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A luta pelo controle territorial da baía de Guanabara no século XVI:

agentes, alianças, conflitos

Mauricio A. Abreu
Departamento de Geografia - UFRJ
Pesquisador 1 A (CNPq)

Os acontecimentos que antecederam a fundação da cidade do Rio de Janeiro constituem o


mais dramático episódio do processo de imposição da soberania lusitana sobre o território brasileiro no
século XVI. Finalizada em 1567, quando os indígenas tamoios foram derrotados pelos lusos e o núcleo
urbano inicial, provisoriamente fundado em 1565, pôde ser transferido para seu sítio definitivo, a
conquista da região da baía de Guanabara foi longa e árdua e envolveu não apenas portugueses e
indígenas, mas também franceses católicos e protestantes, que pretendiam construir aí uma França
Antártica e acabaram por re-territorializar nos trópicos os conflitos religiosos que dividiam seu país.
Tratou-se, portanto, de processo histórico complexo, que envolveu múltiplos interesses, alianças e
visões de mundo e que se manifestou também em múltiplas territorialidades.
Passadas mais de quatro centúrias, é notável o interesse que as lutas territoriais pelo controle
da baía de Guanabara ainda desperta, como dá prova a contínua publicação de obras a seu respeito,
inclusive de ficção.1 Cada um desses trabalhos busca reinterpretar os acontecimentos então decorridos
a partir de novas leituras das fontes documentais, todas elas eivadas de juízos de valor, e dá
continuidade a um debate já secular, que opõe as fontes católicas às protestantes e que coloca em polos
opostos os defensores e os detratores de Nicolas Durand de Villegagnon, comandante da expedição que
pretendeu estabelecer na baía de Guanabara, no século XVI, as bases de uma França Antártica.
Escrevendo no final do século XIX, Paul Gaffarel afirmou, com toda razão, que nenhuma
fonte original sobre a França Antártica, era imparcial.2 Com efeito, os relatos de origem protestante,
bastante numerosos, sempre objetivam denegrir a figura de Villegagnon, acusando-o de traidor e
responsabilizando-o pelos conflitos internos que levaram ao insucesso desse projeto. Já as fontes

1 Dentre as mais recentes obras publicadas sobre esses acontecimentos estão: Vasco Mariz e Lucien Provençal, Villegagnon
e a França Antártica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira e Biblioteca do Exército, 2000; Jean-Christophe Rufin, Rouge Brésil.
Paris: Gallimard, 2001 (romance premiado com o Prêmio Goncourt de 2001); e Chermont de Britto, Villegaignon, o rei do
Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.

2 Paul Gaffarel. Histoire du Brésil français au seizième siècle. Paris: Maisonneuve et Cie, 1878, p. 219.
católicas, mais escassas, concentram atenção em suas qualidades guerreiras e, se o acusam de alguma
coisa, é exatamente de ter dado guarida aos protestantes, estes sim responsabilizados pelas dissensões
internas que levaram à perda da colônia. As fontes portuguesas, por sua vez, também não permitem
reproduzir com imparcialidade o que realmente aconteceu no Rio de Janeiro àquela época. Buscando
obter mercês da coroa, os autores dos relatos glorificam os feitos guerreiros conseguidos, não deixando
também de creditar à providência divina uma boa parte do sucesso alcançado.3
A historiografia produzida no Brasil sobre esses acontecimentos também deixa muito a
desejar. Como bem apontou Knauss, muito já se escreveu sobre esses acontecimentos mas são poucas
as diferenças analíticas que podem ser encontradas na produção historiográfica de diferentes épocas.
Um fato incontestável, entretanto, é que a historiografia posterior ao século XIX, ao introduzir o rótulo
de “invasão estrangeira” para caracterizar a disputa entre portugueses e franceses no litoral brasileiro,
acabou por empobrecer a análise desses acontecimentos, pois levou à perda de vista da totalidade do
sistema histórico. Por um lado, a luta européia pela disputa dos mares assumiu papel tão preponderante
que ofuscou outras dimensões de análise. Por outro, no discurso que acabou privilegiando a noção de
“estrangeiro” como o europeu não-lusitano, a figura do indígena, o verdadeiro autóctone, acabou sendo
relegada a um segundo plano. Nas palavras do autor: “por trás desse cenário permanece[ra]m como
sombras noturnas os nativos”.4
Não há como discordar dessa afirmação. É impossível tratar do período que antecedeu à
fundação da cidade do Rio de Janeiro sem atribuir também às nações indígenas que habitavam o litoral
um papel ativo. A conquista portuguesa das terras americanas não se deu sobre um território vazio. Ao
contrário, nele já se encontravam diversas sociedades organizadas, que interagiram com o forasteiro
recém-chegado e com ele estabeleceram relações econômicas, sociais e culturais. De início, essas
relações foram de cooperação, pois indígenas e portugueses necessitavam-se mutuamente.

3 Cf. os depoimentos que constam do "Instrumento dos serviços prestados por Mem de Sá, governador do Brasil" in Anais
da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Vol. XXVII, Rio de Janeiro, 1906. Heitor Antunes, por exemplo, que não
esteve na Guanabara, informou que ouvira dizer que a fortaleza era “... a mais forte cousa que havia no mundo e que
milagrosamente se tomara porque não era em mãos de homens tomar-se (p. 147). “A obra é de Nosso Senhor que não quis
que se nesta terra plantasse gente de tão maus pensamentos”, escreveu o governador. Depondo sob juramento, o bispo D.
Pedro Leitão, que também não estivera na Guanabara naquela ocasião, afirmou que “se não fosse por poder divino e por sua
misericórdia, ... por nenhum poder humano se podia tomar [a fortaleza]”. Já o Padre Manuel da Nóbrega informou que
“mostrou Nosso Senhor sua misericórdia e deu tão grande medo nos franceses e nos índios, que com eles estavam, que se
acolheram da fortaleza e fugiram todos ....”. Ver estas e outras citações que dão crédito à interferência divina em Herbert
Ewaldo Wetzel, Mem de Sá, terceiro governador geral (1557-1572). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p.
84.

4 Ver Paulo Knauss de Mendonça, O Rio de Janeiro da Pacificação; franceses e portugueses na disputa colonial. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1991, pp. 40-41, p. 54.
Rapidamente, entretanto, transformaram-se em relações de conflito, que foram habilmente aproveitadas
pelos franceses para inserirem-se, eles também, no palco dos acontecimentos.
A conquista portuguesa da baía de Guanabara precisa, pois, ser colocada num contexto bem
mais amplo do que o da simples disputa pela liberdade dos mares. Sem precedentes até então, a ação
militar lusa, que resultou na destruição, em 1560, do forte que os franceses aí haviam erguido, não
apenas fortaleceu o movimento de contra-reforma como acabou por subjugar as nações indígenas que
ainda desafiavam a soberania portuguesa. Teve, por essa razão, um papel importante na consolidação
do processo de colonização do Brasil. Sem termos a pretensão de apresentarmos uma interpretação
"correta" ou "neutra" dos acontecimentos que antecederam a fundação do Rio de Janeiro, procuraremos
apontar, neste trabalho, os significados, implícitos ou não, da apropriação das terras americanas por
indígenas, portugueses e franceses, as identidades distintas de cada um desses grupos e as estratégias e
táticas que adotaram, tendo o território da Guanabara como epicentro de análise. Com isso,
pretendemos situar o evento da fundação da cidade num marco espaço-temporal mais amplo e, por isso
mesmo, mais rico.

Os indígenas e seus territórios


A época que ficou conhecida como “era dos descobrimentos” foi um momento único na
história da humanidade. Como bem realçou Godinho, ela colocou a questão do “outro” na pauta das
discussões e afirmou a unidade do gênero humano na pluralidade.5 No litoral brasileiro, esse período
reuniu dois grupos bastante díspares: de um lado, uma sociedade européia em adiantado estágio de
desenvolvimento das forças produtivas, integrada à uma divisão internacional do trabalho que se
expandia, inclusive, por suas próprias ações, e de outro sociedades ainda em estágio primitivo, que
pouco haviam ultrapassado o estágio da revolução agrícola.
Na sua maioria, essas comunidades pertenciam ao grande tronco cultural tupi-guarani. Há
hoje um grande debate sobre o local de origem desses grupos e sobre as rotas migratórias que seguiram,
mas concordam os especialistas que teriam vindo do interior do continente para a costa atlântica,
conforme indicaram cronistas do século XVI, e expulsado desse rico nicho ecológico grupos não-tupis
- geralmente denominados de tapuias - que lhes antecederam.6 Ainda que tudo o que diga respeito aos

5Vitorino Magalhães Godinho. Que significa descobrir? In Adauto Novaes (Org.). A descoberta do homem e do mundo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 82.

6Gabriel Soares de Souza. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert,
1851; Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia Limitada e Editora
da Universidade de São Paulo, 1980, pp. 101-106.
movimentos pré-históricos das populações indígenas seja terreno movediço, há também uma certa
concordância que a fixação dos tupis no litoral já durava pelo menos 500 anos quando foi estabelecido
o contato com o europeu.7
No início da colonização, a presença tupi se estendia da foz do Amazonas às imediações da
ilha de Cananéia, no litoral paulista, sendo interrompida, em alguns poucos lugares, pela intromissão de
grupos tapuias que haviam logrado manter territórios à beira-mar. Verdadeiros “senhores do litoral”,
como assim os chamou Maestri, os tupis praticavam uma agricultura de subsistência, em que sobressaía
o cultivo da mandioca e do milho, que era complementada pela caça, pela pesca e pela coleta. A
agricultura realizava-se no contexto de uma divisão familiar, etária e sexual do trabalho, o acesso à
terra era livre e os meios de produção muito simples.8
A despeito dessas aparências de homogeneidade, que se revelava também no uso de um
idioma comum - que os portugueses denominaram, por isso mesmo, de “língua geral” - as comunidades
tupis eram radicalmente segmentadas. Não só assumiam designativos diferentes ao longo da costa
(potiguar, caeté, tupinambá, tamoio, temiminó, tupiniquim, etc), como a filiação a essas “nações” não
lhes dava maior unidade. Como bem indicou Monteiro, “diversas comunidades poderiam manter
relações bastante estreitas, amarradas em redes de parentesco ou de aliança, sem que estas relações,
porém, se caracterizassem enquanto unidades políticas ou territoriais mais expressivas”.9 O que
importava era a vinculação a uma aldeia. Era esta a célula principal da organização social tupi, pois
determinava quem era amigo ou inimigo. Como afirmou Fausto, “[a] inimizade recíproca distinguia
grupos de aldeias aliadas, que operavam segundo uma estrutura do tipo ‘rede’: as aldeias, unidas uma a
uma, formavam um ‘conjunto multicomunitário’, capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos
da aliança e da guerra”.10

7 Carlos Fausto. Fragmentos de história e cultura tupinambá: Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-
histórico. In Manuela Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil. 2ª Edição. São Paulo: Companhia das
Letras/Fapesp/Secretaria Municipal de Cultura, 1998, p. 382.

8 Florestan Fernandes. Antecedentes indígenas: organização social das tribos tupis. In Sérgio Buarque de Holanda (Org.).
História Geral da Civilização Brasileira, Vol. I, A época colonial. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960, p. 75;
Mário Maestri. Os senhores do litoral: Conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasileiro (Século XVI). 2ª
edição. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1995, pp. 11, 44, 49.

9John Manuel Monteiro. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994, pp. 19, 21.

10 Carlos Fausto, Op. Cit., p. 384.


E esses “jogos” eram, na verdade, a razão mesma de existência indígena. Para os tupis, a
guerra era um moto-contínuo e motivada, fundamentalmente, por sede de vingança. Como
descreveram inúmeros cronistas do século XVI, sacrificar e devorar inimigos aprisionados em ações
bélicas constituía uma importante instituição social.11 O ato antropofágico, embora considerado
“bárbaro” ou “desumano” pelas sensibilidades européias, cumpria uma importante função nas
sociedades tupis, pois vingava a morte anterior, em idênticas condições, de guerreiros da aldeia, e
resgatava a honra da comunidade. Por sua vez, o sacrifício do inimigo insuflava o desejo de vingança
por parte de seu grupo, dando início ao próximo ciclo de beligerância e vindita.12
Vivendo ainda num estágio civilizatório pré-ético, como lembrou Maestri, a concepção de
solidariedade humana dos tupis se estruturava de forma bastante diferente daquela do europeu.
Desconhecendo o conceito “perdão”, conforme indicou Montaigne, não fazia sentido poupar a vida de
um inimigo aprisionado em guerra, e nem ele aceitaria tal decisão, pois somente morrendo de forma
heróica conseguiria atingir a buscada e idílica “terra sem mal”. Isto explica, ademais, porque os
prisioneiros respondiam com desdém às provocações dos que iriam matá-lo e devorá-lo, e porque
rejeitavam as tentativas dos europeus de salvar-lhes a vida; se não fossem abatidos, sendo então
trocados com os forasteiros por mercadorias, o ciclo da vindita seria interrompido e seus parentes e
amigos não teriam a oportunidade ou a obrigação de vingar-lhes a morte no futuro.13
O estágio de civilização em que se encontravam explica também por que, apesar da guerra
contínua e do constante aprisionamento de inimigos, inexistia entre os tupis a escravidão. O cativeiro é
um fenômeno recente na história da humanidade, pois pressupõe um desenvolvimento mínimo das
forças produtivas e das relações sociais de produção. Em outras palavras, o ser humano só passou a
escravizar seu semelhante quando pôde apropriar-se de parte dos produtos de seu trabalho, ou seja,
quando o nível de desenvolvimento da sociedade determinou que o cativo devesse produzir, de forma

11 Cf. Florestan Fernandes, A organização social dos Tupinambá. São Paulo, Hucitec, 1989 [original de 1949]; _____. A
função social da guerra na sociedade tupinambá. 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1970.

12 Mário Maestri, Op. Cit., p. 66. Na realidade, como destacaram Cunha e Castro, mais do que um ato de vingança, as
execuções geravam também uma memória da vingança, que era fundamental para a continuidade dos grupos tupinambás.
Cf. Manuela L. Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro, “Venganza y temporalidad: los Tupinamba”. In Roberto
Pineda-Camacho e Beatriz Alzate-Angel (Orgs), Los meandros de la historia en la Amazonia. Bogotá: Universidad de los
Andes, 1985. Citado por Maria Regina Celestino de Almeida. Os índios aldeados no Rio de Janeiro colonial - Novos
súditos cristãos do Império Português. Campinas, Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2000 (Tese de
doutorado), p. 32.

13 Mário Maestri, Op. Cit., p. 53; Frank Lestringant. Le cannibale: grandeur et décadence. Paris: Perrin, 1994, p. 111.
sistemática, o necessário para sustentar-se e um excedente para seu senhor. Não era este o caso das
sociedades tupis. Existiam cativos, mas eram para ser abatidos.14
Este choque de idéias de mundo, essa divergência radical de organização social, explicam
ainda duas outras coisas. Em primeiro lugar, por que a relação do indígena com o português passou a
ser conflituosa apenas quando a escravização do autóctone teve início. Em segundo, por que os
indígenas, mesmo desconfiando das intenções dos europeus, acabavam aliando-se com eles contra
outros europeus. Com efeito, enquanto não houve tentativa de escravização do indígena por parte dos
europeus, as relações com os tupis foram pouco conflituosas. É o que demonstrou Marchant, que
dividiu a história dos contatos entre portugueses e indígenas no século XVI em dois momentos
distintos: no primeiro, que caracterizou a fase anterior à colonização, predominou o escambo, a troca
voluntária, proveitosa para uns e para outros; já o segundo teve início na década de 1530, quando o
estabelecimento dos primeiros engenhos de açúcar pelos portugueses determinou o controle não apenas
da terra como da força de trabalho americana, atiçando então a guerra euro-indígena.15
Da primeira fase, temos poucos relatos. Sabemos, todavia, que sem a participação decisiva do
indígena o escambo não poderia acontecer. As feitorias estabelecidas pelos portugueses apenas
estocavam o cobiçado pau-brasil, cabendo aos naturais do país todo o trabalho de corte e de transporte
da madeira tintorial para esses locais, conforme imortalizado no atlas Lopo Homem-Reinéis. Tanto
esforço, por sua vez, só se justificava porque o escambo era igualmente vantajoso para os indígenas,
que obtinham com ele uma série de benefícios. Não eram apenas “bugigangas” que os índios recebiam
por seu trabalho, conforme asseguram descrições eurocêntricas do escambo aceitas acriticamente por
inúmeros autores. Conforme bem afirmou Monteiro, o escambo só ganha sentido quando se remete à
dinâmica interna das sociedades indígenas. Se para os europeus as mercadorias que forneciam eram
apenas valores de troca, para os indígenas elas não apenas tinham grande carga simbólica, como eram,
sobretudo, valores de uso que facilitavam a vida.16

14 Mário Maestri, Op. Cit., pp. 101-102; John Manuel Monteiro, Op. Cit., p. 28. A perspectiva da guerra vista pela ótica
indígena explica também por que mais tarde, mesmo acatando as prédicas jesuítas de que deviam abandonar a prática de
comer carne humana, muitos tupiniquins relutavam em abrir mão do sacrifício ritual no terreiro da aldeia. Também os
franceses relataram quão difícil era para eles convencer os tamoios a vender-lhes cativos aprisionados em guerra.

15 Alexander Marchant. Do escambo à escravidão: as relações econômicas de portugueses e índios na colonização do


Brasil, 1500-1580. 2ª edição. São Paulo e Brasília: Companhia Editora Nacional/Instituto Nacional do Livro, 1980 [1942];
Mário Maestri, Op. Cit., pp. 12-13. Florestan Fernandes, falando da transição de um momento ao outro, diz que “passamos,
então, do período de tensões encobertas para a era do conflito social com os índios”. Cf. Florestan Fernandes.
Antecedentes indígenas .... Op. Cit., p. 83.

16John Manuel Monteiro, Op. Cit., p. 32; Mário Maestri, Op. Cit., p. 83. Ihering demonstrou, por exemplo, que o corte de
uma árvore de madeira resistente, de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro na altura do corte, exigia do indígena
Em outras palavras, para os indígenas, os objetos escambados com os europeus eram objetos
úteis que auxiliavam na pesca, na caça, na derrubada de matas, na limpeza dos terrenos, na fabricação
de utensílios. Por elevarem a produtividade das atividades econômicas, “as ferramentas facilitavam a
produção de bens de subsistência e aumentavam a esperança de vida média e o crescimento
demográfico destas comunidades”. Por essa razão, ao incorporá-las em suas práticas cotidianas, os
indígenas acabaram criando necessidades que faziam-nos buscar contato com os mercadores europeus.
Se de início tratava-se de uma relação não antagônica, a verdade é que o escambo assumiu tamanha
importância para as comunidades indígenas que estas continuaram a realizá-lo mesmo depois que os
termos de troca mudaram, isto é, depois que os europeus, além do pau-brasil, passaram a demandar
também a propriedade da força de trabalho do nativo do país.17
Quanto à segunda fase, os relatos são inúmeros. Para ser rentável, a produção de açúcar exigia
uma multiplicidade de braços e árduas jornadas de trabalho, que a grande maioria dos colonos
portugueses não tinha condição ou vontade de fornecer. Ademais, Portugal não possuía um excedente
demográfico que fosse capaz de sustentar, ao mesmo tempo, a voracidade de homens da produção
açucareira e a necessidade de braços da agricultura metropolitana. Como a opção pela alta
remuneração da mão-de-obra não se colocava, pois inviabilizaria a produção mercantil do açúcar,
partiu-se então para a escravização forçada do nativo do país.18
Em algumas capitanias, as tentativas de escravização foram diretas. Todavia em outras, como
foi o caso de São Vicente, os portugueses souberam tirar partido das rivalidades indígenas, e passaram
a fazer alianças com alguns grupos, ao mesmo tempo em que escravizavam os inimigos de seus aliados.
Conseqüentemente, acabaram por se inserir nas estruturas de cooperação e rivalidade que moldavam a
organização social das nações indígenas, e muito especialmente no complexo quadro de respeitos,
ódios e vinganças que dava sentido às sociedades tupis. Assim, ao fazer aliança com os tupiniquins de
São Vicente, e ao apoiar a investida destes sobre os rivais tamoios, os portugueses conseguiram obter
escravos para suas plantações, mas transformaram-se imediatamente em inimigos mortais desta última
nação. A reação foi imediata, com os tamoios passando a atacar sistematicamente os núcleos de
povoamento da capitania vicentina e colocando em xeque a empresa colonial lusitana na região.

quatro horas de trabalho com um machado de pedra de 500 gramas; a mesma tarefa podia ser realizada em meia hora se o
machado fosse de ferro (citado por Maestri, Op. Cit., p. 45).

17 Mário Maestri, Op. Cit., p. 84.

18 Mário Maestri, Op. Cit., pp. 93, 98.


Dessa situação souberam muito bem aproveitar-se os franceses. Visando assegurar o escambo
que já faziam com os tamoios, os gauleses aguçaram a animosidade destes contra os lusos, fornecendo-
lhes ferramentas e armas, e participando mesmo de alguns “saltos” aos núcleos de povoamento
vicentino. É importante, entretanto, que se reconheça que não foram apenas os franceses que,
sabidamente, aproveitaram-se das rivalidades para colocar um pé na terra. Para os tamoios, a aliança
com os franceses também era providencial, pois garantia-lhes apoio logístico importante, seja para
proteger suas aldeias dos tupiniquins, seja para guerreá-los e, por extensão, também os portugueses.
Na região da baía de Guanabara, o apoio gaulês foi também importante para que os tamoios se
impusessem sobre outra nação indígena aliada dos lusos, os temiminós, que acabaram sendo vencidos e
expulsos daí em 1555, poucos meses antes de a expedição comandada por Nicolas Durand de
Villegagnon chegar ao local com a intenção de aí estabelecer uma colônia permanente de povoamento.

Portugueses e franceses na disputa pelo comércio tropical


A questão da liberdade dos mares gerou um série de conflitos entre os países europeus durante
o século XVI. De um lado, apegados à doutrina de mare clausum contida no Tratado de Tordesilhas,
Portugal e Espanha exigiam a exclusividade do comércio nas águas oceânicas. Os países excluídos
daquele tratado defendiam, por sua vez, uma política de mare liberum, isto é, de liberdade de
navegação. Na vanguarda dessa última posição estava a França, que se recusava terminantemente a
aceitar o monopólio ibérico do Mar Oceano.
Apesar dos esforços de Portugal para manter secretos os portulanos que levavam à terra do
Brasil, oficialmente apropriada para coroa lusitana por Pedro Álvares Cabral em 1500, já em 1503 os
franceses partiam de Honfleur em direção à América do Sul. O feito deveu-se a Binot Paulmier de
Gonneville, comerciante normando que logrou subornar dois pilotos lusos já conhecedores da rota e
aparelhou em seguida uma caravela, abarrotando-a de mercadorias destinadas ao comércio com os
indígenas. Ao final de uma viagem bastante tumultuada, a L'Espoir foi atacada por piratas na costa
bretã e acabou soçobrando, levando consigo toda a mercadoria trazida daquelas terras distantes.
Embora a expedição tenha se revelado trágica para os interesses de Gonneville, ela acabou trazendo
enormes ganhos para os negociantes e armadores franceses, pois lhes abriu definitivamente a rota do
Atlântico Sul.19 Já no ano seguinte, novas embarcações francesas navegavam a costa brasileira, mas
desta vez foram violentamente repelidas por caravelas portuguesas. Começaram aí as hostilidades

19 A viagem de Gonneville consta de uma Relação, que foi originalmente exarada pelo Almirantado de França em 19 de
junho de 1505, e está reproduzida no excelente estudo de Leyla Perrone-Moisés, Vinte luas. Viagem de Paulmier de
Gonneville ao Brasil: 1503-1505. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 15-29.
entre lusos e gauleses no litoral americano, que iriam perdurar por todo o século XVI e teriam seu
maior ponto de tensão nos embates que travaram pelo domínio do rio de Janeiro, toponímia que os
portugueses haviam dado à baía de Guanabara em 1502, por ter sido ela avistada no primeiro dia
daquele ano e confundida com a foz de um grande rio.
As pretensões francesas de livre navegação no Atlântico eram inaceitáveis para Portugal. O
argumento luso era que as novas terras haviam sido conquistadas com elevadas despesas materiais e
com muita perda de vidas, num processo que já vinha se arrastando há um século e que estava todo
fundado em direito.20 Os castelhanos, zelosos de suas novas conquistas de além-mar, defendiam a
mesma tese. Nenhum dos dois países conseguia, entretanto, alterar a posição da França. Em citação
que se tornou clássica, Francisco I respondeu às impertinentes observações de um representante do
soberano espanhol, solicitando que lhe fosse mostrada a cláusula do testamento de Adão que dividia o
Novo Mundo entre Carlos V e o rei de Portugal, excluindo-o da sucessão.21
Como os armadores franceses ignoravam as pretensões ibéricas e continuavam a enviar navios
ao litoral brasileiro, os confrontos passaram a ser freqüentes, com os lusos seguidamente destruindo
embarcações gaulesas e confiscando suas cargas. Reagindo sob pressão de seus negociantes, o governo
francês revidava emitindo cartas de marca que autorizavam o corso contra as embarcações portuguesas
a título de represália.22 A situação se agravou em 1525, quando negociantes da cidade de Honfleur
criaram uma aliança para incrementar o tráfico com o Brasil.23 Para coibir o que considerava ser agora

20 Paulo Merêa. A solução tradicional da colonização do Brasil. In Carlos Malheiro Dias et. al. História da Colonização
Portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1924, Vol. III, p.185. Nas palavras do próprio rei de Portugal: “Os
mares que todos devem e podem navegar são aqueles que sempre foram sabidos de todos e comuns a todos, mas os outros,
que nunca foram sabidos nem parecia que se podiam navegar e foram descobertos com tão grandes trabalhos por mim,
esses não”. Ver Instruções dadas por D. João III a Rui Fernandes, novo embaixador na França, 2 de maio de 1534. Apud
Paulo Merêa, Op. Cit., p. 187.

21“Est-ce déclarer la guerre et contrevenir à mon amitié avec Sa Magesté que d’envoyer la-bàs mes navires? Le soleil luit
pour moi comme pour les autres: je voudrais bien voir la clause du testament d’Adam qui m’exclut du partage du monde”.
Carta do Cardeal de Toledo a Carlos V, de 27 de janeiro de 1541. Apud Carlos Malheiro Dias et al., Op. Cit., Vol. III, pp.
63-64).

22 As cartas de marca, ou cartas de corso, eram autorizações que os soberanos concediam a particulares, nas guerras
marítimas, concedendo-lhes o direito de represália contra o inimigo, para se cobrarem de danos atribuídos à ação deste.
Expedidas a partir do século XVI, as cartas de marca perduraram até 1856, quando foi abolido o corso pelo Congresso de
Paris. Cf. Antonio Camillo de Oliveira. Negociações diplomáticas entre as cortes de Lisboa e Paris, decorrentes da
presença dos franceses no Rio de Janeiro. In “Curso de História do Rio de Janeiro”, Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Vol. 288, jul-set 1970, p. 10. Muitas dessas cartas de autorização de corso perderam-se. A mais
antiga de que se tem notícia é aquela concedia a Jean Terrien, de Dieppe. Ver Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 93.

23 Charles Breard e Paul Breard. Documents relatifs à la marine normande et à ses armements aux XVI et XVII siècles pour
le Canada, l’Afrique, les Antilles, le Brésil et les Indes. Reproduzido em parte como “Navegação dos normandos para o
Brasil” em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 53, Parte I, 1890, 309-325. Em sua obra, Crespin
uma verdadeira audácia, D. João III resolveu tomar uma atitude mais enérgica e, em 1526, no bojo de
uma série de medidas adotadas contra os franceses, determinou o envio de uma expedição guarda-
costas ao Brasil. Composta de uma nau e cinco caravelas, e sob o comando de Cristóvão Jacques, essa
expedição acabou encontrando embarcações bretãs na costa baiana, que tiveram suas cargas
confiscadas; mais de 300 franceses foram executados ou feitos prisioneiros. As tensões crescendo, a
resposta gaulesa veio logo a seguir: com o objetivo de permitir que os negociantes arruinados pela ação
portuguesa pudessem compensar seus prejuízos, Francisco I cedeu aos argumentos de seus armadores e
concedeu-lhes nova carta de marca, autorizando a prática do corso contra os navios lusos.24
Em janeiro de 1530 já excedia a 300 o número de naus portuguesas tomadas pelos
franceses.25 Com a presença francesa crescendo no litoral brasileiro, logo ficou claro ao governo luso
que, se quisesse manter sua soberania sobre as terras que julgava serem suas de direito, precisava
ocupá-las de fato. A continuar a geoestratégia seguida até então, que pouca importância dava à fixação
permanente no Brasil, sua perda seria apenas uma questão de tempo. A decisão de colonizar as terras
americanas foi então tomada, optando-se inicialmente pelo sistema de donatarias, que tão bons
resultados havia produzido nas ilhas portuguesas do Atlântico.
Iniciado com a fundação da vila de São Vicente por Martim Afonso de Souza em 1532, a que
se seguiu o estabelecimento da donataria de Pernambuco e das demais “capitanias do norte” logo a
seguir, o esforço português de colonização não impediu que os franceses continuassem a freqüentar a
costa brasileira para traficar com os indígenas. Embora acordos diplomáticos tenham sido assinados
pelos dois países durante a década de 1530, um dos quais instituindo um tribunal de presas, a verdade é
que essas iniciativas, bastante criticadas pelos negociantes e armadores franceses, acabaram sendo
bastante inócuas.
A partir da década de 1540 a crise com os franceses atingiu novo patamar. Apoiados por uma
ordem régia de 1543, que pressionaram por ver assinada e que defendia novamente a liberdade dos
mares, os comerciantes normandos e bretões intensificaram bastante suas atividades no Novo Mundo,
diversificando inclusive seu teatro de operações, que incluía agora territórios pretensamente espanhóis

diz entretanto que eram negociantes da cidade de Harfleur, vizinha a Honfleur. Ver Jean Crespin, Histoire des martyrs.
Genebra: s/e, 1597, p. 401. Sabe-se com certeza que Jean Ango, célebre armador normando e beneficiário de uma carta de
marca em 1530, já enviava seus navios ao Brasil bem antes de 1526. Cf. Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 66, 105.

24 Francisco Adolfo de Varnhagen, “As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brazil”, in Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 65, Parte I, 1902, p. 432; _____. História Geral do Brasil. 10ª edição integral.
Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia Ltda e Editora da Universidade de São Paulo, Vol. 1, Tomo I, 1981, Cap. 7;
Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 93.

25 Francisco Adolfo de Varnhagen. As primeiras negociações ..., Op. Cit., p. 429.


situados no hemisfério norte. O aumento da escala de operações foi também evidente. Sabe-se, por
exemplo, que uma frota de 28 navios partiu do Havre em abril de 1546 com destino ao Brasil. Em
outra instância, Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, queixou-se em carta amarga que as
constantes ameaças dos franceses não lhe permitiam penetrar nos sertões à busca de ouro.26
A atividade de corso também se multiplicou: entre 1549 e 1550 foram tomadas mais de 220
embarcações, muitas das quais ao longo do litoral português.27 Na costa brasileira, a penetração
francesa também se tornou cada dia mais ousada, notadamente nas áreas onde a presença portuguesa
era pouco significativa ou inexistente. Dentre essas estava todo o litoral compreendido entre as vilas
do Espírito Santo e de São Vicente. Há indicações precisas, por exemplo, que no biênio 1547-1548
estiveram nessa região nada menos do que 14 naus vindas da França, comerciando pau-brasil, pimenta,
algodão, bugios, papagaios e outros produtos com os tamoios.28
A presença de franceses na região do cabo Frio e da baía de Guanabara logo colocou em
situação delicada a sobrevivência dos núcleos de povoamento da Capitania de São Vicente. Cada vez
mais isolados das outras áreas de povoamento luso, vendo o apresamento e destruição de navios
portugueses se multiplicar junto ao seu litoral, os vicentinos começaram então a emitir apelos
dramáticos a D. João III. A permanência em solo de franceses também tornou-se maior. Até então, e
objetivando talvez diminuir os conflitos com Portugal, os negociantes normandos e bretões haviam
utilizado a tática de realizar o escambo com os indígenas com o apoio de intérpretes (ou línguas, como
então eram chamados), que seguiam em cada expedição, recolhendo-se depois aos portos de origem
sem deixar vestígios. Distinguiam-se portanto dos portugueses que, na fase pré-colonizadora, optaram
também pelo estabelecimento de feitorias em alguns pontos do litoral, sobretudo no litoral de
Pernambuco, o que exigia a fixação de intermediários (o feitor e seus ajudantes) na terra. Quando foi
estabelecido o governo geral, em 1549, os franceses já haviam entretanto mudado de tática: deixavam
indivíduos na terra, sobretudo os que serviam de intérpretes, que ficavam então responsáveis por

26 A. G. de Araújo Jorge. O Brasil e a França no século XVI (Um capítulo da história diplomática do Brasil colonial).
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 77, Parte II, 1914, pp. 212-213; Paul Gaffarel, Op. Cit., p.
110.

27 Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. III. 2ª edição. Lisboa: Editorial Verbo, 1980, p. 48. Este autor
considera, entretanto, que “os ataques feitos à navegação mercante nada tinham a ver com o estado de paz que os dois
monarcas pretendiam manter; o conflito de presas inseria-se num clima privado, de querela e represália entre capitães e
armadores”. Op. Cit., p. 49.

28Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no Século XVI. Lisboa: Comissão Nacional das Comemorações do IV
Centenário do Rio de Janeiro, 1965, Vol. 1, p. 46.
preparar com os indígenas os carregamentos de pau brasil, pimenta e outros produtos da terra que
seriam embarcados para a França quando os navios chegassem novamente.29
Preocupada com a crescente presença francesa na Guanabara, resolveu então a Coroa
portuguesa ordenar que fosse ali construída uma fortificação. Esta ordem, entretanto, não foi cumprida.
Embora tenha estado no rio de Janeiro em dezembro de 1552, o governador-geral Tomé de Souza
alegaria que não pudera erguer a fortaleza "por ter pouca gente e não me parecer siso desarmar-me por
tantas partes”. Sugeria, entretanto, que o que deveria ser estabelecido ali era “... uma povoação
honrada e boa”.30 Segundo o governador, a fixação permanente na Guanabara, situada entre São
Vicente e o Espírito Santo, permitiria o controle de toda a porção sul dos territórios portugueses. Isso,
entretanto, não seria tarefa fácil pois exigia que se conquistasse primeiro a região aos tamoios, o que
implicava em despesas extraordinárias que a Coroa não pretendia fazer àquele momento. Por essa
razão, as recomendações do governador-geral não tiveram eco imediato em Lisboa.
Conseqüentemente, os franceses continuaram a fincar raízes na região da Guanabara e acabaram por
fixar-se aí permanentemente.

Um território anti-lusitano em formação


Até o início da colonização não há registro de conflito entre portugueses e indígenas na região
da Guanabara. O roteiro de Francisco Albo, que aí esteve com Fernão de Magalhães em 1519, indica
que: “en la dicha baya hay buena gente y mucha y van desnudos y contratan con ançuelos espejos y
cascabeles [guizos] por cosas de comer ...”.31 Já Pero Lopes de Souza, ao descrever a estadia de três
meses da esquadra comandada por seu irmão em 1531, informou que “a gente deste Rio é como a da
baía de Todos os Santos, se não quanto é mais gentil gente”.32

29 Carta de Tomé de Souza a D. João III. Salvador, 18 de julho de 1551. In Carlos Malheiro Dias et al. Op. Cit., Vol. III,
pp. 361-362, reproduzida em Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no século XVI. Op. Cit., Vol. II, pp. 23-24; Jean
de Léry. Viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1961, p. 43.

30Carta de Tomé de Souza a D. João III. Salvador, 1 de junho de 1553. In Carlos Malheiro Dias et al. Op. Cit., vol. III,
pp. 364-366. Também reproduzida em Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no século XVI, Op. Cit., Vol. II, pp.
25-29.

31 Apud Rolando A. Laguarda Trias. Rio de Janeiro: historia de sus denominaciones. Lisboa: Junta de Investigações do
Ultramar (Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, Secção de Lisboa, LXVI), 1972, p. 13.

32Relação da viagem e navegação de Pero Lopes de Souza. In Carlos Malheiro Dias et. al., Op. Cit., 1924, Vol. III, p.144.
Transcrita também em Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no século XVI, Op. Cit., Vol. II, pp. 13-14.
A transição do regime de escambo para o regime de produção, com a implantação da agro-
indústria canavieira em São Vicente, transformou radicalmente essa relação amistosa. Segundo relatou
Hans Staden, que permaneceu prisioneiro dos tamoios por cerca de um ano, a inimizade luso-tamoia
teria sido motivada pelo comportamento dos portugueses que, com o pretexto de fazerem comércio
com os indígenas, lograram atraí-los às suas embarcações e depois “os assaltaram, amarraram,
conduziram e entregaram aos tupiniquins, pelos quais foram então mortos e devorados”. Anchieta
confirmaria essa versão mais tarde, dizendo que os tamoios, “dantes muito amigos dos Portugueses se
levantaram contra eles por grandes agravos que lhe fizeram, e receberam os Franceses, dos quais
nenhum agravo receberam”.33
Apesar da inimizade luso-tamoia já estar declarada desde a década de 1540, a consolidação de
um território verdadeiramente hostil aos portugueses junto a São Vicente demorou um pouco mais para
acontecer, pois permaneciam na Guanabara os aliados temiminós, também conhecidos como maracajás
ou índios do Gato.34 Todavia, há muito que a região deixara de ser um local tranqüilo e de “gentil
gente” para os lusos. Segundo carta de um jesuíta anônimo, que esteve com o Governador Tomé de
Souza na Guanabara em dezembro de 1552, a tripulação não havia conseguido desembarcar “porque os
Índios [tamoios] estão mal com os brancos [portugueses]”. Mesmo assim, continua ele, os quatro
jesuítas que iam na frota haviam logrado ir “rio acima a umas Aldeias de uns Índios, que são amigos
dos brancos”, provavelmente localizadas na ilha que os franceses denominariam, logo a seguir, de “île
des margayatz” [ilha dos maracajás], e que o mapa de Luiz Teixeira, de ca. 1574, indica ser a “ilha do
Gato”, atual “ilha do Governador”.35
Confinados, ao que parece, em sua ilha, os temiminós não agüentaram por muito tempo a
pressão dos tamoios. Outra documentação jesuítica informa que, com suas aldeias constantemente

33 Hans Staden. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia e Editora da Universidade de São
Paulo, 1974, p.93; José de Anchieta. Informação do Brasil e de suas capitanias - 1584. In Cartas: informações, fragmentos
históricos e sermões. Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 318.

34 Partindo da afirmação de Varnhagen de que os maracajás se autodenominavam temiminós (isto é, netos) por serem
descendentes dos tamoios, Maria Regina Celestino de Almeida concluiu que esse grupo (que ela designa de temininó)
constitui um bom exemplo do que John M. Monteiro chamou de “etnicidade construída no contexto da colonização”, ou
seja, um subgrupo tupinambá (e tamoio), que quase assumiu status de etnia nos registros históricos em decorrência das
alianças feitas com os portugueses, produtores desses registros. Cf. Almeida, Op. Cit., pp. 46-47, 53.

35 John Manuel Monteiro, Op. Cit., p. 30; Baltazar da Silva Lisboa, Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Na Typ.
Imp. e Const. de Seignot-Plancher e Cia, Tomo I, 1834, p. 110; Carta de São Vicente; 10 de março de 1553; publicada em
Serafim Leite, Nóbrega e a fundação de São Paulo. Lisboa, 1953, pp. 13-19. Apud Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de
Janeiro no século XVI, Op. Cit., Vol. 1, p. 49. Segundo Serafim Leite, Nóbrega realizou nessa ocasião “a primeira
catequese dos Jesuítas no Rio de Janeiro...”. Ver Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa e Rio
de Janeiro: Livraria Portugália/Civilização Brasileira/Instituto Nacional do Livro, Vol. 1, 1938, pp. 362-363.
sitiadas, já há algum tempo que o “gentio do gato” solicitava ajuda aos portugueses do Espírito Santo,
sem conseguir obtê-la. Em abril de 1555, entretanto, logrando o chefe Maracajá-Guaçú sair da
Guanabara e chegar à vila de Vitória, na capitania do Espírito Santo, acedeu o donatário aos apelos
daquele principal. Todavia, ao invés de fornecer-lhe apoio material, enviou quatro navios para recolher
sua gente e transportá-la para aquela capitania.36 Ao chegar, portanto, ao rio de Janeiro sete meses
depois, Villegagnon já encontraria formado um extenso e compacto território tamoio, que se estendia
do cabo Frio até a ilha de São Sebastião. Por razões desconhecidas, uma única aldeia temiminó deixou
de ser evacuada pelo donatário do Espírito Santo, e acabou por fornecer bom número de escravos para
a construção do forte francês.
A formação desse território totalmente hostil nas vizinhanças de São Vicente atuou como um
estopim nas hostes portuguesas. Como se não bastasse a crescente contestação indígena à soberania
lusa na Guanabara, havia agora a possibilidade de incrustação aí de uma colônia francesa e, segundo
diziam alguns informes, protestante. Tal situação tornou-se insuportável, não apenas para a Coroa, que
via seus domínios serem agora abertamente contestados pelos franceses, como para a Companhia de
Jesus. Criada com o objetivo precípuo de expandir a fé católica, de conter a expansão do
protestantismo e de recuperar antigas áreas perdidas para a nova religião, a ordem jesuítica constituiu-
se no exemplo mais significativo do movimento que ficou conhecido como “contra-reforma”. Como
bem lembrou Serrão, “não se tratava de uma ordem religiosa, mas de uma ‘milícia’ para defesa e
adestramento da fé e o combate à heresia”.37 Braço não armado das conquistas militares portuguesas,
soldados da fé católica, treinados para combater as idéias daqueles que reconheciam como “hereges,
luteros e calvinos”, os jesuítas viram a instalação de uma colônia financiada por huguenotes no rio de
Janeiro como uma ameaça direta a toda a sua ação missionária no Brasil. De Lisboa e de outras partes
da colônia, passaram então a incentivar a retomada do controle luso da Guanabara e forneceram o
apoio ideológico necessário à ação bélica portuguesa.
O impasse era claro: o projeto colonizador e missionário português só poderia se afirmar
plenamente se os limites meridionais das conquistas fossem garantidos e se todos os núcleos de
povoamento tivessem garantias mínimas de sobrevivência frente às nações indígenas inimigas. Como
assinalou Malheiro Dias, defendendo a posição lusa, só havia agora um caminho a tomar: a autoridade

36 Padre Serafim Leite, História da Companhia ..., Op. Cit., Vol. 1, p. 234.

37 Joaquim Veríssimo Serrão. História de Portugal, Op. Cit., Vol. III, p. 344.
de Portugal não poderia mais depender “dos títulos precários do descobrimento e da repartição de
Tordesilhas, referendada pela Cúria, mas da posse efetiva, manu militari”.38

A França Antártica: catolicismo e protestantismo em conflito nos trópicos 39


Em meados do século XVI, a França vivia um período de crescente tensão religiosa. Com o
protestantismo multiplicando adesões no território, e ousando penetrar, inclusive, no seio da família
real, “a França parecia predestinada à Reforma”.40 Havia entretanto um grande obstáculo a superar.
Surgida justamente para estancar o avanço das idéias luteranas, e se possível fazer retornar ao rebanho
papal aqueles que haviam-no abandonado, a Contra-Reforma também se fortalecia no país. Os embates
entre católicos e protestantes tornaram-se então inevitáveis. Iniciadas ainda no reinado de Francisco I,
as desavenças entre os dois grupos cristãos se acirraram durante o governo de Henrique II e se
estenderam pelos curtos reinados dos filhos deste último, Francisco II, Carlos IX e Henrique III,
últimos reis da Casa de Valois. Inicialmente centradas nas questões ideológicas, as desavenças logo
tomaram um viés político, opondo os interesses dos Guises católicos àqueles das casas de Bourbon e de
Châtillon, que se fortaleciam com o apoio protestante. Atingiram o seu climax em 24 de agosto de
1572, no tristemente célebre “massacre da noite de São Bartolomeu”.41 Dentre os milhares de
protestantes assassinados naquela noite estava Gaspar de Coligny, Almirante da França, que deixou seu
nome eternamente gravado na história do Rio de Janeiro por ter sido o viabilizador do sonho de Nicolas
Durand de Villegagnon, cavaleiro de Malta, de estabelecer aí uma colônia francesa.
Ao que tudo indica, o sonho americano de Villegagnon teve início em 1553. Àquela época, já
era figura importante pois notabilizara-se por diversas ações guerreiras e diplomáticas realizadas no
interesse da coroa francesa. Nomeado vice-almirante da Bretanha, incompatibilizara-se, entretanto,
com o capitão da fortaleza de Brest, onde servia, e decidira partir dali. Foi então que pensou mais
seriamente nas palavras de um comissário com quem travara contato, que lhe relatara quão
maravilhosos eram o clima e a fertilidade de uma certa “terra do Brasil”, da qual voltara há pouco

38 Carlos Malheiro Dias, O regimen feudal das donatárias. In Carlos Malheiro Dias et al., Op. Cit., Vol. III, p. 220.

39Este ítem reproduz algumas idéias já discutidas em Mauricio A. Abreu. La France Antarctique, ou le Brésil français du
XVIe siècle. In Jean-Robert Pitte e André-Louis Sanguin (Orgs.), Géographie et liberté. Mélanges en hommage à Paul
Claval. Paris: L'Harmattan, 1999, pp. 201-212.

40 Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 17.

41Cf. Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson. Reforma. O cristianismo e o mundo, 1500-2000. Rio de Janeiro:
Record, 1997, p. 317.
tempo. Começou então a alimentar a idéia de abandonar o país e estabelecer-se naquela terra distante.
O objetivo era claro: fixar-se permanentemente em terras americanas e garantir uma parcela do
mercado de produtos tropicais para a França.42
Um projeto de tal envergadura não poderia se materializar sem que se garantisse um aporte
considerável de recursos. Os custos eram altos, bem superiores àqueles que os armadores bretões e
normandos, grandes interessados nessa empresa, estavam dispostos a pagar. Portanto, logo ficou claro
a Villegagnon que, sem o apoio da coroa, seu projeto não iria em frente. Era necessário convencer o rei
a apoiar o empreendimento, e essa foi a tarefa que coube a Coligny, que desfrutava então de inegável
prestígio frente ao soberano. Em 26 de março de 1554 o objetivo foi alcançado, tendo Henrique II
ordenado que fossem dados a Villegagnon dois bons navios, aparelhados e providos de artilharia, além
de dez mil libras tornesas para as despesas de viagem. Para evitar conflito aberto com Portugal, a
autorização régia omitia o objetivo do empenho financeiro, informando apenas que destinava-se “a
certa empresa que não queremos de outro modo aqui especificar nem declarar”. Assegurado o
patrocínio real, não foi difícil conseguir o apoio de alguns armadores normandos e bretões, que viram
com bons olhos a proteção que a Coroa prestava agora a um negócio que, até então, era feito sob sua
total conta e risco.43
A expedição partiu da Normandia a 12 de julho, com cerca de 600 homens, grande parte dos
quais arrebanhada nas prisões do Havre e de Rouen.44 Como acontecia com todas as viagens, a
travessia oceânica foi longa e cheia de contratempos.45 Lograram, entretanto, chegar à baía de
Guanabara em 10 de novembro. Para sede da colônia foi escolhida uma ilha então desabitada, chamada
de Serigipe pelos indígenas,46 que André Thevet, monge franciscano e futuro cosmógrafo real,
descreveu como “muito aprazível, recoberta de enorme quantidade de palmeiras, cedros, paus-brasís e

42 Jean Crespin. Histoire des martyrs. Genebra: s/e, 1597, p. 399v.

43 Archives Nationales de France, Ancien Fonds Français, 5928. Cf. Arthur Heulhard. Villegagnon, roi d’Amérique. Un
homme de mer au XVIe. siècle (1510-1572). Paris: Ernest Leroux, 1897, pp. 98-99; Antonio Camillo de Oliveira, Op. Cit.,
p. 20; Jean de Léry, Op. Cit., p. 50; Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 166.

44 Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 173; Arthur Heulhard, Op. Cit., p. 100.

45 Cf. Nicolas Barré. Sur la navigation du Chevalier de Villegagnon es terres de l’Amerique oultre l’œquinoctial, jusques
soubz le tropique de Capricorne; contenant sommairement les fortunes encourues en ce voyage avec les meurs et façons de
vivre des sauvages du païs: envoyées par un des gens du dit Seigneur. Paris: Martin Le Jeune, à l’enseigne Saint-Cristophe,
devant le Collège de Cambray, 1557.

46Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil. Op. Cit., Vol. 1, p. 286 e nota 34, de Rodolfo Garcia, na
mesma página.
arbustos aromáticos, verdejantes durante todo o ano”. Em homenagem ao Almirante, deu-se à ilha o
nome de Coligny, que batizaria também o forte que nela seria construído. (também citar Léry nesta
nota) 47 Conhecida como França Antártica, essa tentativa de fixação gaulesa no Brasil do século XVI
foi entretanto sacudida por inúmeras divergências internas, de caráter religioso, que debilitaram
bastante o projeto inicial e contribuíram para a sua derrocada final, ocorrida em 1560.

As dissensões religiosas começaram em março de 1557, quando chegaram à Guanabara


diversos protestantes calvinistas. Liderados por Philippe de Corguilleray, senhor Du Pont e amigo
pessoal de Coligny, os homens enviados por Calvino foram recebidos pelo cavaleiro de Malta, segundo
nos informam Léry e Crespin, com palavras e atitudes favoráveis à igreja reformada. Vinham com eles
dois ministros dessa nova religião: Pierre Richier e Guillaume Chartier, ambos “de sã e sólida
doutrina”.48 Passada a primeira semana, os recém-chegados começaram a enfrentar problemas na ilha.
Por questões de base canônica, indispuseram-se com o comandante, que não aprovava certas
interpretações genebrinas das escrituras e nem as novidades que introduziam nos serviços religiosos.
Desagradaram também à maior parte dos habitantes da ilha, que era constituída de católicos.49 Por
questões doutrinárias, chocaram-se igualmente com Jean Cointa, senhor de Bolés e admirador do
protestantismo, que chegara na mesma frota para, ao que tudo indica, organizar o governo civil da ilha.
Villegagnon, por sua vez, também iria se desentender logo a seguir com o polemista Cointa, o que fez
com que, em pouco tempo, todo o topo da hierarquia civil, militar e eclesiástica da França Antártica
estivesse em conflito aberto.50
E não foi apenas com os recém-chegados que Villegagnon se indispôs. Um ano antes da
chegada dos genebrinos, os problemas de natureza religiosa já eclodiam. Cavaleiro de Malta, com voto

47 Cf. André Thevet, As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia e Editora da
Universidade de São Paulo, 1978, p. 94. Para Heulhard, a homenagem feita à Coligny nada tinha a ver com questões
religiosas. Tratava-se do justo reconhecimento ao Almirante de França, que se empenhara bastante para a viabilização da
expedição. Cf. Arthur Heulhard, Op. Cit., p. 110.

48 Cf. Jean de Léry, Op. Cit., pp. 51-52; Jean Crespin, Op. Cit., pp. 400v-401.

49 Léry afirma que as desavenças com Villegagnon começaram oito dias após a chegada dos genebrinos. Cf. Jean de Léry,
Op. Cit., p. 224. Gaffarel informa que, embora minoritários, os protestantes predominavam entre os inteligentes e os de
moralidade melhor; e incluíam “todos os oficiais e os principais colonos”. Cf. Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 220. Segundo
Richer, no início de junho de 1557 haveria menos de 30 protestantes no forte. Apud Arthur Heulhard, Op. Cit., p. 153.

50 Heulhard diz que Cointa havia se tornado protestante durante a viagem, o que não parece ter sido o caso, como se
depreende da obra de Léry. Ver A. Heulhard, Op. Cit., p. 136. Em carta de ca. 1560, Villegagnon qualificou Cointa de
“jacobino renegado”. Apud Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 402. Ver também Jean Crespin, Op. Cit., p. 401v, 402v.
de pobreza e castidade, Villegagnon temia que as tentações do país, e muito especialmente a nudez das
indígenas, pudessem ter um efeito pernicioso sobre o seu grupo, desviando-o de sua missão. Passou
então a impor uma disciplina rígida no forte, e exigiu a permanência de todos na ilha, “de modo que
impossibilitados de fugir, ficassem os nossos homens no caminho do dever. E como as mulheres só
vinham a nós com seus maridos, a oportunidade de pecar contra a castidade se achava afastada”.51 As
revoltas não tardaram a surgir. Segundo ele próprio informou, em fevereiro de 1556 “vinte e seis
mercenários, incitados pela sua cupidez carnal, contra mim conspiraram, sendo-me entretanto o fato
revelado no dia em que eu ia ser trucidado....”. Desbaratado o complô, seguiu-se então uma série de
punições exemplares (enforcamentos e trabalhos forçados), que instauraram um clima de terror na ilha,
mas não conseguiram atingir o líder da rebelião, um intérprete normando, que logrou se refugiar entre
os índios, com os quais já residia há sete anos. Logo muitos franceses seguiram seus passos e fugiram
do forte, passando também a viver nas aldeias indígenas. Dentre eles, estava a maioria dos 20 a 25
intérpretes que se encontravam na Guanabara àquela época.52
Para Gaffarel, as regras impostas por Villegagnon não ajudavam a colonizar a terra. Como a
expedição não trouxera mulheres, a proibição, sob pena de morte, de que os homens tivessem relações
com as índias só podia significar que o comandante, esquecendo a origem e os antecedentes de boa
parte daqueles que trouxera, tentava transformá-los em modelos de virtude. Com efeito, impondo
regras “... que poderiam ser bastante adequadas para um quartel de cavaleiros de Malta, mas que se
revelavam, por todos os meios, bastante inadequadas para o Brasil...”, Villegagnon teria contribuído
desde o início para quebrar a unidade do grupo, se é que ela jamais existiu.53

Os recém-chegados demoraram-se pouco na ilha. Rompido com Villegagnon, Cointa


abandonou o forte poucos meses depois da chegada; bandearia-se mais tarde para o lado lusitano e
acabaria tendo um papel destacado na tomada do Forte de Coligny pelos portugueses três anos depois.

51 Carta de Villegagnon a Calvino. Apud Jean de Léry, Op. Cit., p. 38. Thevet informa que a proibição sexual se
justificava “porque o fiel não devia ter relação com o infiel”. Cf. André Thevet, La cosmographie universelle, p. 909v.

52 Cf. Nicolas Barré, Carta de 25 de maio de 1556, apud Paul Gaffarel, Op. Cit., pp. 382-384; Jean de Léry, Op. Cit., p. 38;
Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 199.

53 Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 206. Em sua carta enviada a Calvino, em março de 1557, Villegagnon dá nova mostra disso ao
dizer que, ao chegar, os genebrinos “encontraram-me ...em tal estado que me via obrigado a desempenhar as funções de
magistrado e mesmo as de ministro da Igreja ... Mas não tinha outra solução, pois temia que os artesãos que eu contratara e
para cá trouxera se deixassem contaminar pelos vícios do gentio; ou que, em não encontrando oportunidade de praticar a
religião caíssem em apostasia; e esse temor findou com a chegada dos irmãos ....” . Cf. Jean de Léry, Op. Cit., p. 36.
Impedidos de exercer ali seu ministério, os pastores calvinistas acabaram também sendo expulsos da
ilha em fins de outubro de 1557 e foram viver em terra firme; regressaram à Europa em 4 de janeiro
seguinte, onde deram início a uma verdadeira cruzada contra o cavaleiro de Malta, que foi bem
sucedida em desacreditá-lo junto à Coroa.54 Por outro lado, boa parte dos homens retornou à França
nos navios que vinham carregar na Guanabara ou em Cabo Frio, enquanto muitos se exilaram em terra
firme, passando a insuflar os indígenas contra o comandante. Por volta de 1558, “metade dos colonos
havia desertado”.55
Villegagnon retornou à Europa em 1559, tendo deixado o comando do forte a seu sobrinho M.
de Boissy, senhor de Bois-le-Comte. Segundo ele próprio afirmou, voltara para se defender das
acusações que lhe faziam os protestantes. Heulhard, entretanto, assevera que fora também em busca de
apoio para seu projeto, cada vez mais deixado à sua própria sorte.56 Ao desembarcar, soube que o rei
morrera há pouco tempo, o que certamente frustrou muitos dos seus planos. Pouco tempo depois,
recebeu a notícia da queda do Forte de Coligny. Começou então um período em que o cavaleiro de
Malta tentou, por diversos meios, convencer as realezas reinantes de que nem tudo estava perdido, e
que a França Antártica poderia ainda ser reconquistada, bastando para isso que contasse novamente
com o apoio da Coroa. Como este não veio, decidiu então lutar por uma indenização por perdas e
danos junto ao governo português que, ao que parece, acabou sendo concedida.57 Com os conflitos
internos se acirrando, a Coroa voltou a solicitar seus serviços militares, que foram agora prestados em
território francês. Faleceu em janeiro de 1572, antes que as tensões entre católicos e protestantes
explodissem em agosto seguinte, na noite de São Bartolomeu.
Todos os que trataram da França Antártica concordam que o Almirante Coligny simpatizara
com o projeto porque ele servia para afirmar a doutrina de mare liberum, não apenas frente a Portugal

54 Jean Crespin, Op. Cit., p. 402; Jean de Léry, Op. Cit., Capítulo VI. Sobre a viagem de volta, Léry informa que, logo ao
sair o navio começou a fazer água, tendo então cinco huguenotes decidido voltar “ao Brasil” num batel que lhes foi posto à
disposição, “onde aportaram com grandes dificuldades. Mas Villegagnon mandou matar os três primeiros por divergências
religiosas...” (Op. Cit., p. 228).

55 Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 213, 293.

56 Carta de Villegagnon apud Paul Gaffarel, Op. Cit.., p. 405; Arthur Heulhard, Op. Cit., p. 119. Heulhard admite também
a hipótese de que o próprio rei havia solicitado a sua presença na França, para que ele pudesse se defender dos ataques que
já vinha recebendo dos protestantes. Cf. Heulhard, Op. Cit., p. 184-186.

57 Sobre as iniciativas tomadas por Villegagnon para obter indenização pela destruição do Forte Coligny ver Antonio
Camillo de Oliveira. Op. Cit., pp. 3-31. Em nota à obra de Varnhagen, Capistrano de Abreu, baseado na obra de Richard
Hakluyt, informa que “Lopo Vaz, ordinariamente bem informado, diz que Villegagnon efetivamente recebeu trinta mil
ducados”. Cf. F. A. Varnhagen, Op. Cit., I, p. 306, nota 19.
mas, devido à proximidade do Brasil das possessões espanholas, também frente a Carlos V. Mesmo
Léry reconhece que esta foi a motivação principal, quando afirma que Coligny, sendo “bem visto e
acatado do rei Henrique II, então reinante, representou que se Villegagnon fizesse a viagem poderia
descobrir muitas riquezas e outras coisas de proveito para o rei”.58 O consenso, entretanto, termina aí.
Para as fontes protestantes, a intermediação do Almirante teria sido motivada pela promessa
que lhe fizera Villegagnon de construir no Brasil uma França protestante. Embora Coligny não tivesse
ainda abraçado abertamente a Reforma quando da partida da expedição, esses autores insistem que ele
já teria pressentido que os ânimos exaltados da velha Gália caminhavam para confrontações ainda
maiores, e que via com bons olhos a perspectiva que a empresa de Villegagnon abria aos huguenotes
franceses de manter sua nova fé sem ter de renunciar a seu país. Gaffarel aceita essa interpretação mas
afirma que Villegagnon, “sem dúvida seguindo conselhos de Coligny”, se colocou como protetor dos
protestantes para ver se conseguia recrutar mais pessoas para a sua empresa.59
Heulhard discorda totalmente dessas interpretações, não deixando de censurar Gaffarel por ter
caído também “nos velhos erros semeados pelos calvinistas contra a memória de Villegagnon”. Para
ele, a expedição que partiu do Havre era totalmente católica, e seus objetivos puramente comerciais e
geopolíticos: o que a Coroa objetivava era assegurar sua participação no então nascente mercado
colonial.60 Para esse autor, Villegagnon jamais aderiu ao protestantismo, e nem mesmo teria
convidado os religiosos calvinistas a partirem para a Guanabara quando aí já estava, interpretação que
se choca frontalmente com os escritos das fontes protestantes, segundo as quais o cavaleiro de Malta
teria enviado emissários a Genebra exatamente para esse fim.
Para Heulhard, foi Coligny que, sabendo dessa demanda, solicitou o concurso dos calvinistas,
que decidiram então enviar um pequeno grupo de militantes à Guanabara, precursor de levas maiores
que seguiriam depois. Portanto, para esse autor, se houve algum dia uma perspectiva de se criar uma
França reformada na América, esse projeto teria sido desenhado unicamente por Coligny, quando os

58 Jean de Léry, Op. Cit., p. 50.

59 Cf. Frank Lestringant. Fictions de l’espace brésilien à la Renaissance: l’exemple de Guanabara. In Christian Jacob e
Frank Lestringant (Coords.), Arts et légendes d’espaces: figures du voyage et rhétoriques du monde. Paris: Presses de
l’École Normale Supérieure, 1981, p. 220; Jean Crespin, Op. Cit., pp. 400-401; Jean de Léry, Op. Cit., pp. 49-50; Paul
Gaffarel, Op. Cit., pp. 166, 171. O apoio de Coligny: não se limitaria ao projeto de Villegagnon. Foi ele também um
grande incentivador da tentativa de fundação de colônia huguenote na Flórida, depois da derrota da França Antártica. Ver
Frank Lestringant, L’expérience huguenote au Nouveau monde. Genebra: Droz, 1996.

60 Como prova adicional de que a expedição tinha caráter estratégico, Heulhard reproduz o documento através do qual
Henrique II autorizava, em 26/3/1554, a entrega a Villegagnon de 10.000 libras tornesas para o apresto das embarcações,
liberando-o de prestar contas aos funcionários da Coroa. Cf. Arthur Heulhard, Op. Cit., pp. iii, 93, 98-99, 103, 109, 140
nota 2.
franceses já estavam na Guanabara, e não pelo cavaleiro de Malta antes de sua partida. Em defesa de
Villegagnon, Heulhard esclarece ainda que não há um único documento sequer que comprove que ele
tivesse solicitado apoio a Calvino, e que o próprio cavaleiro de Malta, ainda em vida, desafiara a quem
quer que fosse que lhe mostrassem prova disso, para descrédito de seu nome.61
Há, pois, muita discussão se Villegagnon, que jamais renunciou abertamente ao catolicismo,
quis realmente se converter à reforma. As fontes protestantes garantem que sim, o que é
veementemente negado por Heulhard. Para Gaffarel, entretanto, ele queria manter-se católico, mas
desejou também trazer os protestantes, pois precisava dos dois grupos para concretizar seu plano de
estabelecer uma colônia francesa no ultramar. Para esse autor, Villegagnon acreditava sinceramente
que os dois grupos pudessem viver em paz.62 Independentemente dessas interpretações, o fato
concreto é que as questões de religião e de moral, que tanto incendiavam os corações na França,
acabaram também por se transferir para a ilha de Coligny e, magnificadas ali pelo isolamento e pelo
autoritarismo de Villegagnon, transformaram-se rapidamente em pomo de discórdia, que foi
rapidamente minando o sonho de se construir uma nova sociedade nos trópicos.

A conquista portuguesa da Guanabara


A tática utilizada pela Coroa para a reconquista da Guanabara teve início com a indicação por
D. João III do novo governador-geral Mem de Sá, com poderes muito mais amplos do que os de seus
antecessores.63 Chegando a Salvador em dezembro de 1557, o governador dedicou-se, inicialmente,

61 Em sua cruzada para desmascarar o relato protestante, Heulhard centra suas baterias principalmente sobre Pierre Richier,
um dos genebrinos que estiveram na Guanabara e que, depois de seu retorno à Europa, tornou-se o principal arauto contra
Villegagnon. Segundo Heulhard, Richier jamais provou o que disse, e sobre o pretenso convite que Villegagnon teria feito
aos calvinistas limitou-se a dizer que tinha três cartas de Villegagnon “nas quais ele lhe solicitava [a Calvino] o favor de
instituir sua religião no Brasil, mas não consegui encontrá-las, apesar de todo a diligência empregada nessa direção”.
Heulhard publicou também uma carta de Villegagnon, em que este se defende das acusações de Richier: “Ele me acusa de
ter solicitado a Calvino, por minhas cartas, [que enviasse] ministros de sua seita. Se isto for verdade, Calvino poderia lhe
dar o grande prazer de servir-se destas cartas para me cobrir de vergonha. Mas eu ainda não esqueci que ele próprio
[Calvino] afirmou que quando recebeu minhas primeiras cartas eu já tinha partido para o Brasil há mais de dezoito meses, e
estas tinham sido a resposta daquelas que ele me enviara através de seus homens ...”. Em outras palavras, foi Calvino quem
primeiro escreveu para Villegagnon, uma carta que, segundo Heulhard, também os protestantes não mostram, o que
impossibilita também que compreendamos bem a resposta enviada por Villegagnon. Cf. Arthur Heulhard, Op. Cit., pp.
128-129, 139-140.

62Cf. Jean Crespin, Op. Cit., p. 400; Jean de Léry, Op. Cit., p. 49; Arthur Heulhard, Op. Cit.; Paul Gaffarel, Op. Cit., p.
218.

63Carta régia de nomeação de Mem de Sá. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Chancelaria de D. João III, Doações,
Livro 59, f. 194. Apud Joaquim Veríssimo Serrão, Op. Cit., Vol. I, p. 64. Publicada também nos Anais da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, Vol. XXVII, 1905, pp. 219-221.
ao combate aos indígenas que desafiavam os colonos portugueses nas capitanias do Espírito Santo e de
Ilhéus. Ao mesmo tempo, colheu informações mais seguras sobre as forças francesas da Guanabara.
Embora já tivesse ordens da Rainha Regente para que “com a brevidade possível fosse a este Rio e
lançasse os Franceses dele”,64 sabia Mem de Sá que não possuía, naquela ocasião, os recursos
financeiros e materiais para fazê-lo. Ademais, as notícias que chegavam do sul desencorajavam um
ataque direto.
Há indícios de que já se preparava em Lisboa, em fins de 1558, uma esquadra de socorro ao
Brasil. É, entretanto, de 3 de setembro de 1559, a decisão do Conselho Régio para que se apressasse a
partida dessa frota, cujo comando foi confiado a Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, com ordens
para “demolir o que encontrassem feito e expulsar os franceses”. Não era uma grande armada.
Embora Serrão afirme que a frota “era composta de 300 homens de combate e suficiente material de
guerra”, tudo indica que a expedição que saiu do Tejo era bem modesta.65
Os navios chegaram à Bahia no último dia de novembro. Tendo o Governador-geral decidido
em conselho que “o melhor era ir cometer a fortaleza, porque o andar pela costa era gastar o tempo e
monção em cousa muito incerta”, aviou-se novamente a frota, que partiu com duas naus e oito
embarcações menores em direção ao sul em 16 de janeiro de 1560.66 Pelo caminho, “foi o governador
recolhendo gente por as capitanias”, acrescentando reforços à armada que chegara do Reino.
Embarcaram em direção à Guanabara “a maior parte da gente nobre da Bahia, e os homens de armas,
que se puderam juntar, com muitos escravos e índios forros”.67 Dentre esses estavam o Padre Manoel
da Nóbrega, que havia sido o primeiro provincial da Companhia de Jesus no Brasil, e Estácio de Sá,
sobrinho do Governador.
Participava também do grupo o francês Jean Cointa, senhor de Bolés, antigo companheiro de
Villegagnon, que se desentendera com o cavaleiro de Malta há cerca de três anos e abandonara a ilha.

64 Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert,
1851, Cap. LIII, p. 87.

65 Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no século XVI, Op. Cit., Vol. I, pp. 70-71; Depoimento de Vicente Dias,
cavaleiro da Casa de El-Rei. In Instrumento dos serviços prestados por Mem de Sá, governador do Brasil. Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Vol. XXVII, Rio de Janeiro, 1906, p. 192; Depoimento de Mem de Sá. In
Instrumento ...., Op. Cit., p. 134.

66 Varnhagen, História Geral do Brasil, Op. Cit., Vol. 1, p. 304.

67Carta de Mem de Sá à Regente Dona Catarina. São Vicente, 17/6/1560. In Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro
no século XVI. Op. Cit., Vol. II, pp. 42-43; Depoimento de Sebastião Álvares, cavaleiro da Casa de El-Rei. In Instrumento
dos serviços prestados por Mem de Sá, governador do Brasil. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Vol. XXVII,
Rio de Janeiro, 1906, p. 151; Gabriel Soares de Souza, Op. Cit., p. 87.
Personagem dos mais polêmicos do Brasil do século XVI, Cointa traíra a aliança franco-tamoia e
bandeara-se para o lado português durante uma investida indígena contra os habitantes de São
Vicente.68 Mais tarde, avistando-se com Mem de Sá em Ilhéus, passou-lhe informações
preciosíssimas sobre o Forte Coligny e sobre a maneira de tomá-lo. Agregando-se à expedição do
governador-geral que se destinava à Guanabara, suas informações teriam valor inestimável na tática
(estratégia?) que os portugueses utilizariam para derrotar os franceses.
A força naval portuguesa chegou à baía de Guanabara em 21 de fevereiro. O plano inicial,
como nos contou Nóbrega, era o de atacar a fortaleza de surpresa, durante a noite da chegada, e por isso
“mandou o Governador a um que sabia bem aquele Rio, que fosse adiante guiando a armada”. Não deu
certo, entretanto, esse estratagema, porque o guia “ou por não saber, ou por não querer, fez ancorar a
armada tão longe do porto que não puderam os batéis chegar senão de dia ... e foi logo vista e sentida a
armada”. Denunciada a invasão da baía, o Forte Coligny pôs-se então em alerta e “... atirou muitos
tiros de bombardas ... de maneira que foi forçados os navios da armada se saírem atrás por não
Receberem dano dos franceses”.69
O contratempo revelou-se providencial, tanto para franceses como para portugueses. Os
primeiros tiveram tempo de convocar os que estavam em terra firme para retornar ao forte e puderam
também reunir um número considerável de aliados tamoios. Já os portugueses, impressionados com a
fortaleza que encontraram, que se revelava muito mais imponente do que o esperado, puderam melhor
avaliar as condições de combate e decidiram adiar o ataque e solicitar reforços adicionais a São
Vicente. Mesmo assim, lograram capturar nesse dia uma nau francesa que estava comerciando pau-
brasil na baía.70

68 Em depoimento de 1564, feito à Inquisição de Lisboa, que o julgava por heresia, Cointa informou que “.... juntou-se de
cinqüenta léguas de costa uma guerra de cinco ou seis mil índios para irem assolar a Capitania de São Vicente, com os quais
o dito Villegagnon mandou sete ou oito homens seus com picões e alcancias e outras coisas de guerra, o que sabendo ele
suplicante depois de passadas sobre isto muitas palavras e ameaças, porque as queria estorvar, foi-se escondidamente tomar
as espias que estavam a quinze léguas daí, e se foi com elas fingindo que ia de guerra, e logo que chegou lançou-se com os
portugueses e os defendeu dos contrários, e deu conselho e aviso ao capitão de São Vicente que mandasse recolher toda a
gente que estava espalhada pelas roças e fazendas de maneira que todos que obedeceram ao pregão do capitão se salvaram e
os inimigos não tomaram mais de vinte e três ou vinte e quatro pessoas em uma torre de um Antonio Rodrigues, o qual de
contumaz nem quis obedecer...”. In Processo de João de Bolés e justificação requerida pelo mesmo, 1560-1564. Rio de
Janeiro: Officina Typographica da Bibliotheca Nacional, 1904, p. 83.

69 Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Infante Cardeal. São Vicente, 1/6/1560. In Manoel da Nóbrega. Carta ao Infante
Cardeal D. Henrique, 1° de junho de 1560. In Cartas do Brasil. Belo Horizonte e São Paulo: Itatiais e Editora da
Universidade de São Paulo, 1988, p. 224; Depoimento de Luis da Costa. In Instrumento de serviços ..., Op. Cit., p. 183.

70 Carta de Mem de Sá à Regente D. Catarina. São Vicente, 17/6/1560. In Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no
século XVI. Op. Cit., Vol. II, p. 42; José de Anchieta, De gestis Mendi de Saa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1958, p.
147.
A ajuda externa chegou mais cedo do que se esperava, pois “os de S. Vicente sabendo
primeiro da vinda do Governador ao Rio, já vinham por caminho”.71 O ataque ao forte, entretanto,
não ocorreu de imediato. Contra ele se opunham o capitão-mor e outros capitães da armada, “porque
tinham já bem espiado tudo, e parecia-lhes cousa impossível entrar-se cousa tão forte”.72 Mem de Sá,
entretanto, mantinha-se inflexível em sua decisão de dar por encerrada a missão que o trouxera à
Guanabara e insistia em dar continuidade aos planos traçados na Bahia. Enquanto avaliava as possíveis
estratégias de desembarque em Coligny, o governador tentou obter a rendição do comandante francês
Bois-le-Comte.73 Vendo rejeitado seu ultimato, decidiu então não esperar mais e determinou que o
ataque fosse efetuado imediatamente.
Iniciado em 15 de março, o ataque durou dois dias. Embora tenham logrado invadir a ilha, os
portugueses não conseguiram, a princípio, progredir em direção à fortaleza. Com sua munição
escasseando, já pensavam em abandonar o local quando conseguiram penetrar no forte e atingiram seu
paiol de pólvora, o que levou franceses e tamoios a abandonarem o bastião. Segundo as palavras de
uma testemunha ocular, "se saíram dela todos os franceses e índios por umas janelas e penedias abaixo
doutra banda por cordas por que se lançavam e se foram em canoas por a terra firme e por esta banda
por onde se saíram era lugar que os portugueses lhe não puderam fazer dano nem mal algum e desta
maneira largaram a dita fortaleza com muita e formosa artilharia de metal e de ferro coado, muita

71 Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Infante Cardeal. São Vicente, 1/6/1560. In Manoel da Nóbrega, Cartas do Brasil,
Op. Cit., p. 224. O reforço vicentino constituiu-se de um “fermoso bergantim artilhado, com algumas canoas de guerra, e
soldados destros em semelhante gênero. Mamelucos e Índios, guiados de dois Religiosos da Companhia, Fernão Luís e
Gaspar Lourenço; com cuja vista se alentaram todos da armada”. Cf. Simão de Vasconcelos. Crônica da Companhia de
Jesus. 3ª edição. Petrópolis e Brasília: Editora Vozes, Instituto Nacional do Livro, Livro Segundo, 1977, § 77.

72 Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Infante Cardeal. São Vicente, 1/6/1560. In Manoel da Nóbrega, Cartas do Brasil,
Op. Cit., p. 224.

73 Na carta enviada a D. Catarina, Mem de Sá informa que ... “Quando o capitão mor e os mais da armada viram a fortaleza
... a aspereza do sítio; a muita artilharia e gente que tinha, a todos pareceu que todo o trabalho era debalde e como prudentes
receavam de cometer coisa tão forte com tão pouca gente, requereram-me que lhes escrevesse primeiro uma carta e os
admoestasse que deixassem a terra, pois era de V. A.: eu lhes escrevi e me responderam soberbamente”. Ver Carta de Mem
de Sá à Regente D. Catarina. São Vicente, 17/6/1560. In Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro no século XVI. Op.
Cit., Vol. II, p. 42. Sem indicar a fonte, Frei Vicente do Salvador informa que a carta escrita por Mem de Sá a Bois-le-
Comte tinha os seguintes termos: “El-Rei de Portugal, meu senhor, sabendo que Villaganhon, vosso tio, lhe tinha usurpada
esta terra, se mandou queixar a el-rei de França, o qual lhe respondeu que, se cá estava, que lhe fizesse guerra e botasse fora,
porque não viera com sua comissão. E posto que já aqui o não acho, estais vós em seu lugar, a quem admoesto e requeiro
da parte de Deus e do vosso rei e do meu, que logo largueis a terra alheia a cuja é, e vos vades em paz sem querer
experimentar os danos que sucederão da guerra”. Cf. Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, 1500-1627. 7ª edição.
Belo Horizonte e São Paulo: Ed. Itatiaia e Edusp, 1982, p. 155. Anchieta, em seu poema dos feitos de Mem de Sá, também
oferece versões, neste caso poetizadas, dessa troca de correspondência entre Mem de Sá e Bois le Comte. Cf. José de
Anchieta, De gestis ... Op. Cit., pp. 147-148.
pólvora e outras munições e navios de Remos que tinham feitas para andarem pela costa ...”.74 Não
dispondo de homens para povoar a Guanabara, e temendo que os franceses que se embrenharam em
terra pudessem novamente ocupar a ilha, não hesitou o governador em ordenar que o bastião francês
fosse totalmente arrasado, decisão que acabou desagradando bastante a Rainha Regente.75
A destruição do Forte Coligny não pôs um fim definitivo às pretensões gaulesas de fixação
permanente na Guanabara. Como os portugueses não permaneceram no local, os indígenas
mantiveram intocado seu território desafiador e os franceses começaram a se articular para reaver o
forte perdido. A conquista da baía de Guanabara ainda exigiria grandes esforços dos portugueses e só
seria concretizada em meados da década de 1560, depois que Estácio de Sá fundou o núcleo provisório
da cidade junto ao Pão de Açúcar, em 1565, e após o envio de nova expedição militar comandada por
Mem de Sá, que impôs a franceses e tamoios a sua derrota final em 20 de janeiro de 1567.

Conclusão
Território, política e cultura são as dimensões analíticas fundamentais para o entendimento dos
acontecimentos que antecederam a fundação da cidade do Rio de Janeiro pelos portugueses em 1565.
Na análise desse processo histórico, é fundamental também que consigamos manter uma distância
prudente de suas fontes documentais e das interpretações que delas fizeram diversos autores do
passado. Com efeito, muito já foi escrito sobre esse período, mas nossa compreensão dele ainda
apresenta grandes lacunas. Por um lado, as fontes francesas relativas à França Antártica estão todas
impregnadas de juízos de valor e refletem os conflitos religiosos que então sacudiam o país; não é raro,
portanto, que divirjam bastante umas das outras. Por outro, as análises posteriores, pretensamente
menos tendenciosas, também nos confundem, já que oferecem interpretações divergentes dos textos
originais e afirmações não comprovadas documentalmente. A falta de consenso é, pois, a regra, e isto
se deve, sobretudo, à impossibilidade de dissociar a França Antártica da figura de seu idealizador.

74 Cf. Depoimento de Luís da Costa. In Instrumento...., Op. Cit., p. 184. Thevet, sempre contraditório, informa na
Cosmographie Universelle que os franceses “renderam a praça depois de um acordo”, para logo em seguida dizer que os
portugueses, sem esperar que os sitiados pudessem com eles se entender, “atacaram furiosamente o forte e tomaram-no
pouco tempo depois”. Tudo indica que a segunda versão é a mais exata. Cf. Andre Thevet, La cosmographie universelle.
Paris: Pierre L’Huillier, 1575, pp. 908v, 910. Não escondendo o lado pelo qual torcia, Gaffarel afirmou ingênuamente que a
batalha foi perdida pois Mem de Sá, fingindo se retirar, voltou à ilha à noite, quando os franceses e os tamoios (que ele
chama de “um punhado de bravos”) estavam em profundo sono e não perceberam a investida !!! Cf. Paul Gaffarel, Op.
Cit., pp. 311-313.

75 Cartade Mem de Sá à Regente D. Catarina. São Vicente, 17/6/1560. Apud Joaquim Veríssimo Serrão, O Rio de Janeiro
no século XVI. Op. Cit., Vol. II, p. 42; Gabriel Soares de Souza, Op. Cit., pp. 87-88.
As fontes portuguesas, por sua vez, também são tendenciosas e apenas glorificam os feitos
guerreiros lusitanos. As dissenções na ilha de Coligny, que tanto enfraqueceram o projeto de
Villegagnon, e que já eram sobejamente conhecidas de Mem de Sá, não são jamais citadas. Outro
aspecto que passa quase que desapercebido nos relatos da vitória portuguesa é o papel importantíssimo
que nela desempenhou o francês Jean Cointa. As fontes quinhentistas são, nesse aspecto, bastante
vagas, e repetem apenas que, estando na capitania de Ilhéus, o Governador aí se avistara com o Senhor
de Bolés, e que este lhe dera conta dos planos de Villegagnon, o que só fez aumentar sua determinação
de partir para a Guanabara e combater a fortaleza. Somente um depoimento sobre o acontecido,
prestado por Luís da Costa, dá a entender que essa ajuda teria sido muito mais valiosa. Segundo o
almoxarife, em seu encontro com Mem de Sá, Cointa “... lhe descobrira os negócios do Rio de Janeiro,
assim da fortaleza e do capitão e da gente francesa que com ele estava e outras cousas que eram em
prejuízo do serviço de El Rei nosso senhor e de seus Reinos...”.76
A informação é relevante. Que foi o Senhor de Bolés quem “descobriu” a Mem de Sá a
maneira pela qual o Forte Coligny poderia ser vencido não há nenhuma dúvida. Nos depoimentos que
prestou ao Santo Ofício em 1563, Cointa faz menção constante à colaboração que prestou à Coroa
portuguesa na tomada do forte, afirmando textualmente que deu ao governador “... conta de tudo e ...
lhe deu ele confessante ardís e maneira como haviam de tomar a fortaleza e se embarcou ele
confessante com o dito Governador Mem de Sá e foram tomar a dita fortaleza dos franceses, e os
botaram fora com os ardís que ele confessante para isso deu, como consta por autos ...”. Não se tratava
de bravata do francês para se livrar das garras da Inquisição, que o acabara encarcerando, pois o
próprio Mem de Sá, depondo sob juramento, confirmou essa contribuição. Embora menos enfático, o
Governador-geral afirmou que Cointa o havia realmente ajudado na tomada de Coligny e que “pelejara
bem e lhe mostrara bom ardil de tomar a fortaleza aos franceses”, depoimento que muito ajudou o
francês, que acabou sendo absolvido em 1564.77

76 Os depoimentos que constam no “Instrumento dos serviços...” são, neste aspecto, bastante semelhantes uns aos outros.
Mem de Sá informa apenas que Cointa lhe descobrira “... algumas Ruins determinações de villa ganhão em prejuízo desta
terra e do serviço de sua alteza”, declaração que é repetida quase que de forma idêntica pelas testemunhas que depuseram
naquele processo. Cf. Instrumento dos serviços...., Op. Cit., pp. 134, 182.

77 Em outro depoimento constante do mesmo processo, Cointa dá ainda maior realce à sua contribuição, afirmando que “...
rogou-me (Mem de Sá) que eu quisesse ajudar a botá-los (os franceses) da terra, que seria grande serviço a Deus ...”. Cf.
Processo de João de Bolés ..., Op. Cit., pp. 57-58, 89-90, 71. Para Veríssimo, o francês foi, de fato, a figura essencial, pois
deu “todas as informações necessárias sobre a ilha de Serigipe: o campo de tiro do forte, a situação das baterias que o
enquadram, o efetivo combatente, a praia de possível desembarque, etc.”. Cf. Inácio José Veríssimo. História militar do
Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII. In “Curso de História do Rio de Janeiro”, Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Vol. 288, jul-set 1970, p. 129.
É também fora de dúvida que os conflitos internos que ensangüentavam a França tiveram
papel fundamental na falta de interesse oficial em continuar apoiando o projeto de Villegagnon, que
acabou solapando o sonho do cavaleiro de Malta. Com as tensões religiosas crescendo em casa, não
era de se esperar que a Coroa se interessasse em investir recursos na retomada de um território
longínquo, cuja perda se atribuía, em grande parte, à transposição para além-oceano das querelas da
metrópole. Tudo isso explica porque, ao chegar notícia da perda do Forte de Coligny para os
portugueses, já às vésperas da eclosão da guerra civil, “esta catástrofe foi recebida em França com a
mais perfeita indiferença. Podemos dizer que ela passou praticamente despercebida”.78
O que parece que também passou despercebido - e por longo tempo - foi que a interpretação
protestante sobre a França Antártica, simbolizada pela afirmação de Léry de que caberia única e
exclusivamente a Villegagnon a culpa de não terem os franceses se enraizado no Brasil, também não
está livre de inconsistências.79 Foi contra esse julgamento, contestado por Thevet ainda no século
XVI,80 que Heulhard centrou suas baterias em fins do século XIX. Embora longe de ser imparcial, a
análise de Heulhard, indubitavelmente pró-Villegagnon, permitiu que compreendessemos melhor o que
foi a França Antártica, pois teve o mérito de detectar as inconsistências do discurso protestante. Ao
radicalizar o ataque às teses calvinistas, documentando-o devidamente, esse autor ofereceu também as
antíteses que levaram-nos a uma síntese mais esclarecedora, que vê Villegagnon como um produto de
seu tempo, e que considera que as fraquezas da França Antártica não se limitaram às posições
doutrinárias ou às idiossincrasias daquele que a idealizou.
Finalmente, pouco se sabe também do papel que os habitantes do país desempenharam nessa
guerra que foi, ao mesmo tempo, deles e contra eles. Ainda que possamos atribuir-lhes um papel ativo
na luta pelo controle territorial da Guanabara, os indígenas não deixaram registros e de seus embates só
temos notícia através da visão européia. É digno de nota, nesse sentido, que também das versões de
seus aliados franceses os tamoios se eclipsam, demonstração cabal de que a aliança franco-indígena
era, para os gauleses, apenas circunstancial. Em outras palavras, como a experiência da França
Antártica jamais atingiu o estágio de colônia de povoamento, puderam os franceses conservar as boas

78 Paul Gaffarel, Op. Cit., p. 314. É importante notar que, apesar de já ter se manifestado abertamente católico antes mesmo
de sair da Guanabara, Villegagnon não repudiou totalmente o espírito protestante. Ao ser tomado pelos portugueses, o Forte
Coligny estava destituído de cruzes, de imagens ou de igreja, o que, para os lusos, era prova manifesta de ser couto de
hereges.. Ver Processo de João de Bolés ... , Op. Cit.

79 Cf. Jean de Léry, Op. Cit., p. 226

80 “Ce fort véritablement était suffisant pour tenir le pays sauvage en bride, et le défendre de tout autre ennemi, si
l’adversaire n’eut été parmi nous mêmes”. Cf. André Thevet, La cosmographie universelle, Op. Cit., p. 908.
relações que também os portugueses tinham com os indígenas antes da colonização da terra. Thevet,
entretanto, sabia que a cooperação tamoia tinha um preço. Descrevendo os habitantes da Guanabara, o
franciscano informou que “os habitantes deste país são muito cordiais, e sentem prazer em ver e tratar
com carinho os estrangeiros, dado que estes não tentem lhes tiranizar”.81 Pode-se concluir, então, que
se o conflito tamoio-francês não ocorreu, foi só porque não houve tempo para isso.

81 André Thevet. La cosmographie universelle, Op. Cit., p. 913.


Figura 1

Figura 2

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