmos equívocos? Para evidenciar
e corrigir os erros propalados no parágrafo anterior, Martins (2001) apresenta e analisa
trechos de outros livros sobre esse tema, escritos por autores que são pesquisadores com
experiência internacionalmente reconhecida em história da ciência, como Crombie (1983),
Grant (1996), Weisheipl (1982) e Debus (1978).

Assim, como não somos especialistas em história da ciência, estamos cientes que cometemos
erros em nossa descrição histórica. Contudo, para amenizá-los, fizemos o que um bom
historiador da ciência procura fazer: “[...] familiarizar-se tanto com a bibliografia secundária
(ou seja, aquilo que outros historiadores da ciência já fizeram antes) como com a bibliografia
primária (ou seja, as obras científicas e filosóficas antigas do período estudado)” (MARTINS,
2001, p. 116). Antes, tivemos que delimitar no espaço e no tempo a nossa análise, a saber:
mundo ocidental, centralizando a nossa atenção no período que vai de 1600 a 1900, antes e
depois da definição Física de energia. As mais importantes fontes secundárias estudadas
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 28

foram aquelas sugeridas por Martins (1984), sendo que ao longo da leitura dessas obras,
foram selecionadas algumas fontes primárias e mais outras fontes secundárias. Não temos a
intenção, mesmo dentro do espaço e tempo limitados, de esgotar o assunto. Apenas realçamos
o que é mais discutido e comentado pelos pesquisadores, bem como o que foi mais útil como
apoio teórico para a análise que efetuamos dos livros didáticos.

3.2 ORIGENS E PRIMEIROS USOS DA PALAVRA

Etimologicamente, a palavra grega ενεργεια (energeia) deu origem à sua forma latina
energia. Porém, esse termo ao ser introduzido por Aristóteles na Metafísica assume um
significado muito diferente do que o atribuímos atualmente (LINDSAY, 1975; VALENTE,
1993). Na analogia do mármore convertido em estátua pelas mãos do escultor, o escultor joga
fora parte da pedra para fazer emergir a forma, isto é, “[...] a matéria é a parte potencial
atualizada pela ‘energia’ da forma; sendo matéria e forma inseparáveis, tanto quanto o atual é
ele próprio potencial que alcançou complemento” (ELKANA, 1974 apud VALENTE, 1993,
p. 16). Percebe-se que desde o seu primeiro uso, na filosofia, a palavra energia carece de uma
definição precisa, apelando-se para exemplos concretos e analogias na sua clarificação. Não
encontramos referências do que veio em seguida, apenas que a “[...] ideia de energia é, depois,
difundida e no mundo cristão ela surge associada a Deus, é da ordem da divindade”
(VALENTE, 1993, p. 16).

Valente (1993) nos traz trechos da pesquisa realizada por Delon (1988) “[...] que trabalhou a
ideia de energia em vários domínios entre 1770 e 1820, portanto, num período anterior à
emergência do conceito científico, o que acontecerá a meados do século dezanove”
(VALENTE, 1993, p. 17). O que nos possibilita ter uma noção do quadro cultural da época
em que surge o conceito científico. Entre as várias passagens interessantes citadas, uma das
que nos chamou mais atenção foi que de acordo com Delon “[...] a ideia de energia vem
interferir com os domínios estético, filosófico e moral substituindo o velho ideal do equilíbrio
pelo ideal do dinamismo” (VALENTE, 1993, p. 22). Ou seja:

A energia permite uma nova visão do universo, encarando-o como um todo,


como um devir. “As palavras, as coisas e os seres não existem se não em
relação, em tensão e em mutação. A língua e a literatura, a natureza, a vida
humana são concebidas como outros tantos processos de transformação”
(p.32). A ideia de transformação começa, assim, a aparecer associada à
energia (VALENTE, 1993, p. 22).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 29

Acreditamos que, desde o seu emprego na filosofia aristotélica, a ideia de transformação já


estava associada à energia. Implícita à transformação estavam as ideias de atividade e
movimento. O que pode ser corroborado em algumas citações de Delon (1988), apresentadas
por Valente (1993), de filósofos materialistas e espiritualistas do séc. XVIII. Ao contrário de
Descartes, que considera o movimento proveniente de Deus, os materialistas consideram o
movimento como um atributo da matéria, que possui sua própria energia. A energia está
presente em todos os acontecimentos do universo, em diferentes manifestações. “Para os
materialistas este ‘movimento’, esta energia, de todo o universo deriva da interacção, através
de trocas de energia entre os corpos constituintes do universo” (VALENTE, 1993, p. 24). Os
filósofos espiritualistas também creem que o dinamismo do universo é explicado por meio de
fluxos e transformações de energia. Todavia, para estes, há, no universo, uma energia, que
está além da matéria, que anima toda a natureza e os seres (VALENTE, 1993).

Tradicionalmente, atribui-se a Thomas Young (1773-1829), em 1807, a primeira associação


da palavra energia, na terminologia científica, a uma equação. Encontramos essa informação
em Rankine (1881), Tait (1864), Elkana (1974), Harman (1982), Solomon (1992), Coelho
(2007), Muller (2007), Wilson (1968), Valente (1993, 1999), e outros. Contudo, Lindsay
(1975, p. 111) nos prova o contrário. A primeira associação da palavra energia a uma
equação, para explicar um fenômeno físico, aparece em uma carta escrita por Johann
Bernoulli (1667-1748) para Pierre Varignon (1654-1722), em 1717. Ao enunciar e aplicar
claramente, também de modo pioneiro, o princípio das velocidades virtuais – atualmente
conhecido como princípio dos trabalhos virtuais – no equilíbrio de forças, ele introduz o
termo “Energie” para se referir ao produto da força pela sua velocidade virtual –
deslocamento virtual, nos dias de hoje –, o que será mais tarde chamado de “travail virtuel”
na França. Varignon incluiu o conteúdo dessa carta em seu livro, Nouvelle Mecanique ou
Statique, dont le projet fut donne, publicado postumamente em 1725. Vejamos o trecho em
que a palavra é citada:

[...] Tome, portanto, PC perpendicular à fp e você terá Cp para a velocidade


virtual da força F, assim, FxCp é o que chamo de Energia. Note-se que Cp é
positivo ou negativo em relação aos outros: é positivo, se o ponto P é
empurrado pela força F e o ângulo FPp seja obtuso; é negativo, se o ângulo
FPp é agudo; mas, ao contrário, se o ponto P é puxado, Cp será negativo,
quando o ângulo FPp é obtuso; e positivo, quando ele é agudo [...]
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 30

(BERNOULLI, 1717 apud VARIGNON, 1725, p. 175-176, tradução nossa,


grifo nosso). 7

O texto referido de Young de 1807 está em “A course of lectures on natural philosophy and
the mechanical arts”, uma coletânea de suas conferências proferidas na “Royal Institution”
em 1802-1803. Tivemos acesso a uma edição, em dois volumes, de 1845, dessa obra. A
primeira referência da palavra energia ocorre no volume 1, na lição V. Transcrevemos aqui
uma parte do texto:

[...] Daqui é derivada a idéia transmitida pelo termo força viva ou


ascendente; uma vez que a altura que um corpo subirá perpendicularmente
está relacionada com o quadrado de sua velocidade, ele irá preservar a
tendência de subir a uma altura relacionada com o quadrado de sua
velocidade, seja qual for o caminho para o qual é dirigido, desde que ele não
se choque em um ângulo abrupto ou retorne em uma nova direção, sem
perder qualquer velocidade. A mesma ideia é um pouco mais concisamente
expressa pelo termo energia, que indica a tendência de um corpo para subir
ou para penetrar certa distância, em oposição a uma força retardadora
(YOUNG, 1845, p. 34, tradução nossa, grifo nosso). 8

Young prefere utilizar o termo energia em vez de “força viva”, expressão cunhada por Leibniz
para o produto “mv2” (vis viva). De acordo com Lindsay (1975), a verdadeira prioridade que
deve ser atribuída à Young é nomear de energia o que conhecemos atualmente, a menos do
fator ½, por energia cinética. Após a visão geral apresentada por Delon (1988), fica evidente
que “[...] a palavra energia estava na moda na altura em que Young [e Bernoulli] a tomou, e o
significado implícito de actividade não terá sido estranho à escolha de Young para designar
uma grandeza Física, até aí denominada de ‘força viva’, exibindo, portanto, uma carga
antropomórfica que não satisfazia Young” (VALENTE, 1999, p. 112). Ainda de acordo com
Valente (1999, p. 112):

7
Versão original: [...] Tirez donc PC perpendiculaire fur fp, & vous aurez Cp pour la vitesse virtuelle de la force
F, en forte que FxCp fait ce que j´appelle Energie. Remarquez que Cp est ou affirmatif ou négatif par rapport
aux autres: il est affirmatif, si le point P est poussé par la force F, & que l´angle FPp soit obtus obtuse; il est
négatif, si l´angle FPp est aigu; mais au contraire si le point P est tiré, Cp sera négatif, lorsque l´angle FPp est
obtus; & affirmatif, lorsqu´il est aigu [...] (BERNOULLI, 1717 apud VARIGNON, 1725, p. 175-176).
8
Versão original: [...] Hence is derived the idea conveyed by the term living or ascending force; for since the
height, to which a body will rise perpendicularly, is as the square of its velocity, it will preserve a tendency to
rise to a height which is as the square of its velocity, whatever may be the path into which it is directed,
provided that it meet with no abrupt angle, or that it rebound at each angle in a new direction, without losing
any velocity. The same idea is somewhat more concisely expressed by the term energy, which indicates the
tendency of a body to ascend or to penetrate to a certain distance, in opposition to a retarding force (YOUNG,
1845, p. 34).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 31

[...] O conhecimento didáctico tem de dar importância a origem da palavra se


queremos uma didáctica não autoritária. É na sua origem que se jogam as
influências dos contextos. Os cientistas vivem dentro de uma cultura e não
são imunes a ela. Eles pensam com as palavras disponíveis e há uma razão
para que a palavra ganhe importância no contexto científico [...]

Porém, não é ainda aqui que o conceito físico de energia surge na sua completa generalidade.
Isso só acontecerá com o enunciado do princípio de conservação da energia (MARTINS,
1984; VALENTE, 1993; LINDSAY, 1975; ELKANA, 1970; HIEBERT, 1962).

3.3 CONSTÂNCIA NO MEIO DE MUDANÇA

De acordo com Schenberg (1985, p. 21):

[...] se formos procurar a origem de muitas idéias fundamentais da Física,


veremos que essa origem relaciona-se freqüentemente com práticas que a
ciência ocidental tendeu a considerar como supersticiosas. Mas um fato
curioso é que não sabemos exatamente de onde vêm as idéias fundamentais,
mesmo as que já estão consagradas na Física.

A história do desenvolvimento do princípio de conservação da energia é um bom exemplo


para essa afirmação de Schenberg. É muito difícil determinar, dentro e fora do meio
científico, a gênese exata desse princípio. Para Lindsay (1975, p. 05), a ideia que está por trás
é de que há uma “constância no meio de mudança”. Ou seja, estamos cercados por coisas e
acontecimentos que estão a todo o momento mudando. Nós poderíamos descrever como cada
uma dessas mudanças ocorre separadamente, sem qualquer relação entre as experiências.
Mas, ao longo do tempo, algumas pessoas perceberam que se procurassem por algo que
ficasse constante no meio das mudanças observadas, poderiam entender melhor o que estava
acontecendo. Provavelmente, isso reflete o desejo de associar ordem com aquilo que parece
ser caótico (LINDSAY, 1975, p. 06).

Seguindo com o raciocínio de Lindsay (1975), o uso das primeiras máquinas simples –
alavanca, plano inclinado, roda e polia – contribuiu para a germinação dessa tomada de
consciência de que algo deve se conservar nos fenômenos, pois a vantagem mecânica
fornecida por elas é sempre acompanhada por uma compensação. Por exemplo, quando se
utiliza um sistema de polias para subir um objeto, aplica-se uma força menor do que o seu
peso. Entretanto, a velocidade com que a corda é puxada é maior do que com a qual o objeto é
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 32

alçado, o mesmo acontece com o comprimento de corda utilizado no processo. Segundo


Lindsay (1975, p. 15), esse fato foi reconhecido explicitamente nos trabalhos sobre mecânica
de Heron de Alexandria (10 d.c-70 d.c) – depois por muitos outros – e contém em si a raiz do
conceito de energia e de sua conservação.

O aperfeiçoamento das máquinas simples trouxe consigo o desejo de se obter um moto-


perpétuo. Isto é, “[...] máquinas cujo movimento é auto-alimentado sem necessidade de um
agente externo” (CUSTÓDIO; PIETROCOLA, 2004, p. 390). Quem estudou bastante a
relação entre o moto-perpétuo e as raízes do princípio de conservação da energia foi Ernst
Mach (1838-1916) no livro “History and roots of the principle of the conservation of energy”,
Mach (1911) 9, e no artigo "On the conservation of energy", Mach (1986) 10. Nesses textos,
Mach defende o seu ponto de vista de que muitos cientistas11, como Simon Stevin (1548-
1620) e Christiaan Huygens (1629-1695), concluíram pela impossibilidade da existência de
um moto-perpétuo por uma necessidade lógica desenvolvida com a experiência. Para Mach
(1911, 1986), o teorema de exclusão do movimento perpétuo é uma forma especial da lei da
causalidade. Em outras palavras, por meio da capacidade lógica de encontrar conexões entre
os acontecimentos que se revelam pelas experiências, em verificar que um fenômeno sempre
depende de outro, chegou-se à conclusão da impossibilidade de haver um moto-perpétuo e,
consequentemente, ao princípio de conservação da energia. Mas não podemos nos esquecer
que entre o reconhecimento da impossibilidade do movimento perpétuo e a formulação
científica da conservação da energia vai uma grande distância.

Retornemos agora à Lindsay (1975). Ele cita alguns exemplos de Galileu Galilei (1564-1642),
René Descartes (1596-1650) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) que reforçam o
argumento de que, ao longo da história da ciência, certas pessoas perceberam – ou até mesmo
intuíram – que algo fica constante no meio de algumas mudanças. Vamos analisar não só os
exemplos citados pelo autor, como outros, para mostrar por que estamos de acordo com essa
afirmação.

9
A 1ª edição, em língua alemã, foi publicada em 1872.
10
A 1ª edição, em língua alemã, foi publicada em 1894.
11
A palavra “cientista” foi criada, em 1840, na cidade de Glasgow, pela Associação Britânica para o Progresso
da Ciência (RONAN, 1987, p. 07).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 33

3.3.1 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE GALILEU

No caso de Galileu, é importante realçar a oposição feita à ideia dos aristotélicos de cessada
causa, cessa o movimento. Principalmente, em seu penúltimo trabalho, publicado em 1632,
“Dialogo supra i due Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano”, em que o autor
apresenta vários exemplos para apoiar os seus argumentos. A preocupação de Galileu é
demonstrar que o “impetus” fornecido a um corpo por uma força, fica constante ao longo de
seu movimento, a menos que ele sofra algum tipo de resistência. Daí ele conclui que, em
condições ideais, uma bola solta de certa altura de um plano inclinado atingirá a mesma altura
em outro plano inclinado colocado em sua frente. Pois, como a altura é idêntica, o mesmo
“impetus” adquirido na descida é perdido na subida. Logo após, ele continua:

[...]

(Salviati:) Parece-me, portanto, até aqui, que vós me haveis explicado os


acidentes de um móvel sobre dois planos diferentes; e que no plano
inclinado o móvel pesado espontaneamente desce e vai continuamente
acelerando-se, e que, para retê-lo em repouso, é necessário usar força; mas
sobre o plano ascendente é necessário força para fazê-lo avançar e também
para pará-lo, e que o movimento que lhe foi impresso vai continuamente
enfraquecendo, até que finalmente se anula. Dizeis ainda mais, que em um e
em outro caso nasce uma diferença, dependendo se a declividade ou
aclividade do plano for maior ou menor; de modo que a uma inclinação
maior corresponde uma maior velocidade e, ao contrário, sobre o plano em
aclive o mesmo móvel lançado pela mesma força move-se a uma distância
maior quanto menor seja a elevação. Dizei-me agora o que aconteceria com
o mesmo móvel sobre uma superfície que não estivesse nem em aclive nem
em declive.

(Simplício:) [...] parece-me, portanto, que ele deveria ficar naturalmente em


repouso [...]

(Salviati:) Assim acredito, quando alguém colocasse parado, mas se lhe


fosse dado um ímpeto em direção a alguma parte, o que aconteceria?

(Simplício:) Continuaria a mover-se em direção daquela parte.

(Salviati:) Mas com que espécie de movimento? Por um movimento


continuamente acelerado, como nos planos em declive, ou por um
movimento sucessivamente retardado, como nos aclives?

(Simplício:) Eu não consigo perceber causa de aceleração nem de


retardamento, não existindo nem declividade nem aclividade.

(Salviati:) Sim. Mas se não existisse causa de retardamento, muito menos


deveria existir de repouso: quanto acreditais, portanto, que duraria o
movimento do móvel?
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 34

(Simplício:) Tanto quanto durasse o comprimento daquela superfície que não


é nem subida, nem descida.

(Salviati:) Portanto, se esse espaço fosse ilimitado, o movimento nele seria


igualmente sem fim, ou seja, perpétuo?

(Simplício:) Parece-me que sim, sempre quando o móvel fosse de matéria


duradoura.

(Salviati:) Isso já foi suposto, quando se disse que se removiam todos os


impedimentos acidentais e externos, e a fragilidade do móvel, nesse caso, é
um dos impedimentos acidentais. Dizei-me então: qual estimais que seja a
razão do movimento espontâneo daquela bola pelo plano em declive, e do
movimento que se faz sem violência pelo plano em aclive?

(Simplício:) Porque a tendência dos corpos pesados é a de mover-se para o


centro da Terra, e, somente por violência, para cima em direção à
circunferência; e a superfície inclinada é aquela que se aproxima do centro,
enquanto o aclive afasta-se dele.

(Salviati:) Portanto, uma superfície que não fosse nem declive nem aclive
deveria necessariamente ser, em todas as suas partes, igualmente afastada do
centro. Mas existe alguma superfície assim no mundo?

(Simplício:) Não faltam: existe aquela de nosso globo terrestre, se ela fosse,
porém, polida, e não como é, áspera e montanhosa; mas existe aquela da
água, quando está calma e tranqüila (GALILEI, 2001, p. 226-228).

Apesar de tentar se libertar das teorias aristotélicas, Galileu ainda não possuía uma teoria de
gravitação consistente. Desse modo, acreditava que os corpos ou tinham a tendência de
permanecer em repouso ou em movimento circular uniforme. Ele não concebia um
movimento retilíneo uniforme perpétuo, pois afirmava que um corpo não pode simplesmente
“afastar-se de um lugar”, mas apenas mover-se “em direção a um lugar”. Assim, não há como
mover-se em direção a um lugar onde é impossível chegar (COHEN, 1988, p. 155). Caso um
móvel estivesse em uma horizontal, afastando-se do centro da Terra pela tangente a essa em
algum ponto A, conforme representado na Figura 1, aos poucos sua velocidade diminuiria.
Em B, por exemplo, por estar mais afastado do centro da Terra do que em A, o corpo teria a
“inclinação” a descer de B para A (LUCIE, 1977, p. 131-132).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 35

A B

Figura 1 – Sobre um plano horizontal, um grave não permaneceria “indiferente” ao movimento ou ao


repouso. Com efeito, em B ele está mais afastado do centro da Terra que em A. Ele teria,
portanto, “inclinação” a descer de B para A.
Fonte: Adaptado de LUCIE (1977, p. 133)

De outra maneira, continuando com o raciocínio de Galileu, ao darmos um pequeno impulso a


uma bola perfeitamente redonda, polida e rígida, sem impedimentos acidentais ou externos,
sobre uma superfície livre de quaisquer irregularidades, centrada na Terra e rígida, essa
continuaria perpetuamente em movimento circular uniforme, pois não se afasta e nem se
aproxima do centro. É o que acontece com o navio que se move por um mar calmo e também
com a pedra que está no alto do mastro. Ao ser solta, a pedra acompanha o movimento
circular uniforme do navio enquanto cai. Sendo que estes dois movimentos não podem ser
considerados contrários. Contrários seriam os movimentos de afastamento e aproximação do
centro, o que não ocorre aqui. Como nós nos movimentamos circularmente junto com a pedra,
não percebemos esse movimento e a enxergamos em queda retilínea, indo de encontro à base
do mastro do navio (NASCIMENTO, 1990, p. 36-39).

O que nos interessa disso tudo, para esse trabalho, é que, mesmo com outros objetivos em
mente, Galileu está boa parte do tempo utilizando, intuitivamente, a conservação da energia
mecânica em suas considerações. Esse tipo de raciocínio aparece também em seu último livro,
“Discorsi e dimostrazioni matematiche, intorno à due nuoue scienze attenenti alla mecanica i
movimenti locali”, conhecida como os “Discorsi”, publicado em 1638. Utilizamos a obra
publicada em 1914, traduzida para o inglês por Henry Crew e Alfonso de Salvio, da
Universidade de Northwestern, com a introdução de Antonio Favaro, da Universidade de
Pádua. A certa altura, após definir o movimento uniformemente acelerado como aquele que,
partindo do repouso, adquire em tempos iguais velocidades iguais, Galileu, por meio de
Salviati, faz a seguinte declaração:
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 36

As velocidades adquiridas por um mesmo corpo se movendo para baixo em


planos de diferentes inclinações são iguais quando as alturas desses planos
são iguais (GALILEI, 1914, p. 169, tradução nossa). 12

Em seguida, com o auxílio da Figura 2, Galileu esclarece melhor o que foi enunciado.
Considerando o lado CB, perpendicular ao lado AB, como a altura do plano inclinado.
Desprezando-se quaisquer resistências, como asperezas do móvel e do plano, o físico italiano
afirma, categoricamente, que uma bola pesada e perfeitamente redonda descendo ao longo das
linhas CA, CD e CB alcançaria os pontos A, D e B com ímpetos iguais.

Figura 2 – Desenho utilizado por Galileu para explicar que a velocidade alcançada por um mesmo
móvel, ao cair por um plano inclinado, depende somente da altura em que é solto
Fonte: GALILEI (1914, p. 170)

Para comprovar, Galileu descreve o seguinte experimento. Ele fixou em um prego no ponto A
– ver Figura 3 – um fio fino AB com uma bola de chumbo suspensa em sua extremidade. Ao
deslocá-la até o ponto C e soltá-la, a bola alcançou quase a paralela CD, que é perpendicular a
AB, não chegando a tocá-la por um pequeno intervalo, o que é causado pela resistência do ar
e do fio. Disso, Galilei (1914, p. 170, tradução nossa) concluiu que “[...] a bola, em sua
descida ao longo do arco CB, adquiriu um momento [ímpeto] ao chegar em B, que foi
suficiente para levá-la pelo semelhante arco BD à mesma altura” 13.

12
Versão original: The speeds acquired by one and the same body moving down planes of different inclinations
are equal when the heights of these planes are equal (GALILEI, 1914, p. 169).
13
Versão original: “[...] the ball in its descent through the arc CB acquired a momentum [ímpeto] on reaching B,
which was just sufficient to carry it through a similar arc BD to the same height”.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 37

Figura 3 – Desenho utilizado por Galileu para explicar que o ímpeto adquirido pela bola no ponto B,
ao percorrer o arco CB, foi suficiente para elevá-la, segundo um arco similar BD, à mesma
altura até o ponto D
Fonte: GALILEI (1914, p. 171)

Depois Galileu conta que tornou deixar a bola cair do ponto C, agora fixando outro prego no
ponto E, novamente ela atingiu a mesma altura da reta CD, no ponto G. Exatamente igual
aconteceu quando fixou um prego no ponto F e a bola alcançou o ponto I. A explicação disso
é que:

[...] uma vez que os dois arcos CB e DB são iguais e semelhantemente


dispostos, o momento [momento] adquirido pela queda ao longo do CB é o
mesmo que o obtido pela queda ao longo do arco DB, mas o momento
[momento] adquirido em B, devido à queda ao longo de CB, é capaz de
levantar o mesmo corpo [mobile] ao longo do arco BD, portanto, o momento
adquirido na queda BD é igual ao que levanta o mesmo corpo ao longo do
mesmo arco de B para D, assim, em geral, cada momento adquirido pela
queda ao longo de um arco é igual ao que se pode levantar o mesmo corpo
ao longo do mesmo arco. Mas todos esses momentos [momenti] que causam
as subidas ao longo dos arcos BD, BG e BI são iguais, uma vez que são
produzidos pelo mesmo momento ganho pela queda ao longo de CB, como
mostra a experiência. Portanto, todos os momentos ganhos pelas quedas ao
longo dos arcos DB, GB, IB são iguais (GALILEI, 1914, p. 171-172,
tradução nossa). 14

14
Versão original: [...] since the two arcs CB and DB are equal and similarly placed, the momentum [momento]
acquired by the fall through the arc CB is the same as that gained by fall through the arc DB; but the
momentum [momento] acquired at B, owing to fall through CB, is able to lift the same body [mobile] through
the arc BD; therefore, the momentum acquired in the fall BD is equal to that which lifts the same body through
the same arc from B to D; so, in general, every momentum acquired by fall through an arc is equal to that
which can lift the same body through the same arc. But all these momenta [momenti] which cause a rise
through the arcs BD, BG, and BI are equal, since they are produced by the same momentum, gained by fall
through CB, as experiment shows. Therefore all the momenta gained by fall through the arcs DB, GB, IB are
equal (GALILEI, 1914, p. 171-172).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 38

Fica evidente, por meio desses exemplos, que Galileu tinha a noção intuitiva de que um corpo
retorna ao seu estado de movimento original, após passar por um jogo de compensações ao
longo de sua trajetória, o que confirma mais uma vez a hipótese de Lindsay (1975).

3.3.2 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE DESCARTES

Outro importante passo em direção ao princípio de conservação da energia foi dado por
Descartes. Ele afirmava que o movimento teria duas causas distintas: a causa primária e
universal, que produz geralmente todos os movimentos que existem no mundo, e as causas
secundárias e particulares, que fazem com que cada parte da matéria adquira o movimento
que antes não possuía. A causa primeira não seria outra senão “Deus, que pela sua
Onipotência criou a matéria com o movimento e o repouso, e que conserva agora no universo,
por seu concurso ordinário, tanto movimento e repouso quanto colocou nele ao criá-lo” 15
(DESCARTES, 1644 apud BARRA, 2003, p. 306). A respeito das causas secundárias,
Descartes (1644 apud BARRA, 2003, p. 306) assim se expressa:

[...] em virtude de que Deus não está absolutamente sujeito a mudanças e


que ele age sempre da mesma forma, podemos chegar ao conhecimento de
certas regras, que eu chamo de leis da natureza, e que são as causas segundas
dos diversos movimentos que observamos em todos os corpos; o que as
torna muito dignas de consideração aqui.

Em outras palavras, desde o momento da Criação, a quantidade de movimento total do


Universo se conserva, seguindo certas leis criadas por Deus. Essas leis são as seguintes:

[Primeira Lei:] que cada coisa em particular continua no mesmo estado


tanto quanto lhe seja possível, e que jamais ela o modifica a não ser pela
colisão com outras coisas. Assim, observamos cotidianamente que, quando
alguma parte dessa matéria é quadrada, ela permanece sempre quadrada, se
não sobrevém algo de outra parte que mude sua figura; e que, se está em
repouso, ela não começa a se mover por si mesma. (...) De modo que, se
um corpo tenha começado a mover se, devemos concluir que continuará a
mover-se em seguida, e que ele jamais interrompe seu movimento por si
mesmo.

[Segunda Lei:] que cada parte da matéria, em sua particularidade, não


tende jamais a continuar a se mover segundo linhas curvas, mas
segundo linhas retas, ainda que várias de suas partes sejam constantemente

15
Nessa fala de Descartes, está o gérmen da definição da conservação da quantidade de movimento, que ainda
não está completa, pois não existe grandeza vetorial em sua mecânica.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 39

obrigadas a se desviar, porque elas encontram outras em seus caminhos e


porque, tão logo um corpo se move, forma-se um círculo ou um anel de toda
a matéria que é movida conjuntamente.

[Terceira Lei:] que, se um corpo que se move encontra-se com um outro e


possui menos força para continuar a se mover em linha reta do que esse
último para resistir-lhe, então ele perde sua determinação sem nada perder de
seu movimento; e que, se ele possui mais força do que o outro, ele move
consigo esse outro corpo e perde tanto de seu movimento quanto ele atribui
ao outro (DESCARTES, 1644 apud BARRA, 2003, p. 306-307).

As duas primeiras leis juntas podem ser consideradas como o “princípio de inércia” de
Descartes. Que avançou em relação ao “princípio de inércia” de Galileu ao afirmar que a
matéria tende a se movimentar em linha reta 16, mas ainda está distante ao de Newton, por
ainda não relacionar força com a mudança do movimento. Gabbey (1989 apud Gaukroger,
1999, p. 305-306, grifo nosso) resume o significado da palavra “força” na época de Descartes:

Tomando a dinâmica do século XVII como um todo, na medida em que isso


é permissível, pode-se dizer que a grande maioria de seus praticantes
entendia a força, em seu sentido funcional, como o estado concomitante
de um corpo – expresso em termos de toda a sua velocidade e massa
corporal – passível de ser identificado com a capacidade relativa deste
corpo de superar uma força de resistência entendida de maneira similar,
fosse ela potencial ou real, independentemente da velocidade e da massa
corporal em cujos termos se expressasse a força contrária. As interações dos
corpos eram vistas como competições entre forças opostas, sendo as maiores
as vencedoras e as menores as perdedoras: uma concepção de origem
evidentemente antropomórfica.

Assim, na maioria das vezes que Descartes atribui “força” aos corpos, sobretudo, “força de
resistência”, é somente uma “maneira de se expressar”. Isso “[...] não significa atribuir
qualquer coisa real aos corpos que estivesse abaixo ou acima do fato que Deus conserva seu
movimento e, por conseguinte, eles obedecem a uma lei de conservação do movimento”
(GARBER, 1992 apud BARRA, 2003, p. 314). Outras vezes, a palavra “força” é empregada
como a medida da quantidade de movimento do corpo – “mv” – e vice-versa.

16
“Sobre a razão por que Deus conserva o movimento em linha reta e não em qualquer outra trajetória, Descartes
apenas declara que ‘ele conserva o movimento por meio de uma operação muito simples’; o que pode sugerir
que a trajetória retilínea seja, para o autor, a mais simples das trajetórias possíveis” (BARRA, 2003, p. 307).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 40

3.3.3 LEIBNIZ E A CONTROVÉRSIA DA VIS VIVA

Advém daqui a polêmica entre os seguidores de Descartes e Leibniz, quando esse último
demonstrou em um artigo, em 1686 17, que a força de um corpo não poderia ser encontrada
pela sua quantidade de movimento. Em outro artigo, em 1695, ele sugere, explicitamente, que
é a “vis viva” – mv2 – que era conservada no movimento, cabendo a ela ser considerada a
verdadeira medida da força. Repare o leitor que no seio dessa controvérsia está novamente a
ideia defendida por Lindsay (1975) de que, ao longo da história da ciência, sempre existiram
alguns pensadores que tinham uma convicção de que algo fica constante em um meio cheio de
mudanças. No caso de Descartes e de Leibniz, essa crença é muito mais metafísica do que
empírica, pois ambos “[...] utilizam uma base apriorística para suas propostas [...]”
(MARTINS, 1984, p. 68). O que vem confirmar, outra vez, a difícil tarefa de se encontrar
uma única gênese – e um único caminho – para o desenvolvimento do conceito de energia.
Mas vamos continuar na pista do princípio da conservação da energia analisando um pouco
mais a contribuição de Leibniz.

O artigo mencionado de 1686 foi publicado na “Acta Eruditorum”, em Leipzig. Obtivemos


acesso a uma versão de língua inglesa que se encontra no livro de Lindsay (1975, p. 119-121).
O título deixava bem claro qual era a intenção do autor: “A brief demonstration of the
memorable error of Descartes and others concerning the natural law according to which they
claim that the same quantity of motion is always conserved by God, a Law that they use
incorrectly in mechanical problems”. O mesmo texto foi incluído no seu “Discurso de
Metafísica”, também de 1686, podendo ser encontrado traduzido para o português na coleção
“Os Pensadores”. Leibniz (1983) começa o artigo enfatizando que a sua discordância com os
cartesianos está na afirmação de que a força pode ser encontrada pela quantidade de
movimento – mv – do corpo. De acordo com o filósofo alemão:

17
Pouco antes disso, em 1668, a “Royal Society of London” anunciou que artigos sobre colisões seriam aceitos
em um concurso sobre o tema. John Wallis (1616-1703), Christopher Wren (1632-1723) e Christiaan Huygens
(1632-1723) mostraram, em seus artigos, que a quantidade conservada em colisões unidimensionais não era
m|v|, mas mv, em que o sinal da velocidade é levado em consideração. Wallis discutiu colisões inelásticas e
Wren descreveu colisões elásticas, ambos em corpos duros. Huygens encontrou tanto a conservação de mv
quanto de mv2 nas colisões elásticas. Leibniz estava ciente dessas contribuições, tinha-as discutido em suas
próprias notas de 1669 e as mencionado em seu “Discours de metaphysique”, publicado em 1686. Seus
argumentos contra Descartes, que começa em 1686, tiverem a intenção de estabelecer a superioridade de mv2
sobre m|v|, não sobre mv, para verdadeira medida da força (ILTIS, 1971, p. 22).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 41

[...] é muito razoável a mesma força conservar-se sempre no universo.


Igualmente se observa com nitidez, quando se presta atenção nos fenômenos,
a inexistência do movimento mecânico perpétuo, porque, então, a força
duma máquina, sempre um tanto diminuída devido à fricção e em breve
terminada, se renovaria e por consequência aumentaria de per si sem
qualquer impulso externo. Nota-se também não haver diminuição na força de
um corpo, a não ser na medida em que ele a transmite a corpos contíguos ou
às próprias partes, se possuem movimento independente. Acreditaram,
assim, que podia também dizer-se da quantidade movimento o que pode ser
dito da força (LEIBNIZ, 1983, p. 132-133).

Em resumo, o autor concorda que a força se conserva no universo, mas não que a quantidade
de movimento tenha o mesmo comportamento. Então, é incorreto relacionar as duas. Para
comprovar a sua hipótese, Leibniz imagina o seguinte experimento – ver Figura 4. Primeiro
ele supõe “[...] que um corpo, caindo duma certa altura, adquire a força de subir até ela de
novo, se o leva assim a sua direção, a menos que se encontrem alguns obstáculos” (LEIBNIZ,
1983, p. 133). Ele também imagina “[...] ser necessária tanta força para elevar um corpo A, de
uma libra, à altura CD de quatro toesas, quanta para elevar um corpo B, de quatro libras, à
altura EF de uma toesa” (LEIBNIZ, 1983, p. 133). Dizendo, na sequência, que essas
suposições são aceitas como válidas pelos cartesianos e por outros filósofos e matemáticos de
seu tempo. Admitindo isso como verdadeiro, com a queda, os corpos A e B atingirão os
pontos D e F, respectivamente, com forças iguais. Vê-se, aqui, o mesmo jogo de
compensações adotado por Galileu na análise do pêndulo. O que o italiano denominou de
“momemtum”, Leibniz chamou de “força”. Evidentemente, com objetivos diferentes.

O arremate de sua argumentação está no cálculo da quantidade de movimento dos dois corpos
nos pontos D e F. Para isso, Leibniz utiliza os resultados obtidos por Galileu na análise de
corpos em queda livre, em que a velocidade adquirida por um corpo não depende de sua
massa e o seu quadrado é diretamente proporcional ao espaço percorrido ao longo da queda.
Assim, o corpo A chega ao ponto D com uma velocidade duas vezes superior que o corpo B
chega ao ponto F, pois a distância de queda é quatro vezes maior. Mas como a massa do corpo
B é quatro vezes maior do que de A, a quantidade de movimento do corpo A será a metade do
corpo B.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 42

Figura 4 – Experimento proposto por Leibniz para demonstrar que a quantidade de movimento não
serve como a verdadeira medida da força
Fonte: LINDSAY (1975, p. 120)

Logo, ao atingirem os pontos D e F, respectivamente, os corpos A e B terão as mesmas forças,


mas quantidades de movimento diferentes. “Há, portanto, grande diferença entre a quantidade
de movimento e a força, como se queria demonstrar” (LEIBNIZ, 1983, p. 134). Desse modo,
“[...] a força deve ser avaliada pela quantidade do efeito que pode produzir, por exemplo, pela
altura a que se pode levantar um corpo pesado de certo tamanho e espécie, o que é muito
diferente da velocidade que se lhe pode imprimir. Para lhe dar o dobro da velocidade é
necessário mais do dobro da força” (LEIBNIZ, 1983, P. 134). Essa última afirmação de
Leibniz confirma o comentário feito por Medeiros (2001, p. 04-05) de que nos séculos XVII e
XVIII:

A conceituação dominante de força estava relacionada ao fato cotidiano de


um corpo em movimento ter a capacidade de poder colocar outros corpos em
movimento, assim como de vencer resistências. Esta capacidade de um
corpo em movimento poder produzir esses efeitos era denominada a sua
“força”. A questão imediata era determinar de que grandezas Físicas
dependeriam esta força e como seria essa dependência. Galileu, por
exemplo, utilizava o termo ‘momentum’ afirmando que o ‘momentum’ era
aquela força (virtude) que dependia não apenas do peso, mas também da
velocidade do movimento (Jammer, 1999, pp. 98-99). Descartes (1644), por
seu turno, assumia que a força de um corpo era determinada por aquilo que
na mecânica medieval havia sido denominado de “impetus”, ou seja, o
produto da massa pela velocidade de um corpo em movimento [...]

Ao contrário do que muitos afirmam – Medeiros (2001), Oliveira (2006), Coelho (2007),
Ponczek (2000), entre outros –, não foi nesse texto que Leibniz introduziu o termo “força
viva” (vis viva), muito menos afirmou que a medida da força é “mv2”. Pelo menos não de
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 43

modo explícito. De acordo com Iltis (1971, p. 25, tradução nossa): “[...] Ele não fala
publicamente da força viva até 1695 no conhecido ‘Specimen dynamicum’, embora ele use o
termo em seu não publicado ‘Essay de dynamique’ em 1691” 18. O artigo referido de 1695 foi
publicado na “Acta Eruditorum”, em Leipzig. Há trechos dele, em língua inglesa, no livro de
Lindsay (1975, p. 122), em que Leibniz define como “força morta” (vis mortua) a força que
um corpo possui sem estar ainda em movimento, por exemplo, uma pedra esticada em um
estilingue esperando para ser lançada. A “força viva” (vis viva), ao contrário, está associada
com o movimento do corpo. Lindsay (1975, p. 122) nos informa que no final do artigo, após
alguns exemplos específicos envolvendo a “vis viva” dos corpos em movimento, Leibniz
enfatiza a dependência fundamental da “força viva” com “mv2”. Hiebert (1962, p. 80,
tradução nossa) nos esclarece que, em outros dois manuscritos sem data, Leibniz desenvolve
sua ideia sobre a conservação da força, em ambos:

[...] O conceito de vis foi expandido para incluir qualquer força potencial em
geral, potentia ou force vive absolue como ele a chamava. Existe força
potencial sempre que um objeto, por causa de sua condição, for capaz de
provocar ações ou mudanças que não podem acontecer por elas mesmas, ou
seja, ações mostram a medida da força conservada, e não a quantidade de
movimento. Assim, não há força (potentia) somente em corpos em
movimento, mas também em um corpo levantado e em um corpo elástico
esticado. 19

Nessa passagem, encontra-se o gérmen do conceito moderno do que é conhecido como


energia potencial. Na linguagem atual, podemos dizer que Leibniz está tentando formular uma
noção generalizada de formas de energia que não seja a cinética (HIEBERT, 1962, p. 81). É
bom lembrar que Christiaan Huygens já havia chegado à relação “mv2” nas suas análises
sobre colisões – 1669 – e pêndulo composto – 1673. Inclusive, afirmou que a soma dos
produtos de cada massa de um corpo pelo quadrado de sua velocidade é sempre a mesma
antes e depois nas colisões de corpos duros – colisões elásticas. E, no caso do pêndulo
composto, a soma dos produtos de cada massa dos corpos que o compõem pelo quadrado de
suas respectivas velocidades é igual ao produto da soma das massas de todos os corpos

18
Versão original: “[...] He does not publically speak of living force until 1695 in the well-known ‘Specimen
dynamicum’, though he uses the term in his unpublished ‘Essay de dynamique’ in 1691”.
19
Versão original: [...] The concept of vis was expanded to include any general potential force, potentia or force
vive absolue as he called it. Potential force was said to be present wherever a subject because of its condition
was capable of bringing about actions or changes which cannot take place by themselves, i.e., actions whose
magnitude offered a measure of the force conserved, and not the quantity of motion. Thus there was force
(potentia) not only in bodies in movement, but also in a raised body and in a stretched elastic body.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 44

multiplicado pelo quadrado da velocidade do centro de gravidade do pêndulo. Entretanto,


Huygens não atribuiu nenhum significado especial ao termo “mv2”, não o nomeou, nem o
relacionou com a medida da força de um corpo, como fez Leibniz (SMITH, 2006;
LINDSAY, 1975; HIEBERT, 1962; ILTIS, 1971).

A controvérsia entre Leibniz e os seguidores de Descartes foi muito estudada e debatida no


meio científico da época. Entre aqueles que eram partidários de Leibniz, estavam “[...] John
and Daniel Bernoulli, Woff, ´s Gravesande, Hermann, Musschenbroek, the Marquise du
Châtelet” (HIEBERT, 1962, p. 100). Do lado dos cartesianos estavam “[...] Newton, Papin,
Mairan, Samuel Clarke, Mariotte, Varignon, and Voltaire [...]” (HIEBERT, 1962, p. 100). Um
problema que não passou despercebido, por esses e outros pesquisadores, foi o fato de que em
uma colisão frontal, em que os dois corpos se unem e param completamente, não há
conservação da “vis viva”. Todavia, Hiebert (1962, p. 87, tradução nossa) nos esclarece que:

Apesar de essas dificuldades, os princípios de conservação não foram,


contudo, abandonados, uma vez que sempre se podia argumentar que a
destruição do movimento ou vis viva era apenas aparente; enquanto os
movimentos macroscópicos dos corpos obviamente diminuíam, equivalentes
forças ocultas de compensação de algum tipo deveriam existir em outros
lugares. 20

Ainda de acordo com Hiebert (1962, p. 88), Leibniz tinha uma teoria para explicar essa
aparente perda. Ele afirmava que a “vis viva” era transferida para as pequenas partes invisíveis
que compunham o corpo, mantenho-as em movimento. Em síntese:

Para além da “vis viva” representar, para Leibniz, a medida da força, ela era,
também, considerada uma quantidade constante no universo. No entanto, nas
colisões inelásticas parece haver uma perda de “força”. Leibniz referia-se a
estes fenómenos como macroscópicos, afirmando que a perda de força era
apenas aparente. Leibniz considera, portanto, que as forças não são
destruídas, mas são dispersas por entre as pequenas partes. “Os corpos não
perdem as suas forças; mas o caso aqui é o mesmo, como quando os
homens trocam uma nota de grande valor monetário em pequenas
moedas” (Leibniz, citado por Jammer, p. 168). Esta analogia poderá ser
valiosa para a introdução da ideia de dissipação da energia (VALENTE,
1993, p. 43).

20
Versão original: In spite of such difficulties the conservation principes were not however abandoned, since it
could always be argued that the destruction of motion or vis viva was only apparent; that while the macroscopic
motions of the bodies obviously decreased, equivalent but hidden compensating forces of some kind should
exist elsewhere.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 45

A data usualmente aceita como fim da controvérsia sobre a medida da força é 1743, ano da
publicação da primeira edição do “Traité de Dynamique“, obra de Jean le Rond d’Alembert
(1717-1783). Porém, Iltis (1970) observa que essa controvérsia perdurou por muitos anos
depois dessa data. Além de muitos pesquisadores mostrarem que não pode ser atribuída a
d’Alembert a prioridade para a solução desse embate. O principal argumento é que
d’Alembert afirma que a “vis viva” é a medida da força atuando ao longo da distância, bem
como a quantidade de movimento é a medida da força atuando ao longo do tempo, apenas na
segunda edição do “Traité de Dynamique“, em 1758. Contudo, “[...] como Pierre Costabel
tem mostrado, esse argumento já havia sido apresentado por Roger Boscovich em 1745”
(ILTIS, 1970, p. 135, tradução nossa). 21 Na edição de 1743, d’Alembert diz somente que a
controvérsia é uma questão de palavras, mas “[...] como Thomas Hankins apontou, ´s
Gravesande já havia chamado o debate de verbal em 1729” (ILTIS, 1970, p. 135). 22

Esse é um dos motivos da dificuldade de se escrever sobre o desenvolvimento histórico dos


conceitos científicos. Em cada época, há sempre vários pensadores refletindo sobre o mesmo
problema. Na medida do possível, sempre apresentamos dados de especialistas em história da
ciência que nos fornecem novas versões sobre o encadeamento do assunto. Mas, como nosso
objetivo não é esgotá-lo, reiteramos a observação sobre a incompletude de nossa escrita.
Diante da inesgotável fonte de informações relacionadas ao tema em pauta, tivemos que fazer
recortes. Demos preferência, nesse caso, aos autores e às abordagens que pudessem ser
utilizadas com um maior proveito na análise dos livros didáticos.

Dentro dessa perspectiva, é interessante destacar que d’Alembert era contrário tanto a visão
metafísica de Descartes quanto a de Leibniz sobre o conceito de força, como alguma coisa
residindo no corpo. Força deveria ser vista somente como a resistência que os obstáculos
oferecem ao movimento de um corpo, sendo a sua medida dada pelo “efeito” que ela produz
ao superar essas resistências. Desse modo, haveria apenas três tipos de forças: “força morta”,
em que o corpo tem o movimento impedido por um obstáculo; “quantidade de movimento”,
em que o corpo move uniformemente; e “força viva”, em que o corpo move com uma

21
Versão original: “[...] As Pierre Costabel has shown, this argument had already been presented by Roger
Boscovich in 1745” (ILTIS, 1970, p. 135).
22
Versão original: “[...] As Thomas Hankins has pointed out, 's Gravesande called it a verbal debate as early as
1729” (ILTIS, 1970, p. 135).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 46

velocidade que é aniquilada pouco a pouco por uma resistência externa. De acordo com
d’Alembert (1758 apud Iltis, 1970, p. 138, tradução nossa):

[...] No primeiro caso, o efeito é reduzido a uma simples tendência que não é
propriamente uma medida uma vez que nenhum movimento é produzido, no
segundo, o efeito é o espaço percorrido uniformemente em um determinado
tempo e esse efeito é proporcional à velocidade; no terceiro caso, o efeito é o
espaço percorrido até a extinção total do movimento e esse efeito está
relacionado com o quadrado da velocidade. 23

Esse último enunciado de d’Alembert relaciona de modo explícito a força exercida sobre um
corpo, durante certo tempo, com a velocidade; e a força exercida sobre um corpo, durante
certo espaço percorrido, com o quadrado da velocidade. A primeira relação foi muito estudada
por Newton e não é muito importante para os nossos objetivos. Ao contrário da segunda, que
junta dois conceitos: trabalho e energia cinética (a menos do fator ½). Ainda não com esses
nomes. Conforme vimos até esse momento, do ponto de vista mais intuitivo e qualitativo, as
noções de trabalho e energia cinética são muito antigas. A grande contribuição de d’Alembert
foi evidenciar a relação que existe entre os dois. Entretanto:

[...] essa nova concepção dinâmica do conceito de trabalho não foi realmente
empregada ou difundida antes de 1819-1839, quando recebeu plena
expressão nas obras de Navier, Coriolis, Poncelet e outros. Todos eles se
ocupavam da análise de máquinas em movimento. Disso resulta que o
trabalho – a integral da força com relação à distância – foi seu parâmetro
conceitual fundamental. Entre outros resultados típicos e significativos dessa
reformulação estavam a introdução do termo “trabalho” e de unidades para
sua mensuração, a redefinição da vis viva como ½ mv2, a fim de preservar a
prioridade conceitual da medida do trabalho, e a formulação explícita da lei
de conservação em termos da igualdade entre o trabalho realizado e a
energia cinética gerada [...] (KUHN, 2011, p. 109-110) 24.

Em sua fala, Kuhn apresenta os principais atores que deram continuidade à obra de
d’Alembert, elencando alguns fatos marcantes.

3.4 O CONCEITO FÍSICO DE TRABALHO NO CONTEXTO DAS MÁQUINAS

23
Versão original: [...] In the first case, the effect is reduced to a simple tendency which is not properly a
measure since no motion is produced; in the second the effect is the space traversed uniformly in the given time
and this effect is proportional to the velocity; in the third case, the effect is the space traversed up to the total
extinction of motion, and this effect is as the square of the velocity.
24
Originalmente publicado como “Energy Conservation as na Example of Simultaneous Discovery”, em Clagett
(Ed.), Critical Problems in the History of Science, 1959, p. 321-356.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 47

Não por acaso, o conceito físico de trabalho foi aperfeiçoado por engenheiros politécnicos
franceses, na época da revolução industrial, em que as máquinas precisavam de uma teoria
detalhada que explicasse o seu funcionamento. Oliveira (2006), em sua tese de doutorado, fez
uma rica pesquisa sobre esse período procurando entender como se deu a evolução do
conceito físico de trabalho no contexto das máquinas 25. Ele também cita Lazare Carnot,
Navier, Coriolis e Poncelet como as personalidades que se destacaram nesse estudo. Antes de
analisarmos outros cientistas que contribuíram para a formulação mais geral do princípio da
conservação da energia – além da mecânica –, aproveitando a pesquisa feita por Oliveira
(2006), vamos apresentar um resumo do que fizeram esses personagens.

3.4.1 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE LAZARE CARNOT

Lazare-Nicolas-Marguerite Carnot 26 (1753-1823) nasceu em uma família da burguesia na


região de Borgonha – França. Devido a uma aptidão precoce para a matemática e as questões
técnicas, seguiu a carreira de engenheiro militar.

Em pleno século XVIII o que era comum para se assegurar a educação de


um filho, quando as famílias eram mais abastadas, era apelar-se para um
eclesiástico ou um preceptor. Os caminhos a serem seguidos eram
basicamente dois. Os estudos clássicos ou de humanidades e o outro eram as
escolas militares. Nas universidades estavam reservados os estudos de
direito, medicina ou teologia (OLIVEIRA, 2006, p. 140).

Lazare Carnot entrou para a Escola de Engenharia de Mézières, em 1771, onde foi aluno de
d’Alembert. Em 1778, com a finalidade de concorrer a um concurso promovido pela
Academia Real de Ciências de Paris, escreveu um ensaio abordando os seguintes temas:
experiências sobre o atrito; princípios das máquinas em geral; máquinas simples em
equilíbrio e máquinas em movimento. No corolário 13, no final de uma de suas
demonstrações, aparece a seguinte expressão: 2 MpH = MV 2 , em que Mp = peso; H = altura e
V = velocidade. Segundo Oliveira (2006, p. 161, grifo nosso):

25
Assim como os conceitos de energia e calor – e muitos outros –, as idéias que deram origem ao conceito de
trabalho se desenvolveram em várias direções e em contextos bastante diferenciados.
26
Casou-se com Jacqueline Sophie Dupont de Maringheur, com quem teve os filhos Nicolas Léonard Sadi
Carnot, personagem muito importante para a termodinâmica, e Lazare Hippolyte Carnot, político e pai do
presidente da república Marie François Sadi Carnot (OLIVEIRA, 2006).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 48

Essas são as primeiras equações algébricas na primeira memória de Carnot e


que envolvem as quantidades que mais tarde iriam se tornar conhecidas
como energia cinética e trabalho e que por enquanto ainda eram
denominadas de força viva e momento de atividade ou momento de ação,
estas duas últimas as formas como Carnot designava o trabalho. Conforme
vimos também se trata da aplicação do princípio da conservação da força
viva, o qual temos nos reportado com bastante freqüência e ao qual
retornaremos no capítulo seis quando ele é extensivamente aplicado às
máquinas nas primeiras décadas do século XIX.

Nos demais trabalhos escritos por Lazare Carnot, ele utiliza “[...] em larga medida o princípio
da conservação das forças vivas o que equivale a relacioná-las diretamente ao conceito de
trabalho, mas também globalmente, ou seja, como um balanço sobre todo o sistema como um
princípio mais geral de conservação” (OLIVEIRA, 2006, p. 207). Com base nesses
fundamentos, é dele o mérito do desenvolvimento sólido de uma teoria geral das máquinas.
Era o que faltava para que qualquer máquina pudesse ser estudada e, consequentemente,
comparada com uma outra. Somente assim seria possível aumentar sua eficiência, otimizar
seu funcionamento e passar a considerá-la como um fator de produção (OLIVEIRA, 2006).

3.4.2 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE NAVIER

Claude Louis-Marie-Henri Navier (1785-1836) foi admitido na Escola Politécnica em 1802, e


na Escola de Pontes e Estradas em 1808, ambas na França, seu país natal. Os cursos nas duas
escolas de engenharia deram a Navier uma grande habilidade teórica-prática. Do ponto de
vista físico, ele não traz nenhuma contribuição relevante ao conceito de trabalho. Sua
contribuição maior é recolocar a questão do trabalho como uma preocupação nitidamente
econômica. Navier buscava medir:

[...] a capacidade de trabalho de uma máquina no contexto da produção,


independentemente da natureza de seu trabalho para que assim se tenha a
disposição uma medida comum e que não passará pelo preço de mercado.
Usando as palavras de Navier: Estabelecer uma sorte de moeda mecânica, se
podemos exprimir assim, com a qual se possa estimar as quantidades de
trabalho empregado para efetuar toda espécie de fabricação (OLIVEIRA,
2006, p. 220).

Ele considerava que a ciência mecânica podia fornecer a medida comum que estava faltando à
análise econômica. Segundo uma visão corrente nesta época, ele acreditava que toda produção
consistia em vencer uma resistência mecânica, ou seja, deslocando uma força ou deformando
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 49

um corpo. Mas o gênero de trabalho mais adequado para servir de avaliação de todos os
outros é a elevação vertical dos corpos pesados.

Com efeito, independentemente de que ele seja suscetível de uma expressão


numérica precisa, invariável e isenta de arbitrariedades, podemos sempre,
qualquer que seja a natureza do trabalho executado por uma máquina dada,
não somente no pensamento e por uma abstração do espírito, mas na
realidade, substituir este trabalho pela elevação de um peso... A elevação de
pesos representará então o trabalho da máquina e, uma máquina será
considerada como tendo realizado mais trabalho se ela puder elevar pesos
maiores a uma altura maior (NAVIER, 1819 apud OLIVEIRA, 2006, p.
221).

Sempre tendo em mente uma maneira de medir tanto o produto como os dispêndios nas
máquinas, Navier avança em relação a Carnot aprofundando a utilização do conceito de
trabalho ao eliminar algumas ambiguidades que existiam entre trabalho útil, perdido e
resistente. Além de ser um dos responsáveis pelo processo de incorporação do conceito físico
de trabalho ao pensamento econômico (OLIVEIRA, 2006).

3.4.3 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE CORIOLIS

Gaspard-Gustave Coriolis (1792-1843) nasceu em Paris. Entrou para a Escola Politécnica aos
dezesseis anos em 1808. Em 1810, entrou como aluno-engenheiro na Escola de Pontes e
Estradas. Em 1829, publicou sua obra mais importante “Du calcul de l’effet dês machines”.
Esse livro causou grande impacto nos meios científicos, devido ao modo como o trabalho
mecânico foi abordado. Ainda nas páginas introdutórias, Coriolis menciona explicitamente as
novas denominações que faz ao longo do texto:

[...] Eu empreguei nesta obra algumas denominações novas: eu designo pelo


nome de trabalho a quantidade que chamamos muito comumente potência
mecânica, quantidade de ação ou efeito dinâmico, e eu proponho o nome de
dinamode para a unidade desta quantidade. Eu me permiti uma ligeira
inovação ao chamar força viva ao produto do peso pela altura devido à
velocidade. Esta força viva não é senão a metade do produto que temos
designado até o presente por este nome, isto é a massa pelo quadrado da
velocidade (CORIOLIS, 1829 apud OLIVEIRA, 2006, p. 227).

Segundo Oliveira (2006, p. 227), alguns autores atribuem impropriamente a Poncelet a


utilização e adoção do termo trabalho para o produto da força pelo deslocamento. Coriolis
formaliza pela primeira vez o que denominamos hoje de teorema do trabalho e da energia
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 50

cinética. Falta apenas denominar a metade da “força viva” de energia cinética – veremos mais
à frente quem fez isso. Assim, a palavra trabalho vai paulatinamente substituindo as outras
denominações anteriores como potência mecânica, quantidade de ação, efeito dinâmico,
momento de atividade, entre outras. Coriolis ainda define a “[...] quantidade de trabalho,
como a integral da componente tangencial da força multiplicada pelo elemento de arco da
trajetória da partícula, trabalho motor e trabalho resistente” (OLIVEIRA, 2006, p. 228). Em
seguida, enuncia que “[...] Durante um movimento qualquer, a diferença entre o trabalho
motor e o trabalho resistente, devido às forças aplicadas ao ponto material, é igual ao
crescimento que tem a força viva do móvel durante este tempo” (CORIOLIS, 1829 apud
OLIVEIRA, 2006, p. 228). Em resumo, devemos a Coriolis o teorema do trabalho-energia na
sua forma moderna.

3.4.4 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE PONCELET

Jean-Victor Poncelet (1788-1867) nasceu na cidade de Metz, na França. Em 1807 entrou para
a Escola Politécnica. A principal contribuição de Poncelet aos estudos já realizados por
Lazare Carnot, Navier e Coriolis é a consideração do tempo no trabalho realizado. Essa
questão sempre esteve presente nas análises de seus antecessores, mas de modo incompleto.
Em seu livro “Notice sur l’Introduction à la Mécanique Industrielle et sur le Cours de
Mécanique Appliquée aux Machines” publicado em 1874, ele afirma:

Como a ação dos motores e das máquinas é muitas vezes continuada e de


maneira uniforme, os números que servem para calcular o trabalho podem
tornar-se embaraçantes pela sua duração, e então é conveniente tomar para
sua medida relacionada com a unidade de tempo, por exemplo, o segundo, o
minuto, etc.. (PONCELET, 1874 apud OLIVEIRA, 2006, p. 240)

Apesar de haver incertezas em termos da nomenclatura e das unidades, a formalização do


conceito de potência mecânica é feita por Poncelet. Assim, o parâmetro tempo finalmente vai
ser introduzido e levado em consideração no cálculo do valor econômico (OLIVEIRA, 2006).

3.4.5 O PROBLEMA DO RENDIMENTO

Os engenheiros politécnicos citados – e outros – sempre tiveram como um dos objetivos, no


aprimoramento da teoria sobre o funcionamento das máquinas, o desejo por um maior
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 51

rendimento mecânico. Fazia parte de suas preocupações, qual a maneira mais vantajosa de se
aplicar uma potência motriz na máquina em movimento de forma que ela produzisse o maior
efeito possível. Era sabido que de qualquer maneira que se considerasse o choque entre as
partes das máquinas, existiria, necessariamente, uma perda de quantidade de ação. Por
exemplo, Lazare Carnot (1803 apud OLIVEIRA, 2006, p. 203) sugeriu que:

Para se obter das máquinas o maior efeito possível, é muito importante que
elas sejam construídas de maneira que o movimento não varie senão por
graus insensíveis. Devemos somente excetuar aqueles que por sua natureza
mesma são passíveis de suportar diferentes percussões, como são a maior
parte dos moinhos. Mas mesmo nesse caso, é evidente que deve ser evitada
toda variação brusca que não seja essencial à constituição da máquina.

Porém, quando discute “[...] qual deve ser o meio de se produzir o maior efeito possível, ele
afirma que este problema depende de circunstâncias particulares e que não comporta uma
solução geral a ser aplicada a todos os casos” (OLIVEIRA, 2006, p. 204). Não podemos
perder de vista que essa procura dos engenheiros politécnicos pelo aumento da eficiência do
maquinário industrial estava restrita à mecânica racional. Ou seja, pretendia-se que o trabalho
exercido em determinado trecho de uma máquina fosse “transferido” para outro trecho com a
menor perda de movimento possível. Pensava-se, então, em redução do atrito e dos choques
contrários ao movimento para que uma maior quantidade de “força viva” fosse conservada.
Mas essa grandeza – “mv2” – ainda não tinha, para esses personagens, o status de energia no
sentido moderno. Dessa forma, em nenhum momento eles aventaram a possibilidade das
perdas de movimento – ou de trabalho – serem transformadas em calor 27.

Outro detalhe, a atenção deles estava voltada para a transferência de movimento – ou de


trabalho – deixando de fora a análise sobre as fontes térmicas que originavam o vapor.
Responsável pelo funcionamento de todo o maquinário moderno da época. Enfim, havia o
esgotamento das possibilidades da mecânica racional em dar conta de todos os fenômenos que
ocorrem nas máquinas. “É desta forma e seguindo este curso dos acontecimentos que vai
surgir a termodinâmica, inicialmente como uma ciência das máquinas e somente depois como
uma ciência dos processos gerais da natureza” (OLIVEIRA, 2006, p. 235). Contudo, a história
dos conceitos científicos não é linear. Em paralelo ao estudo realizado pelos engenheiros

27
O leitor deve ficar atento ao interpretar o termo calor ao longo dos textos citados, pois o sentido adotado pelos
autores não é o mesmo aceito pela ciência em nossos dias. Na sétima seção, esclareceremos qual é a definição
científica atual do conceito de calor.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 52

politécnicos franceses, vários outros ramos do conhecimento físico estavam sendo


pesquisados por outros cientistas, inclusive, os fenômenos térmicos. Assim, para uma melhor
compreensão do assunto, vamos descrever outras contribuições, advindas de diferentes
domínios da Física, que também desempenharam um papel relevante para o estabelecimento
do princípio de conservação da energia, na sua expressão mais geral.

3.5 A CONSERVAÇÃO DA ENERGIA PARA ALÉM DA MECÂNICA

Ao se debruçar sobre o estudo da conservação da energia, Kuhn (2011, p. 95) faz um


questionamento interessante: “[...] Por que, entre 1830 e 1850, os conceitos e experimentos
necessários a uma completa enunciação da conservação da energia estavam tão próximos da
consciência científica?”. O que Kuhn quer saber é por quais motivos vários elementos
conceituais e experimentais, importantes para o estabelecimento do princípio da conservação
da energia, se tornaram de súbito acessíveis e reconhecíveis, em vários lugares da Europa, em
um curto período de tempo. Como exemplo, ele cita doze homens que, por essa época, “[...]
compreenderam sozinhos partes essenciais do conceito de energia e de sua conservação [...]”
(KUHN, 2011, p. 91), são eles: Julius Robert von Mayer (1814-1878, Alemanha); Hermann
Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821-1894, Alemanha), Ludwig August Colding (1815-
1888, Dinamarca); James Prescott Joule (1818-1889, Inglaterra); Justus von Liebig (1803-
1873, Alemanha); Karl Friedrich Mohr (1806-1879, Alemanha); William Robert Grove
(1811-1896, Inglaterra); Michael Faraday (1791-1867, Inglaterra); Nicolas Léonard Sadi
Carnot (1796-1832, França); Marc Séguin (1786-1875, França); Karl Holtzmann (1811-1865,
Alemanha); Gustave-Adolphe Hirn (1815-1890, França). A justificativa de Kuhn (2011, p.
91-92) para a seleção desses nomes é a seguinte:

[...] Tentei incluir todos aqueles que, na visão de seus contemporâneos ou


sucessores imediatos, alcançaram de forma independente parte significativa
da conservação da energia. A esse grupo adicionei Carnot e Hirn, cujo
trabalho seguramente seria considerado, caso fosse conhecido. A falta de
uma influência efetiva é irrelevante do ponto de vista desta investigação [...]

Antes de aprofundarmos nessa discussão, gostaríamos de expressar a nossa discordância


quanto ao termo “descoberta simultânea” escolhido como parte do título de seu ensaio. Não
entendemos por que escolheu essa expressão, se ele mesmo afirma que:
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 53

[...] No caso ideal de uma descoberta simultânea, duas ou mais pessoas


anunciariam a mesma coisa, ao mesmo tempo, e em total ignorância dos
trabalhos uns dos outros, mas nada disso se assemelha nem de longe ao
ocorrido durante o desenvolvimento da conservação da energia. As violações
da simultaneidade e da influência mútua são secundárias, mas não há dois
desses homens que tenham dito a mesma coisa. Até bem perto do fim do
período da descoberta, foram poucos os artigos que apresentaram mais do
que semelhanças fragmentárias, recuperadas em parágrafos ou sentença
isoladas [...] (KUHN, 2011, p. 93)

Portanto, apenas em retrospecto pode-se dizer que todos os doze cientistas mencionados
pesquisaram os mesmos aspectos da natureza. O que se percebe em seus trabalhos não é
realmente a descoberta simultânea da conservação da energia, mas, ao contrário, “[...] a rápida
e por vezes desordenada irrupção de elementos conceituais e experimentais com base nos
quais a teoria seria em breve composta” (KUHN, 2011, p. 94-95). São esses elementos que
interessam a Kuhn. Assim, estamos de acordo com Elkana (1970, p. 38, tradução nossa, grifo
nosso) quando ele diz:

[...] O artigo de Kuhn não é apenas o melhor tratamento do nosso problema


ainda disponível, mas também rico em sugestões inexploradas e ideias que
são apenas insinuadas. No entanto, essa riqueza fica à beira de se tornar um
embaraço porque nenhuma posição clara emerge. Sua formulação muito
cuidadosa quase contradiz seu próprio título [...].28

O critério mais adequado seria considerar como simultâneas apenas as descobertas que
respondessem aos mesmos problemas (ELKANA, 1970). Desse modo, Kuhn precisaria
aprofundar mais a sua pesquisa, não enfatizando apenas o paralelismo e a semelhança entre as
várias propostas. Teria que mostrar também “[...] as importantes diferenças entre os
problemas estudados por esses doze autores, a metodologia por eles utilizada, a conceituação
adotada e a base empírica utilizada em cada um dos casos [...]” (MARTINS, 1984, p. 77). Em
suma, nas palavras do próprio Kuhn (2011, p. 94), “[...] embora indique o tema central deste
artigo, a expressão ‘descoberta simultânea’ não o descreve, caso seja tomada ao pé da letra
[...]”.

28
Versão original: [...] Kuhn´s paper is not only the best treatment of our problem yet available, but also rich in
unexploited suggestions and ideas which are only hinted at. This richness however is on the verge of becoming
an embarassment because no clear stand emerges. His very careful formulation almost contradicts his own title
[...].
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 54

Voltando ao seu questionamento, ele afirma ser impossível elencar todos os quase incontáveis
fatores que motivaram individualmente os doze cientistas a fazerem suas descobertas. No
entanto, após uma análise minuciosa dos trabalhos, observa-se que há alguns fatores mais
significativos e específicos do período. A saber: disponibilidade dos processos de conversão;
interesse pelas máquinas e a Naturphilosophie 29. Antes de 1800, já se conheciam alguns
processos de conversão, como o uso dos geradores de eletricidade estática para produzir
reações químicas. Também não era novidade que em algumas reações químicas surgiam tanto
a luz quanto o calor. Nas máquinas a vapor ou acionadas por água, era visível que a força
latente no combustível ou na queda da água eram convertidas em força mecânica capaz de
erguer peso. Ou podia produzir movimento que, por sua vez, gerava calor por atrito ou
impacto.

[...] Contudo, no século XVIII, esses fenômenos permaneciam isolados,


poucos pareciam centrais para a pesquisa científica, e mesmo estes eram
estudados por grupos diferentes. Foi somente na década de 1830, quando
pouco a pouco foram classificados em conjunto com os muitos exemplos
descobertos seguidamente pelos cientistas do século XIX, é que começaram
de fato a se parecer com processos de conversão. Nessa altura, era inevitável
que nos laboratórios os cientistas passassem de diversos fenômenos
químicos, térmicos, elétricos, magnéticos ou dinâmicos para outros
fenômenos de quaisquer desses tipos e também ópticos. Problemas antes
separados ganhavam múltiplas inter-relações [...] (KUHN, 2011, p. 97)

A bateria inventada por Alessandro Volta, em 1800, contribuiu, direta e indiretamente, para o
desenvolvimento dessa relação mútua entre os processos de conversão. O primeiro fruto veio
com a teoria do galvanismo francesa e inglesa que atribuía a eletricidade proveniente da
bateria à transformação das “forças de afinidade química” em corrente elétrica. Notava-se,
além disso, que a corrente elétrica produzia calor e, em circunstâncias apropriadas, luz. Várias
outras descobertas de conversões notáveis foram possíveis graças ao uso da bateria,
consequentemente, da corrente elétrica. Podemos citar, entre outras, a demonstração dos
efeitos magnéticos da corrente elétrica por Oersted, em 1820. A descoberta do “efeito
termoelétrico” feita pelo físico russo-alemão Thomas Johann Seebeck (1770-1831) – mais
tarde conhecido como efeito Seebeck – de que o calor aplicado a um par bimetálico produzia

29
“[...] A palavra Naturphilosophie é proveniente do romantismo alemão e expressa um conceito que não tem
equivalente lingüístico nas línguas francesa e inglesa. Os historiadores preferem a utilização do termo original
de forma que possa designar uma maneira específica de especulação no plano cultural onde ele conheceu um
desenvolvimento rápido e fecundo. O período de seu surgimento é o final do século XVIII e nas décadas de 30
e 40 do século XIX este tipo de pensamento era bastante forte nas universidades alemãs” (OLIVEIRA, 2006, p.
110-111).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 55

uma corrente elétrica. Em 1834, o físico francês Jean-Charles-Athanase Peltier (1785-1845)


reverteu esse impressionante exemplo de conversão. Ele mostrou que uma junção de dois
metais se tornava mais quente quando era percorrida por uma corrente elétrica em certo
sentido, e se esfriava, quando esse sentido era invertido, constituindo-se em um “efeito
eletrotérmico” – mais tarde conhecido como efeito Peltier (KUHN, 2011; BASSALO, 1992;
WHITTAKER, 1951).

Todavia, Kuhn esclarece que nem todos os pioneiros vislumbraram a ideia de conservação da
energia como uma consequência de uma análise de toda a rede de processos de conversão
tomados em conjunto. Isso aconteceu apenas com Faraday e Grove. O primeiro fez, em 1834,
uma série de seis conferências sobre as novas descobertas na química e no galvanismo. A
sexta tinha o título sugestivo ”Relations of Chemical Affinity, Electricity, Heat, Magnetism,
and Other Powers of Matter”. Em suas anotações, Faraday (1834 apud Kuhn, 2011, p. 101)
afirma que “[...] Não podemos dizer que nenhum [desses poderes] seja a causa dos demais,
mas apenas que todos estão conectados e são devidos a uma causa comum [...]”. Algo
parecido disse Grove, em 1843, em sua famosa série de conferências On the Correlation of
Physical Forces. Ele declarou que qualquer um dos vários agentes imponderáveis – calor, luz,
eletricidade, magnetismo, afinidade química e movimento – pode, como uma força, produzir
os demais ou ser neles convertidos (KUHN, 2011, p. 102). Mas, apesar de outros pioneiros
terem se inspirados em outras fontes, de alguma maneira, os processos de conversão
desempenharam um papel importante para a consolidação de suas ideias sobre a conservação
da energia. É o que explica Kuhn (2011, p. 98-99):

[...] Mohr, por outro lado, tirou a ideia de conservação de uma fonte muito
diferente, provavelmente metafísica. Mas, como veremos, é apenas porque
tentou elucidar e defender essa ideia nos termos dos novos processos de
conversão que a concepção inicial de Mohr se parece com a conservação da
energia. Mayer e Helmholtz apresentam ainda outra abordagem. Começaram
aplicando seus conceitos de conservação a fenômenos mais antigos, bem
conhecidos. Mas até estenderem suas teorias às novas descobertas, não
estavam desenvolvendo a mesma teoria que, digamos, Mohr e Grove. Outro
grupo ainda, formado por Carnot, Séguin, Holtzmann e Hirn, ignorou
completamente os novos processos de conversão. Mas não seriam
descobridores da conservação da energia se estudiosos como Joule,
Helmholtz e Colding não tivessem mostrado que os fenômenos térmicos,
com os quais trabalhavam esses engenheiros do calor, eram partes integrais
da nova rede de conversões.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 56

No entanto, um passo decisivo ainda faltava a ser dado para se chegar a concluir que além de
ter uma conversibilidade universal dos poderes naturais – calor, luz, eletricidade, magnetismo,
afinidade química e movimento – deveria haver uma conservação do poder. De acordo com
Kuhn (2011, p. 102), isso aconteceu pela aplicação dos princípios filosóficos da igualdade
entre causas e efeitos e da impossibilidade do movimento perpétuo.

[...] Uma vez que qualquer poder é capaz de produzir qualquer outro e ser
por ele produzido, a igualdade entre causas e efeitos exige uma equivalência
quantitativa uniforme entre cada um dos pares de poderes. Se não houver
essa equivalência, uma série de conversões escolhida de modo adequado
resultaria na criação de poder, ou seja, em movimento perpétuo. Em todas as
suas manifestações e conversões, o poder tem de ser conservado. Essa
compreensão não ocorreu nem de uma vez, nem a todos, nem com perfeito
rigor lógico, mas ocorreu (KUHN, 2011, p. 102).

Nesse ponto, entra o segundo fator apontado por Kuhn como decisivo para a consolidação do
princípio da conservação da energia, o interesse pelas máquinas. Principalmente, o conceito
de trabalho. Conforme assinala Kuhn (2011, p. 106-107):

Como grupo, os pioneiros se preocuparam muito pouco com a energia do


movimento, e menos ainda em utilizá-la como medida quantitativa
fundamental. O que de fato utilizaram, ao menos os que foram mais bem-
sucedidos, foi fs, o produto da força pela distância, uma quantidade
conhecida por vários nomes: efeito mecânico, poder mecânico, trabalho.
Essa quantidade, porém, não aparece como uma entidade conceitual
independente na literatura da dinâmica. Mais precisamente, mal aparece até
1820, quando a literatura francesa (e apenas esta) foi enriquecida de súbito
por uma série de trabalhos sobre assuntos como a teoria das máquinas ou a
mecânica industrial. Esses livros, com efeito, tornaram o trabalho uma
entidade conceitual independente e importante, e ainda a relacionaram de
forma explícita à vis viva. Mas o conceito não foi inventado por esses livros.
Ao contrário, decorreu de um século de práticas de engenharia em que, em
geral, sua utilização era completamente independente da vis viva e de sua
conservação. Essa fonte interna à tradição da engenharia é tudo que os
pioneiros da conservação da energia precisavam e foi tudo que a maioria
deles usou.

Por exemplo, Joule e Liebig ao se interessarem pelo rendimento dos motores elétricos, em
comparação com o das máquinas a vapor, queriam saber quanto peso cada uma delas podia
erguer, a uma distância fixa, para o mesmo gasto de carvão ou zinco. Esse questionamento
necessita de um coeficiente de conversão para ser adequadamente respondido (KUHN, 2011;
MARTINS, 1984). Aparentemente, as descobertas dos processos de conversão e o interesse
pelas máquinas já englobam todas as ferramentas necessárias para entender por que nessa
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 57

época, entre 1830 e 1850, os conceitos e experimentos necessários a uma completa


enunciação da conservação da energia estavam tão próximos da consciência científica.
Entretanto, de acordo com Kuhn (2011, p. 116-117, grifo nosso):

[...] uma última olhadela nos artigos dos pioneiros suscita um sentimento
desconfortável de que ainda falta algo, talvez algo que não seja um
componente substancial. Não teríamos essa sensação se os pioneiros, à
semelhança de Carnot e Joule, tivessem começado com um problema técnico
bem delineado e prosseguido aos poucos até atingir o conceito da
conservação da energia. Com Colding, Helmholtz, Liebig, Mayer, Mohr e
Séguin, a noção de uma força metafísica, imperecível e subjacente parece ser
anterior à sua pesquisa e não tem quase relação com ela. Podemos dizer, sem
meias palavras, que esses pioneiros parecem ter adotado uma ideia capaz
de se tornar conservação da energia antes mesmo de encontrar
evidências para isso. Os fatores já apresentados neste artigo podem explicar
como, afinal, eles puderam lhe dar outra roupagem e, com isso, um sentido.
Mas a discussão ainda não esclarece suficientemente a existência dessa ideia.
Entre doze pioneiros, um ou dois casos não causariam incômodo. As fontes
de inspiração científica são notoriamente inescrutáveis, mas a presença de
uma lacuna importante em seis dos doze casos é surpreendente. Embora não
possa resolver completamente o problema que isso representa, devo ao
menos considerá-lo.

O que Kuhn está dizendo é que muitos dos descobridores da conservação da energia estavam
consideravelmente predispostos a perceber uma única e indestrutível força na raiz de todos os
fenômenos naturais. Embora essa predisposição seja mencionada por vários historiadores
como sendo o resíduo de uma metafísica que já estava presente na controvérsia da
conservação da “vis viva”, ele defende que a influência principal se deve à Naturphilosophie.
O terceiro e último fator responsável pela consolidação do princípio da conservação da
energia, em sua visão. A Naturphilosophie foi um movimento romântico que surgiu na
Alemanha, no final do século XVIII. Reagindo contra o Iluminismo francês, valorizava a
intuição e a vontade humana. Ela foi articulada filosoficamente por Friedrich Wilhelm Joseph
Schelling (1775-1854). Segundo Kuhn (2011, p. 120):

Ao colocar o organismo como a metáfora fundamental de sua ciência


universal, os seguidores da Naturphilosophie buscavam sempre um princípio
unificador para todos os fenômenos naturais. Schelling, por exemplo,
sustentava “que os fenômenos magnéticos, elétricos, químicos e, finalmente,
até mesmo os orgânicos deveriam se entrelaçar, formando uma grande
associação... [que] se estende por toda a natureza”. Antes até da descoberta
da bateria, insistia que “sem dúvida alguma, apenas uma única força se
manifesta, em suas variadas formas, na luz, na eletricidade, e assim por
diante” [...] Como um Naturphilosoph, Schelling sempre procurou nas
ciências de sua época processos de transformação e conversão [...] Muitos
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 58

dos seguidores de Schelling [...] davam uma ênfase similar aos novos
processos de conversão [...]

Apesar de esse ensaio de Kuhn ser considerado por Elkana (1970), Bevilacqua (1993),
Martins (1984), Souza Filho (1992) – e outros – como o que apresenta o melhor retrospecto
sobre o estabelecimento final do princípio da conservação da energia, ele não está imune a
críticas. O que significa dizer que não há um consenso entre os fatores apresentados por
Kuhn, nem de sua análise. Elkana (1970), por exemplo, além de discordar da expressão
“descoberta simultânea”, concorda inteiramente apenas com o terceiro fator apontado. Em
suas palavras, uma crença a priori em princípios gerais de conservação na Natureza. Além
desse, ele atribui a enunciação completa do princípio da conservação da energia aos seguintes
fatores:

• Uma constatação de que não é suficiente que as duas formulações da mecânica, a vetorial-
newtoniana e a escalar-analítica-lagrangiana, sejam matematicamente equivalentes; elas
devem também estar conceitualmente correlacionadas;
• Uma consciência do problema fisiológico do “calor animal” ou mais geralmente das
“forças vitais”, e uma crença de que essas são redutíveis às leis da natureza inanimada;
• Uma certeza de que seja qual for a entidade que é conservada na natureza ela deve ser
expressa em termos matemáticos, sendo necessário uma destreza matemática para lidar
com ela.

O único dos pioneiros citados por Kuhn que preenchia todos esses pré-requisitos, no entender
de Elkana (1970), era Helmholtz. Por consequência, foi quem formulou matematicamente,
pela primeira vez, o princípio da conservação da energia em toda a sua generalidade. De
acordo com Elkana (1970, p. 55), Helmholtz tinha lido os trabalhos de Newton, Euler,
d’Alembert e Lagrange. Desse modo, tinha ciência das duas tradições na mecânica. Estava
claro para ele, portanto, que o conceito central na mecânica vetorial-newtoniana era o de
força. Não fazendo parte de sua estrutura os princípios de conservação. Ao contrário do que
acontecia com a mecânica escalar-analítica-lagrangiana, que se apoiava em torno da
conservação da soma da “vis viva” e da “função potencial”. Aliado a isso, Helmholtz possuía
uma formação filosófica de influência kantiana, acreditando que há na Natureza qualquer
coisa que se conserva. Ele era também um fisiologista, estando por dentro do problema das
“forças vitais” e do “calor animal”. Sendo um mecanicista convicto, ele considerava as
“forças vitais” como qualquer outra força, devendo, dessa maneira, ser conservada. Por
último:
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 59

[...] No topo de tudo, Helmholtz foi um matemático de primeiro nível. Ele


viu muito claramente que se << Kraft >> é conservada na natureza, e energia
mecânica é conservada na mecânica, então, todas << Kraft >> devem ter a
mesma dimensão física como a energia mecânica e devem ser, além disso,
conversível a ela. Isso é exatamente o que ele fez em seu artigo de 1847 [...]
(ELKANA, 1970, p. 56, tradução nossa). 30

De nossa parte, vemos no levantamento feito por Kuhn uma análise mais completa e
imparcial. Elkana apenas deu ênfase na formulação matemática do princípio da conservação
da energia, elegendo os seus fatores a partir do que Helmholtz apresentava.

3.6 O EQUIVALENTE MECÂNICO DO CALOR

Entre todos os processos de conversão apresentados por Kuhn, o ponto de partida de muitos
autores, para encontrar a “equivalência quantitativa uniforme entre cada um dos pares de
poderes”, foi a relação numérica entre o trabalho feito sobre um corpo e o calor produzido.
Conhecido como “o equivalente mecânico do calor”. Uma vez estabelecida essa relação, não
foi difícil aplicar a mesma ideia a outras conversões energéticas (MARTINS, 1984). Houve,
na ocasião, uma polêmica entre Joule e Mayer sobre quem fez isso pela primeira vez, de
modo satisfatório. Atualmente, com a análise dos textos históricos, se aceita que o mérito
deva ser dado a Mayer (MARTINS, 1984; MACH, 1986 31; WISNIAK, 2008). Fizemos uma
leitura de alguns artigos dos dois cientistas, tomando-os como representantes dos trabalhos
dos outros pioneiros citados por Kuhn, com a intenção de compreender melhor alguns dos
argumentos presentes na construção do princípio da conservação da energia.

3.6.1 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE MAYER

Julius Robert von Mayer (1814-1878) nasceu em Heilbronn, na Alemanha. Por influência do
pai, que era farmacêutico, fez o curso de medicina na Universidade de Tübin, formando-se em
1838. Desde criança, queria conhecer a Índia, o meio encontrado foi o de viajar em um navio
holandês, para as colônias holandesas, como médico. A viagem ocorreu entre setembro de

30
Versão original: [...] On top of all that Helmholtz was a mathematician of the first rank. He saw very clearly
that if << Kraft >> is conserved in Nature, and mechanical energy is conserved in mechanics, then all <<
Kraft >> must have the same physical dimension as mechanical energy and must be, moreover, reducible to it.
That is exactly what he did in his 1847 paper [...] (ELKANA, 1970, p. 56).
31
Originalmente publicado em alemão, em 1896.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 60

1840 e fevereiro de 1841 (LINDSAY, 1973; CANEVA, 1993). Valente (1999, p. 201) nos
esclarece que:

É neste navio e junto a ilha de Java que começa, para Mayer, a aventura
intelectual da construção de um conceito de 'força'. Se bem que possamos
encontrar alguns indícios anteriores que levavam nesta direcção podemos, no
entanto, considerar que é a partir da constatação de uma cor diferente do
sangue venoso nos trópicos que Mayer começou um verdadeiro trabalho de
construção conceptual com uma entrega total. Para termos uma ideia do que
acontecia a Mayer basta dizer que ele praticamente não sai do barco durante
a estada em Java. Ora Mayer tinha um grande fascínio por estas paragens.
Tal facto só é compreensível se admitirmos que o que lhe estava a acontecer
ao nível das ideias era ainda mais forte do que a curiosidade que o levou para
aquelas terras.

Alguns meses depois de retornar dessa viagem, em 16 de junho de 1841, Mayer envia a
Johann Christian Poggendorff (1796-1877) o seu primeiro artigo para publicação nos Annalen
der Physik und Chemie. Mas ele não foi publicado e nem retornado ao autor, tendo sido
encontrado, trinta e seis anos mais tarde, entre os pertences de Poggendorf (CAJORI, 1908).
Encontramos uma versão desse texto para a língua inglesa em Lindsay (1973). Seu título em
alemão é “Über die quantitative und qualitative bestimmung der kräft” (“Sobre a
determinação quantitativa e qualitativa das forças”). Mayer ainda não dispunha de um valor
para o equivalente mecânico do calor, que ele apresentará no artigo seguinte, de 1842. Desse
modo, as suas considerações sobre esse assunto foram apenas filosóficas e qualitativas. “[...]
Mayer precipitou-se na pressa de publicação, talvez por sentir que estas novas ideias eram
revolucionárias na nossa visão do mundo” (VALENTE, 1999, p. 216).

Em 1842, após ter melhorado seus conhecimentos físicos, escreveu uma nova versão de seu
trabalho, em apenas sete páginas, e o enviou para Liebig, o famoso químico, editor da revista
Annalen der Chemie und Pharmacie (LINDSAY, 1973; CANEVA, 1993; CAJORI, 1908;
MARTINS, 1984). Dessa vez, o artigo foi aceito com o seguinte título “Bemerkungen über
die kräfte der unbelebten natur” (“Observações sobre as forças da natureza inanimada”). Em
nossos comentários, utilizaremos a tradução feita para o português por Martins (1984). Mayer
começa o artigo afirmando que o seu intuito é tentar encontrar respostas para o que devemos
entender por “forças” e como elas se relacionam entre si. No artigo de 1841, Mayer definiu
“força” como a causa das mudanças observadas, pois, pela lógica, nenhuma mudança
acontece sem uma causa:
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 61

[...] Todos os fenômenos baseiam-se no fato de que a matéria, corpos e suas


relações uns com os outros estão sujeitas a mudanças. Das leis de raciocínio
lógico, assumimos que isso não pode acontecer sem uma causa. Essa causa
chamamos de força (MAYER, 1841 apud LINDSAY, 1973, p. 60, tradução
nossa). 32

Nesse texto, ele amplia essa ideia afirmando que:

Forças são causas, e por isso aplica-se totalmente a elas o princípio: Causa
aequat effectum. Se a causa c tem o efeito e, então c = e: se e é novamente a
causa de um outro efeito f, então e = f, e assim por diante: c = e = f... = c. Em
uma corrente de causa e efeitos, como se torna claro pela natureza de uma
igualdade, nenhum elo ou parte de um elo pode torna-se nulo. Nós
chamaremos esta primeira propriedade de todas as causas de
indestrutibilidade (MAYER, 1842 apud MARTINS, 1984, p. 86).

Ajuntando as duas falas de Mayer podemos concluir que caso as “forças” se destruíssem, o
mundo material deixaria de existir, pois não haveria mais mudanças. Em seguida, ele da
continuidade a sua argumentação:

Se a causa dada c produzir um efeito e igual a si, então, por isso mesmo, c
deixou de existir: c se transformou em e; se após a produção de e, restasse
ainda uma parte de c ou ela inteira, então esta causa restante deveria ainda
corresponder a outro efeito, e assim o efeito [total] de c deixaria em geral de
corresponder a e, o que é contrário à suposição de que c = e. Assim, como c
se torna e, e se torna f, etc., devemos considerar essas grandezas como
diferentes formas de manifestação de um mesmo objeto. A capacidade de
assumir diferentes formas é a segunda propriedade essencial de todas as
causas. Associando as duas propriedades, podemos dizer: Causas são objetos
(quantitativamente) indestrutíveis e (qualitativamente) mutáveis (MAYER,
1842 apud MARTINS, 1984, p. 86).

Percebe-se, de antemão, que a definição de “força” de Mayer não corresponde à de Newton,


d’Alembert, Leibniz ou Descartes. Mais adiante ele continua dizendo que:

Encontram-se na natureza duas classes separadas de causas, entre as quais


não ocorrem interconversões, conforme mostra a experiência. Uma classe é
constituída pelas causas que possuem as propriedades de ponderabilidade e
impenetrabilidade – as [formas de] matéria; a outra, pelas causas às quais
faltam essas últimas propriedades – as forças, também chamadas
imponderáveis por essa propriedade negativa indicada. As forças são,

32
Versão original: [...] All phenomena rest on the fact that matter, bodies and their relations to each other are
subject to changes. From the laws of logical reasoning we assume that this cannot happen without a cause. This
cause we call a force (MAYER, 1841 apud LINDSAY, 1973, p. 60).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 62

portanto: objetos indestrutíveis, mutáveis, imponderáveis (MAYER, 1842


apud MARTINS, 1984, p. 86-87).

A informação de Martins (1984, p. 85-86) é a de que Mayer utilizou a palavra alemã “Kraft”,
cuja tradução, em um texto moderno de Física, seria “força”. No entanto, para Mayer, a
palavra “Kraft” indica algo muito diferente de nosso conceito atual de força, ou do conceito
newtoniano. Poderíamos traduzi-la pela palavra “energia”, mas isso seria uma violação
histórica, pois o termo “energia” só adquiriu um significado preciso, em Física, dez anos após
a publicação do artigo de Mayer, pela influência de Rankine e Kelvin. Na verdade, na época
de Mayer, faltava uma terminologia adequada para exprimir o que ele queria dizer. Assim, ele
fez uso de uma palavra aplicada, naquele tempo, de modos diferentes e conflitantes. A palavra
“poder”, de acordo com Martins (1984), é uma das traduções de “Kraft” indicadas nos
dicionários, e teria a vantagem de permitir invocar um significado mais amplo e obscuro,
como o que Mayer queria indicar. Vamos verificar alguns exemplos práticos que ele cita
sobre o que compreende por força:

Uma causa que realiza o levantamento de uma carga é uma força; seu efeito,
a carga erguida, é também igualmente uma força; de modo mais geral pode-
se exprimir isso assim: uma distância espacial entre objetos ponderáveis é
uma força; como esta força produz a queda dos corpos, chamamo-la de força
de queda. Força de queda e queda, e ainda de modo mais geral, força de
queda e movimento, são forças que se relacionam como causa e efeito,
forças que se transformam uma na outra, duas formas diferentes de
manifestação de um mesmo objeto. Por exemplo: uma carga parada no chão
não é uma força: ela não é nem causa de um movimento, nem do
levantamento de uma outra carga; mas ela se transforma nisto [em uma
força] na medida em que é erguida acima do solo; a causa – a distância entre
uma carga e a Terra – e o efeito – a quantidade do movimento gerado – estão
em uma relação de igualdade, como ensina a mecânica (MAYER, 1842 apud
MARTINS, 1984, p. 87-88).

Mayer faz uma análise de uma situação muito comum para os estudiosos da conservação da
“vis viva”, a novidade está nele mostrar que essa conservação é um caso particular de uma lei
geral de indestrutibilidade das “forças”. Para tanto, ele une grandezas que já eram conhecidas
e definidas por diferentes nomes, colocando-as em uma mesma categoria: "forças". Por
consequência, no caso que o “movimento” – que é uma “força” na concepção de Mayer –
desaparece, sem que se ganhe “força de queda” ou se produza outro “movimento”, será
necessário encontrar qual outra “força” que surgiu. Vejamos como ele expressa esse
questionamento:
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 63

Em inúmeros casos vemos um movimento cessar, sem que ele tenha


produzido um outro movimento, ou um levantamento de um peso; mas uma
força que existiu não pode se tornar nula, e sim apenas transformar-se em
uma outra forma [de força], e pode-se conseqüentemente perguntar: que
outras formas pode assumir a força que aprendemos a conhecer como força
de queda e movimento? Apenas a experiência pode nos fornecer informação
sobre isso. Para tornar a experimentação conveniente, devemos selecionar
instrumentos que possam produzir realmente uma cessação do movimento e
que sejam o mínimo possível alterados pelos objetos pesquisados.
Friccionemos por exemplo duas placas metálicas entre si, e observaremos o
desaparecimento do movimento, e em contraposição veremos o
aparecimento de calor; pergunta-se agora apenas se o movimento é a causa
do calor. Para nos assegurarmos dessa relação, devemos esclarecer a
questão: nos inúmeros casos em que o calor aparece quando há
desaparecimento do movimento, não terá o movimento um outro efeito além
da produção de calor, e o calor outra causa além do movimento? (MAYER,
1842 apud MARTINS, 1984, p. 89)

Descartando as hipóteses de alterações no estado de agregação e da diminuição de volume dos


corpos que se atritam como as causas do surgimento do calor, Mayer também consegue
colocá-lo na categoria de um tipo de “força”. Ou seja, se não se pode encontrar o surgimento
de “[...] qualquer outro efeito do movimento desaparecido, exceto calor; e para o calor que
surge, nenhuma outra causa, exceto o movimento; então a partir daí é preferível supor que o
calor surge do movimento, do que supor uma causa sem efeito ou um efeito sem causa [...]”
(MAYER, 1842 apud MARTINS, 1984, p. 92). Assim, Mayer admite que a “força de queda”,
o “movimento” e o “calor” “[...] são diferentes formas de uma mesma coisa, mas que essa
coisa – a “força”, em abstrato – não é propriamente nenhuma dessas três coisas. Esta é uma
concepção muito semelhante ao nosso conceito moderno de energia” (MARTINS, 1984, p.
67). Para Valente (1999, p. 224-225), a pretensão de Mayer é a unificação da natureza, por
meio da ligação das diferentes formas com que a "força" aparece. Dessa maneira, o que o
movia, realmente, era uma visão unificada da natureza centrada nas ligações entre as
diferentes "forças". Estabelecidas essas conexões, Mayer (1842 apud Martins, 1984, 93)
pergunta:

[...] de quão grande seja a quantidade de calor correspondente a uma


determinada quantidade de força de queda de movimento. Por exemplo,
podemos determinar a que altura devemos erguer um determinado peso
acima do solo da Terra para que seu poder de queda seja equivalente ao
aquecimento de um igual peso de água de 0° a 1°C [...]

Ao contrário do artigo anterior, Mayer (1842 apud Martins, 1984, p. 93-94, grifo nosso) dá
uma resposta a essa importante questão com o seguinte raciocínio:
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 64

Pela aplicação das leis estabelecidas às relações de calor e volume dos gases
encontra-se que o abaixamento do mercúrio que comprime um gás iguala-se
à quantidade de calor liberada pela compressão e segue-se daí – sendo o
índice de proporcionalidade das capacidades [térmicas] do ar atmosférico
sob pressão constante e sob volume constante = 1,421, que o abaixamento
de um peso de uma altura de aproximadamente 365 m corresponde ao
aquecimento de um igual peso de água, de 0° a 1°. Compara-se com estes
resultados as realizações de nossas melhores máquinas a vapor, e ver-se-á
que apenas uma parte medíocre do calor aplicado sob a caldeira se
transformou realmente em movimento ou erguimento de carga; e isto pode
servir como justificação para a procura de outra forma vantajosa de produção
de movimento, ao invés do esperdício da diferença química entre C e O, a
saber: pela transformação da eletricidade, produzida por meio químicos, em
movimento.

Mayer foi extremamente conciso em sua resposta, deixando para explicar com mais detalhes a
metodologia empregada, para encontrar esses valores, em seu próximo trabalho publicado em
1845. Esse teve que ser publicado por conta própria, sob a forma de um livreto, após ter sido
recusado inclusive pela revista Annalen der Chemie und Pharmacie, a mesma que publicou o
de 1842 (LINDSAY, 1973; CANEVA, 1993; MARTINS, 1984). O seu título é “Die
organische bewegung in ihrem zusammenhang mit dem stoffwechsel, ein beitrag zur
Naturkund” (“O movimento orgânico e sua conexão com o metabolismo, uma contribuição
para a História Natural”). Novamente recorremos à Lindsay (1973, p. 99-145; 1975, p. 284-
307 ) para ter acesso ao artigo em língua inglesa. Para entendermos melhor o seu raciocínio,
vamos fazer uma descrição um pouco mais extensa apenas da parte em que Mayer fornece
mais detalhes dos cálculos feitos para encontrar o equivalente mecânico do calor. Ele começa
afirmando que para fazer essa demonstração é necessário examinar o comportamento dos
fluidos elásticos – gases – com o calor e o efeito mecânico. Desse modo, ele menciona as
experiências de Gay-Lussac que provaram, por meio de experimentos, que um fluido elástico
ao se expandir no vácuo não sofre alteração de temperatura. Ao contrário do que ocorre
quando um gás se expande contra uma pressão em que a temperatura decresce. Sutilmente,
Mayer está dizendo que na expansão de um gás há uma relação entre o calor e o efeito
mecânico produzido. A seguir, ele fornece alguns exemplos para ilustrar o seu raciocínio:

Vamos assumir que 1 centímetro cúbico de ar a O °C e uma pressão de 27


polegadas de mercúrio [condições padrão] é aquecido por uma quantidade de
calor x a volume constante a 274 °C. Quando for permitido a esse gás se
expandir para um espaço evacuado de mesmo volume, ele ainda manterá a
temperatura de 274 °C e o meio circundante dos vasos que contêm o gás
durante a experiência de expansão não mudará a temperatura. Agora, porém,
considere outro caso em que 1 centímetro cúbico de ar é aquecido de O °C a
274 °C não a volume constante, mas a pressão constante (a saber, 27
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 65

polegadas de mercúrio). Nesse caso, uma maior quantidade de calor é


necessária. Represente isso como x + y.

Em ambos os casos acima o ar é aquecido de 0 °C a 274 °C, e, em ambos os


casos, o ar expande de um volume para o dobro do volume.

No primeiro caso, a quantidade de calor requerida foi x. No segundo, foi x +


y. No primeiro caso, o efeito mecânico produzido foi zero, mas no segundo
foi o equivalente para levantar 15 libras de 1 polegada.

Se o ar é esfriado sob as mesmas condições com que foi aquecido, uma


quantidade de calor igual à que foi tomada é devolvida. A quantidade de ar
dada, se é esfriada de 274 °C a O °C sem gasto simultâneo de efeito
mecânico 33 (ou com pressão ausente), irá, consequentemente, devolver a
quantidade de calor = x. No entanto, em esfriamento a pressão constante
com gasto de força de queda 34 equivalente ao necessário para levantar 15
libras de 1 polegada, o ar irá devolver a quantidade de calor x + y.

O vapor na máquina quando se expande comporta-se como o ar a pressão


constante. A quantidade de calor necessária para o aquecimento e expansão
do vapor é de x + y. No processo de esfriamento o vapor não experimenta
nenhuma pressão particular e, portanto, o esfriamento acontece sem (ou com
muito pequeno) gasto de efeito mecânico. Ele devolve a quantidade de calor
x. Portanto, há associado com cada ciclo do pistão no cilindro da máquina
uma perda de calor igual a y. Assim, a operação da máquina é
inseparavelmente ligada com um consumo de calor.

A quantidade de calor que deve ser gasta para produzir uma determinada
quantidade de efeito mecânico deve ser avaliada experimentalmente
(MAYER, 1845 apud LINDSAY, 1975, p. 290-291, tradução nossa). 35

33
Em consulta a obra original, verificamos que o termo utilizado por Mayer foi “mechanischem Effekt” – “efeito
mecânico” –, não “trabalho mecânico” como adotou Lindsay. Isso é válido para todas as vezes que a expressão
“mechanical work” aparecer. Ver Mayer (1845).
34
Em consulta a obra original, verificamos que o termo utilizado por Mayer foi “Fallkraft” – “força de queda” –,
não “energia potencial” como adotou Lindsay. Isso é válido para todas as vezes que a expressão “potential
energy” aparecer. Ver Mayer (1845).
35
Versão original: Let us assume that 1 cubic inch of air at O °C and a pressure of 27 inches of mercury
[standard conditions] is heated by a quantity of heat x at constant volume to 274 °C. When this gas is allowed
to expand into an evacuated space of the same volume it will still retain the temperature 274 °C and a medium
surrounding the vessels containing the gas will during the expansion experience no change in temperature.
Now, however, consider the other case in which 1 cubic inch of air is heated from O °C to 274 °C not at
constant volume but at constant pressure (namely 27 inches of mercury). In this case a larger quantity of heat is
required. Represent this as x + y. In both cases above the air is heated from 0 °C to 274 °C and in both cases
the air expanded from one volume to twice the volume. In the first case the quantity of heat required was x. In
the second it was x + y. In the first case the mechanical effect produced was zero, but in the second it was the
equivalent of raising 15 pounds 1 inch. If the air is cooled under the same circumstances under which it was
heated, an amount of heat is given back equal to that which was taken up. The given amount of air if it is
cooled from 274 °C to O °C without the simultaneous expenditure of mechanical work (or with pressure
absent) will accordingly give back the quantity of heat = x. However, in cooling under constant pressure with
the expenditure of potential energy equivalent to that needed to raise 15 pounds 1 inch, the air will give back
the quantity of heat x + y. The steam in the engine when it expands behaves like the air at constant pressure.
The quantity of heat needed for the heating and expansion of the steam is x + y. In the cooling process the
steam experiences no particular pressure and hence the cooling takes place without (or with very small)
expenditure of mechanical work. It gives back the heat quantity x. Hence there is associated with every cycle
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 66

Em resumo, um gás emprega calor para produzir efeito mecânico ao se expandir sob pressão,
diminuindo a sua temperatura. Isso explica o motivo da diferença entre o calor empregado
para se aquecer um gás a pressão constante e a volume constante. No primeiro caso, parte do
calor é utilizada para produzir efeito mecânico e outra parte para aumentar a temperatura do
gás. No segundo caso, todo o calor empregado é utilizado apenas para aumentar a temperatura
do gás. A diferença entre os dois calores específicos estará portanto relacionada com o efeito
mecânico produzido. Sendo mais fácil aquecer um gás a volume constante do que a pressão
constante. “[...] Se o calor absorvido pelo gás no aquecimento de t ° C a volume constante é x,
o calor necessário para aquecer o gás no mesmo intervalo de temperatura a pressão constante
será x + y. Se, no último caso, o peso levantado é P, então y = Ph” (MAYER, 1845 apud
LINDSAY, 1975, p. 291-292, tradução nossa). 36 Após essas considerações, Mayer (1845
apud Lindsay, 1975, p. 292, tradução nossa) mostra como ele fez o cálculo teórico do
equivalente mecânico do calor:

Um centímetro cúbico de ar atmosférico a 0 °C e 0.76 metros de pressão


barométrica pesa (tem uma massa de) 0.0013 grama. Se ele é aquecido de 1
°C, o ar se expande em 1/274 parte do seu volume e, ao mesmo tempo,
levanta uma coluna de mercúrio de 1 centímetro quadrado de seção
transversal e 76 centímetros de altura de 1/274 metro. O peso dessa coluna é
1033 gramas. O calor específico do ar (que da água toma como unidade), a
partir do trabalho de Delaroche e Berard, é 0.267. A quantidade de calor que
um centímetro cúbico de ar recebe a fim de ir de 0 °C a 1 °C a pressão
constante é, portanto, igual ao calor que (0.0013)(0.267) = 0.000347 grama
de água teria a sua temperatura aumentada de 1 °C. De acordo com Dulong,
a quem a maioria dos físicos segue, a quantidade de calor que o ar recebe
para aquecer de 1 °C a volume constante está para uma pressão constante na
razão de 1:1.421. Se usarmos isso para calcular o calor necessário para
aquecer 1 centímetro cúbico de ar de 1 °C a volume constante como
0.000347/1.421 = 0,000244 [...].

A diferença (x + y) - x = y é, portanto, 0.000347 - 0.000244 = 0.000103


unidades de calor [Mayer usa grau (°) de calor. Na verdade ele está usando
calorias equivalentes -Ed. Nota.] Para o gasto disso, 1033 gramas de
mercúrio é levantado 1/274 centímetros. Assim, a unidade 1 de calor [1

of the piston in the cylinder of the engine a heat loss equal to y. Thus the operation of the engine is inseparably
connected with a consumption of heat. The quantity of heat which must be expended to produce a definite
amount of mechanical work must be evaluated experimentally (MAYER, 1845 apud LINDSAY, 1975, p. 290-
291).
36
Versão original: “[...] If the heat taken up by the gas in heating it by t °C at constant volume is x, the heat
needed to heat the gas through the same temperature range at constant pressure will be x + y. If in the latter
case the weight raised is P, then y = Ph” (MAYER, 1845 apud LINDSAY, 1975, p. 291-292).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 67

caloria] é equivalente a 1 grama levantada de 367 metros [ou uma energia de


3,59 joules-Ed. nota.]. 37

Para chegar a esse número, ele utilizou o valor do calor específico do ar, a pressão constante,
e o resultado da razão entre os calores específicos a volume constante e a pressão constante,
ambos encontrados na época por Gay-Lussac. Segundo Martins (1984, p. 94), a diferença
entre o equivalente mecânico do calor obtido – 3,6 J/cal – e o aceito atualmente – 4,186 J/cal
– não é devida a um erro de cálculo ou de princípio, e sim aos dados inexatos utilizados por
Mayer, mas os únicos disponíveis na época. Se utilizássemos o mesmo procedimento de
cálculo, com os dados numéricos atuais, obteríamos o valor correto. Convém lembrar que os
resultados de Gay-Lussac não eram conhecidos por boa parte da comunidade científica de seu
tempo. Veremos adiante que um dos motivos dos ataques de Joule a Mayer é devido ao
desconhecimento desses valores. Dessa vez, Mayer não poderá ser acusado de falta de clareza
em suas afirmações, conforme corrobora Mach (1986, p. 232, tradução nossa):

[...] todas as tentativas para mostrar que as reivindicações de créditos de


Mayer são infundadas devem cair ao chão, tendo em vista a clareza
conceitual a que ele finalmente alcançou quando deu o valor do equivalente
mecânico do calor e claramente declarou, em poucas palavras, o modo que
foi calculado. Ele foi o primeiro de todos os físicos a perceber que não há
necessidade de novos experimentos para essa determinação, e que
geralmente os números conhecidos são suficientes para isso. Ele também foi
o primeiro a compreender corretamente a experiência de Gay-Lussac e
utilizá-la como base de cálculo. 38

37
Versão original: One cubic centimeter of atmospheric air at 0 °C and 0.76 metres barometric pressure weighs
(has a mass of) 0.0013 gram. If it is heated through 1 °C the air expands by 1/274 part of its volume and at the
same time raises a column of mercury of 1 square centimeter cross section and 76 centimeters high by 1/274
meter. The weight of this column is 1033 grams. The specific heat of air (that of water taken as unity), from the
work of Delaroche and Berard, is 0.267. The quantity of heat which a cubic centimeter of air takes up in order
to go from 0 °C to 1 °C at constant pressure is accordingly equal to the heat by which (0.0013)(0.267) =
0.000347 gram of water would have its temperature raised by 1 °C. According to Dulong, whom most
physicists follow, the quantity of heat which air takes up to the heat itself by 1 °C at constant volume to that for
constant pressure is in the ratio 1 : 1.421. If we use this we calculate the heat needed to heat 1 cubic centimeter
of air by 1 °C at constant volume as 0.000347/1.421 = 0.000244 [...] The difference (x + y) – x = y is therefore
0.000347 - 0.000244 = 0.000103 units of heat [Mayer uses degree (°) of heat. Actually he is using equivalent
calories–Ed. Note.] By the expenditure of this, 1033 grams of mercury is lifted 1/274 centimeters. Hence 1 unit
of heat [1 calorie] is equivalent to 1 gram raised 367 meters [or an energy of 3.59 joules–Ed. note.].
38
Versão original: [...] all attempts to represent Mayer's claims as unfounded must fall to the ground in view of
the conceptual clearness to which he finally attained when he gave the magnitude of the mechanical equivalent
of heat and distinctly stated, in a few words, the way in which it is calculated. He was the first of all physicists
to see that no new experiments are necessary for this determination, and that generally known numbers suffice
for it. He was also the first to grasp correctly Gay-Lussac's overflow experiment, and to make it the foundation
of calculation.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 68

Esse artigo de 1845 de Mayer é extenso e contém muitas outras informações interessantes,
além do cálculo detalhado do equivalente mecânico do calor. Por exemplo, uma espécie de
catálogo das formas da “força” conhecidas na época com referência a 25 experimentos que
demonstram a metamorfose de uma forma de “força” em outra. As “forças” citadas são:
“força de queda”; “força de movimento”, que pode ser simples ou vibracional; “calor”;
“magnetismo”; “eletricidade”; “força química”; “separação química” e “combinação
química”. Antes de denominá-las, Mayer afirma que em todos os processos físicos e químicos
a “força” envolvida é uma quantidade constante. É nesse artigo, também, que Mayer aborda
pela primeira vez a importância de suas observações sobre a cor do sangue nos trópicos que
lhe ocorreu naquela viagem de navio de 1840. Ele nos conta que devido a uma infecção
inflamatória aguda nos pulmões que atingiu muitos dos marinheiros, quando estavam a
noroeste de Java, precisou fazer vários procedimentos de sangria. Foi quando percebeu que o
sangue tirado da veia do braço possuía, quase sem exceção, uma cor vermelha brilhante,
muito semelhante ao arterial. Ao contrário do que observara na Europa em que o sangue
arterial era muito vermelho e o das veias era mais escuro. O fenômeno chamou a sua atenção
instigando-o a encontrar a razão do sangue de um europeu em Java ser diferente do mesmo
europeu na Europa. De acordo com Martins (1984, p. 64-65):

Mayer conhecia a teoria de Lavoisier a respeito do calor animal. Segundo


esta teoria, o aquecimento dos animais é o resultado de um processo de
combustão ou oxidação: o sangue arterial conduz a todas as partes do
organismo o oxigênio, que reage nos tecidos, produzindo gás carbônico que
é transportado pelo sangue venoso até os pulmões. Mayer considerou que a
diferença entre a cor do sangue arterial e venoso seria devida à diferença
entre seus conteúdos de oxigênio e gás carbônico. Ora, segundo Mayer,
“para que o corpo humano possa ser mantido a uma temperatura uniforme, o
desenvolvimento de calor dentro dele deve manter uma relação quantitativa
com o calor perdido pelo corpo – deve depender, portanto, da temperatura
do meio ambiente; portanto a produção de calor e o processo de oxidação,
assim como a diferença de cor dos dois tipos de sangue, devem ser
globalmente menores nas zonas tórridas do que em regiões temperadas.

Resolvido esse problema, ele pôs-se a pensar a respeito da origem e dos efeitos produzidos
pelo calor animal. Já se sabia, na época, que a fonte desse calor era o alimento absorvido pelo
organismo. No entanto, um ser vivo pode produzir calor diretamente pelo seu “calor corporal”
e pelo atrito gerado mecanicamente entre os seus órgãos. Segundo Martins (1984, p. 65-66,
grifo nosso):
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 69

[...] Mayer considera que mesmo um organismo vivo é incapaz de gerar


calor a partir do nada. Por isto, ele é levado a admitir que o calor total
produzido por um ser vivo (isto é, a soma do calor corporal com o calor
produzido mecanicamente pelo organismo) deve corresponder ao calor
gerado por oxidação dos alimentos naquele ser vivo. Mas, nesse caso, o calor
gerado pelos efeitos mecânicos do ser vivo deve ser limitado pela sua
capacidade de realizar esforço mecânico, e esta, por sua vez, pelo calor que
pode ser gerado pelo alimento. Mayer conclui que “o calor produzido
mecanicamente pelo organismo deve manter uma relação quantitativa
invariável para com o trabalho gasto em sua produção. Mas esse resultado
deve ser válido, não só para organismos vivos, mas para qualquer tipo de
processo da natureza. Portanto, Mayer conclui que o calor produzido
através de uma ação mecânica qualquer é proporcional ao trabalho
empregado.

Encontramos em Lindsay (1973), Caneva (1993), Martins (1984), Cajori (1908), Valente
(1993, 1999) – e outros – a concordância de que todo o processo de construção conceitual do
princípio da conservação da energia de Mayer começa com a análise desse fenômeno
biológico: a cor do sangue nos países quentes. A partir disso, Mayer dedicou-se a
fundamentar as suas ideais e a dar-lhes uma forma convincente. Porém, apesar de seus
argumentos serem considerados brilhantes, originais e com potencial interesse, “[...] os seus
contemporâneos não deram muita importância às suas teorias por considerarem que os seus
trabalhos tinham uma forte componente metafísica [...]” (VALENTE, 1993, p. 83). Isso
explica, em parte, a grande dificuldade que ele tinha em publicar os seus artigos. Outro fato
considerável é que ele era de fora da academia, faltando-lhe um defensor do meio acadêmico,
alguém que tivesse compreendido, corrigido e dado publicidade as suas ideias. Por último, a
linguagem que ele utilizava para expressar as suas concepções não era a da Física de seu
tempo. Antes de compará-lo a Joule e dar mais detalhes da controvérsia que ocorreu entre os
dois, vamos descrever o caminho percorrido pelo inglês.

3.6.2 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE JOULE

James Prescott Joule (1818-1889) nasceu em Salford, perto de Manchester, na Inglaterra, em


uma rica família que tinha uma indústria de cerveja. Devido ao uma ligeira deformidade
espinhal e uma saúde frágil, ele não frequentou a escola, sua educação foi assegurada por
tutores. O ensino científico, entre 1834 e 1837, coube a John Dalton (1766-1844), famoso
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 70

pelo seu trabalho sobre a teoria atômica (CROPPER, 2001; CARDWELL, 1989; KARGON,
2010 39).

Esta influência de Dalton poderá explicar algumas das diferenças essenciais


entre Joule e Mayer e, nomeadamente, no que diz respeito à interpretação do
calor. Enquanto este último não especulou sobre a natureza do "calor", disso
não sentindo qualquer necessidade, Joule vai interpretar o "calor" sensível
como a vis viva dos átomos, numa altura em que os átomos ainda não
existiam no campo da filosofia natural. Sendo estas duas personalidades
muito diferentes e vivendo em locais muito diferentes há alguns paralelismos
interessantes no que diz respeito ao desenvolvimento das suas ideias
(VALENTE, 1999, p. 300).

Joule não teve educação universitária. Foi um cientista amador, assim como Mayer foi um
físico amador. Em 1833, com a aposentadoria do pai por motivos de saúde, assumiu a
cervejaria aos 15 anos de idade. Nas horas de folga, fazia experimentos de química e Física
em seu laboratório particular (CARDWELL, 1989; KARGON, 2010). Segundo Valente
(1999, p. 303):

As suas qualidades de experimentalista desenvolvem-se durante os anos de


convivência científica com Dalton e continuarão, depois, a evoluir e a
refinar-se. O seu campo preferido de estudo (ou de entretenimento, como
sugere Cardwell) começou por ser o domínio das experiências com
electricidade, o que reflecte o ar dos tempos, pois com Faraday desenvolve-
se toda uma "euforia eléctrica". Daí o primeiro interesse científico de Joule:
motores eléctricos. Veremos, mais adiante, qual a sequência lógica que o
levará desse interesse às questões do desenvolvimento da noção de
equivalente mecânico do calor. A medida, cada vez mais exacta, deste
equivalente será o grande objectivo de toda a sua carreira científica.

Dentro desse contexto de “euforia elétrica”, Joule interessou-se, particularmente, pela


melhoria da eficiência do motor elétrico. O que pode ser explicado pela ligação de sua família
à indústria. Não demorou muito para ele perceber, que a sua pesquisa em busca de um maior
desempenho dos motores elétricos teria que envolver também o estudo da produção de calor
nos circuitos elétricos. Afinal:

Uma das variáveis associadas ao funcionamento de um motor


eletromagnético é o aparecimento de calor. Em todas as máquinas o
aparecimento de calor devido ao atrito tinha sido reconhecido por muitos
anos como indicando o desperdício de potência, por essa razão, a prática há
muito estabelecida de utilizar lubrificantes para reduzir o atrito. O

39
Publicado pela primeira vez em 1977.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 71

aquecimento elétrico de motores e circuitos associados podem muito bem


indicar outra fonte de desperdício. O comportamento prescrito deve ser
investigado mesmo que a conexão entre esse calor e um desperdício de
potência seja obscura. Se a bateria e o circuito são usados para gerar calor
apenas, e nenhum trabalho foi feito, zinco ainda seria consumido na bateria o
que seria certamente um desperdício (CARDWELL, 1989, p.35, tradução
nossa). 40

No final do ano de 1840, Joule enviou um artigo intitulado “On the production of heat by
voltaic electricity” 41 para a Royal Society of London para ser publicado no Philosophical
Transactions, um periódico da instituição. A publicação do artigo na íntegra foi recusada,
aparecendo no Proceedings of the Royal Society, especializado apenas em resumos. Nesse
trabalho, Joule mostrou que o "efeito calorífico" produzido pela passagem da corrente em um
fio é proporcional ao quadrado da magnitude da corrente multiplicado pela resistência do fio,
qualquer que seja o comprimento, espessura, forma ou tipo de metal. O que é conhecido hoje
em dia por “efeito Joule”. Ele também deduziu que o calor produzido pela combustão do
zinco em oxigênio estava relacionado com a resistência à condução elétrica. “ [...] O
aquecimento do circuito era, portanto, inevitável e claramente implícito a um desperdício de
zinco na bateria. [...]” (CARDWELL, 1989, p. 36, tradução nossa) 42. Após a publicação desse
resumo:

[...] ele continuou com seu trabalho prático, embora tenha se tornado menos
proeminente. Ele escreveu um pequeno artigo sobre pilhas voltaicas, mas o
mais importante de tudo, ele terminou seu trabalho sobre o calor gerado por
uma corrente elétrica. Esse trabalho, publicado na Philosophical Magazine
{1841}, foi muito mais abrangente do que a breve nota na revista
Proceedings que fez pouco mais do que apresentar um pedido de prioridade.
Dessa vez, ele deu detalhes dos três conjuntos de experimentos em que uma
corrente elétrica passou, sucessivamente, por duas bobinas diferentes de fio
de cobre, uma bobina de fio de cobre e uma bobina de fio de ferro e, por

40
Versão original: One of the variables associated with a working electromagnetic engine is the appearance of
heat. In all machines the appearance of heat due to friction had been recognised for many years as indicating
wasted power; hence the long-established practice of using lubricants to reduce friction. The electrical heating
of motors and associated circuits might well indicate another source of waste. Procedure dictated that this
should be investigated even though the connection between this heat and a waste of power was obscure. If the
battery and circuit were used to generate heat only, and no work was done, zinc would still be consumed in the
battery and that would certainly be wasteful (CARDWELL, 1989, p.35).
41
Todos os artigos de Joule citados nesse trabalho foram consultados por meio da seguinte coletânea: “The
scientific papers of James Prescott Joule”, publicada pela “The Physical Society of London”, em Londres, no
ano de 1884, disponível em: http://www.archive.org/details/scientificpapers01joul. No entanto, sempre
faremos referência aos periódicos de origem.
42
Versão original: “[...] The heating of a circuit was, therefore, unavoidable and clearly implied a waste of zinc
in the battery [...]” (CARDWELL, 1989, p. 36).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 72

último, uma bobina de fio de cobre e uma coluna de mercúrio em um tubo de


vidro [...] (CARDWELL, 1989, p.39, tradução nossa). 43

Em decorrência desses e de outros experimentos, Joule começou a fazer especulações sobre a


natureza e a origem do calor. Ele verificou que a oxidação do zinco aquece menos a bateria
quando há corrente elétrica, do que a mesma quantidade de zinco dissolvido sem gerar uma
corrente. Era como se uma parte do calor desenvolvido na bateria fosse transportada pela
corrente para aos fios. Mas, ao analisar a corrente elétrica produzida pela rotação de uma
bobina de fio de cobre entre os pólos de um imã, ou seja, por uma máquina magneto-elétrica –
precursor do dínamo moderno –, sem qualquer ligação com uma bateria, também observa-se o
aparecimento de calor nos fios. Joule concluiu, então, que o calor não era transportado de um
lugar para outro, e sim criado pela passagem da corrente elétrica (CARDWELL, 1989;
VALENTE, 1999).

Veremos na próxima seção que esse foi um dos argumentos contra a teoria do calórico. O
primeiro trabalho de Joule em que ele começa a utilizar a expressão de convertibilidade entre
calor e trabalho e a fazer experimentos quantitativos sobre o valor mecânico do calor data de
1843, um ano depois do primeiro artigo de Mayer sobre esse tema. O seu título é “On the
caloric effects of magneto-electricity and on the mechanical value of heat”, sendo publicado
no Philosophical Magazine. Martins (1984, p. 70) nos fornece um bom resumo do que se
encontra nesse texto:

[...] O tema básico deste trabalho é o estudo do calor que surge em


fenômenos eletromagnéticos. Entre outras coisas, Joule determina
experimentalmente que o calor gerado na bobina de um eletroimã é
proporcional ao quadrado da corrente elétrica que a percorre – o primeiro
estudo quantitativo do “efeito Joule”. Ele mostra também que em um dínamo
ou motor elétrico há uma relação entre o calor produzido pelas correntes
elétricas e o trabalho gerado ou consumido. Suas primeiras medidas
mostraram que o aquecimento de uma libra de água a 1°F era equivalente ao
trabalho mecânico capaz de erguer 896 libras à altura de um pé – ou seja, um
resultado correspondente a 1 cal = 4,8 J. Em outras medidas descritas no
mesmo artigo, os resultados apresentam uma oscilação, entre 3,2 J/cal e 5,5
J/cal. Como observa muito bem Meyerson, resultados tão incertos não eram

43
Versão original: [...] he continued with his practical work, although it was becoming less prominent. He wrote
a short paper on voltaic batteries, but most important of all, he completed his work on the heat generated by an
electric current. This work, published in the Philosophical Magazine {1841}, was far more comprehensive
than the brief note in the Proceedings that did little more than lodge a claim for priority. This time he gave
details of three sets of experiments in which an electric current passed successively through two different coils
of copper wire, a coil of copper wire and a coil of iron wire, and lastly, a coil of copper wire and a column of
mercury in a glass tube [...] (CARDWELL, 1989, p.39).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 73

muito adequados como provas empíricas da existência de uma relação


constante entre trabalho e calor.

Em 1845, no mesmo ano em que Mayer edita o seu trabalho mais completo, Joule publica o
artigo “On the changes of temperature produced by the rarefaction and condensation of air”,
na tentativa de melhorar os resultados para o equivalente mecânico do calor. Logo no início
do artigo, Joule (1845a, p. 369, tradução nossa, grifo nosso) explica quais são as suas
intenções:

[...] Naquele artigo [refere-se ao artigo On the calorific effects of magneto-


electricity, and on the mechanical value of Heat] foi demonstrado,
experimentalmente, que a potência mecânica exercida no giro de uma
máquina magneto-elécrica é convertida no calor desenvolvido pela
passagem das correntes de indução pelas suas bobinas, e, por outro lado, que
a potência motriz do motor eletro-magnético é obtida à custa do calor devido
às reações químicas da bateria pela qual ele trabalha. Espero, em um
período futuro, ser capaz de comunicar alguns novos e muito delicados
experimentos, a fim de verificar o equivalente mecânico do calor com a
acurácia que a sua importância para a ciência física exige. Meu objetivo
atual é relatar uma investigação em que acredito ter conseguido aplicar com
sucesso os princípios antes afirmados para as mudanças de temperatura
decorrentes da alteração da densidade de corpos gasosos [...]. 44

O que Joule procura é encontrar a experiência mais simples e mais exata para a determinação
do equivalente mecânico do calor. Nesse artigo, ele estuda as variações de temperatura
produzidas na compressão e dilatação dos gases, estabelecendo que todo o trabalho utilizado
na compressão de um gás é convertido em calor. Mas ainda não alcança a precisão desejada.
Apesar de melhores do que o artigo anterior, os seus resultados continuam dispersos. Ele
mostra também que o ar, ao se dilatar sem realizar trabalho, não sofre variação apreciável de
temperatura. “[...] Desconhecia, portanto, os resultados das experiências de Gay-Lussac, que
Mayer tão inteligentemente utilizou [...]” (VALENTE, 1999, p. 322). No fim do texto, Joule
(1845a, p. 383, tradução nossa, grifo nosso) assim se expressa:

44
Versão original: [...] In that paper it was demonstrated experimentally that the mechanical power exerted in
turning a magneto-electrical machine is converted into the heat evolved by the passage of the currents of
induction through its coils; and, on the other hand, that the motive power of the electro-magnetic engine is
obtained at the expense of the heat due to the chemical reactions of the battery by which it is worked. I hope, at
a future period, to be able to communicate some new and very delicate experiments, in order to ascertain the
mechanical equivalent of heat with the accuracy which its importance to physical science demands. My present
object is to relate an investigation in which I believe I have succeeded in successfully applying the principles
before maintained to the changes of temperature arising from the alteration of density of gaseous bodies [...].
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 74

Crendo que o poder de destruir pertence somente ao Criador, estou


inteiramente de acordo com Roget e Faraday na opinião de que
qualquer teoria que, quando realizada, requer a aniquilação da força, é
necessariamente errada. Os princípios, no entanto, que eu tenho
desenvolvido neste artigo estão isentos de tal dificuldade. A partir deles,
podemos inferir que o vapor, enquanto expande no cilindro, perde calor
em quantidade exatamente proporcional à força mecânica que
comunica por meio do pistão; e que, na condensação do vapor, o calor
assim convertido em potência não retorna. Supondo nenhuma perda de calor
por radiação, etc, a teoria aqui desenvolvida requer que o calor emitido para
fora no condensador seja inferior ao que foi comunicado pela caldeira a
partir da fornalha, na exata proporção para o equivalente mecânico de
potência desenvolvido. 45

Ainda em 1845, na conferência da British Association, realizada em Cambridge, Joule


apresenta uma descrição da famosa experiência de agitação de água por meio de pás 46. Ele
enviou uma carta para a Philosophical Magazine com o título “On the existence of an
equivalent relation between heat and the ordinary forms of mechanical power”, relatando o
que apresentou na conferência. Joule afirma que pretende melhorar o aparato da experiência
para obter uma maior precisão, antes de enviar qualquer artigo sobre ela para ser publicado.
Apesar de não ter feito nenhum desenho do dispositivo 47, ele descreve os seus componentes,
bem como a metodologia utilizada e os resultados alcançados:

O aparelho exibido antes na Associação consistiu de uma roda de pás de


bronze trabalhando horizontalmente em uma lata de água. Movimento pode
ser comunicado a essas pás por meio de pesos, polias, etc, [...].
As pás moviam com grande resistência na lata de água, de modo que os
pesos (cada um dos quatro libras) desceram a uma taxa lenta de cerca de um
pé por segundo. A altura das polias, a partir do chão, tinha doze jardas e,
consequentemente, quando os pesos tinham descido ao longo da distância,
eles tiveram que ser erguidos novamente, a fim de renovar o movimento das
pás. Depois de essa operação ter sido repetida dezesseis vezes, o aumento da

45
Versão original: Believing that the power to destroy belongs to the Creator alone, I entirely coincide with
Roget and Faraday in the opinion that any theory which, when carried out, demands the annihilation of force, is
necessarily erroneous. The principles, however, which I have advanced in this paper are free from this
difficulty. From them we may infer that the steam, while expanding in the cylinder, loses heat in quantity
exactly proportional to the mechanical force which it communicates by means of the piston; and that on the
condensation of the steam the heat thus converted into power is not given back. Supposing no loss of heat by
radiation, etc., the theory here advanced demands that the heat given out in the condenser shall be less than that
communicated to the boiler from the furnace, in exact proportion to the equivalent of mechanical power
developed.
46
Segundo Mach (1986, p. 247), essa experiência foi repetida várias vezes por Joule até o ano de 1849 quando
ele deu-se por satisfeito com os resultados alcançados.
47
Confirmando a informação de Mach da nota acima, encontramos um desenho detalhado dos dispositivos
utilizados por Joule apenas em seu último artigo sobre esse tema publicado na Philosophical Transactions, em
1850, com o título “On the mechanical equivalent of heat”. Ver Joule (1850).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 75

temperatura da água foi determinado por meio de um termômetro muito


sensível e preciso.
Uma série de nove experiências foi realizada da maneira acima, e nove
experimentos foram realizados com vista a eliminar os efeitos de
esfriamento ou de aquecimento da atmosfera. Após reduzir o resultado para
a capacidade para calor de uma libra de água, verificou-se que para cada
grau de calor desenvolvido pelo atrito da água uma potência mecânica igual
ao que se pode levantar um peso de 890 lb à altura de um pé tinha sido gasto
(JOULE, 1845b, p. 205, tradução nossa). 48

Na continuação, ele relembra os valores médios encontrados em suas experiências anteriores,


a saber: 823 lb derivada a partir da máquina magneto-elétrica; 795 lb deduzida da rarefação
do ar e 774 lb de experimentos, ainda não publicados, sobre o movimento da água em tubos
estreitos. Até que dados mais precisos possam ser obtidos, Joule considera que a existência de
um equivalente mecânico do calor está provada, assumindo a média de todas essas medidas
realizadas, 817 lb 49, como o valor desse equivalente. Em seguida, faz um comentário:

Quaisquer dos senhores leitores que são tão afortunados por residirem em
meio ao cenário romântico do País de Gales ou da Escócia poderiam, não
tenho dúvidas, confirmar meus experimentos testando a temperatura da água
no topo e no fundo de uma cachoeira. Se o meu ponto de vista está correto,
uma queda de 817 pés irá, evidentemente, gerar um grau de calor, e a
temperatura do rio Niágara será elevada cerca de um quinto de um grau por
sua queda de 160 pés (JOULE, 1845b, p. 206, tradução nossa). 50

Ampliando o fenômeno observado em laboratório, Joule sugere que em cachoeiras também


pode ser verificado a alteração da temperatura da água. Sendo possível, inclusive, estimar a

48
Versão original: The apparatus exhibited before in the Association consisted of a brass paddle-wheel working
horizontally in a can of water. Motion could be communicated to this paddle by means of weights, pulleys,
etc., [...]. The paddle moved with great resistance in the can of water, so that the weights (each of four pounds)
descended at the slow rate of about one foot per second. The height of the pulleys from the ground was twelve
yards, and consequently, when the weights had descended through that distance, they had to be wound up
again in order to renew the motion of the paddle. After this operation had been repeated sixteen times, the
increase of the temperature of the water was ascertained by means of a very sensible and accurate thermometer.
A series of nine experiments was performed in the above manner, and nine experiments were made in order to
eliminate the cooling or heating effects of the atmosphere. After reducing the result to the capacity for heat of a
pound of water, it appeared that for each degree of heat evolved by the friction of water a mechanical power
equal to that which can raise a weight of 890 lb. to the height of one foot had been expended (JOULE, 1845b,
p. 205).
49
O valor aceito atualmente, em British Thermal Unit (BThU), é equivalente a 778, 16 lb.ft. (PASSOS, 2009).
50
Versão original: Any of your readers who are so fortunate as to reside amid the romantic scenery of Wales or
Scotland could, I doubt not, confirm my experiments by trying the temperature of the water at the top and at
the bottom of a cascade. If my views be correct, a fall of 817 feet will of course generate one degree of heat,
and the temperature of the river Niagara Will be raised about one fifth of a degree by its fall of 160 feet
(JOULE, 1845b, p. 206).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 76

variação dessa temperatura com o auxílio do equivalente mecânico do calor encontrado por
ele. Embora o método de agitação da água por meio de pás tenha dado o resultado médio
menos preciso, foi o escolhido por Joule para dar prosseguimento em busca de melhores
valores por três causas principais: era o mais simples; tinha menos objeções e poderia ser
replicado de várias maneiras, bastando substituir a água por outros líquidos (CARDWELL,
1989). No entanto, as pesquisas de Joule não despertaram muito interesse da comunidade
científica britânica. Um dos motivos deve-se ao fato de suas experiências não serem “[...]
muito simples de ser interpretadas, e os efeitos observados eram muito pequenos – às vezes,
apenas centésimos de grau – e variáveis” (MARTINS, 1984, p. 71). Não pertencer ao meio
acadêmico, também teve uma influência importante. Cardwell (1989, p. 76, tradução nossa)
apresenta outras boas razões:

Joule apresentou o seu trabalho e ideias para as reuniões da Associação


Britânica, em 1843, 1844 e 1845 e por meio das páginas da Philosophical
Magazine. O mundo científico parecia indiferente. Homens da ciência
estavam pensando em outras coisas e os artigos de Joule despertaram pouco
interesse. A cruzada magnética estava em curso; Whewell e outros estavam
profundamente interessados na teoria das marés; Couch Adams e Leverrier
tinham descoberto um novo planeta (Netuno). Não menos intrigante foi a
descoberta de Armstrong de que um jato de vapor era eletrificado. O que ele
anunciava cientificamente? Estávamos à beira de uma invenção comparável
ou de importância ainda maior do que a bateria voltaica ou o motor magneto-
elétrico? O que isso significava para o homem prático? Todo mundo estava
familiarizado com o imenso poder do vapor; se vapor de alta pressão podia
gerar eletricidade diretamente, simplesmente havia novas e excitantes
perspectivas de fontes de energia revolucionárias e novas aplicações.
Faraday se interessava. 51

A sorte de Joule começou a mudar no ano de 1847, na conferência anual da British


Association, realizada em Oxford. Na quinta-feira de 24 de junho, ele se preparou para fazer
uma preleção com o título “On the mechanical equivalent of heat, as determined by the heat

51
Versão original: Joule presented his work and ideas to the British Association meetings in 1843, 1844 and
1845 and through the pages of the Philosophical Magazine. The scientific world seemed indifferent. Men of
science were thinking of other things and Joule’s papers aroused little interest. The magnetic crusade was
under way; Whewell and others were deeply interested in the theory of tides; Couch Adams and Leverrier had
discovered a new planet (Neptune). No less intriguing was Armstrong’s discovery that a jet of steam was
electrified. What did it portend scientifically? Were we on the brink of an invention comparable to, or of even
greater importance than, the voltaic cell or the magneto-electric engine? What did it mean for the pratical man?
Everyone was familiar with the immense power of steam; if high-pressure steam could generate electricity
directly and simply there were exciting new prospects of revolutionary power sources and new applications.
Faraday himself was interested.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 77

evolved by the agitation of liquids”52. Contudo, como era a última palestra do dia, o
presidente da sessão solicitou que ele fizesse apenas um breve resumo dos principais pontos
do artigo. Ele exibiu e explicou o aparato das pás, fornecendo os resultados alcançados até o
momento. Também “[...] fez algumas experiências sobre a compressão de molas de aço. Ele
não encontrou nenhum calor gerado; toda a força viva usada para comprimir as molas tinha
sido convertida em atração ao longo do espaço. Era, ele acreditava, análogo ao calor latente"
(CARDWELL, 1989, p.83, tradução nossa) 53. Joule acreditava que novamente as suas ideias
passariam despercebidas e a comunicação iria seguir sem comentários, porém:

[...] um jovem levantou-se na sessão e, pelas suas observações inteligentes,


criou um vivo interesse na nova teoria. O jovem era William Thomson, que
há dois anos passou na Universidade de Cambridge com a maior honra, e
agora é, provavelmente, a maior autoridade científica da época [...] (JOULE,
1887, p. 215, tradução nossa). 54

Em 1893, na inauguração de uma estátua em homenagem a Joule, na cidade de Manchester,


William Thomson (1824-1907) – posteriormente conhecido como Lorde Kelvin – relatou esse
memorável acontecimento:

Nunca poderei me esquecer da Associação Britânica em Oxford, no ano de


1847, quando em uma das sessões eu ouvi um artigo lido por um jovem,
muito modesto, que revelou de modo consciente que ele tinha uma grande
ideia a ser desenvolvida. Eu estava tremendamente impressionado com o
artigo. A princípio pensei que não poderia ser verdade, porque era diferente
da teoria de Carnot, imediatamente após a sua leitura, conversei um pouco
com o autor James Joule, esse foi o início de nossos 40 anos de amizade [...]
(KELVIN, 1893 apud WATSON, 1947, p. 383-384, tradução nossa). 55

52
Depois ele publicou o que tinha preparado, com mais detalhes e com o titulo um pouco diferente, na
Philosophical Magazine. Ver Joule (1847).
53
Versão original: [...] made some experiments on the compression of steel springs. No heat, he found, was
generated; all the living force used to compress the springs had been converted into attraction through space. It
was, he believed, analogous to latent heat (CARDWELL, 1989, p.83).
54
Versão original: [...] a young man had not risen in the section, and by his intelligent observations created a
lively interest in the new theory. The young man was William Thomson, who had two years previously passed
the University of Cambridge with the highest honour, and is now probably the foremost scientific authority of
the age [...] (JOULE, 1887, p. 215).
55
Versão original: I can never forget the British Association at Oxford in the year 1847, when in one of the
sections I heard a paper read by a very unassuming young man who betrayed no consciousness in his manner
that he had a great idea to unfold. I was tremendously struck with the paper. I at first thought it could not be
true because it was different from Carnot's theory, and immediately after the reading of the paper I had a few
words of conversation with the author James Joule, which was the beginning of our forty years acquaintance
and friendship [...] (KELVIN, 1893 apud WATSON, 1947, p. 383-384).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 78

O apoio de Kelvin foi muito importante na aceitação dos resultados de Joule pelos cientistas
ingleses. A partir desse laço de amizade, eles fizeram várias pesquisas em conjunto,
culminando em uma série de artigos, incluindo o que tratava sobre os efeitos térmicos de
fluidos em movimento, que deu origem a explicação teórica do que hoje é conhecido como
“efeito Joule-Thomson” (KARGON, 2010; CARDWELL, 1989). Além do início do
reconhecimento, o ano de 1847 também deve ser lembrado como aquele em que Joule
descreveu de uma forma mais ampla e coerente o princípio geral de conservação, pois apesar
de a preocupação “[...] em generalizar suas idéias, em quase todos os seus artigos Joule estuda
apenas problemas bem específicos [...]” (MARTINS, 1984, 71). Isso aconteceu em uma
palestra popular proferida no St. Ann’s Church Reading Room, em 28 de abril de 1847, na
cidade de Manchester. Ela foi publicada no Manchester Courie, um jornal local, com o título
“On matter, living force, and heat”, em maio do mesmo ano (KARGON, 2010; CARDWELL,
1989).

Vamos analisar mais detalhadamente alguns trechos desse texto, pois ele apresenta o
embasamento teórico de Joule que o motivou a dar prosseguimento com as experiências sobre
o equivalente mecânico do calor. Utilizaremos a reimpressão que está na coletânea “The
scientific papers of James Prescott Joule”, publicada pela “The Physical Society of London”,
em Londres, no ano de 1884. Desse modo, o ano e as páginas que serão indicadas referem-se
a essa fonte. O autor inicia a sua argumentação afirmando que a impenetrabilidade e a
extensão geralmente são interpretadas como propriedades da matéria. Mas deveriam ser
reconhecidas como o que a define, pois qualquer coisa que não possua essas duas qualidades
não pode ser chamada de matéria. Entre o que considera como propriedades, ele enfatiza a
atração gravitacional juntamente com uma:

[...] outra propriedade muito notável apresentada em igual grau por todo o
tipo de matéria – sua perseverança em qualquer condição, seja de repouso ou
de movimento em que pode ser colocada. Essa faculdade recebeu o nome de
inércia, significando passividade, ou a incapacidade de qualquer coisa mudar
seu próprio estado. É em consequência dessa propriedade que um corpo em
repouso não pode ser colocado em movimento sem a aplicação de certa
quantidade de força nele, e também que uma vez que o corpo foi colocado
em movimento ele nunca irá parar por si mesmo, mas continuará a se mover
para frente, em linha reta, com uma velocidade uniforme, até atuar outra
força, a qual, se aplicada contrária à direção do movimento irá retardá-lo, se
na mesma direção irá acelerá-lo, e se lateralmente causará o movimento em
uma direção curva. No caso em que a força é aplicada na direção
contrária, mas em grau igual ao que o colocou em movimento, ele será
inteiramente privado de qualquer movimento, pode ter decorrido
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 79

qualquer tempo desde o primeiro impulso, e o corpo pode ter viajado


qualquer distância (JOULE, 1884, p. 266, grifo nosso, tradução nossa). 56

Na parte grifada, Joule dá a entender que uma força de mesma intensidade que fez um corpo
se movimentar é suficiente para colocá-lo em repouso novamente. De fato, de acordo com a
mecânica newtoniana, desprezando-se o atrito, isso é verdadeiro. Nesse caso, o mesmo tempo
utilizado para tirar o corpo do repouso até atingir uma velocidade v será gasto para fazer o
inverso. Ou seja, tem que ter a mesma aceleração em módulo. Mas, na sequência, ele mostra
que não era esse raciocínio que tinha em mente. Vejamos:

A partir desses fatos, é óbvio que a força empregada para colocar um


corpo em movimento é carregada pelo próprio corpo, e existe com ele e
nele, durante todo o percurso de seu movimento. Essa força possuída por
corpos em movimento é denominada pelos filósofos mecânicos vis viva ou
força viva. O termo pode ser considerado por alguns inadequado, pois,
propriamente dito, não há vida, mas é útil, a fim de distinguir a força
motriz da que é estacionária na sua natureza, como a força da
gravidade. Quando, portanto, nas partes subsequentes desta palestra eu
empregar o termo força viva, vocês entenderão que eu simplesmente quero
dizer a força dos corpos em movimento. A força viva dos corpos é regulada
pelo seu peso e pela velocidade de seu movimento. Vocês entenderão
facilmente que se um corpo de certo peso possuem certa quantidade de força
viva, duas vezes mais força viva será possuída por um corpo de duas vezes o
peso, desde que ambos os corpos se movem com igual velocidade [...]
(JOULE, 1884, p. 267, grifo nosso, tradução nossa). 57

56
Versão original: [...] another very remarkable property displayed in an equal degree by every kind of matter –
its perseverance in any condition, whether of rest or motion, in which it may have been placed. This faculty has
received the name of inertia, signifying passiveness, or the inability of any thing to change its own state. It is in
consequence of this property that a body at rest cannot be set in motion without the application of a certain
amount of force to it, and also that when once the body has been set in motion it will never stop of itself, but
continue to move straight forwards with a uniform velocity until acted upon by another force, which, if applied
contrary to the direction of motion, will retard it, if in the same direction will accelerate it, and if sideways will
cause it to move in a curved direction. In the case in which the force is applied contrary in direction, but equal
in degree to that which set the body first in motion, it will be entirely deprived of motion whatever time may
have elapsed since the first impulse, and to whatever distance the body may have travelled (JOULE, 1884, p.
266).
57
Versão original: From these facts it is obvious that the force expended in setting a body in motion is carried by
the body itself, and exists with it and in it, throughout the whole course of its motion. This force possessed by
moving bodies is termed by mechanical philosophers vis viva, or living force. The term may be deemed by
some inappropriate, inasmuch as there is no life, properly speaking, in question; but it is useful, in order to
distinguish the moving force from that which is stationary in its character, as the force of gravity. When,
therefore, in the subsequent parts of this lecture I employ the term living force, you will understand that I
simply mean the force of bodies in motion. The living force of bodies is regulated by their weight and by the
velocity of their motion. You will readily understand that if a body of a certain weight possess a certain
quantity of living force, twice as much living force will be possessed by a body of twice the weight, provided
both bodies move with equal velocity [...] (JOULE, 1884, p. 267).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 80

Se o primeiro trecho em destaque não tivesse uma explicação adicional, Joule poderia ser
criticado por ainda manifestar a teoria do ímpetus medieval ao falar que a força utilizada para
colocar um corpo em movimento permanece com ele durante todo o seu percurso. Justamente
quando a teoria de Newton, seu ilustre conterrâneo, já estava consolidada. Entretanto, o que
vem depois, mostra que ele se referia à conservação da “vis viva”. Talvez essa audácia de
intepretar os fenômenos físicos seguindo a ótica da mecânica escalar-analítica-lagrangiana,
em vez da mecânica vetorial-newtoniana, no próprio país em que essa última surgiu, tenha
contribuído para a dificuldade de aceitação de suas ideias 58. Em outras palavras, o que ele
afirma é que ao se exercer um esforço físico sobre um corpo gasta-se uma “força”, um
“poder” como sugeriu Martins (1984) no caso do Mayer. Essa “força”, no entanto, não deixa
de existir. Ela é transformada em “força viva” continuando com o corpo enquanto ele estiver
se movimentando. Um objeto também possui “força” quando ele está parado, como a força da
gravidade – caso contrário, de onde viria a “força viva” de uma pedra solta de uma
determinada altura. Ao final da citação, ele declara que a “força viva” depende do “peso” e da
velocidade do corpo. Um pouco antes, havia dito “[...] Esta atração dos corpos para a Terra
constitui o que é chamado o seu peso ou gravidade, e é sempre exatamente proporcional à
quantidade de matéria [...]” (JOULE, 1884, p. 265-266, tradução nossa). 59 Fica claro, então,
que ele sabia a diferença entre o “peso” e a “massa”, definida por alguns, naquele tempo,
como “quantidade de matéria”. Desse modo, o mais correto seria dizer que a “força viva”
depende da “quantidade de matéria”, não do “peso”. Quem sabe, por ser uma palestra pública,
ele simplificou a ideia para ser melhor compreendido. É mais simples dizer que um objeto é
mais pesado do que outro, do que dizer que ele tem mais massa. Depois ele afirma que não há
problemas em entender que a “força viva” é diretamente proporcional ao peso, dobrando-se
esse, dobra-se aquela. Mas:

[...] a lei pela qual a velocidade de um corpo regula a força viva não é
tão óbvia. À primeira vista poderia se imaginar que a força viva seria
simplesmente proporcional à velocidade, de modo que se um corpo se
movesse duas vezes mais rápido que outro, ele teria duas vezes o ímpeto ou
força viva. Isso, no entanto, não é o caso, pois se três corpos de igual peso
movem-se com as respectivas velocidades de 1, 2 e 3 milhas por hora, as

58
Isso também nos fez pensar em todos os alunos que são crucificados por seus profesores por dizerem
exatamente o que Joule pronunciou. A eles não é dada a chance de explicarem os seus argumentos, de serem
compreendidos. Nem a oportunidade de construírem uma explicação utilizando os termos científicos atuais que
façam sentido e tenham algum significado para eles. Os professores dão mais valor a palavra pronunciada do
que o raciocínido que está por detrás dela. No final desse trabalho, daremos continuidade a essa reflexão.
59
Versão original: “[...] This attraction of bodies towards the earth constitutes what is called their weight or
gravity, and is always exactly proportional to the quantity of matter [...]” (JOULE, 1884, p. 265-266).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 81

forças vivas serão encontradas proporcionais a esses números multiplicados


por eles mesmos, a saber, 1 x 1, 2 x 2, 3 x 3, ou 1, 4 e 9, os quadrados de 1,
2, e 3. Essa lei notável pode ser provada de várias maneiras. Uma bala
disparada de uma arma a certa velocidade irá perfurar um bloco de madeira
por apenas um quarto da profundidade que seria impelida se a velocidade
fosse duas vezes maior. Novamente, se uma bola de canhão encontra-se
voando a certa velocidade, quando impelida por uma carga de pólvora dada,
e for necessário carregar o canhão de modo a impelir a bola o dobro da
velocidade, seria necessário empregar quatro vezes o peso do pó usado
anteriormente. Assim, também, um trem que se encontra indo a 70 milhas
por hora possui 100 vezes o ímpeto, ou força viva, que ele tem quando viaja
a 7 milhas por hora (JOULE, 1884, p. 267, grifo nosso, tradução nossa). 60

Ao se expressar dessa maneira, percebe-se que ele não quis entrar na polêmica de qual é a
verdadeira medida de uma força. Como veremos adiante, um dos seus objetivos é mostrar as
várias situações em que a “vis viva” se conserva. Desse modo, a opção foi por evidenciar a
relação que existe entre a força exercida sobre um corpo, durante certo espaço percorrido,
com o quadrado de sua velocidade. Seguindo o seu raciocínio, ele afirma que um corpo pode
ser dotado de “força viva” de várias maneiras. Em uma colisão perfeitamente elástica, por
exemplo, um corpo ao colidir com outro de mesmo peso, mas em repouso, transfere a esse a
“força viva” que possui permanecendo, após o impacto, parado. Outros modos de
transferência de “força viva” acontecem por meio da ação da gravidade ao longo de certa
distância e por compressão de uma mola. Ao levantar-se um corpo do chão ou comprimi-lo a
uma mola comunica-se ao mesmo uma quantidade de “força viva”. Após esses exemplos,
Joule (1884, p. 268, grifo nosso, tradução nossa) enuncia a seguinte conclusão:

Vocês logo perceberão que a força viva de que estamos falando é uma das
mais importantes qualidades com que a matéria pode ser dotada, e, como tal,
seria absurdo supor que ela pode ser destruída, ou mesmo diminuída,
sem produzir o equivalente de atração ao longo de uma dada distância
da qual estamos falando. Vocês, portanto, se surpreenderão ao saber que,
até muito recentemente, a opinião universal tem sido de que a força viva
pode ser absolutamente e irremediavelmente destruída por opção de qualquer

60
Versão original: [...] the law by which the velocity of a body regulates its living force is not so obvious. At
first sight one would imagine that the living force would be simply proportional to the velocity, so that if a
body moved twice as fast as another, it would have twice the impetus or living force. Such, however, is not the
case; for if three bodies of equal weight move with the respective velocities of 1, 2, and 3 miles per hour, their
living forces will be found to be proportional to those numbers multiplied by themselves, viz. to 1 x 1, 2 x 2, 3
x 3, or 1, 4, and 9, the squares of 1, 2, and 3. This remarkable law may be proved in several ways. A bullet
fired from a gun at a certain velocity will pierce a block of wood to only one quarter of the depth it would if
propelled at twice the velocity. Again, if a cannon-ball were found to fly at a certain velocity when propelled
by a given charge of gunpowder, and it were required to load the cannon so as to propel the ball with twice that
velocity, it would be found necessary to employ four times the weight of powder previously used. Thus, also, it
will be found that a railway-train going at 70 miles per hour possesses 100 times the impetus, or living force,
that it does when travelling at 7 miles per hour (JOULE, 1884, p. 267).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 82

um. Assim, quando um peso cai para o chão, tem sido geralmente suposto
que a sua força viva é absolutamente aniquilada, e que o trabalho que
poderia ter sido gasto para elevá-lo até a altura que caiu foi inteiramente
jogado fora e desperdiçado, sem a produção de qualquer espécie de efeito
permanente. Podemos raciocinar, à priori, que tal destruição absoluta da
força viva não acontece, porque é manifestamente absurdo supor que os
poderes com que Deus dotou a matéria possam ser destruídos ou criados
pela ação do homem; mas não ficamos apenas com esse argumento isolado,
claro como deve ser a toda mente sem preconceitos. A experiência comum
de cada um lhe ensina que a força viva não é destruída pelo atrito ou
colisão dos corpos [...]. 61

Até esse ponto, Joule não se distanciou muito de Leibniz na análise da conservação da “vis
viva”. Mas ao analisar a aparente perda da “força viva” por meio do atrito, a diferença entre os
dois torna-se evidente. Conforme nos lembra Iltis (1971, p. 27, tradução nossa):

Leibniz apresenta importantes argumentos matemáticos que mv2 e não m|v|


era uma medida correta de alguma coisa que se conserva na natureza. Ele,
contudo, não apresenta argumentos convincentes de que a sua medida de
força também era conservada nas instâncias físicas que ele alegou para isso,
com a exceção das colisões elásticas. Em muitos de seus outros argumentos,
Leibniz não especifica, adequadamente, um sistema fechado conservativo, já
que os mecanismos de transferência de "força" entre as partes do sistema não
são especificados. 62

Assim como Mayer, e ao contrário de Leibniz, Joule introduziu a conversão da “vis viva” em
calor para explicar a sua crença de que não há aniquilamento da “força”. Podemos encerrar a
nossa análise do artigo com a passagem abaixo, que resume bem a principal mensagem do
autor:

61
Versão original: You will at once perceive that the living force of which we have been speaking is one of the
most important qualities with which matter can be endowed, and, as such, that it would be absurd to suppose
that it can be destroyed, or even lessened, without producing the equivalent of attraction through a given
distance of which we have been speaking. You will therefore be surprised to hear that until very recently the
universal opinion has been that living force could be absolutely and irrevocably destroyed at any one's option.
Thus, when a weight falls to the ground, it has been generally supposed that its living force is absolutely
annihilated, and that the labour which may have been expended in raising it to the elevation from which it fell
has been entirely thrown away and wasted, without the production of any permanent effect whatever. We
might reason, à priori, that such absolute destruction of living force cannot possibly take place, because it is
manifestly absurd to suppose that the powers with which God has endowed matter can be destroyed any more
than that they can be created by man’s agency; but we are not left with this argument alone, decisive as it must
be to every unprejudiced mind. The common experience of every one teaches him that living force is not
destroyed by the friction or collision of bodies [...].
62
Versão original: Leibniz presented important mathematical arguments that mv2 and not m|v| was a correct
measure of something conserved in nature. He did not however present convincing arguments that his measure
of force was also conserved in the physical instances he claimed for it, with the exception of elastic collisions.
In many of his other arguments Leibniz does not adequately specify a closed conservative system, since the
mechanisms for transferring "force" among the parts of the system are not specified.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 83

A regra geral, então, é que onde quer que a força viva é aparentemente
destruída, seja por fricção, percussão, ou qualquer outro meio similar, um
equivalente exato de calor é devolvido. O inverso dessa proposição também
é verdadeiro, ou seja, que o calor não pode ser reduzido ou absorvido sem a
produção de força viva, ou seu equivalente de atração pelo espaço. Assim,
por exemplo, na máquina a vapor, verifica-se que a potência é adquirida à
custa do calor do fogo, isto é, que o calor provocado pela combustão do
carvão é maior, pois há uma parte que não foi utilizada para produzir e
manter a força viva da máquina. É certo, porém, observar que isso ainda não
tem sido demonstrado pela experiência [...] Todos três, portanto – a saber,
calor, força viva e atração pelo espaço (eu também poderia adicionar
luz, consistente com o escopo da presente palestra) – são mutuamente
conversíveis um no outro. Nessas conversões nada é perdido. A mesma
quantidade de calor irá sempre ser convertida na mesma quantidade de força
viva. Podemos, portanto, expressar a equivalência em linguagem clara,
aplicável em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Assim, a
atração de 817 lb pelo espaço de um pé é equivalente a, e convertível em, a
força viva possuída por um corpo com o mesmo peso de 817 lb quando se
desloca com a velocidade de oito pés por segundo, e essa força viva é
novamente convertível em quantidade de calor que pode aumentar a
temperatura de uma libra de água de um grau Fahrenheit [...] (JOULE, 1884,
p. 270-271, grifo nosso, tradução nossa). 63

Não há muita novidade para quem interpretar o que foi escrito sobre o prisma da ciência atual.
No entanto, naquele tempo, essas afirmações causaram um estranhamento, inclusive para
Kelvin, o maior defensor das ideias de Joule. Kargon (2010, p. 54) nos infoma que a primeira
referência publicada sobre os trabalhos de Joule apareceu em uma nota de rodapé em um
artigo lido por Kelvin na Cambridge Philosophical Society, em junho de 1848. O título do
artigo era “On an absolute thermometric scale founded on Carnot’s theory of the motive
power of heat and calculated from Regnaut´s observations” 64. A certa altura, ao comentar

63
Versão original: The general rule, then, is, that wherever living force is apparently destroyed, whether by
percussion, friction, or any similar means, an exact equivalent of heat is restored. The converse of this
proposition is also true, namely, that heat cannot be lessened or absorbed without the production of living
force, or its equivalent attraction through space. Thus, for instance, in the steam-engine it will be found that the
power gained is at the expense of the heat of the fire, – that is, that the heat occasioned by the combustion of
the coal would have been greater had a part of it not been absorbed in producing and maintaining the living
force of the machinery. It is right, however, to observe that this has not as yet been demonstrated by
experiment [...] All, three, therefore – namely, heat, living force, and attraction through space (to which I might
also add light, were it consistent with the scope of the present lecture) – are mutually convertible into one
another. In these conversions nothing is ever lost. The same quantity of heat will always be converted into the
same quantity of living force. We can therefore express the equivalency in definite language applicable at all
times and under all circumstances. Thus the attraction of 817 lb. through the space of one foot is equivalent to,
and convertible into, the living force possessed by a body of the same weight of 817 lb. when moving with the
velocity of eight feet per second, and this living force is again convertible into the quantity of heat which can
increase the temperature of one pound of water by one degree Fahrenheit [...] (JOULE, 1884, p. 270-271).
64
Ele foi publicado nos Proceedings of the Cambridge Philosophical Society, em junho 1848; no Philosophical
Magazine, em outubro, 1848; e reimpresso no Mathematical and Physical Papers of William Thomson
(Cambridge University Press, Cambridge, 1882), v. 1, p. 100-106. Utilizaremos uma tradução feita para o
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 84

sobre a relação existente entre a potência motriz e o calor nas máquinas térmicas, ele afirma
que “[...] a conversão de calor (ou calórico) em efeito mecânico é provavelmente impossível,4
certamente ainda não descoberta.5 [...]” (THOMSON, 2007a, p. 488). Na nota 4, encontra-se a
seguinte explicação:

Essa opinião parece ser quase universalmente seguida por aqueles que têm
escrito sobre esse assunto. Uma opinião contrária, entretanto, foi defendida
por Mr. Joule, de Manchester; algumas descobertas muito notáveis que ele
fez com referência à geração de calor pela fricção de fluidos em movimento
e alguns experimentos conhecidos com máquinas eletro-magnéticas parecem
indicar uma conversão real de efeito mecânico em calórico. Entretanto, não
apresenta evidência de experimento, no qual a operação contrária é exibida,
mas deve-se confessar que ainda há muito mistério envolvido em relação a
essas questões fundamentais de filosofia natural (THOMSON, 2007a, p.
488).

Mas vimos anteriormente que o apoio de Kelvin às ideias de Joule foi decisivo para o seu
reconhecimento científico. Então, como essa relutância de Kelvin em acreditar que é possível
converter calor em trabalho foi superada? A resposta a essa pergunta é muito importante, pois
a resolução desse impasse foi decisiva para a definição final da conservação da energia na
forma que nos é apresentada pelas bibliografias de Física do ensino médio ou nas disciplinas
de Física básica em cursos universitários.

3.7 A CONSERVAÇÃO DA ENERGIA NA FORMA COMO A CONHECEMOS

Kelvin estava inclinado a aceitar a teoria de Sadi Carnot sobre o funcionamento das máquinas
térmicas. O engenheiro francês, ao refletir sobre quais circunstâncias o fluxo de calórico 65 de
um corpo quente para um corpo frio daria origem ao máximo rendimento possível nessas
máquinas, fez uma comparação com a potência desenvolvida em uma roda hidráulica. Do
mesmo modo que em uma roda hidráulica a potência depende da quantidade e da altura da
queda d’água, na máquina térmica a potência motriz depende da quantidade de calórico e da
diferença entre as temperaturas dos reservatórios térmicos. Nos dois casos, tanta a água
quanto o calórico se conservam. Contudo, isso entra em contradição com a crença de Joule de
que a quantidade de trabalho gerado em um motor térmico corresponde a uma quantidade de
calor consumido proporcional ao efeito mecânico produzido. Esse foi o cerne da discordância

português em uma edição comemorativa da Revista Brasileira de Ensino de Física ao centernário da morte de
Kelvin, em 2007. A tradução foi feita por Wilma Machado Soares Santos e Penha Maria Cardoso Dias.
65
Calor entendido como substância, esse será o assunto da próxima seção.
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 85

de Kelvin aos trabalhos de Joule (CROPPER, 2001; THOMPSON 1910; SMITH, 1977). De
acordo com Cropper (2001, p. 81, tradução nossa):

Era a afirmação de Joule da conversão de calor em trabalho, em uma


máquina térmica, que incomodava Thomson. Em 1847, Thomson não tinha
mais fé na doutrina do calórico, de que o calor era um fluido, mas ele não
viu nenhuma razão para descartar outro axioma da teoria do calórico, de que
o calor se conserva. Para Thomson, e seus antecessores, incluindo Carnot,
isso significava que um sistema, em um determinado estado, tinha uma
quantidade fixa de calor. Se o estado for determinado por certo volume V e
temperatura t, o calor Q contido no sistema é dependente apenas de V e t.
Matematicamente, o calor é uma função de estado, o que poderia ser escrito
Q(V, t), mostrando a dependência rigorosa das duas variáveis determinantes
do estado, V e t. Para Thomson, em 1847, esse princípio era uma parte
essencial da teoria de Carnot, e "para negá-lo, teria que derrubar toda a teoria
do calor, em que é o princípio fundamental". 66

Em 1849, no artigo “An account of Carnot's theory of the motive power of heat; with
numerical results deduced from Regnault's experiments on steam”, Kelvin nos mostra um
panorama de suas reflexões sobre esse assunto. Ao fazer um breve resumo da teoria de
Carnot, ele utiliza de uma nota de rodapé para formular o seguinte questionamento:

Quando "agente térmico" é, desse modo, gasto em condução de calor ao


longo de um sólido, o que acontece com o efeito mecânico que ele poderia
produzir? Nada pode ser perdido nas operações da natureza – nenhuma
energia 67 pode ser destruída. Qual efeito então é produzido no lugar do
efeito mecânico que é perdido? Uma teoria perfeita do calor
imperativamente exige uma resposta a essa pergunta, ainda nenhuma
resposta pode ser dada no estado atual da ciência [...] (THOMSON, 1849, p.
547-548, grifo nosso, tradução nossa). 68

66
Versão original: It was Joule’s second claim, the conversion of heat to work in a heat engine, that disturbed
Thomson. In 1847, Thomson no longer had faith in the caloric doctrine that heat was a fluid, but he saw no
reason to discard another axiom of the caloric theory, that heat was conserved. For Thomson and his
predecessors, including Carnot, this meant that a system in a certain state had a fixed amount of heat. If the
state was determined by a certain volume V and temperature t, the heat Q contained in the system was
dependent only on V and t. Mathematically speaking, heat was a state function, which could be written Q(V, t),
showing the strict dependence on the two state-determining variables V and t. For Thomson in 1847, this
principle was an essential part of Carnot’s theory, and “to deny it would be to overturn the whole theory of
heat, in which it is the fundamental principle”.
67
Essa foi é a primeira vez que Kelvin utilizou o termo “energia” como sinônimo das palavras “força” e “poder”,
que vinham sendo utilizadas até o momento (SMITH, 1977).
68
Versão original: When "thermal agency" is thus spent in conducting heat through a solid, what becomes of the
mechanical effect which it might produce? Nothing can be lost in the operations of nature – no energy can be
destroyed. What effect then is produced in place of the mechanical effect which is lost? A perfect theory of
heat imperatively demands an answer to this question; yet no answer can be given in the present state of
science [...] (THOMSON, 1849, p. 547-548).
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 86

A sua pergunta não podia ser respondida adequadamente por Joule, pois parte do calor gasto
na condução deveria produzir algum efeito mecânico, o que não era observado. Kelvin
sinalizava com isso que, para aceitar a conversão de calor em efeito mecânico, precisava
entender antes o que acontecia com todo o calor não aproveitado nos fenômenos térmicos.
Após intensos debates com outros personagens do meio científico que também se
interessavam por esse tema, como Rudolf Julius Emanuel Clausius (1822-1888) e William
John Macquorn Rankine (1820-1872), Kelvin se rende à teoria dinâmica do calor (CROPPER,
2001; THOMPSON 1910; SMITH, 1977). Desse modo, em 1852, em seu artigo “On a
universal tendency in nature to the dissipation of mechanical energy” 69, ele já trata do
“desperdício” de calor como um caso de transformação de energia em processos irreversíveis:

O objetivo da presente comunicação é chamar atenção para uma remarcável


conseqüência que se segue da proposição de Carnot, [a saber] que há um
absoluto desperdício de energia mecânica disponível ao homem, quando
calor é permitido passar de um corpo para outro a temperatura menor, por
qualquer meio que não preencha seu [de Carnot] critério de uma “máquina
termodinâmica perfeita”, estabelecido, sob novos fundamentos, na teoria
dinâmica do calor. Como é muito certo que só o Poder Criador pode ou
trazer à existência ou aniquilar energia mecânica, o “desperdício”
mencionado não pode ser aniquilação, mas deve ser alguma transformação
de energia. Para explicar a natureza dessa transformação, é conveniente, em
primeiro lugar, dividir os suprimentos de energia mecânica em duas classes
– estático e dinâmico. Uma quantidade de pesos a uma altura, prontos para
descer e realizar trabalho, quando se desejar, um corpo eletrificado, uma
quantidade de combustível contêm suprimentos de energia mecânica do tipo
estático. Massas de matéria em movimento, um volume de espaço pelo qual
estão passando ondulações da luz ou calor radiante, um corpo que tenha
movimentos térmicos entre suas partículas (isto é, não infinitamente frio)
contêm suprimentos de energia mecânica do tipo dinâmico (THOMSON,
2007b, p. 491).

Ainda no mesmo artigo, ele começa a utilizar o termo “dissipação de energia” para analisar
alguns fenômenos físicos. Por exemplo, ao dizer que quando “[...] calor é difundido por
condução, há uma dissipação de energia mecânica e perfeita restauração é impossível”
(THOMSON, 2007b, p. 491). O encadeamento dessas reflexões entre a comunidade científica
formará a base em que se apoiarão outros pensadores responsáveis pela elaboração do
conceito de “entropia” e da “Física estatística”. Apesar de ser uma história muita empolgante

69
Ele foi publicado nos Proceedings of the Royal Society of Edinburgh, 19 abril 1852; no Philosophical
Magazine 304 (1852), série 4, v. 4; e reimpresso no Mathematical and Physical Papers of William Thomson
(Cambridge University Press, Cambridge, 1882), v. 1, p. 511-514. Utilizaremos uma tradução feita para o
português em uma edição comemorativa da Revista Brasileira de Ensino de Física ao centernário da morte de
Kelvin, em 2007. A tradução foi feita por Penha Maria Cardoso Dias
3 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE ENERGIA 87

e de grande valor epistemológico, didático e pedagógico, não percorreremos esse caminho,


por não contribuir para o principal objetivo de nossa pesquisa 70. Apenas gostaríamos de
esclarecer que no ano seguinte da publicação desse artigo de Kelvin, Rankine (1853) propôs
uma nova terminologia para as expressões “energia mecânica do tipo estático” e “energia
mecânica do tipo dinâmico”, chamando-as de “potencial ou latente” e “atual ou sensível”,
respectivamente. Segundo Coelho (2007, p. 975), Kelvin aceitou o termo “energia potencial”,
mas junto com Tait publicou em 1862 um artigo em uma revista não científica – Good Words
– em que substituiu o termo “energia atual” por “energia cinética”. Para responder a uma
possível pergunta do por que pararmos com o estudo do desenvolvimento do princípio da
conservação da energia nesse ponto, nos apoiamos em Elkana. Referindo-se ao artigo de
Rankine (1853), o autor nos esclarece que nele aparece uma das primeiras formulações
corretas e modernas do princípio de conservação da energia, sem fazer, entretanto, qualquer
menção a um pesquisador ou trabalho anterior. De acordo com Elkana (1970, p. 59, grifo
nosso, tradução nossa):

[...] Rankine era geralmente muito escrupuloso em seus agradecimentos e


muito ciente de qualquer tipo de inovação. Como explicar, então, essa
omissão? Uma possível explicação é que na mente de Rankine, como nas
mentes de Joule, Thomson, Helmholtz e Clausius, esse princípio
rapidamente apareceu auto-evidente quanto a teoria dinâmica do calor
foi estabelecida na forma final, e as aparentes discrepâncias entre as
teorias de Joule e Carnot foram removidas.71

Desse modo, podemos encerrar por aqui a nossa análise sobre o desenvolvimento do conceito
físico de energia e de seu princípio de conservação. Deve ter ficado claro ao leitor a relação
histórica que existe entre esse conceito e o de calor. O que confirma a nossa justificativa de
estudá-lo primeiro. Mas agora é necessário concentrarmos os nossos esforços sobre o conceito
físico de calor, analisando tanto a sua evolução histórica quanto os estudos realizados sobre as
concepções atuais que se tem do mesmo. Comecemos pelo seu desenrolar histórico.

70
Ao leitor interessado nesse assunto, recomendamos os trabalho de Santos (2009) e Silva (2009).
71
Versão original: [...] Rankine was generally very scrupulous in his acknowledgements and very much aware of
any kind of innovation. How is then one to explain this ommission? One possible explanation is that in
Rankine’s mind as in the minds of Joule, Thomson, Helmholtz and Clausius this principle suddenly appeared
as self-evident when the dynamical theory of heat was established in a final form, and the seeming
discrepancies between Joule and Carnot theories were removed.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR

4.1 DELIMITANDO O ESPAÇO E O TEMPO DE ANÁLISE

O fogo sempre esteve presente na vida do homem despertando medo, respeito e admiração.
Há evidências de sua utilização, de modo voluntário, a partir do “Homem de Neanderthal”,
cerca de 300.000 mil anos atrás. Produzido, possivelmente, por atrito entre galhos ou por
choque entre pedras cujas faíscas provocadas incendiavam palhas secas. A partir dessa época,
não se conhece nenhuma sociedade que tenha vivido sem a capacidade de manuseá-lo. Ao
contrário da linguagem e do uso de ferramentas em que há sinais rudimentares de sua
presença em outros animais, a habilidade para produzir e manusear o fogo é uma
exclusividade de nossa espécie. Essa aquisição modificou os nossos hábitos alimentares, além
de ter possibilitado uma emigração da África para as zonas mais frias, como a Europa e a
Ásia. Sem o domínio sobre o fogo, o homem não teria fundido o cobre e o estanho, criando a
liga de bronze. Dessa forma, não teria conseguido confeccionar diversos tipos de ferramentas,
armaduras, armas brancas e instrumentos agrícolas. Ou seja, o desenvolvimento da tecnologia
– e consequentemente das cidades – não teria acontecido se o homem não tivesse controlado o
fogo. A civilização moderna não exisitiria do modo que a conhecemos (HAWKES, 1963). O
homem sempre colocou o fogo em lugar de destaque em suas representações sobre a natureza.
Em várias culturas encontramos lendas e mitos em que ele está presente. No entanto:

[...] Parece que foram os gregos antigos os primeiros a se preocuparem com


sua explicação. Assim é que, o filósofo Platão (c.428-c.348) em seu livro
Timaeus acreditava que o fogo heraclitano tinha a forma tetraédrica. Já os
filósofos atomistas Demócrito de Abdera (c.470-c.380) e Leucipo de Mileto
(c.460-c.370) admitiam que o átomo de fogo era esférico. Contudo, para o
filósofo Aristóteles de Estagira (384-322), os elementos essenciais do
Universo seriam: frio (tò psychrón), quente (tò thermón), úmido (tò hygrón)
e seco (tò xerón), sendo o fogo resultado da mistura entre o quente e o seco
(BASSALO, 1992, p. 910).

Além dessas considerações filosóficas, pode-se estudar o fogo sobre vários aspectos, pois ele
participa de muitos fenômenos físicos e químicos. Por exemplo, a sua presença, ou ausência,
muito mais do que a do Sol, fez o homem pensar sobre os processos de aquecimento e de
resfriamento. O nosso interesse nesta seção é entender alguns detalhes sobre o
desenvolvimento científico da compreensão desses processos, bem como dos acontecimentos
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 89

relacionados a eles. Apesar de a primeira utilização consciente do fogo ter ocorrido em


tempos remotos, a nossa análise terá início a partir do momento que os conceitos de calor e
temperatura começaram a ser diferenciados e os primeiros estudos quantitativos sobre as
ocorrências que envolvem aquecimento e resfriamento foram realizados. Coincidindo com o
conceito de energia, centralizaremos a nossa atenção para o mundo ocidental, no período que
vai de 1600 a 1900. Desse modo, conseguiremos abordar tanto a primeira teoria científica
mais elaborada sobre o conceito de calor quanto os primóridos da teoria aceita atualmente.

4.2 A ASCENSÃO DA TEORIA DO CALÓRICO

4.2.1 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE JOSEPH BLACK

Estudos quantitativos sobre os fenômenos relacionados com o aquecimento e o resfriamento


dos materiais somente foram possíveis depois da invenção do termômetro. Antes foram
construídos vários dispositivos de característica lúdica, conhecidos como “termoscópios”, que
mostravam a relação existente entre o aquecimento e a expansão de um fluido – geralmente o
ar ou a água –, mas sem ainda uma escala de medida. Segundo Bassalo (1992, p. 852):

Muito embora alguns médicos dos primeiros séculos de nossa Era Cristã
hajam tentado representar numericamente os diversos graus de temperatura
entre o quente e o frio, foi somente na Idade Moderna (1453-1789) que
foram construídos aparelhos cada vez mais precisos, objetivando medir esses
graus de temperatura. Com efeito, o primeiro deles foi construído pelo físico
italiano Galileu Galilei (1564-1642), em 1592. Era um tubo de vidro, com
uma extremidade esférica, no qual era depositada água colorida (ou espírito
de vinho) até sua metade, e o bulbo colocado para cima, em um recipiente
contendo a mesma água colorida. Dessa forma, a coluna de água no tubo se
moveria para cima e para baixo, em conseqüência da expansão térmica do ar
contido no tubo. No entanto, esse dispositivo apresentava duas limitações.
Como ele estava em contato com o ar, a pressão atmosférica, até então
desconhecida, alterava profundamente os resultados. Por outro lado, como
Galileu não utilizou nenhuma escala termométrica, o seu aparelho era
simplesmente um termoscópio.

A partir desse ressurgimento do termoscópio com Galileu, novos aperfeiçoamentos foram


introduzidos. O médico italiano Santorio Santorio (1561-1636), que era professor de medicina
na Universidade de Pádua e colega de Galileu, aplicou o termoscópio para detectar a febre em
seus pacientes. Reconhecendo a necessidade de pontos de medida no aparelho, registrou o
nível que a coluna de água do tubo atingia quando em contato com o gelo fundido e com a
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 90

chama de uma vela; em seguida dividiu o intervalo em 110 partes iguais. O soberano italiano
Fernando II de Toscana (1610-1670), por volta de 1644, teve a ideia de construir um
termômetro com as extremidades hermeticamente fechadas. Evitando, desse modo, a
influência da pressão atmosférica nas medidas. Além disso, ele utilizou o álcool como
substância termométrica, pois o seu ponto de congelamento é mais baixo do que o da água
(BASSALO, 1992; ROLLER, 1950). Com a popularidade crescente do uso dos termômetros a
escolha de novas escalas:

[...] bem como a construção de novos tipos de termômetros continuaram no


século XVIII. Por exemplo, em 1772, o suíço Jean-André Deluc (1727-
1817), registrou em seu livro Recherches sur lês Modifications de
atmosphère, cerca de 60 escalas; porém, dessas, somente as escalas
Fahrenheit, Réamur e Celsius sobreviveram até o nosso século [...]
(BASSALO, 1992, p. 856)

O aperfeiçoamento do termômetro possibilitou a diferenciação entre os conceitos de


temperatura e calor por Joseph Black (1728-1799). Black iniciou o curso de medicina na
Universidade de Glasgow, mas depois se transferiu para a Universidade de Edinburgh, pois
ela tinha mais prestígio nessa área, formando-se em 1754. Em 1756, ele retornou à Glasgow
como professor, fazendo as suas principais descobertas sobre a natureza do calor entre os anos
de 1759 e 1762. De acordo com Roller (1950, p. 17-18, tradução nossa):

Até Black fazer suas descobertas, não havia distinção clara na mente das
pessoas entre os conceitos de "quantidade de calor" e "grau de aquecimento",
ou "temperatura". A ideia qualitativa de "calor" como "alguma coisa"
relacionada com fenômenos térmicos, é claro que há muito tempo existia. O
simples fato de que um objeto perto do fogo aquece, o que certamente era
conhecido desde o tempo quando o homem descobriu o fogo, deve ter
sugerido que algo passa do fogo para o objeto. Mas, para essas primeiras
pessoas, esse algo que passa bem que poderia ter sido pensado como sendo a
temperatura, ou o grau de aquecimento, em si mesmo; ou, novamente,
poderia ser alguma coisa separada, chamada de "calor", o calor e o
consequente aumento no aquecimento do objeto parecem desempenhar os
respectivos papéis de causa e efeito. 72

72
Versão original: Until Black made his discoveries, there was no clear distinction in people's minds between the
concepts of "quantity of heat" and "degree of hotness," or "temperature." The qualitative idea of "heat" as a
"something" concerned with thermal phenomena had long existed, of course. The simple fact that an object
close to a fire warms up, which surely was known from the time when man discovered fire, must have
suggested that something passes from the fire to the object. But to these early people, this something that
passes might well have been thought to be temperature, or degree of hotness, itself; or, again, it might be a
separate something, called "heat," this heat and the resulting increase in hotness of the object seeming to play
the respective roles of cause and effect.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 91

Francis Bacon, em 1620, e os membros da Academia Florentina, por volta de 1650,


mostraram evidências para distinguir entre temperatura e calor. Mas foi Black que fez a
distinção clara, concebendo o calor como uma quantidade Física mensurável, diferenciando-o
da quantidade indicada por um termômetro, embora houvesse uma relação entre elas. Ele
nunca publicou suas descobertas, apesar de discuti-las em suas conferências acadêmicas. Seus
manuscritos foram reunidos e publicados, após sua morte, por John Robison, um de seus
estudantes e assistente, em 1803, com o título “Lectures on the elements of chemistry”. A
parte relacionada ao estudo do calor ocupa 225 páginas, mas Roller (1950) traz algumas
passagens em que Black apresenta as suas principais ideias a esse respeito. A certa altura do
texto, Black afirma que, mesmo sem a ajuda de termômetros, não é difícil de perceber que o
calor se difunde do corpo mais quente para o mais frio, até ser distribuído de tal forma que se
atinja um estado de equilíbrio.

Esse equilíbrio é um tanto curioso. Descobrimos que, quando toda a ação


mútua é terminada, um termômetro aplicado a qualquer um dos corpos sofre
o mesmo grau de expansão. Portanto, a temperatura de todos eles é a mesma.
Nenhum conhecimento anterior, da peculiar relação de cada corpo ao calor,
poderia ter nos garantido isso, e devemos a descoberta inteiramente ao
termômetro. Desse modo, devemos adotar como uma das leis mais gerais do
calor, o princípio de que todos os corpos comunicando-se livremente com
outro, e expostos a nenhuma desigualdade de ação externa, adquirem a
mesma temperatura, como indicado por um termômetro. Todos adquirem a
temperatura do meio circundante (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p.
20, tradução nossa). 73

O autor prossegue dizendo que ao se dispor vários objetos de diferentes temperaturas,


tamanhos e materiais em uma sala, sem a presença do fogo ou do Sol, o calor será
comunicado a partir do mais quente para o mais frio. Após esperar o tempo necessário, todos
indicarão a mesma leitura em um termômetro. O que para muitos, nesse caso, indica uma
“igualdade de calor entre corpos diferentes”, para ele representa apenas um “equilíbrio de
calor”. Nesse ponto, Black (1803 apud Roller, 1950, p. 21, grifo nosso, tradução nossa)
introduz a sua interpretação original para o fenômeno:

73
Versão original: This equilibrium is somewhat curious. We find that, when all mutual action is ended, a
thermometer applied to any one of the bodies undergoes the same degree of expansion. Therefore the
temperature of them all is the same. No previous acquaintance with the peculiar relation of each body to heat
could have assured us of this, and we owe the discovery entirely to the thermometer. We must therefore adopt,
as one of the most general laws of heat, the principle that all bodies communicating freely with one another,
and exposed to no inequality of external action, acquire the same temperature, as indicated by a thermometer.
All acquire the temperature of the surrounding medium (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 20).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 92

A natureza desse equilíbrio não foi bem compreendida, até indiquei um


método de investigá-la. Dr. Boerhaave 74 imaginou que quando ele é
alcançado, há uma quantidade igual de calor em cada igual volume de
espaço, porém cheio de diferentes corpos; e Professor Musschenbroeck 75, em
sua Physica, expressou sua opinião para o mesmo propósito: “Est enim ignis
aequaliter per omnia, non admodum magna, distributus, ita ut in pede cubico
auri et aëris et plumarum, par ignis sit quantitas.” [“O calor é distribuído por
todos (os corpos), não proporcional ao seu (peso), de modo que um pé
cúbico de ouro, de ar e de penas, terá a mesma quantidade de calor.”] A
razão que eles dão para essa opinião é que, ao ser aplicado em qualquer
desses corpos, o termômetro dá a mesma leitura.

Mas essa é uma visão muito precipitada do assunto. Está se confundindo a


quantidade de calor em diferentes corpos com suas intensidades
[temperatura], embora seja claro que essas são duas coisas diferentes, e
devem sempre ser distinguidas, quando estamos a pensar na
distribuição de calor. . . . 76

Black também era contrário à suposição de que a quantidade de calor necessária para
aumentar de um mesmo valor a temperatura de objetos feitos com materiais diferentes é
diretamente proporcional às suas quantidades de matéria, ou aos seus pesos, ou, caso os
volumes sejam iguais, às suas densidades. Segundo o autor:

Essa opinião foi me sugerida por um experimento descrito pelo Dr.


Boerhaave em seu Elementa Chemice [1732]. Após relatar uma experiência
com a mistura de água quente e fria que Fahrenheit fez conforme o seu
desejo, Boerhaave também nos diz que Fahrenheit agitou juntos mercúrio e
água, de temperaturas iniciais diferentes 77. Dos cálculos do Médico, é
bastante claro que o mercúrio, embora tenha mais de 13 vezes a densidade

74
“[...] Hermann Boerhaave foi um contemporâneo do Newton. Ele foi professor de Medicina em Leyden, na
Holanda, tendo publicado, em 1732, um dos primeiros livros-texto de química que tratava sobre a coisa do
calor [...]” (MEDEIROS, 2009, p. 08-09).
75
“[...] Pieter van Musschenbroek foi professor de filosofia natural - como era chamada a física naquela época -
também em Leyden e escreveu extensamente sobre física, no século XVIII. Ele foi um dos pioneiros tanto no
ensino da física experimental, quanto também como autor dos primeiros livros didáticos de física de que se tem
notícia” (MEDEIROS, 2009, p. 09).
76
Versão original: The nature of this equilibrium was not well understood until I pointed out a method of
investigating it. Dr. Boerhaave imagined that when it obtains, there is an equal quantity of heat in every equal
volume of space, however filled up with different bodies; and Professor Musschenbroeck , in his Physica,
expressed his opinion to the same purpose: “Est enim ignis aequaliter per ornnia, non admodum magna,
distributus, ita ut in pede cubico auri et aëris et plumarum, par ignis sit quantitas.” [“For the heat is distributed
through all (the bodies), not in proportion to their (weight), so that in a cubic foot of gold and of air and of
feathers, there will be an equal quantity of heat.”] The reason they give for this opinion is that, to whichever of
those bodies the thermometer be applied, it gives the same reading. But this is taking a very hasty view of the
subject. It is confounding the quantity of heat in different bodies with its intensity [temperature], though it is
plain that these are two different things, and should always be distinguished, when we are thinking of the
distribution of heat. . . .
77
De acordo com Roller (1950, p. 24), Fahrenheit, aparentemente, nunca publicou um relato dessas experiências
de mistura que Boerhaave lhe atribuiu.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 93

da água, tinha menos efeito no aquecimento ou esfriamento da água, com a


qual ele foi misturado, do que teria sido produzido por igual volume de água.
Ele diz expressamente que o mercúrio, ao ser aplicado quente na água fria,
ou frio na água quente, nunca produziu mais efeito no aquecimento ou
resfriamento do que teria sido produzido por um volume igual de água
misturado com água da mesma temperatura inicial do mercúrio, mas com
apenas dois terços de seu volume. Acrescenta que é necessário misturar três
volumes de mercúrio com dois de água a fim de produzir a mesma
temperatura média que é produzida pela mistura de iguais volumes água
quente e fria (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 23, tradução nossa). 78

Ilustrando o que disse, Black imagina alguns exemplos numéricos. Primeiro supõe uma
mistura de certo volume de água a 100 °F com um mesmo volume de mercúrio a 150 °F.
Nesse caso, a temperatura de equilíbrio não será 125 °F, como muitos pensam, e sim 120 °F.
Rematando o seu raciocínio, ele afirma que embora a água tenha variado a sua temperatura
em 20 °F e o mercúrio em 30 °F, a quantidade de calor que o mercúrio perdeu é a mesma que
água ganhou 79. Isso mostra que a mesma quantidade de calor tem mais efeito para aquecer o
mercúrio do que igual volume de água. Assim, uma pequena quantidade é suficiente para
aumentar a temperatura do mercúrio num mesmo número de graus do que da água. O que o
leva a concluir que “[...] Mercúrio, portanto, tem menos capacidade para calor (se me é
permitido usar essa expressão) que tem a água; uma menor quantidade de calor é necessária
para elevar sua temperatura no mesmo número de graus” (BLACK, 1803 apud ROLLER, p.
24, tradução nossa) 80. Percebe-se, em sua análise, a utilização de duas hipóteses que estarão
presentes em todas as suas explicações posteriores sobre os experimentos que envolvam
misturas de líquidos, a saber:

78
Versão original: This opinion was first suggested to me by an experiment described by Dr. Boerhaave in his
Elementa Chemice [1732]. After relating an experiment on the mixing of hot and cold water which Fahrenheit
made at his desire, Boerhaave also tells us that Fahrenheit agitated together quicksilver [mercury] and water of
initially different temperatures. From the Doctor's account, it is quite plain that the quicksilver, though it has
more than 13 times the density of water, had less effect in heating or cooling the water with which it was
mixed than would have been produced by an equal volume of water. He says expressly that the quicksilver,
whether it was applied hot to cold water, or cold to hot water, never produced more effect in heating or cooling
an equal volume of the water than would have been produced by water of the same initial temperature as the
quicksilver, and only two-thirds of its volume. He adds that is was necessary to mix three volumes of
quicksilver with two of water in order to produce the same middle temperature that is produced by mixing
equal volumes of hot and cold water (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 23).
79
Segundo Roller (1950, p. 24), o mesmo resultado foi obtido por Brook Taylor, em 1723, ao misturar, em
experiências semelhantes, volumes desiguais de água fria e quente. Ele concluiu que a temperatura da mistura
pode ser prevista com sucesso supondo-se que o calor ganho pelo líquido frio é igual ao perdido pelo líquido
quente.
80
Versão original: [...] Quicksilver, therefore, has less capacity for heat (if I may be allowed to use this
expression) than has water; a smaller quantity of heat is needed to raise its temperature by the same number of
degrees (BLACK, 1803 apud ROLLER, p. 24).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 94

[...] (i) que o calor não é nem criado nem destruído durante a mistura e
(ii) que deve-se levar em conta qualquer calor perdido ou ganho do ar ou de
outros corpos em contato com a mistura. A primeira dessas hipóteses é
chamada de "princípio da conservação do calor." Como veremos, no
devido tempo, na época de Black, esse princípio parecia ser plausível,
havendo a crença geral que o calor era uma substância material, tendo
muitas das propriedades da matéria ordinária, e, desde o tempo dos gregos,
a ideia de que a matéria era incriável e indestrutível persistiu [...]
(ROLLER, 1950, p. 25, grifo nosso, tradução nossa). 81

A concepção do calor como uma substância estava em consonância com o conceito filosófico
de conservação da matéria aceito na época. Nos experimentos com misturas, o calor não
poderia ser criado nem destruído, a quantidade de calor permaneceria constante. A mesma
suposição a respeito do “princípio de conservação do calor” já havia sido feita por Brook
Taylor (1685-1731) em seus experimentos que envolviam misturas de volumes desiguais de
água quente e fria. O complemento de Black foi generalizar a ideia para quaisquer misturas de
diferentes líquidos e volumes. Desse modo, ele mostrou que, apenas para misturas de um
mesmo líquido, a quantidade de calor necessária para aumentar ou diminuir de um mesmo
valor a temperatura das substâncias envolvidas é diretamente proporcional às suas
quantidades de matéria, ou aos seus pesos, ou, sendo os volumes iguais, às suas densidades.
Caso os corpos sejam de materiais diferentes, para uma mesma quantidade de calor recebida
ou cedida, quem tiver a menor “capacity for heat” irá variar mais a sua temperatura. De
acordo com Roller (1950, p. 27-28), Black não deixou em seus escritos a descrição de como
encontrou a “capacity for heat” de algumas substâncias. Mas Robinson declara nas “Notes
and Observations by the Editor” que esses experimentos foram realizados antes de 1765 junto
com William Irvine (1743-1787), também seu antigo aluno e assistente. Antes da escolha do
termo “capacity for heat”, eles utilizaram as expressões “affinity for heat”, “faculty for
receiving heat” e “appetite for heat”. Todavia, vários outros nomes foram dados por outros
cientistas até que o físico sueco Johann Carl Wilcke (1732-1796) o designou por “specific
heat”82, sendo o termo mais amplamente utilizado hoje em dia (ROLLER, 1950).

81
Versão original: [...] (i) that heat is neither created nor destroyed during the mixing and (ii) that account must
be taken of any heat lost to or gained from the air or other bodies in contact with the mixture. The first of these
assumptions is called the "principle of conservation of heat." This principle seemed to be plausible for, as we
shall eventually see, it was rather generally believed in Black's day that heat was a material substance, having
many of the properties of ordinary matter; and since the time of the Greeks the idea had persisted that matter
was uncreatable and indestructible [...] (ROLLER, 1950, p. 25).
82
Para Fox (1971) e Morris (1972) quem utilizou primeiro essa expressão, só que em francês, “chaleur
spécifique”, foi o cientista português João Jacinto de Magalhães (1722-1790). Mais conhecido em seus escritos
por Jean Hyacinthe de Magellan.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 95

Outros estudos realizados por Black versaram sobre a mudança do estado físico de uma
substância. Os seus resultados permitiram criticar, por exemplo, a crença difundida na época
de que quando um corpo sólido se encontrava em sua temperatura de fusão uma pequena
quantidade calor era suficiente para derretê-lo completamente, sendo necessário para o
processo inverso apenas uma pequena diminuição da quantidade de calor. Se isso fosse
verdade, seria observado, entre o inverno e o verão, um derretimento repentino nos países em
que há gelo e neve nas montanhas, ocasionando grandes inundações. Mas isso não ocorre, as
grandes massas de gelo e de neve levam um longo tempo para derreterem completamente. Em
alguns países, nem toda a estação do verão é suficiente para que isso aconteça. Em suas
palavras:

É evidente, portanto, que o gelo fundente recebe calor muito rápido, mas o
único efeito desse calor é mudá-lo em água, que não é sensivelmente mais
quente do que o gelo era antes. Um termômetro aplicado às gotas de água,
imediatamente, como elas vêm do gelo fundente, irá indicar a mesma
temperatura [32 ° F] como quando é aplicado ao gelo em si, ou, se houver
alguma diferença, é muito pequena para merecer ser mencionada. Portanto,
uma grande quantidade de calor que entra no gelo fundente não produz
nenhum efeito diferente para dar-lhe a liquidez, sem aumentar o seu calor
sensível, ela parece ser absorvida e escondida dentro da água, de modo a não
produzir qualquer efeito detectável pela aplicação de um termômetro
(BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 33, grifo nosso, tradução nossa). 83

A fim de entender melhor essa absorção de calor pelo derretimento do gelo, ele fez o seguinte
experimento. Utilizando dois recipientes idênticos, colocou no primeiro certa massa de gelo
igual à de água que estava no segundo. O gelo estava na temperatura de 32 °F e a água na de
33 °F. Em seguida, por meio de um suporte, suspendeu os dois em uma grande sala vazia,
permacendo a temperatura do ambiente constante em 47 °F. Após meia hora, a temperatura da
água subiu 7 °F, atingindo o valor de 40 °F. Entretanto, a massa de gelo precisou de 5 horas
para se derreter quase toda, permanecendo a sua temperatura praticamente invariável.
Somente depois de 10 horas e meia, toda a água proveniente da fusão alcançou a mesma
temperatura final da água do outro recipiente, sofrendo uma variação de 8 °F. Desse modo,

83
Versão original: It is evident, therefore, that the melting ice receives heat very fast, but the only effect of this
heat is to change it into water, which is not in the least sensibly warmer than the ice was before. A thermometer
applied to the drops of water, immediately as they come from the melting ice, will indicate the same
temperature [32 °F] as when it is applied to the ice itself, or, if there is any difference, it is too small to deserve
notice. A large quantity, therefore, of the heat which enters into the melting ice produces no effect other than to
give it liquidity, without augmenting its sensible heat; it appears to be absorbed and concealed within the
water, so as not to produce any effect discoverable by the application of a thermometer (BLACK, 1803 apud
ROLLER, 1950, p. 33).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 96

apesar de a massa de gelo receber 21 vezes mais quantidade de calor do que a de água, a sua
temperatura aumentou de apenas 8 graus, em vez de (40 – 33) x 21, ou 7 x 21, ou 147 graus.
A diferença de 139 graus “[...] tinha sido absorvida pelo gelo derretido e estava escondida na
água em que foi mudado [...]” (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 34, grifo nosso,
tradução nossa).84

Black fez mais um experimento para justificar o seu argumento, dessa vez misturou em um
copo de vidro certa massa de gelo a 32 °F com uma quantidade de massa de água, quase de
mesmo valor, a 190 °F. Ele verificou que a temperatura final de equilíbrio foi de 53 °F. Se
apenas uma pequena quantidade de calor tivesse sido utilizada para o derretimento do gelo,
como muitos acreditavam, esperar-se-ia uma temperatura próxima de 111 °F. A temperatura
encontrada foi muito abaixo, o que reforçava a sua hipótese de ser necessária uma grande
quantidade de calor para fundir o gelo 85. Assim ele conclui que:

No processo normal de congelamento da água, a liberação e o aparecimento


do calor latente, se me é permitido usar esses termos, é realizado a cada
minuto, ou melhor, com tal progresso suave, que muitos podem encontrar
dificuldade em percebê-lo [...] (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 37,
grifo nosso, tradução nossa). 86

Além dessas medidas do calor absorvido na fusão, ele realizou muitos outros experimentos de
solidificação, vaporização e condensação. Os resultados confirmaram a sua conjetura de que
nesses processos, além do “calor sensível”, uma grande quantidade de “calor latente” está
envolvida, devendo ser considerada na análise dos fenômenos em que o “princípio da
conservação de calor” fosse aplicado. Na sequência, Roller (1950) apresenta alguns trechos
em que Black faz algumas considerações sobre as teorias de calor existentes. Após iniciar
afirmando que ainda não há um consenso sobre a natureza do calor, muito menos das
explicações dos fenômenos em que está presente, ele atribui a primeira tentativa de elucidação
desse assunto a:

84
Versão original: “[...] had been absorbed by the melting ice and was concealed in the water into which it was
changed [...]” (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 34).
85
De acordo com Roller (1950, p. 37), nessa experiência, Black levou em consideração a capacidade de calor do
recipiente contendo a mistura. Isso não foi feito por Brook Taylor, Fahrenheit, ou por qualquer outro
experimentador anterior.
86
Versão original: In the ordinary process of freezing water, the extrication and emergence of the latent heat, if I
may be allowed to use these terms, is performed by such minute steps, or rather with such a smooth progress,
that many may find difficulty in apprehending it [...] (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 37).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 97

[...] Lorde Verulam [Francis Bacon, em 1620]; logo depois dele, o Sr. Boyle
[Robert Boyle, em 1665 e 1673] fez várias dissertações sobre o calor, e Dr.
Boerhaave, em suas palestras sobre a química [1732], esforçou-se para
analisar o tema ainda mais, e para melhorar os dois autores anteriores.

A tentativa de Lorde Verulam pode ser vista em seu tratado De forma Calidi
[1620], que ofereceu ao público um modelo da forma adequada de processar
investigações em filosofia natural. Nesse tratado, ele enumerou todos os
principais fatos então conhecidos sobre o calor e sua produção, e esforçou-
se, depois de uma consideração cautelosa e madura desses, para formar uma
opinião bem fundamentada de sua causa.

A única conclusão, no entanto, que ele foi capaz de tirar de todos os seus
fatos é muito geral, ou seja, que calor é movimento. Essa conclusão foi
baseada principalmente sobre a consideração dos vários meios pelos quais o
calor é produzido, ou feito aparecer nos corpos, tais como a percussão com o
ferro, o atrito de corpos sólidos, a colisão de pedra e aço (BLACK, 1803
apud ROLLER, 1950, p. 43, tradução nossa). 87

Em todos os exemplos citados por Bacon, o aumento da temperatura tinha como única fonte
um impacto mecânico. Portanto, uma conclusão plausível era de que a força mecânica
produziu no objeto um movimento que seria a causa de seu aquecimento. Black esclarece que
esse eminente filósofo conseguiu um grande número de seguidores sobre esse assunto,
contudo, seu parecer foi aprovado com duas diferentes modificações. A maioria dos filósofos
ingleses entendeu esse movimento como sendo das pequenas partículas que compunham o
corpo, mas:

[...] a maioria dos filósofos franceses e alemães, e Dr. Boerhaave,


sustentaram que o movimento que eles supõem compor o calor não é um
tremor ou vibração das partículas do corpo quente em si, mas das partículas
de um sutil, altamente elástico, e penetrante fluido material, que está
contido nos poros dos corpos quentes, ou interposto entre suas
partículas, uma matéria que eles imaginam ser difundida por todo o
universo, penetrando com facilidade os corpos mais densos88. Alguns

87
Versão original: [...] Lord Verulam [Francis Bacon, in 1620]; next after him, Mr. Boyle [Robert Boyle, in
1665 and 1673] gave several dissertations on heat; and Dr. Boerhaave, in his lectures on chemistry [1732],
endeavored to prosecute the subject still further, and to improve on the two former authors. Lord Verulam's
attempt may be seen in his treatise De forma Calidi [1620], which he offered to the public as a model of the
proper manner of prosecuting investigations in natural philosophy. In this treatise he enumerated all the
principal facts then known about heat and its production, and endeavored, after a cautious and mature
consideration of these, to form some well-founded opinion of its cause. The only conclusion, however, that he
was able to draw from the whole of his facts is a very general one, namely, that heat is motion. This conclusion
was founded chiefly on the consideration of several means by which heat is produced, or made to appear, in
bodies, such as the percussion of iron, the friction of solid bodies, the collision of flint and steel (BLACK,
1803 apud ROLLER, 1950, p. 43).
88
Morris (1972, p. 33) nos informa que a característica de movimento estava ausente nas teorias materiais de
calor discutidas durante essa época. Isso resultou em um enfraquecimento nas explicações de produção
mecânica do calor, uma fragilidade que não estava presente nas teorias materiais de calor anteriores e que
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 98

supõem que essa matéria, quando modificada de maneiras diferentes, produz


luz e os fenômenos de eletricidade (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p.
44, grifo nosso, tradução nossa). 89

Essa concepção do calor como um “fluido sutil”, comum para muitos pensadores daquele
tempo, havia sido aprimorada por William Cleghorn (1718-1754) em sua tese de doutorado
apresentada na Universidade de Edinburgh, em 1779. De acordo com Black (1803 apud
Roller, 1950, p. 44), ele concordava que o calor dependia da abundância desse “fluido sutil”
elástico que se imaginava antes por outros filósofos a estar presente em todas as partes do
universo e de ser a causa do calor. Mas esses outros filósofos tinham assumido, ou suposto,
que o calor poderia ser explicado utilizando-se apenas das características pertencentes a essa
matéria sutil, a saber: a sua grande elasticidade e a forte repulsão das partículas que a compõe.
Cleghorn imaginou outra propriedade, uma forte atração entre as partículas dos outros tipos
de matéria na natureza e as do “fluido sutil”. Assim:

[...] Ele supõe que os tipos normais de matéria consistem de partículas tendo
uma forte atração tanto uma para com a outra quanto para o calor, e que a
matéria elástica sutil de calor é autorrepelente, as suas partículas possuem
uma forte repulsão uma para com a outra enquanto elas são atraídas pelos
outros tipos de matéria, com diferentes graus de força [...].

Tal ideia da natureza do calor é a mais provável do que qualquer outra que
eu conheço, e uma tentativa engenhosa de fazer uso dela foi publicada pelo
Dr. Higgins, em seu livro sobre o ácido vegetal [qualquer ácido orgânico] e
outros assuntos. É, no entanto, completamente uma suposição (BLACK,
1803 apud ROLLER, 1950, p. 44-45, tradução nossa). 90

Conde Rumford explorou em sua tentativa fracassada de reviver uma teoria vibratória, em 1798. A maioria dos
escritores simplesmente ignorou a questão do movimento do calor. Os poucos que argumentaram contra
disseram apenas que pelo fato do calor ser matéria, não deve possuir uma propriedade que não é característica
da matéria em geral.
89
Versão original: [...] the greater number of French and German philosophers, and Dr. Boerhaave, have held
that the motion of which they suppose heat to consist is not a tremor, or vibration, of the particles of the hot
body itself, but of the particles of a subtle, highly elastic, and penetrating fluid matter, which is contained in the
pores of hot bodies, or interposed among their particles a matter that they imagine to be diffused through the
whole universe, pervading with ease the densest bodies. Some suppose that this matter, when modified in
different ways, produces light and the phenomena of electricity (BLACK, 1803 apud ROLLER, 1950, p. 44).
90
Versão original: [...] he supposed that the ordinary kinds of matter consist of particles having a strong
attraction both for one another and for the matter of heat; whereas the subtle elastic matter of heat is self-
repelling, its particles having a strong repulsion for one another while they are attracted by the other kinds of
matter, and that with different degrees of force [...] Such an idea of the nature of heat is the most probable of
any that I know; and an ingenious attempt to make use of it has been published by Dr. Higgins, in his book on
vegetable acid [any organic acid] and other subjects. It is, however, altogether a supposition (BLACK, 1803
apud ROLLER, 1950, p. 44-45).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 99

O leitor deve ter percebido que até o momento essa substância não recebeu nenhum nome
específico. Atribui-se ao famoso químico francês, Lavoisier, esse fato.

4.2.2 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE LAVOISIER

Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794) foi filho de um advogado e rico negociante, teve


uma excelente educação, estudando nas melhores escolas de Paris. Apesar de graduar-se em
direito, em 1764, nunca exerceu a profissão, pois sempre foi um entusiasta das ciências,
principalmente da química, preferindo dedicar-se aos experimentos nessa área. Todavia,
participou de diversos cargos públicos, envolvendo-se, inclusive, com a coleta de impostos.
Esse foi um dos pretextos de seus inimigos para levá-lo à guilhotina durante a Revolução
Francesa (BELL, 2007). A sua metodologia de trabalho diferenciada possibilitou-o fazer
grandes descobertas, sendo considerado como o fundador da química moderna. O que vai nos
interessar, particularmente, são os seus estudos em que a natureza do calor está envolvida. De
acordo com Morris (1972, p. 05), o primeiro artigo em que Lavoisier apresenta uma discussão
detalhada de sua teoria de calor foi enviado à “Académie Royale des Sciences” francesa em
setembro de 1777, e lido em julho de 1778, com o seguinte título: “De la combinaison de la
matière du feu avec les fluides évaporables, et de la formation des fluides élastiques
aëriformes” 91. Logo no início ele afirma:

Assumirei neste ensaio, e naqueles que o seguem, que o mundo que


habitamos está cercado por todos os lados de um fluido muito sutil, que
penetra, ao que parece, sem exceção, todos os corpos que o compõem; que
esse fluido, que chamarei fluido ígneo, matéria do fogo, calor e luz, tende a
atingir o equilíbrio em todos os corpos, mas não penetra todos com igual
facilidade; finalmente, que esse fluido existe ora em um estado de liberdade,
ora sobre forma fixa, e combinado com os corpos.

Essa opinião sobre a existência de um fluido ígneo, longe de ser nova, é, ao


contrário, a da maioria dos antigos físicos, portanto, creio que se pode
dispensar de relatar os fatos sobre os quais ela é baseada; a sequência do
ensaio, aliás, lhe servirá de prova; pois, se eu notar que em todos os lugares
ela concorda com os fenômenos, que em toda parte, ela explica tudo o que
acontece nas experiências físicas e químicas, isso é quase uma demonstração
(LAVOISIER, 1777, p. 420, tradução nossa). 92

91
Todas as obras completas de Lavoisier podem ser encontradas nos seguintes endereços:
http://www.lavoisier.cnrs.fr/ e http://moro.imss.fi.it/lavoisier/ .
92
Versão original: Je supposerai dans ce mémoire, et dans ceux qui le suivront, que la planète que nous habitons
est environnée de toutes parts d’un fluide très-subtil, qui pénètre, à ce qu’il paraît, sans exception, tous les
corps qui la composent; que ce fluide, que j’appellerai fluide igné, matière du feu, de la chaleur et de la
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 100

Fica evidende, por essa passagem, que nessa época Lavoisier era indiferente à terminologia
usada para designar o “fluido sutil”. Porém, em 1787, no “Méthode de nomenclature
chimique”, em que ele foi um dos autores juntamente com Louis Bernard Guyton de Morveau
(1737-1816), Jean-Henri Hassenfratz (1755-1827), Antoine-François Fourcroy (1755-1809),
Pierre-Auguste Adet (1767-1848) e Claude Louis Berthollet (1748-1822), aparece a palavra
“calorique” 93 para representá-lo. A justificativa de sua criação, segundo os autores, é para
distinguir o termo “chaleur”, como entendido ordinariamente, do princípio material que o
causa (MORVEAU, 1787, p. 31). A concepção de Lavoisier sobre a natureza do calórico não
foi a mesma do começo ao fim de suas pesquisas, conforme corrobora a seguinte afirmação de
Morris (1972, p. 25, tradução nossa):

[...] Modificando suas declarações anteriores de que o calórico existia em


dois estados, livre e combinado, ele concluiu que o calórico pode existir
livre, aderente, ou combinado "molécula a molécula" com os constituintes
elementares de outras substâncias. No entanto, é facilmente visto que o
calórico é sempre mais ou menos aderente às substâncias, e ‘que ele deve,
portanto, existir em variadas degradações e estados intermediários, entre o
estado de calórico perfeitamente livre e o combinado.’ Combinado e livre,
assim, marcam os limites de um continuum de relações possíveis. 94

Em seu discurso, ele considerava que as partículas da matéria ordinária são constantemente
expostas a duas forças contrárias. A repulsão originária do fluido calórico e a atração
proveniente da força gravitacional. A introdução ou a retirada do calórico altera o equilíbrio
entre essas forças, tanto por alterar a quantidade de calórico como por separar mais as
partículas, sendo essa a explicação de diversos fenômenos físicos e químicos. Segundo Morris
(1972, p. 15, tradução nossa), Lavoisier acreditava que:

lumière, tend à se mettre en équilibre dans tous les corps, mais qu’il ne les pénètre pas tous avec une égale
facilité; enfin, que ce fluide existe tantôt dans un état de liberté, tantôt sous forme fixe, et combiné avec les
corps. Cette opinion sur l’existence d’un fluide igné, loin d’être nouvelle, est, au contraire, celle du plus grand
nombre des anciens physiciens, et je crois, en conséquence, pouvoir me dispenser de rapporter les faits sur
lesquels elle est fondée; la suite de mémoires, d’ailleurs, que j’ai à donner, lui servira de preuve; en effet, si je
fais voir que partout elle est d’accord avec les phénomènes, que partout elle explique tout ce qui arrive dans les
expériences physiques et chimiques, ce sera presque l’avoir démontrée (LAVOISIER, 1777, p. 420).
93
Segundo Fox (1971, p. 6), há evidências de que o termo calorique era corrente no círculo de Lavoisier em
1784. A forma inglesa caloric apareceu na tradução que James St. John fez dessa obra, publicada em Londres
em 1788. Após essa data, o termo rapidamente entrou em uso comum, embora algumas autoridades, como o
matemático escocês e filósofo natural John Leslie, o rejeitaram.
94
Versão original: [...] Modifying his earlier statements that caloric exists in two states, free and combined, he
concluded that caloric can exist as either free, adherent, or combined 'molécule à molécule' with the elementary
constituents of other substances. However, it is easily seen that caloric is always more or less adherent to
substances, and ‘qu'il doit par conséquent exister des dégradations insensibles et une infinité d'intermédiaires
entre 1'état de calorique parfaitement libre et celui de calorique dans un e'tat de combinaison.’ Combined and
free thus mark the limits of a continuum of possible relationships.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 101

O equilíbrio entre as forças opostas do calor e da atração oferece um meio


preciso para determinar a força dessa última, e espero que um conhecimento
completo da atração permita um dia ao matemático calcular os fenômenos
químicos da mesma maneira que agora calcula o movimento dos corpos
celestes. 95

Por não ter sido capaz de fornecer uma demonstração da existência do calórico, Lavoisier
admitiu, sob a pressão de seus críticos (e talvez de alguns partidários, como Laplace), que
esse fluido sutil era apenas uma hipótese. Contudo, podia ser considerado como uma verdade
em muitos fenômenos, pela facilidade com que o conceito explicava os resultados dos
experimentos (MORRIS, 1972, p. 31). Em linhas gerais:

[...] A teoria de Lavoisier do calor forma um razoável, facilmente


visualizado, todo coerente. Um único quadro teórico abrange uma vasta
gama de fenômenos de calor incluindo a expansão e a contração, mudanças
de estado ou forma, o papel do calor como agente na promoção de novas
combinações químicas, e mudanças de temperatura em reações químicas,
especialmente a combustão e a respiração. Embora as características gerais
da teoria de Lavoisier do calor persistiram praticamente inalteradas ao longo
de quase todo o período da sua escrita química, houve uma sequência de
desenvolvimento conceitual (MORRIS, 1972, p. 34-35, tradução nossa). 96

4.2.3 OS POSTULADOS E O PODER EXPLICATIVO DA TEORIA

A concepção sobre a natureza do calórico variava de cientista para cientista, mas o ponto de
vista de Lavoisier não se diferenciava, em muitos aspectos, das teorias de outros reconhecidos
caloristas como Herman Boerhaave (1668-1738), Pieter van Musschenbroek (1692-1761),
Joseph Black (1728-1799), William Cleghorn (1718-1754), William Irvine (1743-1787) e
Adair Crawford (1748-1795). De acordo com Fox (1971), Medeiros (2009) e Roller (1950),
no conjunto, esses investigadores postularam as seguintes propriedades ao calórico:

95
Versão original: The balance between the opposing forces of heat and affinity offers a precise means to
determine the force of the latter, and hopefully a thorough knowledge of affinity would one day enable a
mathematician in his study to calculate chemical phenomena in the same way he now calculates the movement
of celestial bodies.
96
Versão original: [...] Lavoisier's theory of heat forms a reasonable, easily visualized, coherent whole. A single
theoretical framework accounts for a vast array of heat phenomena including expansion and contraction,
changes of state or form, the role of heat as an agent in promoting new chemical combinations, and
temperature changes in chemical reactions, especially combustion and respiration. Although the general
features of Lavoisier's theory of heat persist virtually unchanged through almost the entire period of his
chemical writing, there was a sequence of conceptual development (MORRIS, 1972, p. 34-35).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 102

a) é uma substância material, um fluido elástico, constituído por partículas que se repelem
fortemente;

b) suas partículas são atraídas pelas partículas da matéria comum com intensidade diferente
para cada substância e estado de agregação;

c) pode ser sensível, espalhando-se pelos espaços vazios das substâncias até formar, por
meio da atração que existe entre suas partículas e as da matéria ordinária, uma espécie de
“atmosfera” ao redor dessas últimas. A temperatura de um corpo é diretamente
proporcional à quantidade de calórico sensível que possui;

d) pode ser latente, combinando-se com as partículas da matéria comum de forma


semelhante ao que ocorre com as combinações químicas, ao contrário da justaposição que
acontece com o calórico sensível;

e) não pode ser criado ou destruído 97;

f) têm um peso desprezível.

É muito importante, para os objetivos desta pesquisa, verificar o poder explicativo da teoria
do calórico em ação. Ponderamos não ser necessária uma análise pormenorizada das diversas
explicações que cada “calorista” dava sobre os fenômenos físicos em que o calórico se fazia
presente. Pois, apesar de não haver uma homogeniedade de pensamento, há uma concordância
nos principais pontos. Assim, consideramos essencial apenas uma síntese das ideias mais
importantes. Nesse caso, optamos por apresentar como esse assunto era tratado por alguma
obra de divulgação científica de renome da época. O livro escolhido foi o “Conversations on
chemistry: in which the elements of that science are familiarly explained and illustrated by
experiments”, de Jane Marcet. Segundo Pulido e Silva (2011) e Baldinato (2009), ele foi
considerado um dos textos de divulgação da ciência de maior credibilidade e mais lido do
século XIX.

Jane Haldimand (1769-1858), conhecida como Jane Marcet, seu nome de casada, nasceu em
Londres, mas o seu pai era um rico comerciante e banqueiro suíço. Em 1799, casou-se com
Alexander Marcet (1770-1822), um químico e médico genebrês que fez a sua carreira
científica na capital inglesa, destacando-se nos estudos da química aplicada à medicina,

97
De acordo com Roller (1950, p. 47), esse princípio da “conservação do calor” foi desde o início considerado
como plausível. Entre os antigos gregos, já exisitia a ideia de que a matéria era indestrutível, desse modo, se o
calor for matéria, deve ser indestrutível também. Mas, com o desenvolvimento do método de misturas e do
conceito de calor latente, esse postulado tornou-se uma parte indispensável da teoria do calórico.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 103

principalmente nas análises que permitiam a detecção de cálculos urinários e compostos


presentes no sangue de diabéticos. De acordo com Baldinato e Porto (2009, p. 04):

Influenciada pelos interesses do marido e também pelo seu novo círculo de


amizades, Jane tomou contato com as palestras de Humphry Davy, William
Wollaston e vários outros divulgadores da ciência do período, e se encantou
com as maravilhas daquelas ciências. Obviamente, acompanhar as
argumentações lançadas em tais palestras não era tarefa fácil, mas Jane
Marcet teve a iniciativa de procurar auxílio e, é claro, contava com a
facilidade de encontrar bons mestres em seu convívio familiar, incluindo seu
marido e amigos, com os quais obtinha as explicações que precisava. Ao
reconhecer o interesse e a importância de tantos conceitos desconhecidos do
público, Jane Marcet se sentiu impelida pelo desejo de divulgar essa
instrução a outras pessoas, e foi incentivada pelo marido a escrever [...]

A sua carreira oficial como escritora começou em 1805 com a primeira edição do
“Conversations on Chemistry”. O livro fez tanto sucesso que teve dezesseis edições
publicadas na Inglaterra, quatorze edições norteamericanas e duas traduções para o francês,
uma destinada ao público francês e outra ao suíço (BALDINATO; PORTO, 2009, p. 05). O
texto destinava-se à aproximação entre o público feminino e as ciências químicas, apesar
disso, o seu mais célebre leitor foi o jovem Michael Faraday (1791-1867), no tempo em que
ainda trabalhava como aprendiz de encadernador. O que pode ser comprovado pela citação
abaixo:

[...] A Sra. Marcet foi uma amável amiga para mim, assim como deve ter
sido para muitos dentre a raça humana. Eu fui acolhido na loja de um
vendedor de livros e encadernador quando contava treze anos, em 1804,
permaneci lá por oito anos, e durante a maior parte do tempo encadernava
livros. Foi justamente nesses livros, nas horas após o trabalho, que encontrei
os princípios da minha filosofia. Há dois em especial que me ajudaram; a
Enciclopédia Britânica, pela qual adquiri minhas primeiras noções sobre
eletricidade; e Conversations on Chemistry, da Sra. Marcet, que me
proporcionou meus fundamentos naquela ciência. Acredito que eu tenha lido
sobre o flogisto na Enciclopédia, mas o seu livro surgiu como uma luz em
minha mente (FARADAY, 1858 apud BALDINATO; PORTO, 2009, p. 11).

A autora escreveu o livro sob a forma de diálogos entre três personagens: a professora, “Sra.
B.”, e suas alunas, “Emily” e “Caroline”. Ao longo de dois volumes 98, as conversações
abrangem diversos temas relacionados à química. Há tópicos específicos de discussões sobre
a natureza do calórico, mas ele também aparece em outros momentos como parte integrante

98
Em nosso trabalho, foi usada a 5ª edição, de 1817.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 104

da racionalização de alguns fenômenos. Vamos principiar a nossa análise com a


“Conversation II: on light and heat or caloric”. A certa altura do texto, a “Sra. B.” afirma que
o calórico pode ser encontrado em uma variedade de formas ou modificações, mas as duas
principais são o “calórico livre”, ou radiante, e o “calórico combinado”. Mais adiante, a “Sra.
B.” realça o cuidado que se deve ter na utilização dos termos calor e calórico:

Sra. B.

Nenhuma das modificações do calórico deve ser corretamente chamada de


calor, - o calor, estritamente falando, é a sensação produzida pelo
calórico em corpos animados; essa palavra, portanto, na linguagem precisa
da ciência, deve ser limitada a expressar a sensação. Mas o costume o tem
adaptado, do mesmo modo, à matéria inanimada, e dizemos o calor de um
forno, o calor do Sol, sem qualquer referência à sensação que eles são
capazes de excitar.

Foi para evitar a confusão que surgiu a partir da mistura de causa e efeito,
que os químicos modernos adotoram a nova palavra calórico para designar
o princípio que produz calor, limitam a palavra calor para a expressão da
sensação, ainda que eles nem sempre estejam em conformidade com sua
própria linguagem, uma vez que ainda, frequentemente, a empregam em
referência às outras modificações do calórico que são bastante independentes
da sensação (MARCET, 1817, p. 34, grifo nosso, tradução nossa). 99

A dilatação dos corpos é o primeiro fenômeno físico explicado por “Sra. B.” utilizando-se da
teoria do calórico. Em sua argumentação, esse fato é uma consequência da extrema sutileza
do “calórico livre” que o permite permear quaisquer corpos, impondo um afastamento às suas
partículas que ocupará um espaço maior do que antes. Assim:

Sra. B.

[...] Há uma luta contínua entre a atração da agregação e o poder expansivo


do calórico, da ação dessas duas forças opostas, resultam todas as várias
formas da matéria, ou graus de consistência, desde o sólido, o líquido e o
estado aeriforme. E, consequentemente, descobrimos que a maioria dos
corpos são capazes de passar de uma dessas formas para a outra, meramente

99
Versão original: MRS. B.: None of the modifications of caloric should properly be called heat,- for heat,
strictly speaking, is the sensation produced by caloric, on animated bodies ; this word, therefore, in the accurate
language of science, should be confined to express the sensation. But custom has adapted it likewise to
inanimate matter, and we say the heat of an oven, the heat of the sun, without any reference to the sensation
which they are capable of exciting. It was in order to avoid the confusion which arose from thus confounding
the cause and effect, that modern chemists adopted the new word caloric, to denote the principle which
produces heat; yet they do not always, in compliance with their own language, limit the word heat to the
expression of the sensation, since they still frequently employ it in reference to the other modifications of
caloric which are quite independent of sensation (MARCET, 1817, p. 34).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 105

em consequência de receberem quantidades diferentes de calórico


(MARCET, 1817, p. 35, tradução nossa). 100

De acordo com esse raciocínio, as variadas capacidades de dilatação dos corpos, ou de um


mesmo corpo em estados físicos desiguais, são atribuídas a não igualdade entre as densidades,
que ocasiona resistências diferentes à ação do “calórico livre”. Para explicar como se dá o
aquecimento e o resfriamento dos corpos, “Sra. B.” diz que:

Sra. B.

[...] Calórico livre sempre tende a difundir-se da mesma maneira, isto é,


quando dois corpos são de diferentes temperaturas, o mais quente
gradualmente divide o seu calor com o mais frio, até que ambos são trazidos
à mesma temperatura. Assim, quando um termômetro é aplicado a um corpo
quente, ele recebe calórico; quando a um frio, ele comunica parte do seu
próprio calórico, e essa comunicação continua até que o termômetro e o
corpo atinjam a mesma temperatura (MARCET, 1817, p. 50, tradução
nossa). 101

O leitor, assim como fez a personagem “Caroline”, pode se questionar como o calórico, que é
um fluido sem peso, se equilibra entre corpos de diferentes temperaturas. A “Sra. B.” deu-lhe
a seguinte resposta:

Sra. B.

[...] Este assunto é explicado melhor por uma teoria sugerida pelo Professor
Prevost de Genebra, que agora é, creio, geralmente adotada. De acordo com
essa teoria, calórico é composto de partículas perfeitamente separadas umas
das outras, cada uma das quais se move a uma velocidade rápida num
determinado sentido. Essas direções variam tanto quanto a imaginação pode
conceber, cujo resultado é que há raios ou linhas dessas partículas que se
deslocam com velocidades imensas em todas as direções possíveis. Calórico
é, assim, universalmente difundido, de modo que quando qualquer parte do
espaço está na vizinhança de outra que contém mais calórico, a parte mais
fria recebe uma quantidade de raios caloríficos dessa última, suficiente para
restaurar o equilíbrio da temperatura. Essa radiação não só pode ter lugar no

100
Versão original: MRS. B.: [...] There is a continual struggle between the attraction of aggregation, and the
expansive power of caloric; and from the action of these two opposite forces, result all the various forms of
matter, or degrees of consistence, from the solid, to the liquid and aëriform state. And accordingly we find that
most bodies are capable of passing from one of these forms to the other, merely in consequence of their
receiving different quantities of caloric (MARCET, 1817, p. 35).
101
Versão original: MRS. B.: [...] Free caloric always tends to diffuse itself equally, that is to say, when two
bodies are of different temperatures, the warmer gradually parts with its heat to the colder, till they are both
brought to the same temperature. Thus, when a thermometer is applied to a hot body, it receives caloric; when
to a cold one, it communicates part of its own caloric, and this communication continues until the thermometer
and the body arrive at the same temperature (MARCET, 1817, p. 50).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 106

espaço livre, mas se estende também aos corpos de todos os tipos. Assim,
você pode supor que todos os corpos, de qualquer tipo, irradiam
constantemente calórico: aqueles que são da mesma temperatura dão e
absorvem quantidades iguais, de modo que nenhuma variação de
temperatura é produzida neles, mas quando um corpo contém mais calórico
livre do que o outro, a troca é sempre a favor do corpo mais frio, até que um
equilíbrio seja alcançado [...] (MARCET, 1817, p. 52-53, tradução nossa). 102

Muitos cientistas, na primeira metade do século XIX, sustentavam o pensamento de que a luz
e o calor eram entidades muito semelhantes. A consequência dessa concepção foi a realização
de diversos experimentos independentes por William Herschel (1738-1822), Macedonio
Melloni (1798- 1854), James David Forbes (1809-1868) – entre outros –, na tentativa de
mostrar que o calor, assim como a luz, possuia as propriedades de reflexão, refração e
polarização (BASSALO, 1992). Uma experiência sobre esse assunto, que chamou a atenção
dos cientistas, foi a reflexão do “frio”, realizada por Marc-Auguste Pictet (1752-1825). O
experimento consistiu em dispor dois espelhos esféricos de frente um para outro, separados
por certa distância, de tal modo que os seus vértices e focos pertencessem a uma mesma reta.
Em um dos focos foi colocado um bulbo de vidro cheio de gelo, observando-se uma queda
brusca na temperatura indicada por um termômetro quando o mesmo se posicionava sobre o
outro foco.

A teoria de Pierre Prévost (1751-1839), apresentada por Marcet, foi concebida para explicar
esse fenômeno, sendo depois generalizada para outras situações (EVANS; POPP, 1985). A
“Sra. B.”, após essas considerações, não perdeu a oportunidade de sugerir as suas alunas que
comprovassem esses resultados por elas mesmas, repetindo o experimento realizado pelo
Professor Pictet. No restante da “Conversation II: on light and heat or caloric”, as
personagens continuam fazendo divagações sobre a radiação e a reflexão do calórico, sem
muito acrescentar ao que já foi dito anteriomente. Na “Conversation III: continuation of the

102
Versão original: MRS. B.: [...] This subject is best explained by a theory suggested by Professor Prevost of
Geneva, which is now, I believe, generally adopted. According to this theory, caloric is composed of particles
perfectly separate from each other, every one of which moves with a rapid velocity in a certain direction. These
directions vary as much as imagination can conceive, the result of which is, that there are rays or lines of these
particles moving with immense velocity in every possible direction. Caloric is thus universally diffused, so that
when any portion of space happens to be in the neighbourhood of another, which contains more caloric, the
colder portion receives a quantity of calorific rays from the latter, sufficient to restore an equilibrium of
temperature. This radiation does not only take place in free space, but extends also to bodies of every kind.
Thus you may suppose all bodies whatever constantly radiating caloric: those that are of the same temperature
give out and absorb equal quantities, so that no variation of temperature is produced in them; but when one
body contains more free caloric than another, the exchange is always in favour of the colder body, until an
equilibrium is effected [...] (MARCET, 1817, p. 52-53).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 107

subject”, começa um diálogo interessante sobre a condução de calor nos corpos. Para explicar
a indagação de “Caroline” do motivo pelo qual um objeto aparenta ser mais frio do que outro
a mesma temperatura, a “Sra. B.” responde que isso se deve a maior rapidez que o calórico é
transmitido do seu corpo para o objeto. Pelo fato dos materiais possuírem diferentes
resistências a passagem do calórico. Mas por que alguns corpos são melhores condutores de
calor do que outros? Questionou “Emily”. Segundo a “Sra. B.”:

Sra. B.

Esse é um ponto não muito bem determinado. Especula-se que certa união
ou aderência ocorre entre o calórico e as partículas do corpo por meio do
qual ele passa. Se essa adesão for forte, o corpo retarda o calor, e o reparte
com relutância e lentamente; se for leve, ele se propaga livremente e
rapidamente. O poder condutor de um corpo é, portanto, inversamente com a
sua tendência para se unir com o calórico (MARCET, 1817, p. 72). 103

Na sequência, as personagens discutem situações do cotidiano relacionadas à existência de


bons e maus condutores de calor. Por exemplo, não é correto dizer que a roupa de lã nos
aquece em um dia frio. Ela simplesmente impede que o calórico de nosso corpo escape de
modo rápido, como faria normalmente. A conversa segue com algumas reflexões em torno
das trocas de calor que ocorrem no meio ambiente, incluindo explicações do porquê um lago
se congelar apenas na superfície; do porquê a Terra, apesar de receber incessantemente
calórico proveniente do Sol, possuir um clima agradável para se viver; do motivo da neve de
montanhas muito altas não se derreter; e mais outros exemplos. Não entraremos em detalhes,
pelo fato dessas explicações enfatizarem mais a densidade dos fluidos do que as propriedades
do calórico.

Contudo, é digna de registro a observação feita pela “Sra. B.” de que há líquidos que contêm
tão grande quantidade de calórico – consequentemente as suas partículas têm uma fraca
atração de coesão – que são convertidos rapidamente em vapor, sem qualquer aquecimento,
apenas aliviando-se a pressão sobre eles. Para corroborar essa afirmação, ela elaborou um
experimento em que um frasco de éter aberto foi colocado em um recipiente de vidro, de tal
modo que apenas um pequeno espaço foi deixado entre eles. Esse espaço foi preenchido com

103
Versão original: MRS. B.: This is a point not well ascertained. It has been conjectured that a certain union or
adherence takes place between the caloric and the particles of the body through which it passes. If this
adherence be strong, the body detains the heat, and parts with it slowly and reluctantly; if slight, it propagates it
freely and rapidly. The conducting power of a body is therefore, inversely, as its tendency to unite with caloric
(MARCET, 1817, p. 72).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 108

água, na mesma temperatura do éter, o recipiente foi fechado e o ar internamente sugado por
meio de um dispositivo. Como resultado, para o espanto de “Caroline” e “Emily”, observou-
se o éter entrar em ebulição e a água congelar. “Caroline” conseguiu perceber que a ebulição
do éter deveu-se ao ganho de calórico da água que, por sua vez, congelou em consequência
dessa perda. Mas “Emily” levantou o seguinte questionamento:

Emily.

Isso eu agora compreendo muito bem; mas se a água congela em


consequência de ceder seu calórico para o éter, o equilíbrio de calor deve,
nesse caso, ser totalmente destruído. No entanto, você nos disse que a troca
de calórico entre dois corpos de mesma temperatura sempre é igual; como,
então, é que a água, que era originalmente da mesma temperatura que o éter,
cede calórico para que ela se congele e o éter ferva? (MARCET, 1817, p.
115, tradução nossa). 104

A pergunta foi muita perspicaz, pois se dois corpos estão na mesma temperatura, eles
possuem idênticas quantidades de calórico livre. Logo, de acordo com a teoria do Professor
Prévost, haveria um equilíbrio nas trocas de calórico, de tal maneira que as suas temperaturas
não se modificariam. Mas, para a “Emily”, se a água congelou, a sua tempeatura diminuiu, e
se o éter entrou em ebulição, a sua temperatura aumentou. Contrariando o equilíbrio previsto.
Para esclarecer essa dúvida, a “Sra. B.” repetiu o experimento, colocando um termômetro na
água e outro no éter. Novamente, para a surpresa de suas alunas, o inesperado aconteceu. A
indicação da temperatura nos termômetros diminuiu no mesmo ritmo, marcando, ao final do
processo, valores iguais. Após ser questionada sobre o que aconteceu, eis a resposta da “Sr.
B.”:

Sra. B.

Eu não posso satisfazer a sua curiosidade no momento, pois antes que


possamos tentar explicar esse aparente paradoxo, é necessário se familiarizar
com o assunto de CALOR LATENTE: assim, temos de adiar até a nossa
próxima conversa (MARCET, 1817, p. 115-116, tradução nossa). 105

104
Versão original: EMILY.: This I understand now very well; but if the water freezes in consequence of
yielding its caloric to the ether, the equilibrium of heat must, in this case, be totally destroyed. Yet you have
told us, that the exchange of caloric between two bodies of equal temperature, was always equal; how, then, is
it that the water, which was originally of the same temperature as the ether, gives out caloric to it, till the water
is frozen, and the ether made to boil? (MARCET, 1817, p. 115).
105
Versão original: MRS. B.: I cannot satisfy your curiosity at present; for before we can attempt to explain this
apparent paradox, it is necessary to become acquainted with the subject of LATENT HEAT: and that, I think,
we must defer till our next interview (MARCET, 1817, p. 115-116).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 109

Finalizando essa conversação, a “Sra. B.” ainda responde a uma pergunta de “Emily”. Se a
água, assim como o éter, poderia ferver sem precisar ser aquecida. A sua explicação é
esclarecedora:

Sra. B.

Sem dúvida. Você deve lembrar que sempre há duas forças para superar, a
fim de fazer um líquido ferver ou evaporar; a atração de agregação e o peso
da atmosfera. No cume de uma montanha alta (como o Sr. De Saussure
averiguou no Monte Blanc) muito menos calor é necessário para fazer ferver
a água, do que na planície, onde o peso da atmosfera é maior. *De fato, se o
peso da atmosfera for inteiramente removido, por meio de uma boa bomba
de ar, e se a água for colocada no receptor esvaziado, ela irá evaporar tão
rápida, por mais frio que possa estar, dando-lhe uma aparência de ebulição
em sua superfície [...] (MARCET, 1817, p. 116-117, tradução nossa). 106

A próxima conversa tem o título “Conversation IV: on combined caloric, comprehending


specific and latent heat”. Inicialmente, a “Sra. B.” discute com as suas alunas a respeito da
capacidade dos corpos em armazenar calórico. Sem mencionar o nome de Black, ela faz
reflexões similares ao que ele fez, induzindo “Caroline” e “Emily” a chegarem à conclusão de
que corpos feitos com materiais diferentes, ainda que tenham massas idênticas, não
apresentam igual capacidade para acumular o calórico. Da mesma forma que um recipiente
cheio de bolinhas de gude não tem a mesma capacidade de ser preenchido com areia do que
outro idêntico, mas cheio com pedras de vários formatos. Todavia, aqui surge uma aparente
contradição, percebida por “Emily”.

De acordo com o raciocínio empreendido pela “Sra. B.”, dois corpos de mesma massa, mas
com diferentes capacidades para reter o calórico, devem requerer quantidades diferentes desse
fluido para aumentarem as suas temperaturas de igual valor. Se os corpos tiverem em
equilíbrio térmico, eles possuem quantidades idênticas de “calórico livre”. Nesse caso, como a
temperatura final será a mesma, se a quantidade recebida de calórico foi diferente? O corpo
que acolheu mais calórico deveria ter a sua temperatura elevada de maior grau. A “Sra. B.”
elucida essa contestação com o seguinte argumento:

106
Versão original: MRS. B.: Undoubtedly. You must always recollect that there are two forces to overcome, in
order to make a liquid boil or evaporate; the attraction of aggregation, and the weight of the atmosphere. On
the summit of a high mountain (as Mr. De Saussure ascertained on Mount Blanc) much less heat is required to
make water boil, than in the plain, where the weight of the atmosphere is greater.*Indeed if the weight of the
atmosphere be entirely removed by means of a good air-pump, and if water be placed in the exhausted receiver,
it will evaporate so fast, however cold it may be, as to give it the appearance of boiling from the surface [...]
(MARCET, 1817, p. 116-117).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 110

Sra. B.

O calórico que é empregado no preenchimento da capacidade de um corpo


não é calórico livre, mas é aprisionado no corpo, sendo, portanto,
imperceptível: podemos sentir apenas o calórico que o corpo divide, não
aquele que ele retém (MARCET, 1817, p. 125, tradução nossa). 107

Em outras palavras, nem todo o calórico recebido por um corpo fica na forma “livre”, parte
dele é “combinado” com as suas partículas. Ao colocarmos a nossa mão sobre um corpo
quente, sentimos apenas o “calórico livre” que é transferido, o mesmo acontece com o
termômetro. Deixemos as personagens completarem o raciocínio:

Caroline.

Eu começo a entender: mas confesso que a ideia de calor insensível é tão


nova e estranha para mim, que requer algum tempo para torná-la familiar.

Sra. B.

Chame-a calórico insensível, e a dificuldade aparecerá muito menos


formidável. Na verdade, é uma espécie de contradição chamá-lo de calor,
pois quando assim situado ele é incapaz de produzir essa sensação. No
entanto, essa modificação do calórico é comumente chamada de CALOR
ESPECÍFICO.

Caroline.

Mas certamente teria sido mais correto tê-lo chamado de calórico específico.

Emily.

Eu não entendo como o termo específico aplica-se a essa modificação do


calórico?

Sra. B.

Ele expressa a quantidade relativa de calórico que diferentes espécies de


corpos, de mesmo peso e temperatura, são capazes de conter. Essa
modificação também é frequentemente chamada de capacidade de calor, um
termo talvez preferível, pois explica melhor o seu próprio significado [...]
(MARCET, 1817, p. 126-127, tradução nossa). 108

107
Versão original: MRS. B.: The caloric that is employed in filling the capacity of a body, is not free caloric;
but is imprisoned as it were in the body, and is therefore imperceptible: for we can feel only the caloric which
the body parts with, and not that which it retains (MARCET, 1817, p. 125).
108
Versão original: CAROLINE.: I begin to understand it: but I confess that the idea of insensible heat is so new
and strange to me, that it requires some time to render it familiar. MRS. B.: Call it insensible caloric, and the
difficulty will appear much less formidable. It is indeed a sort of contradiction to call it heat, when it is so
situated as to be incapable of producing that sensation. Yet this modification of caloric is commonly called
SPECIFIC HEAT. CAROLINE.: But it certainly would have been more correct to have called it specific
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 111

Imagine o leitor dois corpos de igual massa e temperatura, mas feitos com materiais
diferentes. Nesse caso, como a temperatura é idêntica, ambos possuem certa quantidade “Y”
de “calórico livre”. Vamos supor que um deles, após receber uma quantidade “5X” de
calórico, teve a mesma variação de temperatura do que o outro que recebeu uma quantidade
“7X”. Ao final do processo, eles não podem ter ficado, respectivamente, com “Y + 5X” e “Y
+ 7X” de “calórico livre”, pois eles continuam em equilíbrio térmico. Assim, ambos possuem
“Y + Z” de “calórico livre”. A diferença “5X – Z”, para o primeiro corpo, e “7X – Z”, para o
segundo, é o que “Caroline” denominou de “specific caloric”. Vejamos, agora, a definição
que a “Sra. B.” dá para o “calor latente”:

Sra. B.

Ele é outra modificação do calórico combinado, que é tão análogo ao calor


específico, que a maioria dos químicos não fazem distinção entre eles; mas o
Sr. Pictet, em seu Ensaio sobre o Fogo, tão claramente os discriminou, que
estou induzida a adotar seu ponto de vista sobre o assunto. Portanto,
chamamos de calor latente a porção do calórico insensível que é empregue
na mudança de estado dos corpos; isto é, na conversão de sólidos em
líquidos, ou líquidos em vapor. Quando um corpo altera o seu estado de
sólido para líquido, ou de líquido para vapor, a sua expansão ocasiona um
aumento súbito e considerável da capacidade de calor, em consequência, ele
absorve imediatamente uma quantidade de calórico, o qual se torna fixada no
corpo que é transformado; e, como é perfeitamente escondido dos nossos
sentidos, obteve o nome de calor latente (MARCET, 1817, p. 133-134,
tradução nossa). 109

“Caroline” sugere mudar o termo “latent heat” para “latent caloric”, pois a expressão “heat”
se refere à sensação corporal devida à transferência de “calórico livre” para o nosso corpo.
Mas, de acordo com a “Sra. B.”:

caloric. EMILY.: I do not understand how the term specific applies to this modification of caloric? MRS. B.: It
expresses the relative quantity of caloric which different species of bodies of the same weight and temperature
are capable of containing. This modification is also frequently called heat of capacity, a term perhaps
preferable, as it explains better its own meaning [...] (MARCET, 1817, p. 126-127).
109
Versão original: MRS. B.: It is another modification of combined caloric, which is so analogous to specific
heat, that most chemists make no distinction between them; but Mr. Pictet, in his Essay on Fire, has so clearly
discriminated them, that I am induced to adopt his view of the subject. We therefore call latent heat that
portion of insensible caloric which is employed in changing the state of bodies; that is to say, in converting
solids into liquids, or liquids into vapour. When a body changes its state from solid to liquid, or from liquid to
vapour, its expansion occasions a sudden and considerable increase of capacity for heat, in consequence of
which it immediately absorbs a quantity of caloric, which becomes fixed in the body which it has transformed;
and, as it is perfectly concealed from our senses, it has obtained the name of latent heat (MARCET, 1817, p.
133-134).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 112

Sra. B.

Essa modificação do calor foi descoberta e nomeada por Dr. Black, muito
antes que os químicos franceses introduzissem o termo calórico, e não
devemos presumir alterá-la, pois ela ainda é utilizada por químicos muito
melhores do que nós mesmos. E, além disso, você não supõe que a natureza
do calor é alterada pelas diversas vezes que está sendo modificado: se calor
latente e calor específico não excitam as mesmas sensações que o calórico
livre, é devido a estarem em um estado de confinamento, que os impedem de
agirem sobre os nossos órgãos, e, consequentemente, tão logo eles estejam
livres do corpo em que estavam aprisionados, eles retornam ao seu estado de
calórico livre (MARCET, 1817, p. 134, tradução nossa). 110

Pela última fala da “Sra. B.”, fica claro que o calórico é apenas um, podendo estar no corpo de
modo “combinado” – específico/latente – ou “livre”. No entanto, é possível o “calórico
combinado” tornar-se “livre”, e vice-versa. Para elucidar a diferença que existe entre o “calor
específico” e o “latente”, a “Sra. B.” fez um experimento em que uma lâmpada aquecia certa
quantidade de neve até vaporizá-la. Com o auxílio de um termômetro, as alunas observaram
que, quando a neve estava derretendo, a temperatura não variava. A “Sra. B.” explicou que
isso aconteceu por que à medida que o gelo derrete, o calórico torna-se latente no líquido
recém-formado, portanto, não pode aumentar a sua temperatura. Após estar tudo derretido, o
termômetro voltou a subir, mas num ritmo menor, embora a lâmpada continuasse aquecendo
do mesmo modo. Segundo a “Sra. B.”, pelo fato do “calor específico” da água ser maior do
que do gelo, uma parte maior do calórico recebido fica armazenada na forma ”combinada”.
Nesse caso, é necessário fornecer mais calor – mais tempo de aquecimento – para elevar a sua
temperatura de um mesmo valor do que antes, portanto, o termômetro sobe mais lento. Esse
fato mostra que um corpo sólido aumenta a sua capacidade para o calor ao se transformar em
um fluido. O experimento prossegue e novamente a temperatura fica estacionária na passagem
da água líquida para vapor. Dessa vez, não há dificuldade por parte das alunas em utilizar o
conceito de “calor latente” para explicar o ocorrido. A “Sra. B.” afirma que ao reverter o
processo, condensar o vapor em água e, em seguida, convertê-la em gelo, o “calor latente”
reaparecerá, por completo, na forma de “calórico livre”. Com a finalidade de mostrar isso, ela

110
Versão original: MRS. B.: This modification of heat was discovered and named by Dr. Black long before the
French chemists introduced the term caloric, and we must not presume to alter it, as it is still used by much
better chemists than ourselves. And, besides, you are not to suppose that the nature of heat is altered by being
variously modified: for if latent heat and specific heat do not excite the same sensations as free caloric, it is
owing to their being in a state of confinement, which prevents them from acting upon our organs; and
consequently, as soon as they are extricated from the body in which they are imprisoned, they return to their
state of free caloric (MARCET, 1817, p. 134).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 113

conduziu o vapor, por meio de um tubo, a um recipiente com água fria. “Emily” notou que o
vapor aquecia a água com grande rapidez. A “Sra. B.” prontamente replicou:

Sra. B.

Isso é porque ele não se limita a transmitir o seu calórico livre à água, mas
também seu calor latente. Esse método de aquecimento de líquidos tornou-se
vantajoso em vários estabelecimentos econômicos. As cozinhas a vapor, que
estão se popularizando, utilizam do mesmo princípio. O vapor é conduzido
de modo semelhante, por meio de um tubo, a vários recipientes que contêm
os mantimentos a serem cozidos, onde ele comunica a eles seu calórico
latente e retorna ao estado de água [...] (MARCET, 1817, p. 140, tradução
nossa). 111

Continuando com a experiência, a “Sra. B.” preparou uma mistura de sal e neve para congelar
a água. Ao entrar em contato com o sal, a neve começcou a derreter rapidamente. Mesmo
antes de estar totalmente líquida, “Caroline” verificou que a mistura apresentava uma
sensação térmica mais fria do que a do gelo. Vejamos como a ”Sra. B.” explicou esse
intrigante fenômeno:

Sra. B.

A causa do frio intenso da mistura pode ser atribuída à mudança do estado


sólido para um estado fluido. A união da neve e do sal produz um novo
arranjo de suas partículas, por consequência, eles se tornam líquidos; a
quantidade de calórico necessária para efetuar essa alteração é pega pela
mistura em qualquer lugar que puder ser obtida. Essa avidez da mistura para
o calórico, durante sua liquefação, é tal, que converte parte de seu próprio
calórico livre em calor latente, e é assim que a sua temperatura é reduzida
(MARCET, 1817, p. 143, tradução nossa). 112

Na sequência, ao imergir um copo de vidro com água na mistura de sal e neve, a indicação da
temperatura no termômetro, que estava dentro do copo, decresceu até ficar abaixo do ponto de

111
Versão original: MRS. B.: That is because it does not merely impart its free caloric to the water, but likewise
its latent heat. This method of heating liquids, has been turned to advantage, in several economical
establishments. The steam-kitchens, which are getting into such general use, are upon the same principle. The
steam is conveyed through a pipe in a similar manner, into the several vessels which contain the provisions to
be dressed, where it communicates to them its latent caloric, and returns to the state of water [...] (MARCET,
1817, p. 140).
112
Versão original: MRS. B.: The cause of the intense cold of the mixture is to be attributed to the change from a
solid to a fluid state. The union of the snow and salt produces a new arrangement of their particles, in
consequence of which they become liquid; and the quantity of caloric, required to effect this change, is seized
upon by the mixture wherever it can be obtained. This eagerness of the mixture for caloric, during its
liquefaction, is such, that it converts part of its own free caloric into latent heat, and it is thus that its
temperature is lowered (MARCET, 1817, p. 143).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 114

congelamento da água, e ainda assim ela não se solidificou. Provocando um novo frenesi
entre as alunas. Pacientemente, a “Sra. B.” esclareceu que isso sempre acontece quando a
água é congelada de modo lento, sem ser agitada. Mas, logo em seguida, a temperatura subiu
ao ponto de congelamento. Não foi difícil para “Caroline” compreender que essa ascensão
teve a sua origem na transformação do “calor latente” da água em “calórico livre”. Todavia,
ela foi temporária, durou apenas o tempo necessário para a retirada do “calor latente”. Depois
a temperatura diminuiu novamente até se igualar com a temperatura da mistura de sal e neve.
Nesse ponto, “Emily” se sente encorajada para explicar o experimento em que o éter ferveu e
a água congelou, com a temperatura de ambos decaindo no mesmo ritmo. A seu ver, o “calor
latente”, que a água cedeu no congelamento, foi imediatamente absorvido pelo éter, durante a
sua conversão em vapor. Entretanto, o seu raciocínio foi corrigido pela “Sra. B.”:

Sra. B.

Mas isso só conta parcialmente para o resultado da experiência, que continua


a ser explicada por que a temperatura do éter, enquanto no estado de
ebulição, é trazida para baixo da temperatura de congelamento da água. É
por causa do éter, durante a sua evaporação, reduzir a sua própria
temperatura, na mesma proporção que a da água, por meio da conversão de
seu calórico livre em calor latente: de modo que, embora um líquido ferva e
o outro congele, as suas temperaturas permanecem em um estado de
equilíbrio (MARCET, 1817, p. 149-150, tradução nossa). 113

Podemos encerrar por aqui o exame dessa memorável obra, pois conseguimos abranger os
fenômenos térmicos mais discutidos pelas pesquisas na área de ensino de Física que têm
como temática o conceito de calor. A análise dos livros didáticos que fizemos, por exemplo,
deu uma atenção especial a esses fenômenos, a saber: a natureza do calor; a relação entre o
calor e a tempeatura; a dilatação dos corpos; a propagação do calor; a mudança de estado
físico; o “calor sensível” e o “calor latente”. Procuramos, na medida do possível, não fazer
juízo de valor sobre o que estava sendo discutido. A nossa intenção foi compreender, com
mais profundidade, a lógica dos argumentos que garante à teoria do calórico um poder
explicativo refinado. No entanto, ela não passou incólume a esse período, de 1760 a 1850.
Além de algumas divergências entre os próprios caloristas, ela sofreu ataques dos defensores
da teoria dinâmica do calor, que, assim como a sua adversária, teve várias versões (FOX,

113
Versão original: MRS. B.: But this only partly accounts for the result of the experiment; it remains to be
explained why the temperature of the ether, while in a state of ebullition, is brought down to the freezing
temperature of the water. It is because the ether, during its evaporation, reduces its own temperature, in the
same proportion as that of the water, by converting its free caloric into latent heat: so that, though one liquid
boils, and the other freezes, their temperatures remain in a state of equilibrium (MARCET, 1817, p. 149-150).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 115

1971; ROLLER, 1950). Nessa época, entre os principais opositores ao conceito de calor como
substância, sem dúvida nenhuma, o nome mais lembrado é o do Conde Rumford (BROWN,
1949; FOX, 1971; MEDEIROS, 2009; MÜLLER, 2007; ROLLER, 1950). Desse modo, ele
será o representante dessa vertente teórica em nossa análise. Objetivamos exemplificar quais
foram as suas principais críticas direcionadas à teoria do calórico, bem como mostrar como
elas foram respondidas.

4.3 CRÍTICAS À TEORIA DO CALÓRICO: O CASO DO CONDE RUMFORD

Benjamin Thompson (1753-1814) nasceu em Massachusets, nos Estados Unidos. Aos


dezenove anos casou-se com uma viúva rica, indo morar em sua casa na cidade de Rumford.
Na “Guerra da Independência dos Estados Unidos da América”, foi espião dos ingleses.
Quando as tropas britânicas foram forçadas a abandonar Boston, ele fugiu juntos com os
soldados, deixando para trás a esposa e uma filha. Passou a servir nas tropas inglesas como
tenente coronel, sua função na prática era de um excelente engenheiro. Dentre as muitas
coisas que ajudou a planejar, estavam a construção e o aperfeiçoamento das armas de fogo.
Mas a sua estadia na Inglaterra não durou muito tempo. Acusado de vender segredos de
guerra para a França, foi aconselhado pelo Rei George III, de quem era amigo, a ir para o
continente. Desse modo, ele se estabeleceu em Munique, ficando a serviço de Karl Theodor, o
Eleitor da Baviera. As suas contribuições à Física nasceram todas da preocupação com o calor
e com os fenômenos a ele relacionados, frutos da preocupação com a produção de
armamentos. Na Baviera atuou como um eficiente engenheiro militar e administrador,
recebendo o título de Conde. Escolheu o nome de Rumford em homenagem à cidade onde a
sua primeira esposa nasceu. A sua segunda esposa foi a viúva de Lavoisier, morto na
guilhotina durante a Revolução Francesa, mas o casamento não durou muito, devido as brigas
do casal (MEDEIROS, 2009).

Ao trabalhar na perfuração de canhões na Baviera, Conde Rumford teve a intuição sobre a


natureza dinâmica do calor, a sua mais famosa contribuição à ciência. Diferente do que se
divulgam nos livros didáticos, seus experimentos não foram decisivos para provar que o
calórico não existia. Ele foi durante algum tempo um fiel adepto dessa teoria substancialista,
contribuindo, inclusive, para o seu desenvolvimento. Os seus trabalhos apenas lançaram, com
bastante vigor, a conjectura de que o calor deveria ser uma forma de movimento, fornecendo
vários indícios que nortearam o caminho daqueles que o seguiram nesse pensamento
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 116

(MEDEIROS, 2009). Encontramos em Roller (1950) uma boa fonte de consulta de suas
principais ideias, com excertos originais de algumas de suas obras. O primeiro texto analisado
é um artigo publicado no “Philosophical Transactions of the Royal Society”, em 1799, com o
título “An inquiry concerning the weight ascribed to heat”. No parágrafo inicial do artigo, ele
afirma que as diversas experiências que foram feitas, até aquele momento, com o objetivo de
determinar o peso do calórico, estão sujeitas a muitos erros. Não apenas por causa das
imperfeições dos instrumentos utilizados, mas também por causa dos efeitos das correntes de
ar causadas pelo calor ou pelo frio do corpo que é colocado na balança. Assim, ele relata que:

É um tempo considerável desde que eu comecei a meditar sobre esse


assunto, fiz muitas experiências com vista à sua investigação; nesses
experimentos, tomei todas as precauções para evitar erros dos quais conheço
as suas diversas fontes, um desejo sincero de averiguar um fato que eu
julguei ser importante de ser conhecido me inspirou; mas, apesar de todas as
minhas pesquisas, convenço-me, mais e mais, que um corpo não adquire
peso adicional ao ser aquecido, ou melhor, que calor não tem qualquer
efeito sobre os pesos dos corpos, tenho sido tão sensível à delicadeza da
averiguação que estou há muito tempo com receio de formar uma opinião
definitiva sobre o assunto (THOMPSON, 1799 apud ROLLER, 1950, p. 50,
tradução nossa). 114

A intenção de Rumford, por essa época, era investir contra a teoria do calórico em seus pontos
mais frágeis. Nesse caso, ele entrou no debate sobre a questão do peso dessa substância.
Muitos experimentos confirmaram uma alteração no peso dos corpos quando eram aquecidos
ou resfriados. Outros mostraram nenhuma modificação. Dúvidas pairavam, de ambos os
lados, sobre a qualidade das medidas efetuadas. Desse modo, ele apresenta, ao longo do
artigo, todas as precauções que tomou para obter os resultados mais precisos, chegando a
seguite conclusão:

Creio que podemos concluir com segurança que TODAS AS TENTATIVAS


PARA DESCOBRIR QUALQUER EFEITO DO CALOR SOBRE OS

114
Versão original: It is a considerable time since I first began to meditate upon this subject, and I have made
many experiments with a view to its investigation; and in these experiments I have taken all those precautions
to avoid errors which a knowledge of the various sources of them, and an earnest desire to determine a fact
which I conceived to be of importance to be known, could inspire; but though all my researches tended to
convince me more and more that a body acquires no additional weight upon being heated or, rather, that heat
has no effect whatever on the weights of bodies, I have been so sensible of the delicacy of the inquiry that I
was for a long time afraid to form a decided opinion upon the subject (THOMPSON, 1799 apud ROLLER,
1950, p. 50).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 117

PESOS APARENTES DOS CORPOS SERÃO INFRUTÍFERAS


(THOMPSON, 1799 apud ROLLER, 1950, p. 59, tradução nossa). 115

Contudo, para muitos outros cientistas e filósofos do século XVIII, essa não era considerada
uma grave objeção à teoria. Havia uma convicção de que uma pequena classe de "substâncias
imponderáveis", que além do calórico incluía a eletricidade, a luz e o magnetismo, não estava
sujeita a atração gravitacional, pelo menos não era perceptível, ao contrário da matéria
comum. Mas, segundo Roller (1950, p. 61, tradução nossa):

Embora os experimentos de Rumford sobre o peso do calor não terem sido


completamente conclusivos, sem dúvida foram os melhores de todos os
experimentos realizados sobre esse assunto. Na verdade, o presente artigo
tem como caracterísitca a descrição de uma técnica experimental magnífica,
sendo um exemplo clássico do que a investigação científica tem de
melhor. 116

Apesar de esse elogio, os experimentos mais comentados realizados pelo Conde Rumford
foram sobre o aquecimento dos canhões quando perfurados. Ele relatou os seus achados em
um artigo intitulado "An inquiry concerning the source of heat which is excited by friction",
que foi lido em uma reunião da Royal Society, em janeiro de 1798, e posteriormente publicado
no Philosophical Transactions, no mesmo ano. As circunstâncias que o inspiraram a executar
esses experimentos foram assim descritas por ele:

Foi por acaso que fui levado a fazer as experiências que estou prestes a dar
contas, embora não sejam talvez de importância suficiente para merecer uma
introdução tão formal, não posso deixar de me elogiar, pois elas são curiosas
de ser pensadas em vários aspectos, dignas da honra de serem dadas a
conhecer à Royal Society.

Estava envolvido recentemente na superintendência da perfuração de


canhões nas oficinas do arsenal militar de Munique, fiquei impressionado
com o grau muito considerável de calor [temperatura] que uma arma de
bronze adquire em um curto espaço de tempo em que está sendo perfurada, e
ainda com a temperatura maior (muito mais elevada do que a da água em
ebulição, como encontrada por experiência) das lascas metálicas separadas
do canhão pela broca.

115
Versão original: I think we may safely conclude that ALL ATTEMPTS TO DISCOVER ANY EFFECT OF
HEAT UPON THE APPARENT WEIGHTS OF BODIES WILL BE FRUITLESS (THOMPSON, 1799 apud
ROLLER, 1950, p. 59).
116
Versão original: Although Rumford's experiments on the weight of heat may not have been completely
conclusive, they undoubtedly were the best of all the experiments carried out on this subject. Indeed, the
present paper has been characterized as describing a magnificent experimental technique and a classic example
of what scientific investigation is at its best.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 118

Quanto mais eu meditava sobre esses fenômenos, mais eles me pareciam ser
curiosos e interessantes. Uma investigação completa deles parecia prometer
dar uma compreensão mais avançada sobre a natureza oculta do calor,
permitindo-nos formar algumas conjecturas razoáveis a respeito da
existência, ou inexistência, de um fluido ígneo 117 – um assunto sobre o qual
as opiniões dos filósofos de todas as épocas têm sido muito divididas
(THOMPSON, 1798 apud ROLLER, 1950, p. 63, tradução nossa). 118

O fato de o calor poder ser produzido por atrito era conhecido desde os tempos mais remotos.
A contribuição de Rumford foi perceber que um estudo mais profundo sobre o motivo de uma
grande quantidade de calor ser causada pela perfuração dos canhões poderia lançar uma nova
luz sobre a sua natureza oculta. As suas reflexões tinham como objetivo descobrir qual era a
origem dessa imensa quantidade de calor. Em sua primeira ação de trabalho, ele pesquisou se
esse fenômeno poderia ser atribuído às lascas metálicas resultantes do atrito, pois essa era a
resposta dada por alguns caloristas (BROWN, 1949; FOX, 1971; ROLLER, 1950). Esses
adeptos da teoria substancialista do calor afirmavam que parte do “calor latente” do material
era liberada durante a abrasão, juntamente com as lascas metálicas. De tal forma que a
“capacidade para o calor” – ou o “calor específico” – das lascas metálicas tornava-se menor.
Segundo Roller (1950, p. 64), aparentemente, ninguém tinha feito experimentos para verificar
se essa diferença nos calores específicos realmente existia. Após descrever em detalhes os
procedimentos adotados, Rumford concluiu que não houve uma alteração significativa nos
calores específicos. No entanto:

Estritamente falando, a demonstração de Rumford de que as lascas metálicas


e a parte maior têm o mesmo calor específico, à mesma temperatura, não
constituía uma refutação completa da explicação dos caloristas de como o
calor era desenvolvido por atrito. Mostrar que os dois calores específicos são

117
Segundo Roller (1950, p. 63), na literatura da época de Rumford, os termos “fluido ígeno”, “fluido de calor”,
“matéria de calor”, “calórico” e “calor” eram usados indistintamente.
118
Versão original: It was by accident that I was led to make the experiments of which I am about to give an
account; and, though they are not perhaps of sufficient importance to merit so formal an introduction, I cannot
help flattering myself that they will be thought curious in several respects, and worthy of the honor of being
made known to the Royal Society. Being engaged lately in superintending the boring of cannon in the
workshops of the military arsenal at Munich, I was struck with the very considerable degree of heat
[temperature] that a brass gun acquires in a short time in being bored, and with the still higher temperature
(much higher than that of boiling water, as I found by experiment) of the metallic chips separated from it by
the borer. The more I meditated on these phenomena, the more they appeared to me to be curious and
interesting. A thorough investigation of them seemed even to bid fair to give a farther insight into the hidden
nature of heat; and to enable us to form some reasonable conjectures respecting the existence, or nonexistence,
of an igneous fluid – a subject on which the opinions of philosophers have in all ages been much divided
(THOMPSON, 1798 apud ROLLER, 1950, p. 63).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 119

iguais pode ter sido necessário, mas não foi suficiente [...] (ROLLER, 1950,
p. 66, tradução nossa). 119

Isso por que a hipótese de que os calores específicos eram diferentes – proposta por William
Irvine e admitida pelos seus seguidores – não implicava, de modo conclusivo, na diferença
entre os calores latentes. De outro modo, ainda poderia ser dito que, embora as lascas
metálicas e o metal do objeto de onde elas vieram possuíssem os mesmos calores específicos
à mesma temperatura, o metal do objeto continha mais “calor latente” do que as lascas. Desse
modo, a diferença teria sido liberada na forma de “calórico livre” durante a abrasão (FOX,
1971; ROLLER, 1950). Mas, para Rumford, era evidente que o calor produzido não poderia
ser atribuído às lascas metálicas.

Entretanto, não satisfeito com esses estudos, ele elaborou outro experimento. Com a ajuda de
dois cavalos, um dispositivo era colocado em rotação forçando um cilindro maciço de metal,
com uma massa de 113 lb, a girar pressionado a uma broca sem corte. Para evitar, na medida
do possível, a perda de qualquer parte do calor que foi gerada no experimento, o cilindro foi
coberto com um revestimento de flanela grossa. No início, a temperatura do ar na sala, como
também a do cilindro, era de 60 °F. Depois de 30 minutos, cessado o movimento quando o
cilindro tinha realizado 960 voltas sobre seu eixo, um termômetro de mercúrio foi introduzido
em um buraco feito na lateral do cilindro, subindo, quase instantaneamente, para 130 °F. A
quantidade de calor que fez a temperatura do cilindro variar era suficiente para fazer derreter
6,5 lb de gelo, porém, apenas uma pequena porção de 837 g de pó metálico foi recolhida no
final do processo. Considerando que o “calor específico” do pó metálico é igual ao do
material do cilindro, como Rumford já havia verificado, para 837 g de pó metálico ter
fornecido uma quantidade calor capaz de variar em 70 °F a temperatura de 113 lb do cilindro,
a sua temperatura teria que diminuir o valor absurdo de 66.360 °F. Obviamente, isso não foi
observado. Em suas palavras:

Encontrando muitas razões para concluir que o calor gerado ou excitado,


como eu preferiria escolher para expressá-lo – nesses experimentos, não foi
fornecido à custa do calor latente ou calórico combinado do metal, fui em
frente com as minhas interrogações e me esforcei para descobrir se o ar

119
Versão original: Strictly speaking, Rumford's demonstration that the chips and bulk metal have the same
specific heat at the same temperature did not constitute a complete refutation of the calorists’ explanation of
how heat was developed by friction. To show that the two specific heats are equal may have been necessary,
but it was not sufficient [...] (ROLLER, 1950, p. 66).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 120

contribuía qualquer coisa, ou não, na geração dele (THOMPSON, 1798 apud


ROLLER, 1950, p. 73, tradução nossa). 120

Rumford afirmou não ter visto, ao longo do experimento, nenhum sinal de reação química
relacionada com a presença do ar que pudesse ter ocasionado o calor. Mas, para não pairar
dúvidas, ele decidiu refazer a experiência de tal maneira que o ar fosse retirado – por meio de
um mecanismo com um êmbolo – da superíficie de contato entre a broca e o cilindro. O
resultado não foi muito diferente do anterior. Não satisfeito, ele encerrou todo o aparato em
uma caixa cheia d’água gelada a 60 °F. Para a sua surpresa, depois de duas horas e meia, toda
a água havia entrado em ebulição, atingindo a temperatura de 210 °F. Antes de emitir o seu
parecer final no artigo, ainda restava mais uma consideração a ser feita, conforme ele
esclarece na passagem abaixo:

Resta-me dar conta de mais um experimento que foi feito com esse aparato.
Descobri, pelo experimento No. I, quanto calor foi gerado quando o ar teve
livre acesso às superfícies metálicas que foram friccionadas juntas. Pelo
experimento No. 2, verifiquei que a quantidade de calor gerada não foi
sensivelmente diminuída quando o ar não teve acesso livre. O experimento
No. 2 indicou que a geração do calor não foi impedida ou retardada
mantendo-se o aparato imerso em água. Mas, nessa última experiência
mencionada, a água, embora rodeando o cilindro metálico oco de todos os
lados, externamente, não foi permitida de entrar na cavidade da perfuração
(sendo impedida pelo pistão) e, consequentemente, não entrou em contato
com as superfícies metálicas onde o calor foi gerado. Para ver quais os
efeitos que seriam produzidos dando a água livre acesso a essas superfícies,
fiz agora o próximo experimento (THOMPSON, 1798 apud ROLLER, 1950,
p. 78, tradução nossa). 121

Quanto à produção de calor, não houve nada de novo em relação ao que já foi verificado nos
experimentos anteriores. Rumford menciona apenas que ficou surpreendido com a pouca

120
Versão original: Finding so much reason to conclude that the heat generated or excited, as I would rather
choose to express it – in these experiments was not furnished at the expense of the latent heat or combined
caloric of the metal, I pushed my inquiries a step farther and endeavored to find out whether or not the air
contributed anything in the generation of it (THOMPSON, 1798 apud ROLLER, 1950, p. 73).
121
Versão original: It remains for me to give an account of one more experiment that was made with this
apparatus. I found, by experiment No. I, how much heat was generated when the air had free access to the
metallic surfaces which were rubbed together. By experiment No. 2, I found that the quantity of heat generated
was not sensibly diminished when the air did not have free access. Experiment No. 3 indicated that the
generation of the heat was not prevented or retarded by keeping the apparatus immersed in water. But, in this
last-mentioned experiment, the water, though it surrounded the hollow metallic cylinder on every side,
externally, was not suffered to enter the cavity of its bore (being prevented by the piston) and consequently did
not come into contact with the metallic surfaces where the heat was generated. To see what effects would be
produced by giving the water free access to these surfaces, I now made the next experiment (THOMPSON,
1798 apud ROLLER, 1950, p. 78).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 121

diferença no barulho feito pela broca em atrito com o fundo do cilindro. Esse ruído era
insuportável tanto com as superfícies em contato com o ar quanto com a água. Finalizada essa
quarta e última experiência, ele chega à seguinte conclusão sobre a origem da imensa
quantidade de calor que surge na fricção de duas superfícies metálicas:

No debate sobre esse assunto, não deve ser esquecido de considerar que, em
muitas circunstâncias notáveis, a fonte de calor gerado pelo atrito nessas
experiências pareceu ser inesgotável.

É desnecessário acrescentar que qualquer coisa que qualquer corpo isolado,


ou sistema de corpos, pode continuar a fornecer sem limitação, não pode
possivelmente ser uma substância material, parece-me ser extremamente
difícil, se não impossível, formar qualquer ideia distinta de qualquer coisa
capaz de ser excitada e comunicada na forma em que o calor foi excitado e
comunicado nessas experiências, a não ser o MOVIMENTO (THOMPSON,
1798 apud ROLLER, 1950, p. 79-80, tradução nossa). 122

Sabiamente, Rumford concentrou o seu ataque final no princípio basilar para os caloristas, a
saber: o princípio da conservação do calórico. O conjunto dos experimentos mostrou que
havia uma fonte inesgotável de calor por atrito. Se o calórico fosse retirado de um objeto por
fricção, como alegavam os caloristas, deveria haver um estágio em que todo o calórico seria
esgotado. Mas isso não foi observado. Dessa maneira, se um objeto isolado pode continuar a
fornecer calor, indefinidamente, então o calor não pode ser uma substância material. Por
consequência, a origem do calor deve ser atribuída ao movimento das partículas dos materiais
que se atritavam. No entanto, Rumford deixa claro que não sabe como ou por que meios esse
movimento produz e faz o calor se propagar. Em contrapartida, segundo Roller (1950, p. 80),
um defensor da teoria do calórico questionou a afirmação de que a fonte de calor nesses
experimentos por atrito era inesgotável. Ele argumentou que a quantidade de calor observada
foi apenas uma pequena fração da quantidade total de calor que o metal possuía. Além disso,
outras explicações foram sugeridas, como exemplifica Roller (1950, p. 67, tradução nossa):

Um defensor da teoria do calórico afirmou, em 1830, que nenhum dos


experimentos acima mencionados sobre os calores específicos teve qualquer
significado para determinar se o calor deriva ou não durante a perfuração das

122
Versão original: And, in reasoning on this subject, we must not forget to consider that most remarkable
circumstance, that the source of the heat generated by friction in these experiments appeared to be
inexhaustible. It is hardly necessary to add that anything which any insulated body, or system of bodies, can
continue to furnish without limitation, cannot possibly be a material substance; and it appears to me to be
extremely difficult, if not quite impossible, to form any distinct idea of anything capable of being excited and
communicated in the manner in which heat was excited and communicated in these experiments, except it be
MOTION (THOMPSON, 1798 apud ROLLER, 1950, p. 79-80).
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 122

lascas de metal. Ele sustentou que esse calor poderia ter vindo não das
lascas, mas a partir da camada de metal da parte maior em contato com a
broca. A enorme força que essa camada foi submetida tenderia a comprimi-
la e aumentar a sua densidade; há muito tempo já se sabia que quando
qualquer pedaço de metal é comprimido, como ao martelá-lo, calor é
desenvolvido. Esse calor, o calorista disse, foi espremido para fora do metal
como resultado da compressão. Assim, na perfuração do canhão, sucessivas
camadas frescas de metal do canhão foram expostas à compressão como
resultado da abrasão, portanto, cada camada em sucessão libertou uma
determinada quantidade de calor. Se quaisquer alterações na densidade ou no
calor específico ocorreram, estariam, desse modo, limitadas às superfícies
das camadas da grande massa de metal, e isso Rumford não testou. 123

O leitor deve ter percebido que os argumentos de Rumford não foram suficientes para por fim
à teoria do calórico, como apregoam muitos livros didáticos. A citação de Fox (1971, p. 104,
tradução nossa), a seguir, é muito nítida sobre esse ponto:

Na década de 1800-1810, a teoria do calórico foi provavelmente mais


amplamente aceita do que em qualquer outro momento de sua história. O
questionamento da materialidade do calor, que tinha sido realizado na virada
do século, não só por Rumford, mas também, como veremos, por Humphry
Davy e Thomas Young, teve resultado extremamente pequeno, e a visão de
que ‘[calor] é quase universalmente considerado o efeito de um fluido’ foi a
que a maioria dos homens de ciência considerou aceitável em 1800, em
1810, ou mesmo em 1815, tanto quanto tinha sido em 1797, quando
apareceu na terceira edição da Encyclopaedia Britannica, pouco antes de
Rumford, Davy, e Young exporem as suas críticas [...]. 124

Outro detalhe, muito bem lembrado por Medeiros (2009), é que a teoria dinâmica do calor
também sofria ataques dos caloristas. Por exemplo, a dificuldade que ela tinha em explicar
como o calor se propagava no vácuo. Ou seja:

123
Versão original: One supporter of the caloric theory asserted, in 1830, that none of the afore-mentioned
experiments on specific heats had any significance in determining whether or not the heat evolved during
boring came from the metal chips. He contended that this heat could have come, not from the chips, but from
the layer of bulk metal in contact with the borer. The large force to which this layer was subjected would tend
to compress it and increase its density; and it had long been known that when any piece of metal is
compressed, as by hammering it, heat is evolved. This heat, the calorists said, was squeezed out of the metal as
a result of the compression. Thus, in the boring of the cannon, successive fresh layers of cannon metal were
exposed to compression as the result of the abrasion, and hence each layer in succession would release a
certain quantity of heat. If any changes in density or specific heat occurred, it would therefore be confined to
the surface layer of the bulk metal, and this Rumford did not test.
124
Versão original: In the decade 1800-10 the caloric theory was probably more widely accepted than at any
other time in its history. The questioning of the materiality of heat that had been conducted about the turn of
the century, not only by Rumford but also, as we shall see, by Humphry Davy and Thomas Young, had had
remarkably little effect, and the view that ‘[heat] is almost universally believed to be the effect of a fluid’ was
one that most men of science would have found no less acceptable in 1800, in 1810, or even in 1815 than it had
been in 1797, when it appeared in the third edition of the Encyclopaedia Britannica, shortly before Rumford,
Davy, and Young put their criticisms [...].
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 123

[...] derrubar uma dessas teorias não era nada simples. As pessoas
costumavam pensar que bastava colocar um defeito em uma teoria para que
ela caísse. Mas isso é ingênuo, porque, no nosso caso, mesmo que uma teoria
não explicasse um certo fenômeno, ela explicava bem uma série de outros
fenômenos. Cada teoria era complexa como uma estrutura. Você mexia aqui,
e ela balançava ali, sacou? E ainda tinha a questão dos contra-ataques
(MEDEIROS, 2009, p. 12).

A pergunta sobre quais foram as principais causas que fizeram com que a teoria do calórico
fosse abandonada, ainda não foi respondida de forma satisfatória pelos historiadores da
ciência. Fox (1971, p. 02), por exemplo, observa que a rejeição, depois de 1815, da
abordagem Laplaciana para a ciência, baseada em princípios newtonianos e na crença de
fluidos imponderáveis, foi uma das mais relevantes causas do descrédito da teoria do calórico.
De acordo com Brush (1988, p. 228), os fatores mais importantes foram a descoberta do
princípio da conservação da energia; as evidências de que a pressão de um gás não era
causada por forças repulsivas intermoleculares, ideia essa associada ao calórico; e a aceitação
generalizada da teoria ondulatória da luz a qual – combinada com a visão de que calor e luz
são qualitativamente o mesmo fenômeno - sugeria que o calor, como a luz, é uma forma de
movimento ondulatório em vez de uma substância. Independentemente das razões exatas, Fox
(1971, p. 3-4, tradução nossa) resume qual foi a atitude dos cientistas no período final da
aceitação da teoria:

[...] o resultado na década de 1820 não foi uma virada brusca para nossa
teoria moderna vibracional, mas um período de agnosticismo largamente
reconhecido no que diz respeito à natureza do calor, um período que se
prolongou até a teoria do calórico ser finalmente abandonada por volta de
1850. Em virtude desse agnosticismo, não é de se surpreender que a teoria
do calórico não foi um alvo fácil para os conservacionistas da energia; no
meio do século ainda era tecnicamente a teoria prevalecente do calor,
embora convencesse muito pouco. 125

Apesar de não haver uma unanimidade quanto aos fatores primordiais que abalaram a teoria
do calórico, os pesquisadores concordam que o advento da conservação da energia,
substituindo a conservação do calórico, deu o golpe final. Principalmente o cálculo do
equivalente mecânico do calor realizado por Mayer e Joule (BROWN, 1949; BRUSH, 1988;

125
Versão original: [...] the result in the 1820s was not a sudden turning towards our modern vibrational theory
but a period of generally acknowledged agnosticism with regard to the nature of heat, a period that lasted until
the caloric theory was finally abandoned about 1850. In view of this agnosticism it is hardly surprising that the
caloric theory was such an easy target for the energy conservationists; at the middle of the century it was still
technically the prevailing theory of heat but by then it carried very little conviction.
4 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO FÍSICO DE CALOR 124

FOX, 1971; MEDEIROS, 2009; MÜLLER, 2007; ROLLER, 1950). O conceito de energia
finalmente havia se firmado como elemento de ligação entre a mecânica e a termodinâmica.
Mas essa história já foi contada por nós. Sentimo-nos, agora, quase prontos para efetuarmos a
análise dos livros didáticos, falta ainda apresentarmos a teoria das representações sociais e a
teoria retórica e a argumentação.
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

5.1 UMA VISÃO GERAL

A teoria das representações sociais foi inaugurada, no campo da psicologia social, por Serge
Moscovici, em 1961, com a publicação de seu trabalho sobre as representações sociais da
psicanálise na França (La psychanalyse, son image et son public). Essa teoria busca
compreender como determinadas representações do mundo se formam em nossas mentes. Ela
parte do princípio de que estamos imersos em um ambiente cercado por palavras, ideias e
imagens que, sem que nos apercebamos, nos influenciam de tal maneira que as nossas atitudes
e pensamentos são guiados por estas representações. “A realidade é, para a pessoa, em grande
parte, determinada por aquilo que é socialmente aceito como realidade” (LEWIN, 1948 apud
MOSCOVICI, 2003, p. 36). Mas, diferente dos marxistas, Moscovici não crê que o que as
pessoas pensam e dizem apenas reflete a ideologia dominante em que estão sob controle. Para
ele:

[...] pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos, pensam por si


mesmos, produzem e comunicam incessantemente suas próprias e
específicas representações e soluções às questões que eles mesmos colocam.
Nas ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, etc. as pessoas analisam,
comentam, formulam “filosofias” espontâneas, não oficiais, que têm um
impacto decisivo em suas relações sociais, em suas escolhas, na maneira
como eles educam seus filhos, como planejam seu futuro, etc. Os
acontecimentos, as ciências e as ideologias apenas lhes fornecem o
“alimento para o pensamento” (MOSCOVICI, 2003, p. 45).

As duas questões que norteiam as pesquisas nessa área são: Por que criamos as
representações? Em nossas razões de criá-las, o que explica suas propriedades cognitivas? De
acordo com Moscovici (1978, 2003), a sociedade é dividida em dois universos: o consensual e
o reificado. O universo consensual cria-se com a conversação, convenções linguísticas e um
estoque implícito de imagens e ideias que são consideradas certas e mutuamente aceitas. Isso
nivela as pessoas capacitando cada um a falar em nome do grupo e sob seu auspício. ”Na
maioria dos locais públicos de encontro, esses políticos amadores, doutores, educadores,
sociólogos, astrônomos, etc. podem ser encontrados expressando suas opiniões, revelando
seus pontos de vista e construindo a lei” (MOSCOVICI, 2003, p. 50-51). No universo
reificado, a sociedade é fragmentada em várias instâncias do saber, desse modo, somente uma
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 126

competência particular adquirida poderá garantir o seu direito de ser ouvido em um grupo
social específico. “Existe um comportamento adequado para cada circunstância, uma fórmula
lingüistica para cada confrontação e, nem é necessário dizer, a informação apropriada para um
contexto determinado” (MOSCOVICI, 2003, p. 52). A nossa compreensão do universo
reificado se dá por intermédio das ciências, do universo consensual pelas representações
sociais. Uma característica marcante do universo consensual é a estabilidade, ou seja:

[...] os universos consensuais são locais onde todos querem sentir-se em


casa, a salvo de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito
ali, apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora,
mais do que contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam, sempre
de novo, as mesmas situações, gestos, idéias. A mudança como tal somente é
percebida e aceita desde que ela apresente um tipo de vivência e evite o
murchar do diálogo, sob o peso da repetição. Em seu todo, a dinâmica das
relações é uma dinâmica de familiarização, onde os objetos, pessoas e
acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios
encontros e paradigmas (MOSCOVICI, 2003, p. 54-55).

Quando as ideias provindas do universo reificado são inconsistentes com as praticadas no


universo consensual, há a necessidade de uma adequação para tornar familiar algo não-
familiar. Para Moscovici (2003, p. 57), nós criamos representações sociais com esse
propósito:

Por isso, algumas pessoas irão comparar a uma “confissão” a tentativa de


definir e tornar mais acessíveis as práticas do psicanalista para com seu
paciente – esse “tratamento médico sem remédio” que parece eminentemente
paradoxal a nossa cultura. O conceito é então separado de seu contexto
analítico e transportado a um contexto de padres e penitentes, de sacerdotes
confessores e pecadores arrependidos. O método de livre associação é, então,
ligado às regras de confissão. Dessa maneira, o que primeiramente parecia
ofensivo e paradoxal, torna-se um processo comum e normal. A psicanálise
não é mais que uma forma de confissão. E posteriormente, quando a
psicanálise for aceita e se tornar uma representação social de pleno direito, a
confissão é vista, mais ou menos como um forma de psicanálise. Uma vez
que o método da livre associação tenha sido separado de seu contexto teórico
e tenha assumido conotações religiosas, ele cessa de causar surpresa e mal-
estar e toma, em contraposição, um caráter absolutamente comum. E isso
não é, como poderíamos ser tentados a crer, um simples problema de
analogia, mas uma função real, socialmente significante, uma mudança de
valores e sentimentos.

Em outras palavras, o compartilhamento de teorias do senso comum a respeito de


determinados objetos assegura a comunicação entre as pessoas e fornece um guia para suas
condutas (SANTOS, 2005, p. 29). Essa transformação do incomum para o comum ocorre com
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 127

a ajuda de dois mecanismos cognitivos baseados na memória e em conclusões passadas, a


saber: a ancoragem e a objetivação (MOSCOVICI, 1978, 2003). A ancoragem é um recurso
utilizado pela nossa mente “[...] que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga,
em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria
que nós pensamos ser apropriada” (MOSCOVICI, 2003, p. 61). Nessa comparação, nossas
escalas de valores e o sentimento que temos pelo objeto em questão nos guiam no desejo de
defini-lo como normal ou aberrante. Ao enquadrarmos determinado objeto ou ideia em uma
categoria, esse adquire características dessa categoria e recebe, consequentemente, as
impressões, opiniões e sentimentos que temos para com ela. Ao afirmarmos que os elétrons
comportam-se como partículas, significa que as leis mecânicas que regem o comportamento
dessas também podem ser aplicadas aos elétrons, e, como as partículas, esses não devem
sofrer difração e interferência. Outro exemplo:

Quando apareceram as primeiras informações sobre a AIDS, a imprensa


imediatamente chamou a “nova doença” de “câncer gay” ou “peste gay”. O
fato de ter sido descoberta inicialmente em sujeitos homossexuais, de causar
a morte sem que se soubesse exatamente as causas e de ser contagiosa,
levaram a imprensa a associar ao câncer (mortal) e à peste (contagiosa e
mortal). Um sentido foi atribuído ao novo objeto (AIDS) a partir de
conhecimentos anteriores e um nome lhe foi atribuído (SANTOS, 2005, p.
33).

Complementando a ancoragem, a objetivação é um mecanismo que descobre a qualidade


icônica de uma ideia e reproduz um conceito em uma imagem ou em um núcleo figurativo,
que não precisa necessariamente ser uma figura, mas um conjunto de significados que consiga
concretizar o objeto. “Temos apenas de comparar Deus com um pai e o que era invisível,
instantaneamente se torna visível em nossas mentes, como uma pessoa a quem nós podemos
responder como tal” (MOSCOVICI, 2003, p. 72). Ou, transformar o complexo da teoria
psicanalítica que surgiu como uma hipótese teórica em um atributo real do outro. Desse
modo, as ideias construídas em contextos específicos são percebidas como algo palpável,
concreto e exterior ao sujeito (SANTOS, 2005, p. 31).

Esses são os pontos essenciais da teoria das representações sociais. Mas Sá (1998) nos alerta
que apesar de o termo “representação social” ter sido cunhado por Serge Moscovici, para
designar especificamente o tipo de fenômeno ao qual a sua interpretação teórica se aplicava,
hoje ele é utilizado de modo mais amplo, sem uma correspondência necessária com o conceito
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 128

proposto originalmente. “Eles possuem gêneses independentes daquela que resultou na


perspectiva moscoviciana e não chegam a apresentar o caráter de ‘escola’ de que esta
perspectiva hoje se reveste” (SÁ, 1998, p. 61-62). A própria “escola moscoviciana” desdobra-
se em três correntes teóricas complementares:

[...] uma mais fiel à teoria original, liderada por Denise Jodelet, em Paris;
uma que procura articulá-la com uma perspectiva mais sociológica, liderada
por Willem Doise, em Genebra; uma que enfatiza a dimensão cognitivo-
estrutural das representações, liderada por Jean-Claude Abric, em Aix-em-
Provence (SÁ, 1998, p. 65).

Contudo, não são abordagens incompátiveis entre si, pois provêm da mesma matriz básica e
não a desautorizam (SÁ, 1998, p. 65). Para Sá (1998, p. 64), “[...] a melhor estratégia para o
pesquisador [iniciante] no campo das representações sociais parece ser a de escolher uma
perspectiva teórica já constituída [...]”, nesse caso, a opção sugerida pelo autor é a proposta
original de Moscovici, sendo esse o caminho escolhido por nós. Para nos auxiliar nessa tarefa,
nos guiamos, principalmente, pelos estudos sobre a representação social realizados por
Moscovici (1978, 2003); pelos trabalhos de Jodelet (2001, 2005), seguidora mais fiel à sua
perspectiva teórica; e pelo textos de pesquisadores brasileiros experientes no trabalho com
essa teoria (ALVES-MAZZOTTI, 2008; BRAZ DA SILVA; MAZZOTTI, 2009;
COUTINHO et al., 2003; DUARTE; MAZZOTTI, 2004; GUARESCHI;
JOVCHELOVITCH, 2002; MAZZOTTI, 1997, 1999, 2002, 2007, 2008; MOREIRA et al.,
2005; SÁ, 1998, 2002; SANTOS; ALMEIDA, 2005).

5.2 ALGUNS PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS E EPISTEMOLÓGICOS DA TEORIA

Moscovici iniciou o processo de elaboração teórica das representações sociais, retomando o


conceito de representações coletivas, proposto por Durkheim. No entanto, as representações
coletivas diferenciam-se das sociais por abrangerem uma gama muito ampla e heterogênea de
formas de conhecimento; por serem muito estáticas e por serem vistas como entidades
explicativas absolutas e não como fenômenos que devessem ser explicados. Ao analisar o
conjunto de fenômenos e conceitos que permeiam a teoria das representações sociais,
Moscovici afirma que a maioria da sociedade acredita que “[...] todas nossas percepções,
idéias e atribuições são respostas a estímulos do ambiente físico ou quase-físico, em que nós
vivemos” (MOSCOVICI, 2003, p. 30). Consequentemente, julgamos perceber o mundo tal
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 129

como é, sendo o meio ambiente autônomo e independente de nós, ou seja, ele é indiferente às
nossas necessidades e desejos.

No entanto, o autor cita três fatos comuns que contradizem esses pressupostos. Primeiro, a
observação familiar de que nós temos uma visão fragmentada da realidade, que faz com que
algumas pessoas ou coisas sejam visíveis ou invisíveis para nós. Segundo, muitas vezes
damos como certo determinadas evidências, que repentinamente transformam-se em meras
ilusões. Terceiro, “[...] nossas reações aos acontecimentos, nossas respostas aos estímulos,
estão relacionadas a determinada definição, comum a todos os membros de uma comunidade
à qual nós pertencemos” (MOSCOVICI, 2003, p. 31). Esses fatos indicam que os nossos
sistemas perceptivos e cognitivos não têm acesso direto à realidade, e sim às suas
representações:

Isso significa que nós nunca conseguimos nenhuma informação que não
tenha sido distorcida por representações ‘superimpostas’ aos objetos e às
pessoas que lhes dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis.
Quando contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição
genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as suas
recordações que nós preservamos e nossas categorias culturais, tudo isso se
junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em última análise, elas são
apenas um elemento de uma cadeia de reação de percepções, opiniões,
noções e mesmo vidas, organizadas em uma determinada sequência [...]
(MOSCOVICI, 2003, p. 33).

As representações têm uma natureza convencional e prescritiva, por criarem categorias e


imporem pensamentos a serem seguidos. Portanto, “[...] vemos apenas o que as convenções
subjacentes nos permitem ver e nós permanecemos inconscientes dessas convenções [...]”
(MOSCOVICI, 2003, p. 35). O autor faz um interessante paralelo entre a psicologia social
americana e o que ele almeja para a psicologia social européia. Em linhas gerais, para ele a
primeira é guiada pelo positivismo e pelo capitalismo, predominando os métodos e as técnicas
sobre a teoria. A segunda tem por objeto central e exclusivo “[...] o estudo de tudo o que se
refira à ideologia e à comunicação, do ponto de vista de sua estrutura, sua gênese e sua função
[...]” (MOSCOVICI, 2003, p. 154), e seu campo específico será:

[...] o estudo dos processos culturais que são responsáveis pela organização
do conhecimento em uma sociedade, pelo estabelecimento das relações
interindividuais no contexto do ambiente social e físico, pela formação dos
movimentos sociais (grupos, partidos, instituições), através dos quais os
homens agem e interagem, pela codificação da conduta interindividual e
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 130

intergrupal que cria uma realidade social comum com suas normas e valores,
cuja origem deve ser novamente buscada no contexto social [...]
(MOSCOVICI, 2003, p. 154).

Essas reflexões quanto à natureza da ciência e do conhecimento, que, entre outras coisas,
põem em xeque a universalidade das pesquisas de cunho positivistas, fornecem a base
epistemológica para a teoria moscoviciana. Outro ponto destacado por Moscovici é o caráter
racional e lógico das representações sociais. À primeira vista, principalmente para quem é da
matemática ou das ciências naturais, essa informação escandaliza. Afinal, há um “consenso
positivista” de que onde existam crenças, superstições ou preconceitos, não há racionalidade.
Nesse aspecto, o pensamento de Moscovici se assemelha muito ao de Feyerabend em “Contra
o Método”. Ou seja, as crenças, superstições ou preconceitos só se afiguram bizarros e
desprovidos de sentido por que seu conteúdo ou não é conhecido, ou é adulterado por
“cientistas” não familiarizados com os critérios de racionalidade e lógica das culturas que os
originaram. Para Moscovici (2003, p. 188), “[...] é o conteúdo de uma representação e a
natureza do grupo correspondente que estabelece o princípio da racionalidade e não o
inverso”. Desse modo:

[...] o conhecimento ingênuo não deve ser invalidado como falso ou


enviesado, o que vai ao encontro de certos postulados cognitivistas, segundo
os quais exisitiriam vieses naturais, inerentes ao funcionamento mental
espontâneo (por exemplo, na atribuição de causalidade). Trata-se de um
conhecimento “outro”, diferente da ciência, mas que é adaptado à ação
sobre o mundo e mesmo corroborado por ela. Sua especificidade,
justificada por formação e finalidades sociais, constitui-se em objeto de
estudo epistemológico não apenas legítimo, mas necessário para
compreender plenamente os mecanismos do pensamento, além de ser
pertinente para tratar do próprio saber científico [...] (JODELET, 2001, p.
29, grifo nosso)

Seguindo essa linha de raciocínio, podemos afirmar que o conhecimento do senso comum não
se contrapõe ao conhecimento científico. São apenas formas de conhecimento de natureza
diferente, construídos por processos diversos e com funções específicas. O conhecimento do
senso comum:

[...] se inscreve numa outra ordem de conhecimento da realidade, é uma


forma de saber diferenciado tanto no que se refere a sua elaboração como na
sua função. Enquanto que o conhecimento científico é construído a partir de
passos formalmente delimitados [...] e tem como função principal conhecer a
natureza e dominá-la, o conhecimento do senso comum é elaborado a partir
de processos de objetivação e ancoragem, segue uma lógica natural, e tem
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 131

como funções orientar condutas, possibilitar a comunicação, compreender e


explicar a realidade social, justificar a posteriori as tomadas de posição e as
condutas do sujeito, e uma função identitária que permite definir identidades
e salvaguardar as especificidades dos grupos (SANTOS, 2005, p. 20-21).

Diante desse panorama, surgem os seguintes questionamentos: “Qualquer conhecimento do


senso comum se estrutura em uma representação social? Dado um objeto, todos os grupos
e/ou categoriais sociais possuirão uma representação social sobre ele? Como diferenciar uma
representação social de simples opiniões e imagens? Dentro de um mesmo grupo, a
representação social de um determinado objeto é consensual? Que tamanho devem ter os
grupos e qual o nível de consenso necessário para que se possa dizer que estamos frente a uma
representação social?”.

5.3 A IDENTIFICAÇÃO DOS FENÔMENOS DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL

Há uma concordância entre os pesquisadores dessa vertente teórica que nem todo objeto
admite uma representação social, pode ser que “[...] um determinado objeto dê lugar tão-
somente a uma série de opiniões e de imagens relativamente desconexas [...]” (IBAÑEZ, 1988
apud SÁ, 1998, p. 46) por um determinado grupo social.

Sá (1998) e Santos (2005) afirmam que Moscovici, ao refletir sobre as condições de


emergência das representações sociais, elencou três principais fatores: a dispersão da
informação; a focalização e a pressão à inferência. Adotemos, como exemplo, o conceito
científico de calor como objeto e os autores dos livros didáticos de Física como um grupo
social. A dispersão da informação nos diz que a informação desse conceito ocorrerá de
maneira diversa e distorcida entre esses indivíduos, pois as condições de acesso ao universo
reificado são desiguais 126. A focalização, por sua vez, está relacionada com a desigualdade de
interesses dos sujeitos para com esse conceito127. A pressão à inferência se dá quando esses

126
“[...] por exemplo, obstáculos de transmissão, falta de tempo, barreiras educativas e até mesmo os efeitos de
especialização” (SANTOS, 2005, p. 29).
127
“[...] A intensidade de suas atitudes e o modo pelo qual ele relaciona os dados da realidade depende de seus
hábitos lógicos e lingüísticos, de tradições históricas, do acesso à informação e da estratificação de valores [...]
sua formação religiosa e sua cultura terão também um papel importante na apropriação do novo conhecimento”
(SANTOS, 2005, p. 28-29).
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 132

autores são obrigados, pelo dever da profissão, a assimilar e acomodar esse conceito, tendo-o
como uma ameaça à identidade ou integridade do grupo social 128.

Desse modo, eles precisam discutir, analisar, conversar, negociar o significado do conceito,
em busca do acordo sempre almejado no universo consensual. Todavia, devido à dispersão da
informação e à focalização, o conceito será reinterpretado pelo grupo social por meio de
inferências sustentadas no desejável. Assim, essas três condições, em conjunto, levarão o
grupo a construir uma representação social do conceito de calor. Tornando familiar algo não-
familiar, com a ajuda dos dois mecanismos cognitivos vistos anteriormente: a ancoragem e a
objetivação.

Em contrapartida, ao modificar o grupo social dos autores dos livros didáticos de Física pelos
alunos dessa disciplina, percebe-se um enfraquecimento do terceiro fator. Conforme nos
alertou o professor Tarso Bonilha Mazzotti em seu parecer sobre o nosso pré-projeto, os
estudantes dificilmente produzem representações sociais de conceitos científicos, uma vez que
esses não são uma ameaça à identidade ou integridade do grupo. Para esses objetos, eles são
grupos nominais, não efetivamente sociais. Complementando essa advertência, Sá (1998, p.
49) esclarece que as respostas fornecidas por meio de questionários e/ou entrevistas diretivas,
em que a liberdade de expressão dos pesquisados é restringida pelo modo que as perguntas
são formuladas, não garantem a existência de uma representação social, pois:

[...] entrevistas e questionários exigem respostas por parte dos sujeitos da


pesquisa. E estes as dão, mesmo que nunca tenham pensado sobre o assunto
ou acompanhado discussões sobre ele no âmbito do seu grupo. Pode-se
chegar assim a pseudo-representações, descritas até com alguma
verossimilhança, mas que simplesmente não emergiram de fato da vida
social cotidiana daqueles que seriam seus supostos usuários.

Nesse contexto, também se insere a observação de Jodelet (1986 apud Sá, 1998, p. 49) quanto
à necessidade de se “[...] evitar trabalhar sobre o discurso social flutuante, sem assento nem
referência sobre a prática, e apresentando sobretudo o risco de ser falacioso”. Em resumo, de
acordo com Mazzotti (2008, p. 126, grifo nosso), não devemos confundir opinião, atitude e
imagem, com o conceito representação social:

128
“Considerando que o sujeito busca constantemente o consenso com o seu grupo e que a ação o obriga a
estimar, comunicar e responder às exigências da situação a cada momento, essas múltiplas pressões tendem a
influenciar a natureza dos julgamentos, preparando respostas pré-fabricadas e forçando um consenso de
opinião para garantir a comunicação e assegurar a validade da representação” (SANTOS, 2005, p. 28).
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 133

[...] Porque os primeiros supõem a passividade dos indivíduos e grupos


sociais, enquanto no conceito de representação social os indivíduos e grupos
são ativos produtores de suas representações, não são “opiniões acerca de”,
nem “imagens de”, mas “teorias”, “ciências coletivas” que interpretam e
produzem o real. Não são a expressão imediata do mundo humano e não
humano em suas relações, não expressam diretamente o que as ciências e as
filosofias dizem a respeito dessas relações, são uma interpretação particular
dessas informações. Nesse sentido, as representações são um discurso a
respeito de outro discurso, que apresenta um estilo discursivo peculiar [...].

Em consequência dos três principais fatores presentes nas condições de emergência das
representações sociais – dispersão da informação, a focalização e a pressão à inferência –
ocorre a defasagem entre a representação produzida pelo grupo social e seu referente no
universo reificado. De acordo com Jodelet (2001), essa defasagem produz três tipos de efeitos
no nível dos conteúdos representativos: distorções, suplementações e subtrações. Nas
distorções, embora todos os atributos do objeto estejam presentes, alguns são acentuados ou
atenuados. As suplementações “[...] consiste em conferir atributos e conotações que não lhe
são próprias ao objeto representado, resulta de um acréscimo de significações [...]”
(JODELET, 2001, p. 36). Nas subtrações, atributos pertencentes ao objeto são suprimidos. Ao
apresentar os resultados obtidos em nossa análise, mostraremos esses efeitos em ação.

Complementando essas características que sempre estão associadas às representações sociais,


não podemos nos esquecer de que ao criá-las intencionamos “[...] dar sentido à realidade
social, produzir identidades, organizar as comunicações e orientar as condutas [...]”
(SANTOS, 2005, p. 34). Desse modo, Abric (1998) atribui às representações sociais quatro
funções principais: função de saber, função identitária, função de orientação e função
justificadora. Encontramos em Almeida (2005, p. 123-124), a seguinte síntese dessas
funções:

[...] Ao integrar um novo conhecimento a saberes anteriores, faz do novo


algo assimilável e compreensível (função de saber). Elas têm por função,
também, situar os indivíduos e os grupos no campo social, permitindo-lhes a
elaboração de uma identidade social e pessoal gratificante (função
identitária). Ainda, elas orientam os comportamentos e as práticas: intervêm
na definição da finalidade da situação, produzem um sistema de antecipação
e expectativas e são prescritivas de comportamentos ou de práticas
“obrigatórias”, na medida em que elas definem o que é aceitável em um
dado contexto social (função de orientação). Por fim, as representações
sociais permitem justificar, a posteriori, os comportamentos e as tomadas de
posição. Se uma representação desempenha um papel importante na
determinação das ações, elas também intervêm após a realização da ação,
permitindo aos indivíduos explicarem e justificarem suas ações. Esta função
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 134

assume um papel importante porque ela permite reforçar a diferenciação


social, na medida em que a justifica, preservando e mantendo a distância
social entre grupos – (função justificadora).

O último aspecto que gostaríamos de enfatizar é o fato de uma representação social não ser,
necessariamente, consensual. Empiricamente foi observado que as representações exibem
características contraditórias, mostram-se ao mesmo tempo estáveis e mutáveis, rígidas e
flexíveis, consensuais e individualizadas. Para dar conta dessas aparentes contradições, dentro
da grande teoria moscoviciana, foi criada a teoria complementar do núcleo central 129 por
Jean-Claude Abric (SÁ, 1998, p. 77).

5.4 A TEORIA DO NÚCLEO CENTRAL

Em 1976, por meio de sua tese de doutorado intitulada Jeux, conflits et représentations
sociales, defendida na Université de Provence sob a orientação de Moscovici, Abric formulou
a hipótese de toda representação ser organizada em torno de um núcleo central, ao qual
atribuiu as seguintes características:

Ele é diretamente ligado e determinado pelas condições históricas,


sociológicas e ideológicas. Ele é nesse sentido fortemente marcado pela
memória coletiva do grupo e pelo sistema de normas ao qual se refere.

Ele constitui portanto a base comum, coletivamente partilhada das


representações sociais. Sua função é consensual. É por ele que se realiza e se
define a homogeneidade de um grupo social.

Ele é estável, coerente, resistente à mudança, assegurando assim uma


segunda função, a da continuidade e da permanência da representação.

Enfim, ele é de uma certa maneira relativamente independente do contexto


social e material imediato no qual a representação é posta em evidência
(ABRIC, 1994 apud SÁ, 2002, p. 73).

Dessa forma, os aspectos mutáveis, flexíveis e individualizados de uma representação social


estariam restritos ao seu sistema periférico, que possui três funções principais:

129
Em nosso trabalho utilizamos a teoria complementar de Mazzotti de abordagem retórica das representações
sociais. Estamos cientes das diferenças de intencionalidades dessa teoria e a do núcleo central de Abric, no
entanto, buscamos aproveitar os pontos em que elas dialogam.
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 135

[...] a concretização do sistema central em termos de tomadas de posições ou


de condutas. Contrariamente ao sistema central ele é pois mais sensível e
determinado pelas características do contexto imediato.

[...] a de regulação e de adaptação do sistema central aos constrangimentos


e às características da situação concreta à qual o grupo se encontra
confrontado. Ele é um elemento essencial nos mecanismos de defesa que
visam proteger a significação central da representação. É o sistema periférico
que vai inicialmente absorver as novas informações ou eventos suscetíveis
de colocar em questão o núcleo central.

Por outro lado, e é essa sua terceira função, o sistema periférico permite uma
certa modulação individual da representação. Sua flexibilidade e sua
elasticidade permitem a integração na representação das variações
individuais ligadas à história própria do sujeito, a suas experiências pessoais,
ao seu vivido. Ele permite assim a elaboração de representações sociais
individualizadas organizadas não obstante em torno de um núcleo central
comum (ABRIC, 1994 apud SÁ, 2002, p. 73-74).

Por essas funções, percebe-se que a periferia de uma representação social é o complemento
indispensável do núcleo, mantendo uma relação direta com ele. Em síntese, a organização
interna das representações sociais se dá entre o sistema central e o sistema periférico de
acordo com a seguinte tabela comparativa:

Tabela 1 – Organização interna das representações sociais


Sistema central Sistema periférico
Ligado à memória coletiva e à história do Permite a integração das experiências e
grupo histórias individuais
Consensual; define a homogeneidade do
Suporta a heterogeneidade do grupo
gurpo
Estável
Flexível
Coerente
Suporta as contradições
Rígido
Resistente à mudança Evolutivo
Pouco sensível ao contexto imediato Sensível ao contexto imediato
Funções: Funções:
Gera a significação da representação Permite adaptação à realidade concreta
Determina sua organização Permite a diferenciação do conteúdo
Protege o sistema central
Fonte: Adaptado de Abric (1994 apud Sá, 2002, p. 74-75)

Duas contribuições relevantes da teoria do núcleo central estão relacionadas com as análises
que podem ser feitas sobre a transformação das representações e a comparação entre
representações. De acordo com Sá (1998, p. 77-78, grifo nosso):
5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 136

Segundo a teoria, a transformação das representações começa sempre pelo


sistema periférico, face a modificações introduzidas nas práticas sociais, e
pode apresentar diferentes desenvolvimentos e estados finais dependendo de
variadas circunstâncias. Quanto à comparação entre as representações
mantidas por dois grupos distintos ou por um mesmo grupo em diferentes
momentos, a teoria proporciona o seguinte critério: elas serão diferentes se
– e apenas se – os núcleos centrais tiverem composições
significativamente diferentes; se não, tratar-se-á de estados
diferencialmente ativados da mesma representação, em função das situações
específicas em que se encontrem os dois grupos ou, no caso de um mesmo
grupo, do estágio em que se encontre o processo de transformação da sua
representação.

A partir dessas observações, não é difícil concluir que para saber o que está sendo
representado é muito importante que se encontre qual é o núcleo central da representação.
Uma vez definido o núcleo, “[...] torna-se possível, caso se deseje, agir no sentido de alterar a
representação. Daí sua relevância para a Pedagogia e outras práticas sociais que tenham por
objetivo a modificação das condutas de grupos sociais” (MAZZOTTI, 1997, p. 90-91). O
leitor interessado encontrará vários métodos de levantamento e de identificação do núcleo
central em Sá (2002) e Moreira et al. (2005). Contudo, conforme esclarecemos nas páginas
iniciais deste trabalho, adotamos a análise retórica como metodologia para a identificação e a
exposição do núcleo central. Gostaríamos de explicar melhor essa escolha, mas preferimos
fazer isso após tecer alguns comentários de qual retórica estamos nos referindo.
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO

6.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO

No estudo de uma nova teoria, compreender os termos técnicos é ao mesmo tempo uma
necessidade e um desafio. Nem sempre encontraremos definições, em nosso vocabulário, que
correspondam exatamente ao sentido que uma palavra, já conhecida ou inédita para nós,
assume dentro do arcabouço teórico em análise. Isso não é diferente com a retórica. Pelo
contrário, como Reboul (2004, p. XII) reconhece, “[...] a retórica desencoraja pelo
vocabulário” (p. XII). No entanto, quem se esforçar e conseguir ultrapassar essa barreira
léxica será compensado com a possibilidade de ter uma relação menos ingênua com a
linguagem, dando um importante passo para se posicionar, de uma maneira crítica, frente à
ditadura de estereótipos e convenções que assola a sociedade.

De que modo a retórica pode contribuir para que isso aconteça? Algumas possíveis respostas
podem ser encontradas no livro de Reboul (2004). Logo na introdução, o autor apresenta a
definição e as principais funções da retórica sob seu ponto de vista. Após explicar que não há
um consenso definidor do termo, Reboul (2004, p. XIV) propõe ser a retórica “[...] a arte de
persuadir pelo discurso”. Entende ele por discurso “[...] toda produção verbal, escrita ou oral,
constituída por uma frase ou por uma sequência de frases, que tenha começo e fim e apresente
certa unidade de sentido” (REBOUL, 2004, p. XIV), e persuadir como “[...] levar alguém a
crer em alguma coisa [...] sem redundar necessariamente no levar a fazer. Se, ao contrário, ela
leva a fazer sem levar a crer, não é retórica” (REBOUL, 2004, p. XV). Por ser uma arte, ela
pode ser desenvolvida e aperfeiçoada. Essa é a tônica do restante da obra. O autor procura
mostrar quais os principais fatores que interferem ou contribuem para uma argumentação
persuasiva. Para melhor compreender esses fatores, Reboul atribui quatro funções principais à
retórica: persuasiva, hermenêutica, heurística e pedagógica.

Os meios que fazem um discurso ser persuasivo são de ordem racional e afetiva. Racional
(logos) por utilizar de argumentos que se integram no raciocínio silogístico (entimemas) ou se
fundamentam no exemplo. Afetivo por levar em consideração a empatia entre o orador (etos)
e o auditório (patos). No entanto, “[...] para ser persuasivo, o orador deve antes compreender
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 138

os que lhe fazem face, captar a força da retórica deles, bem como seus pontos fracos”
(REBOUL, 2004, p. XIX). Essa é a função hermenêutica da retórica. Nesse ponto, o autor faz
uma afirmação esclarecedora dizendo que não “[...] se ensina mais retórica como arte de
produzir discursos, mas como arte de interpretá-los” (REBOUL, 2004, p. XIX), sendo essa,
em sua opinião, a função fundamental na universidade atual, aliás, é o que ele fará ao longo
do livro. A função de descoberta (heurística) diz respeito às decisões que temos que tomar.
Por vivermos em um “[...] mundo que não condiz inteiramente com o conhecimento
científico, um mundo em que a verdade raramente é evidente, e a previsão segura raramente
possível” (REBOUL, 2004, p. XX), não podemos dizer que uma atitude, opinião ou uma
teoria é verdadeira ou falsa, mas sim que é mais ou menos “verossímil”. De acordo com o
autor:

Num mundo sem evidência, sem demonstração, sem previsão certa, em


nosso mundo humano, o papel da retórica, ao defender esta ou aquela causa,
é esclarecer aquele que deve dar a palavra final [...] E faz isso instaurando
um debate contraditório, só possível graças a seus ‘procedimentos’, sem os
quais logo descambaria para o tumulto e a violência (REBOUL, 2004, p.
XXI).

Por fim, a função pedagógica da retórica nos ensina “[...] a compor segundo um plano, a
encadear os argumentos de modo coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encontrar as
construções apropriadas e as figuras exatas, a falar distintamente e com vivacidade”
(REBOUL, 2004, p. XXII). A nosso ver, o pilar principal da retórica é a sua função heurística.
Apenas gostaríamos de ampliar a sua abrangência para o conhecimento científico. Reboul
(2004, p. 27) diz mais à frente no livro que “O domínio da retórica, o das questões judiciárias
e políticas, não é o mesmo da verdade científica, mas do verossímil”. Não concordamos com
esse ponto de vista. Em oposição ao determinismo positivista, acreditamos em uma ciência
construída socialmente, em que as teorias científicas, por melhores que sejam, não estão
imunes às críticas e substituições. Parafraseando Martins (2008, p. 84), não existem conceitos
científicos “falsos”. Pode-se definir qualquer tipo de conceito científico, desde que sejam
evitadas contradições. Um conceito científico coerente pode ser útil ou inútil, adequado ou
inadequado, mas não “verdadeiro” ou “falso”. Desse modo, podemos também considerar os
conceitos científicos como verossímeis, legitimando um estudo aprofundado da retórica para
melhorar os processos de ensino e de aprendizagem de ciências.
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 139

Após essa introdução, Reboul (2004) faz um breve resumo histórico do desenvolvimento da
retórica, mostrando ao leitor que a sua origem não é literária e sim judiciária. Na Grécia
antiga, por volta de 465 a.C., após a expulsão dos invasores persas, os:

[...] cidadãos despojados pelos tiranos reclamaram seus bens, e à guerra civil
seguiram-se inúmeros conflitos judiciários. Numa época em que não
existiam advogados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua
causa (REBOUL, 2004, p. 02).

Desse modo, aqueles que tinham uma maior desenvoltura retórica, os retores, ofereciam aos
litigantes os seus serviços. A influência literária da retórica surge com Górgias, por volta de
427 a.C., numa época em que:

[...] os gregos identificavam ‘literatura’ com poesia (épica, trágica, etc.). A


prosa, puramente funcional, restringia-se a transcrever a linguagem oral
comum. Górgias, um dos fundadores do discurso epidíctico, ou seja, elogio
público, cria para esse fim uma prosa eloquente, multiplicando as figuras,
que a tornam ‘uma composição tão erudita, tão ritmada e, por assim dizer,
tão bela quanto a poesia’ (REBOUL, 2004, p. 04).

Em seguida, o autor mostra como foi a relação inicial entre a sofística e a retórica, bem como
as influências da primeira sobre a segunda. É interessante observar que as críticas feitas por
Sócrates à maneira que a retórica estava sendo praticada na época são pertinentes ao uso que
os políticos de hoje fazem dela. Vejam o trecho a seguir como exemplo:

[...] Ora, Sócrates faz outra pergunta completamente diferente: os tiranos


fazem o que querem? Naturalmente fazem o que lhes agrada, mas será
realmente o que querem? Fazer o que quer implica saber do que se trata,
conhecer o objeto da vontade e seu valor real. Ora, o retor e o tirano não
conhecem nada disso. Pois seu único critério é o prazer, e o prazer nunca
indica o verdadeiro bem; só dá uma satisfação aparente e fugaz. Assim como
a culinária cujo objetivo único seja lisonjear nossa gula não nos dá saúde,
pelo contrário, também a retórica apenas lisonjeia, sem preocupação com o
verdadeiro bem (REBOUL, 2004, p. 17).

Sócrates e Platão tinham uma visão pejorativa do verossímil, acreditavam que a sua aparência
de verdade induzia ao erro. Por isso, eram contra a retórica praticada na época e a favor da
dialética, atribuindo a essa o instrumento por excelência para a busca da verdade, o método da
filosofia. Aristóteles pensava diferente. Para ele, a retórica não se reduz:
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 140

[...] ao poder de persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no


essencial, é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta.
Em outras palavras, o bom advogado não é aquele que promete a vitória a
qualquer custo, mas aquele que abre para a sua causa todas as probabilidades
de vitória (REBOUL, 2004, p. 24).

Em resumo, “[...] dando à retórica uma definição mais modesta que a dos sofistas, ele a torna
muito mais plausível e eficaz. Entre o ‘tudo’ dos sofistas e o ‘nada’ de Platão, a retórica se
contenta com ser alguma coisa, porém de valor certo” (REBOUL, 2004, p. 24). A dialética,
para Aristóteles, passa a ser a parte argumentativa da retórica, ou seja, “[...] a retórica é uma
‘aplicação’ da dialética, no sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de persuasão.
Mas instrumento que não dispensa de modo algum os instrumentos afetivos” (REBOUL,
2004, p. 37). A sistematização da retórica ocorreu com Aristóteles. Para o estagirita, os
discursos podem ser classificados segundo o auditório e segundo a finalidade em três tipos:
judiciário, deliberativo (ou político) e epidíctico.

Os atos dos três discursos não são os mesmos. O judiciário acusa (acusação)
ou defende (defesa). O deliberativo aconselha ou desaconselha em todas as
questões referentes à cidade: paz ou guerra, defesa, impostos, orçamento,
importações, legislação [...]. O epidíctico censura e, na maioria das vezes,
louva ora um homem ou uma categoria de homem, como os mortos na
guerra, ora uma cidade, ora seres lendários, como Helena [...] (REBOUL,
2004, p. 45).

Uma vez definido o tipo de discurso, a primeira tarefa do orador é encontrar os argumentos
(entendido aqui como instrumentos de persuasão), que também são de três tipos: etos e patos
(de ordem afetiva) e logos (de ordem racional).

O etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no


auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm
sem essa confiança [...].

O patos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve


suscitar no auditório com seu discurso [...].

Se o etos diz respeito ao orador e o patos ao auditório, o logos [...] diz


respeito à argumentação propriamente dita do discurso [...] (REBOUL, 2004,
p. 49).

Outros componentes importantes do sistema retórico são as quatro fases pelas quais passa
quem compõe um discurso, ou pelas quais acredita-se que passe.
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 141

A primeira é a invenção (heurésis, em grego), a busca que empreende o


orador de todos os argumentos e de outros meios de persuasão relativos ao
tema de seu discurso.

A segunda é a disposição (taxis), ou seja, a ordenação desses argumentos,


donde resultará a organização interna do discurso, seu plano.

A terceira é a elocução (lexis), que não diz respeito à palavra oral, mas à
redação escrita do discurso, ao estilo. É aí que entram as famosas figuras de
estilo, às quais alguns, nos anos 60, reduziam a retórica!

A quarta é ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva do discurso, com


tudo o que ele pode implicar em termos de efeitos de voz, mímicas e gestos
[...] (REBOUL, 2004, p. 43-44).

Dando continuidade com a sua análise histórica, Reboul cita referências que vão desde Cícero
e Quintiliano, por volta de 50 a.C, até os trabalhos mais recentes de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005). Destacamos as críticas feitas à retórica por Descartes e Locke, consideradas
responsáveis por uma nova maneira de ver o mundo, que, infelizmente, predomina até os dias
atuais. Descartes “[...] repudia a dialética, por nunca oferecer mais que opiniões verossímeis e
sujeitas a discussão, ao passo que a verdade só pode ser evidente, portanto única e capaz de
criar acordo em todos os espíritos” (REBOUL, 2004, p. 80). Locke, assim como outros
filósofos, os empiristas ingleses, “[...] chegam à mesma condenação. Para eles, qualquer
verdade vem da experiência sensível, e a retórica, com seus artifícios verbais, só faz afastar da
experiência” (REBOUL, 2004, p. 80). Apesar de essa visão de ciência ainda predominante,
Reboul afirma que a retórica sobreviveu e está fragmentada em estudos distintos. Entre as
várias correntes em que a retórica se desmembrou, o autor destaca os estudos de Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005) inserindo-os na grande tradição retórica de Aristóteles, Isócrates e
Quintiliano. Vejamos mais detalhes desses estudos.

6.2 TRATADO DA ARGUMENTAÇÃO: A NOVA RETÓRICA

Segundo Alves (2005, p. 01), Chaïm Perelman (1912-1984) nasceu em Varsóvia, mas foi
morar em Bruxelas em 1925, naturalizando-se belga. Ele recebeu uma sólida formação
jurídica – escrevendo uma tese de doutoramento em direito, concluída em 1934 – e também
em lógica formal – ocorrida no decorrer da década de 30 sob a influência do neopositivismo,
defendendo uma tese de doutoramento em 1938, sobre o lógico alemão Gottlob Frege.
Perelman se interessou pela possibilidade de uma lógica dos juízos de valor, com a finalidade
de mostrar que ela não era irracional. Todavia, após dez anos de pesquisas em conjunto com
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 142

Lucïe Olbrechts-Tyteca (1899-1987), estudiosa de ciências econômicas e sociais, ele


abandonou esse estudo de uma lógica específica dos juízos de valor – concluindo pela sua
inexistência – e se voltou para as técnicas de argumentação e persuasão estudadas pelos
antigos e, em particular, por Aristóteles. Os resultados dessa nova reflexão estão condensados,
sobretudo, na obra Traité de l’argumentation: la nouvelle rhétorique, publicada em 1958 130.
De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 01):

O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na


medida em que este último escapa às certezas do cálculo. Ora, a concepção
claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do
método, era a de considerar “quase como falso tudo quanto era apenas
verossímil”. Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis
considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de idéias claras e
distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a
todos os teoremas.

O pensamento cartesiano defende que em toda a análise de determinado fenômeno sempre


será possível elaborar um “[...] sistema de proposições necessárias, que se impõe a todos os
seres racionais e sobre os quais o acordo é inevitável. Daí resulta que o desacordo é sinal de
erro [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 02). Por outro lado, para os
partidários das ciências experimentais e indutivas:

[...] o que conta é menos a necessidade das proposições do que a sua


verdade, sua conformidade com os fatos. O empirista considera como prova
não “a força à qual o espírito cede e vê-se obrigado a ceder, mas aquela à
qual ele deveria ceder, aquela que, impondo-se a ele, tornaria a sua crença
conforme ao fato”. Embora a evidência por ele reconhecida não seja a da
intuição racional, mas da intuição sensível, embora o método por ele
preconizado não seja o das ciências dedutivas, mas o das ciências
experimentais, ainda assim está convencido de que as únicas provas válidas
são as provas reconhecidas pelas ciências naturais (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 02).

A crítica dos autores àqueles que defendem essas duas concepções se deve ao fato desses
considerarem racional apenas o que é conforme ao método científico, ou seja, ao que é
decorrente de uma demonstração lógica dedutiva e a um raciocínio indutivo. Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005) mostram, no entanto, que “[...] entre a demonstração científica ou
lógica e a ignorância pura e simples, há todo o domínio da argumentação [...]” (REBOUL,
2004, p. 91). Ainda segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 04), o objeto da teoria da

130
Utilizaremos a segunda edição brasileira publicada pela Martins Fontes em 2005.
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 143

argumentação é “[...] o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a
adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento [...]”. Concordamos com
Alves (2005, p. 14), ao afirmar que:

[...] A concepção de Perelman é, dessa forma, uma típica teoria centrada no


auditório, ou seja, naqueles de quem se visa ganhar a adesão, e, por esta
razão, a relação com a retórica é bastante estreita. Mas a argumentação não é
mera prática persuasiva, pois, apesar de visar a adesão do auditório, ela
pretende conquistá-la por via de argumentos, de razões [...].

Um ponto a ser destacado é que o auditório não se limita às pessoas que efetivamente tiveram
ou terão acesso ao discurso, seja ele falado ou escrito. Desse modo, Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005, p. 22) definem o auditório como “[...] o conjunto daqueles que o orador quer
influenciar com sua argumentação [...]”. Por consequência:

Todo discurso depende do auditório e cabe a este determinar a qualidade da


argumentação. Se se quer compreender uma argumentação, deve-se olhar
para quem ela se dirige e não para quem a emite, pois cabe ao orador
adaptar-se ao auditório [...] (ALVES, 2005, p. 47).

Para uma maior eficácia da argumentação, é muito importante que o orador conheça o que é
aceito como ponto de partida de raciocínios e sobre a maneira pela qual esses se desenvolvem.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) classificam os objetos de acordo – conjunto de teses que
são aceitas inicialmente tanto pelo orador quanto pelo auditório, de modo implícito ou
explícito –, que podem servir de premissas para uma argumentação, em duas categorias: uma
relativa ao real, que comportaria os fatos, as verdades e as presunções, a outra relativa ao
preferível, que conteria os valores, as hierarquias e os lugares do preferível. Sendo que:

A concepção que as pessoas têm do real pode, em largos limites, variar


conforme as opiniões filosóficas professadas. Entretanto, na argumentação,
tudo o que se presume versar sobre o real se caracteriza por uma pretensão
de validade para o auditório universal. Em contrapartida, o que versa sobre o
preferível, o que nos determina as escolhas e não é conforme a uma
realidade preexistente, será ligado a um ponto de vista determinado que só
podemos identificar com o de um auditório particular, por mais amplo que
seja (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 74).

Ao longo da obra, os autores discorrem sobre o conceito de auditório universal em vários


momentos, mas não chegam a uma definição conclusiva. Grosso modo:
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 144

[...] o auditório universal poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um


truque retórico. Mas achamos que ele pode ter função mais nobre, a do ideal
argumentativo. O orador sabe bem que está tratando com um auditório
particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros
auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente todas
as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não
é um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da
qualidade de uma argumentação (REBOUL, 2004, p. 94).

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 76) afirmam que, do ponto de vista argumentativo, um


fato é todo dado concreto para o qual pode ser postulado um acordo universal não
controverso. Assim, um acontecimento pode perder o estatuto de fato de duas maneiras: ao
serem levantadas dúvidas no seio do auditório ao qual foi aceito ou ao se ampliar esse
auditório, acrescendo-lhe outros membros, cuja qualidade para julgar é reconhecida, e que não
admitem o mesmo como um fato. Aplica-se:

[...] ao que se chamam verdades, tudo o que acabamos de dizer dos fatos.
Fala-se geralmente de fatos para designar objetos de acordo precisos,
limitados; em contrapartida, designar-se-ão de preferência com o nome de
verdades sistemas mais complexos, relativos a ligações entre fatos, que se
trate de teorias científicas ou de concepções filosóficas ou religiosas que
transcendem a experiência (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005,
p. 77).

Em complemento aos fatos e às verdades, temos as presunções que também gozam do acordo
universal. De acordo com Reboul (2004, p. 165):

As presunções têm função capital, pois constituem o que chamamos de


“verossímil”, ou seja, o que todos admitem até prova em contrário. Por
exemplo, não está provado que todos os juízes são honestos e competentes,
mas admite-se isso; e, se alguém desmente em tal ou tal caso, cabe-lhe o
ônus da prova. O verossímil é a confiança presumida.

Quando, entretanto, o orador fizer uso dos valores, das hierarquias e dos lugares do preferível,
como objetos de acordo, ele conseguirá obter adesão aos seus argumentos apenas de grupos
particulares. Como salientam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 84-85):

Os valores intervêm, num dado momento, em todas as argumentações. Nos


raciocínios de ordem científica, eles são geralmente restringidos à origem da
formação dos conceitos e das regras que constituem o sistema em questão e
ao termo do raciocínio, na medida em que este visa ao valor de verdade. O
desenvolvimento do raciocínio é, tanto quanto possível, isento deles; essa
purificação atinge o auge nas ciências formais. Mas nos campos jurídico,
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 145

político, filosófico os valores intervêm como base de argumentação ao longo


de todo o desenvolvimento. Recorre-se a eles para motivar o ouvinte a fazer
certas escolhas em vez de outras e, sobretudo, para justificar estas, de modo
que se tornem aceitáveis e aprovadas por outrem.

Há alguns valores que são universais ou absolutos, quando considerados genericamente, tais
como o Verdadeiro, o Bem e o Belo. No entanto, ao precisá-los, consegue-se apenas a adesão
de auditórios particulares, “[...] toda sociedade admite o justo e o belo, mas com conteúdos
bem diferentes [...]” (REBOUL, 2005, p. 165). Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) nos
esclarecem que do ponto de vista da estrutura da argumentação, a hierarquia dos valores é
muito mais importante do que os próprios valores. Por exemplo, a superioridade dos homens
sobre os animais, dos deuses sobre os homens e do justo sobre o útil. De acordo com os
autores:

Os valores, mesmo se admtidos por muitos auditórios particulares, o são com


maior ou menor força. A intensidade da adesão a um valor, em comparação
com a intensidade com a qual se adere a outro, determina entre esses valores
uma hierarquia que se deve levar em conta. Quando essa intensidade não é
conhecida com precisão suficiente, o orador tem, por assim dizer, liberdade
na utilização de cada um dos valores, sem precisar justificar necessariamente
a preferência que concede a um deles, uma vez que não se trata de subverter
uma hierarquia admitida. Mas esse caso é relativamente raro. Quase sempre,
não só os valores gozam de uma adesão de intensidade diferente, mas, além
disso, são admitidos princípios que permitem hierarquizá-los [...]
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 92).

Uma vez escolhidos os valores e a sua hierarquização, há a necessidade de fundamentá-los,


justificar as escolhas feitas para reforçar a intensidade da adesão que elas suscitam. Nesse
caso:

[...] pode-se relacioná-los com outros valores ou com outras hierarquias, para
consolidá-los, mas pode-se também recorrer a premissas de ordem muito
geral, que qualificaremos com o nome de lugares 131, os τóπoι, dos quais
derivam os Tópicos, ou tratados consagrados ao raciocíno dialético
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 94).

Esses lugares são classificados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 96) em seis
categorias: lugares da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência e da

131
“[...] O nome lugares era utilizado pelos gregos, para denominar locais virtuais facilmente acessíveis, onde o
orador pudesse ter argumentos à disposição, em momento de necessidade [...]” (ABREU, 2007, p. 32).
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 146

pessoa. Os lugares da quantidade afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões
quantitativas. Assim, um bem mais duradouro é preferível ao que é menos, ou, um mal menos
duradouro é preferível ao que é mais. Desse modo:

[...] o normal – no sentido do mais freqüente – determina a norma, o


obrigatório; assim, expressões como “É isso o que todos fazem”, “isso o que
todos pensam”, são dadas como argumentos, e, assim como Sócrates em
Górgias, é preciso uma contra-argumentação para dissociar a norma do
normal (REBOUL, 2004, p. 166).

Os lugares da qualidade contestam a virtude do número, “[...] no limite, o lugar da qualidade


redunda na valorização do único que, assim como o normal, é um dos pivôs da argumentação”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 101). A qualidade do que é único se opõe
ao que é comum, corriqueiro, vulgar. Os lugares da ordem consideram superior o que veio
antes. Os lugares do existente afirmam que o que existe é preferível ao que é eventual ou
impossível. Os lugares da essência valorizam pessoas ou objetos que, dentro de uma
categoria, representam a sua essência, sendo tomados como modelos. O lugares da pessoa
adotam o ser humano como superior as coisas, primeiro o ser humano depois as coisas. Abreu
(2007, p. 38) relata a seguinte situação em que esse lugar é utilizado:

[...] Quando um candidato a governador diz, por exemplo, que, se for eleito,
construirá trinta escolas, seu opositor dirá, utilizando o lugar de pessoa, que
não construirá escolas. Procurará, isto sim, dar condições mais humanas ao
trabalho do professor, melhores salários, programas de reciclagem etc. Dará
preferência ao homem, não aos tijolos [...].

Após essas considerações sobre os objetos de acordo, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)


dividem as técnicas argumentativas, que auxiliam no desenvolvimento da argumentação, em
dois grandes grupos: os processos de ligação e de dissociação. Os processos de ligação são
“[...] esquemas que aproximam elementos distintos e permitem estabelecer entre estes uma
solidariedade que visa, seja estruturá-los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo
outro [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 215). Por outro lado, os
processos de dissociação são “[...] técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar,
de desunir elementos considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de
um mesmo sistema de pensamento. A dissociação terá o efeito de modificar tal sistema ao
modificar algumas noções que constituem suas peças mestras [...]” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 215). Os argumentos que fazem parte dos processos de
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 147

ligação podem ser separados em argumentos quase-lógicos; argumentos fundados na estrutura


do real e argumentos que fundamentam a estrutura do real. Cada um deles busca a adesão do
auditório por diferentes formas de influência. Os argumentos quase-lógicos possuem uma
aparência demonstrativa que torna a sua estrutura comparável com a dos raciocínios formais,
lógicos ou matemáticos. Eles parecem com os argumentos lógicos, mas as suas conclusões
nem sempre são verdadeiras, apenas possíveis, plausíveis ou prováveis. Entre esses
argumentos são analisados:

[...] em primeiro lugar os que apelam para estruturas lógicas – contradição,


identidade total ou parcial, transitividade; em segundo, os que apelam para
relações matemáticas – relação da parte com o todo, do menor com o maior,
relação de freqüência [...] (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.
220).

Um exemplo clássico de um argumento quase-lógico é a máxima “os amigos de nossos


amigos são nossos amigos”. Ele é considerado quase-lógico por ser comparável com a
transitividade. Uma propriedade formal que estipula que ao existir a mesma relação entre os
termos a e b e entre os termos b e c, pode-se concluir que o mesmo ocorrerá entre os termos a
e c. Isso acontece, por exemplo, com as relações de igualdade, de superioridade, de inclusão e
de ascendência. Contudo, como a máxima citada pode ser questionada, afinal, alguns amigos
de nossos amigos são nossos inimigos, a transitividade é refutada, por esse motivo, o
argumento é denominado de quase-lógico. Em contrapartida, os argumentos fundados na
estrutura do real não se apoiam na lógica, mas nas opiniões que se têm sobre os fatos com a
intenção de explorar uma relação entre valores aceitos pelo orador e pelo auditório e outros
que o orador procura a adesão do auditório. Andrade (2009, p. 38) resumiu bem o
encadeamento dado por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) ao falarem sobre esses tipos de
argumentos:

[...] Essa ligação entre juízos admitidos e juízos que se pretende estabelecer
pode ser feita de dois modos distintos: ligações de sucessão e ligações de
coexistência. A ligação de sucessão mais importante é, sem dúvida, o
vínculo causal que se estabelece entre dois eventos. Também são ligações
típicas de sucessão: o raciocínio conseqüencialista (argumento pragmático),
a relação entre os fins e os meios, o argumento do desperdício, o argumento
da direção e a técnica da superação. Quanto às ligações de coexistência, um
caso se apresenta para nós como especial: as ligações entre ato e pessoa.
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 148

No caso das ligações de sucessão, a ideia da existência de um vínculo causal entre os


fenômenos pode ser exemplificada pelo fato de se acreditar, por exemplo, que um exército
tem um excelente serviço de inteligência, por ter obtido excelentes informações sobre o
inimigo, e que sempre será assim (REBOUL, 2004, p. 173). Um argumento relacionado com
a ligação de coexistência muito utilizado é o argumento de autoridade, o qual faz uso de atos
ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 348) explicam que esse tipo de argumento é
intensamente atacado por ser empregado de uma maneira abusiva, concedendo-lhe um valor
coercivo, como se a autoridade invocada fosse infalível. Todavia, os autores admitem que o
argumento, se usado de modo comedido, funciona como espécie de prova auxiliar. Ao se
discutir determinados assuntos específicos, o recurso a uma autoridade reconhecida pelo
auditório torna-se bastante razoável. Admitir a competência de um filósofo ou de um cientista
no exame de certos assuntos serve como apoio, talvez como ponto de partida, para que se
produza uma adesão. De acordo com Reboul (2004, p. 177):

A ciência parece excluir o argumento de autoridade. No entanto, ele está


presente: Lei de Joule; como mostra a experiência X; isso porque o
pesquisador não pode descobrir nem verificar tudo, precisa confiar em
alguém. E em filosofia? Como diz Nietzsche; já não se pode afirmar depois
de Freud...; Heidegger ensinou que... Na verdade o mais racionalista dos
filósofos não pode encontrar tudo sozinho, partindo do zero como
Descartes... Finitude do pesquisador, do pensador. Ignorá-la seria o pior
dogmatismo.

A força dos argumentos que fundamentam a estrutura do real reside essencialmente na sua
capacidade de proceder a generalizações e regularidades, procurando estabelecer regras e
princípios. Eles produzem os seus efeitos de forma semelhante à indução. Com o objetivo de
criar ou completar a estrutura do real, propõem modelos, exemplos e ilustrações que partem
de casos particulares e tornam solidários os elementos que pareciam independentes por meio
de ligações. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) analisam as ligações que fundamentam o
real pelo recurso ao caso particular (o exemplo, a ilustração, o modelo e o antimodelo) e pelo
raciocínio por analogia, no qual se inclui a metáfora, considerada pelos autores como uma
analogia condensada. Vamos ver com mais detalhes como se organizam os raciocínios por
analogia e metáfora. Principalmente a metáfora, pela contribuição que deu para a
identificação e a exposição do núcleo central em nossa pesquisa. Antes, gostaríamos de
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 149

encerrar as nossas considerações sobre a obra de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) com


uma tabela resumo das principais técnicas argumentativas apresentadas pelos autores.

Tabela 2 – Técnicas argumentativas – Classificação de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)


Argumentos baseados na ligação das noções
Argumentos quase-lógicos
Estruturas lógicas Estruturas matemáticas
Definição Inclusão da parte no todo
Tautologia Divisão do todo em partes
Regra de justiça Argumento de comparação
Reciprocidade Argumento pelo sacrifício
Transitividade Probabilidade
Argumentos baseados na estrutura do real
Ligações de sucessão Ligações de coexistência
Vínculos causais Interação ato/pessoa
Argumento de desperdício Argumento de autoridade
Argumento de direção Técnicas de ruptura
Argumento de dupla hierarquia
Argumentos que fundamentam a estrutura do real
Pelo caso particular Pelo raciocínio por analogia
O exemplo A analogia
A ilustração A metáfora
O modelo e o antimodelo

Argumentos baseados em dissociação das noções


Ruptura de ligação
Dissociação de noções
Aparência/realidade
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 150

6.3 A METÁFORA COMO FIGURA ARGUMENTATIVA

Do ponto de vista de Reboul (2004, p. 185), raciocinar por analogia “[...] é construir uma
estrutura do real que permita encontrar e provar uma verdade graças a uma semelhança de
relações [...]”. Para exemplificar, ele cita a seguinte analogia: “Hierarquia é como prateleira:
quanto mais em cima, menos utilidade”. Segundo a sua interpretação:

Ela exibe duas relações. A primeira, o tema, é o que se quer provar, que a
hierarquia não serve para quase nada em seu ápice. O segundo, o foro, é o
que serve para provar: quanto mais uma prateleira é alta, menos é acessível.
O foro é em geral retirado do domínio sensível e concreto, apresentando uma
relação que já se conhece por verificação. O tema é em geral abstrato, e deve
ser provado (REBOUL, 2004, p. 185, grifo nosso).

A função da analogia é evidenciar a semelhança – não a igualdade – da relação entre si dos


dois termos que compõem o tema com a relação entre si dos dois termos que compõem o foro.
Dito de outro modo, podemos entender a analogia “[...] como uma similitude de estruturas,
cuja fórmula mais genérica seria: A está para B assim como C está para D [...]”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 424). No exemplo citado por Reboul
(2004), teríamos:

TEMA: FORO:

A (hierarquia) esta para B (mais em cima) assim como C (mais alta a prateleira) esta para D (menos utilidade).

Não se trata de semelhança entre os termos (A, B, C ou D), mas entre as relações que ligam
cada um dos pares do tema e do foro. É bom frisar que, para haver a analogia, tema e foro
devem pertencer a áreas distintas. Ou seja, a analogia sempre lida com realidades
heterogêneas. Isso é o que a diferencia do exemplo, da comparação e da ilustração
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005; REBOUL, 2004). No caso da metáfora,
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 453, grifo nosso) afirmam que:

Não poderíamos, neste momento, descrever melhor a metáfora do que a


concebendo, pelos menos no que tange à argumentação, como uma analogia
condensada, resultante da fusão de um elemento do foro com um elemento
do tema.
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 151

Aproveitando o exemplo supracitado, ao dizermos “A hierarquia é uma prateleira”, fundimos


um elemento do tema com o do foro. Condensamos a analogia. Desse modo, criamos uma
metáfora. No entanto, como nos alerta Reboul (2004, p. 122), as expressões “Pedro é um
gigante” e “João é um anão” não são metáforas, pois se referem a realidades homogêneas. Na
sequência, o autor dá continuidade ao seu raciocínio:

Suponhamos agora que se diga: Sofia é uma pedra de gelo. Há de fato uma
comparação (e pouco benevolente), mas de outro tipo, porque Sofia não é da
espécie dos seres que podem transformar-se em gelo; a semelhança em que
se baseia essa metáfora provém de termos heterogêneos, que não têm
matéria nem medida em comum; Sofia não é nem uma pedra de gelo, nem é
como uma pedra de gelo. Então, como poderemos entender a metáfora? Por
uma semelhança de relações entre termos heterogêneos [...] (REBOUL,
2004, p. 122, grifo nosso).

Embora os exemplos apresentados mostrem a formação da metáfora por meio de uma


identificação entre o tema e o foro, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 456), há
outras maneiras de se fazer isso:

[...] por uma simples determinação (a noite da vida, oceano de falsa ciência),
por meio de um adjetivo (uma exposição vazia, luminosa), de um verbo (ela
se pôs a piar), de um possessivo (nossa Waterloo). Por vezes teremos até
uma identificação (a vida é um sonho, o homem é um camaleão) [...].

Para Reboul (2004, p. 188), a metáfora é mais convincente do que a analogia, por traduzir
semelhança em identidade. Ela anula as diferenças, sendo, por excelência, a figura
argumentativa 132 que fundamenta as estruturas do real. Esse parecer de Reboul (2004) sobre a
força argumentativa da metáfora é confirmado por Mazzotti e Oliveira (1999, p. 05, grifo
nosso), que vão além:

As figuras argumentativas têm uma função cognitiva, o que, em nossos dias,


tem ficado cada vez mais presente aos semioticistas, lingüistas e filósofos da
linguagem, por exemplo. Estes especialistas consideram que metáforas,
metonímias e sinédoques são esquemas, ou formas, cognitivas que
‘carregam’ sentido de um contexto para outro [...].

132
“[...] Uma figura será argumentativa caso seu uso apareça como normal para uma nova situação, favorecendo
ou realizando a adesão do auditório; caso o auditório não aderir àquela figura, ela será considerada de estilo.
Uma mesma figura pode, então, produzir adesão de um dado auditório e ser de estilo para outro, o qual,
eventualmente, a considerará estética, ornamental [...]” (MAZZOTTI; OLIVEIRA, 1999, p. 04).
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 152

Dois exemplos interessantes que mostram como a metáfora “carrega sentido de um contexto
para outro” foram apresentados por Mazzotti (2007). O primeiro é quando se diz que “A
guerra é um jogo de xadrez”, metáfora pela qual os horrores da guerra desaparecem. O
segundo é quando se utiliza de uma metáfora futebolística para falar de política, caso em que
despolitiza-se a situação, deixando de explicar a negociação que é própria da vida política.
Mazzotti (2007, p. 07) comenta que em ambos os casos “[...] neutralizam-se as paixões, os
interesses dos grupos sociais, pois o assunto é posto como se fosse outro”. Acreditamos que
agora temos elementos suficientes para explicar, com mais detalhes, de que maneira podemos
utilizar a metáfora para fazer o levantamento e a identificação do núcleo central das
representações analisadas nesta pesquisa.

6.4 A METAFÓRA NA CONSTITUIÇÃO DO NÚCLEO CENTRAL DAS


REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Diante de tudo o que expusemos até aqui, podemos considerar que as representações sociais,
por serem constituídas nas práticas argumentativas e/ou conversacionais, apresentam uma
estrutura de implicações que se sustentam muito mais sobre os valores do que sobre os
conceitos. Desse modo, como salienta Mazzotti (2008, p. 128):

[...] as representações sociais de algo tingem os conceitos com as cores que o


grupo julga desejável, preferível fazer ou ter, subordinando-os. As
inferências e as prescrições são controladas pelo preferível, descarta-se o que
está fora desse campo de desejáveis, bem como o que os questione,
resultando representações sociais do conceito ou da informação recebida
[...].

Vimos anteriormente que quando as ideias oriundas do universo reificado são inconsistentes
com as praticadas no universo consensual, há a necessidade de uma adequação para tornar
familiar algo não-familiar. Criamos representações sociais com esse propósito apoiados nos
dois mecanismos cognitivos baseados na memória e em conclusões passadas: a ancoragem e a
objetivação. Mazzotti (1999, 2002, 2008) defende a tese – com a qual concordamos, por tudo
o que já discutimos – de que o processo que produz a metáfora como uma figura
argumentativa ser o mesmo descrito por Moscovici (1978, 2003) na produção da ancoragem e
6 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO 153

da objetivação. Portanto, toda representação social tem uma metáfora em seu núcleo central 133
que a sustenta. Nas palavras de Mazzotti (1999, p. 02, grifo nosso):

Uma vez que os grupos reflexivos desenvolvem suas representações por


meio de conversações com vistas a assimilar e acomodar novos objetos que
lhe são apresentados, então é factível examinar o processo argumentativo
realizado nos grupos e, ao mesmo tempo, avaliar as representações sociais
por meio das figuras argumentativas [...]

Apresentarei, a seguir, a concepção contemporânea de figura argumentativa


e tratarei de uma delas, a metáfora, que é central na coordenação
discursiva. A metáfora, por suas características, é uma condensação de
significados produzida a partir da analogia sendo, por isto, considerada uma
analogia condensada. Estas características permitem sustentar que se
encontram no centro de representações sociais. Isso nos leva afirmar que
a identificação das metáforas que organizam uma representação social é
mais produtiva do que qualquer outra técnica de análise do discurso [...].

Em outro texto, Mazzotti (2002, p. 03, grifo nosso) é mais contundente:

A eficácia argumentativa das metáforas nos conduz a sustentar ser necessária


a identificação deliberada das metáforas nas investigações sobre as
representações sociais. Para mim está claro que no núcleo das
representações operam figuras ou esquemas retóricos e, em particular, a
metáfora [...].

No entanto, o autor adverte que não basta identificar as metáforas que coordenam as
caracterizações da representação social em análise para apreender a rede de significados
atribuída ou constituída pelos atores sociais. Sempre é necessário explorar os significados que
são coordenados pelos sujeitos, o que pode ser feito por meio de um embate com o universo
reificado. Foi o que fizemos. Na próxima seção, esclareceremos qual o conceito de calor que
adotamos como representativo do universo reificado para ser comparado com a representação
social que os autores dos livros didáticos de Física têm.

133
Como bem lembrou a professora Alcina Maria Testa Braz da Silva, na qualificação desta tese, o professor
Mazzotti partiu do termo núcleo figurativo em sua construção teórica. Isso de fato ocorreu e pode ser
confirmado pela leitura dos textos Mazzotti (1998, 2002). No entanto, pelo texto Mazzotti (1999), fica claro
que o autor estende a sua proposta de abordagem retórica também para o núcleo central.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO

7.1 O QUE É CALOR PARA OS PESQUISADORES DA ÁREA DE ENSINO DE


CIÊNCIAS?

Para identificar qual é a definição que os pesquisadores da área de ensino de ciências dão para
o termo calor, examinamos as pesquisas realizadas que tiveram esse conceito como um dos
seus objetos de estudo (KÖHNLEIN; PEDUZZI, 2002; AMARAL; MORTIMER, 2001;
AGUIAR JÚNIOR, 1999; SILVA; LABURÚ; NARDI, 2008; CINDRA; TEIXEIRA 2004;
SÖZBILIR, 2003; entre outras). Foi difícil fazer uma escolha, pois há muita controvérsia a
esse respeito. Para não nos desviarmos do foco de nosso trabalho, não faremos uma análise
detalhada dos artigos que não foram escolhidos. O motivo principal é que esses artigos
apresentam concepções idênticas às que encontramos nos livros didáticos de Física, desse
modo, não servem como um discurso a ser comparado. Muito pelo contrário, as conclusões
que chegamos ao analisar os livros didáticos podem ser estendidas a eles.

Como exemplo, para não ficar a impressão de termos feitos escolhas arbitrárias, vamos
justificar por que não optamos pelo artigo de Mortimer e Amaral (1998). Os autores
discutiram as principais características das concepções cotidianas de calor e temperatura e
sugeriram atividades para favorecerem sua explicitação pelos alunos, de modo que eles
pudessem perceber a relação entre essas concepções e os conceitos científicos de mesmo
nome. Baseados na literatura da área, eles elencaram as três características principais das
concepções de calor e temperatura apresentadas pelos estudantes, a saber: o calor é uma
substância; existem dois tipos de ‘calor’: o quente e o frio; o calor é diretamente proporcional
à temperatura.

A nossa discordância começa quando os autores apresentam a sua definição de calor: “O


calor, sendo uma forma de energia, não é uma substância [...]” (MORTIMER; AMARAL,
1998, p. 31). Mostraremos adiante as nossas razões para não interpretar o calor como uma
forma de energia, mas as próprias incompatibilidades que surgem ao longo do texto já são
causas suficientes. Quando os autores afirmam que “[...] Hoje sabemos que uma substância
pode armazenar energia, mas não contém calor [...]” (MORTIMER; AMARAL, 1998, p. 31).
É difícil entender o fato de o calor ser uma forma de energia mas não poder ser armazenado.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 155

Se a energia pode, por que o calor não? Além do mais, falar que a energia pode ser
armazenada, não é interpretá-la também como uma substância? A incoerência não para por aí,
vejamos o seguinte trecho:

O conceito de temperatura, do ponto de vista científico, deriva da observação


de que energia pode fluir de um corpo para outro quando eles estão em
contato. A temperatura é a propriedade que nos diz a direção do fluxo de
energia. Assim, se a energia flui de um corpo A para um corpo B, podemos
dizer que A está a uma temperatura maior do que B. Essa maneira de definir
a temperatura também estabelece a relação entre calor e temperatura. O
calor, como fluxo de energia, sempre passa de um sistema a uma
temperatura maior para um outro a uma temperatura menor, quando os dois
estão em contato. Deve-se destacar que só há fluxo de energia e, portanto,
calor, quando há diferença de temperatura. O calor é, dessa maneira,
diretamente proporcional à diferença de temperatura entre os dois sistemas
entre os quais está havendo a transferência de calor, e não à temperatura
de qualquer dos sistemas (MORTIMER; AMARAL, 1998, p. 31).

Agora eles definem o calor como “fluxo de energia”. Ora, é como se afirmássemos em um
momento que o “vento é ar”, e, em seguida, que o “vento é o ar em movimento”. Não há
possibilidade de ele ser, ao mesmo tempo, as duas coisas, ou é uma, ou é outra. Novamente
aparece a mesma dúvida quanto à energia. Ao dizerem que a “energia pode fluir de um corpo
para outro”, não é considerar algo substancial, como um líquido ou o ar, se deslocando entre
dois pontos do espaço? Há outras incongruências no texto, mas preferimos não ir além do que
já foi dito, para não repetir os comentários que serão feitos em relação aos livros didáticos.
Mas, pelo exposto, tem-se uma ideia da complexidade que envolve o assunto.

Os autores tinham como objetivo discutir as concepções cotidianas de calor e temperatura dos
alunos confrontando-as com os conceitos científicos. No entanto, haja vista que a separação
entre o universo reificado e o universo consensual não é abrupta, em quem nos apoiar? Em
outras palavras, se para identificar a existência de uma representação social de um conceito
temos que comparar discursos, quais são os parâmetros que definem o que é calor para a
ciência? Diante desse impasse quanto ao significado menos polissêmico e mais legitimado do
termo calor para a ciência, a solução encontrada foi analisar os argumentos dos pesquisadores
que se debruçaram sobre esse assunto e escolher um discurso como representante do universo
reificado.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 156

7.2 O DISCURSO ESCOLHIDO COMO REPRESENTANTE DO UNIVERSO


REIFICADO

De acordo com Garcia Houcarde e Rodrigues de Avila (1985, p. 192, grifo nosso, tradução
nossa):

A explicação física dos fenômenos associados com o <<calor>> passou por


três fases: a) O calor é um fluido contido nos corpos e intercambiável. b) O
calor é uma forma de energia e c) O calor é o nome convencional de um
processo. 134

A interpretação do conceito de calor como um processo é defendida por Josep Lluís


Doménech em sua tese de doutorado, sob a orientação de Daniel Gil Pérez e Joaquín
Martínez Torregrosa, na Universitat de València, em 2000, com o título “L’ensenyament de
l’energia en l’educació secundària: anàlisi de les dificultats i una proposta de millora”. Em
suas considerações iniciais, Doménech (2000) afirma que o ensino e a aprendizagem dos
conceitos de energia, trabalho e calor, bem como das relações entre eles, são muito
complexos. A sua pesquisa se insere nesse contexto com a proposta de tornar a compreensão
desses temas mais adequada aos alunos. Apoiando-se nos trabalhos de revisão realizados por
Brook (1986) e Nicholls e Ogborn (1993), o autor elenca as concepções mais comuns
relacionadas ao conceito de energia:

• A energia é uma atividade humana.


• A energia é vista como um combustível.
• A energia está relacionada ao movimento ou a uma ativididade vísivel.
• A energia é uma força.
• A energia é um fluido invisível.

Enquanto as quatro primeiras concepções aparecem com maior intensidade entre os alunos do
Ensino Fundamental e Médio, a última predomina no meio universitário. Segundo Doménech
(2000, p. 10, grifo nosso, tradução nossa):

134
Versão original: La explicación Física de los fenómenos asociados al «calor» ha pasado por tres fases: a) El
calor es un fluido contenido en los cuerpos e intercambiable. b) El calor es una forma de energía y c) El calor
es el nombre convencional de un proceso.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 157

Reiteradamente, se tem observado a influência da linguagem na concepção


que os alunos têm de energia (Solomon 1983a; McClelland 1989; Beynon
1990; Chisholm 1992; Galagovsky et al. 1998). Assim, o fato de que, em
nossa vida diária (e às vezes também em nossas aulas de Física e Química),
muitas vezes usamos expressões como “fluxo de energia”, “troca de
energia”, “transferência de energia”, “transformação de energia”, etc.,
induzem alguns alunos a pensar que a energia é uma espécie de
substância ou fluido contido nos objetos. 135

Essa observação corrobora as críticas que fizemos ao artigo de Mortimer e Amaral (1998).
Em seguida, após uma extensa revisão bibliográfica sobre o ensino e a aprendizagem dos
conceitos de energia, calor e trabalho, Doménech (2000, p. 21-24) apresenta dezessete
proposições com o intuito de tornar esse processo mais eficaz. O conceito de calor que
adotamos como representativo do universo reificado é uma síntese dessas proposições
complementada com algumas considerações que acreditamos ser pertinentes. Mas, para
definirmos o calor, precisamos esclarecer antes o que entendemos por energia. De acordo com
Feynman (2005, p. 91, grifo nosso):

[...] há certa quantidade, denominada energia, que não muda nas


múltiplas modificações pelas quais passa a natureza. Trata-se de uma
idéia extremamente abstrata, por ser um princípio matemático; diz que há
uma grandeza numérica que não se altera quando algo acontece. Não é a
descrição de um mecanismo ou de algo concreto; é apenas um fato estranho
de que podemos calcular certo número e, quando terminamos de observar a
natureza em suas peripécias e calculamos o número de novo, ele é o mesmo
[...].

Esse pensamento se junta à análise que fizemos sobre a evolução histórica do conceito físico
de energia para comprovar que não há uma definição única ou generalizável desse termo.
Concordamos com Poincaré (1968) ao afirmar que qualquer que seja a noção do mundo que
os experimentos futuros possam nos dar, já sabemos que haverá alguma coisa que permanece
constante e que poderemos chamar de energia. Isso é o mais perto possível que podemos nos
aproximar de sua definição. Contudo, para que não seja interpretada como uma substância ou
fluido contido nos objetos, há que se atentar que ela está associada à configuração de um

135
Versão original: Reiteradament, s'ha assenyalat aquesta influència del llenguatge en la concepció que els
alumnes tenen de l'energia (Solomon 1983a; McClelland 1989; Beynon 1990; Chisholm 1992; Galagovsky et
al. 1998). Així, el fet que, en la nostra vida diària (i de vegades també en les nostres classes de Física i
Química), utilitzem sovint expressions com ara, “flux d'energia”, “intercanvi d'energia”, “transferència
d'energia”, “transformació de l'energia”, etc., porta a alguns alumnes a pensar que l'energia és una mena de
substància o fluid contingut en els objectes.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 158

sistema 136 e às interações que essa configuração permite. Desse modo, não faz sentido falar
em energia de um objeto isolado, além de não ser possível determinar de modo absoluto a
energia de um sistema, somente a sua variação. Quando falamos, por exemplo, “a energia
potencial gravitacional de uma pedra”, cometemos um erro, sob a ótica da ciência. Devido à
interação entre a pedra e à Terra – desprezando-se os outros corpos –, a energia está associada
ao conjunto formado pelos dois elementos. Essas considerações incluem a energia cinética,
conforme Doménech et al. (2003, p. 295, tradução nossa):

Devemos assinalar que as abundantes investigações que temos mencionado


sobre as dificuldades dos estudantes em torno do caráter sistêmico da
energia, são todas relacionadas com as energias potenciais. Não
encontramos, contudo, nenhuma referência a considerações similares
relativas à energia cinética: fala-se sistematicamente da energia cinética de
um objeto e não se esclarece que essa energia expressa a capacidade do
objeto para interagir com os outros porque, precisamente, viaja a uma
velocidade determinada em relação a eles. Por consequência, somente
podemos falar de a energia cinética de um objeto na medida em que
existam outros corpos com os quais possa interagir. Trata-se,
definitivamente, de uma propriedade do sistema constituído por esse
conjunto de objetos. 137

Com esses cuidados, podemos evitar reproduzir no universo reificado as três principais ideias
associadas à energia no universo consensual, assim resumidas por Pacca e Henrique (2004, p.
160, tradução nossa):

- Energia - causa/fonte: energia como um agente causal, como algo que os


corpos possuem que lhes capacitam a realizar alguma ação, produzir
mudanças, transformações no ambiente. Assim, o carvão, o Sol, a
eletricidade têm energia, pois, por si mesmos, provocam a ação de iluminar,
esquentar, movimentar, etc.

136
Sistema, nesse contexto, deve ser entendido como um “[...] modelo de simplificação, no qual focamos nossa
atenção em uma pequena região do universo e desprezamos detalhes sobre o restante do universo fora do
sistema [...]” (SERWAY; JEWETT JUNIOR, 2005a, p. 180). Assim, um sistema pode ser tanto um corpo ou
partícula única, quanto um conjunto de corpos ou de partículas. A fronteira de um sistema, que nem sempre
coincide com a sua superfície Física, é uma superfície imaginária que divide o sistema de sua vizinhança.
137
Versão original: Debemos señalar que las abundantes investigaciones que hemos mencionado acerca de las
dificultades de los alumnos en torno al carácter sistémico de la energía, se refieren todas a energías potenciales.
No hemos encontrado, en cambio, ninguna referencia a consideraciones similares relativas a la energía
cinética: se habla sistemáticamente de la energía cinética de un objeto y no se aclara que esta energia expresa la
capacidad del objeto para interaccionar con otros a causa, precisamente, de que se desplaza a una velocidad
determinada respecto a ellos. En consecuencia, sólo podemos hablar de la energía cinética de un objeto en
la medida en que existen otros cuerpos con los cuales puede interaccionar. Se trata, en definitiva, de una
propiedad del sistema constituido por ese conjunto de objetos.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 159

- Energia - movimento/ação: a energia torna-se concreta na atividade


explícita de um objeto em movimento. Assim, por exemplo, corpos que
movem têm energia.

- Energia - substância: a energia é algo que tem existência quase material e


pode ser armazenada dentro dos objetos. Assim, por exemplo, quando se fala
que a comida e o carvão têm energia armazenada, sugerem-se, muitas vezes,
a ideia de uma substância ativa. A própria linguagem frequentemente
utilizada em relação à energia – gastar energia, produzir energia, a energia
desaparece – sugere a idéia de algo concreto, com existência real como um
objeto. Em todas essas ideias, a energia está incorporada/integrada, de algum
modo, a um corpo e, dependendo da situação, pode-se privilegiar uma
delas. 138

Nessa perspectiva, um sistema somente pode variar a energia associada à sua configuração
quando passar por um determinado processo de transformações causadas por interações com
o meio externo ou por interações entre as suas partes (DOMÉNECH, 2000; DOMÉNECH et
al., 2003). No entanto, essas interações não provocam “fluxo de energia”, “transferência de
energia” ou “transformação de energia”. Há apenas transformações do arranjo do sistema
envolvido nas interações de tal forma que a energia deve ser calculada, agora, por outras
grandezas Físicas que pertencem ao sistema e/ou pelas mesmas grandezas com as suas
intensidades modificadas. A energia associada a um sistema é apenas uma. Mas, para facilitar
o seu cálculo, podemos interpretar as diversas configurações pelas quais passa o sistema e as
distintas maneiras pelas quais as interações ocorrem, como se essa energia única estivesse
distribuída em diferentes formas (cinética, potencial gravitacional, potencial elástica, elétrica,
etc.). Entretanto, deve-se ter claro que:

Falar de distintas formas de energia pode reforçar a sua concepção como


algo material “que muda de forma”. Para evitar isso, devemos associar as
diferentes formas de energia (cinética, potencial, gravitacional, etc.) a
diferentes configurações dos sistemas e a distintas formas de interagir
da matéria. Em outras palavras, a diversidade de adjetivos que normalmente
acompanham o termo energia indica-nos a propriedade (ou propriedades) do
sistema que intervirá (ou pode intervir) em um determinado processo, ou o

138
Versão original: – Energía - causa/fuente: energía como un agente causal, como algo que los cuerpos poseen
que los capacita para realizar alguna acción, producir cambios, transformaciones en el ambiente. Así, el carbón,
el sol, la electricidad tienen energía, pues, por sí mismos, provocan la acción de iluminar, calentar, mover, etc.
– Energía - movimiento/acción: la energía se hace concreta en la actividad explícita de un objeto en
movimiento. Así, por ejemplo, los cuerpos que se mueven tienen energía. – Energía - sustancia: la energía es
algo que tiene existencia casi material y puede almacenarse dentro de los objetos. Así, por ejemplo, cuando se
habla de que la comida y el carbón tienen energía almacenada, se sugiere muchas veces la idea de una
sustancia activa. El propio lenguaje frecuentemente usado con relación a la energía – gastar energía, producir
energía, la energía desaparece – sugiere la idea de algo concreto, con existencia real como um objeto. En todas
esas ideas, la energía está incorporada/integrada, de algún modo, a un cuerpo y, en función de la situación, se
puede privilegiar una de ellas.
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 160

tipo de processo que participará o sistema (PINTÓ, 1991; RESNICK,


HALLIDAY e KRANE, 1993; ARONS, 1997; e KAPER e GOEDHART,
2002). Assim, por exemplo, dizemos que uma bateria tem energia elétrica
porque a separação de cargas de sinais diferentes nos pólos dota o sistema da
capacidade de produzir transformações quando se habilita a possibilidade de
circulação de cargas (DOMÉNECH et al., 2003, p. 294-295, tradução
nossa). 139

De acordo com Jewett Junior (2008, p. 211, tradução nossa), na Física clássica, é possível
variar a energia de um sistema por seis diferentes processos:

W: trabalho feito sobre o sistema por forças externas cujos pontos de


aplicação movem-se ao longo dos deslocamentos

Q: energia transferida através do contorno do sistema por calor devido a


uma diferença de temperatura entre o sistema e a sua vizinhança

T MT : energia transferida através do contorno do sistema por transferência de


matéria (tais como a transferência de um combustível para dentro de um
tanque)

T MW : energia transferida através do contorno de um sistema por ondas


mecânicas tais como as ondas sonoras ou ondas sísmicas

T ER : energia transferida através do contorno de um sistema por radiação


eletromagnética tais como a luz ou microondas

T ET : energia transferida através do contorno de um sistema por transmissão


elétrica de uma bateria ou outra fonte elétrica 140

Aprovamos essa lista do autor, apenas ressaltamos que a expressão “energia transferida” não
deveria ser utilizada no meio acadêmico. Uma sugestão seria dizer simplesmente “variação de

139
Versão original: Hablar de distintas formas de energía puede reforzar su concepción como algo material “que
cambia de forma”. Para evitarlo se deben asociar las distintas formas de energía (cinética, potencial
gravitatoria, etc.) a diferentes configuraciones de los sistemas y a distintas formas de interaccionar de la
materia. Con otras palabras, la diversidad de calificativos con que solemos acompañar al término energía nos
indica la propiedad (o propiedades) del sistema que intervendrá (o puede intervenir) en un proceso
determinado, o el tipo de proceso en que participará el sistema (PINTÓ, 1991; RESNICK, HALLIDAY y
KRANE, 1993; ARONS, 1997; e KAPER y GOEDHART, 2002). Así, por ejemplo, decimos que una batería
tiene energía eléctrica porque la separación de cargas de distinto signo en los polos dota al sistema de la
capacidad de producir transformaciones cuando se habilita la posibilidad de circulación de cargas
(DOMÉNECH et al., 2003, p. 294-295).
140
Versão original: W: work done on the system by external forces whose points of application move through
displacements / Q: energy transferred across the boundary of the system by heat due to a temperature
difference between the system and its environment / TMT: energy transferred across the boundary of the system
by matter transfer (such as transferring a fuel into a tank) / TMW: energy transferred across the boundary of a
system by mechanical waves such as sound waves or seismic waves / TER: energy transferred across the
boundary of a system by electromagnetic radiation such as light or microwaves / TET: energy transferred
across the boundary of a system by electrical transmission from a battery or other electrical source
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 161

energia do sistema”. O importante é que se tenha em mente que a variação de energia em um


sistema sempre é acompanhada por uma variação oposta de energia no meio externo em que
as interações com o sistema ocorreram. Ou, que a variação de energia de alguma parte do
sistema sempre é acompanhada por uma variação oposta em outra parte do mesmo sistema.
Isso acontece porque a energia do universo é constante, não podendo ser destruída ou criada.
Mas pode ser calculada utilizando várias grandezas Físicas e expressões matemáticas.

Desse modo, podemos “[...] conceber o trabalho como uma forma de intercâmbio de
energia. (Entendendo, evidentemente, por variações ou intercâmbios de energia a
modificação das configurações das partes do sistema que se interagem) [...]” (DOMÉNECH
et al., 2003, p. 297, itálico nosso, tradução nossa). 141 Assim como o trabalho (W), o calor (Q)
também é um processo pelo qual é possível variar a energia de um sistema. A diferença é que
o trabalho (W) envolve interações macroscópicas em que as forças são mensuráveis, ao
contrário do calor (Q) que pode ser interpretado como um conjunto de microtrabalhos,
realizados em nível microscópico, que ocorrem como consequência do contato entre objetos
de diferentes temperaturas ocasionando a variação da energia interna de ambos
(DOMÉNECH, 2000; DOMÉNECH et al., 2003). Compreendendo a energia interna como:

[...] a energia associada aos componentes microscópicos de um sistema –


átomos e moléculas – quando vistos a partir de um referencial em repouso
em relação ao sistema. Inclui a energia cinética e potencial associada com o
movimento aleatório translacional, rotacional e vibratório dos átomos ou das
moléculas que compõem o sistema, bem como a energia potencial
intermolecular (SERWAY; JEWETT JUNIOR, 2005b, p. 589).

Essa será para nós a definição de calor do universo reificado. Em resumo, calor não é “[...]
uma forma nova ou diferente de energia. É um nome dado a uma forma muito especial de
trabalho ou transferência de energia na qual participa um número muito grande de partículas
[...]” (ALONSO; FINN, 1971 apud GARCIA HOUCARDE; RODRIGUES DE AVILA,
1985, p. 192, tradução nossa) 142. Na próxima seção, aproveitaremos os exemplos analisados
dos livros didáticos de Física para aprofundarmos a discussão sobre essa definição. O leitor

141
Versão original: “[...] concebir el trabajo como una forma de intercambio de energía. (Entendiendo, claro
está, por variaciones o intercambios de energía la modificación de las configuraciones de las partes del sistema
que interaccionan) [...]” (DOMÉNECH et al., 2003, p. 297).
142
Versão original: “[...] una forma nueva o diferente de energía. Es un nombre dado a una forma muy especial
de trabajo o transferencia de energía en la cual participa un nº muy grande de partículas [...]” (ALONSO;
FINN, 1971 apud GARCIA HOUCARDE; RODRIGUES DE AVILA, 1985, p. 192).
7 O CONCEITO DE CALOR PARA O UNIVERSO REIFICADO 162

encontrará também o retorno de algumas reflexões que fizemos sobre a evolução do conceito
físico de energia; a evolução do conceito físico de calor; as representações sociais e a
argumentação. Não poderia ser diferente, afinal, tudo o que foi discutido, até esse momento,
serviu como uma preparação teórica para análise a ser apresentada. Desse modo, a próxima
seção, ao colocar em prática as nossas reflexões teóricas, condensará as principais ideias deste
trabalho. Já apresentamos os ingredientes, agora falta mostrar como misturá-los para se ter o
bolo.
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS

8.1 RESULTADOS OBTIDOS

Os procedimentos metodológicos adotados na análise foram explicados na segunda seção


deste trabalho. Assim, após termos feito a pré-análise e a exploração do material,
apresentamos abaixo os resultados obtidos.

8.1.1 ENSINO MÉDIO

1. Título: Física – v. 2 / Autor(es): Gaspar, A. / Editora: Ática / Edição: 1ª / Ano: 2000

Neste livro, a definição de calor aparece em um capítulo à parte que trata dos principais
fenômenos físicos em que esse conceito se faz presente. É o capítulo 14 que tem o título
“Calor”. Para o autor, “[...] essa energia que se transfere de um corpo a outro, devida apenas à
diferença de temperatura entre eles, chamamos calor ou energia térmica” (GASPAR, 2000, p.
309). Logo adiante, ele é mais enfático: “[...] calor não é uma nova grandeza; calor é energia
[...]” (GASPAR, 2000, p. 310). Aqui a energia não é vista como um constructo teórico em que
o mais perto possível que podemos nos aproximar de sua definição é interpretá-la como certa
grandeza numérica que não muda nas múltiplas modificações pelas quais passa a natureza.
Desse modo, ela não pode ser vista como a descrição de um mecanismo ou como alguma
substância contida nos objetos. Mas a expressão “essa energia que se transfere de um corpo a
outro” promove a sua substancialização. Nesse caso, verifica-se o que Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2005) denominaram de metáfora adormecida. Ou seja:

[...] A metáfora já não é percebida como fusão, como união de termos


extraídos de áreas diferentes, mas como a aplicação de um vocábulo ao que
este designa normalmente; a metáfora, de atuante, tornou-se “adormecida”,
característica que aponta melhor do que outros adjetivos (ignorada,
esquecida, surrada) que esse estado pode ser transitório, que essas metáforas
podem ser despertadas e tornar a ser atuantes (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA (2005, p. 459).

Na sequência, os autores complementam a informação declarando que as metáforas


adormecidas possuem uma grande força persuasiva. Pois elas tiram seus efeitos de um
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 164

material analógico facilmente aceito, que, além de ser conhecido, é integrado na tradição
cultural pela linguagem. Uma sugestão dada por eles para despertar uma metáfora adormecida
é desenvolvê-la a partir da analogia que a originou. Adotando-se esse procedimento,
verificamos que a analogia que está por detrás da afirmação “essa energia que se transfere de
um corpo a outro” é a de que a energia, assim como uma substância – um fluido sutil –, pode
ser contida em um corpo e ser transferida de um local para outro. Por consequência, como o
“calor é energia”, ele também possui os mesmos atributos. Ao longo do capítulo, surgem
outras frases com o termo calor que comprovam o nosso ponto de vista. Por exemplo:

− “Quando dois ou mais corpos cedem ou absorvem quantidades iguais de calor [...]”
(GASPAR, 2000, p. 310, grifo nosso).

− “A definição de capacidade calorífica de um corpo leva às duas expressões matemáticas


abaixo [...] que relacionam a quantidade de calor fornecida a esse corpo e a
correspondente variação de sua temperatura” (GASPAR, 2000, p. 310, grifo nosso).

− “[...] Se várias substâncias diferentes recebem a mesma quantidade de calor e não mudam
de estado, aquelas que tiverem maior calor específico sofrerão menor variação de
temperatura e vice-versa [...]” (GASPAR, 2000, p. 313, grifo nosso).

− “Quando isso ocorre, costuma-se dizer que esses corpos trocam calor [...] se um corpo
cede calor [...]. Por raciocínio análogo, quando o corpo receber calor, a variação da
temperatura e quantidade calor recebida (Q r ) são positivas [...]” (GASPAR, 2000, p. 317,
grifo nosso).

− “Nem sempre a temperatura de uma substância varia quando ela absorve ou perde calor
[...] o calor ganho ou perdido pela substância não se transforma em energia cinética [...]”
(GASPAR, 2000, p. 317, grifo nosso).

− “Para que haja troca de calor, é preciso que ele seja transferido de uma região a outra
através do próprio corpo, ou de um corpo para outro” (GASPAR, 2000, p. 323, grifo
nosso).

− “Existem três processos de transferência de calor: condução, convecção e radiação [...]”


(GASPAR, 2000, p. 323, grifo nosso).

− “O modelo que relaciona a temperatura com o movimento das partículas pode explicar a
condução do calor na barra. À medida que recebem calor da chama [...] é a
transferência do calor” (GASPAR, 2000, p. 323, grifo nosso).

− “[...] pode-se concluir que corpos menos densos [...] são maus condutores de calor [...]
Uma expressão matemática, obtida a partir de verificações experimentais, permite
determinar o fluxo de calor transmitido através de determinado material [...]”(GASPAR,
2000, p. 323, grifo nosso).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 165

2. Título: Curso de Física – v. 2 / Autor(es): Máximo, A.; Alvarenga, B. / Editora: Scipione


/ Edição: 5ª / Ano: 2000

Os autores definem o conceito de calor no capítulo de nome “Primeira lei da


Termodinâmica”, capítulo 12. Este pertence, por sua vez, à unidade 6, de título “Calor”.
Segundo os autores, o conceito moderno de calor é, “[...] a energia transferida de um corpo
para outro em virtude, unicamente, de uma diferença de temperatura entre eles” (MÁXIMO;
ALVARENGA, 2000, p. 118). Mais à frente, eles afirmam: “Uma vez estabelecido que o
calor é uma forma de energia [...]” (MÁXIMO; ALVARENGA, 2000, p. 118). Percebe-se,
desse modo, que não há diferença com o pensamento do primeiro autor analisado. Assim, os
comentários feitos para a obra anterior servem para essa obra também. Para o leitor se
certificar da validade de nossa afirmação, citaremos outras frases desse livro em que o termo
calor aparece:

− “[...] A transferência de calor para um corpo acarreta [...] Esta energia transferida é o
calor que está passando de um corpo para o outro [...]” (MÁXIMO; ALVARENGA,
2000, p. 118, grifo nosso).

− “[...] Este processo de transmissão de calor é denominado condução. A maior parte do


calor que é transferido através dos corpos sólidos é transmitida, de um ponto a outro,
por condução” (MÁXIMO; ALVARENGA, 2000, p. 120, grifo nosso).

− “[...] Por este motivo, há uma contínua transmissão de calor de nosso corpo para o meio
ambiente. Se a temperatura do ambiente for muito baixa, esta transmissão se faz com maior
rapidez, sendo isto o que provoca, em nós, a sensação de frio [...]” (MÁXIMO;
ALVARENGA, 2000, p. 120, grifo nosso).

− “[...] a quantidade de calor, ∆Q, que um corpo absorve (ou libera) quando sua
temperatura varia de ∆t [...]” (MÁXIMO; ALVARENGA, 2000, p. 126, grifo nosso).

− “Quando um ou mais corpos são colocados no interior de um calorímetro, sendo suas


temperaturas diferentes [...] haverá troca de calor entre eles” (MÁXIMO; ALVARENGA,
2000, p. 134, grifo nosso).

− “[...] o calor total liberado pelos corpos que se esfriaram é igual ao calor total absorvido
pelos corpos que se aqueceram” (MÁXIMO; ALVARENGA, 2000, p. 134, grifo nosso).

3. Título: Física – v. 2 /Autor(es): Cabral, F.; Lago, A. / Editora: Harbra / Edição: 1ª / Ano:
2002

No capítulo 2, de título “Calor”, encontramos a definição desse conceito. De acordo com os


autores: “Calor é a energia transferida entre dois corpos em virtude, apenas, da diferença de
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 166

temperatura” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 42). Na próxima página, eles complementam:


“Como calor é energia [...]” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 43). Mais uma vez, o calor é visto
como uma substância. Vejamos outras frases desses autores relacionadas com o calor:

− “O calor sempre é transferido do corpo com temperatura mais alta para o de temperatura
mais baixa [...]” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 42, grifo nosso).

− “Para compreender os mecanismos de troca de calor, devemos estudar como a energia é


transferida entre dois corpos ou entre partes de um mesmo corpo que estão com
temperaturas diferentes” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 45, grifo nosso).

− “Os mecanismos fundamentais de transferência de calor são: convecção, condução e


irradiação. Estes mecanismos só funcionam quando há uma diferença de temperatura entre
os dois corpos ou partes de um mesmo corpo [...]” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 45, grifo
nosso).

− “Materiais que conduzem bem o calor são chamados de condutores térmicos e materiais
que conduzem pouco ou nenhum calor são chamados de isolantes térmicos” (CABRAL;
LAGO, 2002, p. 49, grifo nosso).

− “[...] Quanto maior for o valor da condutividade térmica, mais rapidamente o calor vai
fluir [...]” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 50, grifo nosso).

− “Note que o calor que penetra na residência, ou que dela sai, é maior nas janelas do que
nas paredes [...] para minimizar as trocas de calor entre o interior da casa e o ambiente
[...]” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 52, grifo nosso).

4. Título: Os fundamentos da Física – v. 2 / Autor(es): Ramalho Junior, F.; Ferraro, N. G..;


Soares, P. A. T. / Editora: Moderna / Edição: 9ª / Ano: 2007

O livro está dividido em 6 partes e 19 capítulos. A definição do conceito de calor é


apresentada no capítulo 4, “A medida do calor – Calorimetria”, que é um dos capítulos da
parte 3, “Calor – A energia térmica em trânsito”. Os autores definem calor com uma ligeira
modificação, eles afirmam que: “Calor é energia térmica em trânsito entre corpos a
diferentes temperaturas” (RAMALHO JUNIOR, FERRARO; SOARES, 2007, p. 47, grifo
nosso). Mas, em outras passagens do capítulo, fica claro que essa definição tem o mesmo
sentido do que a dos outros três livros analisados, por exemplo:

− “[...] A passagem do calor cessa ao ser atingido o equilíbrio térmico, isto é, quando as
temperaturas se igualam [...]” (RAMALHO JUNIOR, FERRARO; SOARES, 2007, p. 47,
grifo nosso).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 167

− “A unidade em que é medida a quantidade de calor Q trocada pelos corpos é a unidade


de energia, visto que se trata de energia térmica em trânsito [...]” (RAMALHO JUNIOR,
FERRARO; SOARES, 2007, p. 47, grifo nosso).

− “[...] quando um corpo recebe calor [...]. Quando o efeito produzido é a variação de
temperatura, dizemos que o corpo recebeu calor sensível. Se o efeito se traduz pela
mudança de estado, o calor recebido pelo corpo é dito calor latente [...]” (RAMALHO
JUNIOR, FERRARO; SOARES, 2007, p. 48, itálico nosso).

− “De modo análogo, quando um corpo cede calor, se houver diminuição de temperatura,
diz-se que o corpo perdeu calor sensível; se houver mudança de estado, o corpo terá
perdido calor latente” (RAMALHO JUNIOR, FERRARO; SOARES, 2007, p. 48, grifo
nosso).

− “Quando a temperatura de um corpo aumenta, significa que ele recebeu calor. Se a


temperatura de um corpo diminui, é porque ele cedeu calor [...]” (RAMALHO JUNIOR,
FERRARO; SOARES, 2007, p. 49, grifo nosso).

− “Dois corpos A e B, colocados num recinto termicamente isolado, não trocam calor com o
meio ambiente. Se a temperatura de A é maior que a de B, há transferência de calor do
primeiro para o segundo [...]” (RAMALHO JUNIOR, FERRARO; SOARES, 2007, p. 52,
grifo nosso).

Os autores dos livros didáticos do Ensino Médio apresentaram uma homogeneidade de


pensamento a respeito da compreensão do conceito de calor. Resta saber se essa representação
se modifica ou se mantém para os autores dos livros didáticos do Ensino Superior.

8.1.2 ENSINO SUPERIOR

1. Título: Fundamentos de Física – v. 2 / Autor(es): Halliday, D.; Resnick, R.; Walker, J. /


Editora: LTC / Ed.: 8ª / Ano: 2009

Encontramos a definição do conceito de calor no item 18-7, “Temperatura e Calor”, que faz
parte do capítulo 18, “Temperatura, Calor e Primeira Lei da Termodinâmica”. Para os autores:
“Calor é a energia transferida de um sistema para o ambiente ou vice-versa devido a uma
diferença de temperatura” (HALLIDAY, RESNICK; WALKER, 2009, p. 190). Definição
idêntica a dada pelos autores do Ensino Médio, o que pode ser comprovado pelas seguintes
frases:

− “Se a temperatura de um sistema é maior que a temperatura ambiente [...] uma certa
quantidade Q de calor é perdida pelo sistema para o ambiente [...] uma certa quantidade
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 168

de calor é absorvida pelo sistema [...]” (HALLIDAY, RESNICK; WALKER, 2009, p.


190, grifo nosso).

− “Para determinar e utilizar corretamente o calor específico de uma substância é preciso


conhecer as condições que ocorre a transferência de calor [...]” (HALLIDAY,
RESNICK; WALKER, 2009, p. 192, grifo nosso).

− “Quando o calor é transferido para uma amostra sólida ou líquida nem sempre a
temperatura da amostra aumenta [...]” (HALLIDAY, RESNICK; WALKER, 2009, p. 192,
grifo nosso).

− “Processo adiabático é aquele que acontece tão depressa ou em um sistema tão bem isolado
que não há trocas de calor entre o sistema e o ambiente [...]” (HALLIDAY, RESNICK;
WALKER, 2009, p. 198, grifo nosso).

− “[...] O calor não pode entrar ou sair do sistema por causa do isolamento [...]”
(HALLIDAY, RESNICK; WALKER, 2009, p. 198, grifo nosso).

2. Título: Física para Cientistas e Engenheiros – v. 1 / Autor(es): Tipler, P. A.; Mosca, G. /


Editora: LTC / Ed.: 6ª / Ano: 2009

Nesta obra, o conceito de calor é definido no capítulo 18, “Calor e a Primeira Lei da
Termodinâmica”. De acordo com os autores: “Calor é a transferência de energia em razão de
uma diferença de temperatura [...]” (TIPLER; MOSCA, 2009, p. 600). Depois eles
completam: “Quando um corpo mais quente está em contato térmico com um corpo mais frio,
a energia transferida do corpo mais quente para o corpo mais frio, em razão da diferença de
temperatura entre os dois corpos, é chamada de calor [...]” (TIPLER; MOSCA, 2009, p. 600).
Vejamos alguns excertos em que esse termo aparece:

− “[...] então o calor liberado pelo objeto será igual ao calor absorvido pela água e pelo
contêiner [...]” (TIPLER; MOSCA, 2009, p. 602, grifo nosso).

− “Podemos aumentar a temperatura de um sistema fornecendo-lhe calor [...]” (TIPLER;


MOSCA, 2009, p. 606, grifo nosso).

− “Durante anos, a potência gerada pela troca de calor tem sido aproveitada [...]” (TIPLER;
MOSCA, 2009, p. 599, grifo nosso).

− “Durante a convecção, o calor é transferido por transporte direto da matéria [...]”


(TIPLER; MOSCA, 2009, p. 678, itálico nosso).

− “Durante todos os mecanismos de transferência de calor [...]” (TIPLER; MOSCA, 2009,


p. 678, grifo nosso).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 169

3. Título: Física II / Autor(es): Sears, F.; Young, H. D.; Freedman, R. A.; Zemansky, M. W.
/ Editora: Pearson Addison Wesley / Edição: 10ª / Ano: 2003

Os autores definem o conceito de calor no capítulo 15, “Temperatura e Calor”: “[...] A


transferência de energia produzida apenas por uma diferença de temperatura denomina-se
transferência de calor ou fluxo de calor, e a energia transferida deste modo denomina-se
calor” (SEARS et al., 2003, p. 113). Em seguida, eles declaram: “Como o calor é uma energia
que está sendo transferida [...]” (SEARS et al., 2003, p. 113). Mais uma vez não há diferença
na concepção sobre o que seja o calor. Até as frases em que esse termo é utilizado são, por
assim dizer, idênticas às dos outros autores comentados:

− “[...] Podemos alterar a temperatura de um corpo fornecendo calor ou retirando calor do


corpo [...]” (SEARS et al., 2003, p. 113, grifo nosso).

− “[...] Quando esses valores são positivos, o calor é transferido para o corpo e sua
temperatura aumenta; quando esses valores são negativos, o calor é libertado pelo corpo e
sua temperatura diminui [...]” (SEARS et al., 2003, p. 114, grifo nosso).

− “[...] Para congelar a água líquida a 0°C, devemos remover calor da água; o módulo do
calor é o mesmo, mas, neste caso, Q é negativo porque estamos removendo calor, e não
adicionando calor [...]” (SEARS et al., 2003, p. 116-117, grifo nosso).

− “[...] quando ocorre troca de calor entre dois corpos isolados do meio ambiente, o calor
perdido por um dos corpos deve ser igual ao calor ganho pelo outro corpo [...]” (SEARS
et al., 2003, p. 119, grifo nosso).

− “[...] Consideramos como positivo todo calor que entra em um corpo e como negativo o
calor que sai do corpo [...]” (SEARS et al., 2003, p. 119, grifo nosso).

− “Já falamos sobre condutores, materiais que permitem a condução de calor, e sobre
isolantes, materiais que impedem a transferência de calor entre corpos [...]” (SEARS et
al., 2003, p. 121, grifo nosso).

4. Título: Curso de Física Básica – v. 2 / Autor(es): Nussenzveig, H. M. / Editora: Edgard


Blücher / Edição: 4ª / Ano: 2002

As discussões sobre o tema calor começam no capítulo 8, “Calor. Primeira Lei da


Termodinâmica”. Nas palavras do autor: “[...] o calor Q representa a energia transferida
entre o sistema e sua vizinhança através de uma parede diatérmica, devido a diferenças de
temperatura, descontando-se a eventual transferência de trabalho” (NUSSENZVEIG, 2002,
p. 177). De todos os livros analisados, este foi o que apresentou a definição de calor de modo
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 170

mais diferente. Contudo, o autor mostrou ter a mesma representação do conceito do que os
demais, conforme pode ser visto pelas seguintes expressões:

− “[...] A variação de temperatura é a mesma nos dois casos [...] mas a quantidade de calor
fornecida é dupla para 2 litros” (NUSSENZVEIG, 2002, p. 169, grifo nosso).

− “Como as paredes adiabáticas não permitem trocas de calor com o exterior [...] a
quantidade de calor ∆Q = m A c A (T A – T f) perdida pela amostra [...]” (NUSSENZVEIG,
2002, p. 170, grifo nosso).

− “[...] um sistema de capacidade térmica C, sofre uma variação de temperatura ∆T = ∆Q/C


pela transferência de uma quantidade de calor ∆Q” (NUSSENZVEIG, 2002, p. 171,
grifo nosso).

− “A transferência de calor de um ponto a outro de um meio se dá através de três processos


diferentes: convecção, radiação e condução” (NUSSENZVEIG, 2002, p. 171, grifo nosso).

Considerando que as expressões utilizadas pelos autores didáticos do Ensino Superior não
apresentam nenhuma diferença significativa com as utilizadas pelos autores do Ensino Médio,
podemos afirmar que ambos representam o conceito de calor do mesmo modo. Aliás, essa foi
uma das principais dificuldades que tivemos para encontrar qual era o universo reificado
desse conceito.

8.2 INTERPRETAÇÃO E INFERÊNCIA

Após essa análise, podemos concluir que há uma representação social dos autores de livros
didáticos de Física, tanto do Ensino Médio quanto do Ensino Superior, sobre o conceito de
calor. O núcleo central dessa representação é constituído pela metáfora “Calor é uma
substância, um fluido sutil”. Essa metáfora pode ser percebida ao se comparar o conceito de
calor do universo reificado, um tipo de processo de variação de energia, com o dos autores
dos livros didáticos, energia transferida de um corpo para outro. Ou seja, ocorre uma
semelhança de relações entre termos heterogêneos, pois está se comparando algo que não
pode ser contido ou transferido – um processo –, com a energia, que é interpretada como um
fluido sutil, que pode ser contido e transferido.

Em outras palavras, há uma defasagem entre a representação produzida pelo grupo social dos
autores dos livros didáticos e seu referente no universo reificado. Nesse caso, há distorção
por interpretar a variação de energia interna de um sistema – em razão de uma diferença de
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 171

temperatura – como decorrente da entrada ou saída de energia, em vez da modificação


configuracional do sistema ocasionada por um conjunto de microtrabalhos, realizados em
nível microscópico, que ocorrem como consequência do contato entre objetos de diferentes
temperaturas. Essa distorção enfatiza a modificação numérica do valor da energia anulando o
papel que o conjunto dos microtrabalhos tem no processo 143. Além disso, ao associar o calor
com energia e essa com uma substância material, ocorre também uma suplementação do
conceito, por acrescentar significados ao objeto representado. Por último, observa-se a
subtração, ao omitirem-se as inúmeras interações microscópicas essenciais para a
compreensão dos fenômenos térmicos.

A defasagem tem por finalidade tornar familiar algo não-familiar. Por que é familiar ao grupo
social formado pelos autores de livros didáticos de Física representar o conceito de calor
como uma substância, não como um processo? Devido a uma das características que pertence
ao núcleo central, a qual estudamos:

Ele é diretamente ligado e determinado pelas condições históricas,


sociológicas e ideológicas. Ele é nesse sentido fortemente marcado pela
memória coletiva do grupo e pelo sistema de normas ao qual se refere
(ABRIC, 1994 apud SÁ, 2002, p. 73).

Em complemento, temos a observação de Moscovici (2003, p. 60) de que:

[...] Não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em


palavras usuais, próximas e atuais, É necessário, para dar-lhes uma feição
familiar, pôr em funcionamento os dois mecanismos de um processo de
pensamento baseado na memória e em conclusões passadas [...].

A ligação com a memória coletiva do grupo e com as conclusões passadas pode ser facilmente
percebida ao se comparar as frases utilizadas pelos seus componentes com as usadas pelos
caloristas. Expressões como calor – ou calórico – “cedido”, “absorvido”, “recebido”, “ganho”,
“perdido”, “liberado”, assim como, “transferência” e “trocas de calor” – ou calórico –, eram
corriqueiras nos textos dos antigos adeptos da teoria substancial do calor. Por exemplo,
vejamos abaixo um trecho do livro de Marcet (1817) e um de Máximo e Alvarenga (2000)

143
Aqui é interessante reproduzir a observação feita pela professora Alcina Maria Testa Braz da Silva, na
qualificação desta tese, de que esse tipo de “objetivação/coisificação/reificação” facilita o uso e abuso da
matemática, ou seja, da “formularização” dos conceitos científicos, no caso calor e energia, nas situações de
ensino e aprendizagem.
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 172

explicando o motivo pelo qual um objeto, ao ser tocado pela mão que está a uma temperatura
maior, aparenta ser mais frio do que outro a mesma temperatura:

Sentimos a lareira e a mesa mais frios que o tapete ou o livro porque esses
últimos não são tão bons condutores de calor como os primeiros. Calórico
encontra uma passagem mais fácil ao longo do mármore e da madeira do que
ao longo do couro e da lã; os dois primeiros, portanto, absorvem o calor
mais rapidamente de sua mão, e, consequentemente, dão-lhe uma forte
sensação de frio do que os dois últimos, apesar de estarem todos eles
realmente à mesma temperatura (MARCET, 1817, p. 71, grifo nosso,
tradução nossa). 144

Quando tocamos em uma peça de metal e em um pedaço de madeira, ambos


em um mesmo ambiente, isto é, ambos à mesma temperatura , o metal nos dá
a sensação de estar mais frio do que a madeira . Isto ocorre porque, sendo o
metal um condutor térmico melhor do que a madeira, haverá uma maior
transferência de calor de nossa mão para a peça metálica do que para o
pedaço de madeira (MÁXIMO; ALVARENGA, 2000, p. 120, grifo nosso).

Quase dois séculos depois, os autores dos livros didáticos de Física utilizam a mesma
linguagem do que os primeiros escritores caloristas. Isso corrobora a afirmação de Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005) de que a força persuasiva das metáforas adormecidas advém de um
material analógico facilmente aceito, que, além de ser conhecido, é integrado na tradição
cultural pela linguagem. Mas o universo reificado apresenta outro discurso, que desafia e
incomoda o discurso do universo consensual, causando conflito, instabilidade e desconforto.
Para o universo reificado, um objeto aparenta ser mais frio do que outro, a mesma
temperatura, pelo fato das partículas que compõem esses objetos estarem organizadas de
maneiras distintas. Desse modo, ao tocarmos com a mão cada um dos objetos, um conjunto de
microtrabalhos, realizados em nível microscópico, que ocorrem como consequência da
diferença de temperatura entre a nossa mão e o objeto tocado, causará a mesma variação de
energia interna 145, em módulo, na mão e no objeto. Nesse caso, como inicialmente a mão
estava a uma temperatura maior, ela terá uma variação de energia interna negativa. Mas, como
as partículas de cada objeto possuem configurações e interações diferentes, a variação de

144
Versão original: The hearth and the table feel colder than the carpet or the book, because the latter are not
such good conductors of heat as the former. Caloric finds a more easy passage through marble and wood, than
through leather and worsted; the two former will therefore absorb heat more rapidly from your hand, and
consequently give it a stronger sensation of cold than the two latter, although they are all of them really of the
same temperature (MARCET, 1817, p. 71).
145
Sempre entendendo por variação de energia interna a modificação da configuração de um sistema, bem como
das interações entre as suas partículas. Para mais exemplos de como explicar, sob a ótica do universo reificado
adotado por nós, outros fenômenos térmicos em que o termo calor aparece, sugerimos a leitura de Serway e
Jewett Junior (2005a, 2005b, 2005c, 2005d).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 173

energia interna será mais rápida em um objeto do que no outro. O nosso cérebro interpreta,
por mecanismos ainda desconhecidos pela ciência, que quanto mais rápido houver uma
variação de energia interna negativa de nossa mão, ao tocar um determinado objeto, mais fria
é a sensação que se tem.

Do modo que foi exposto, ao associarem a “transferência mais rápida de calor” de nossa mão
com a sensação de uma peça metálica estar mais fria do que um pedaço de madeira, os autores
estabelecem uma ligação entre a “quantidade de calor que se tem na mão” e a sua
temperatura. Quanto mais rápido se perde essa quantidade de calor, mais rápido a temperatura
decresce. Para o leitor se certificar de que isso não é uma conclusão forçada, vamos mostrar
algumas expressões que aparecem nos livros didáticos analisados, quando os seus autores
discorrem sobre o assunto “capacidade calorífica” ou “capacidade térmica” de um corpo:

Quando dois ou mais corpos cedem ou absorvem quantidades iguais de


calor, a variação de temperatura por eles sofrida é, em geral, diferente
uma da outra [...] (GASPAR, 2000, p. 310, grifo nosso).

[...] Portanto, fornecendo a mesma quantidade de calor a corpos diferentes,


eles, em geral, apresentam variações diferentes em suas temperaturas [...]”
(MÁXIMO; ALVARENGA, 2000, p. 123, grifo nosso).

Se medirmos a variação de temperatura ∆T de um determinado corpo ao


fornecermos uma quantidade Q de calor, podemos calcular a razão Q/∆T
[...]” (CABRAL; LAGO, 2002, p. 55, grifo nosso).

O nome dessa grandeza (capacidade térmica) vem do seguinte fato: ela pode
ser entendida como a medida da capacidade de receber ou perder calor
que um corpo tem, para uma dada variação de temperatura [...]”
(RAMALHO JUNIOR, FERRARO; SOARES, 2007, p. 50, grifo nosso).

A capacidade térmica C de um objeto é a constante de proporcionalidade


entre o calor Q recebido ou cedido por um objeto e a variação de
temperatura ∆T do objeto [...]” (HALLIDAY, RESNICK; WALKER,
2009, p. 191, grifo nosso).

[...] A quantidade de calor Q necessária para aumentar a temperatura de


uma amostra da substância é proporcional à variação da temperatura e à
massa da amostra [...]” (TIPLER; MOSCA, 2009, p. 600, grifo nosso).

[...] Podemos alterar a temperatura de um corpo fornecendo calor ou


retirando calor do corpo [...]” (SEARS, et al., 2008, p. 113, grifo nosso).

Se tivermos m gramas de uma substância pura de calor específico c, a


quantidade de calor ∆Q necessária para elevar sua temperatura de ∆T
[...]” (NUSSENZVEIG, 2002, p. 170, grifo nosso).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 174

Agora, vamos ver o que dizem Joseph Black e Jane Marcet quando examinam o mesmo tema:

[...] Mercúrio, portanto, tem menos capacidade para calor (se me é


permitido usar essa expressão) do que tem a água; uma menor quantidade
de calor é necessária para elevar sua temperatura pelo mesmo número de
graus (BLACK, 1803 apud ROLLER, p. 24, grifo nosso, tradução nossa). 146

[...] Assim, verifica-se que a fim de elevar a temperatura de diferentes


corpos em o mesmo número de graus, diferentes quantidades de calórico
são requeridas para cada um deles. Se, por exemplo, você colocar uma libra
de chumbo, uma libra de giz e uma libra de leite em um forno quente eles
serão gradualmente aquecidos até a temperatura do forno, mas o chumbo vai
atingi-la primeiro, o giz depois e o leite por último (MARCET, 1817, p.
123, grifo nosso, tradução nossa). 147

De novo, não há diferença na maneira de se expressar dos autores dos oito livros e dos antigos
caloristas. Poderíamos reproduzir mais inúmeros exemplos, mas achamos desnecessário. Para
quem tiver interesse, sugerimos uma leitura na íntegra da obra de Jane Marcet e de outros
partidários da teoria do calor como um fluido sutil. Facilmente serão encontradas outras
semelhanças. Um aspecto que merece ser destacado é que dos oito livros analisados seis
apresentam um breve resumo histórico da evolução do conceito de calor, além de todos
alertarem, em poucas palavras, que o calor não pode ser interpretado como algo contido nos
corpos. O que nos fez lembrar de uma das características do sistema periférico de uma
representação social:

[...] a de regulação e de adaptação do sistema central aos constrangimentos


e às características da situação concreta à qual o grupo se encontra
confrontado. Ele é um elemento essencial nos mecanismos de defesa que
visam proteger a significação central da representação. É o sistema periférico
que vai inicialmente absorver as novas informações ou eventos suscetíveis
de colocar em questão o núcleo central (ABRIC, 1994 apud SÁ, 2002, p.
73).

Portanto, apesar de estarem cientes de que o conceito de calor não deve ser associado a um
fluido sutil, os autores examinados não deixaram dúvidas, pelo desenvolvimento de suas

146
Versão original: [...] Quicksilver, therefore, has less capacity for heat (if I may be allowed to use this
expression) than has water; a smaller quantity of heat is needed to raise its temperature by the same number of
degrees (BLACK, 1803 apud ROLLER, p. 24).
147
Versão original: [...] Thus it is found that, in order to raise the temperature of different bodies the same
number of degrees, different quantities of caloric are required for each of them. If, for instance, you place a
pound of lead, a pound of chalk, and a pound of milk, in a hot oven, they will be gradually heated to the
temperature of the oven; but the lead will attain it first, the chalk next, and the milk last (MARCET, 1817, p.
123).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 175

ideias, de que essa abordagem ainda não é significativa para eles. Esse fato é explicado do
seguinte modo por Moscovici (2003, p. 54-55):

[...] os universos consensuais são locais onde todos querem sentir-se em


casa, a salvo de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito
ali, apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora,
mais do que contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam, sempre
de novo, as mesmas situações, gestos, idéias. A mudança como tal somente é
percebida e aceita desde que ela apresente um tipo de vivência e evite o
murchar do diálogo, sob o peso da repetição. Em seu todo, a dinâmica das
relações é uma dinâmica de familiarização, onde os objetos, pessoas e
acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios
encontros e paradigmas.

Em síntese, podemos afirmar que a representação social do conceito de calor dos autores de
livros didáticos de Física cumpre com as funções elencadas por Abric (1998), assim
resumidas por Almeida (2005, p. 123-124):

[...] Ao integrar um novo conhecimento a saberes anteriores, faz do novo


algo assimilável e compreensível (função de saber). Elas têm por função,
também, situar os indivíduos e os grupos no campo social, permitindo-lhes a
elaboração de uma identidade social e pessoal gratificante (função
identitária). Ainda, elas orientam os comportamentos e as práticas: intervêm
na definição da finalidade da situação, produzem um sistema de antecipação
e expectativas e são prescritivas de comportamentos ou de práticas
“obrigatórias”, na medida em que elas definem o que é aceitável em um
dado contexto social (função de orientação). Por fim, as representações
sociais permitem justificar, a posteriori, os comportamentos e as tomadas de
posição. Se uma representação desempenha um papel importante na
determinação das ações, elas também intervêm após a realização da ação,
permitindo aos indivíduos explicarem e justificarem suas ações. Esta função
assume um papel importante porque ela permite reforçar a diferenciação
social, na medida em que a justifica, preservando e mantendo a distância
social entre grupos – (função justificadora).

Acreditamos que, com esses elementos, já estamos prontos para responder as questões que
guiaram a nossa pesquisa:

• Como o conceito científico de calor é re-significado pelos autores dos livros didáticos de
Física?

O conceito de calor é re-significado pelos autores dos livros didáticos de Física como uma
substância material sutil que pode ser contida e transferida de um local para outro.
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 176

• Qual a estrutura que fundamenta a sua re-significação?

O núcleo central que fundamenta essa re-significação é constituído pela metáfora “Calor é
uma substância, um fluido sutil”. Essa metáfora pode ser percebida pela utilização das
expressões: “entrar calor”; “sair calor”; “calor cedido”; “calor absorvido”; “calor recebido”;
“calor ganho”; “calor perdido”; “calor liberado”; ”transferência de calor”; “troca de calor” e
“condução de calor”.

• Qual a relação de continuidade entre ela e o pensamento científico?

O ponto em comum entre essa concepção e a do universo reificado é a “variação de energia”


que ambas buscam apresentar quando há uma diferença de temperatura entre dois pontos de
um mesmo objeto, ou quando dois corpos com temperaturas diferentes são colocados em
contato.

• Quais os obstáculos que essa estrutura cria na construção das ideias científicas?

As expressões utilizadas, metaforicamente, como se o calor fosse algo material que pudesse
ser transportado – conduzido de um lugar para outro –, dificultam a compreensão dos
processos microscópicos envolvidos na variação de energia interna de um sistema,
decorrentes de uma diferença de temperatura entre as suas partes, ou entre ele e sua
vizinhança. Além disso, a variação da temperatura associada com a “perda” ou “ganho” de
“calor” que um corpo sofre induz e/ou reforça a crença de que a temperatura é uma grandeza
Física relacionada com a “quantidade de calor que um corpo possui”. Se o corpo “perder
calor”, a temperatura diminui. Se ele “ganhar calor”, a temperatura aumenta. Isso é um
obstáculo ao entendimento da temperatura como uma grandeza Física relacionada aos
diversos tipos de movimento que as partículas de um sistema possuem. Se olharmos sob o
ponto de vista dos obstáculos epistemológicos 148 de Bachelard (2005), temos aqui um
obstáculo substancialista, em que a principal característica é:

148
“Na perspectiva de Bachelard o inconsciente do espírito científico é a fonte primordial de contra-
pensamentos, mais ou menos disfarçados, baseados em dados sensoriais, que dificultam a emergência de
valores racionais. É a estas resistências do pensamento ao pensamento que Bachelard chama obstáculos
epistemológicos. Eles são, diz, conhecimentos subjectivos, essencialmente do foro afectivo que entravam o
conhecimento objectivo. São geralmente anquilosantes porque bloqueiam o pensamento. Dizem respeito a
aspectos intuitivos, imediatos e sensíveis; a experiências iniciais; a relações imaginárias; a conhecimentos
gerais, unitários e pragmáticos; a perspectivas filosóficas empiristas, realistas, substancialistas e animistas; a
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 177

[...] assumir a substância como fundamento da realidade mesma. Este


obstáculo, como diz o próprio Bachelard, é essencialmente polimorfo, vago e
imensamente tolerante. A substancialização não explica como realmente age
o calor. A simples presença da substância é suficiente para que o fenômeno
aconteça. A substância exerce uma função que se auto-justifica. Não há
necessidade de maiores explicações, pois, por definição, a substância do
calor tem a função de aquecer. Todo o processo é explicado pelas qualidades
inerentes à substância [...] (SANTOS, 2009, p.120).

Esse obstáculo substancialista do conceito de calor também dificulta a compreensão científica


de outros fenômenos físicos que se originaram com o desenvolvimento da teoria do calor
como um processo. De acordo com Schenberg (1985, p. 106-107, grifo nosso):

Esta grande revolução, talvez a maior de todas que houve na Física depois da
criação da Mecânica no século XVII, foi exatamente a criação da teoria dos
quanta. E foram os estudos do calor e da termodinâmica que levaram a
essa revolução. [...] Durante o século XIX se desenvolveram, portanto, essas
duas teorias: a teoria do calor e a teoria do campo eletromagnético. A teoria
do calor conduziu à mecânica estatística e à introdução dos conceitos
probabilísticos na Física.

Nesse contexto, as respostas a essas questões é uma das contribuições deste trabalho aos
estudos sobre os processos de ensino e de aprendizagem do conceito de calor. Conforme nos
lembra Mazzotti e Oliveira (1999, p. 07), “[...] a crítica das metáforas impróprias é uma das
tarefas de toda e qualquer argumentação filosófica e científica. Esta tarefa não pode ser
deixada de lado quando se trata da educação escolar”. Isso não quer dizer que a representação
social dos autores dos livros didáticos de Física sobre o conceito de calor é errada, pois “[...]
as representações organizam as condutas e atitudes das pessoas e, nesse sentido, são
‘verdadeiras’ para o grupo social que as construiu” (MAZZOTTI, 1997, p. 89). Mas, ao “[...]
explicar os mecanismos utilizados pelo grupo social para estabelecer a representação que lhe
dá certa identidade grupal e orienta suas ações” (MAZZOTTI, 1997, p. 89), esperamos ter
fornecido novos elementos para reorientar as pesquisas que tenham a temática do calor como
seu objeto de estudo. Principalmente, as relacionadas com as concepções alternativas dos
alunos.

Embora não possamos estender os resultados que encontramos aos professores e alunos e
afirmar que esses também possuem uma representação social do conceito de calor, podemos

interesses, hábitos e opiniões de base afectiva, etc. São erros, investidos de tal energia psíquica, que se tornam
tenazes e resistentes a toda a mudança [...] Nesta perspectiva, paradoxalmente, é o próprio saber que entrava
o progresso do saber [...]” (SANTOS, 1991, grifo nosso).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 178

dizer que boa parte de suas concepções sobre esse conceito são reforçadas ou induzidas pela
representação social dos autores dos livros didáticos. Haja vista a semelhança entre elas. Para
se certificar, compare o leitor a lista abaixo apresentada por Garcia Houcarde e Rodrigues de
Avila (1985, p. 189, tradução nossa), em que aparece as principais concepções dos alunos
sobre esse tema, com a representação social que analisamos:

- <<O calor pode ser transmitido de uns corpos para outros>>.


- <<Os pneus de um carro que freia ganham calor>>.
- <<Todo o corpo possui calor>>.
- <<É a energia que desprendem as moléculas dos corpos ao porem-se em
movimento>>.
- <<A temperatura é a quantidade de energia calorífica que possui um
corpo>>.
- <<O frio é a falta de calor>>.
- <<O calor é transmitido através dos corpos com maior ou menor velocidade
de acordo com a matéria do corpo>>.
- <<O calor é um aumento de temperatura>>.
- <<O calor é uma das formas em que se transforma a energia>>.
- <<Em nosso corpo guardamos calor, temos uma temperatura>>.
- <<Os agasalhos dão calor>>.
- <<Esta panela mantém bem o calor>>.
- << Todos juntos nos damos calor>>.
- <<As garrafas térmicas são recipientes que armazenam o calor ou o frio>>.
- <<Feche a porta que sairá o calor ou o frio entrará>>.
- <<Suo por que tenho muito calor>>. 149

Para nós, é evidente que a linguagem utilizada pelos autores dos livros didáticos – cerne de
suas representações sociais – contribuem, no mínimo, para a manutenção dessas concepções.
Algumas pesquisas, apoiadas por diferentes referenciais teóricos, chegaram à mesma
conclusão (ALOMÁ; MALAVER 2007; AXT; BRÜCKMANN 1989; CINDRA; TEIXEIRA

149
Versão original: - <<El calor se puede transmitir de unos cuerpos a otros>>. / - <<Los neumáticos de un
coche que frena, han ganado calor>>. / - <<Todo cuerpo posee un calor>>. / - <<Es la energía que
desprenden las moléculas de los cuerpos al ponerse en movimiento>>. / - <<La temperatura es la cantidad de
energía calorífica que posee un cuerpo>>. / - <<El frío es la falta de calor>>. / - <<El calor se transmite a
través de los cuerpos con mayor o menor velocidad según la matéria del cuerpo>>. / - <<El calor es un
aumento de temperatura>>. / - <<El calor es una de las formas en que se transforma la energía>>. / - <<El
nuestro cuerpo albergamos calor, tenemos una temperatura>>. / - <<Los abrigos dan calor>>. / - <<Esta olla
guarda muy bien el calor>>. / - <<Todos juntos nos damos calor>>. / - <<Los termos son recipientes que
guardan el calor o el frío>>. / - <<Cierra la puerta que se va el calor o entra el frío>>. / - <<Sudo porque
tengo mucho calor>>.
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 179

2004; GARCIA HOUCARDE; RODRIGUES DE AVILA, 1985; SILVA; LABURÚ;


NARDI, 2008; SUMMERS, 1983, entre outras). Esse fato também foi observado por
Castiñeiras, Pro Bueno e Fernández (1998, p. 473, grifo nosso, tradução nossa):

Temos que advertir que a existência de ideias alternativas depois de n


períodos de instrução, além de ser consequência das características de
resistência à mudança que apresentam, é reforçada por algumas
expressões, muitas vezes infelizes, que aparecem em livros que utilizam
nossos alunos [...].150

De acordo com Mazzotti (2005, p. 4):

[...] o livro didático “põe sob os olhos” os conhecimentos considerados


válidos, ocultando as polêmicas que os geraram e geram, dando a impressão
de que se está frente a algo definitivo e inquestionável. No ensino das
ciências esta atitude é extremamente prejudicial, pois afasta, de imediato, o
exercício da razão, uma vez que não se pode pôr em questão os
conhecimentos compendiados. O saber escolarizado torna-se, assim, uma
expressão de lições fechadas ou dogmas, no sentido moderno, o oposto da
atitude científica.

Desse modo, os resultados dessa pesquisa servem como um alerta aos professores que
utilizam os livros didáticos de Física como um referencial teórico para explicarem o conceito
de calor. Principalmente no Ensino Superior, pois se espera que essa instância educacional
sempre contribua para o acesso dos alunos ao universo reificado, em vez de mantê-los no
universo consensual, como foi constatado. Se não é possível, em curto prazo, modificar os
livros didáticos, faz-se necessário que os professores se posicionem de modo crítico frente a
eles, não os considerando como uma partitura que deve ser seguida à risca (FREITAG;
COSTA; MOTTA, 1993; FREITAG; MOTTA; COSTA, 1987; MAZZOTTI, 1986;
MAZZOTTI, 2005).

Segundo Aguiar Junior (2002), no campo da Física Térmica e da Termodinâmica, o debate


sobre a linguagem inapropriada dos livros didáticos iniciou-se com os artigos de Zemansky
(1970) e Warren (1972). Para Zemansky (1970), a análise dos fenômenos térmicos, sem citar
os conceitos de energia interna e trabalho, por serem considerados difíceis de serem

150
Versão original: Hemos de advertir que la existencia de ideas alternativas después de n períodos de
instrucción, además de ser consecuencia de las características de resistencia al cambio que presentan se ve
reforzada por algunas expresiones, muchas veces desafortunadas, que aparecen en algunos libros que utilizan
nuestros alumnos [...].
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 180

explicados, é incompleta e não contribui para uma compreensão científica adequada dos
mesmos. Em suas palavras:

Se o conceito de energia interna é o obstáculo fundamental, é melhor


começar a tratá-lo em termos moleculares e focar a atenção dos alunos em Q
e W como métodos para a produção de mudanças na energia interna.
Acredito que esse tratamento possibilite a transição mais suave entre a Física
Térmica elementar e a Termodinâmica genuína (ZEMANSKY, 1970 apud
AGUIAR JUNIOR, 2002, p. 224).

Muitos outros autores – (DOMÉNECH, 2000; DOMÉNECH et al., 2003; GARCIA


HOUCARDE; RODRIGUES DE AVILA, 1985; JEWETT JUNIOR, 2008; PACCA;
HENRIQUE, 2004; SANTOS, 2009; SILVA; LABURÚ; NARDI, 2008, entre outros) –
concordam com essa recomendação de Zemansky (1970). Contudo, observamos que não
ocorre a mesma preocupação e o mesmo zelo linguístico com o termo energia. Apesar de eles
concordarem que não é adequado falar em “transferência de calor”, por induzir a uma
concepção substancialista desse conceito, eles escrevem, descuidadamente, sem qualquer tipo
de consideração adicional – com exceção feita a Doménech (2000) e Doménech et al. (2003)
–, a expressão “transferência de energia”. O mesmo acontece com outros termos, tais como:
“armazenar energia”, “trocar energia”, “formas de energia”, “entrar energia”, “sair energia”,
“energia cinética do corpo”, “fluxo de energia”, “transformação de energia”, “perder energia”,
e “ganhar energia”. A nosso ver, assim como o calor, os autores dos livros didáticos de Física
representam a energia como uma substância, um fluido sutil. Fica aqui a verificação dessa
hipótese como uma sugestão de pesquisa.

A riqueza do debate que vimos ao apresentar a evolução histórica do conceito físico de


energia se repete nas discussões sobre as dificuldades de aprendizagem e a melhor maneira de
ensiná-la (BEYNON, 1990; DRIVER, 1986; DUIT, 1981, 1987; SEXL, 1981; SOLOMON,
1983, 1992; TEIXEIRA; ASSIS, 2003; VALENTE, 1993, 1999; WARREN, 1982, 1986).
Entre as várias propostas presentes na literatura de ensino de ciências, há desde quem defenda
iniciar a explicação do conceito de energia como uma espécie de substância “quase-material”
que participa em todos os processos que ocorrem ao nosso redor (DUIT, 1987), até aqueles
que sugerem explicar que energia é simplesmente a capacidade de um sistema para realizar
trabalho (WARREN, 1982).
8 ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS 181

Também há inúmeros textos sobre as dificuldades de aprendizagem e a melhor maneira de


ensinar o conceito de calor (CARDENAS; LOZANO, 1997; CARVALHO; CASTRO, 1992;
COTIGNOLA et al, 2002; CERVANTE et al., 2001; KÖHNLEIN; PEDUZZI, 2002;
PEREIRA, 2010; RAFAEL, 2007; TEIXEIRA; CARVALHO, 1998; TEIXEIRA; CINDRA;
MONTEIRO, 2003). A maior parte dos trabalhos tem se direcionado para a identificação das
concepções alternativas desse conceito e apresentado sugestões de atividades experimentais e
atividades que contemplem aspectos da história da ciência para ensiná-lo. No entanto, esses
autores entendem o calor como um fluxo de energia – ou como a energia em trânsito – de um
corpo de maior temperatura para outro corpo de menor temperatura.

A melhor opção para nós, pelo menos para o ensino universitário, é a adotada por Doménech
(2000) e Doménech et al. (2003), ao associar a noção de energia com a configuração de um
sistema e às interações que essa configuração permite. Isso facilita “[...] a compreensão da
matéria como formada de um número muito grande de componentes microscópicos, discretos,
cuja interação mútua e arranjo espacial resultam nas propriedades e características
macroscópicas das diversas substâncias” (VOLCHAN; VIDEIRA, 2001, p. 19). Por
consequência, também favorece o entendimento do calor como um processo microscópico de
variação da energia interna de um sistema.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nome escolhido para esta seção representa apenas o término de nossa escrita, não tendo a
pretensão de apresentar resoluções definitivas, fechar questões. Nessa perspectiva, o nosso
interesse é refletir sobre o conhecimento produzido e as inúmeras questões que ainda
permanecem em aberto. O fenômeno das representações sociais nos permitiu perceber a
emaranhada ligação existente entre o sujeito, a sociedade e o objeto de conhecimento. Por
consequência, os problemas de ensino e de aprendizagem não estão restritos às questões
metodológicas. Exigem, igualmente, uma profunda análise do processo de construção social
do conhecimento e dos processos históricos de construção dos conceitos científicos. Assim,
temos que compreender os aspectos epistemológicos e sociológicos associados ao problema
educacional de uma forma mais ampla. Caso contrário, cairemos nas inúmeras armadilhas que
o positivismo nos coloca.

Esperamos ter contribuído, com a nossa argumentação, para uma visão mais crítica do leitor
sobre a ciência e o ato de conhecer. Para aqueles que tiveram o primeiro contato com a teoria
das representações sociais e da argumentação, por meio deste trabalho, pedimos escusas pela
falta de um maior aprofundamento de nossa análise. Principalmente, comparações com outras
obras do mesmo gênero. Afinal, nos falta maturidade intelectual nesse ramo do conhecimento
para uma empreitada de tal magnitude. Desse modo, o nosso trabalho foi guiado pelos
aspectos dessas teorias que tivessem uma aplicabilidade concreta e imediata na análise que
nos propusemos a fazer. Fomos objetivos para evitar reflexões sobre pontos que ainda não
compreendemos muito bem.

No entanto, ficou evidente para nós que a origem de algumas concepções alternativas
extrapola o próprio indivíduo e deve ser pesquisada como um constructo social. Algumas
delas, como o conceito de calor dos autores de livros didáticos de Física, possuem uma
dimensão estrutural e uma dinâmica interna que as promovem para uma representação social.
A maneira de expressar desses autores mostrou ser influenciada pela memória coletiva do
grupo, fazendo com que eles reproduzissem, por meio da linguagem, um conhecimento
anterior. A análise da evolução histórica dos conceitos físicos de energia e de calor que
fizemos foi essencial para chegarmos a essa conclusão. Fica aqui uma sugestão para aqueles
9 CONCLUSÕES 183

que pretendem pesquisar a representação social de outros conceitos científicos provenientes


das ciências naturais – Física, Química e Biologia – e da Matemática, de sempre fazerem uma
análise da evolução histórica do conceito estudado. Aliás, essa recomendação também é de
Moscovici (2003, p. 41, grifo nosso):

[...] Representações, obviamente, não são criadas por um indivíduo


isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria,
circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao
nascimento de novas representações, enquanto velhas representações
morrem. Como conseqüência disso, para se compreender e explicar uma
representação, é necessário começar com aquela, ou aquelas, das quais
ela nasceu [...].

Outro aspecto que gostaríamos de destacar é a teoria complementar do professor Tarso


Bonilha Mazzotti que interpreta o processo que produz a metáfora como uma figura
argumentativa como sendo o mesmo descrito por Moscovici na produção da ancoragem e da
objetivação. Isso possibilita a utilização da análise retórica como uma metodologia prática e
eficaz de levantamento e de identificação do núcleo central de uma representação social.
Principalmente, a explicitação da metáfora que fundamenta e organiza o núcleo central. Essa
metodologia associada com análise dos mecanismos de distorção, suplementação e distorção
– descritos por Jodelet – mostrou-se confiável e produtiva.

No caso dos livros didáticos, o pesquisador que adotar esse procedimento não deve se
contentar apenas com o trecho em que a definição do conceito é apresentada, pois, como na
organização interna das representações sociais temos o sistema central e o sistema periférico,
apenas pela análise retórica do corpus discusivo em sua totalidade, aliada com um
conhecimento amplo do campo a ser investigado, pode-se decidir se o argumento em questão
pertence ao sistema central ou ao periférico. Essa tarefa ficará mais fácil se o pesquisador não
se esquecer que:

[...] por se sustentar ‘mais nos valores do que nos conceitos’ as


representações sociais de algo tingem os conceitos com as cores que o grupo
julga desejável, preferível fazer ou ter, subordinando-os. As inferências e as
prescrições são controladas pelo preferível, descarta-se o que está fora desse
campo de desejáveis, bem como o que os questione, resultando
representações do conceito ou da informação recebida [...] (MAZZOTTI,
2008, p. 128).
9 CONCLUSÕES 184

A parte mais difícil é como agir para se alterar a representação encontrada. Por exemplo,
como fazer para que os autores dos livros didáticos de Física representem o conceito de calor
como um processo e não como uma substância “quase-material”. Acreditamos que o debate
crítico sobre o tema é o caminho mais viável. Finalizamos o nosso trabalho convidando o
leitor a participar dessa discussão.
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