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EDIÇÃO DE AGOSTO DE 2023

KIKOSOFIA

Francisco Moreira
Número 13 AGOSTO DE 2023

AGOSTO
Por Francisco Moreira

Precisamos falar sobre violência. Assunto que


parece estar sempre na pauta da vez, seja no
desamparo das ruas, onde parece sempre imperar a
lei do mais forte, seja na ausência sempre presente
do Estado através de políticas partidárias e nunca
de desenvolvimento social e até mesmo violência
ocorrida no que deveríamos ter de mais seguro, o
lar. Local em que infelizmente costumam acontecer
fatos inconcebíveis em termos de humanidade.
Mulheres que sofrem agressões diárias de esposos,
pais, ex-companheiros. Crianças que são abusadas
por quem deveriam ser cuidadas e protegidas e
quase sempre sem que tais violações sejam vistas,
até que seja tarde demais.

A violência no interior de nossas casas avança sob


a complacência do silêncio de quem não quer se
meter em briga de casal, de que prefere não ver os
sinais de abuso. Grassam sob a espada da Justiça
que parece direcionar cada vez mais seu olhar
vendado a alvos políticos, deixando os mais
vulneráveis debaixo da lei do mais forte. Portanto,
ainda precisamos sim, falar muito em violência e
como ela afeta todos nós.

Kikosofia nº 13. © 2023 Este trabalho está licenciado por Francisco


Moreira sob CC BY-NC-ND 4.0. Para ver uma cópia desta licença, visite
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KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

AGOSTO LILÁS
A violência continua a aumentar

As estatísticas vem mostrando que apesar de todas as


campanhas de conscientização e das politicas públicas
adotadas pelo Estado, a violência contra a mulher tem
aumentado drasticamente. Na Bahia, por exemplo, os casos
de violência aumentaram 58% em 2022,segundo dados do
boletim Elas vivem: dados que não se calam. Publicado
Violência diz
pela Rede de Observatórios de segurança. São Paulo e Rio respeito a toda
de Janeiro se destacam por concentrar mais da metade dos
casos registrados entre sete estados pesquisados. Sociedade
Os casos de estupro, com a maioria das vítimas figurando
abaixo de 13 anos de idade, registrados é o maior já visto
na história do País. Acontecem dois casos por minuto de Denuncie!
acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública.
disque 180

Chamar a atenção para esses casos apenas não basta. É


necessário que a punição dos culpados seja rápida e eficaz
de modo a desestimular o crime e dar segurança as vítimas
e as pessoas que denunciam os fatos.

Vale lembrar que qualquer pessoa pode (deve) fazer


denúncias de casos de violência contra mulher, não apenas
a vítima. Basta ligar para o disque 180 - A ligação pode ser
feita anonimamente. Lembre que violência diz respeito a
toda sociedade e precisa ser combatida por todos.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Não é possível
continuar
objetificando o
corpo feminino
como
propriedade a
ser disposta
pelo homem.
Denuncie!
disque 180

Os dados acima, retirados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostram bem


como temos muito a avançar na discussão, conscientização e prevenção contra a
violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças e adolescentes abusadas. Esse
tipo de crime não pode mais ser aceito como parte de um "contexto cultural" de
dominação masculina sobre a mulher. Não é possível continuar objetificando o corpo
feminino como propriedade a ser disposta pelo homem. Para isso é urgente que todos nós
passemos a vigiar e observar sinais que indiquem tais violações e que as punições aos
agressores sejam rápidas e eficazes de modo a garantir a segurança da vítima.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

AGOSTO
Amamentar é ato de amor
Esse mês lembramos a importância da
amamentação para o recém-nascidos e para as
mães, já que o ato de amamentar ajuda a
fortalecer e solidificar o vínculo entre a mãe e a
criança, ajudando ainda a promover o
desenvolvimento desta nos seis primeiros meses
de vida, sendo capaz de suprir suas
necessidades nutricionais. Amamentar ajudar
também a garantir o melhor desenvolvimento do O mês de agosto
cérebro infantil, a melhorar a defesa do
é conhecido como
organismo e diminuir o risco de doenças, como a
obesidade e o diabetes. Sendo um importante Agosto Dourado
exercício para que a criança tenha dentes fortes,
por simbolizar a
desenvolva a fala e tenha uma boa respiração.
luta pelo
Amamentar traz também benefícios para a mãe, incentivo à
diminuindo o risco de desenvolvimento de câncer
amamentação –
de mama e o de ovário, bem como do risco de
morte por artrite reumatoide. Nos primeiros seis a cor dourada
meses, o ato de amamentar pode garantir uma está relacionada
proteção contra uma nova gestação e facilita na
ao padrão ouro
perda do excesso de peso ganho durante a
gravidez. de qualidade do
leite materno.
A OMS recomenda que nos primeiros 6 meses de
vida, o bebê seja alimentado exclusivamente com
leite materno. Entretanto, segundo dados do
Unicef, somente 4 entre 10 bebês no mundo
conseguem se alimentar dessa forma. É preciso
entender que é no leite materno que a criança
encontra as substâncias necessárias para a sua
nutrição, além de anticorpos fundamentais para
protegê-la no início da vida, evitando a
mortalidade por doenças infecciosas. O leite
materno também protege contra infecções do
trato respiratório, evita casos de diarreia e
diminui os riscos de alergia.

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Todas as mulheres apresentam leite capaz de nutrir e proteger sua


criança, NÃO EXISTE LEITE FRACO e não é necessário adicionar
nenhum complemento à alimentação no início da vida de um bebê. Só
existe restrição ao aleitamento materno em casos de infecção por HIV
(AIDS), mesmo que em tratamento tenham carga viral não detectada, ou
em caso de infecção pelo HTLV (outro vírus que afeta a imunidade).

NÃO EXISTE LEITE FRACO

A utilização de remédios (mesmo antidepressivos) não impede a


amamentação na maioria dos casos, sendo recomendado que em caso de
dúvidas, um médico seja consultado. Claro que se a mãe é usuária de
drogas (álcool, cocaína, crack e outras) deve suspender o uso enquanto
amamenta.

Para aquelas mulheres que por algum motivo não pode amamentar de
forma alguma, existem bancos de leite humano mantidos por diversas
entidades públicas e privadas, graças aquelas mães que produzem leite
em excesso. Para saber onde, tente contato com a secretaria municipal
de saúde de sua cidade.

A mãe que está amamentando deve ficar para se manter bem hidratada,
por isso deve aumentar a ingestão de líquidos, sendo recomendado
manter sempre uma garrafinha de água por perto. Quanto a alimentação,
não há restrições, mas é recomendado evitar alimentos muito
processados/, dando preferência a frutas, vegetais e alimentos ricos em
proteína como ovos, frango, além de peixes com a sardinha, o atum e o
salmão.

Vale aqui lembrar que a CLT em seu artigo 396 dita que a mulher
empregada tem direito a duas pausas diárias exclusivas de meia hora
cada, para amamentar durante a jornada de trabalho, ainda que seja
adotante, ate que seu filho complete 6 meses de idade. E que a lei
13.872/2019 dá direito as mães amamentarem seus filhos durante a
realização de concursos públicos na administração pública direta e
indireta dos Poderes da União.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), garante que toda criança


tem direito ao aleitamento materno. O poder público, as instituições e os
empregadores devem oferecer condições adequadas para garantir esse
direito.
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Número 13 AGOSTO DE 2023

Embora amamentar seja um ato natural e instintivo, a primeira mamada


pode causar estranheza a mães de primeira viagem, portanto relaxe e
veja algumas dicas para facilitar o momento:

Espere até que a boca do bebê esteja totalmente aberta e depois


ajude-o a pegar.
A aréola deve estar na boca do bebê, que deve envolver todo o
mamilo.
A ação de espremer a aréola é o que libera o leite.
Se não der certo, use seu dedo para interromper a sucção e tente
novamente.
Cada mamada dura geralmente entre 20 e 45 minutos, respeite o
ritmo da criança, a cada 3 horas.
Observe se o bebê está ingerindo o suficiente e a cada mamada
troque o seio. Abaixo algumas posições que a mãe pode experimentar
durante a amamentação.

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Número 13 AGOSTO DE 2023

PATERNIDADE: MISSÃO DE AMOR

Porque o
Senhor
Ser pai tem algo de divino. Tanto que o Criador se chamou de Pai
repreende
em inúmeras ocasiões e com tal analogia procurou demonstrar o
amor, a responsabilidade e o cuidado que são necessários ter. Em aquele a quem
José, temos o exemplo de um pai que voluntariamente assume a ama,
missão de amar de forma incondicional, de proteger e orientar no
assim como o
caminho a ser percorrido durante a vida.
pai, ao filho a
Paternidade é uma escolha do homem, que deve ser feita com quem quer
bastante reflexão e sabedoria. Não basta que o homem seja um bem.
provedor da casa, mas estar presente. É necessário que ele também
escolha ser protetor da família, o exemplo a ser seguido pelos
filhos, ele não precisa ser o "melhor amigo" mas deve estar presente Pv 3, 12
como último refúgio do filho, ser o elemento de confiança, dando
atenção e sobretudo amor.

Ser pai deve ser uma experiência de transformação. Não é fácil e


muitas vezes irá parecer um desafio grande demais. Portanto exige
paciência, aprendizado e resiliência. Ser pai é descobrir que limites
são necessários e deixar isso claro para os filhos, mesmo que as
vezes doa quando é preciso dizer "não!".

A paternidade é fantástica. E é um privilégio poder ver seus filhos


crescerem, suas personalidades se formarem e perceber seus
próprios traços presentes neles durante o desenvolvimento até a
vida adulta e a formação de suas próprias jornadas familiares.

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Número 13 AGOSTO DE 2023

PERMITA-SE Alice Moreira *

31 de julho é o dia mundial do Orgasmo, campanha


que surgiu a partir da constatação de uma rede
inglesa de Sex Shops de que 80% das mulheres
ainda têm dificuldades de atingir o clímax durante a
relação sexual. E resolveram chamar a atenção com
o slogan que pode ser traduzido por “Não finja,
atinja”.
Consultora sexual e de
Durante um orgasmo, muitos hormônios de bem-estar
bem estar ínitimo
(como oxitocina, dopamina e endorfinas) são

liberados no corpo e funcionam como uma ligação


@sensualgrifeerotica
para promover uma maior felicidade, criando assim
uma maior satisfação relacional e pessoal.

No Brasil os dados não são muito diferentes, por


isso irei falar um pouco sobre esse universo
“maravigold” que muitas mulheres não conhecem. O
orgasmo nada mais é do que uma experiência
psicofísica que dura alguns segundos, e embora seja
algo que deveria ser natural ainda é cercado de
preconceitos e crenças erradas, sendo recente a
preocupação com o orgasmo feminino e com o prazer
geral das mulheres durante o sexo. Ainda é possível
encontrar quem acredite que “o homem é quem dá
orgasmo à mulher” ou que o orgasmo “certo” é
aquele obtido através da penetração.

Penetração não é a chave!

Hoje em dia sabemos da importância do estímulo no


clitóris para que a mulher atinja o clímax. Afinal, o
clitóris é o único órgão do corpo humano que serve
exclusivamente para o prazer. Estudos demonstram
que a maioria das mulheres precisam de estimulação
clitoriana direta para alcançar o orgasmo. O clitóris
é um pequeno órgão cilíndrico e erétil, com cerca de
8.000 terminações nervosas, situado na parte
interior da vulva, sendo um dos principais pontos de
prazer sexual nas mulheres.
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Número 13 AGOSTO DE 2023

Enquanto o orgasmo vaginal ocorre quando há penetração na parte mais


profunda da vagina, o que nem sempre é fácil de se conseguir. O orgasmo
clitoriano ocorre através do estímulo do clitóris, o que é muito prazeroso
e quando bem-feito leva a resultados incríveis.Outros locais que podem
levar ao prazer feminino são:

O ponto G – uma pequena parte da vagina que fica acima do osso púbico,
e que permanece oculta, surgindo só quando a mulher recebe estímulos no
corpo inteiro deixando-a previamente bem excitada. Para alcançar o
orgasmo no ponto G é preciso que o local seja bem estimulado.

Os seios – são uma das partes do corpo feminino mais sensíveis ao toque,
sendo extremamente importantes para aumentar a excitação da mulher.

O ânus – é uma região repleta de terminações nervosas, porém é das mais


raras de levar as mulheres ao clímax. É preciso estar bem relaxada e
excitada, por isso mesmo deve ser tratado com permissão e muito carinho.

Vibradores são brinquedos que facilitam bastante o orgasmo, provocando


de maneira mais rápida e fácil sensações e sentimentos que te ajudam a
se satisfazer por completo, prolongando a excitação por mais tempo.
Aliados a óleos e outros produtos podem levar o casal a níveis inéditos de
satisfação sexual.

Tudo é claro dentro dos limites saudáveis de bem-estar emocional, físico


e mental de todas as partes envolvidas. É essencial que o casal discuta e
estabeleça juntos o que é confortável e saudável para ambos.

Por isso caro leitor(a) na hora do sexo utilize das preliminares, relaxe a
mente use e abuse de vibramores e produtos eróticos e tenham orgasmos
felizes para sempre

A satisfação na cama é uma questão de saúde física e emocional.

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Estante
DICAS DE LEITURA PARA SEUS MOMENTOS
Pois o mundo é feito de histórias

Art Keller esteve na linha de frente de um dos mais longos


conflitos dos Estados Unidos: a guerra contra as drogas.
Sua obsessão em derrotar um dos maiores chefes do
crime do mundo ― o padrinho do quartel Sinaloa, Adán
Barrera ― o deixara ferido, custara a ele as pessoas que
amava e destruíra um pedaço de sua alma. Agora,
ocupando uma elevada posição no órgão antidrogas
americano, Keller descobre que, ao destruir um monstro,
acabou criando outros. A fronteira de Don Winslow é um
romance fascinante que se apropria muitíssimo bem de
inspirações da realidade para construir uma história
cativante, cheia de absurdos e reflexões que conseguem
capturar detalhes fundamentais do tenebroso poderio dos
cartéis de drogas que se espalham mundo afora,
desafiando estados soberanos. Don Winslow
23 x 15.2 x 3.6 cm - 784 páginas
Harper-Collins editora

Três sombras ameaçam a felicidade e segurança de uma


família amorosa, forçando pai e filho em uma jornada cheia
de aventura e descobertas, na qual a tentativa de mudar o
destino, mostra o quanto o amor é capaz de realizar feitos
incríveis e passar por sacrifícios que parecem insuperáveis.
O título, publicado pela Quadrinhos na Cia é um belíssima
conto criado pelo francês Cyril Pedrosa, que trata de temas
como resignação e aceitação com uma delicadeza ímpar,
capaz de agradar tanto adultos, quanto crianças. As várias
camadas retratadas aqui são deliciosamente contadas
como uma fábula cheia de sensibilidade que, apesar de
retratar a perda, e lidar com uma jornada de
amadurecimento, perda de inocência e choque de
realidades, consegue manter um clima de otimismo e
Por Cyril Pedrosa
272 pgs - 21.4 x 15.8 x 2.4 cm - superação na qual a vida permanece cíclica e contínua.
Quadrinhos na Cia

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A injustiça não modifica o coração dos justos


Estrategista do silêncio

Indignação vem do latim indignatio, que quer dizer


afronta, injustiça, ódio ou raiva, sentimento que nasce
a partir de decisões ou acontecimentos diversos, que
vêm de encontro a expectativas de alguém. Em
pessoas de elevado caráter, a indignação funciona
como incentivo, onde a inquietação conduzirá a
pensamentos e esforços que busca a reparação, seja
ela total ou parcial. É a história de que o dia nasce todo
dia.

Pensar que a inelegibilidade de Bolsonaro será medida


eficaz para barrar os movimentos de direita no Brasil é
um erro grosseiro, estratégia imediatista que só é
pensada e executada por aqueles que vêm na morte, a
única solução de seus problemas, bem como ser aquele
evento destrutivo a única garantia de se ter estrada
livre e privativa para andar como quiser. Ocorre que no
mundo dos humanos, seres de grande potencial para o
bem e para o mal, em “vinte segundos tudo pode
mudar”, como bem diz um jargão de uma das mídias
brasileiras. A massa que se formou ao redor de
Bolsonaro não foi criada da noite para o dia, tem
identidade, valores e expectativas comuns, da mesma
forma que os grupos de apoio a Lula. Com a morte de
ambos, o que ficará é o legado, de pessoas e ações. E
aí, se morrem os dois agora, o Brasil será de esquerda
ou de direita? No atual contexto, a palavra está com a
Justiça, que já sepultou o legislativo.

Diante dessas afirmações, que ninguém me convencerá


do contrário, os corações de esquerda e de direita
continuarão a existir, pulsando cada um em suas
frequências e intensidades, na busca de manter vivo o
sonho da vida que lhe parece ideal, independente dos
esforços da política do momento, do judiciário e do
legislativo. Coração é terra que ninguém vai.

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Número 13 AGOSTO DE 2023

As pessoas que têm um nível alto de senso de justiça podem seguir indignadas, mas jamais irão
parar por tempo indeterminado. Depois da indignação, vem o trabalho e as emoções do cotidiano, e
não tarda, aos que laboram com fé e resignação, ganhar novos impulsos, na direção daquilo que
compreendem como ideal. O momento agora é da esquerda, que tem as canetas e uma energia, em
que pese rarefeita. Eles bem sabem que é necessário esforço demasiado para sustentar o que
roubaram. Nunca será fácil, sobretudo após o surgimento de tantas lideranças de direita em apenas
quatro anos.

Na certeza de que a esperança é a última que morre, sugiro seguir a vida em paz e não levar tudo
para o coração, pois se esvazia suas energias de uma única vez, serás convidado e conduzido
sorrateiramente para o banco do desalento, do desemprego em massa, da fome estonteante e da
saúde abalada. Não se permita, respira e não pira. Afinal de contas, “Deus é brasileiro”.

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A LOTERIA
SHIRLEY JACKSON *

A manhã de 27 de junho estava límpida e ensolarada,


com o calor refrescante de um dia em pleno verão; as
flores desabrochavam em profusão, e a grama era de
um verde vivo. Os habitantes do vilarejo começaram a
se reunir na praça, entre os correios e o banco, por
volta de dez da manhã; em algumas cidades, havia
tantas pessoas que a loteria durava dois dias e tinha
que começar em 26 de junho. Neste vilarejo, porém, no
qual havia apenas cerca de 300 pessoas, a loteria
inteira durava menos de duas horas, por isso, podia
começar às dez da manhã e ainda acabar a tempo de
permitir que seus habitantes voltassem a casa para
fazer a refeição do meio-dia.

Sem dúvida, as crianças foram as primeiras a se reunir.


Recentemente, a escola fechara para o verão, e a
sensação de liberdade instalara-se inquietamente na
maioria; elas tendiam a se juntar em silêncio por um
tempo antes que irrompessem numa brincadeira
barulhenta. E a conversa ainda era sobre a turma e a
professora, os livros e os castigos. Bobby Martin já
enchera os bolsos com pedras; os outros garotos logo
seguiram seu exemplo e selecionaram as mais lisas e
redondas; Bobby, Harry Jones e Dickie Delacroix — os
habitantes pronunciavam “Dellacroy” — finalmente
fizeram uma grande pilha de pedras em um canto da
praça e a protegeram dos ataques-surpresa dos outros
garotos. As garotas se mantiveram a distância e
conversavam entre si, olhando por cima dos ombros
para os meninos; crianças muito pequenas rolavam na
terra ou seguravam as mãos de irmãos ou irmãs mais
velhos.

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Pouco depois, os homens começaram a se reunir. Observando os próprios filhos, falavam


sobre plantio e chuva, tratores e impostos. Eles ficavam de pé, juntos, longe da pilha de
pedras no canto, suas piadas eram silenciosas, e sorriam em vez de dar risadas. As
mulheres vestiam roupas de casa e suéteres desbotados, e chegaram pouco depois dos
homens. Elas se cumprimentavam e fofocavam conforme se juntavam aos maridos. Logo, as
mulheres, de pé, ao lado dos homens, começaram a chamar seus filhos, e eles vinham,
relutantes, tendo que ser chamados quatro ou cinco vezes. Bobby Martin abaixou-se sob a
mão da mãe que o apertava e correu, às gargalhadas, de volta para a pilha de pedras. O pai
ergueu a voz abruptamente, e Bobby se aproximou rápido, assumindo seu lugar entre o pai
e o irmão mais velho.

A loteria era conduzida — assim como as quadrilhas, o clube juvenil, o programa do


Halloween — pelo Sr. Summers, que tinha tempo e energia para dedicar às atividades
cívicas. Era um homem jovial, de rosto redondo, administrava o negócio de carvão, e as
pessoas lamentavam por ele, pois não tinha filhos, e a esposa era uma megera. Quando
chegou à praça, carregando a caixa de madeira preta, ouviu-se um murmúrio de conversa
entre os habitantes, e ele acenou e falou: “Um pouco atrasado hoje, amigos”. O carteiro, o
Sr. Graves, o acompanhava e trazia um tamborete com três pernas. O banquinho foi
colocado no centro da praça e o Sr. Summers pôs a caixa preta em cima dele. Os
habitantes mantinham distância, deixando um espaço entre eles e o tamborete. E quando o
Sr. Summers falou: “Algum de vocês, amigos, quer me dar uma ajuda?”; houve uma
hesitação antes de dois homens, o Sr. Martin e seu filho mais velho, Baxter, darem um
passo a frente e segurarem a caixa equilibrada no banquinho enquanto o Sr. Summers
remexia os papéis dentro dela.

A parafernália original para a loteria fora perdida havia muito tempo, e a caixa preta que
agora estava apoiada no banco havia sido posta em uso mesmo antes do Velho Warner, o
homem mais velho da cidade, nascer. O Sr. Summers conversava com frequência com os
habitantes sobre fazer uma nova caixa, mas ninguém gostava de perturbar a tradição
representada pelo objeto preto. Havia uma história de que a caixa atual fora feita com
alguns pedaços da caixa que a precedera, que fora construída quando as primeiras pessoas
se instalaram para criar um vilarejo aqui. Todos os anos, após a loteria, o Sr. Summers
começava a falar mais uma vez sobre uma nova caixa, mas todos os anos deixavam que o
assunto morresse sem que coisa alguma fosse feita. A cada ano, a caixa preta ficava mais
danificada: agora nem era mais totalmente desta cor, mas, muito lascada em um dos lados,
mostrava a cor original da madeira e, em alguns locais estava desbotada ou manchada.

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O Sr. Martin e o filho mais velho, Baxter, seguraram a caixa preta com firmeza em cima do
banco até o Sr. Summers remexer totalmente os papéis com a mão. Como grande parte do
ritual fora esquecida ou descartada, o Sr. Summers conseguira substituir as lascas de
madeira, usadas durante gerações, por pedacinhos de papel. Lascas de madeira,
argumentara ele, tinham servido muito bem quando o vilarejo era minúsculo, mas agora
que a população era de mais de 300 habitantes, e provavelmente continuaria a crescer,
era necessário usar alguma coisa que coubesse mais facilmente na caixa preta. Na noite
anterior à loteria, o Sr. Summers e o Sr. Graves prepararam os pedacinhos de papel e os
guardaram na caixa, ela foi então levada para o cofre da companhia de carvão do Sr.
Summers e ficou trancada lá até que ele estivesse pronto para levá-la à praça na manhã
seguinte. No restante do ano, a caixa ficava guardada; às vezes, em um lugar, outras vezes,
em outro; ela passara um ano no celeiro do Sr. Graves e outro ano no chão dos correios.
E, algumas vezes, era colocada em uma prateleira na quitanda de Martin e deixada ali.

Ouvia-se um grande burburinho até que o Sr. Summers declarasse a loteria aberta. Havia
listas a serem preparadas: com os chefes de família, chefes dos moradores de cada casa,
moradores de cada casa em cada família. E o devido juramento feito pelo Sr. Summers ao
carteiro, enquanto oficial da loteria; antigamente, como se recordavam algumas pessoas,
ocorria um tipo de recital, cantado pelo oficial da loteria: um cântico pouco melódico e
monótono, que fora recitado apressadamente, como estava previsto, a cada ano; algumas
pessoas acreditavam que o oficial da loteria costumava ficar simplesmente parado quando
recitava ou cantava; outros julgavam que ele deveria caminhar entre as pessoas, mas havia
muitos anos que esta parte do ritual acabara caducando. Além disso, via-se um ritual de
saudação, que o oficial da loteria teria que usar ao se dirigir a cada pessoa que aparecia
para sortear da caixa, mas isso também mudara com o tempo, e agora somente era
necessário que o oficial cumprimentasse cada pessoa que se aproximava. O Sr. Summers
era muito bom nisso tudo; com a camisa branca limpa e a calça jeans azul, uma das mãos
apoiada negligentemente sobre a caixa preta, ele parecia muito decente e importante ao
conversar interminavelmente com o Sr. Graves e os Martin.

Assim que o Sr. Summers finalmente parou de falar e se voltou para os habitantes
reunidos, a Sra. Hutchinson veio apressadamente pelo caminho até a praça, com o suéter
jogado sobre os ombros, e se esgueirou até o local no fundo da multidão.

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— Esqueci completamente que dia era — falou à Sra. Delacroix, que estava de pé junto a
ela, e ambas esboçaram um sorriso. — Pensei que meu velho tivesse saído de novo para
empilhar lenha — emendou a Sra. Hutchinson — e então olhei pela janela, os garotos
tinham sumido; aí me lembrei de que era dia 27 e vim correndo.
Ela enxugou as mãos no avental, e a Sra. Delacroix falou:
— Mas você chegou a tempo. Eles ainda estão conversando por lá.

A Sra. Hutchinson esticou o pescoço para enxergar através da multidão, e viu o marido e
os filhos de pé quase na frente. Ela tocou o braço da Sra. Delacroix para se despedir e
começou a caminhar entre a multidão. As pessoas se afastavam de bom humor e a
deixavam passar: duas ou três disseram em voz alta o suficiente para serem ouvidas em
meio à aglomeração: “Lá vai a sua Sra. Hutchinson” e “Bill, ela conseguiu, no fim das
contas”. A Sra. Hutchinson se aproximou do marido, e o Sr. Summers, que estivera
esperando, falou alegremente:
— Pensei que nós íamos ter que continuar sem você, Tessie.
A mulher retrucou com um sorriso.
— Você não ia querer que eu deixasse a louça na pia, não é, Joe?
E uma risada baixa percorreu a multidão conforme as pessoas voltavam para suas posições
após a chegada da Sra. Hutchinson.

— Bem, agora — falou o Sr. Summers gravemente —, acho melhor começar e acabar logo
com isso para podermos voltar ao trabalho. Falta alguém aqui?
— Dunbar — responderam algumas pessoas. — Dunbar, Dunbar.
O Sr. Summers consultou a lista.
— Clyde Dunbar — disse ele. — Está certo. Ele quebrou a perna, não foi? Quem vai sortear
por ele?
— Eu. Acho — falou uma mulher, e o Sr. Summers virou-se para fitá-la.
— A mulher sorteia pelo marido — respondeu ele. — Você não tem um rapazinho para fazer
isso por você, Janey? — Embora o Sr. Summers e todos os outros no vilarejo soubessem a
resposta perfeitamente bem, era tarefa do oficial da loteria fazer tais perguntas
formalmente. O Sr. Summers aguardou com uma expressão de interesse polido enquanto a
Sra. Dunbar respondia:
— O garoto dos Watson vai sortear este ano?

Um rapaz alto levantou a mão na multidão.


— Aqui — falou. — Vou sortear pela minha mãe e por mim. — Ele piscou os olhos, nervoso, e
abaixou a cabeça quando algumas vozes na multidão disseram coisas como “Bom garoto, o
Jack” e “Feliz por ver que sua mãe tem um homem para fazer isso.”

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— Ora — emendou o Sr. Summers —, acho que estão todos aqui. Será que o Velho Warner
conseguiu?
— Aqui — falou uma voz, e o Sr. Summers acenou com a cabeça.
Um silêncio repentino desceu sobre a multidão quando o Sr. Summers limpou a garganta e
olhou a lista.

— Todos prontos? — gritou ele. — Agora vou ler os nomes — os chefes de família, primeiro
—, e os homens se aproximam e tiram um papel da caixa. Mantenham o papel dobrado na
mão sem olhar até que todos tenham tido a vez. Entendido?

As pessoas tinham feito isso tantas vezes que simplesmente nem prestavam atenção às
orientações: a maioria estava em silêncio e passava a língua pelos lábios, sem olhar em
volta. Depois, o Sr. Summers ergueu uma das mãos e chamou:
— Adams.
Um homem se separou da multidão e deu um passo à frente.
— Olá, Steve — disse o Sr. Summers, e o Sr. Adams respondeu:
— Olá, Joe.

Eles sorriram um para o outro sem senso de humor e com nervosismo. Depois, o Sr.
Adams enfiou a mão dentro da caixa e retirou um papel dobrado. Ele o segurou
firmemente por um dos cantos enquanto dava meiavolta e caminhava apressado até sua
posição na multidão, onde ficou parado a alguma distância da própria família, sem baixar
os olhos para a mão.

— Allen — chamou o Sr. Summers. — Anderson… Bentham.


— Parece que não há mais tempo algum entre as loterias — disse a Sra. Delacroix à Sra.
Graves, na fila de trás. — Parece que a última foi apenas na semana passada.
— Sem dúvida, o tempo voa — observou a Sra. Graves.
— Clark… Delacroix.
— Lá vai o meu velho — falou a Sra. Delacroix. Ela prendeu a respiração quando o marido
seguiu adiante.
— Dunbar — disse o Sr. Summers, e a Sra. Dunbar caminhou com firmeza até a caixa
enquanto uma das mulheres dizia “Anda, Janey” e outra emendava: “Lá vai ela.”

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

— Somos os próximos — falou a Sra. Graves. Ela observou enquanto o Sr. Graves se
aproximava, vindo da lateral da caixa, cumprimentava o Sr. Summers com ar grave e
retirava uma tira de papel. Agora, por toda a multidão, havia homens segurando os
pequenos papéis dobrados nas mãos grandes, virando-os e revirando-os, nervosos. A Sra.
Dunbar e os dois filhos estavam parados, juntos, e a mulher segurava o pedaço de papel.
— Harburt…. Hutchinson.
— Levante-se e vá até lá, Bill — disse a Sra. Hutchinson, e as pessoas perto dela riram.
— Jones.
— Dizem que, lá no vilarejo ao norte, estão falando em abandonar a loteria — comentou o
Sr. Adams com o Velho Warner, que estava a seu lado.
O Velho Warner fez um muxoxo.
— Bando de malucos — disse ele. — Você dá ouvido aos jovens, e nada é bom o bastante
para eles. Da próxima vez, sabe, eles vão querer voltar a morar nas cavernas; ninguém
trabalha mais e vive desse jeito por um tempo. Costumava haver um ditado: “Loteria feita
garante a colheita.” Só o que sei é que todos comeríamos ervas daninhas e bolotas. Sempre
houve uma loteria — emendou com arrogância. — Já é ruim o bastante ver o jovem Joe
Summers ali zombando de todo mundo.
— Em alguns lugares, eles já abandonaram as loterias — observou a Sra. Adams.
— Nada além de confusão com isso — disse o Velho Warner, com teimosa. — Bando de
tolos.
— Martin.
E Bobby Martin observou o pai caminhar.
— Overdyke… Percy.
— Eu queria que eles se apressassem — falou a Sra. Dunbar para o filho mais velho. — Eu
queria que eles se apressassem.
— Estão quase terminando — disse o filho.
— Você tem que se preparar para correr e contar a seu pai — retrucou a Sra. Dunbar.
O Sr. Summers chamou o próprio nome, então deu um passo a frente com precisão e
retirou uma tira de papel da caixa. Depois, chamou:
— Warner.
— É o 77º ano no qual compareço à loteria — disse o Velho Warner ao passar pela multidão.
— Septuagésima sétima vez.
— Watson.
O garoto alto se aproximou, constrangido, em meio à multidão. Alguém falou:
— Não fique nervoso, Jack.
E o Sr. Summers emendou:
— Leve o tempo que precisar, filho.
— Zanini.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Depois disso, fez-se uma longa pausa, uma pausa tensa, até que o Sr. Summers segurou a
tira de papel no ar e falou:
— Muito bem, amigos.

Por um instante, ninguém se mexeu, e então as tiras de papel foram abertas. Subitamente,
todas as mulheres começaram a falar ao mesmo tempo e perguntavam: “Quem foi?”,
“Quem pegou?”, “Foram os Dunbar?”, “Foram os Watson?”. Depois, as vozes começaram a
dizer: “Foi Hutchinson. Foi o Bill”, “Foi Bill Hutchinson quem pegou.”

— Vá contar ao seu pai — pediu a Sra. Dunbar ao filho mais velho.

As pessoas começaram a olhar ao redor para ver os Hutchinson. Bill Hutchinson estava
parado, em silêncio, e fitava o papel em sua mão. No mesmo instante, Tessie Hutchinson
gritou para o Sr. Summers:

— Você não deu tempo suficiente para ele tirar o papel que queria. Eu vi você. Não foi
justo!
— Leve na esportiva, Tessie — gritou a Sra. Delacroix, e a Sra. Graves falou:
— Todos nós tivemos a mesma chance.
— Cale a boca, Tessie — disse Bill Hutchinson.

— Bem, pessoal — concluiu o Sr. Summers —, isso foi feito bem rápido, e agora temos que
nos apressar um pouco mais para terminarmos na hora. — Ele consultou a lista seguinte.
— Bill — chamou —, você sorteia pela família Hutchinson. Você tem outros parentes nos
Hutchinson?

— Tem Don e Eva — gritou a Sra. Hutchinson. — Dê uma chance a eles!


— As filhas sorteiam com a família dos maridos, Tessie — respondeu o Sr. Summers
gentilmente. — Você sabe disso tão bem quanto qualquer um.
— Isso não foi justo — queixou-se a mulher.
— Acho que não, Joe — disse Bill Hutchinson com pesar.
— Minha filha sorteia com a família do marido; é justo. E não tenho outros parentes, a não
ser as crianças.
— Então, no que diz respeito ao sorteio pelas famílias, é você — explicou o Sr. Summers —,
e no que diz respeito aos parentes, é você também. Certo?
— Certo — disse Bill Hutchinson.
— Quantos filhos, Bill? — perguntou formalmente o Sr. Summers.
— Três — respondeu Bill Hutchinson.
— Tem o Bill Jr., a Nancy e o pequeno Dave. E a Tessie e eu.
— Muito bem, então — falou o Sr. Summers. — Harry, você devolveu os papéis deles?

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

O Sr. Graves acenou com a cabeça e ergueu as tiras de papel.


— Ponha na caixa, então — orientou o Sr. Summers. — Pegue os papéis de Bill e ponha
dentro dela.
— Acho que deveríamos recomeçar — disse a Sra. Hutchinson, falando no tom de voz mais
baixo que podia. — Fique sabendo que não foi justo. Você não lhe deu tempo suficiente
para escolher. Todo mundo viu isso.
O Sr. Graves havia separado as cinco tiras e colocado na caixa, e deixou todos os papéis, à
exceção daqueles, caírem no chão, onde a brisa os pegou e ergueu.
— Preste atenção, pessoal. — Era o que a Sra. Hutchinson estava dizendo às pessoas em
torno dela.
— Pronto, Bill? — indagou o Sr. Summers, e Bill Hutchinson lançou um olhar rápido à
esposa e aos filhos, e acenou com a cabeça.
— Lembre-se — falou o Sr. Summers —, pegue os pedaços de papel e mantenha dobrados
até que todos tenham tirado um. Harry, ajude o pequeno Dave.
O Sr. Graves segurou a mão do menininho, que o acompanhou até a caixa com boa
vontade.
— Tire um papel da caixa, Davy — falou o Sr. Summers.
Davy pôs a mão na caixa e deu uma risada.
— Pegue apenas um papel — explicou o Sr. Summers. — Harry, segure por ele.
O Sr. Graves pegou a mão da criança, retirou o papel dobrado do punho fechado e o
segurou enquanto o pequeno Dave ficava parado ao lado dele e o fitava com ar pensativo.
— A próxima é a Nancy — disse o Sr. Summers.
Nancy tinha 12 anos, e os colegas de escola respiraram fundo quando ela deu um passo
para frente, balançando a saia, e retirou delicadamente uma tira da caixa.
— Bill Jr. — falou o Sr. Summers, e Billy, com o rosto vermelho e os pés grandes demais,
quase derrubou a caixa ao sortear um papel.
— Tessie — chamou o Sr. Summers. Ela hesitou por um instante e olhou ao redor, atrevida,
então estreitou os lábios e caminhou até a caixa. Retirou um dos papéis e o segurou atrás
de si.
— Bill — falou o Sr. Summers, e Bill Hutchinson enfiou a mão na caixa, remexeu e
finalmente retirou-a com o pedaço de papel dentro dela.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

A multidão estava em silêncio. Uma garota murmurou: “Espero que não


seja a Nancy”, e o som do cochicho alcançou os limites da aglomeração.
— Não é do jeito que costumava ser — observou o Velho Warner
distintamente. — As pessoas não são do jeito que costumavam ser.
— Muito bem — falou o Sr. Summers. — Abram os papéis. — Harry, você
abre o do pequeno Dave.

O Sr. Graves abriu a tira de papel e ouviu-se um suspiro generalizado


em meio à multidão quando ele o ergueu e todos puderam ver que
estava em branco. Nancy e Bill Jr. abriram seus papéis ao mesmo
tempo. E ambos esboçaram sorrisos, deram risadas, e se viraram para a
multidão, segurando os pedaços de papel acima da cabeça.

— Tessie — chamou o Sr. Summers. Fez-se uma pausa, e então o Sr.


Summers olhou para Bill Hutchinson, e Bill desdobrou o papel e o
mostrou. Estava em branco.

— É a Tessie — falou o Sr. Summers e sua voz era baixa. — Mostre-nos


o papel dela, Bill.
Bill Hutchinson se aproximou da esposa e retirou o pedaço de papel da
mão da mulher à força. Tinha uma mancha preta nele, a mancha preta
de lápis bem forte que o Sr. Summers fizera na noite anterior, no
escritório da companhia de carvão. Bill Hutchinson o ergueu, e a
multidão se agitou.

Embora os habitantes tivessem se esquecido do ritual e perdido a caixa


preta original, ainda se lembravam de usar as pedras. A pilha de pedras
que os garotos tinham feito antes estava pronta; havia pedras no chão
com os pedaços de papéis soprados, que tinham saído da caixa.
Delacroix escolhera uma pedra tão pesada que teve que erguê-la com
as duas mãos, e se virou para a Sra. Dunbar.

— Anda — disse ela. — Apresse-se.


O Sr. Dunbar tinha pedras pequenas nas duas mãos, e ela falou com a
respiração entrecortada:
— Não consigo correr de jeito nenhum. Você terá que ir na frente, e eu
me encontro com você.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

— Não consigo correr de jeito nenhum. Você terá que ir na frente, e eu me encontro com
você.
As crianças já tinham pedras. E alguém deu uns seixos ao pequeno Davy Hutchinson.
Tessie Hutchinson estava no centro de um espaço vazio agora, e esticava as mãos em
desespero enquanto os habitantes se aproximavam dela.
— Não é justo — disse ela.
Uma pedra a atingiu na lateral da cabeça. O Velho Warner dizia:
— Vamos, vamos, pessoal.
Steve Adams estava na frente da multidão, com a Sra. Graves a seu lado.
— Não é justo. Não está certo! — gritou a Sra. Hutchinson, e, em seguida, eles estavam
sobre ela.

…………………………………..
Tradução de Ana Resende, publicada na Revista Literária em Tradução, nº 9 (set/2014),
Florianópolis/Brasil
http://www.notadotradutor.com/revista9.html
Todos os direitos reservados a tradutora

Shirley Jackson (1916-1965) nasceu na Califórnia, nos Estados Unidos. É autora de


diversos livros e contos do gênero de ficção gótica, entre eles "A Assombração da Casa da
Colina", "O Homem da Forca", "Minha Vida Entre os Selvagens", "Sempre Vivemos no
Castelo" e “A Loteria”, conto que a tornou conhecida e é considerada sua obra prima.
A história é uma perturbadora reflexão de forma crua do modo, muitas vezes rituais e
tradições são seguidos de maneira automática, ainda que não tenham origem, razão ou
sentidos definidos, simplesmente para se manter o status quo.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

À PROCURA PELA FELICIDADE


DAVID MONTE NERO

A felicidade possui um valor inestimável, que toda a humanidade anseia por alcançar.
Contudo, quem disse que a felicidade possui valor financeiro ou então, que esteja a
milhas de distância?

Não, irmãos! Está aí uma palavra com um endereço certo, revestido nas mais simples
ações ao nosso redor. Queres perceber a felicidade? Sinta o aroma do campo e perceba a
força fecunda que Deus nos presenteia a cada dia. Escuta o cantar dos pássaros e
sintonize com o amor dos animais, no ato de contemplação da sua própria existência.
Talvez aí esteja uma forma de se encontrar a felicidade.

Mas, há aqueles que não se sentem confortáveis diante de um cenário bucólico; então,
vos digo no lado oposto: escute o som das ondas quebrando com a força natural sobre o
solo. Sinta as águas batendo em suas pernas, como se algo grandioso estivesse aos seus
pés, com a graça e harmonia que somente o nosso Pai maravilhoso poderia proporcionar.
Tens mais um caminho para a tua felicidade.

Em sua casa, há felicidade? Sim, amados. Ao abrirmos os olhos e contemplamos o nascer


do sol, como grande estrela eleita pela Suprema Criação a nos iluminar e alimentar os
corpos de todos os seres vivos, eis uma grande felicidade. Se tiver filhos, ao acordar,
beije-os; sinta o calor humano que cada um deles tem para lhe transmitir. Busque a
sinergia com sua companheira ou esposo que caminha junto com você na seara terrestre.
Isto é felicidade.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Ao sair de casa, olhe ao seu redor. A rapidez das


informações atuais faz desperceber que há um mundo a
tua espera e que mais uma vez, acordastes para vencer.
E a vitória é iniciada quando se abrem os olhos da carne
e percebes que respiras. Note que as pessoas passam por
você e não demonstram, mas desejam um ardente "bom
dia". Ah, como é bom desejar o melhor ao próximo...

A felicidade habita dentro de cada um. Observemos


então, quando uma criança chora ou então, quando
alguém chama pelo seu nome, consegue imaginar que a
felicidade reside nas vinte e quatro mil fibras auditivas
que tens? Pare para observar.

Tens o dom da fala. Aí habita mais uma felicidade divina


em tuas mãos. Com a habilidade da fala, associada à tua
razão, é possível acalmar o furor, animar os irmãos que
sentem as chagas morais estilhaçando as próprias
defesas da alma. Enfim, com o mecanismo da fala, é
possível dizer: Eu te amo.

A felicidade habita no teu caminhar. É através dos


quinhentos músculos, centenas de ossos e várias milhas
de fibras nervosas que podes acordar, andar, respirar,
correr, chorar e até mesmo ser feliz. Aliás, se
respiramos, é também por esta fantástica e divina usina
de energia chamada corpo humano que Adonai nos
presenteou para conservar da melhor maneira possível.

Quando se tem uma emoção diversa o coração bate


descompassado, não é verdade? Pois o teu coração é
fonte de energia e felicidade, já que as 80 batidas por
minuto de vida, geram um total de 42 milhões de
pulsares anuais, fazendo com que a média de cinco litros
de sangue, por tantas vezes circulando em teu corpo,
gere dezenas de milhares de galões anuais da mesma
substância. Portanto, tens a felicidade dentro de ti e não
percebes!

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

No centro da razão - o cérebro - há uma força que emana a felicidade também. É nele que
habitam bilhões de células nervosas, números bem superiores ao dobro da população do
planeta Terra. É neste órgão sublime que podemos ter a ajuda necessária para perceber
tudo que circunda ao nosso redor, desde o primeiro momento em que saímos do ventre
materno. Ter a consciência plena destas palavras, será um importante alento no teu
caminhar rumo a felicidade.

Não busque no próximo aquilo que está dentro de ti. A felicidade está no amor que cada
um de nós pode nutrir, desde os mais simples gestos, ao mais complexo sacrifício de
renúncia. Ser feliz não é uma opção, mas sim, um dever nosso perante El Shaday.

A felicidade reside no âmago dos nossos corações afligidos. Percebam que o Apóstolo dos
gentios já havia dito aos Corintos que ainda que falasse a língua dos anjos e dos homens,
ele nada seria sem o amor. Este sentimento tão puro e nobre, tem com a grande foz a
mesma origem da felicidade: o nosso virtuoso coração. Amar representa a libertação das
vicissitudes para os caminhos da felicidade. Sem o amor, impossível será termos o
segredo tão almejado para a abertura das portas da nossa própria subconsciência.

Desta forma, a felicidade está em tudo que habita no cosmos. Tudo aquilo que é dirigido
pelo nosso amável Pai, tem um toque especial da felicidade, justamente pelo fato de que
em tudo que foi construído por Ele, houve amor. Se duvidas, pare, feche os seus olhos e
sinta que há algo em seu interior que não tem uma explicação palpável, mas que você
sente. É o amor Elohim na tua vida.

A felicidade é irmã do tempo e grande amiga da harmonia do espírito. Quando deixamos


de lamentar por aquilo que não fizemos no passado e, por consequência, deixamos de
viver o aqui e agora, imantamos o relógio da vida com a negatividade, postergando assim,
as possíveis chances de alcançarmos a tão sonhada estrada da felicidade.

Portanto, amados, a viagem em prol da felicidade começa dentro de cada um de nós. De


cada gesto, sorriso, aperto de mão e bons desejos de praticar o bem, sem distinção de
cor, etnia, credo, gênero e idade.

Faça o bem. Encontre a criança alegre dentro de você, que está a sua procura também.

Seja feliz!

Que Deus te abençoe sempre!

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

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A Kikosofia é um espaço de vozes, consonantes,
dissonantes, de livre e respeitosa expressão e opinião. Um
local que se pretende divertido, reflexivo, por vezes louco,
mas sempre acolhendo o outro, independente de diferenças,
somos todos iguais, e isso é o que de mais belo existe no
viver, saber que não somos cópias de outro ser.
Colabore, discorde, concorde, opine. Boa jornada.

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KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

MINHA OPINIÃO
Josnei Castilho
Todos se apressam em emitir opiniões
sobre tudo. É inevitável, afinal, ter
opiniões é o que nos torna únicos. O
problema é que, a maioria das nossas
opiniões são baseadas apenas em nossas
convicções pessoais, nas experiências de
vida e, pesarosamente, nas crenças
limitantes que nos acompanham. Esses
três fatores, tornam nossas assertivas
muito particulares, transformando-as,
muitas vezes, em desnecessárias ou
cruéis. Exceto as colocações que fazemos
baseadas em estudos técnicos,
resultantes de pesquisa criteriosa ou de
larga experiência prática em determinado
assunto, todas as demais são, muitas das
vezes, apenas para reforçar nosso orgulho
em prevalecer sobre o outro ou tão
somente para polemizar, discriminar e
ofender. Não que precisemos nos calar,
porém, também não precisamos
menosprezar, vilipendiar ou humilhar.

O fato do outro discordar não o torna


inimigo, nem justifica atitudes canalhas.
Se gostamos de respeito, precisamos
respeitar. Mesmo quando as opiniões
alheias são julgadas ofensivas, precisamos
nos colocar com a atitude de quem está
acima das mazelas humanas, pois, a paz
começa em nós e, o mais sábio não é o que
mais sabe a teoria e sim, o que mais a põe
em prática. Precisamos nos lembrar de
que atraímos aquilo em que vibramos.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Quando chamados ao debate de assunto que


não dominamos tecnicamente (em sua
maioria o são), em rodas de conversas com
amigos ou em qualquer outra circunstância,
o ideal seria emanarmos nossas opiniões
com leveza, sem nos arvorarmos a estar cem
por cento certos, afinal, a opinião é apenas
um posicionamento, e, opinião todos tem
sobre tudo. A opinião do outro é relevante
pois, o fato de emiti-la a qualifica como
convicção, mesmo que, a nosso ver, esteja
equivocada. O cerne desta mensagem é
justamente o respeito à opinião alheia.
Reconhecer equívoco é um convencimento,
não uma imposição, mas, o convencimento
só vem se o argumento contrário fizer
sentido e for baseado em verdades advindas
de fatos.

Quem está aberto a novos aprendizados


facilmente se convence das novas
realidades apresentadas, no entanto, a
maioria não se abre para o novo como
deveria, daí surgem as divergências e
embates. Nessas horas, a ponderação, a
paciência e, principalmente, a empatia
devem imperar. Nem todos estão preparados
ou dispostos a novos conceitos. Não vale a
pena se indispor com amigos em razão da
divergência de opiniões. Podemos
tranquilamente conviver com pessoas
diferentes de nós, basta respeitarmos os
limites e reconhecermos os direitos alheios.
Basta sermos cristãos!
Muita Paz.
KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

DIVERGÊNCIAS
Indo na contramão de certas "correntes" - Francisco Moreira

Crime, um mercado em expansão

Determinar o motivo pelo qual uma pessoa comete um crime ainda é uma
incógnita que a ciência não conseguiu explicar muito bem. Claro, existem
inúmeras teorias que se debruçam sobre os fatores que levam ao aumento da
criminalidade e do recrudescimento da violência urbana. Predominam entre
estas aquelas que apontam as diferenças sociais e a ausência do Estado como
fatores principais, quando não essenciais para o desencadeamento de condutas
que firam a legalidade. Apontam a falta de estrutura, de urbanização, o déficit
de moradias, de serviços públicos, de escolarização, o desemprego e por aí vai.
NOTÍCIAS IMPORTANTES,
"Especialistas" em Segurança Pública formadosA Tem
U A L I bancos
Z A Ç Õ E S Eacadêmicos
IDEIAS com
base em pesquisas bibliográficas e revisionais, propagam extensamente tais
teorias, advindas de alguns estudos sociológicos,
2 - quase sempre
Tendências lastreados em
de Gestão
algum tipo de ideologia partidária. Não que eu3 acredite serdepossível
- Tendências 2022 qualquer
realização intelectual sem algum tipo de ideologia. Porém, o que vejo de
problemático nesse tipo de pesquisa é o foco direcionado quase que
especificamente nos fatores externos e periféricos que levam ao crime. Não
existe foco, e admito seria mais complicado realizar isso, no subjetivo dos
indivíduos que infringem a lei.

Gary S. Becker, um economista americano, talvez tenha sido que mais se


aproximou de decifrar "o porquê" das pessoas cometerem crimes ao aplicar os
princípios da Economia sobre a criminalidade, focando no comportamento do
criminoso, destacando os fatores que o motivariam e os que inibiriam a cometer
tais infrações. Becker teoriza que a decisão do criminoso se baseia em critérios
racionais, nos quais ele "pesa se vale a pena" ou seja, se será vantajoso para
ele em termos de benefícios o cometimento do crime, em razão de um sistema
de incentivos ou consequências.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Não vou me deter nas fórmulas matemáticas desenvolvidas por Becker, mas o fato
dele excluir crimes com motivações sociais e psicológicos, transformando o
criminoso num agente econômico, motivado por fatores mercadológicos e evitando
estereótipos, nos faz entender que qualquer pessoa é capaz de atos ilícitos,
bastando para tal que as vantagens sejam maiores que as possíveis sanções.

Claro que com o tempo houveram revisões e avanços de novas teorias sobre o
comportamento criminoso. A Neurocriminologia, por exemplo, que busca entender
de maneira biopsicosocial se existe uma "propensão natural" de certas pessoas
para o crime. Cujas conclusões lastreadas nos avanços diagnósticos esbarram de
certo modo na teoria lombrosiana do "criminoso nato". Ainda que apontem que
alguns indivíduos podem sim ter essa propensão a determinados tipos de crime. O
que vai render ainda muitas reflexões e discussões por mostrar que Lombroso,
apesar dos métodos de pesquisa questionáveis, talvez não estivesse tão errado.

A economia comportamental, outro ramo novo de estudos, traz uma crítica a


"decisão racional" do indivíduo. Mostrando que tais decisões não são fruto
exclusivo de uma suposta racionalidade ilimitada desse indivíduo, mas resultado de
hábitos, experiências pessoais e regras simplificadas. Influencias psicológicas,
comportamentais e sociais afetariam as escolhas de forma consciente e também
inconsciente.

Nada disso entretanto, invalida o fato de que "o crime" é resultado de uma escolha
do indivíduo em aderir a esse mercado ilícito. O crime é um negócio, com regras
assimiladas do mercado comum, oferta e demanda por exemplo, mas que extrapola
e subverte os mecanismos de controle do Estado, levando a regulação das relações
entre os diversos "empreendedores", "concorrentes" e "clientes" para o campo da
força bruta.

A regulação, oferta e expansão de negócios no mercado criminal se dá sob a


égide da violência, da imposição de produtos, eliminação de concorrentes e
formação de "consórcios" baseados no interesse comum do lucro.

A única forma de se opor a expansão desse mercado é o mesmo utilizado por eles
para se expandir, A força. Porém o Estado diferentemente dos grupos criminosos,
não pode usar da força inconsequente, pois seu interesse é o bem comum e não o
lucro a qualquer custo. Exatamente por ter limitações legais não pode, o Estado,
demonstrar fraqueza em suas resoluções, leis e determinação. Ao contrário, deve
deixar claro que o infringir da lei será punido de forma rápida, disciplinada e
rígida. Mas o que estamos vendo é justamente o contrário.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Quando vemos hoje que a percepção comum no meio


da criminalidade é de ausência punitiva podemos
elaborar que o cometimento de delitos vem se
mostrando extremamente vantajoso, apesar da
atuação dos organismos de segurança pública.
Apesar das taxas de resolução de crimes,
assassinatos em especial, não serem as ideais, as
polícias efetuam um número impressionante de
prisões em flagrante. Que infelizmente não tem
contribuído para reprimir a pretensão criminosa, uma
vez que em razão de uma série de instrumentos
jurídicos e uma ideologia de desencarceramento
predominante no País, passam a impressão terrível
que os organismos policiais "enxugam gelo",
expressão que se tornou comum até entre a
população.

Decisões que estendem interpretações de


benevolência extrema a réus flagrantemente pegos
no ato ilícito, por questões meramente burocráticas
A percepção comum no
pipocam nos programas jornalísticos. Exemplos
meio da criminalidade é
esdrúxulos, como libertar um grupo de criminosos
de ausência punitiva
pegos com toneladas de cocaína porque o mandato
de busca se referia a furto e roubo, soa, ao menos
para mim, como flagrar uma casa de exploração
sexual infantil e não poder prender ninguém porque o
mandato de busca se refere a trabalho escravo.

Fosse esse apenas um exemplo ocorrido


genericamente, ocasionalmente, poderia ser
aceitável, mas é fato corriqueiro tal comportamento
da Justiça. Não à toa, houveram tantas críticas a
postura do STF quanto a manter pessoas na cadeia
sem individualização sequer de acusação (no caso do
desastroso "8 de janeiro"), mas facilitar com remédios
jurídicos a vida de tanto bandidos pegos em atos
violentos que realmente aterrorizam e vitimizam
cidades inteiras como nos casos do chamado "novo
cangaço".

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Sabemos que a vida nos presídios nacionais não é fácil. Privados de uma rotina
disciplinar e educativa não cumprem seu papel social de reconduzir o infrator de
volta a sociedade (Sim, esse é o objetivo da cadeia. Não a mera punição ou
afastamento social), e que se tornaram celeiro de novos crimes, centro de
recrutamento, gerencia de decisões e até conselho deliberativo do crime. Foi nos
presídios que alguns dos mais famosos grupos criminosos do país nasceram e
cresceram. Pensar que isso foi feito sob a tutela e os olhares estatais já seria
absurdamente distópico, se não fosse a mais pura e dura realidade.

Presídios deveriam ser locais de ressocialização, no qual o Estado tutelasse


criminosos, regulando seus direitos, que deveriam ser restritos não apenas a
incapacidade de ir e vir, mas também também diferenciados em relação ao
cidadão comum. Não se está falando em tratamento desumano, mas em submissão
a um regime disciplinar rígido e dotado de regras claras, factíveis e educadoras.
Não pode o preso dispor de regalias a seu bel prazer. Levemos em conta que ele
ali está por escolha própria ao enveredar por condutas passíveis de punição.

Um apenado deveria dispor de uma estrutura mínima de conforto e segurança, sob


vigilância constante do Poder Público. Ser submetido a rotinas obrigatórias de
trabalho, estudo e interação social nas quais pudesse desenvolver habilidades
profissionais, suster parte de sua estadia, entender o dano social causado e ter
condições de retornar como um agente produtivo para a sociedade. Mas o que
vemos nos presídios é a dominância de setores por grupos criminosos, total
ausência de um regime disciplinar e condições sanitárias repudiantes.

Tal condição deveria instar em qualquer pretenso criminoso, a repulsa pelo


cometimento de qualquer infração, mas, apesar de termos uma população
carcerária gigantesca, a possibilidade de ser preso não é suficiente para demover
a vontade ilícita. "Puxar cadeia" virou até sinônimo de status para determinados
membros de grupos criminosos. Quase uma condição de sacrifício necessário pelo
grupo. Mas aqui somos forçados a abrir um parênteses.

Antes que aleguem que nossa população carcerária é predominantemente formada


por pessoas em condições de pobreza, risco social, em sua maioria pretos
periféricos, muitos sem condenação definitiva, resultantes de delitos menores, sem
acesso a serviços qualificados de advocacia ou defesa pública e outros
argumentos que visam retirar um pouco da culpa desses e fazer uma controversa
alegação da necessidade de respeitar a dignidade e os direitos humanos. Me
adianto em dizer que concordo com a maioria desses argumentos

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Há sim, inúmeras situações de presos que poderiam muito bem estar cumprindo
outros regimes de reparação a sociedade, há ainda um forte fator "discriminatório"
em relação a quem permanece preso, mimetizando o retrato social que temos cá
fora. E sim, os olhos vendados da Justiça conseguem enxergar muitíssimo bem tais
diferenças e se comporta de modo diferente de acordo o cliente.

Nada disso invalida o fato de que julgamos mal, não temos um projeto de
ressocialização eficiente (ou melhor não temos nenhum). Nossas leis podem até ser
modernas, socialmente justas, levar em conta a dignidade humana, etc. Mas a
insegurança jurídica nascida da inconstância de recursos, decisões que são
reformadas, mudanças radicais de entendimentos das Cortes (geralmente após
muito pouco tempo de estabelecidos), protagonismo exagerado de certas
autoridades, interferências em outros poderes, autoritarismos desconexos, uma
opção pelo desencarceramento sem critérios claros, valores morais distorcidos que
exaltam a figura romantizada do criminoso e um excessivo foco em "direitos
humanos" ideologicamente direcionado. Trazem a sensação inequívoca de que
delinquir vale a pena e que até pode ser um estilo de vida.

É preciso haver uma total reformulação de princípios que atente para o fato de
que criminosos tem que ser tratados como tal. Não quer isso dizer que devam
sofrer qualquer tipo de ameaça ou desumanização, mas que devem sofrer
restrições rígidas, claras, objetivas. Seguir regras e disciplina que lhes possibilite a
reflexão sobre o crime cometido e sua consequente reabilitação, bem como possa
dissuadir em potenciais criminosos a vontade de delinquir. Não se pode ver
vantagem no crime. Como em qualquer mercado, é preciso que os custos de
produção (criminal) sejam absurdos, só assim para que o negócio deixe de valer a
pena. Ou vemos isso, ou o crime continuará sendo um mercado em ascensão.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

JIM GRAVES ESTÁ MORTO


KIKO MOREIRA

Jim Graves está morto. A própria faca enterrada no peito. Quase não havia sangue no
ferimento mortal. O olhar incrédulo de quem sofreu um golpe que não esperava ainda
estampava o rosto barbado de Jim. As cadeiras e mesas quebradas no saloon eram sinais
inequívocos de que ali tinha havido uma luta brutal entre dois homens determinados.
Whisky e poções de comida sujavam o chão que o senhor Louis costumava manter
imaculadamente limpo para um estabelecimento daqueles. – Sangrem em meu chão e eu
os mato – Costumava bradar ele quando algum dos cowboys se excedia na bebida e
iniciava uma briga.

Boa parte da população da pequena cidade se acotovelava em frente as janelas esperando


ver o corpo de Jim Graves estatelado em cima do balcão. Crianças, velhos e mulheres
brigavam por um espaço que pudesse confirmar que o brutamontes estava realmente
morto. O xerife abriu espaço em meio à multidão e entrou no saloon vazio, exceto por
Louis que aguardava, fumando um cachimbo em frente a prateleira de bebidas. Estava
calmo, pensando apenas na trabalheira que teria no dia seguinte para limpar tudo.

– O que aconteceu aqui Louis? – Perguntou o xerife, indicando o corpo inerte de Jim
Graves.
– O ferreiro aconteceu John. – Falou Louis com um certo alívio na voz. – O ferreiro
aconteceu. – Repetiu, com um leve sorriso nos lábios. – Você tem um enorme problema
nas mãos xerife.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Jim Graves estava morto. A comoção que se instalou entre a população nada tinha a ver
com carisma ou admiração por Jim. Quase todos ali gostariam de ter tido a coragem de
colocar uma bala entre os olhos daquele brutamontes. Jim era o líder de um grupo de
arruaceiros e assassinos que serviam ao senhor Bolton, o maior fazendeiro da região,
dono de uma riqueza incalculável, que como toda riqueza, foi feita a custo de sangue
inocente, exploração de pessoas, ameaças e roubos. Bolton era praticamente o dono de
metade das terras ali. E Jim Graves era o chefe de seus capangas. Um sádico com uma
veneração cega por seu patrão, que se orgulhava de quantas pessoas havia mandado ao
além, fosse por obrigação a seu empregador ou simples satisfação pessoal. Jim Graves
merecia estar morto. Disso ninguém duvidava, mas o que viria a seguir era o que
preocupava a todos.

– Uma hora atrás, Jim entrou no saloon. – Disse Louis. – Estava com aquele sorriso
malicioso de quem havia aprontado alguma maldade. Pediu uma dose dupla de Bourbon, o
que só confirmou que ele havia feito algo ruim para alguém. Sentou-se no lugar de
sempre, com o Colt em cima da mesa e resmungou algo sobre o “senhor Bolton se deliciar
essa noite”. Eu apenas servi e voltei para o balcão. Vi, pela janela, alguns dos homens de
Jim saindo a galope na direção do rancho, gritando como alucinados.

– Jim ficou aqui sozinho? – Perguntou o xerife.


– Sim, mas isso não era estanho. Ele sempre bebia sozinho, mesmo quando os homens
estavam presentes.
– Certo, prossiga.
– Meia hora depois, Lewis, o ferreiro, entrou no saloon. Estava com um Winchester nas
mãos. Furioso. Foi na direção de Jim, que tentou pegar a arma de cima da mesa, mas o
ferreiro foi mais rápido e atirou no Colt, jogando-o longe, antes que Jim pudesse pegar. O
homem estava furioso e se jogou em cima de Jim, atingindo-o com a coronha, gritando
“onde ela está? Seu desgraçado”. Jim se recobrou e puxou a faca longa, os dois se
engalfinharam numa briga bonita de ser ver. Todos ao redor se afastaram. Nem eu, nem
ninguém havíamos visto Lewis assim antes, ele parecia um urso encurralado, feroz e
mortal. Jim tentou usar sua força bruta, e ainda atingiu Lewis com a faca, mas ele parecia
não sentir dor e conseguiu tomar a arma. Logo ele tinha a vantagem e esfaqueou Jim no
coração. O infeliz morreu rindo, dizendo “ser tarde demais” e algo sobre o senhor Bolton.

– Lewis veio em minha direção e olhando em meus olhos disse “Avise ao John para onde
estou indo Louis”. Pegou meu velho Spencer, que guardo embaixo do balcão e saiu com
fogo nos olhos.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Lewis Wayne havia chegado a Cheyenne Rock uns


cinco anos atrás. Desde então havia feito serviços
para quase todos na região e finalmente montou
uma estrebaria, onde exercia o ofício de ferreiro.
Inclusive para o senhor Dalton e outros fazendeiros.
Era um sujeito calado, tranquilo, de índole pacífica e
ordeira. Costumava ir ao saloon uma vez por
semana, sempre as sextas, onde se encontrava com
o xerife e mais um ou dois senhores para jogar
poker. Era um excelente jogador, mas Louis
percebia que ele evitava ganhar algumas vezes,
evitando levar todo o dinheiro que apostavam.
Geralmente após o término do jogo, bebia mais uma
ou duas doses com John. Nesses momentos parecia
que uma sombra se aproximava de ambos e
terminavam a noite com um aperto de mão e um
“Boa noite” melancólico. O xerife era o único na
cidade que aparentava ter um relacionamento
anterior a chegada de Lewis na cidade e conhecer
seus segredos sombrios.

Lewis cavalgava na direção do rancho Dalton, exigindo o máximo de seu cavalo. Sabia que
enfrentar de frente os capangas da fazenda era suicídio, ele precisaria ser furtivo e preciso,
teria que voltar a ser o assassino frio responsável pela perda de tantas vidas anos antes. O
treinamento ia aos poucos despertando os instintos dentro dele. Desviou da estrada
próximo ao rio largo e pegou uma velha trilha para as colinas, íngreme o suficiente para que
tivesse que abandonar o cavalo algumas milhas depois. Teria que seguir a pé, e descer por
um caminho rochoso e perigoso, mas que evitaria que sua chegada fosse percebida pelos
homens de Dalton. Em seus pensamentos, pedia perdão pelas mortes que causaria e orava
para que não fosse tarde demais.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

O xerife afastou uma cadeira do caminho e empurrou a porta do cômodo no andar


superior da estrebaria. O local tinha sido vandalizado. Havia roupas femininas, panelas e
ferramentas espalhadas por todos os cantos. John suspirou fundo, sabia que o tempo
corria mais rápido que suas ações poderiam acompanhar. Eles haviam levado a jovem
indígena.

– Preciso de dez voluntários. – Gritou ele para os homens que o seguiam curiosos. –
Vamos até o rancho Dalton.
Os homens se entreolharam e, alguns recuaram de imediato, baixando a cabeça e
deixando a rua apressados.

– Eu vou. – Disse Louis. – Quero saber que vai pagar o prejuízo em meu estabelecimento.
E ver como essa tragédia acaba. Pago duas rodadas para quem seguir comigo.
O xerife sorriu, agradecido. Sabia que ninguém queria se envolver com Dalton e seus
comparsas. Aos poucos alguns corajosos se apresentaram e conseguiram reunir 6 homens
incluindo Louis e o xerife.
– Bem John, parece que somos só nós. – Constatou Louis.
– Sim, parece que sim. Areiem seus cavalos e vamos, já perdemos muito tempo aqui.

O rancho Dalton havia sido construído aos pés de uma colina rochosa e íngreme, o que
mantinha uma proteção natural do local. Só havia acesso por um lado, de modo que
qualquer aproximação era logo notada de longe. Era impossível a uma tropa montada
chegar sem que as sentinelas tivessem tempo para se organizar. A enorme rocha por trás
do casarão impossibilitava qualquer tentativa de ataque por ali. Mas Lewis estava
determinado a descer o paredão de pedra. A corda que trouxera não ajudaria muito, mas
era suficiente para baixar as armas e chegar até uma saliência na rocha, de onde poderia
observar o movimento na fazenda e checar um local que possibilitasse a descida.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Ayiana estava aterrorizada. Os homens de Dalton chegaram no final da manhã e invadiram


a casa, procuraram por Lewis, mas sabiam que ele havia saído para entregar alguns arreios
a fazendeiros locais. Tentou lutar contra os arruaceiros, mas eles a pegaram quando
correu para os fundos da casa. Jim Graves a segurou pelos longos cabelos e a suspendeu
no ar. O bafo fétido chegando a suas narinas. – O senhor Bolton vai ficar muito satisfeito
hoje vermelhinha. – Disse o bandido. Os protestos de Ayiana foram inúteis, ele amarrou
seus braços e arrastou até um dos cavalos. – Levem ela, eu vou ficar e esperar o ferreiro. –
falou para os homens.

Ayiana havia chegado à casa de Lewis seis meses atrás. Sua mãe havia morrido, mas antes
lhe falara do homem que a salvara muitos anos antes. Ayiana era fruto de um estupro e
seu destino deveria ter sido a morte, não fosse o homem que tirara sua mãe das mãos do
homem que a violentara e cuidara dela por um tempo. No leito de morte a mãe pediu que
ela fosse ficar com ele, dar um pouco de alegria a sua alma que era cheia de dor e culpa.
Assim, Ayiana foi ter com Lewis.

Dalton era herdeiro de uma grande fortuna, seu pai e avô fizeram dinheiro às custas de
trabalho escravo, roubos e assassinatos. Tomaram terras de colonos e expulsaram algumas
pequenas tribos indígenas da região. Os poucos que se aventuraram a enfrentar a família
Dalton jaziam em alguma cova rasa ou secaram no deserto para os urubus. Dalton era um
homem mimado, que costumava acompanhar o pai em suas incursões e se divertia
torturando os cativos e estuprando as mulheres. Anos atrás ele havia capturado uma
indígena e se divertiu com ela por meses, violando-a diariamente, mesmo quando ela
engravidou. Ele teria se aproveitado mais da garota, mas uma patrulha dos republicanos
descobriu o acampamento do seu bando e atacou, afugentando os homens e libertando os
prisioneiros. Mais tarde ele soube que a índia havia tido uma menina, tão bonita quanto a
mãe. Desde então ficou obcecado em encontrar a criança.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Alguns meses antes descobriu o paradeiro da garota, sua mãe havia morrido, vítima da
febre que assolara a região no ano anterior e a menina foi mandada para casa de um velho
tenente que as acolhera antes. Por sorte, era o ferreiro da cidade, um pobre coitado que
havia sido dispensado sem honras. Tentou negociar a guria, mas o homem era teimoso e
lhe dissera não, algo impensável até então. Jim Graves, seu melhor capataz a essas horas já
deveria ter dado um jeito no ferreiro e ele poderia aproveitar de sua cria. A menina era
uma cópia mais jovem e mais saudável da mãe, ele poderia saciar seus desejos por muito
tempo. Não havia sentimento ali, apenas desejo e luxúria. A cria da indígena lhe serviria
como a mãe serviu.

Ayiana acordou e se viu amarrada, pés e mãos, a uma cama grande. Suas roupas haviam
sido rasgadas e ela estava totalmente nua, exposta ao desconhecido que lhe olhava com
um sorriso sádico nos lábios. – Minha semente fez aquela selvagem produzir um belo
fruto. – Disse o homem com maldade, e Ayiana entendeu quem estava diante dela e aquilo
que a esperava. Gritou em desespero e se debateu, o homem gargalhou. – Não adianta
grita pequenina, você será minha, assim como sua mãe foi e eu, com certeza irei gostar
muito. – Ayiana continuou gritando e chorando enquanto o homem se aproximava dela.
Ele tirou as próprias roupas e se sentou na cama, tocou os seios pequeninos da garota
indefesa e aproximou o rosto com a língua tocando sua pele. Ayiana desejou morrer
naquele momento, o homem ria. Foi quando ouviram os tiros.

Lewis havia descido a rocha e se posicionara num local que lhe dava visão de quase todo o
entorno do casarão. Preparou o Spencer e procurou as sentinelas, eram três localizados
próximos a entrada principal. A direita ficava o alojamento dos demais vaqueiros, ele
poderia eliminar os três e seguir rápido até a casa antes que os outros pudessem avistá-lo.
Mirou na cabeça do mais distante e atirou, provocando uma explosão rubra de sangue. Os
outros dois homens não viram de onde partira o tiro e correram para frente da casa, se
tornando alvo fácil para mira de Lewis. Um quarto homem que não tinha sido visto,
localizou o local dos tiros e devolveu o fogo, enquanto gritava para os alojados. Lewis
estava bem protegido e conseguiu acertar o capanga durante a corrida deste.

O xerife John e seu voluntários atiçavam os cavalos a toda velocidade. – John, o ferreiro
não tem chances contra os homens de Dalton, a essa altura deve estar morto. – Disse
Louis. – Não é com ele que estou preocupado, Louis. E sim com o Dalton. Conhecendo
Lewis, aquilo vai ser um massacre. – Respondeu o xerife e esporeou o cavalo mais uma
vez.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

No barracão os demais bandidos pegaram as armas e saíram para defender a propriedade.


Lewis já havia mudado de posição e, na confusão, os homens de Dalton correram na
direção da estrada de acesso, sem saber que o ataque estava vindo dos fundos. Lewis
acertou mais dois, antes de chegar até uma das paredes da casa. Os homens, agora alertas,
se protegeram e avançaram tentando cercar o prédio. Lewis conseguiu quebrar a janela no
instante em que três capangas chegavam até ele. Rápido como um raio, disparou o
Winchester que ainda estava carregado, conseguindo derrubar dois, o terceiro disparou
conta ele, mas acertou apenas a parede, dando tempo para que se jogasse no interior da
casa.

Dalton vestiu uma calça apressado e pegou um Colt 45. Foi até a janela e viu quando os
homens foram atingidos na saída do barracão. Como todo covarde acuado, resolveu se
proteger usando o corpo da jovem amarrada na cama. Desamarrou seus pulsos do estrado,
se posicionando por trás da moça apontando a arma para ela. Percebeu que os tiros
estavam mais próximos e ouviu a janela quebrando no andar de baixo. “Onde estaria Jim,
aquele desgraçado?”. Pensou.

Lewis estava entrincheirado por trás de uma mesa, respondendo aos tiros que vinham em
sua direção. Ele precisava chegar as escadas para ter acesso ao andar superior, mas ali
também havia ao menos dois homens protegendo os quartos. Um dos bandidos
percebendo uma pausa nos disparos de Lewis se aventurou em sua direção apenas para
ser atingindo por um tiro no meio dos olhos. “Esse homem é um demônio” gritou um dos
capangas enquanto disparava. Um impasse parecia ter se estabelecido, mas tiros e gritos
do lado de fora revelaram que o xerife havia chegado.

Dalton percebeu que mais homens haviam se juntado ao tiroteio, ouviu os cavalos
chegando a galope e a salva de tiros em seguida. Aproveitou o momento, para tentar
entender o que estava acontecendo e saiu para corredor, viu seus homens no topo da
escada protegendo o andar e se perguntou mais uma vez por Jim. Resolveu voltar ao
quarto e usar a selvagem como escudo, ela era o motivo daquela invasão, ela o ajudaria a
sair dali.

Lewis soube aproveitar a momentânea distração provocada pela chegada do xerife e


mudou de posição, atingindo mais dois e se aproximando da escada, um dos homens no
topo se adiantou e foi baleado na perna, caindo pela escada e perdendo a arma. Lewis
aproveitou para chegar até ele e, o agarrando à frente do corpo, subiu a escada. O homem
foi atingido por disparos dos outros dois, protegendo Lewis e lhe dando tempo de abater a
ambos.

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

Do lado de fora o tiroteio entre o grupo de xerife e os remanescentes do bando de Dalton,


tinha encerrado com a rendição dos dois últimos homens, que feridos desistiram do
embate. John olhou em volta e viu os corpos espalhados, a maioria abatida por Lewis, o
que ele temia havia acontecido. Olhou para o casarão e caminhou na direção da porta, lá
dentro havia silêncio e mais alguns corpos no chão. De repente um tiro ecoou no andar
superior.

Lewis abriu a porta devagar e foi recebido com um tiro, que atingiu a porta. Não revidou.
Ouvia o choro entrecortado de Ayiana e percebeu que Dalton a usava para se proteger.
– Largue a arma ferreiro. A selvagem é minha cria. Ela me pertence. – gritou Dalton.
– Você está morto, Dalton. Solte a menina. Talvez eu apenas deixe o xerife levar você.
– Nunca ferreiro, eu sou... – O tiro atingiu Dalton no centro da testa, calando-o para
sempre. Lewis havia calculado a sua posição e com segurança arriscou o tiro fatal, no
instante em que John chegava ao andar superior. Ayiana, vendo o corpo desabar, se livrou
do abraço do cadáver do pai e correu a abraçar Lewis. O xerife se aproximou e notando
que a garota ainda estava nua, a cobriu com um lençol. Em silêncio o ferreiro agradeceu e
carregou a garota, descendo as escadas.

– Você precisa ir embora Tenente, não vão deixar isso barato. – Lewis olhou nos olhos do
xerife e respondeu com respeito. – Sim senhor, meu Capitão. – Pegou um dos cavalos ali
próximos e montando, cavalgou em direção ao horizonte com a garota nos braços.
– Você vai ter um trabalhão para explicar aos federais esse massacre, John.
– Vou sim Louis e você vai comigo, afinal é lá em seu saloon que Jim Graves está morto.

KIKOSOFIA
Número 12
JULHO DE 2023

REFULGIR URBANO
A METAMORFOSE QUE PERDURA

"A coisa mais penosa do nosso tempo é que os tolos possuem convicção e os que possuem imaginação e
raciocínio vivem cheios de dúvida e indecisão."

O "pai do rock brasileiro" foi uma das mais importantes influências musicais de nossos tempos,
chamado de "maluco beleza", Raul Seixas criou ao redor de si uma aura de misticismo, loucura e
espiritualismo que combinados a uma energia contagiante, deixou um legado poderosíssimo para a
música brasileira. Suas letras cheias de elementos etéreos e sua crença numa "Sociedade
alternativa" baseada nos ensinamentos do ocultista Aleister Crowley chegaram a lhe render (e ao
escritor Paulo Coelho, seu parceiro em diversas letras) problemas com os militares durante a
ditadura, que os levaram ao exílio. "Fazes o que tu queres, há de ser o todo da Lei. O amor é a lei,
amor sob vontade." gritavam em suas músicas que marcavam uma estranheza difícil de ignorar e
criaram uma legião de fãs que seguem até hoje gritando a quantos se arvorem a cantores
populares "Toca Raul!"

É quase impossível não ser arrebatado por frases icônicas como "Tenha fé em Deus, tenha fé na
vida, tente outra vez", "Eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira", "ou "Eu
prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo" e "Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz" tantas vezes apropriadas por
religiosos, políticos e movimentos sociais totalmente divergentes, mas que provam que a
genialidade desse baiano de Salvador reflete muito mais do que uma geração marcada pela
contestação e pluralidade.

KIKOSOFIA
Número 13
AGOSTO DE 2023

OURO DE TOLO
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros É você olhar no espelho
Por mês Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Eu devia agradecer ao Senhor Saber que é humano
Por ter tido sucesso Ridículo, limitado
Na vida como artista Que só usa dez por cento
Eu devia estar feliz De sua cabeça animal
Porque consegui comprar
Um Corcel 73 E você ainda acredita
Que é um doutor
Eu devia estar alegre Padre ou policial
E satisfeito Que está contribuindo
Por morar em Ipanema Com sua parte
Depois de ter passado fome Para o nosso belo
Por dois anos Quadro social
Aqui na Cidade Maravilhosa
Eu é que não me sento
Ah! No trono de um apartamento
Eu devia estar sorrindo Com a boca escancarada
E orgulhoso Cheia de dentes
Por ter finalmente vencido na vida Esperando a morte chegar
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa Porque longe das cercas
Embandeiradas
Eu devia estar contente Que separam quintais
Por ter conseguido No cume calmo
Tudo o que eu quis Do meu olho que vê
Mas confesso abestalhado Assenta a sombra sonora
Que eu estou decepcionado De um disco voador

Porque foi tão fácil conseguir Ah!


E agora eu me pergunto "E daí?" Eu é que não me sento
Eu tenho uma porção No trono de um apartamento
De coisas grandes pra conquistar Com a boca escancarada
E eu não posso ficar aí parado Cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo Porque longe das cercas
Pra ir com a família Embandeiradas
No Jardim Zoológico Que separam quintais
Dar pipoca aos macacos No cume calmo
Do meu olho que vê
Ah! Assenta a sombra sonora
Mas que sujeito chato sou eu De um disco voador
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

CINEOLHAR
Sarah Tobias (Jodie Foster), garçonete de um bar
é estuprada por três homens, incentivados por
outros clientes, ao denunciar a agressão,
defronta-se com dois problemas: seus
agressores e o sistema penal, no qual as vítimas
de estupro são suspeitas em seus próprios casos.
História inspirada por um caso real de estrupo. A
magistral interpretação de Foster a fez ganhar
seu primeiro Oscar de melhor atriz. O filme
apresenta uma representação crua da violação e
de suas consequências sociais e psicológicas,
trazendo a discussão, ainda bem atual, da
cultura que busca colocar a vítima como culpada
pela própria agressão que sofreu.
Acusados
1988 - 1h 51 min
Direção de Jonathan Kaplan
Com Jodie Foster, Kelly McGillis

Desesperada e sem muitas opções na vida, Aileen


Wuornos anda de bar em bar e se prostitui até o dia
em que conhece a jovem Selby Wall, Na
impossibilidade de achar um emprego sério, Aileen
continua a se prostituir para poder sustentar a
namorada. Quando um de seus clientes se torna mais
violento e coloca sua vida em risco, ela é obrigada a
cometer um crime para se defender. E esse será o
primeiro de uma série que a levará à destruição. O
filme retrata a história real da “primeira serial killer”
do gênero feminino, abordando os aspectos
biopsicossociais que podem ter influenciado na
Monster: Desejo assassino empreitada criminosa de Aileen.
2003 - 1h 49 min
Direção Patty Jenkins:
Com Charlize Theron, Christina Ricci KIKOSOFIA
Número 13 AGOSTO DE 2023

"MAS O PAI DISSE AOS SEUS


SERVOS: 'DEPRESSA! TRAGAM A
MELHOR ROUPA E VISTAM NELE.
COLOQUEM UM ANEL EM SEU DEDO E
CALÇADOS EM SEUS PÉS.
TRAGAM O NOVILHO GORDO E
MATEM-NO. VAMOS FAZER UMA
FESTA E ALEGRAR-NOS.
POIS ESTE MEU FILHO ESTAVA
MORTO E VOLTOU À VIDA; ESTAVA
PERDIDO E FOI ACHADO'. E
COMEÇARAM A FESTEJAR O SEU
REGRESSO."
Lucas 15, 22-24

Rembrandt
O regresso do filho pródigo
óleo sobre tela - 1669
262 x 206 cm
The State Hermitage Museum - Russia

KIKOSOFIA

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