DEPURAÇÃO DE FÁRMACOS POR MEIO DA BIOTRANSFORMAÇÃO Logo que o fármaco entra no organismo começa o processo de eliminação. As três principais vias de eliminação são biotransformação hepática, eliminação biliar e eliminação urinária. Juntos, esses processos de eliminação diminuem exponencialmente a concentração no plasma. Ou seja, uma fração constante do fármaco presente é eliminada por unidade de tempo A maioria dos fármacos é eliminada de acordo com uma cinética de primeira ordem, embora alguns, como o ácido acetilsalicílico em doses altas, sejam eliminados de acordo com cinética de ordem zero ou não linear. A biotransformação gera produtos com maior polaridade, que facilita a eliminação. A depuração (clearance – CL) estima a quantidade de fármaco depurada do organismo por unidade de tempo. A CL total é uma estimativa composta que reflete todos os mecanismos de eliminação do fármaco. Cinética da biotransformação Cinética de primeira ordem: A transformação metabólica dos fármacos é catalisada por enzimas. Isto é, a velocidade de biotransformação do fármaco é diretamente proporcional à concentração do fármaco livre, e é observada uma cinética de primeira ordem. Isso indica que uma fração constante do fármaco é biotransformada por unidade de tempo (isto é, a cada meia-vida, a concentração se reduz em 50%). A cinética de primeira ordem também é referida como cinética linear. Reações da biotransformação de fármacos Os rins não conseguem eliminar os fármacos lipofílicos de modo eficiente, pois estes facilmente atravessam as membranas celulares e são reabsorvidos nos túbulos contorcidos distais. Por isso, os fármacos lipossolúveis são primeiramente biotransformados no fígado em substâncias mais polares (hidrofílicas), usando dois grupos gerais de reações, denominados fase I e fase II DEPURAÇÃO DE FÁRMACOS PELOS RINS Os fármacos devem ser suficientemente polares para serem eliminados do organismo. A saída do fármaco do organismo ocorre por numerosas vias, sendo a eliminação na urina por meio dos rins a mais importante. Pacientes com disfunção renal podem ser incapazes de excretar os fármacos, ficando sujeitos ao risco de acumulá-los e apresentar efeitos adversos. Eliminação renal dos fármacos: A eliminação de fármacos pelos rins na urina envolve os processos de filtração glomerular, secreção tubular ativa e reabsorção tubular passiva. Filtração glomerular: Os fármacos chegam aos rins pelas artérias renais, que se dividem para formar o plexo capilar glomerular. O fármaco livre (não ligado à albumina) difunde-se através das fendas capilares para o espaço de Bowman como parte do filtrado glomerular. A velocidade de filtração glomerular (VFG) em geral é de 125 mL/min, mas pode diminuir significativamente na doença renal. A lipossolubilidade e o pH não influenciam a passagem dos fármacos para o filtrado glomerular. Contudo, variações na VFG e a ligação dos fármacos às proteínas afetam esse processo. Secreção tubular proximal: Os fármacos que não foram transferidos para o filtrado glomerular saem dos glomérulos através das arteríolas eferentes, que se dividem formando um plexo capilar ao redor do lúmen no túbulo proximal. A secreção ocorre primariamente nos túbulos proximais por dois mecanismos de transporte ativo que exigem energia: um para ânions e outro para cátions. Cada um desses sistemas de transporte apresenta baixa especificidade e pode transportar vários compostos. Assim, pode ocorrer competição entre fármacos pelos transportadores em cada um dos sistemas. (Nota: prematuros e recém- nascidos não têm esse mecanismo secretor tubular completamente desenvolvido e, assim, podem reter certos fármacos no filtrado glomerular). Reabsorção tubular distal: Enquanto o fármaco se desloca em direção ao túbulo contorcido distal, sua concentração aumenta e excede à do espaço perivascular. O fármaco, se for neutro, pode difundir-se para fora do lúmen, retornando à circulação sistêmica. A manipulação do pH da urina, para aumentar a fração ionizada do fármaco no lúmen, pode ser feita para minimizar a retrodifusão e, assim, aumentar a depuração de um fármaco indesejável. Como regra geral, ácidos fracos podem ser eliminados alcalinizando a urina, ao passo que a eliminação de bases fracas pode ser aumentada por acidificação da urina. Esse processo é denominado prisão iônica. Por exemplo, um paciente apresentando dose excessiva de fenobarbital (um ácido fraco) pode receber bicarbonato, que alcaliniza a urina e mantém o fármaco ionizado, diminuindo, assim, a sua reabsorção. Papel da biotransformação de fármacos: A maioria dos fármacos é lipossolúvel e, sem modificação química, se difundiria para fora do lúmen tubular renal quando a sua concentração no filtrado se tornasse maior do que a do espaço perivascular. Para minimizar essa reabsorção, os fármacos são modificados basicamente no fígado em substâncias mais polares. Os conjugados polares ou ionizados são incapazes de difundir para fora do lumen renal. DEPURAÇÃO POR OUTRAS VIAS A depuração de fármacos pode ocorrer também por intestinos, bile, pulmões, leite, entre outros. Os fármacos que não são absorvidos após administração oral ou fármacos que são secretados diretamente para os intestinos ou na bile são eliminados com as fezes. Os pulmões estão envolvidos primariamente na eliminação dos gases anestésicos (p. ex., isoflurano). A eliminação de fármacos no leite pode expor a criança lactente aos medicamentos e/ou seus metabólitos ingeridos pela mãe, e é uma fonte potencial de efeitos indesejados na criança. A excreção da maioria dos fármacos no suor, na saliva, nas lágrimas, nos pelos e na pele ocorre em pequena extensão. A depuração corporal total e a meia-vida do fármaco são variáveis importantes da sua depuração, sendo usadas para otimizar o tratamento medicamentoso e minimizar a toxicidade. Depuração corporal total: A depuração corporal total (sistêmica), CL total, é a soma de todas as depurações dos órgãos biotransformadores e eliminadores. Os rins, frequentemente, são os principais órgãos de eliminação. O fígado também contribui na depuração dos fármacos por meio da biotransformação e/ou excreção na bile. Situações clínicas que alteram a meia-vida do fármaco Quando o paciente apresenta uma anormalidade que altera a meia-vida do fármaco, são necessários ajustes na dosagem. Pacientes que podem apresentar aumento da meia-vida de fármacos são aqueles que têm: 1) diminuição do fluxo de sangue renal ou hepático (p. ex., choque cardiogênico, insuficiência cardíaca ou hemorragia); 2) diminuição na capacidade de extrair o fármaco do plasma (p. ex., doença renal); 3) diminuição da biotransformação (p. ex., quando outros fármacos concomitantes inibem a biotransformação, ou na insuficiência hepática, como na cirrose). Nesses pacientes, pode ser necessário diminuir a dosagem ou aumentar o tempo entre as dosificações. Em contraste, a meia-vida de um fármaco pode ser reduzida aumentando o fluxo sanguíneo hepático, diminuindo a ligação às proteínas ou aumentando a biotransformação. Isso pode exigir dosagens maiores ou dosificações mais frequentes. OTIMIZAÇÃO DAS DOSAGENS Para iniciar o tratamento medicamentoso, o clínico deve selecionar a via de administração, a dosagem e o intervalo das dosificações apropriado. A escolha do regime terapêutico depende de vários fatores do paciente e do fármaco, incluindo quão rápido este deve alcançar os níveis terapêuticos. O regime então é refinado ou otimizado para maximizar as vantagens e minimizar os efeitos adversos. Regimes de infusão contínua: O tratamento pode consistir em uma dose simples do fármaco, por exemplo, uma dose única de um fármaco indutor do sono, como o zolpidem. Mais comumente, os fármacos são administrados continuamente seja como infusão IV ou em doses fixas orais e em intervalos constantes (p. ex., um comprimido cada 4 h). A administração contínua ou repetida resulta em acúmulo do fármaco até alcançar um estado de equilíbrio. A concentração de equilíbrio é alcançada quando a velocidade de eliminação é igual à de administração, de modo que a concentração no plasma e nos tecidos fique relativamente constante. Concentração plasmática do fármaco após infusão IV: Com a administração IV contínua, a velocidade de entrada do fármaco no organismo é constante. A maioria dos fármacos exibe eliminação de primeira ordem, isto é, uma fração constante do fármaco é eliminada por unidade de tempo. Portanto, a velocidade de eliminação do fármaco aumenta proporcionalmente com o aumento da concentração no plasma. Ao iniciar a infusão IV contínua, a concentração do fármaco no plasma aumenta até alcançar um estado de equilíbrio (a velocidade de eliminação se iguala à de administração). Nesse momento, a concentração plasmática do fármaco Regimes de doses fixas/intervalo de tempo fixo: A administração de um fármaco por doses fixas, em vez de infusão contínua, com frequência é mais conveniente. Contudo, doses fixas de medicações IV ou orais administradas em intervalos fixos resultam em flutuações tempo-dependentes nos níveis de fármaco circulante, diferindo do aumento contínuo da concentração do fármaco observada na infusão contínua. Injeções IV múltiplas: Quando um fármaco é administrado repetidamente a intervalos regulares, a concentração plasmática aumenta até alcançar um estado de equilíbrio. Como a maioria dos fármacos é administrada em intervalos mais curtos do que cinco meias-vidas e é eliminada exponencialmente com o tempo, algum fármaco da primeira dose permanece no organismo no momento em que a segunda dose é administrada, algum fármaco da segunda dose permanece no momento da terceira dose, e assim por diante. Portanto, o fármaco acumula até que, dentro do intervalo de dosagens, a velocidade de eliminação do fármaco se iguala à velocidade de administração – isto é, até que seja alcançado o estado de equilíbrio. Administrações orais múltiplas: Os fármacos administrados a pacientes externos são, em sua maioria, medicações orais tomadas uma, duas ou três vezes ao dia. Ao contrário da injeção IV, a absorção dos fármacos administrados por via oral pode ser lenta, e sua concentração plasmática é influenciada tanto pela velocidade de absorção quanto pela velocidade de eliminação Otimização da dose: O objetivo do tratamento com fármacos é alcançar e manter a concentração dentro da janela terapêutica e minimizar os efeitos adversos. Com titulação cuidadosa, a maioria dos fármacos permite alcançar esse objetivo. Se a janela terapêutica do fármaco é estreita (p. ex., digoxina, varfarina e ciclosporina), deve-se ter cautela extra na seleção do regime de dosagem, e monitorar os níveis do fármaco pode ajudar a manter a faixa terapêutica. Regimes de fármacos são administrados como doses de manutenção. Se for desejado efeito rápido, pode ser necessária dose de carga. Para fármacos com faixa terapêutica definida, a concentração é mensurada para ajustar a dosagem e a frequência, de modo a obter e manter os níveis desejados. Dose de manutenção: Os fármacos em geral são administrados para manter a Css na janela terapêutica. São necessárias 4-5 meias- -vidas para um fármaco alcançar a Css. Para alcançar uma dada concentração, são importantes a velocidade de administração e a velocidade de eliminação do fármaco. A velocidade de dosificação pode ser determinada conhecendo-se a concentração desejada no plasma (Cplasma), a depuração (CL) do fármaco da circulação sistêmica e a fração (F) absorvida. Dose de ataque: Às vezes, é necessário alcançar os níveis no plasma rapidamente (p. ex., em infecções graves ou arritmias). Portanto, uma dose de ataque (ou dose de carga) do fármaco é administrada para alcançar com rapidez os níveis plasmáticos desejados, seguida de uma dose de manutenção para manter o estado de equilíbrio. Doses de ataque podem ser administradas como dose única ou em uma série de doses. As desvantagens das doses de ataque são o aumento do risco de toxicidade e a necessidade de um tempo maior para a concentração no plasma diminuir caso se alcance uma concentração excessiva. A dose de ataque é mais útil para fármacos que têm meia-vida relativamente longa. Sem uma dose de ataque inicial, esses fármacos precisam de maior tempo para atingir o valor terapêutico que corresponde ao nível de equilíbrio. Dose de ajuste: A quantidade de fármaco administrada em uma dada condição é estimada com base em um “paciente médio”. Essa conduta negligencia a variabilidade entre pacientes nas variáveis farmacocinéticas, como depuração e Vd, que são muito significativas em alguns casos. O conhecimento dos princípios farmacocinéticos é útil para ajustar dosagens e otimizar o tratamento em certos pacientes. Monitorar o tratamento farmacológico e correlacioná-lo com os benefícios clínicos constitui outra ferramenta para individualizar o tratamento.