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Carlos Biasotti

Israel Souza Lima


(Vida Centenária de um Homem Singular)

2024
São Paulo, Brasil
O Autor

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Israel Souza Lima
(Vida Centenária de um Homem Singular)
Carlos Biasotti

Israel Souza Lima


(Vida Centenária de um Homem Singular)

2024
São Paulo, Brasil
Índice

Preâmbulo.............................................................................................11
I. Os primórdios da vida do varão secular.........................................13
II. A infância de Israel............................................................................. .17
III. O adolescente Israel e sua aptidão para árduas tarefas................23
IV. A avidez do saber, o trabalho e a paixão dos livros.......................27
V. Assíduo frequentador de livrarias e alfarrábios.............................35
VI. Israel: laureado escritor........................................................................43
VII. Amigo de notáveis homens de letras...............................................49
VIII. As preocupações de um espírito superior......................................53
IX. Uma fonte de energia e orgulho: a família.......................................55
X. Preceitos para uma vida longa, útil e feliz.......................................59
Preâmbulo

É fama que, ao congratular-se com o abalizado economista


Eugênio Gudin (1886–1986), que celebrava os 100 anos de sua
fecunda existência, disse-lhe, “cum grano salis”, o ministro Antônio
Delfim Neto:
— Professor, tenho já o título para o seu livro de memórias: Meus
Primeiros 100 Anos!
Em igual circunstância, é o que poderiam ter sugerido ao
jovem de outrora Israel Souza Lima os seus amigos (que formam
legião), se o não soubessem de todo o ponto refratário a falar de si
mesmo, ainda que sempre disposto a ocupar-se largamente dos
outros.(1)
Atenta a natural modéstia, ou invencível repugnância em
descobrir à curiosidade popular traços conspícuos de sua longa
existência, era força que alguém o fizesse, não se perdessem na
voragem do tempo, à conta de incúria ou omissão, raras e
edificantes lições humanas, em extremo proveitosas às pessoas de
ânimo altivo e limado juízo.
Pelo que, menoscabando talvez os conselhos da prudência,
tomei sobre mim a tarefa — que outros amigos do homenageado

(1) Só a coleção que tirou a público, denominada Biobibliografia dos Patronos


da Academia Brasileira de Letras, deita a 20 volumes.
12

certamente levariam a melhor termo — de franquear ao


conhecimento geral episódios curiosos, pormenores interessantes,
experiências úteis, feitos notáveis, opiniões e ideias generosas,
enfim uma como súmula de sabedoria daquele que, por especial
favor divino, pôde tocar os umbrais da longevidade.
Em pontos de velhice, obriga-se a pena do escritor não só
ao respeito senão à verdade. Nisto do respeito, bem se lhe ajusta o
pregão de um alto espírito: “A velhice é santa”.(2)
Ainda: o que vai adiantado em anos (e com mais forte razão
se já em idade grave) não conhece outra linguagem que a da
verdade.(3) Não será mister, porém, imprimir-lhe o cunho de
realismo pessimista, de que tanto caso e cabedal fazia Medeiros e
Albuquerque: “A velhice não é só uma moléstia; é a pior de todas”.(4)
Ao contrário, a resignação perante os profundos mistérios
da vida — que lhe serve, aliás, de pedra de toque de sabedoria —
confere à velhice o caráter de coisa sagrada. Há mais, porém:
quebrar o respeito ao velho é, na feliz expressão de um clássico,
“apedrejar uma árvore carregada de frutos”.(5)
Destarte, amparado às duas colunas clássicas do respeito à
verdade e à pessoa do biografado ao discorrer de sua vida, entro
a erigir este singelo monumento literário em homenagem e
gratidão a um vulto eminente: Israel Souza Lima.
O Autor

(2) Alexandre Herculano, Opúsculos, t. I, 6a. ed., p. 203.


(3) Mas, porque “a realidade ama as antífrases”, como sentenciou o nosso
Rui (Réplica, nº 15), não seja matéria para murmuração nem vitupério se,
nesta crônica ou história, alguma vez a verdade tiver cedido o passo à
fantasia.
(4) Apud Francisco Galvão, Academia de Letras na Intimidade, 1937, p. 133.
(5) Alberto Pimentel, Vinte Anos de Vida Literária, 1903, p. 39.
I. Os primórdios da vida do varão secular

É questão transcendente, disputada com ardor nos círculos


da alta esfera intelectual, se constitui dado explícito do estilo da
Providência vir acompanhado de sinais particulares o nascimento
de certas individualidades.

Em verdade, conta-se de Cícero que, ao nascer, viu-lhe o pai


um intenso “relâmpago no céu e uma nuvem surgiu, com o formato de
uma poderosa mão que segurava um pergaminho de sabedoria”.(6)

À mãe de Tomás de Aquino é tradição que um eremita


descera dos píncaros da montanha para comunicar-lhe que daria
à luz um filho, e ajuntou estas palavras: “Brilhará com tal fulgor na
ciência, com tal santidade na vida, que outro não haverá que se lhe compare
na sua época”.(7)

Em relação à preclara personagem que faz o objeto deste


memorial, suposto se não percebesse, por ocasião de seu nascimento,
o timbre da intervenção direta de forças sobrenaturais nem a
alteração do curso dos astros, um fato no entanto, por muito
auspicioso, despertou logo a imaginação do povoado baiano de
Piritiba.

Foi o caso que, às primeiras horas do dia 16 de outubro de


1924, toda a redondeza era atraída pela estrepitosa exultação que
irrompia no lar simples e honrado de “seu” Everaldino e D.
Ernestina. O motivo era bem justificado: acabava de nascer-lhes o
quarto filho.

(6) Taylor Caldwell, Pilar de Ferro, 2a. ed., p. 20; trad. Ataliba Nogueira Jr.;
Edições Melhoramentos; São Paulo).
(7) João Ameal, São Tomás de Aquino, 4a. ed., p. 9; Livraria Tavares Martins;
Porto.
14

Não tardou que aparecessem no limiar da residência do


casal as primeiras visitas: queriam congratular-se com os
jubilosos pais pela chegada do novo rebento. Os mais curiosos
indagavam acerca da condição física da criança, do sexo, peso e
cor do cabelo; um, mais atrevido, quis logo saber se realmente
puxara ao pai e se já lhe haviam escolhido o nome. Outro, que
passava por compadre, após ser informado que o menino era a
miniatura do pai, mas os olhinhos lembravam os da mãe, e que
receberia o nome de Israel, deu um passo à frente, inflou a arca do
peito e pediu licença para dizer duas palavras. A meia voz, por
não despertar o infante que dormitava, desfechou: “Everaldino, uma
coisa lhe vou dizer; seu filho nasceu com a estrela na testa, porque veio ao
mundo numa família virtuosa e honrada, e para nós já representa o que
indica o nome de sua fazenda: Boa Esperança”.

Escusa referir que todos os presentes secundaram com


acenos de cabeça o improviso do orador e estreitaram, em
demorados e comovidos abraços, o ditoso pai.

Eram deveras propícios os augúrios que presidiram ao


nascimento do pimpolho que abria os olhos à luz na Fazenda Boa
Esperança. Situada a um tiro de pedra de Piritiba, na circunscrição
da comarca de Mundo Novo, era uma vasta e aprazível estância
rural, de propriedade de seus pais: Everaldino da Silva Lima e
Ernestina de Souza Lima.

Já nas primeiras semanas, revelava a criança aqueles traços


lisonjeiros que a acompanhariam pela vida fora: sempre alegre,
conforme o testemunho da mãe e dos vizinhos. Para provocar-lhe
o sorriso franco e gracioso, bastava que a jovem mãe — a ternura
personificada —, fitando nele os olhos, pronunciasse este nome:
Israelzinho!

Se, na casa da fazenda, sob o olhar diligente de Ernestina,


escoavam as horas plácidas e despreocupadas, o mesmo não
sucedia a Everaldino, que, diariamente, desde a aurora até ao
15

ocaso, andava assoberbado com os graves negócios agrícolas


e pecuários. De tal monta eram esses percalços, que lhe ia
esquecendo prover acerca do registro do nascimento do filho. Por
fim, já na vigésima quinta hora, tomou certo dia para a cidade, no
lombo de seu cavalo de estimação, rumo ao cartório do registro
civil.

Sinal externo revelador da personalidade, como lhe chama


a doutrina jurídica, recebeu então o filho do casal Everaldino e
Ernestina o nome próprio, de que tanto se orgulharia no decurso
da dilatada e feliz existência: Israel Souza Lima.

Fato ordinário na biografia das pessoas nascidas nos


tempos remotos, a data do natalício de Israel também entrou em
questão. É que, a pormos fé inteira no cômputo de alguns sujeitos
que se jactavam de ter a verdade nos lábios, viera ele ao mundo
um ano, e talvez dois, antes da data geralmente recebida: 16 de
outubro de 1924.

Destarte, chegara já, sem falta, à casa aritmética dos cem


anos!
II. A infância de Israel

A primeira quadra da vida, cujos encantos se conservam


sempre no recôndito da alma, passou-a Israel no ambiente
bucólico da fazenda paterna, em doce convívio familiar e
inocentes folguedos, ao lado dos irmãos: Edetina, Enir, Eunice,
além de dois outros que o precederam no nascimento (porém
não os conheceu, que faleceram prematuramente): chamavam-se
Emanuel e Israel; este se perpetuou na lembrança do irmão
centenário, herdeiro de seu prestigioso nome. Ao falar dos
irmãos, ocasião favorável às recordações de sua meninice, os
olhos de Israel pareciam brilhar mais… Tanto podem as lágrimas!

Persuadidos da verdade do vulgar refrão “O estudo é a luz da


vida”, os pais de Israel, tanto que o perceberam capaz de receber
as dádivas inestimáveis do conhecimento, não hesitaram em
ensinar-lhe as primeiras letras. A mãe, a primeira, a mais amorosa
e abnegada mestra do bem, tomava a mão direita do aprendiz,
fazendo-a deslizar sobre uma folha de papel, onde se achavam
escritas as vogais do alfabeto, que ele primeiro cobria com
traços incertos; depois, graças ao engenhoso método, tentava
reproduzi-las em papel avulso. Assim, a breve trecho, aprendeu as
letras do alfabeto, a formar sílabas e a ler algumas palavras, como:
casa, cavalo, boi, fazenda, livro… e inúmeras outras.

Eram tais os progressos que alcançara nos estudos, que, aos


cinco anos de idade, já sabia ler e escrever extenso rol de
vocábulos. Sua mãe — o sorriso jovial sempre a espreitar-lhe nos
lábios! —, apontando para o pequeno Israel, costumava dizer:
“Este menino é muito esperto! Vai longe!”.
18

O pai, ouvindo-a certa feita, referendou-lhe, com entusiasmo,


os votos promissores. Como quem não desdenha oportunidade
para reivindicar merecidos gabos, observou:

— Eu também fiz minha parte; era quem comprava lápis e giz para
as lições do menino.

Lembrou-se até de um episódio, que nunca se lhe apagara


da memória. E foi que, certa ocasião, como faltasse em casa lápis
(e giz), e teimasse o pequerrucho em rabiscar, providenciou-lhe o
pai, sem perda de tempo, um pedacinho de carvão; mostrou-lhe,
em seguida, onde podia escrever: um cantinho da parede dos
fundos da sede da fazenda.

Ao retornar do costumeiro giro a cavalo por sua


propriedade, chegou-lhe à notícia, entre iracundo e surpreso, que,
enquanto a mãe se empenhava no afã da cozinha, comprazia-se o
“menino esperto” em fazer rabiscos e garatujas por toda a parte.

Nenhum mistério podia haver sobre o autor da traquinada,


porque Everaldino, enquanto desencilhava seu corcel, leu numa
tábua de peroba do curral, escrito a carvão, este nome: Israel.

Mas, advertindo em que um dia também fora criança —


de que a travessura é distintivo —, relevou a “arte” do filho e
prometeu comprar-lhe uma dúzia de lápis e duas caixas de giz (o
que fez dias depois). As paredes conspurcadas, essas os capatazes
da fazenda repintaram na manhã seguinte.

Na Fazenda Boa Esperança, à medida que, amenos e


imperturbáveis, volviam os dias, o menino, sem descurar das
atividades recreativas próprias da idade, revelava pendor
inequívoco para o estudo, pois dedicava à leitura não menos de
duas horas diárias. Em vista disso, a mãe, educada num ambiente
de tradicional religiosidade e preocupada com a formação moral
19

dos filhos, deu-lhe a ler, num rasgo de sabedoria, o livro de que


jamais levantaria mão: a Bíblia.(8)

Quando, aquiescendo às instâncias dos amigos, Israel abre o


escrínio dourado de suas recordações de infância, um dos fatos
que mais o parecem perturbar e comover, por seu caráter
humanitário e revelador de inegável nobreza de sentimentos, é o
que teria ocorrido na pacata Piritiba, pelos idos de 1932. Ao
narrá-lo, alteia a voz para que o escutem melhor (ou, como me
inclino a acreditar, não o surpreenda alguma lágrima saudosa!):

— Foi um dia especial aquele em que, à primeira hora, meu pai (que
Deus tenha em glória!) chamou a seus pés alguns empregados da fazenda e,
após apertar a mão a cada um deles, como era seu estilo, disse-lhes:

— Preciso que atrelem a junta de bois ao carro e encham-no de sacos


de arroz, feijão, milho e café; coloquem também algumas raízes de
mandioca. Vamos levar tudo à feira da cidade para saciar a fome de muita
gente faminta que lá nos espera.

Não decorrera ainda uma hora, e Teodoro, o empregado


mais antigo, vinha avisá-lo que o carro de bois, com a carga de
alimentos, já estava à sua disposição na frente do portão principal
da sede da fazenda.

Batendo com energia no ombro do empregado, agradeceu-


-lhe Everaldino o serviço prestado e pediu-lhe que se preparasse,
pois iria acompanhá-lo à cidade. Ato contínuo, entrou em casa e
recomendou também à mulher arrumasse o menino, porque o
levaria consigo a um passeio.

(8) Numa das reuniões literárias de que participava, como viesse a ponto a
influência do livro na modelação do caráter do indivíduo, pediu Israel a
palavra pela ordem (de idade) e declarou que a Bíblia lhe fora sempre (e
ainda o era), viático espiritual, bálsamo nas atribulações e roteiro seguro de
vida. Ninguém se abalançou a contestá-lo!
20

Antes de meia hora, surgia vistoso o garoto Israel: cabelo


penteado, roupa nova e botinas reluzentes. Sem ajuda de
ninguém, subiu logo ao carro e encarapitou-se, eufórico, sobre os
sacos de arroz.

Everaldino deu ordem a Teodoro que fizesse andar os bois.


Abarrotado de cereais, o carro começou então a mover-se pela
estrada poeirenta, rumo à feira da cidade.

De natural sensível e compassivo, não tolerava que seus


empregados infligissem maus-tratos aos animais de carga; ferrão
ou chuço, que geralmente empregam os carreiros para aligeirar-
lhes os passos, mandava substituí-los pelo aboio. Consequência
do bom costume implantado, a voz de Teodoro era a que ressoava
naqueles rincões: “Vamos, Diamante!”, “Força, Pintado!”.

Seu pai, após chamá-lo para mais perto de si, quis descobrir
a Israel o motivo daquela viagem. Esperou que o carro transpusesse
o rio da fazenda, não lhe fosse abafar a voz o estridor das rodas
sobre a ponte de madeira; em seguida, falou nesta substância:

— Meu filho, acabamos de atravessar o rio que fornece a água que lá


em casa você bebe; sem ela, ninguém vive; foi por isso que Deus fez nascer
rios em todo lugar!

— É isso mesmo, boquejou Teodoro, virando-se para o


patrão, que, retomando o curso da prosa, acentuou, com a
autoridade e a segurança de quem foi duramente provado pela
adversidade:

— Mas, só de água e brisa ninguém vive; a gente precisa de outros


alimentos, como o arroz, o feijão, a carne, a mandioca…

— Carne de galinha também, não é papai?! lembrou Israel.

— E peixe, bradou Teodoro; e pois que a ocasião vinha a


talho de foice, destravou a língua e blasonou: Um dia desses pesquei
com vara e anzol quase um quilo de lambaris e uns quatro de traíras…
21

— Mentir é feio, Teodoro! chasqueou Everaldino. Todos riram.


Após breve pausa, cobrou gravidade e enfatizou: A vida está muito
difícil; famílias inteiras, com o chefe desempregado, já tocaram as raias do
desespero por não ter o que comer.

— Há pessoas morrendo à pura míngua, emendou Teodoro com


voz soturna.

— Para diminuir o sofrimento de tanta gente é que estamos levando


estes alimentos. O que possui mais do que o suficiente para viver deve olhar
sempre por aqueles que nada têm de seu, concluiu sentenciosamente
Everaldino.

Tão interessante e elevada ia entre eles a conversa que,


quando deram acordo de si, já estavam entrando na cidade. Israel
pôs-se, então, de pé: queria ver melhor a feira livre, que
regurgitava de pessoas.

Um fato logo lhe atraiu a atenção: a presença, entre os


que ali mercadejavam, de grande número de indivíduos (aos
quais convinha mais a denominação “farrapos humanos”) que
disputavam, às cotoveladas, migalhas de alimentos.

Foi para esses que Everaldino trouxera da fazenda gêneros


alimentícios de primeira necessidade. Ao receber cada um sua
porção, agradecia ao bondoso Everaldino com um tímido sorriso,
que mais parecia choro dissimulado. Cena foi essa que Israel
conservou indelevelmente na memória e amiúde reconta aos
amigos, com este remate:

— Foi uma das mais belas lições que recebi de meu saudoso pai!
Ensinou-me, sem ostentação nem rufar de tambor — aliás, com suma
discrição —, que devia ter solidariedade e empatia com as pessoas carentes e
ser parcimonioso, não me faltasse amanhã o necessário para uma vida
digna e modesta.
22

Até hoje, na exuberância de sua vida centenária, ainda


guarda Israel fidelidade inabalável a esses preceitos de sabedoria
que lhe transmitiu o pai!
III. O adolescente Israel e sua aptidão para
árduas tarefas

A despeito de sua tenra idade — tocava pelos 11 anos —,


Israel já experimentava as agruras do trabalho rural. O pai, a
quem acompanhava em suas andanças, despertara-lhe também o
gosto pela atividade agropecuária. Assim, aprendeu a lavrar a
terra, cuidar do rebanho, abrir covas e nelas depositar sementes
(de arroz, feijão, etc.) e fertilizar o terreno com adubo.

Não era só. Como percebesse que, ao cantar dos galos da


fazenda, seu pai já estava em pé — o balde à mão, rumo ao curral
para a ordenha diária das vacas —, quis também aprender a tirar
leite. Em poucos dias, obteve nessa atividade perícia tal, que os
empregados da fazenda, encarregados do mister, passaram, com
simpática ironia, a tratá-lo por “colega”, o que lhe dava muito
gosto. Apenas se encolerizava quando a “Mimosa” ou a “Primavera”
— por causas naturais ou por algum incidente — escoiceavam o
balde, entornando-lhe o conteúdo. Então, irritado, vociferava:
“Porcaria”! Mas Everaldino, sempre a seu lado, intervinha logo:

— Não adianta lamentar o leite derramado, meu filho! É preciso


fazer o serviço de novo; no úbere da “Mimosa” há mais leite!

Dócil às palavras do pai, de quem pela primeira vez acabara


de ouvir a pérola da sabedoria popular — “Não adianta chorar sobre
o leite derramado” —, Israel retomava o trabalho e enchia o
vasilhame. Estava cumprida a tarefa!

Havia outras, porém; entre essas, apascentar o gado e


ministrar-lhe sal e ração (no comprido cocho de jacarandá,
assentado a cem braças da casa da fazenda) e conduzi-lo depois
à aguada, por amor de estancar a sede aos animais.
24

Nos períodos de seca atroz — em que a vida parece render-


-se, indefesa, ao império da morte —, era Israel quem se incumbia
de levar o gado, através de imensas extensões de terras, a
dessedentar-se em outros bebedouros. Tanto distavam da fazenda
esses remotos sítios, que a jornada se fazia a cavalo. O de Israel
era conhecido por “Bem-te-vi”, ginete impetuoso que não conhecia
outra marcha que o galope; no seu lombo, o filho do fazendeiro já
não parecia correr mas voar baixo. Foram incontáveis, por isso,
os tombos que sofreu… Considerava-os porém o justo preço que
havia de pagar pelas arriscadas aventuras!

Israel cogitou um dia trocar-lhe o apelido: passaria a


chamar-se “Corisco” ou “Pégaso” (o animal alado, de que, numa
hora de encantadora leitura, ouvira falar à sua mãe), mas logo
mudou de ideia, com um original e agudo argumento: “Bem-te-vi
era nome de passarinho que, além de voar muito, cantava bonito”!

Ainda hoje se recordava — disse entre comovido e exultante —


de sua imponente figura. Como havia de esquecê-lo, se ainda trazia na
rótula do joelho direito cicatrizes das quedas que deu?! (Dispensou-se de
mostrá-las, ou porque sua palavra valia por um artigo de fé, ou
porque na roda de amigos havia também senhoras dignas da
máxima reverência).

Aproveitou, no entanto, o ensejo para, homem culto,


explicar que, embora o moderno vernáculo aconselhe se diga
“patela”, preferia a forma “rótula”, por mais sonora e compatível
com o gênio da língua. Concordaram todos! Um dos presentes,
invocando a doutrina poética de Horácio, alegou que não só os
cavaleiros e os peões caem, mas também as palavras, que saem de
circulação.

Ainda que aos negócios de sua fazenda consagrasse


Everaldino a maior parte do tempo (sem exclusão dos sábados e
domingos), era o futuro dos filhos o que verdadeiramente o
preocupava. Repetia amiúde que de nada valia deixar aos filhos
25

bens materiais, se lhes faltasse a riqueza do espírito, que somente


a boa educação e a cultura podiam oferecer.

Tomou, por isso, a difícil e drástica resolução de vender a


propriedade rural (até aí sua fonte de sustento e fortes encantos) e
demandar o centro urbano.

— Ainda me lembro, conta Israel, daquela melancólica manhã,


que a poeira do tempo já cobriu, em que meu pai, à saída da fazenda, ao
fechar a última porteira, pousou sua mão calejada num dos batentes de
cedro que a sustentavam e, sofreando um largo suspiro (que todo sentimento
de perda produz em alma sensível), voltou consternado à carroça que nos
levaria à cidade. Foi então que pude ver que duas lágrimas lhe caíam dos
olhos!

Corria cheio de surpresas o ano de 1935: o fazendeiro


Everaldino, acostumado à simplicidade da vida campestre, era
agora um dos moradores da cidade baiana de Piritiba. Instalara-se
ali com a família, em ampla e confortável casa, que em poucos
dias a prendada Ernestina transformou, com muito gosto e arte,
num lar alegre e feliz.

Possuía o imóvel notável característica: localizava-se na


área central da cidade, a dois quarteirões do grupo escolar, que o
menino Israel passaria a frequentar regularmente.

Bem aceito, logo se acamaradou com os colegas. Já no


primeiro dia de aula a jovem e dedicada professora fez que os
alunos lhe prometessem, de pés juntos, que daí avante se
tratariam como irmãos…

No intuito de incentivar o ideal de boa e harmoniosa


convivência, instaurou o costume de ler para a classe, no final da
aula, duas ou três páginas do livro Coração, de Edmundo de
Amicis.
26

— Foi essa criatura bendita, observa Israel, minha primeira


mestra e segunda mãe. Cora Bastos era seu nome, que pronuncio com
emoção e respeito. Ao evocar sua memória, rendo-lhe um preito de
homenagem, estima e gratidão!

Após levantar a fronte, como se tocado repentinamente por


festivo pensamento, imprimiu entusiasmo à conversa:

— A professora Corinha — que era como lhe davam todos na escola


—, para emendar a natural timidez dos alunos, muitos deles (como eu)
nascidos na zona rural, promovia sessões de declamação (ou récitas) de
pequenas poesias. Lembro-me ainda da quadrinha que, numa daquelas
reuniões, recitei:

“O jogador, coitado, o mundo inteiro diz:


É sempre um desgraçado, é sempre um infeliz!
Mau como um castigo, sem alma e coração;
tira do próprio amigo, rouba o próprio irmão!”.

Um de seus colegas, de índole chocarreira, pediu permissão


à professora para dizer uma quadrinha. Autorizado, soltou:

“Atrás daquele morro


existe uma onça;
não vás sem cachorro,
que ela te avonça!”.

Todos acharam graça, ao ouvir o peralta rimar “avonça” com


“onça”!

— “Antigamente, a escola era risonha e franca”, rematou um


dos presentes ao encontro, citando o verso famoso de Acácio
Antunes.
IV. A avidez do saber, o trabalho e a paixão dos
livros

Implacavelmente cerceados no direito deambulatório pela


atroz pandemia da Covid-19 — de que as pessoas já entradas em
anos deviam fugir como o diabo da cruz —, resolveram os
amigos do Lima reunir-se, cautelosamente, em sua residência
(e não no restaurante do Circolo Italiano, como antes haviam
emprazado). Mais que o sítio da realização do evento, era o
reencontro mesmo dos amigos o que importava.

Ao prazer do congraçamento com pessoas, em cuja fronte a


afinidade íntima de espírito imprimira o selo de verdadeira
confraria, juntava-se a dita singular de poder ouvir outra vez
aquele que, pelo natural ascendente, falava aos companheiros
como Nestor.

De seu longo depoimento, eis um breve escorço dos


tópicos principais.

O interesse do menino Israel pelos livros, que até hoje


perdura e lhe domina o espírito, surgiu aí pelos seus quinze anos,
quando a família decidiu mudar-se para a cidade baiana
de Campo Formoso, que bem correspondia à distinção do
nome, conquanto carecedora ainda dos serviços primários
indispensáveis a todos os núcleos sociais, como o saneamento
básico, a distribuição de energia elétrica, etc.

Foi então que compreendeu o verdadeiro sentido do belo


pensamento de Monteiro Lobato, cujas obras lia sofregamente à
luz de vela: “O homem que lê vale mais”.
28

Aqui o anfitrião Lima, como quem se compraz em ilustrar


velhas narrativas, tirou da estante de sua valiosa biblioteca um
raro exemplar da 1a. edição de o Poço do Visconde (1934), cujas
páginas, descoradas pela pátina do tempo, exibiam ainda espessas
nódoas de cera e fortes vestígios do óleo da lamparina que, em
menino, lhe iluminava a banca de estudos.

Provocado por um dos presentes à reunião, dispôs-se Israel


a dissertar do período em que, alcançada já essa etapa da
existência que a cronologia designa como adulta ou madura,
consolidou-se na carreira profissional e nos labores de escritor.

Era por 1968, ano da inauguração da Ótica Rio na Rua


Nova Barão, travessa da Rua Barão de Itapetininga, tradicional
via pública da Capital paulista, distante cem passos do Teatro
Municipal. Aí exerceu, a princípio, as funções de gerente; depois,
as de sócio; por fim, graças à sua inquebrantável força de vontade,
competência e honradez, assumiu a administração geral da Ótica,
até sua venda em 1985.

Nessa fase, que abrangeu quase duas décadas, numerosos


foram os fatos que se deram no interior do estabelecimento. Em
busca de armações de óculos, ou para obter o aviamento de
receitas oftalmológicas, frequentavam-no pessoas da nata social;
entre elas, muitas cultivavam as boas letras e, por isso, eram
acolhidas com invulgar simpatia por Israel, de quem logo se
tornavam, mais que clientes, amigos.

A um deles — cuja identidade pediu vênia para preservar


(mas que os solertes convidados não trepidaram em inscrever-lhe
o nome num rol em que estariam os ilustres José Mindlin, João de
Scantimburgo, Jorge Teixeira de Oliveira e Jorge Yunes) — teria
dito:
29

— Não só a leitura nos consome os olhos, doutor; também a idade,


que traz à mão a velhice e, com ela, a deficiência da visão, a presbitia…

— Você — atalhou o polido interlocutor — é homem de visão


e, portanto, autoridade no assunto; mas, nisto de olhos, mestre foi também
o grande Antônio Vieira, como consta de um lugar de seus famosos sermões,
que posso dar de memória.

E declamou: “Os olhos têm dois ofícios: ver e chorar; e mais parece
que os criou Deus para chorar, que para ver, pois os cegos não veem e
choram”.

— Belo pensamento! exclamou Lima. Gostaria de anotá-lo em


minhas Fichas Literárias.

— Amanhã estará em suas mãos a cópia do texto, prometeu-lhe


o amável admirador do clássico.

“E cumpriu a palavra!, enfatizou Lima, ao mesmo tempo que,


levantando-se com presteza bem rara em sujeitos de sua idade,
apanhou do arquivo uma ficha com o excerto antológico e a
citação da fonte, cuidadosamente datilografados.(9)

As relações de Israel com os clientes não se confundiam


com o trato vulgar e interesseiro da generalidade dos comerciantes;
assentavam, ao contrário, nas regras salutares do respeito mútuo
e da confiança plena. Além disso, era-lhe habitual a afabilidade
com que os recebia no local de trabalho.

— Nenhum cliente entrou em minha loja — garantiu Lima,


levantando os braços —, que não fosse bem atendido, nem dela saiu
insatisfeito ou magoado. (Aos que de bom ânimo o escutavam pediu
que lhe relevassem aquela fumaça de legítimo orgulho).

(9) Na cartolina, já esmaecida, podia-se ler: Obras Completas do Padre


Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. IV, p. 274; Lello & Irmão – Editores; Porto.
30

Embora os negócios da empresa lhe tomassem a maior


parte do tempo, sabia Lima — homem organizado e metódico —
subtrair-lhe minutos preciosos, que dedicava à leitura de bons
autores (nacionais e estrangeiros), por acrescentar os cabedais de
espírito.

Afora a Bíblia — que lhe servia de vade-mécum(10) —,


declarou que sempre trazia à ilharga um romance de Machado
de Assis, de Aluísio de Azevedo, do Eça, Balzac ou Alexandre
Dumas.

As passagens que mais lhe interessavam ou feriam a vista,


marcava-as a lápis, muito ao de leve, às margens do livro;
concluída a leitura, lançava-as num caderno de apontamentos.

Aqui tomou a palavra Cláudio Giordano, provecto literato e


produtor editorial; disse que referendava, na íntegra, a lição de
Israel Lima acerca da boa conservação dos livros. Riscá-los
grosseiramente era, a seu juízo, o mesmo que danificá-los e
impedir que deles aproveitassem as futuras gerações. Por isso —
arrematou —, o leitor que deteriora ou inutiliza um livro revela
mais do que defeito grave de educação, porque incorre
igualmente em crime de lesa-cultura.

Como se lhe ajeitasse ensejo, também quis emitir seu


parecer na matéria Sinésio Siqueira Filho, velho amigo de Lima e
intelectual muito lido nas crônicas da Guerra do Paraguai. Sobre o
tema possui, aliás, o maior acervo bibliográfico particular do País.
Seus livros, contou, costumava tratá-los com ciúmes de avarento;
tinha-os sem máculas ou rasuras, bem dispostos em estantes
de jacarandá, e quase todos elegantemente encadernados. (No

(10) Nessa afirmação convieram todos os circunstantes; um deles,


prestigiando original e curiosa expressão de D. Francisco Manuel de Melo,
declarou de pronto, que era seu “livro de cabeceira e sovaco” (apud Clementino
Fraga, in Revista de Língua Portuguesa, nº 15, p. 17).
31

interior da capa ostentavam o selo ou a impressão em ouro dos


artífices Alfredo Nardi, Egídio Pulice e Carlos Marti, este o mais
notável entre os nossos encadernadores).

Confessou que lhe repugnava até às entranhas isso


de alguns encadernadores não se haverem ainda libertado do
hediondo sestro de aparar com lâmina de guilhotina as bordas
dos livros, que deveriam manter sempre incólumes a mutilações.
Em justificativa de sua antipatia a esses encadernadores, alegava
razão de grande força.

Foi o caso que recebera certo dia, por presente de amigo,


um exemplar encadernado da edição francesa de A Retirada
de Laguna (1872). No frontispício havia respeitosa e amável
dedicatória do Visconde de Taunay a um dos senadores do
Império. Seu nome, entretanto, já não era possível ler nem
identificar, que o eliminara, passando-o pelo fio da lâmina, um
desastrado e bisonho encadernador…

Outros — lembrou Rui Ribeiro(11) — têm o mau vezo de


marcar a página da leitura, dobrando-lhe o canto a modo de
orelha, com o que maltratam o livro. Ou então (como praticavam
outrora as moçoilas sonhadoras, antes de fechá-lo com um largo
suspiro) depositam no livro uma pétala de rosa ou um raminho
de alecrim, que se perpetuam nas páginas manchadas de muitos
romances, que depois dormirão em sebos.

— Ao Rui esqueceu mencionar o trevo, que também serve de


marcador de páginas, emendou Gabriel, um dos convidados.

(11) À pena bem aparada de Rui Ribeiro — escritor de raros talentos,


estilo florido, imaginação fecunda e intensa — deve a república das letras
muito de seu lustre e glória. É autor de obras de indiscutível mérito,
recebidas com fervorosos encômios pela gente letrada: Águas Fugazes, Notas
de Realejo, Resgate (Livros e Autores), Orlando Silva (Cantor nº 1 das Multidões), etc.
32

— É verdade, respondeu Rui, que prosseguiu: “O Trevo”, aliás, é


o título de um livro do Gabriel sobre o velho prócer político Ademar de
Barros”.(12)

Com plausível lição, coube a Ubiratan Machado pôr termo


à dilatada controvérsia:

— A melhor maneira que tem cada um de indicar a página do livro


(cuja leitura interrompeu) é utilizar o marcador, como se pratica em todas as
partes do globo. Quem, com efeito, não conhece o marcador de páginas?! (13)

Para forçar o assentimento e excitar a curiosidade de todos,


desentranhou da sacola que trazia consigo um vistoso exemplar
de “Entre Páginas, entre Vidas” (do escritor, médico e político Lúcio
Alcântara), livro que enriqueceu com um apropositado e didático
prefácio. Abriu-o à vista dos convidados, que lhe puderam ver a
beleza e a singularidade do conteúdo: coleção de marcadores de
livros (marca-livros ou marca-textos), passantes de duas centenas,
artisticamente reproduzidos e impressos.

Por esse tempo chegava Gislaine, fâmula da residência, para


servir ao grupo o último café.

Após meia hora, sussurrou um dos convidados, à feição de


advertência, que a visita se alongava em demasia, pelo que era de

(12) De fato, a capa do livro que o jornalista e acadêmico Gabriel Kwak


escreveu — com alto critério, labor exaustivo, saber e profundidade —
sobre Jânio Quadros e Ademar de Barros apresenta feliz e vivaz ilustração
(de Alex Lutkus): Jânio a empunhar uma vassoura; Ademar, um trevo de
quatro folhas, símbolos de suas campanhas políticas.
(13) Ubiratan Machado — jornalista, escritor e tradutor — forma entre
os nomes de maior peso e elevada expressão da literatura brasileira
contemporânea. Seus livros, que andam por duas dezenas, conquistaram
logo o favor público, em especial: A Vida Literária do Brasil durante o
Romantismo, Dicionário de Machado de Assis, Pequeno Guia Histórico das Livrarias
Brasileiras, etc.
33

bom alvitre restituir o nobre anfitrião à paz doméstica, não viesse


a extenuar-se.

Afinal, externando satisfação, Israel acompanhou os


amigos até o átrio de seu prédio para a despedida de praxe. Entre
calorosos abraços, recomendou-lhes que a tempo o avisassem da
data e local do próximo encontro; o que lhe prometeram.

(Nas fotos abaixo, reprodução da capa dos livros de que


houve expressa menção, durante a visita que fizeram a Israel
Souza Lima alguns de seus amigos).
34
V. Assíduo frequentador de livrarias e
alfarrábios
Autodidata como João Francisco Lisboa, Francisco Sotero
dos Reis e Machado de Assis, cujas obras lia com infinito prazer,
cedo aprendeu Israel que a melhor maneira de consumar-se
alguém numa arte ou ofício era conversar, de contínuo, os seus
mestres e imitá-los com esmero e persistência.(14)

A essa conta, efeito de seu incoercível pendor literário,


determinou consigo frequentar semanalmente livrarias e sebos.
Sem prejuízo das obrigações profissionais, que lhe eram a fonte
de subsistência, empregava algumas horas do sábado a faiscar
tesouros literários, com os quais enriquecia as potências do
espírito, não só a bem fornida biblioteca.

Das livrarias brasileiras — que o escritor Ubiratan Machado


inventariou no Pequeno Guia Histórico — informou Israel, com
naturalidade e segurança, que conhecia para mais de metade.
Com pronta memória, passou em revista as principais,
começando por aquelas situadas no centro da Capital paulista:
Sebo do Messias, Livraria Nova Floresta, Ornabi, Machado de Assis, Leia,
Gazeau, Tupi, etc. Citou depois as mais remotas: Alfa, Teixeira, O
Belo Artístico, Livraria Calil Antiquária, Treze Listras, etc. Explicou
ainda que, em obséquio à comodidade, ultimamente ia apenas às
livrarias da Praça da Sé, em especial à Livraria Nova Floresta e ao

(14) “A leitura forma as nossas faculdades, faz que as descubramos, desperta as


ideias, alenta a inspiração. É pela leitura que nós nascemos para a vida intelectual. É
após a leitura que nos tornamos escritores. Ensina-nos a arte de escrever, como nos
ensina a gramática e a ortografia” (Antônio Albalat, A Formação do Estilo pela
Assimilação dos Autores, 4a. ed., p. 11; trad. Cândido de Figueiredo).
36

Sebo do Messias. Outrora, no entanto, percorria todas cada mês,


em companhia do saudoso Tinhorão.(15)

Não só as livrarias, também seus proprietários eram


matéria para as divagações do Lima, interessantes, curiosas e por
vezes divertidas.

Está no caso o velho Gazeau, que, no último quartel do


século passado, mantinha, na Praça da Sé, a cinquenta metros
do Marco Zero(16), tradicional depósito ou empório de livros,
considerado “o maior sebo da cidade”.(17)

Marco Zero da Capital paulista Parte superior do monumento

(15) José Ramos Tinhorão, pouco há falecido, foi bacharel em Direito,


jornalista e bem conceituado historiador da música popular brasileira, que
pesquisou com nímia diligência, probidade e constância. Obras de subido
valor constam de sua ementa bibliográfica. Eis algumas: História Social da
Música Popular Brasileira; Música Popular, Cinema e Teatro; Música Popular – Um
Tema em Debate, etc.
(16) Localizado na Praça da Sé em frente à Catedral, o Marco Zero é um
monumento — prisma hexagonal revestido de mármore que representa o
centro geográfico da Capital do Estado de São Paulo. Foi inaugurado em 18
de setembro de 1934 pelo prefeito Fábio Prado (fonte: Wikipédia).
(17) Cf. Ubiratan Machado, Pequeno Guia Histórico das Livrarias Brasileiras,
2009, p. 100; Atelier Editorial.
37

Aqui foi outrora a Livraria Gazeau.


(Assaz de razão tinha Vieira: o tempo “tudo gasta, tudo digere, tudo acaba”;
op. cit., vol. IV, p. 289).

Já na última velhice, e ainda teimava em postar-se entre os


milhares de volumes, boina escura ajustada à calota craniana, à espera
dos fiéis clientes!

No topo de uma pilha de alfarrábios, indiferente à poeira escura


sobre eles acumulada, jazia o tempo todo o seu gato de estimação.
Dera-lhe o bom e simpático livreiro, conforme se lê em Ubiratan
Machado, o nome de Clarimundo, sob a inspiração talvez da Crônica do
Imperador homônimo, do ínclito João de Barros.

A um que certa vez lhe perguntara, enquanto cerrava as portas


de aço da loja, se aquele gato ainda caçava ratos, respondeu Gazeau:

— Só os pequenos; porque dos “ratos” grandes, que aqui entram “com


espírito de recolhimento” e fazem mão baixa nos livros, eu mesmo cuido!
38

Poucas pessoas terão percorrido com mais fervor o roteiro


dos livros usados que o nosso Israel. Alguns lugares havia,
entretanto, que ele, em seus passeios culturais, frequentava com
particular interesse e agrado. Sobrelevava a todos a Livraria São
Paulo, no coração da Metrópole, na Rua São Bento, 370, 9º andar.
Dois fortes motivos concorriam para esta primazia: a superior
qualidade dos produtos ali comercializados — livros raros e em
bom estado de conservação, que o leitor ilustrado e os bibliófilos
disputam obstinadamente — e o cavalheirismo e sólido preparo
intelectual de seu proprietário, o inesquecível Olyntho Moura.

Com obsequiosa solicitude e modos fidalgos tratava os


clientes; assistia-os, com cativante atenção, na escolha dos livros
e dissertava-lhes, afavelmente, a respeito de seus autores. Ao fazê-
-lo, rememorava, como para relaxar-lhes o ânimo, lances jocosos
ou episódios que vinham de molde.

Foi assim que, ao mostrar certa ocasião ao cliente um


exemplar de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (traduzido do grego
por D. Pedro II e posto em verso pelo Barão de Paranapiacaba),
teceu o trocadilho: Mas, acorrentado, quem é que não promete?!

De outra feita, ao cliente que lhe perguntara se possuía um


livro de Laudelino Freire sobre pintores, respondeu que o iria
verificar. Dentro em pouco retornava com um belo exemplar de
Galeria Histórica de Pintores Brasileiros. Como lhe era do costume,
passou a discorrer da obra e de seu autor:

— É uma primeira edição, de 1914, em excelente estado de


conservação. Foi Laudelino um escritor fecundo e cultor emérito da língua
portuguesa. É autor do Grande e Novíssimo Dicionário da Língua
Portuguesa, geralmente louvado. Sucedeu a Rui na Academia Brasileira de
Letras (cadeira nº 10).

Finalizou, fazendo ironia:


39

— Dizem os maledicentes que Laudelino ocupou a cadeira de Rui e,


no entanto, ela continuou “vazia”…

Autêntico cenáculo de cultura — que a foto abaixo mostra(18)


—, a Livraria São Paulo era também uma das insígnias da nobreza
intelectual, que a transformara num predileto ponto de encontro.

Olyntho Moura (Livraria São Paulo)

(18) Apud Ubiratan Machado, op. cit., p. 186.


40

Aí, com efeito, ficaram registradas as presenças de


eminentes frequentadores: José Mindlin, Antônio Cândido, Carlos
Lacerda, Napoleão Mendes de Almeida, Sérgio Buarque de
Holanda, Paulo Bomfim, Francisco da Silveira Bueno, Fernando
Jorge e também — infalivelmente aos sábados — o jornalista,
escritor e acadêmico João de Scantimburgo. Encerrado o
expediente ao meio-dia, rumava (acompanhado de Olyntho)
para a legendária e exaltada Pensão Humaitá, onde os aguardava o
anfitrião Yan de Almeida Prado, para o tradicional e faustoso
almoço, regado a Chateau Cheval Blanc, a que se podia comparar —
ao menos quanto à qualidade dos comensais e intuito do evento:
confraternização entre cultores das boas letras — aquele que os
amigos de Israel Lima acabavam de oferecer-lhe no restaurante do
Circolo Italiano!

Outras livrarias da Capital, onde Israel Lima, esquecido do


tempo, passava as manhãs de sábado:

Sebo do Messias
(Praça João Mendes, 166)
41

O Belo Artístico, de Aristóteles Alencar


(Rua Estados Unidos, 1.426)

ORNABI – Organização Nacional de Bibliotecas Ltda.,


de Luís Dias de Oliveira (Rua Benjamim Constant, 144)
VI. Israel: laureado escritor
O amor dos estudos e o hábito inflexível de leitura de bons
autores despertaram em Israel a paixão das letras, como a
prenunciar-lhe a vocação para escritor, pois tudo quanto de
interessante lia anotava logo em um caderno.

Ao demais, para as suas composições não lhe faltava


matéria, já que a poderia extrair em barda das circunstâncias
mesmas de sua vida no campo (com as lidas agrícolas e pastoris)
e na cidade, onde se firmara como empresário vitorioso e
intelectual de primeira água.

Entrando em cogitação um dia acerca do assunto sobre que


haveria de escrever, não lhe custou encontrá-lo. Convicto de que
pelo estudo é que o indivíduo se liberta do mal da ignorância e
atinge o topo da dignidade humana, lembrou-lhe assentar em
memória os nomes de alguns notáveis sujeitos que, com a luz da
inteligência, elevação do espírito e força de vontade, muito
conspiraram para difundir, entre nós, o saber e a cultura. O seu
pensamento repousara naqueles autores cujas obras, conforme a
sentença comum dos melhores críticos, as pessoas cordatas
deviam adquirir e ler. O lugar onde os podia achar era-lhe bem
conhecido: Academia Brasileira de Letras.

Foi assim que Israel, com o fervor de quem rende culto a


varões beneméritos, pôs por obra o deliberado intento — que de
tão difícil parecia temeridade — de escrever e mandar imprimir
os escorços biobibliográficos dos quarenta patronos da Academia
Brasileira de Letras e dos ocupantes de cada cadeira, fazendo-os
acompanhar de extensa notícia a respeito de suas produções
literárias.
44

Trabalho dessa ordem, ainda que dotado quem o


empreende de vontade férrea, talento e fé inabalável, não se leva
adiante sem o concurso do tempo. Quarenta anos empregou
Lima em pesquisas nas bibliotecas públicas e particulares do País,
tendo a mira na elaboração de seu magno projeto editorial!

Reuniu, afinal, em vinte volumes, editados às expensas da


própria Academia, os nomes de seus quarenta patronos — desde
Adelino Fontoura (cadeira nº 1) até o Visconde do Rio Branco
(cadeira nº 40) —, de seus fundadores e ocupantes.

Para comunicar força e autoridade às sinopses biográficas


de cada acadêmico, justapôs-lhes cópias reprográficas (fac-
-símiles) de centenas de frontispícios de livros e documentos de
relevante valor literário e histórico.

Resultado de trabalho insano, que se protraiu por quatro


décadas — e que até então ninguém ousara encetar —, a edição
da Biobibliografia dos Patronos da Academia Brasileira de Letras teve
larga repercussão no meio intelectual. É que passou a constituir
fonte segura de informações a respeito daqueles vultos notáveis,
cujos nomes — gravados no frontão da Casa de Machado de Assis
— serão sempre dignos da reverência e da gratidão dos que
aprenderam a ler.

Tendo consideração ao valor intrínseco da obra de Israel


Souza Lima e sua grandiosa contribuição às letras, a Academia
resolveu premiá-lo com a “Medalha João Ribeiro” (1997) e “Medalha
Machado de Assis” (2014).

Ante o bom êxito da árdua empreitada, não era muito


repetisse o operoso letrado o que de seu “Corpus Juris Civilis” disse o
imperador Justiniano: Chegamos com o favor divino ao cabo da obra,
julgada tão impossível como atravessar a pé o oceano.(19)

(19) Spencer Vampré, Institutas do Imperador Justiniano, 1916, p. XVI.


45

O prazer intelectual que experimentou, ao dar à estampa a


Biobibliografia dos Patronos, estimulou Israel a continuar o louvável
trabalho que lhe circundava o nome: redimir da tirania do
esquecimento alguns escritores que, pelos excepcionais dotes de
inteligência e robustez de imaginação, lograram outrora não só
boa acolhida senão ainda incontestável consagração popular.

Embora difícil escolher um dentre muitos que se igualavam


no mérito, deparou logo com o nome do futuro biografado.
Tratava-se, afinal de contas, de um dos autores de sua preferência
literária, cujos 160 anos de nascimento dentro de pouco tempo
(2017) se iria comemorar: Aluísio de Azevedo, sobre o qual
já havia reunido dezenas de documentos, escrupulosamente
ordenados em caixas e pastas.

Após dois anos de trabalho ininterrupto, executado pela


calada da noite, conseguiu apresentar, como que em arca dourada
ou monumento majestoso, um volume de 416 páginas, com os
aspectos preponderantes da vida e da obra do introdutor do
naturalismo em nossas letras. À síntese cronológica de Aluísio de
Azevedo ajuntou ampla e circunstanciada resenha da produção
literária e — o que é mais de admirar — ilustrou-a com foto do
frontispício de cada uma das edições de seus livros. Não lhe
esqueceu, por fim, reproduzir, no capítulo da fortuna crítica, os
juízos que do romancista formavam alguns dos maiores
escritores de seu tempo, como Olavo Bilac, Coelho Neto e
Augusto de Lima.

Como os anteriores, também esse trabalho de Israel contou


com o beneplácito da crítica especializada.

Mui digno de registro é o fato de que aos amigos, com os


quais amiúde se reúne em agradáveis rodas literárias, envia
sempre um exemplar de seu último livro, com elegante dedicatória
(que a cegueira da amizade costuma exagerar).
46

Biobibliografia dos Patronos Biobibliografia de Aluísio Azevedo


da Academia Brasileira de Letras

Medalha Machado de Assis


(Academia Brasileira de Letras)
47

Indiferente aos naturais efeitos que a idade extrema sói


operar nas mais vigorosas organizações,(20) continua a escrever
sobre assuntos de literatura. Nesse momento, está a gemer no
prelo a mais recente de suas composições: Coletânea de Prefácios de
Notáveis Autores Brasileiros.

Seus amigos, cônscios do sólido espírito, vontade


disciplinada, lúcida inteligência e pródiga memória de Israel,
encarecem-lhe não deserte da honrosa vocação a que se vem
consagrando sem reserva: cooperar em bem da cultura,
escrevendo livros de grande valor e utilidade.

Ao ouvir, comovido e alegre, esse apelo — que sabia sincero


e justificado —, respondeu com um simpático sorriso:
— Assunto não me faltará!

À saída, um do grupo indagou-lhe:

— Lima, conhece uma boa definição de borboleta?

—!

— Uma flor, que o vento convidou para bailar!

(20) Cabe aqui perfeitamente o que disse Terêncio: A própria velhice é já uma
doença: “Senectus ipsa est morbus” (Giuseppe Fumagalli, L’Ape Latina, 1992,
p. 284; Hoepli; Milão). É fardo que passou a provérbio: “As doenças são o
apanágio da velhice” (Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo, 2a. ed.; v.
apanágio).
VII. Amigo de notáveis homens de letras
Nos dias de sua juventude, Israel aprendeu do pai
Everaldino lição que, de tão bela e sábia, transmitiu ao filho e
netos: “Chega-te aos bons e serás um deles”.

A força desse ditame fez que, dócil por índole, sempre se


aproximasse de pessoas de boas credenciais.

Não maravilha portanto que, ao longo da vida, travasse


amizade com sujeitos de muito nome, não só na ordem social
mas também nos domínios da intelectualidade e nos círculos
acadêmicos.

Na fase preparatória ou de coleta do material para a


produção de sua obra magna (Biobibliografia dos Patronos da
Academia Brasileira de Letras), visitou, segundo o declarou em texto
autógrafo, “bibliotecas públicas e particulares do País, durante 40 anos”.

Era sempre acolhido de boa sombra por aqueles a quem


se dirigia; apenas lhes anunciava o motivo da presença,
franqueavam-lhe, ato contínuo, o acesso aos livros de seu
interesse, até mesmo àqueles que, por sua estimação, preço e
raridade, eram “ad cautelam” guardados a sete chaves.

O próprio escopo da consulta era já a ponte que o ligava à


simpatia (e logo mais à amizade) de bibliotecários, escritores e
jornalistas, dos quais se recorda com saudade e gratidão. Aqui,
alguns do extenso rol: Antônio Houaiss, Arnaldo Niskier,
Austregesilo de Athayde, Fernando Jorge, Freitas Nobre, Geraldo
Holanda Cavalcanti, João Trinca, José Cornelsen, José Mindlin,
José Ramos Tinhorão, Josué Montello, Norlândio Meireles de
Almeida, Olyntho Moura, Paulo Bomfim, Paulo Dantas, Péricles
Silva Pinheiro, Plínio Doyle, Rubens Borba de Moraes, etc.
50

De alguns conserva ainda cartas e bilhetes:

Carta de Geraldo Holanda Cavalcanti

Geraldo Holanda Cavalcanti

José Mindlin
51

Também de instituições acadêmicas e importantes


associações profissionais Israel recebeu público reconhecimento
e homenagens. Dentre elas: Academia Brasileira de Letras,
Academia Maranhense de Letras e Academia Paulista de
Jornalismo.

Medalha João Ribeiro Medalha João Francisco Lisboa


(Academia Brasileira de Letras) (Academia Maranhense de Letras)
52

Tem força de corolário lógico o argumento de que o


indivíduo, que se empenha por aumentar os dotes de espírito,
acrisolar o caráter e não assentar amizade senão com pessoas
da primeira reputação, esse conhecerá recompensas muito
apreciáveis, como: paz interior, alegria de viver e admiração dos
contemporâneos, bens que poucos alcançam. Israel Souza Lima
está no caso!
VIII. As preocupações de um espírito superior
Força que lhes absorve e quebranta o ânimo, as preocupações
afligem de ordinário as pessoas, sem excetuar as de condição.
Teve-as sempre Israel em todas as fases de sua longa e trabalhosa
(ia quase a escrever heroica) existência.

As suas foram as próprias de um homem de bem. Umas


respeitavam à atividade profissional, outras à educação e futuro
do filho e dos netos.

Para prover à mantença do lar, antepunha a tudo o mais


o trabalho, que considerava não só obrigação social mas o
melhor fator de promoção humana, visto lhe dava dignidade e
subsistência à família.

Nas rodas literárias — que as havia todo mês (em sua casa
ou em conceituados restaurantes da Capital) —, Israel expunha
com frequência a teoria de que nenhum homem estava obrigado
a prometer nada a ninguém; contudo, uma vez que empenhasse a
sua palavra, devia dar sangue para cumpri-la.

Acentuava que a vida inteira se esforçou por atender à


bela divisa que aprendera de seu pai: “Procurar ser útil aos outros,
adivinhando-lhes, se possível, até as urgências”.

Os que lhe foram mais próximos informam que, ao receber


de manhã os funcionários da empresa (Ótica Rio), perguntava-
-lhes, ao cumprimentá-los, “se, em casa, estava tudo bem”; à saída,
“se tinham dinheiro para o transporte”. Não raro, chamava um dos
empregados à parte e dava-lhe pequenas quantias “para comprar
material escolar para os filhos”. Era esse o estilo que adotava nas
relações com os seus colaboradores.

Nunca se furtava a reconhecer e proclamar as virtudes e os


méritos alheios. De um — a quem apresentara como “primus inter
54

pares do bom Jornalismo” (e era-o, de fato) — ouviu: “É bom estar ao


lado de Israel, porque todos se elevam”.

Jurou que duas coisas muito o preocupavam; por isso,


tomara inabalável resolução: Não contrair dívidas, senão em casos
da última gravidade, e fugir — a todo o transe — ao mútuo
feneratício (ou empréstimo de dinheiro a juros). E justificava:
Primeiro se pede emprestado, e depois se pede esmola.
Para atalhar o espectro dramático das preocupações
buscava a companhia dos livros. Apoiava sua filosofia no
princípio de que nenhuma tristeza sobrevive a quinze minutos de
boa leitura.
Em clima de ovação, todos concordaram com as palavras
autorizadas de Israel, que, em estado de júbilo, continuou:
— Mas, o melhor lenitivo ou panaceia para os males do espírito e
abatimento é o convívio prazeroso dos amigos, como vocês, aos quais serei
sempre muito grato, porque os considero meus benfeitores.
E como o tema o interessasse e lhe cativasse a atenção,
trouxe à baila o caso de seu velho e saudoso amigo Dr. José
Teixeira de Oliveira, com o qual havia organizado o Dicionário
Brasileiro de Datas Históricas. Aqui, sem resistir ao império da
emoção, que lhe ia sufocando a voz, repetiu as palavras que dele
ouvira, à guisa de agradecimento por sua colaboração na feitura
do dicionário: “O livro tem o mérito de aproximar as inteligências e os
corações”.
Com esse dito verdadeiro, chegava a seu final outra reunião
dos amigos do Lima. Um deles, após cingi-lo num fraterno
amplexo, recordou-lhe preceito do decálogo de Humberto de
Campos: “Não emprestarás livros das tuas estantes. Livro emprestado é
como o corvo que Noé soltou na Arca. Vai e não volta mais”.(21)

(21) Obras Completas, 1960, vol. 11, p. 116.


IX. Uma fonte de energia e orgulho: a família
A família, núcleo sagrado da sociedade humana, sobre
ser fator de permanentes inquietações para seu chefe (pelas
incertezas da vida), serve-lhe de fonte genuína de energia, prazer e
alegria. Assim, a de Israel: seu amparo seguro nas vicissitudes
diárias e rico oásis, que lhe atenua as fadigas do corpo e do
espírito.

Elvira Tabarini Lima, com quem se casara em 2 de fevereiro


de 1952, foi sua companheira dedicada e extremosa por setenta
anos. Esposa diligente, sensata, de boa instrução, generosa e
afável, adormeceu para sempre no dia 1º de novembro de 2017.

Ao falar dela, em recente conversa com os amigos reunidos


em sua residência, levou ao rosto o dorso da mão esquerda, como
a enxugar lágrimas de saudade, num culto sincero à sua memória.

Muito lido nos textos bíblicos, dizia que Elvira — paradigma


de esposa e mãe — era a mulher forte, a que se referiu Salomão em
seus Provérbios.(22)

Teve o casal filho (Alcyr), netos (Luciana, Giovana e


Fabrício) e bisnetos (Felipe e Theo). Chama-lhes Israel “progênie
bendita”, porque fruto de casamento feliz e duradouro. São-lhe
agora o deleite e o bordão na patriarcal velhice!

(22) Com efeito, por inspiração sobrenatural e com desconhecida


eloquência, pôde o rei Salomão sublimar ao ápice a mulher virtuosa (Prov.
31, 10-31). Porque faz bem ao caso, seja-me lícito reproduzir também este
belo trecho de notabilíssimo escritor: “Tinha sido muito feliz. A mulher mais
peregrina que seus olhos viram, amou-a. Pediu-a, deram-lha, santificou a sua ternura e
creu que os anjos deviam invejá-lo. E os anjos, de feito, invejaram-no; porque um dia,
desceram até onde estava a esposa do rival e roubaram-lha” (Camilo Castelo Branco,
Cavar em Ruínas, 1912, p. 51).
56

É a sua — pode-se afirmar, sem injúria da verdade — a


família “divinamente constituída”, que, no alto dizer de Rui, “tem por
elementos orgânicos a honra, a disciplina, a fidelidade, a benquerença, o
sacrifício”.(23)

Seus familiares votam-lhe afeto mais que intenso, já que


orça pela idolatria. Mesmo quando estão longe, com ele se
comunicam todos os dias, o que fazem não só porque isso
mesmo se espera da piedade filial, mas para consultá-lo sobre os
mais variados assuntos, confiantes em sua experiência, bom-
-senso e prudência.

De presente, está a neta Luciana incumbida de preparar-lhe,


em Maceió (AL), justa homenagem: Memorial Israel Souza Lima,
para onde foi já transferido seu patrimônio cultural (a rica
biblioteca, a hemeroteca, o epistolário e outros bens concernentes
à sua pessoa).

Iniciativa é essa mui digna de encômios e imitação; em


verdade, seguindo os exemplos daqueles que mais subiram no
conceito público — por seu nobre caráter, amor ao trabalho,
firmeza de ânimo, paixão do estudo e incomum disposição de
bem servir —, é que as novas gerações se armam de ponto em
branco para as inexoráveis disputas da vida.

(23) Discurso no Colégio Anchieta, de Friburgo, em 1903 (in Escritos e Discursos


Seletos de Rui Barbosa, 1960, p. 651; Editora José Aguilar Ltda.; Rio de Janeiro).
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Israel e sua esposa Elvira

Ao lado de Israel e Elvira, o filho (Alcyr), netos e familiares


X. Preceitos para uma vida longa, útil e feliz
Movidos de natural curiosidade, os amigos — em número
nunca inferior a dez (que o cercavam para ouvi-lo desfiar os
notáveis lances da odisseia de sua vida secular) — quiseram, certa
ocasião, saber de Israel a que causas atribuía sua invejada
longevidade.

Após acomodar-se melhor no sofá de couro em que estava


sentado, e receber com um largo sorriso a pergunta que lhe fazia
um dos presentes (já crescido em anos), tomou a palavra. À
maneira de prólogo, relembrou que era anelo de todo homem viver
muito. E porque o não interpretassem por ginófobo, emendou:

— Ao dizer “todo homem”, incluí por força a mulher. Sabem


os meus bons amigos que o vocábulo “homem”, sobretudo no plural,
compreende também a mulher, visto encerra a ideia de gênero humano.
Numa palavra, todo homem é mortal!

— Exceto os que constam dos seus volumes sobre os Patronos


da Academia Brasileira de Letras, porque esses se têm na conta de
“imortais”…!, motejou um dos escritores que integravam a tertúlia.

Cessados os risos que a pertinente observação provocara,


Lima reassumiu o papel que bem representava de consultor-mor
em pontos de ancianidade, e disse que, se quiséssemos viver
muito — e nisto pomos a mira de nossos desejos (a duvidar
alguém, leia o que a Bíblia narra de Ezequias)(24) —, se quiséssemos

(24) A referência de Israel a essa personagem foi de todo apropriada.


Deveras, é de fé que Ezequias, à conta de sobrenatural aviso da morte
próxima, de tal maneira se entristeceu que, rompendo em sentido pranto,
imprecou a Deus, com as maiores instâncias, lhe prolongasse a vida. Reza a
Bíblia que foi bem despachado: “(…) acrescentarei sobre os teus dias quinze anos”,
decretou o Senhor (Is 38,5).
60

viver muito e bem, devíamos adotar, desde já, um pecúlio de


regras capitais.

Lembrou que alcançara a idade, que o coração dos amigos


qualificava de invejável, graças à estrita observância de conselhos
que lhe dera o pai. Repetia-lhe este que todo jovem precavido
tinha grande probabilidade de chegar à mais remota velhice,
robusto e saudável, se adotasse algumas providências ou medidas
cautelares reputadas indispensáveis, e eram:

I. Tomar ocupação honesta, porque a cabeça vazia é oficina


do capeta. A ociosidade, com efeito, passa pela mãe de todos os
vícios, em especial o tabagismo e o alcoolismo, inimigos da saúde
e flagelos da humanidade.

II. Dedicar-se com afinco a uma profissão e exercê-la com


honra e entusiasmo, pois dela vêm os frutos da subsistência.

III. Cultivar hábitos saudáveis, como alimentar-se bem,


repousar à hora certa (para retemperar as energias) e praticar
esportes. Evitar os excessos e demasias, sempre deletérios. Até a
bondade morre do excesso.

IV. Alimentar o espírito com a leitura de bons livros.

V. Apegar-se à religião e fazer o bem, para estar em paz


com a consciência.

VI. Contrair amizade somente com pessoas de vida exemplar


e de primeira reputação.

Estas excelentes normas de vida, ia-as proclamando Israel,


em pausada leitura das notas lançadas em folha de papel, que,
preenchida haveria oitenta anos — segundo informou —, mais
parecia pergaminho de texto sagrado.

Por fim, alçando o peito, fitou os olhos em cada um dos


presentes e falou nesta substância:
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— Dos ensinamentos paternos confesso que um aprendi e pratiquei


com grande empenho e gosto: buscar sempre o convívio dos melhores. E a
presença de vocês aqui é bem a confirmação desta verdade!

Ao termo da reunião foi proposto novo encontro do grupo


de amigos para 16 de outubro de 2023, data sobre todas especial,
porque comemorativa dos 100 anos de vida de Israel Souza Lima.

Nesse dia compareceu ao local do evento — Restaurante


Chico (Mooca) — forte número de pessoas desejosas de congratular-
-se com o protagonista (ou juiz da festa, como diriam os cronistas
sociais de outrora).(25) Além de membros da família, estavam ali
escritores bem vistos na república das letras, que se orgulhavam
de ostentar a insígnia de velhos amigos (não só amigos velhos) do
conspícuo homenageado.

Mais que descortesia, fora falta grave não lhes citar os


nomes, ao menos de alguns: Cláudio Giordano, Ubiratan
Machado, Rui Ribeiro, Sinésio de Siqueira Filho, Gabriel Senador
Kwak, Profa. Nair Ruiz Durante, Salomão Ésper, Afanásio Jazadji,
Luiz Fernando Magliocca, Profa. Nelly de Camargo e Manuel Faria
da Cruz (entre outros).

Organizado por seus familiares, o banquete em homenagem a


Israel representou a glorificação de um símbolo do bem, porque
somente pessoas dessa qualidade são capazes de reunir em torno
de si tantos amigos leais e verdadeiros, além de ilustres.

(25) Cf. Caldas Aulete, op.cit.; v. juiz da festa.


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O homenageado Israel Souza Lima (ao centro), o radialista Salomão Ésper


(à esquerda) e o escritor Rui Ribeiro. (Ao fundo), Luiz Fernando Magliocca
(à esquerda), Fabio Siqueira, Nair Ruiz Durante, Afanasio Jazadji, Gabriel
Kwak, Nelly de Camargo, Luciana Tabarini Lima, Manuel Faria da Cruz,
Carlos Biasotti, Cláudio Giordano, Ubiratan Machado e Gislaine de Souza.

(E) Israel Souza Lima, Cláudio Giordano e Carlos Biasotti.


63

Os raros e soberbos predicados de Israel eram opinião


unânime entre os convidados. Alguns até o publicavam em altas
vozes. Outro, levantando a taça, propôs-lhe um brinde à saúde,
com votos de perene felicidade e expressões de gratidão; concluiu
com estas palavras: Travar amizade com pessoas da estirpe de Israel era
adquirir um título de honra!

Na verdade, os que o conhecem e puderam privar de seu


convívio, esses não se fartam de enaltecê-lo e de boa mente lhe
dedicam o elogio que célebre escritor fez do imperador Marco
Aurélio: “Sejam quais forem os azares do futuro, sua grandeza perdurará
sempre, porque repousa inteira no que jamais perece: o tesouro da
inteligência e a excelência do coração”.(26)

(26) Ernesto Renan, Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo, cap. I; Lello &
Irmão – Editores; Porto.
Trabalhos Jurídicos e Literários de
Carlos Biasotti

1. A Sustentação Oral nos Tribunais: Teoria e Prática;


2. Adauto Suannes: Brasão da Magistratura Paulista;
3. Advocacia: Grandezas e Misérias;
4. Antecedentes Criminais (Doutrina e Jurisprudência);
5. Apartes e Respostas Originais;
6. Apelação em Liberdade (Doutrina e Jurisprudência);
7. Apropriação Indébita (Doutrina e Jurisprudência);
8. Arma de Fogo (Doutrina e Jurisprudência);
9. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (1a. Parte);
10. Citação do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
11. Crime Continuado (Doutrina e Jurisprudência);
12. Crimes contra a Honra (Doutrina e Jurisprudência);
13. Crimes de Trânsito (Doutrina e Jurisprudência);
14. Da Confissão do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
15. Da Presunção de Inocência (Doutrina e Jurisprudência);
16. Da Prisão (Doutrina e Jurisprudência);
17. Da Prova (Doutrina e Jurisprudência);
18. Da Vírgula (Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.);
19. Denúncia (Doutrina e Jurisprudência);
20. Direito Ambiental (Doutrina e Jurisprudência);
21. Direito de Autor (Doutrina e Jurisprudência);
22. Direito de Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
23. Do Roubo (Doutrina e Jurisprudência);
24. Estelionato (Doutrina e Jurisprudência);
25. Furto (Doutrina e Jurisprudência);
26. “Habeas Corpus” (Doutrina e Jurisprudência);
27. Legítima Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
28. Liberdade Provisória (Doutrina e Jurisprudência);
29. Mandado de Segurança (Doutrina e Jurisprudência);
30. O Cão na Literatura;
31. O Crime da Pedra (Defesa Criminal em Verso);
32. O Crime de Extorsão e a Tentativa (Doutrina e Jurisprudência);
33. O Erro. O Erro Judiciário. O Erro na Literatura (Lapsos e Enganos);
34. O Silêncio do Réu. Interpretação (Doutrina e Jurisprudência);
35. Os 80 Anos do Príncipe dos Poetas Brasileiros;
36. Princípio da Insignificância (Doutrina e Jurisprudência);
37. “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”;
38. Tópicos de Gramática (Verbos abundantes no particípio; pronúncias e
construções viciosas; fraseologia latina, etc.);
39. Tóxicos (Doutrina e Jurisprudência);
40. Tribunal do Júri (Doutrina e Jurisprudência);
41. Absolvição do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
42. Tributo aos Advogados Criminalistas (Coletânea de Escritos Jurídicos);
Millennium Editora Ltda.;
43. Advocacia Criminal (Teoria e Prática); Millennium Editora Ltda.;
44. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (2a. Parte);
45. Contravenções Penais (Doutrina e Jurisprudência);
46. Crimes contra os Costumes (Doutrina e Jurisprudência);
47. Revisão Criminal (Doutrina e Jurisprudência);
48. Nélson Hungria (Súmula da Vida e da Obra);
49. Ação Penal (Doutrina e Jurisprudência);
50. Crimes de Falsidade (Doutrina e Jurisprudência);
51. Álibi (Doutrina e Jurisprudência);
52. Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência);
53. Fraseologia Latina;
54. Da Pena (Doutrina e Jurisprudência);
55. Ilícito Civil e Ilícito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
56. Regime Prisional (Doutrina e Jurisprudência);
57. Alimentos (Doutrina e Jurisprudência);
58. Estado de Necessidade (Doutrina e Jurisprudência);
59. Receptação (Doutrina e Jurisprudência);
60. Inquérito Policial. Indiciamento (Doutrina e Jurisprudência);
61. A Palavra da Vítima e seu Valor em Juízo;
62. A Linguagem do Advogado;
63. Memorando aos Colegas da Advocacia e da Magistratura;
64. Código de Defesa do Consumidor (Casos Especiais em Matéria
Criminal);
65. Crime de Dano (Doutrina e Jurisprudência);
66. Nulidade Processual (Doutrina e Jurisprudência);
67. Da Coação no Direito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
68. Violação de Domicílio (Doutrina e Jurisprudência);
69. Indenização (Doutrina e Jurisprudência);
70. Desistência Voluntária (Doutrina e Jurisprudência);
71. A Embriaguez e o Direito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
72. Embargos de Declaração (Doutrina e Jurisprudência);
73. A Estrada Real do Direito;
74. Coautoria (Doutrina e Jurisprudência);
75. Medida de Segurança (Doutrina e Jurisprudência);
76. Centenário da Morte do Maior dos Brasileiros: Rui Barbosa;
77. Ministro Sydney Sanches (Honra e Glória do Supremo Tribunal Federal);
78. A Mentira perante a Justiça;
79. Da Ameaça (Doutrina e Jurisprudência).
Israel Souza Lima (Vida Centenária de um Homem Singular) Carlos Biasotti

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