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Ainda há lugar para o francês instrumental no século XXI?

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Ainda há lugar para o francês instrumental


no século XXI?

Cristina Casadei Pietraróia


Universidade de São Paulo

Resumo: O Francês instrumental, metodologia de ensino desenvolvida nos anos


70, consolidou-se ao privilegiar a leitura de textos de especialidade realizada a
partir de estratégias de compreensão até então pouco valorizadas, como a aborda-
gem global, o uso dos elementos paratextuais e a consideração, fundamental, dos
conhecimentos e objetivos do leitor. Banindo certos hábitos correntes de leitura
(movimento ascendente e silábico, leitura palavra por palavra, tradução imperati-
va de todos os termos de um texto etc.), o Francês Instrumental teve uma grande
aceitação no meio universitário, onde ele respondeu a uma demanda que ainda
hoje se faz presente mas que, diante das mudanças de contexto e, sobretudo, de
perfil de leitor e de hábitos de leitura, obriga-nos a rever e a buscar uma atualiza-
ção de alguns de seus princípios de base, objetivo principal desse artigo.
Palavras-chave: Leitura, francês instrumental, FLE, língua estrangeira, textos aca-
dêmicos.

Résumé: Le Français Instrumental, méthodologie d’enseignement développée dans


les années 70, s’est consolidé par le privilège accordé à la lecture de textes de
spécialité mise en œuvre par le moyen de stratégies de compréhension jusqu’alors
peu valorisées, telles que l’approche globale, l’emploi des éléments paratextuels et
la prise en compte, fondamentale, des connaissances et des objectifs du lecteur.
En supprimant certaines habitudes courantes de lecture (mouvement ascendant
et syllabique, lecture mot à mot, traduction impérative de tous les termes d’un
texte etc), le Français Instrumental a eu une grande acceptation dans le milieu

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universitaire, où il a répondu à une demande qui se fait encore aujourd’hui présente


mais qui, face aux changements de contexte et, surtout, de profil de lecteur et de
comportements de lecture, nous oblige à revoir et à chercher une actualisation de
quelques-uns de ses principes de base. Tel est l’objectif principal de cet article.
Mots-clés: Lecture, français instrumental, FLE, langue étrangère, textes
académiques.

Para responder à questão colocada no título desse artigo – “Ainda há


lugar para o francês instrumental no século XXI?” –, é importante, primei-
ramente, situar a metodologia instrumental – assim chamada na América
Latina – ou funcional, como foi intitulada na França ao ser criada no final
dos anos 70. Naquela época, havia uma importante pressão política e eco-
nômica francesa para estabelecer uma cooperação técnica e científica com
outros países, deixando um pouco de lado a imagem cultural e artística para
mostrar que o país era, também, um centro de tecnologia e ciência. Ao
mesmo tempo, a França buscava fazer frente à entrada maciça do inglês no
cenário internacional e lutava para reverter a situação da língua francesa,
substituída nas escolas de vários países, como o Brasil, pela inglesa. Tais
fatos coincidiram com uma demanda do próprio público estrangeiro adulto
por maior especialização de seus estudos, o que exigia o uso de novos mate-
riais, mais específicos e diferentes daqueles utilizados pela metodologia audio-
visual para a aprendizagem do francês como língua estrangeira:

O ensino do francês dito “francês instrumental” se situa no amplo


campo do ensino do francês como língua de informação. É o ensino
do francês, língua estrangeira, a estudantes que sem se especializar
em francês devem ter acesso, em geral em seus países, a documentos
escritos de caráter informativo (Aupecle, Alvarez, 1977, s/p)1.

Assim, opondo-se ao francês geral e tendo como orientação a noção


de “objetivo de aprendizagem”, o Francês Instrumental, segundo Aupecle e
Alvarez (Aupecle e Alvarez, 1977: s/p), deu preferência:

– à recepção em vez da produção;

1 Texto original: “L’ enseignement du français dit “français instrumental” se situe dans le domaine
général de l’enseignement du français comme langue d’information. C’est l’enseignement du français,
langue étrangère, à des étudiants qui sans se spécialiser en français doivent avoir accès, en général
dans leur pays, à des documents écrits de caractère informationnel” (Aupecle e Alvarez, 1977: s/p).

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– à escrita e não ao oral;


– à informação e não ao prazer estético;
– à orientação científica em um sentido amplo;
– à compreensão do conteúdo e não à tradução;
– a um nível pós-elementar de conhecimento linguístico pelo aluno.

Sendo o suporte escrito a base do trabalho – inclusive porque era o


suporte mais facilmente encontrado, numa época sem internet ou TV a
cabo – o objetivo era o de promover a leitura-compreensão de textos de
especialidade em uma perspectiva comunicativa. Os trabalhos de Frank
Smith (Smith, 1971) e Kenneth Goodman (Goodman, 1967), sobre a leitu-
ra, e os estudos da linguística textual embasaram essa metodologia, que, na
França, teve como referência fundamental as obras de Sophie Moirand
(Moirand, 1979), Gérard Vigner (Vigner, 1979) e Denis Lheman et alli
(Lheman et alli, 1980).
Segundo esses autores, a leitura em língua estrangeira é um ato de
comunicação, solicitando a consideração de vários elementos: o projeto de
leitura e as intenções do leitor, seus conhecimentos (linguísticos, retóricos e
enciclopédicos), os parâmetros da situação de enunciação e os índices pre-
sentes dentro e em torno do texto (títulos, subtítulos, imagens, efeitos ti-
pográficos, conectivos, elementos dêiticos e temático-referenciais entre
outros).
Sob essa ótica, ler exige um leitor ativo que, para entrar no texto de
forma mais tranquila e producente, aprende a recorrer às estratégias des-
cendentes ou analíticas de leitura. Com esse tipo de estratégia, também
chamada de onomasiológica, o leitor parte de uma hipótese geral que pode
ter sobre o texto, e que é feita pelo exame de seus elementos mais salientes,
como fotos, gráficos, títulos, para depois chegar à sua estrutura, parágrafos e
elementos de base. Durante todo o processo, ele faz perguntas ao texto,
procede a antecipações, reconhece palavras transparentes, usa seus conhe-
cimentos de mundo, e sua própria experiência como leitor para, cada vez
mais, afinar a construção do sentido do texto que tem em mãos. É um mo-
vimento lento, mas que traz bastante segurança ao leitor, na medida em que
valoriza o que ele sabe sobre o tema do texto e sobre a prática da leitura.
No final dos anos 70, tendo como público leitores formados sobretu-
do em uma metodologia escolar marcada pela abordagem ascendente e sinté-

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tica de leitura (também chamada de semasiológica e que parte do signo


para o sentido, ou seja, parte da leitura linear das palavras, frases e parágra-
fos para chegar à compreensão geral do texto), o instrumental conseguiu
impor novos comportamentos de leitura, muito mais produtivos e adapta-
dos ao contexto de aprendizagem, pois, como vimos, passou a incentivar as
estratégias descendentes, fazendo com que os aprendizes confiassem bem
mais nos recursos de que dispunham do que numa leitura linear e amparada
quase sempre pelo dicionário. Foram conquistas importantes e, na América
Latina, a proximidade e a transparência das línguas em contato (francês-
espanhol ou francês-português) favoreceu ainda mais a metodologia instru-
mental, unindo-a, definitivamente, à leitura de textos com objetivos profis-
sionais ou acadêmicos, pois conhecer o assunto abordado pelo texto facilitava
as hipóteses, antecipações e uso do conhecimento de mundo dos alunos.
Os cursos oferecidos, principalmente em universidades, puderam então ter
como público estudantes totalmente principiantes em francês, o que, de
certa forma, não correspondia ao que havia sido preconizado pelos autores
de obras que se tornaram referência para o instrumental:

Esse ensino supõe, em geral, que o nível elementar já seja conheci-


do, seja por meio de um curso de francês tradicional, seja por um
curso Voix et Images de France ou outro (Aupecle et Alvarez, 1977:
s/p)2.
Para responder às demandas dos aprendizes decidimos introduzir o
mais cedo possível nos cursos de francês língua estrangeira uma téc-
nica de abordagem global dos textos escritos. A partir do momento
em que os estudantes conhecem a transcrição do oral (e mesmo se
seu deciframento é ainda aproximativo do ponto de vista fonético),
propomo-lhes apreender textos de impressa autênticos. Mas não se
trata de uma decodificação-deciframento: tentamos desenvolver suas
capacidades de compreensão global do sentido de um texto (quando
eles ainda são incapazes de compreender cada palavra e cada
detalhe) (Moirand, 1979: 23)3.

2 Texto original: “Cet enseignement suppose, en général, que le niveau élémentaire est déjà connu,
soit par un cours de français traditionnel, soit par un cours Voix et images de France ou autre.”
3 Texto original: “Pour répondre aux demandes des apprenants, nous avons décidé d’introduire le
plus tôt possible dans les cours de français langue étrangère une technique d’approche globale des
textes écrits. Dès que les étudiants connaissent la transcription de l’oral (et même si leur déchiffrage
est encore approximatif au plan phonétique), on leur propose d’appréhender des textes de presse

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Mesmo não seguindo à risca tais instruções, os cursos de instrumen-


tal para principiantes completos não podem ser vistos como desviantes, pois
se apoiaram muito na transparência das línguas e na introdução, no início
da aprendizagem, de textos curtos e de compreensão relativamente fácil,
como formulários, publicidades e textos de imprensa com temas da cultura
local, o que permitia assegurar uma progressão que ia do conhecimento do
novo sistema linguístico até a possibilidade de leitura de textos longos den-
tro dos campos de especialidade dos alunos. O importante era evitar a leitu-
ra linear, a tradução e o recurso ao oral.
Hoje, o francês instrumental continua presente nas universidades e
mantém a compreensão escrita como principal objetivo, sendo ministrado a
alunos principiantes em cursos que variam de 45 a 60 horas. Esses alunos
vêm buscar tal metodologia sobretudo para prestar os exames de proficiên-
cia e poder, assim, ingressar no mestrado ou doutorado. No entanto, quan-
do nos referimos à compreensão escrita como “principal” objetivo, estamos
nos referindo à necessidade que alguns alunos têm de aprender também a
traduzir, uma vez que muitos exames de proficiência pedem a tradução de
um pequeno texto ou trecho de texto. Ou seja, os professores sentem a
necessidade de inclusão de técnicas ligadas às particularidades do texto e
de sua compreensão mais detalhada, para que os alunos possam chegar a
traduzir o mesmo.
Essa inclusão da tradução não foi, no entanto, a única mudança da
metodologia instrumental oferecida no Brasil desde sua criação, há trinta
anos atrás. Aliás, mesmo naquela época, alguns professores davam aulas
fazendo apenas traduções, porém mais provavelmente por desconhecimen-
to da metodologia do que por opção didática. Acreditamos que a grande
mudança refere-se aos próprios alunos, que são muito diferentes dos alunos
dos anos 70 e 80. Hoje, o aprendiz que busca um curso de instrumental já
domina várias estratégias descendentes, pois vive num mundo em que tudo
é mais ágil e no qual várias linguagens se misturam. Basta ver o uso que
jovens fazem da Internet e a rapidez com que acessam os conteúdos nela
disponíveis. Atualmente vemos que as novas tecnologias, a televisão e mes-
mo a imprensa solicitam de seus utilizadores uma atenção mais difusa, ca-
paz de captar vários elementos ao mesmo tempo. Vêem-se e escutam-se

authentiques. Mais il ne s’agit pas d’un décodage-déchiffrage: on essaie de développer leurs capacités
de compréhension globale du sens d’un texte (alors qu’il sont encore incapables d’en comprendre
chaque mot et chaque détail.)”

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várias coisas ao mesmo tempo, muitas vezes compreendidas superficialmen-


te.... Não podemos nos esquecer também de que as técnicas descendentes
de leitura, a abordagem global, a leitura não linear, a consideração de ele-
mentos para-textuais chegaram à escola e à leitura em língua materna.
Como bem aponta Gerard Vigner, mesmo os manuais escolares são
diferentes atualmente e, complementamos, solicitam uma abordagem mais
descendente:

As concepções em termos de paginação das publicações destinadas


à juventude evoluíram esses últimos anos, quer se trate de revistas
ou de manuais escolares, como se a formatação da informação e do
saber destinados à criança ou ao aluno obedecesse a uma lógica úni-
ca: predominância de dispositivos díspares (múltiplos enquadramen-
tos) impondo-se sobre um texto em colunas heterogêneas por natu-
reza (imagens, esquemas, textos, estatísticas, etc) com fontes de
informação e de modos de enunciação muito variados, autorizando
assim entradas e percursos de leitura múltiplos (...) Esses modos de
representações do saber remetem a concepções diferentes em ter-
mos de acesso ao sentido e implicam um comportamento de leitura
fundado em atividades cognitivas diferentemente solicitadas (Vigner,
1997: 47)4.

Patrick Brunet, por sua vez, afirma que a as novas tecnologias e a leitu-
ra na tela provocaram uma mudança na própria forma de abordar os textos:

o uso da Internet favorece o desenvolvimento de um modo de pen-


samento por associação, superposição, fragmentação que participa
de uma nova cultura: a da ruptura (Brunet, 2002: 69)5.

4 Texto original: “Les conceptions en matière de mise en page des publications destinées à la
jeunesse ont considérablement évolué ces dernières années, qu’il s’agisse de magazines ou de manuels
scolaires, comme si la mise en forme de l’information et du savoir à destination de l’enfant/élève
obéissait à une logique unique: prédominance de dispositifs éclatés (encadrés multiples) se surimposant
sur un texte en colonnes, hétérogènes dans leur nature (images, schémas, textes, statistiques, etc.)
avec des sources d’information et des modes d’énonciation très variés, autorisant de la sorte des
entrées et des parcours de lecture multiples. (…) Ces modes de représentations du savoir renvoient
à des conceptions différentes en matière d’accès au sens et impliquent un comportement de lecture
fondé sur des activités cognitives différemment sollicitées.”
5 Texto original: “l’usage d’Internet favorise le développement d’un mode de pensée par association,
superposition, fragmentation qui participe d’une culture nouvelle: celle de la rupture”.

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Da mesma forma que o leitor, os estudos sobre a leitura também co-


nheceram mudanças: não se trata mais de opor as duas estratégias de leitu-
ra supra citadas e que imperaram separadamente: as ascendentes e as des-
cendentes. É a noção de integração e de flexibilidade entre essas duas
estratégias que hoje é preconizada, de onde as denominações contemporâ-
neas de abordagem interativa ou abordagem mista para a leitura-compreen-
são de textos.
Sabe-se também que o bom leitor faz interagir os dois tipos de estra-
tégias, sobretudo porque a ausência ou o excesso de uma delas pode curto-
circuitar a compreensão. Não se consideram mais fases ou sucessão de eta-
pas de leitura, mas sim processos e simultaneidade na compreensão escrita,
como afirma Michel Fayol:

(...) tudo se modifica provavelmente de modo simultâneo e em inte-


ração: os significantes (léxico…); os significados (base de conheci-
mentos); os procedimentos; as capacidades de controle, etc. (Fayol,
1992: 93)6

Em língua estrangeira, especificamente, essa interação torna-se ain-


da mais necessária, pois, além de todos os aspectos já enumerados, o leitor
conhece muito pouco o novo sistema linguístico que está aprendendo e,
como é possível observar, há uma grande dificuldade em tudo administrar
ao mesmo tempo.
Na verdade, o que vemos em leitores aprendizes principiantes de uma
língua estrangeira – e também em leitores pouco proficientes em língua
materna – é uma grande rigidez de leitura, dificultando o uso das estratégias
de que dispõem –, a uma pressa em tudo dominar logo e a não utilização de
estratégias metacognitivas de controle. Essas estratégias, bastante mencio-
nadas pelos estudos em leitura a partir dos anos 90, dizem respeito à capaci-
dade que toda pessoa tem de poder refletir sobre seu próprio processo men-
tal. Em leitura, significa estar consciente do que se faz quando se lê, saber o
que fazer quando se está diante de uma dificuldade, saber que estratégias
utilizar para resolver o problema e, finalmente, poder avaliar se a estratégia
escolhida deu bons resultados.

6 Texto original: “tout se modifie sans doute simultanément et en interaction: les signifiants
(lexique...); les signifiés (base de connaissances); les procédures; les capacités de contrôle, etc.”.

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Retomando a questão da dificuldade que tem um leitor de língua


estrangeira em tudo controlar ao mesmo tempo, vale insistir sobre o curto-
circuito que disto pode resultar gerando um bloqueio na continuidade da
leitura. A maior parte dos pesquisadores no campo da leitura em língua es-
trangeira concorda sobre isso, entretanto, observamos posições diferentes no
que diz respeito ao tratamento do problema: alguns insistem sobre a necessi-
dade de um trabalho mais aprofundado em torno das estratégias descenden-
tes, enquanto outros vêem na automatização dos processos ascendentes, na
rapidez da decodificação das palavras e no domínio mais seguro das regras
de sintaxe, por exemplo, a melhor maneira desse mesmo leitor utilizar as
demais estratégias, inclusive as estratégias metacognitivas de controle.
Colocando-nos nesse último grupo, acreditamos que seja preciso
retornar um pouco às bases francesas do instrumental (Moirand, Vigner)
quanto a um domínio mínimo da língua estrangeira quando se aprende a
leitura, para que essa ocorra de forma mais sólida. É também o que Daniel
Gaonac’h levanta como hipótese em um artigo bastante importante:

Podemos ser levados a considerar – o que é ainda uma hipótese –


que competências específicas entram em cena naquilo que diz res-
peito à leitura, tanto no que diz respeito aos processos de base (co-
nhecimentos implícitos dos elementos de língua e das estruturas
sintáticas) quanto aos processos mais complexos, e que essas compe-
tências podem ter como pré-requisito necessário – mas não forçosa-
mente suficiente – um domínio global da língua alvo. (Gaonac’h,
2000: 13)7

Acreditando também que, para os alunos do século XXI, seja preciso


trabalhar com um pouco mais de ênfase, desde o começo da aprendizagem,
sobre a materialidade da língua alvo, percebemos que um trabalho com os
elementos linguísticos e sintáticos seria bem vindo. Não é por acaso que em
uma recente publicação de um jornal brasileiro, comentando o vestibular, o
título e subtítulo da matéria sejam: “Questão discursiva deve ser lida e reli-
da – alunos costumam errar nesse tipo de pergunta por falta de atenção.”

7 Texto original: “On peut donc alors être amené à considérer – ce qui est encore à l’état d’hypothèse
– que des compétences spécifiques sont en jeu pour ce qui concerne la lecture, tant au niveau des
processus de base (connaissances implicites des éléments de langue et des structures syntaxiques)
qu’au niveau des processus plus complexes, et que ces compétences peuvent avoir comme prérequis
nécessaire – mais pas forcément suffisant – une maîtrise globale de la langue cible.”

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(Fovest, Folha de São Paulo, 15/12/2009, p. 4). E estamos falando de jovens


lendo em sua língua materna...
Trazer para o curso de instrumental uma aprendizagem mais específi-
ca do código linguístico, sem no entanto perder todas as conquistas da me-
todologia instrumental, sobretudo no que diz respeito ao uso das estratégias
descendentes, pode contribuir para uma compreensão escrita que responda
melhor às dificuldades encontradas pelos alunos de hoje.
Por isso, gostaríamos de enumerar alguns aspectos que podem favo-
recer a aprendizagem da leitura atualmente.
O primeiro aspecto é a admissão (oficial) do oral e da leitura em voz
alta no curso de instrumental, pois, como afirma Jean (Jean, 1999), esse
tipo de leitura permite tornar inteligível o texto marcando suas articula-
ções, suas divisões e as relações semânticas dessas divisões entre elas, assim
como os momentos de suspensão e de pausas. Além disso, a aprendizagem
das correspondências grafo-fonêmicas oferece ao aluno novos recursos para
a construção de sentido das palavras. Sabe-se que, em língua materna
(Perfetti, 1989), os progressos em leitura favorecem o desenvolvimento de
uma consciência fonêmica que, por sua vez, aumenta a capacidade para a
leitura. Em língua estrangeira já pudemos constatar a vantagem de ensinar
a pronúncia das palavras, proporcionando aos alunos uma autonomia em
geral bastante solicitada.
Da mesma forma, acreditamos que um ensino gramatical sistematiza-
do vai no sentido dessa autonomia que deve ser proporcionada aos aprendi-
zes, por exemplo, tornando automatizadas certas construções gramaticais
cuja inferência a partir do contexto nem sempre é fácil. É o caso do “ne
explétif” e das construções negativas sem “pas”, tão presentes em textos
acadêmicos. É mais fácil para um aluno ter bem sistematizadas e automati-
zadas essas construções do que ter um bloqueio de compreensão no mo-
mento de construir o sentido da frase em que as mesmas aparecem.
Fazer o leitor também se aventurar pela produção escrita é algo que
faz com que ele veja e compreenda aspectos que podem ter passados desper-
cebidos durante a leitura. Da produção de frases até a redação de pequenos
textos que abordem o assunto tratado em aula, a prática da escrita propor-
ciona um aprendizado mais rápido dos aspectos léxico-sintáticos.
Utilizar com adequação os elementos formais – na leitura e na escrita
– demanda um trabalho detalhado daquilo que dá conta tanto da enuncia-

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ção (pronomes, índices de tempo e de espaço, dêiticos) quanto da coesão e


da coerência textuais (conectivos, rede anafórica), e esse trabalho deve ser
também um momento importante da classe de francês instrumental. O re-
curso a textos sobre um mesmo tema, mas publicados em suportes e em
momentos diferentes, é uma boa oportunidade para realizar essa proposta.
Por sua vez, as estratégias de controle podem ser desenvolvidas com
atividades que sirvam ao mesmo tempo como avaliação e para a formação
de um leitor mais atento ao texto. O exercício, por exemplo, de pedir ao
aluno que faça questões sobre o texto proposto pode ser um momento im-
portante para o trabalho com as estratégias metacognitivas, pois o obrigará
a rever sua própria compreensão.
Um outro aspecto que gostaríamos de abordar é a escolha dos textos.
No início da aprendizagem em um curso instrumental é necessário, para
tranquilizar o aprendiz, recorrer a textos cujo assunto seja de seu conheci-
mento, mas, após um certo tempo, é preciso trabalhar um pouco mais com
a motivação e o desafio. Não podemos nos esquecer de que estamos em
uma época em que tudo é rápido e já está pronto para ser usado, fazendo
com que as pessoas se tornem mais consumidoras do que produtoras. É
preciso, portanto, oferecer aos aprendizes dessa época mais situações de
descoberta, de situações inesperadas, de surpresa, a fim de que eles tenham
realmente, no caso da leitura, que entrar no texto. Como afirma Malheiros-
Poulet, pesquisadora que trabalhou no projeto Galatea, sobre a compreen-
são das línguas vizinhas,

quanto mais o esquema de conteúdo é conhecido, menos o leitor vai


para o texto e, ao contrário, quanto mais o esquema de conteúdo é
desconhecido, mais o leitor procura pistas na miscroestrutura [sic]
linguística (Malheiros-Poulet, 1996: 452)8.

Torna-se portanto indispensável, durante um curso de leitura, ensinar


aos alunos a utilizar corretamente seus conhecimentos de mundo, mas tam-
bém a revê-los e a procurar outros quando se trata de um texto que aborda
um assunto pouco conhecido, ou seja, é preciso que o leitor saiba ativar e
desativar seus modelos mentais em função do texto e da situação de leitura.

8 Texto original: “plus le schéma de contenu [les connaissances du monde activés par le texte] est
connu, moins le lecteur va vers le texte et, à l’inverse, plus le schéma de contenu et méconnu, plus
le lecteur recherche des pistes vers la microstructure linguistique.”

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Muitos autores sugerem, inclusive, o uso de textos com problemas de


leitura, com ambiguidades, com possibilidades de diferentes interpretações.
As rupturas de expectativas que ocorrem são, a nosso ver, muito importan-
tes para que o leitor reveja sua compreensão e use com propriedade tanto os
elementos formais quanto as estratégias de controle para construir sentidos
que não previa inicialmente.
Ainda dentro dessa perspectiva, seria pertinente sugerir a introdução,
em um curso de instrumental, de textos literários, sem os sacralizar ou bana-
lizar, como bem lembram Albert e Souchon (Albert e Souchon, 2000), mas
oferecendo ao leitor outras possibilidades de trabalho para a construção do
sentido e, também, um retorno ao prazer estético fornecido pelo texto.
Todas essas propostas dizem respeito ao trabalho com o texto, mas há
ainda um trabalho a ser feito com o próprio aluno-leitor: ele deve ser levado
a conhecer seu próprio estilo de aprendizagem, a se conceber como leitor e
ser, cada vez mais, autônomo e crítico de todo o processo. Hoje, vários auto-
res sugerem momentos no curso em que os alunos falem de sua compreensão,
por meio de verbalizações orais, e que também estabeleçam com o grupo-
classe um diálogo em que a relação com o outro seja valorizada, ou seja, que
os leitores possam, cada vez mais, conhecer seus próprios mecanismos de cons-
trução de sentido na leitura, bem como suas dificuldades e suas conquistas.
Para nós, o objetivo de um curso de leitura em língua estrangeira é o
de formar leitores atentos, críticos, autônomos, conhecedores de suas com-
petências e capazes de utilizar a(s) melhor(es) estratégia(s) para o texto que
têm em mãos.
Voltando então à pergunta do título, acreditamos sim que o francês
instrumental ainda tenha espaço no século XXI, mas com algumas – ou
várias – mudanças, pedidas não somente pelos professores, mas também
pelos alunos dessa metodologia, o que talvez faça com que ela não possa
mais ser chamada de instrumental...tema para um outro artigo.

Referências bibliográficas

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ENS, p. 47-81.

Cristina Moerbeck Casadei Pietraróia é professora-doutora da Área de Estudos


Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP desde 1993, atuando como docente (gradua-
ção e pós-graduação) e orientadora em nível de mestrado e doutorado. Desenvol-
ve pesquisas nas áreas de leitura em língua estrangeira, ensino-aprendizagem do
francês e novas tecnologias. Autora de dois livros – Percursos de Leitura e Questões
de Leitura (São Paulo, Ed. Annablume/CAPES, 1997 e 2001, respectivamente),
de artigos diversos sobre seus temas de pesquisa, foi também presidente da Asso-
ciação dos Professores de Francês do Estado de São Paulo de 2001 a 2008 e direto-
ra e coordenadora de francês do Centro de Línguas da FFLCH-USP.

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