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A guerra do açúcar:

as invasões holandesas no Brasil1


Carlos Roberto Carvalho Daróz

DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A guerra do açúcar: as invasões holande-


sas no Brasil. Recife: Editora UFPE/BIBLIEx, 2014/2016, 448p.

A obra analisa de modo bas- Exército Brasileiro na arma da Arti-


tante aprofundado a chamada lharia, e membro do Instituto de Ge-
“Guerra Brasílica”, realizada entre ografia e História Militar do Brasil.
1625 e 1654, quando a Companhia Faz parte de uma geração de jovens
das Índias Ocidentais tentou estabe- historiadores oriundos de nossas
lecer uma colônia neerlandesa no Forças Armadas que vêm reno-
Brasil, de início na Bahia, depois a vando os estudos da História Militar
partir de Pernambuco. de nosso país. Lecionou no Colégio
O autor, além de historiador Militar do Recife e, em nível de pós-
com licenciatura em História e es- graduação, na Universidade do Sul
pecialização em História Militar, é de Santa Catarina.
militar de formação, servindo no A análise que Carlos Daróz faz
do conflito é bastante ampla e

1
Resenha elaborada pelo Prof. Armando Alexandre dos Santos, sócio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
abrangente. Filia-se ele à corrente
da chamada Nova História Militar,
que, como realça no início do livro,

“não se prende ao estudo da ba-


talha, mas abrange todos os as-
pectos relacionados com o fenô-
meno guerra e apresenta interfa-
ces com outros campos do saber,
como a política, a geografia, a
economia, a cultura, a socie-
dade, a tecnologia e a geopolí-
tica, entre outros”.

Seguindo essa linha metodoló-


gica e baseado em extensa pesquisa
realizada ao longo de dois anos na
historiografia brasileira, na holan- frequente entre historiadores milita-
desa e europeia em geral, em docu- res de tipo clássico, de restringir o
mentos e monumentos, estudou in estudo aos aspectos militares do
loco os sítios em que ocorreram os conflito. Pelo contrário, ampliou
combates, chegando a colher, entre consideravelmente a análise, numa
a população do entorno, restos de ótica geopolítica muito aberta, de
tradições orais dos tempos da modo a abranger aspectos culturais,
guerra. psicológicos, religiosos etc. O re-
O autor não ignorou, natural- sultado foi uma abordagem muito
mente, os aspectos econômicos do ampla e diversificada, que apresenta
conflito, bastante realçados desde a interesse novo até mesmo para pes-
opção pelo título A guerra do açú- soas que já conhecem bem o con-
car, mas não cedeu à tentação fácil flito e leram muito sobre ele.
do reducionismo econômico. Tam- Do ponto de vista estratégico, é
pouco cedeu a outra tentação muito preciso, desde logo, considerar a

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importância econômica que tinha, conflito e quais os interesses que es-
na primeira metade do século XVII, tavam em jogo. Os fatos se passa-
a região em que ocorreu a Guerra vam no contexto da guerra religiosa
Brasílica, ou seja, a larga faixa lito- travada no Velho Mundo entre cató-
rânea que se estende desde a Bahia licos e protestantes, entre a Reforma
até o Maranhão. Essa região era, na e a Contrarreforma. Tendo perdido
época, a maior produtora mundial um terço da Europa em consequên-
de açúcar, mercadoria altamente cia da revolta de Lutero, a Igreja Ca-
apreciada e valorizada. tólica defendeu-se com o movi-
Assim, sem a menor dúvida, mento denominado “Contrarre-
estavam em jogo, no conflito tra- forma”, no âmbito do qual se inseri-
vado nessa região, de 1625 até ram o Concílio de Trento (1545-
1654, entre invasores holandeses e 1563), a criação do estilo barroco, a
os luso-brasileiros, interesses fundação da Companhia de Jesus
econômicos de grande monta. Mas (1534) e a maciça expansão missio-
os interesses econômicos, no caso, nária no Novo Mundo, na África
não eram um fim em si, eram um Negra, na Índia e até no Extremo
meio para a realização de um pro- Oriente. Essa expansão era vista
jeto político de domínio mundial como forma de compensar as perdas
dos mares – objetivo que Holanda e sofridas pelo catolicismo na Eu-
Inglaterra desejavam alcançar, e ropa, como realça Charles Ralph
Portugal e Espanha desejavam recu- Boxer em A Igreja militante e a ex-
perar ou manter. E, por trás desses pansão ibérica – 1440-1770 (São
projetos nacionais, o enfrentamento Paulo: Companhia das Letras,
de caráter religioso estava presente 2007).
e, considerando a mentalidade pre- Embora com algum atraso em
valente na época, assumia impor- relação a Espanha e Portugal, tam-
tância muito grande. bém Holanda e Inglaterra se puse-
Sem se ter esse quadro de ram a disputar terreno, nas Améri-
fundo, mais amplo, em vista, não se cas, na África e no Oriente. Eram
pode compreender o real alcance do movidas por interesses econômicos

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e geopolíticos, visando ao enrique- também pela simultaneidade de am-
cimento e ao predomínio dos mares, bas e, sobretudo, pelas característi-
em nível mundial, mas também por cas que apresentaram. Ambas repre-
motivos religiosos, que, recorde-se, sentaram confrontações de podero-
na mentalidade dos homens daquele sas forças, num enfrentamento em
tempo tinham um alcance muito que interagiam interesses territori-
maior do que atualmente. (ver a res- ais, dinásticos e comerciais, sempre
peito: SANTOS, A.A. dos. A Ser- ativados e potencializados pelo fa-
viço de Deus e de El-Rei. Separata tor religioso.
de “Revista Brasileira”, órgão ofi- Ainda do ponto de vista estra-
cial da Academia Brasileira de Le- tégico, era muito importante, tanto
tras, Rio de Janeiro, v. 22, p. 155- para Portugal como para a Holanda,
173, 2000). o domínio do Atlântico Sul. Não po-
A permanência dos holandeses demos entender a Guerra de Per-
no Nordeste brasileiro se deu em nambuco sem considerar que, si-
boa parte durante a Guerra dos multaneamente, os holandeses tam-
Trinta Anos, que então se travava na bém estavam tentando se estabele-
Europa, e na qual o fator religioso cer em Angola. Já haviam tomado
representava papel primordial. A Luanda, já tinham feito aliança com
luta dos luso-brasileiros para a ex- a poderosa e legendária Rainha
pulsão dos batavos já foi designada Ginga, dos Angolas, e de tal forma
como “a Guerra dos Trinta Anos pareciam ali definitivamente im-
Brasileira”, por Francisco Ruas plantados que o Pe. Antônio Vieira,
Santos em Arte da Guerra (Rio de em carta ao Rei de Portugal, decla-
Janeiro: Bibliex, 1998, p.116), de- rava que Pernambuco e Angola já
signação que se justifica plena- estavam irremediavelmente perdi-
mente. Não só pela quase igual ex- dos e jamais deixariam de ser holan-
tensão temporal de ambos os confli- deses. (cf. AZEVEDO, João Lucio
tos (de 1618 a 1648 no caso euro- de. História de Antonio Vieira. Lis-
peu, 1625 a 1654 no brasileiro), mas boa: Editora Clássica, 2ª. ed., 1931,
1º, tomo).

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Na realidade, o domínio de am- Em seguida, é exposta, num re-
bos os lados do Atlântico Sul era lato muito vivo, a invasão holandesa
fundamental não só para a explora- na Bahia (1625-26), a reação dos
ção do açúcar nordestino (que de- brasileiros e a expulsão dos invaso-
pendia do fornecimento de escravos res. Segue-se o relato de como a Ho-
africanos), mas também porque era landa se preparou cuidadosamente
indispensável para o acesso ao Ori- para a segunda invasão, de modo a
ente, tanto pela via oriental, inaugu- não repetir os erros cometidos na
rada por Gama, quanto pelo cami- primeira. Vem, depois, a exposição
nho mais longo trilhado por Maga- da tomada de Pernambuco; dos
lhães, através do Pacífico. combates que se seguiram, do esta-
Esse fundo de quadro no qual belecimento da Nova Holanda, da
se desenrolou o conflito é bem ex- traição de Calabar, dos oito anos de
posto no livro, o qual é dividido em governo Nassau, da extensão e apa-
11 capítulos, que se sucedem de rente consolidação do domínio ho-
modo lógico e encadeado, mas sem landês, que chegou a se estender
excesso de esquematização, de ma- desde o rio São Francisco, na divisa
neira que a leitura é fluida e cor- com a Bahia, até o atual Maranhão.
rente. A reação luso-brasileira, inten-
De início, o autor mostra a evo- sificada após a restauração do Reino
lução da arte da guerra na passagem luso em 1640, a batalha das Tabo-
da Idade Média para os tempos mo- cas, a da Casa Forte, as duas dos
dernos, destacando as profundas Montes Guararapes, a quase reclu-
transformações ocorridas nesse pe- são, durante anos, dos holandeses
ríodo. Em seguida, expõe com ri- no seu reduto do Recife até a capi-
queza de pormenores, do ponto de tulação final, em 1654, é também
vista militar, os dois lados em con- exposta.
fronto: como se estruturavam, como O último capítulo é dedicado a
se armavam e como lutavam as for- uma discussão sobre os frutos a
ças de defesa luso-brasileiras e as longo prazo, para o Brasil, do domí-
holandesas. nio holandês.

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Embora esses fatos todos já se- bre temas históricos de modo ro-
jam, em suas linhas gerais, bem co- manceado e com forte apelo emoci-
nhecidos dos estudiosos de História onal. O livro ora examinado fica, a
Colonial do Brasil, no livro de Car- meu ver, num juste milieu, muito
los Daróz ganham vida nova, pois bem equilibrado. É obra séria e só-
são narrados com abundância de lida, mas escrita de modo jornalís-
pormenores e mesclados, por vezes, tico, por quem tem prática em sala
com saborosos relatos de “petite de aula e sabe prender a atenção dos
histoire” que tornam a leitura bas- ouvintes sobre o assunto que está
tante entretida. sendo exposto.
Um comentário final sobre o Concluo transcrevendo as pa-
estilo adotado pelo autor. Sem em- lavras do próprio autor, na mensa-
bargo da sólida documentação, do gem inicial do livro:
rigor metodológico e das numerosas
referências bibliográficas e arqui- Convido você, leitor amigo, a
vísticas, o livro foi todo escrito de lançar-se nesta importante pá-
gina de nossa história colonial.
modo leve e agradável, de modo a Uma história de homens rudes,
interessar ao grande público e até soldados e insurretos, mercená-
mesmo os aspectos estritamente mi- rios e piratas, índios e negros, de
litares do conflito são facilmente um povo que e recusou a ser do-
minado por uma cultura estra-
compreendidos e assimilados pelos nha e hostil. Uma história de lu-
leitores não especializados na ter- tas e sacrifícios, mas, sobretudo,
minologia especializada. Mérito de esperança em um destino me-
lhor.
não pequeno nos dias de hoje, em
que os historiadores de formação na
maior parte ainda preferem escrever
suas obras em “estilo acadêmico”
somente palatável a quem também é
do ramo; e em que por vezes se cai
no extremo oposto, escrevendo so-

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