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EDIÇÃO DE MARÇO DE 2024

KIKOSOFIA

Francisco Moreira
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

MARÇO
Por Francisco Moreira

O novo mês assume uma importante chamada ao


pensar da igualdade. É o mês em que celebramos o
recém criado dia nacional das Tradições de Raízes
de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé em
nosso país (21), em que lembramos a importância
de refletir sobre a mulher e seus espaços sociais,
em que celebramos a paixão do Cristo, que
determinou uma total mudança no pensamento e no
comportamento ocidental, ao ponto de marcamos
nosso calendário em razão Dele.

Março nos lembra da necessidade de renascer, de


repensar nossas crenças, de rever conceitos pré
concebidos e buscar mudanças. Mudanças de
comportamento, de pensamento e de atitude.
Mudança no trato com o próximo, no entendimento
de que somos frutos de uma mesma árvore, de que
somos irmãos.

Cores, raças, etnias, são meros rótulos com os


quais nos vendemos, não representam o que somos
em nosso íntimo, em nosso espírito, em nossa
essência. Somos chamados á perfeição, mas para
isso é necessário nos despirmos de vaidade,
orgulho e egoísmo.

Kikosofia nº 19 © 2024 - Este trabalho está licenciado por Francisco


Moreira sob CC BY-NC-ND 4.0. Para ver uma cópia desta licença, visite
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KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

CÂNCER DE ÚTERO
A necessidade de prevenção
O câncer de útero é o terceiro mais frequente entre as
mulheres no Brasil, ficando atrás apenas do câncer de
mama e de colorretal, porém é 2º que mais causa morte
de mulheres no país.

O câncer do colo do útero é provocado pela infecção por


alguns tipos do Papilomavírus Humano, ou HPV. A
infecção genital causada por esses vírus é muito comum
na população por serem sexualmente transmissíveis. Em
geral o vírus não causa doença, porém podem causar
lesões na vagina, colo do útero, pênis e ânus, que podem
se manifestar pelo aparecimento de verrugas na pele ou
mucosas . Estudos demonstram que mais da metade da
população sexualmente ativa em algum momento irá ter
contato com um dos mais de 200 tipos existentes de
HPV.
O câncer de
Em alguns casos, ocorrem alterações celulares que podem
evoluir ao longo dos anos para o câncer. Tais alterações útero é o
são facilmente descobertas através do exame preventivo
chamado de Papanicolau, sendo curáveis em sua maioria, terceiro mais
de modo que ir periodicamente ao médico é vital para
identificar o problema e iniciar o tratamento. É importante
frequente
lembrar que o câncer do colo do útero é uma doença de entre as
desenvolvimento lento, que nem sempre apresenta
sintomas na fase inicial. O exame é recomendado para mulheres no
todas as mulheres com vida sexualmente ativa.
Brasil
Os homens além de potenciais transmissores do vírus
para suas parceiras (os), também podem ser acometidos
por alguns tipos de câncer como de pênis, de ânus, uretra
ou garganta.

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Prevenção

A principal forma de prevenção contra o HPV, é a


vacinação que passou a ser disponibilizada em 2014 para
meninas entre 9 e 14 anos de idade, e que está disponível
atualmente para meninos da mesma faixa etária e pode
prevenir 70% dos cânceres de colo do útero e 90% das
verrugas genitais. A vacina pode ser encontrada em
Unidades de Saúde da Família ou Básicas de Saúde.

O uso de preservativo masculino ajuda a diminuir o risco


de contágio do HPV, embora não ofereça uma proteção
completa para mulher, pois o contato com a pele da vulva,
do períneo e da bolsa escrotal também oferecem risco,
sendo preferível a utilização do preservativo feminino, por
proteger uma região maior.

Alguns fatores que podem aumentar o risco de contrair a


doença envolve o início precoce da vida sexual, bem como
a multiplicidade de parceiros e o uso prolongando de
pílulas anticoncepcionais. O tabagismo também é um
importante fator ligado ao câncer, aumentando o risco
proporcionalmente ao número de cigarros consumidos. A principal
Sintomas forma de

Em geral o câncer de colo do útero não apresenta


prevenção
sintomas, mas em estágios mais avançados da doença, contra o HPV,
pode surgir sangramento vaginal (de forma intermitente)
ou após a relação sexual, secreção vaginal anormal, dor é a vacinação
durante a relação sexual, dor abdominal e queixas
urinárias ou intestinai, menstruação desregulada, náuseas
constantes, fadiga e perda repentina de peso.

Tratamento

O tipo de tratamento dependerá do estágio de evolução da


doença e fatores pessoais como a idade da paciente e
desejo de ter filhos. Em estágios iniciais, geralmente
envolve cirurgia, seguida de tratamento complementar
com quimioterapia ou radioterapia. Em estágios
avançados, nos quais há comprometimento dos gânglios
linfáticos da pelve ou de outros órgãos, envolve uma
combinação de quimioterapia e radioterapia ou apenas
quimioterapia.

Com informações do Ministério da Saúde.

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NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

A Paixão do carpinteiro

Francisco Moreira

A gritaria nas ruas me chamou a


atenção. Eu estava no interior da
oficina, trabalhando algumas peças que
um magistrado romano havia me
encomendado, gritos, insultos e choros
se misturavam numa algazarra
barulhenta e lamuriosa.

Retirei o avental e pus sobre a mesa de


trabalho o formão e o martelo com que
me dedicava a peça encomendada. Fui
até a porta para tentar entender o que
se passava, o sol estava alto nos céus e
algumas nuvens negras se avolumavam
no horizonte, foi quando ouvi alguém
gritar.

- Olhem! É o rei dos judeus. Será que


agora seu exército virá salvá-lo?

Algumas pessoas gargalharam e pude


observar a multidão que subia pela rua
principal. Certamente era uma
execução, a guarda romana vinha
abrindo caminho, empurrando o povo
que se espremia para ver o espetáculo.
Outra pessoa gritou.

- É Jesus. Não pode ser, o que ele fez?

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NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Foi quando percebi a cruz e o homem ensanguentado que a


conduzia pelas ruas. Jesus, o profeta que há uma semana havia
chegado a cidade, aclamado por centenas de pessoas, com
ramos de oliveira, ele montava um pequeno burro e as pessoas
estendiam seus mantos durante sua passagem. Era como a
profecia que dizia que o rei chegaria de maneira simples, num
burrico, trazendo paz.

Não acreditei no que meus olhos viam. Não fazia sentido, Jesus
estivera pregando sobre o reino de Javé os últimos três anos.
Não podia ser ele ali. torturado, sangrando, indo para o
calvário como um criminoso. Aliás, todos na cidade apostavam
que Barrabás, um assassino cruel, que havia sido preso há
poucos dias seria levado ao madeiro aquela Páscoa, mas eu
não o via entre os dois outros que acompanhavam o profeta em
sua caminhada para o Gólgota.

Custando a acreditar naquilo, peguei um manto e resolvi


acompanhar aquela procissão, tentando entender como o
mestre poderia estar sendo conduzido daquela maneira. Vi
quando, de repente, Jesus caiu sob o peso do madeiro. Alguns
guardas o chicotearam e obrigaram a se levantar. Sacerdotes e
escribas agitavam o povo com acusações de heresia e
blasfêmia contra ele.

Os mesmo sacerdotes que alguns dias atrás pareciam surpresos


com a sabedoria do pregador. Que pareciam não ter repostas
para suas histórias e que não sabiam explicar os milagres que
o mestre realizava. Eu achei que eles o acolheriam no templo e
proclamariam seus ensinamentos ao povo. Talvez tenham
ficados zangados quando ele expulsou um bando de vendedores
do átrio, dizendo que eles estavam profanando a casa de nosso
Deus. Nunca foi segredo que fariseus e administradores
recebiam uma parte do lucro da venda das ofertas e que as
vezes diziam que certos sacrifícios eram imperfeitos e faziam
as pessoas comprarem mais caro na mão de certos vendedores.

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NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Nada fazia sentido naquela multidão. Vi pessoas recebendo


moedas dos escribas para ofenderem e caluniarem Jesus
durante o trajeto. Gritando que ele “era uma fraude”, “um
mentiroso”, “um conspirador”.

Conspirador. Um vizinho me contou que Jesus tinha sido levado


a Pilatos, a pedido dos sacerdotes, e que este havia lavado as
mãos e entregue o profeta para morrer, mesmo não tendo
achado culpa nele. Pelo que entendi, os fariseus e escribas o
colocaram contra a parede, dizendo que Jesus conspirava para
ser Rei e que isso atentava contra o César. Por isso Barrabás
não estava lá, havia sido solto a pedido dos representantes do
povo.

Jesus caiu outra vez e uma mulher veio lhe enxugar o rosto.
pegaram um rapaz, jovem e forte, para ajudar a carregar o
madeiro. Jesus estava bastante ferido, o corpo era uma mancha
escura de sangue e secreções. Eu já havia visto vários homens
seguindo para a cruz, mas nenhum naquelas condições. Lhe
puseram uma espécie de coroa de espinhos na fronte de modo
que o sangue banhava seu rosto e misturava-se com suor e o
cuspe dos guardas do templo, que seguiam junto aos romanos.

Algumas mulheres choravam e pude ver, entre elas, a mãe do


profeta. O rosto sofrido e impassível parecia travar uma luta
interna, como se mil espadas estivessem transpassando seu
coração e ainda assim havia força para acompanhar o filho e
sustentar os poucos que pareciam compadecidos com aquela
cena.

O cortejo chegou ao local de execução e, por alguns minutos


as pessoas silenciaram, aguardando os pregos que juntariam
homens e madeiros. Os dois que acompanhavam o profeta
foram erguidos primeiro, Jesus seria crucificado em seguida.
Pude ouvir os pregos perfurando a carne dos pulsos amarrados,
os gritos de dor e agonia se sobressaindo ao silêncio.
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NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Levantaram o madeiro e logo todos podiam ver o nazareno e os


criminosos a seu lado. Arfando bastante, um deles falou algo
ao pregador e foi repreendido pelo outro; não entendi o que
falaram, mas pensei ter ouvido o profetar falar em paraíso
para um dos ladrões.

A hora terceira se aproximava e alguns fariseus discutiam que


era preciso apressar a morte, para que não viesse o sábado
com eles ainda ali, pregados. iriam quebrar as pernas para que
acelerar o processo de asfixia. Um dos seguidores de Jesus
levou sua mãe até os pés da cruz e prometeu cuidar dela como
um filho. Jesus levantou o olhar para o céus e gritou.

- Pai! Perdoa-os, pois não sabem o que fazem. Está tudo


consumado segundo Tua vontade. - E sua cabeça pendeu para o
lado. Um estrondo como de vários trovões encheu o horizonte e
muitos correram assustados. Sacerdotes e fariseus se
esconderam e correram de volta ao templo. Os guardas ficaram
alertas e sobressaltados, ventos varreram a colina e pedras
racharam, túmulos se abriram e eu soube depois que o véu do
sagrado no Templo se rasgou ao meio.

Um centurião deu ordem para que verificassem os condenados e


vendo que Jesus estava morto, mandou quebrar a perna dos
demais e disse para a turba. - Este inocente era
verdadeiramente um homem justo e sua morte enfureceu os
céus.

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NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

A mãe e um dos discípulos se aproximaram do centurião e


reclamaram o corpo. Olhando ao redor o centurião me
reconheceu como carpinteiro e mandou que eu auxiliasse na
retirada do corpo da cruz. Eu me aproximei e silêncio e, com
auxílio de um dos guardas, ergui a escada para retirar os
pregos, cordas ajudaram a baixar o corpo e este foi entregue a
senhora aos pés do madeiro. Enquanto o corpo era baixado,
pude ver de perto a expressão de dor e sofrimento no rosto do
profeta. Apesar do sangue e das feridas, havia uma resignação
sobrenatural ali, uma serenidade incomum para quem havia
sofrido tanto. Retirei o mais delicadamente que pude a coroa
de espinhos que haviam colocado em sua fronte e não pude
conter as lágrimas que banhavam meu rosto silencioso.

Não haveria tempo para preparar o corpo e resolveram que este


seria levado a uma tumba recém aberta, um dos membros do
sinédrio, José da cidade de Arimatéia, a havia cedido para
colocação do corpo e um fariseu chamado Nicodemos, que
seguia Jesus em segredo levou algumas das melhores
especiarias para o corpo.

As mulheres o enrolaram num lençol de linho e seguimos em um


respeitoso silêncio até a cova. Não havia choro ou lamentos,
era como se tudo aquilo fosse esperado. Apesar da dor na
expressão das poucas pessoas que caminhavam ali. Havia uma
certeza de que tudo estava exatamente da forma como o
profeta havia dito. - Tudo está consumado. - havia dito ele em
meu coração eu sabia que aquele momento não marcava o fim,
mas o início do plano de salvação que Jesus tanto pregou
através de suas parábolas, que agora seriam repetidas ao
longo de gerações e mudaria o mundo. Sim, eu creio!

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O SUJEITO SURDO: TERMINOLOGIAS EM FOCO

Ma. Graciely Cândido Macêdo *

Anormais. Deficientes. Incapazes. Dependentes. Durante muito


tempo, essa foi a representação dos surdos pela sociedade
que, em sua maioria, compõe-se de pessoas ouvintes. Hoje,
apesar de muitos estudos e de inúmeras publicações acerca da
temática, ainda é comum as seguintes terminologias para
referenciar os surdos: “surdo-mudo”, “mudo” e “deficiente
auditivo”.

A expressão “surdo-mudo”, apesar de criada na Idade Média,


na atualidade, é erroneamente utilizada pela maioria ouvinte.
De acordo com a Federação Nacional de Educação e
Integração dos Surdos (Feneis), ela tem sua raiz na história,
mais especificamente na Filosofia. A respeito de tal
terminologia, estudiosos da área da surdez mencionam que,
para Aristóteles (384-322 a.C.), todo surdo era mudo. Segundo
o referido filósofo, os nascidos “surdos-mudos”, por não
falarem, embora emitissem sons, não possuíam linguagem e, por
esse motivo, não pensavam. Como consequência, eram vedados
do acesso à razão.

Ainda hoje, a expressão “surdo-mudo” faz-se presente, mais


precisamente, no âmbito de ouvintes alheios às discussões na
área da surdez. Somado a isso, é uma crença pensar que “o
surdo não fala porque não ouve”, tendo em vista que os surdos
falam em sua língua de sinais – no caso dos surdos brasileiros,
é a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Além disso, é preciso
compreender que, se o aparato vocal do surdo estiver intacto,
ele também pode falar uma língua majoritária oral de modo
inteligível

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NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Outro equívoco presente no senso


comum de maioria ouvinte é o uso
da terminologia “mudo” para fazer
referência às pessoas surdas.
Diferentemente de uma pessoa
surda, uma pessoa muda não pode
falar ou fazer qualquer tipo de
manifestação vocal, inclusive já
houve comprovação científica de
que uma pessoa com perda
auditiva não apresenta problemas
em seu aparelho fonador. Nesse
sentido, se o surdo for treinado
(oralizado), pode falar uma língua
oral auditiva.

Infelizmente, para muitas


pessoas, o contexto dos surdos,
além de desconhecido, é envolto
por estereótipos do tipo: “todo
surdo é mudo”, “o surdo possui
deficiência mental”, bem como
termos pejorativos: “mudinho”,
“surdinho”, “doidinho” e “surdo-
mudo”, que são frequentemente
utilizados. Logo, é preciso
compreender que o sujeito surdo
não é mudo nem deficiente,
tampouco um alienado mental ou
uma cópia com defeito do ouvinte.
O sujeito surdo é, pois, uma
pessoa normal que apresenta
especificidades linguísticas e
culturais diferentes das
especificidades dos ouvintes

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A terminologia “deficiente auditivo”, por sua vez, geralmente,


é a mais utilizada nos dias de hoje para se referir às pessoas
com algum tipo de perda auditiva. Ao utilizá-la, coloca-se a
surdez no mesmo patamar de outras deficiências, implicando, a
visão da pessoa com surdez como portadora de uma patologia
localizada, sendo o grau de perda auditiva – do chamado
“deficiente auditivo” – principal aspecto para significar e
representar uma pessoa com perda auditiva.

A respeito das terminologias “surdo-mudo”, “mudo” e


“deficiente auditivo”, é perceptível que elas estão mais
relacionadas à concepção de surdez como deficiência. Nesse
sentido, muitos ouvintes, alheios à discussão sobre a surdez
como diferença, desconhecem o efeito de sentido produzido
por esses termos, que, além de serem carregados de ideologias
e de relações de poder, são também carregados de interesses
políticos, filosóficos e econômicos.

* Mestra em Estudos Linguísticos - UEFS


graciely_gal@hotmail.com

LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais

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A Kikosofia é um espaço de vozes, consonantes, dissonantes, de
livre e respeitosa expressão e opinião. Um local que se pretende
divertido, reflexivo, por vezes louco, mas sempre acolhendo o outro,
independente de diferenças, somos todos iguais, e isso é o que de
mais belo existe no viver, saber que não somos cópias de outro ser.

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kikosofia@gmail.com

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Ingratidão

Obrigado, Senhor!
Reclamar de quê?
Para quê?
Estou belo,
Esbelto,
Forte,
Musculoso
E com dinheiro.
Agora sim,
Posso ser
Devo ser
Bígamo.

Edmilson dos Anjos

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Quarta Crescente

O CULTIVO DA TOLERÂNCIA

O vocábulo tolerar não significa apenas ser indulgente,


condescendente, transigente ou permissivo, mas acima de tudo
saber suportar. No mundo atual, praticar a tolerância a cada dia
exige mais de nós, pois, a conturbação social e a pressão
psicológica exercidas sobre o homem tornam-no, mais que
nunca, exigente, imprudente, agressivo e até inconsequente. É Não é fácil ser
nesse contexto que tolerar assume importância fundamental em
nossa sociedade.
tolerante,
abandonar as
Tolerar é um dever! Este princípio está intrinsecamente ligado a
um dos fins supremos de nossa vida: a fraternidade. E esses fins
paixões, os
supremos estão amplamente expostos nas orientações cristãs, vícios, as
que nos falam, também, sobre o respeito, a caridade, a
paciência, a autocrítica e, como corolário, o amor ao próximo.
crenças
limitantes,
Unido ao seu irmão está, todo aquele que tolera as diferenças,
sem nenhum preconceito, demonstrando respeito às
enfim, mudar
discordâncias, sem contudo abrir mão de suas convicções. Eis a de atitudes
grande questão, as convicções. Penso não ser coerente basear as
convicções em preceitos que fujam das bases morais,
para fazer
principalmente as estabelecidas pelas religiões cristãs, todavia, progressos na
se alguém o faz, não me qualifica a desrespeitá-lo, rotulá-lo ou
discriminá-lo de qualquer maneira. A cada dia nós humanos
vida.
temos por obrigação exercitar a prática da tolerância, o que
facilita muito todo relacionamento entre os irmãos ampliando o
espírito fraterno que existe no seio da nossa sociedade.

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Não é fácil ser tolerante, abandonar as paixões, os vícios, as crenças limitantes, enfim,
mudar de atitudes para fazer progressos na vida. Logicamente a tolerância, a paciência
e a perseverança deverão ser os fatores de motivação, que impulsionarão a conquista
das demais virtudes professadas pelo cristianismo, alavancando nossa mudança
interior. Mudança esta que, não se torna possível, senão na medida em que viajamos
para dentro de nós, com a visão crítica de quem se reconhece pouco evoluído, mas,
disposto a se tornar uma pessoa melhor, por considerar que todos somos iguais,
portanto, com os mesmos direitos e deveres.

Chico Xavier, emérito pensador e filantropo, certa vez disse: “Permito que todos sejam
como queiram ser, mas eu, só posso ser bom e correto”. Eis o cerne da questão. As bases
morais cristãs, estão expostas muito claramente nos escritos próprios, porém, mesmo
dentro da mesma religião existem formas diferentes de interpretá-las. Assim sendo,
resta-nos apenas sermos “bons”, não ferindo, não agredindo, não desrespeitando, não
julgando, enfim, não praticando com o próximo aquilo que não queiramos para nós.
Parece simples, mas, trata-se de um esforço diário e hercúleo, principalmente para nós
seres imperfeitos.

Atualmente temos assistido a uma série de episódios lamentáveis, onde pessoas se


agridem, se alcunham e se desrespeitam, sob o pretexto de ideologias político-
partidárias, parecendo terem se esquecido de que somos todos brasileiros e, portanto,
irmanados pelo mesmo sentimento de pátria e pertencimento. Irmãos agredindo
irmãos, amizades se desfazendo, famílias se dividindo, via de regra, por defesa de
homens e não de princípios morais. Um caos promovido pela intolerância, que agride
nossa sociedade, nossos costumes e nosso futuro. Homens incautos, agindo por paixões,
sem se preocuparem com as regras básicas do salutar convívio social, banalizando
verdadeiros crimes, que, em última análise, desvirtua a sociedade brasileira, através da
inversão de valores, tão perniciosa.

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Minha saudosa mãe dizia: “Filho, o certo é o certo, mesmo que ninguém esteja fazendo
e o errado é errado, mesmo que todos estejam fazendo”. Sábias palavras de uma
mulher simples, de uma época onde as questões morais se sobrepunham a todo o resto.
De uma época onde a família representava a base de toda a sociedade, como deve ser.
De uma época em que se respeitava as instituições e as autoridades. De uma época
onde os símbolos nacionais eram cultuados e exibidos com orgulho nas escolas, nas
repartições públicas, nos esportes e no cotidiano. O certo é o certo e ponto! Não
devemos admitir alternativas à honestidade, mas, pensemos bem, se há alguém que
pense diferente disso ou de qualquer outra coisa, não seremos nós os justiceiros
desrespeitosos que os agredirão. Confiemos na justiça maior. Se acreditamos em um
Deus amoroso, justo e bom, não podemos tomar a reprimenda por nossas mãos.
Confiemos em nossa FÉ!

Concluindo, concito todos a uma reflexão no sentido de avaliarmos verdadeiramente se


estamos sendo tolerantes para com nossos irmãos, já que, como dissemos, a tolerância
nos aproxima da fraternidade e essa fraternidade nos distingue como verdadeiros
cristãos!

Muita Paz!

Josnei Castilho

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Estante
DICAS DE LEITURA PARA SEUS MOMENTOS
Pois o conhecimento exige compromisso

Entrelaçando histórias de vítimas, iniciantes no narcotráfico, agentes


da lei e chefes dos cartéis, Winslow nos entrega um romance
arrebatador, de violência crua e sistemática, com inúmeros paralelos
com a realidade do tráfico internacional de drogas e mostra como a
ambição pelo poder, a luta pela sobrevivência, o medo e a
desesperança povoam o mundo das drogas e como o funcionamento
desse comércio prospera em conluio com políticos, instituições
financeiras e forças policiais. Leitura empolgante e viciante que nem
com os vários erros de revisão existentes na edição nos faz diminuir
o ritmo.

Art Keller, nosso protagonista, lutou durante quase 40 anos de sua


vidas no combate aos cartéis mexicanos, considerado um agente
duro e implacável cuja história marcada pela violência permitiu uma
intimidade com o narcotráfico e seus mecanismos como poucos, A Fronteira - Don Winslow
agora no apíce da carreira ele se dá conta de que “Ninguém tem Ano: 2020
784 Páginas - 23 x 15.2 x 3.6 cm
interesse em ganhar essa guerra, eles têm interesse em mantê-la. (...)
Harper Collins editora
isso é um negócio.”

Pablo Escobar é, provavelmente, a figura mais mítica do


tráfico de drogas, um símbolo nefasto do quanto o poder
corrompe e é corrompido. Alonso Salazar faz um apanhado da
vida deste traficante de drogas da adolescência até sua
morte, mostrando o início de sua vida no crime, sua ascensão
no mundo da droga, sua afeição pela família e veneração por
sua mãe. O livro mostra de forma crua que mais do que um
"narco", Escobar foi um líder egocêntrico e implacável em
suas aspirações, na defesa de sua família e de seus
interesses. Um homem que enganava, manipulava, extorquia,
enfrentava os poderes de forma extremamente hostil e não
admitia erros. Um mito que se criou com morte e destruição,
com discursos sociais e ações terroristas que incluíam
derrubar um avião cheio de inocentes só para matar um
desafeto. O livro serviu de base para a série de sucesso
Pablo Escobar Narcos e suas duas primeiras temporadas, assim como para
Alonso Salazar J. - ano: 2014
368 Páginas - 22.6 x 15.4 x 2.2 cm série colombiana “O patrão do mal”.
Editora: Planeta
KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Tolerar é uma forma de amar


A ciência é fantástica. Na busca ininterrupta do porquê da vida, do movimento dos
astros, corpos celestes e todos os fenômenos físico-químicos, a origem dos fatos é o
cerne de todo o estudo científico: a compreensão da causa primária de todas as coisas
pode e deve ser respeitada por todos os povos.

Em seus mais variados cálculos, seja na sequência Fibonacci ou na gravitação universal,


tudo que movimenta o cosmos, possui um início, uma força propulsionadora, que de
alguma forma convida subliminarmente o homem para as mais profundas reflexões.

Ora, se o universo possui uma submissão aos princípios da teoria da relatividade de


Eisntein, e toda a formação universal surgiu a partir da compressão de uma nebulosa,
sua origem remete ao acúmulo de forças inimagináveis por quaisquer máquinas
construídas pelo homem.

Então, surge a questão: se tudo possui uma origem, de onde surgiu essa força que
constituiu os astros e a expansão do universo?. O que mantém os planetas, corpos
luminosos e bilhões de galáxias exatamente nas posições que se encontram? Como
então explicar o universo humano, com trilhões de células e suas mais várias funções
metabólicas? São indagações que tentam ser respondidas, e ao menos enquanto o
homem não conseguir superar os seus simplórios 12% dos recônditos cerebrais, é
muito salutar e previsível acreditar naquela força ser proveniente de um ser que rege
todo o cosmos, talvez até algo que perpassa a racionalidade, mas que mantém ainda
de alguma forma o ser humano na linha tênue do equilíbrio mental, e isso deve ser
respeitado.

Eis então o ponto crucial deste texto: cada pessoa tem o direito em acreditar na força
geradora do mundo, pautada pelo princípio da fé. É este sentimento infinistesimal que
a medicina tanto vem ocupando-se, para explicar fenômenos, como a regressão de
doenças, consolo para sofrimentos terrestres e provas vividas pela humanidade, e isso
independe da religião.

Aliás, "religare" faz parte da etimologia da palavra religião, que nada mais é que unir o
homem ao transcendental, ao ente superior, portanto à sua fé. Tal concepção é única,
não podendo aceitar discursos de ódio e intolerância religiosa.

KIKOSOFIA
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Ninguém explica Deus ou força divina, seja o mais fervoroso adepto


do islamismo, budismo, protestantismo ou judaismo, e nem o
próprio ateu, que afirma não acreditar naquela Entidade. Entretanto,
afirmar que algo existe ou não, já é por si só uma demonstração de
fé, do acreditar em algo.

Então, se todos os seres humanos possuem a livre capacidade de


pensar, e como foi dito por Rubens Rosa, "pensar é estar doente dos
Uma confissão olhos", o que faz uma religião, que nada mais é que um exercício de
fé, ser melhor ou inferior a outra? E neste amálgama de sentimentos
convicta da fé,
movidos pelo amor à fé em algo vivo e ardente nos corações
pautada no
humanos, não cabe vilipendiar a designação religiosa do semelhante.
amor ao
próximo e no Observem o seguinte quadro mental: alguém caminhando pela rua e
respeito às encontra um local contendo uma imagem com mais de 10 metros de
diversidades altura, em forma da Cruz Cristã. Isso representa algo bom para você,
dos povos. Aí caro leitor? Talvez a sua percepção seja positiva, mas não se esqueça
está o foco da que o crucifixo, que tem a sua origem no termo "cruciare" - torturar,
tolerância até crucificar - para outras denominações religiosas e outros povos com
culturas variadas pode ser a equivalência da constante lembrança do
mesmo das
sofrimento de um homem que nada fez além de pregar uma
vãs
convicção de fé. É, nobres leitores! Uma confissão convicta da fé,
discussões. pautada no amor ao próximo e no respeito às diversidades dos
povos. Aí está o foco da tolerância até mesmo das vãs discussões.

Agora, e se essa mesma pessoa que está caminhando na rua,


avistasse logo a frente um prato com obrigações da matriz africana?
Seria algo relegado ao mal? Como definir esse mal? Seguramente,
se a sensação do nobre leitor foi a de repulsa, é porque a sua
formação está amparada exclusivamente na religião mais expansiva
do ocidente, que é o cristianismo, seguramente eivada de
eurocentrismo. Sim, claro! Não se deve esquecer da adoção dos
ideais do Cristo pelos imperadores romanos, ao notar o vasto
império das vaidades romanas sendo destroçado. Entretanto,
acreditar no Carpinteiro de Nazaré, bem como nas histórias narradas
pelos pentateuco de Moisés não é uma obrigação - é uma escolha,
que não pode e nem deve ser uma verdade universal imposta a tudo
e todos, como se fosse uma sentença transitada em julgado pelos
"juízes do mundo.

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Aliás, a própria história do Gênesis, já estava narrada 5 mil anos anteriores ao


que hoje é conhecido pelo best seller bíblia, segundo o que consta nas tábuas
sumérias. A criação do homem pelo barro; o sopro divino; o dilúvio; a concepção
do "façamos o homem conforme a NOSSA imagem"; o grande dilúvio; a arca de
Noé, dentre muitas outras alegorias litúrgicas.

E desta maneira, mostra-se para o amigo leitor que todas as religiões do mundo
têm uma função especial: fazer com que o humanidade evolua nas variadas
concepções da vida terrestre, sempre nutrindo a sua respectiva crença com amor,
perdão, caridade, renúncia e fé, ao invés de julgar e condenar o semelhante por
ideologias diversas da sua.

Trazer o mal que é concebido em uma religião e transmutar para outra que não
possui compatibilidade alguma é algo que precisa ser estripado do âmbito social.
Não é porque o protestantismo acredita em entidades malignas e demônios, que
todas as demais designações necessariamente tenham que ser iguais. E em
continuidade a tal argumento, levar para a outra designação religiosa conceitos
como inferno, purgatório, diabo ou demônios, àquilo que é sagrado para outros
povos e culturas, é de uma petulância e arrogância litúrgica sem precedentes.

Se a perfeição habitasse nos seres que seguem as mais variadas religiões, o


mundo teria homens e seres purificados, sem vícios ou máculas, o que não
corresponde a realidade deste orbe.

Sendo assim, é imprescindível que haja respeito pela religião da humanidade.


E possível ir além, convidando o respeitável leitor para uma viagem para
dentro de si, na busca para o auto entendimento, e por consequência, praticar
o exercício do respeito por opiniões e filosofia religiosas diversas. Se o
Apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso fosse intolerante, não teria percorrido
mais de 25 mil quilômetros ao longo de 30 anos de atividade de evangelização.
Ele não viu o Cristo, mas acreditou nele, e foi o poder da fé que transpôs
grandes abismos entre Saulo e o Paulo, da cidade de Tarso. Foi a tolerância
que imperou, com a vitória do amar, ao invés de brigar. Assim sendo, não seja
intolerante naquilo que o teu semelhante acredita. O respeito às percepções
também é uma forma de amar, e isso, sendo Gandhi, Jesus ou Maomé, foi um
grande legado que parece ter sido esquecido por muitos.

David Montenero
@davidespiritualidadefilosofica

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

UM ARTISTA NO TRAPÉZIO FRANZ KAFKA

Como se sabe, a arte do trapézio que se pratica no alto das cúpulas


dos grandes circos é uma das mais difíceis entre todas as exequíveis
ao homem – tinha organizado sua vida de tal maneira – primeiro por
afã profissional de perfeição, depois por costume que se tornara
tirânico – que, enquanto trabalhava na mesma empresa, permanecia
dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades – por outro lado
muito pequenas – eram satisfeitas por criados que se revezavam em
intervalos e vigiavam em baixo. Tudo o que se precisava em cima eles
subiam e baixavam em cestinhos construídos por acaso.

Desta maneira de viver não se deduziam para o trapezista


dificuldades especiais com o resto do mundo. Apenas era um tanto
incômodo durante os outros números do programa, porque como não
se podia esconder que ele permanecera lá em cima, ainda que
permanecesse quieto, sempre algum olhar do público se desviava para
ele. Mas os diretores perdoavam-no, porque era um artista
extraordinário, insubstituível. Além disso era sabido que não vivia
assim por capricho e de que apenas daquela maneira podia estar
sempre treinando e conservar a extrema perfeição de sua arte. Além
do mais, lá em cima estava muito bem. Quando nos dias quentes de
verão, se abriam as janelas laterais que corriam ao redor da cúpula e o
sol e o ar irrompiam no âmbito crepuscular do circo, era até belo. Seu
trato humano estava muito limitado, naturalmente. Alguma vez subia
pela corda de ascensão algum colega de exibições, sentava-se ao seu
lado do trapézio, apoiado um na corda da direita, outra na da
esquerda, e conversavam longa- mente, ou então os operários que
reparavam o teto trocavam com ele algumas palavras por uma das
claraboias ou o eletricista que comprovava as ligações de luz na
galeria mais alta, lhe gritava algumas palavras respeitosas, se bem que
pouco compreensíveis. A não ser nessas oportunidades, estava
sempre solitário.

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Alguma vez um empregado transitava cansadamente nas horas de sesta pelo circo vazio,
erguia seu olhar à quase atraente altura, onde o trapezista descansava ou se exercitava em
sua arte sem saber que era observado. Assim teria podido viver tranquilo o artista do
trapézio, a não ser, pelas inevitáveis viagens de um certo lugar para outro que o
molestavam sumamente. Certo é que o empresário cuidava de que este sofrimento não se
prolongasse demasiado.

O trapezista saía para a estação em um automóvel de corridas que corria, pela madrugada,
pelas ruas desertas, com máxima velocidade; muito lenta, contudo, para sua nostalgia do
trapézio. No trem, estava preparado um apartamento so- mente para ele, onde
encontrava, em cima, na redezinha das equipagens, uma substituição mesquinha – mas de
algum modo equivalente – de sua maneira de viver. No local de destino já estava arrumado
o trapézio, muito antes de sua chegada, quando ainda não se tinham fechado as tábuas
nem colocado as portas. Mas para o empresário era o instante mais agradável aquele em
que o trapezista se apoiava na corda e subia e em um átimo se encarapitava de novo sobre
o seu trapézio

Apesar de todas as precauções, as viagens perturbavam gravemente os nervos do


trapezista, de modo que por muitos felizes que fossem economicamente para o
empresário, sempre lhe eram penosas. Uma vez em que viajavam, o artista na redezinha
como sonhando, e o empresário recostado no canto da janela, lendo um livro, o homem do
trapézio apostrofou-o suavemente. E lhe disse, mordendo os lábios, que dali em diante,
necessitava para o seu viver, não de um trapézio, como até então, mas dois, dois
trapézios, um em frente ao outro. O empresário concordou logo. Mas o trapezista, como
se quisesse mostrar que a aceitação do empresário não tinha mais importância do que a
sua oposição, acrescentou que nunca mais, em nenhuma ocasião, trabalharia unicamente
sobre um trapézio.

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Parecia horrorizar-se ante a ideia de que isso pudesse vir acontecer-lhe alguma vez. O
empresário, detendo-se e observando o seu artista, declarou novamente sua absoluta
concordância. Dois trapézios são melhores do que um só. Além disso, os novos trapézios
seriam mais variados e vistosos. Mas o artista, de súbito, se pôs a chorar. O empresário,
profundamente comovido, ergueu-se de um salto e perguntou-lhe o que lhe acontecia, e
como não recebesse nenhuma res- posta, subiu ao assento, acariciou e abraçou e
estreitou seu rosto contra o seu, até sentir as lágrimas em sua pele.

Depois de muitas perguntas e palavras carinhosas, o trapezista exclamou, soluçando: -


Apenas com uma barra nas mãos como poderia eu viver! Então, foi muito fácil ao
empresário consolá-lo. Prometeu-lhe que na primeira estação, na primeira parada e
hospedaria, telegrafaria para que instalassem o segundo trapézio. Enfim, deu-lhe os
agradecimentos por ter-lhe feito observar por fim aquela omissão imperdoável. Desse
modo, pode o empresário tranquilizar o artista e tornar a seu canto. Em troca, ele não
estava tranquilo, com grave preocupação espiava, às furtadelas, por cima do livro, ao
trapezista. se semelhantes pensamentos tinham começado a atormentá-lo, poderiam já
cessar por completo? Não continuariam aumentando dia por dia? Não ameaçariam sua
existência? E o empresário alarmado, acreditou ver naquele sono aparentemente
tranquilo, em que tinha terminado os choros, começar a desenhar a primeira ruga na lisa
fronte infantil do artista do trapézio.

Franz Kafka (1883 - 1924) - Foi um escritor tcheco, de língua alemã, considerado um dos
principais escritores da Literatura Moderna. Seus textos com frequência retratam a
ansiedade e a alienação do homem do século XX. em narrativas em quê o pessimismo é
destacado por deformações da realidade em alegorias não convencionais e subversivas,
muitas vezes sob uma atmosfera de medo e solidão, mas que transmitem metáforas de busca
por libertação, autoconhecimento e transformação.

Suas obras mais famosas são A Metamorfose, em quê o protagonista, Gregor Samsa, ao
acordar um dia, percebe estar se transformando num horrível inseto, fato que é visto por ele
como inevitável e o fará ver sua família e o mundo ao redor de forma cada vez mais inusitada,
num obra que critica o capitalismo e a descartabilidade social do homem. E O Processo, no
qual um homem, Joseph K, é preso repentinamente e processado por um crime que nunca é
revelado e que aparentemente ninguém sabe do que se trata., de onde se inicia a luta do
protagonista para saber do que é acusado e de forma irá se defender, numa crítica
desesperadora ao autoritarismo e a burocracia.

Kafka relutava em publicar seus textos, de modo que durante a vida poucos artigos seus
saíram em revistas. Ele chegou a pedir ao amigo Max Brod que queimasse seus manuscritos,
mas este, após a morte do escritor os editou, tornando-o conhecido mundialmente.
“Kafkiano” é um termo que hoje designa situações absurdas como as descritas em seus livros.

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

Ora direis ouvir estrelas


Ora (direis) “ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Olavo Bilac

KIKOSOFIA
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

CINEOLHAR
As últimas doze horas de vida de Jesus
filmadas com um realismo extraordinário e
perturbador fez deste filme um dos mais
polêmicos da carreira do diretor e ator Mel
Gibson. Baseado em extensas pesquisas sobre
a cultura e formas de execução da época,
vemos de forma crua e cruel todo o sacrifício
suportado pelo Homem de Nazaré durante a
sua prisão, julgamento e condenação que o
levaram a ser crucificado. É um filme
obrigatório para quem se denomina cristão,
mas exige. além de uma profunda reflexão
sobre os fatos, um extremo senso de coragem
A paixão de Cristo (The Passion of The
para assistir as cenas e sua violência Christ) - 2004 - 2h 07min
mostrada sem filtros. Direção: de Mel Gibson
Com: Elenco: Jim Caviezel, Maia
Morgenstern, Christo Jivkov

O cinema russo não costuma ser popular por aqui,


principalmente diante da maciça presença das
produções norte americanas, ainda assim a Rússia
costuma produzir bons filmes. Salyut 7 narra a
história real de dois astronautas encarregados de
tentar salvar a primeira estação espacial lançada ao
espaço e que estava prestes a sair de órbita e cair na
terra. O desastre iminente torna a aventura
extremamente tensa e é cativante pelo carisma dos
personagens, que correm contra o tempo e desafios
quase impossíveis para solucionar os problemas que
vão se acumulando nesta que foi a missão espacial
Salyut-7 tecnicamente mais desafiadora vivida pelo homem.
2021 - 1h 58 min
Direção: Klim Shipenko
Com: Pavel Derevyanko, Vladimir
KIKOSOFIA
Vdovichenkov, Mariya Mironova
NÚMERO 19 MARÇO DE 2024

RESENHA HQ
YESHUA ABSOLUTO
A história de Jesus já foi revisitada em diversas mídias,
com visões e interpretações diferentes, ora mais
próximas daquilo descrito nos Evangelhos, ora
distorcendo ou polemizando seu conteúdo. Em Yeshua,
Laudo Ferreira (desenho e roteiro), junto a Omar Viñole
(arte final), busca trazer uma nova dimensão a
biografia do Mestre. Uma visão intimista e pessoal, fruto
de anos de estudos, leituras históricas dos evangelhos
canônicos e apócrifos e outros documentos e carregado
de sua visão pessoal de Jesus e sua caminhada
profética e apostólica.

Diferente do que se possa imaginar, a história, que nesta


edição compila os três álbuns originais (Assim Em Cima,
Assim Embaixo; O Círculo Interno, O Círculo Externo e
Onde Tudo Está); não é restritiva a pessoas religiosas,
sendo um
projeto que pode ser lido por qualquer pessoa. Não há proselitismo aqui, mas leitura
extremamente sensível e desafiadora, que amplia a mensagem de amor incondicional
ao próximo transmitida por Jesus, que não é mostrado aqui como um ser divino, infalível
em suas ações e emoções, mas como um ser humano numa jornada de fé que busca
entender e aceitar o seu papel numa missão de origem sobrenatural designada por
Deus.

A opção de Laudo por manter os nomes dos personagens em hebraico e utilizar um


traço mais caricato ajudam na imersão da história, fazendo com que deixemos de ver
mais um relato biográfico do Cristo, mas uma poderosa e inspiradora história que
mantém uma mensagem poderosa e universal, capaz de tocar mentes e corações
independentemente da passagem do tempo e de crenças pessoais. Nas palavras de
Laudo, “A caminhada de Jesus e seu Deus interior sendo construído é a possibilidade que
todos temos de gerar sempre o melhor dentro de todos nós.”

O álbum em capa dura (editora Devir), possui acabamento em laminação fosca em


verniz, fitilho, 544 páginas em preto e branco, das quais 16 são extras que trazem estudo
de personagens, referências, glossário de termos hebraicos, a biografia dos autores e um
prefácio da filósofa júlia Bárány Yaari.

KIKOSOFIA
EDIÇÃO DE MARÇO DE 2024

"NÃO TENHAM MEDO", DISSE ELE. "VOCÊS


ESTÃO PROCURANDO JESUS, O
NAZARENO, QUE FOI CRUCIFICADO. ELE
RESSUSCITOU! NÃO ESTÁ AQUI. VEJAM O
LUGAR ONDE O HAVIAM POSTO.
MARCOS 16:6

Francisco Moreira

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