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3
titário como o Brasil, é tarefa cotidiana. Não apenas paramos para
refletir de tal modo, como somos impelidos pela sociedade a nos
posicionarmos sobre eventos específicos que envolvem a temática
da religião. Por isso, o estudo da história da filosofia da religião é tão
importante: não somente para distinguirmos as posições e leituras
já formuladas sobre o assunto, mas também para desenvolvermos a
capacidade de também tomarmos parte nesse debate tão importante
que nos confronta a todo tempo.
Nosso desejo é que este material didático seja de bom proveito
para a instrução em Filosofia da Religião e para a construção do pen-
samento filosófico crítico sobre o tema.
Atenciosamente,
Prof. Danilo Mendes
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Sumário
Apresentação......................................................................................... 3
Introdução............................................................................................. 7
Capítulo 1 – As Relações entre Filosofia e Religião....................... 13
1.1 Filosofia e Religião: Modos de Pensar....................................... 13
1.2 Um pouco de História................................................................. 18
1.3 Os Problemas do Conceito de Religião..................................... 24
Capítulo 2 – A Religião no Idealismo Alemão................................. 28
2.1 I. Kant.......................................................................................... 28
2.2 G. W. F. Hegel............................................................................... 33
2.3 F. Schleiermacher....................................................................... 37
Capítulo 3 – Abordagens Críticas da Religião................................ 43
3.1 L. Feuerbach............................................................................... 44
3.2 K. Marx........................................................................................ 48
3.3 F. Nietzsche................................................................................. 53
3.4 S. Freud....................................................................................... 59
Capítulo 4 – Abordagens Compreensivas da Religião................... 66
4.1 R. Otto......................................................................................... 67
4.2 P. Tillich....................................................................................... 73
4.3 M. Eliade...................................................................................... 80
4.4 R. Alves........................................................................................ 85
Capítulo 5 – A Religião sob o olhar Contemporâneo..................... 93
5.1 S. Kierkegaard............................................................................. 93
5.2 M. Heidegger............................................................................... 99
5.3 E. Levinas.................................................................................. 105
5.4 J. Hick........................................................................................ 110
5.5 R. Girard.................................................................................... 116
5.6 J. Derrida................................................................................... 121
Capítulo 6 – Filosofia Política e Religião....................................... 127
6.1 R. Luxemburgo.......................................................................... 128
6.2 G. Vattimo................................................................................. 131
6.3 A. Badiou................................................................................... 134
6.4 G. Agamben............................................................................... 137
6.5 S. Žižek...................................................................................... 140
6.6 B. Han........................................................................................ 144
Referências ...................................................................................... 149
Introdução
Grande parte das introduções a obras filosóficas trata da primor-
dial questão “o que é Filosofia”? Em mais de 2 mil anos de tradição,
nenhuma definição foi totalmente aceita. Das propostas mais amplas
às mais específicas, não há um conceito estrito de Filosofia que con-
temple o pensamento de todos os filósofos.
Quando modificamos a atmosfera para um material didático de Fi-
losofia da Religião, a questão das definições se complica ainda mais.
Ora, tal qual o termo “filosofia”, também seria preciso encontrar um
conceito compartilhado de religião. E, ainda mais difícil, definir os
significados da partícula “da” que liga a filosofia à religião. O que sig-
nifica dizer que há uma filosofia que é da religião? Que a religião é sua
“dona” em algum sentido? Que é uma filosofia que, ignorando outras
esferas sociais, dedica-se exclusivamente à religião?
Aqui encontramos uma primeira antinomia nessa área: para dizer
o que é filosofia da religião é preciso, filosoficamente, definir religião.
Ora, nesse sentido, é preciso fazer filosofia da religião para saber o
que é filosofia da religião. Consequentemente, tão vastas quanto as
definições de religião de cada pensador que apresentaremos, as no-
ções sobre o que seja filosofia da religião variam.
Ao mesmo tempo em que possuem muitas diferenças e especifi-
cidades, essas definições também possuem coincidências e conver-
gências. Primeiramente, o tema: religião. Mesmo que algumas tratem
de uma religião específica, e outras da experiência religiosa em geral,
essa temática está sempre presente. Em segundo lugar, há tendên-
cias identificáveis entre os autores, de modo que é possível agrupá-
los conforme suas abordagens. Isso não significa que o modo como
concebem a religião se identifica totalmente, nem que haja qualquer
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tipo de filiação entre um grupo de autores. Antes, uma reunião em
torno da abordagem que fazem da religião tem por objetivo sublinhar
aspectos pré-metodológicos como, por exemplo, o objetivo último de
se debruçar sobre a religião. Vejamos o que o teólogo e filósofo Paul
Tillich diz sobre a filosofia da religião:
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vazia. Se não receber e aceitar da religião seu pretendido caráter
revelado, seu objeto escapa e não está mais falando de uma reli-
gião genuína. Se, por outro lado, aceita a revelação, se converte
em teologia (TILLICH, 1973, p. 9-10).
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Isso porque, diferentemente da contemporaneidade, nem sempre a
religião foi facilmente identificada como uma área autônoma da so-
ciedade e passível de ser objeto de estudo. Os primeiros a identificar
a possibilidade de voltar-se para a religião como instituição passível
de pesquisa e crítica foram os idealistas alemães. A partir dessa esco-
la de pensamento tornou-se possível tomar a religião como um lugar
a ser pensado, e não somente um lugar de onde se pensa. Na esteira
dessa escola, diversos pensadores reinterpretam a religião de modo
crítico. Essa abordagem crítica não quer somente investigar a religião
por ela mesma, mas a partir da redução de sua causa a elementos
externos. Assim, a religião não seria causada por um sentimento de
fé ou algo que o valha, mas por questões antropológicas, econômicas
ou psicológicas. Aqui não está em jogo somente a discussão de um
tema, mas o julgamento sobre seu papel na sociedade e nos indiví-
duos.
Ainda que essas abordagens críticas da religião tenham grande
efeito tanto acadêmico quanto social, elas não encerram as possibili-
dades de pesquisa sobre esse objeto. Há, por outro lado, abordagens
compreensivas da religião que, em vez de reduzi-la a um elemento
exterior, buscam estudá-la em seus próprios termos, em sua escala
própria. Nesse ponto, a religião deixa de ter sua origem explicada por
sistemas alheios, mas é enxergada a partir de sua própria complexi-
dade histórica.
Por fim, reunimos alguns importantes pensadores que, com seus
olhares diversos, teceram importantes teorias sobre a religião. Neste
vasto grupo, apresentamos primeiramente aqueles ligados à moder-
nidade e à contemporaneidade filosófica que se dedicaram (alguns
parcialmente e outros completamente) ao tema da religião. No se-
gundo grupo que ajunta olhares diversos, reunimos alguns pensa-
dores da filosofia política que tecem um interessante diálogo entre o
discurso sobre a organização social e a religião. Nesse rico percurso,
buscamos conceituar o que é religião, bem como verificar suas inte-
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rações com aspectos culturais, existenciais e sociais. Por fim, nosso
objetivo é possibilitar os leitores e estudantes a discutir a religião fi-
losoficamente em seus mais diferentes sentidos, formas e aplicações.
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CAPÍTULO 1
AS RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E RELIGIÃO
Um dos primeiros passos para o estudo da Filosofia da Religião,
bem como para a sua atividade intelectual, é definir os termos da re-
lação entre filosofia e religião. Como nosso interesse não é propria-
mente fazer, mas conhecer filosofia da religião, é necessário enten-
dermos como tal relação se constituiu historicamente. Por isso, neste
capítulo abordaremos alguns aspectos históricos e teóricos sobre a
relação entre filosofia e religião, bem como sobre a religião enquanto
conceito a ser estudado.
Nossa trajetória se fará em três etapas: primeiramente apresen-
tando religião e filosofia como modos diferentes de pensamento,
depois demonstrando algumas aproximações e certos afastamentos
históricos entre os dois conceitos e, por fim, exibindo a crítica recente
ao conceito de religião. Com esse caminho, buscamos construir uma
sólida base sob a qual as diversas formas de filosofia da religião po-
derão ser entendidas de modo mais adequado.
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conceitos. Argumenta ele que diversas outras atividades humanas
também se elaboram a partir da criticidade lógico-argumentativa e
da conceituação de fenômenos da realidade. O que define a filoso-
fia, então? Ou, antes, por que se faz filosofia? Para Ferry, a filosofia
é uma busca por salvação. Conceituá-la nesses termos, a princípio,
também não resolve o problema de sua especificidade, uma vez que
as diversas religiões também se constituem a partir de uma busca se-
melhante. Mais do que pontuar semelhanças possíveis entre filosofia
e religião, aqui Ferry aproxima-as como concorrentes. Ora, se tanto
uma quanto a outra buscam uma espécie de salvação, elas se tornam
inimigas no oferecimento de seus caminhos. Antes de verificarmos as
consequências dessa separação, devemos questionar a Ferry qual se-
ria a diferença entre religião e filosofia. Eis sua resposta:
14
dar respostas à condição de mortalidade humana. Em segundo lugar,
para Ferry, o filósofo prefere o desconforto da lucidez à certeza cega
da fé. Isto é, o filósofo estaria mais interessado na liberdade radical
que a criticidade traria do que no conforto que a fé estabelece ao pos-
tular certezas imutáveis.
A filosofia, a partir dessa busca, se estabeleceria em duas verten-
tes: a teoria, buscando a compreensão daquilo que é; e a ética, pres-
crevendo um caminho em torno da justiça. Tanto em um quanto em
outro, o fim último é a sabedoria, justamente, o caminho da salvação
sem Deus. Apesar de renunciar a Deus, a filosofia não se coloca como
caminho de salvação contra Deus. Aqui, há uma sutil, mas importan-
tíssima diferença: a religião não deve ser combatida nem endossada,
mas deve ser posta à parte da busca pela sabedoria. Ferry esclarece
essa ideia:
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Nesse ponto, torna-se ainda mais claro que a concorrência que Fer-
ry aponta entre religião e filosofia na busca pela salvação não é uma
competição de sobreposição ou de suplantação, na qual uma tenta
encerrar as possibilidades de existência da outra. Ainda assim, a con-
corrência entre elas se estabelece de modo complexo. A tese de Ferry
é heterodoxa na história da filosofia, mas mesmo assim útil para com-
preendermos as relações entre esse modo de pensamento e a religião.
Como veremos mais adiante, filosofia e religião nunca deixam de
se relacionar. Enquanto a proposta de leitura de Ferry é mais radical,
apostando em um tipo de fratura fundamental entre as duas desde
o início dessa relação, há outras possibilidades de abordagem do
problema que invocam filosofia e religião de modos menos compe-
titivos. Nestas elas não seriam rivais, mas duas irmãs que caminham
por diferentes caminhos e mantêm relações amigáveis. Essa é a tese
de Alessandro Rocha (1973-2019), teólogo e filósofo brasileiro. Para
ele, tanto a filosofia quanto a religião, por meio da teologia, são mo-
dos distintos de crer e conhecer. Sua interpretação histórica dessa
relação se baseia em dois conceitos fundamentais: a univocidade e a
equivocidade. Respectivamente, esses termos dizem respeito à afir-
mação uniforme sobre algo que se coloca como única possibilidade
de tratar do assunto, e a compreensão múltipla sobre aquilo que se
fala, a partir de uma chave metafórica (e não metafísica como na uni-
vocidade). Partindo da distinção entre univocidade e equivocidade,
Rocha determina a relação entre filosofia e teologia, demonstrando
como a metafísica filosófica sustenta a univocidade teológica:
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da verdade. Porém, o unívoco só poderia ser afirmado a partir de
uma fonte autoritativa que transcendesse as realidades culturais
(que são equívocas). Negando desta forma toda multiplicidade,
considerando-a como não-ser ou apenas sombra de uma realida-
de fundamental, seria possível afirmar uma sentença de abran-
gência universal. A fonte autoritativa que a filosofia grega gestou
para afirmar a univocidade foi a metafísica (ROCHA, 2017, p. 39-40).
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1.2 UM POUCO DE HISTÓRIA
Não há uma data exata de início da filosofia da religião. Esse en-
contro poderia ser datado do encontro entre os primeiros líderes cris-
tãos judeus e gentios, relatado em Atos 15, no qual há uma discussão
filosófica sobre a importância dos costumes judeus para a conversão
ao cristianismo. Aqui, embora ainda dentro de um âmbito teológico,
há uma análise racional de uma questão religiosa que se confronta
com uma questão cultural externa aos seus próprios limites.
Esse movimento de extensão é característico da filosofia da reli-
gião: por um lado, a religião buscando o diálogo com a cultura que
não faz parte de seu ambiente; por outro, a filosofia buscando uma
compreensão crítica acerca dos limites e horizontes dos conceitos
teológicos que a religião articula. Embora o exemplo da narrativa
bíblica aponte importantes elementos para a compreensão do que
seja a filosofia da religião, ele ainda é insuficiente, porque se perfaz
como discussão teológica sobre a cultura. A filosofia da religião não
parte da teologia, mas do próprio constructo racional inerente ao ser
humano.
É frequentemente veiculada a ideia de que a filosofia surge na
Grécia antiga como uma tentativa de superação dos mitos. Para essa
teoria, a crítica à verdade estabelecida nos mitos religiosos a partir
do exercício prático da racionalidade humana foi o estopim da revo-
lução intelectual que se iniciava nos últimos séculos antes de Cristo.
Embora, de fato, haja elementos de superação da lógica mítico-racio-
nalista antiga, a filosofia não rompe totalmente com ela. Inclusive, a
acusação que leva Sócrates à condenação judicial de morte é de que
ele seria um corruptor da juventude com seu ateísmo - posição que o
filósofo nega veementemente.
Na tentativa de começar um novo modo de pensamento em seus
próprios termos, os primeiros filósofos, chamados pré-socráticos,
não apenas dialogavam com elementos religiosos de sua cultura
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como, muitas vezes, se apoiavam neles como fonte para sua própria
filosofia. Um dos precursores do pensamento filosófico, Parmênides,
afirmava uma lei lógica que serviu de base para toda a tradição me-
tafísica da filosofia: “o ser é, e que o não ser não é” (SANTOS, 2001, p.
67). Essa distinção, entretanto, não foi fruto apenas de sua investiga-
ção lógico-racional a partir da experiência sensível, mas surge a partir
de um diálogo com uma deusa não identificada.
De modo semelhante, a partir do relato de Platão, Sócrates é a
todo tempo importunado e inspirado pelo Daímon, uma espécie de
espírito conselheiro que lhe dizia como agir, e fazia com que ele evi-
tasse diversas ações ao longo de sua vida. Em seu julgamento, Sócra-
tes reconheceu a importância de sua relação com tal figura religiosa.
Na Idade Média, a filosofia clássica grega se encontra com a teolo-
gia cristã e, nesse ponto, iniciam-se com maior intensidade, ou mais
explicitamente, as interações entre filosofia e religião. O caso de Agos-
tinho de Hipona talvez seja o mais paradigmático. Astuto debatedor,
Agostinho se converte ao cristianismo depois de uma vida devassa e,
por isso, escreve suas confissões - livro tanto teológico como filosó-
fico. Além de relatar experiências pessoais, nessa obra o autor tece
importantes reflexões sobre a natureza de sua fé, bem como sobre
temas de natureza filosófica e antropológica, como o tempo e a me-
mória. É importante perceber que, com grande influência de Platão e
de Plotino, Agostinho pensa elementos religiosos a partir da filosofia
e temas filosóficos a partir da religião.
No Livro X de suas Confissões, Agostinho chega à questão da me-
mória como ponto fundamental de seu encontro com Deus. A partir
desse encontro, na memória, o autor pôde também desenvolver as
bases de uma teoria do conhecimento. Portanto, a questão da memó-
ria em Agostinho é de suma importância, pois somente através dela
é possível ao ser humano conhecer a si mesmo, a Deus e ao mundo.
Tal santuário imenso e amplo que se chama memória é o ponto de
partida do conhecimento que provém dos sentidos, mas não se limita
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a eles. Sobre os objetos empíricos, diz Agostinho, “residem em mim,
não os próprios objetos, mas as suas imagens” (AGOSTINHO, 2011, p.
224). Isso indica que o conhecimento empírico chega ao ser humano
por meio de imagens que só são conhecidas de fato quando guarda-
das no palácio da memória. Em outras palavras, os objetos em si não
são captados pela memória, apenas suas imagens são.
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cimento é ato inerente à segunda, de modo que “as noções não as
alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela
experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou
então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém as entre-
gasse a ela” (AGOSTINHO, 2011, p. 229).
A passagem da memória a Deus, portanto, requer um pequeno
passo no degrau que é a questão do esquecimento. Paradoxalmente,
o esquecimento é um fato inexplicável, para o filósofo africano: pois,
mesmo que ele seja real, sempre é possível lembrar-se dele, de modo
que o esquecimento seja a lembrança do que não se lembra mais.
Como Deus poderia habitar nesse paradoxo? Agostinho afirma que
Deus não pode habitar no esquecimento, mas, como na parábola da
dracma perdida (que é narrada por Jesus juntamente com a estória
da ovelha perdida e do filho pródigo), lembra-se de que algo foi es-
quecido. Entretanto, para que se esqueça é necessário ter conheci-
do anteriormente. Deus, portanto, é uma ideia inata, conhecimento
que o ser humano já possui e precisa se lembrar. Por isso, conhecer é
relembrar. Nisso também se encontra a dependência do pensamen-
to de Agostinho de Platão. Isso se demonstra, por exemplo, quando
o filósofo da patrística afirma que aqueles que buscam a vida feliz a
encontram na verdade e eles “não poderiam amar se não tivessem
na memória qualquer noção de verdade” (AGOSTINHO, 2011, p. 238).
Deus, assim, também reside na memória.
Desse modo, Agostinho possibilita que se construa na memória
uma teoria do conhecimento de profícuas implicações filosóficas. De
certo modo, suas ideias chegam a Descartes por meio da desconfian-
ça do conhecimento por meio dos sentidos, puramente, e da neces-
sidade de afirmação de ideias inatas para a justificação da possibi-
lidade de conhecimento. Todavia, a não radicalidade de Agostinho
quanto a primeira questão apresenta diversos ganhos em relação a
Descartes. Para o filósofo medieval, os sentidos podem enganar e o
corpo não tem parte primordial no conhecimento: quem conhece é
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o espírito e a memória. Mas tal conhecimento não se dá sem os sen-
tidos e, consequentemente, sem o corpo, uma vez que é por meio
deles que o espírito pode captar as imagens dos objetos e das sen-
sações que ficaram acessíveis no palácio da memória. Assim, ele não
nega direta e ultimamente a validade dos sentidos, mas também não
constrói neles o fundamento último de sua teoria do conhecimento.
O conhecimento passa, para ele, crucialmente pela memória, onde
residem as imagens dos objetos empíricos, onde residem os conheci-
mentos matemáticos, e onde reside Deus, este mais íntimo de nós do
que nós mesmos. Na Idade Média, filosofia e religião estão unidos de
forma quase definitiva.
Um importante aspecto para tratarmos dessa união é verificar a re-
lação entre religião e cultura. Até a Idade Média, a religião era o meio
cultural de maior importância, de modo que todas as esferas da vida
cotidiana dos seres humanos eram mediadas pela religião. Quando
havia uma guerra, por exemplo, as preces eram fonte fundamental de
força para os exércitos. A relação entre os servos, os senhores, os no-
bres e as monarquias se estabelecia a partir de um fundamento reli-
gioso de escolha divina. O sucesso ou o fracasso das colheitas era atri-
buído ao humor de Deus em resposta às atitudes humanas. Em geral,
por mais que estivessem separadas em diferentes esferas (guerras,
organização social, produção agrícola etc.), todos os âmbitos da vida
comunitária medieval estavam influenciados pela lógica religiosa.
Na modernidade, essa lógica foi modificada. Com uma graduação
da laicidade dos Estados, a partir da Reforma Protestante no séc. XVI,
a religião começou a ser relegada a uma esfera dentre outras. Nessa
nova configuração, a cultura assume o papel de mediadora das ativi-
dades humanas e a religião passa a ser uma esfera separada e indivi-
dualizada. Assim como há diferentes âmbitos de nossas vidas, como
a economia, a arte, o esporte, o trabalho etc. A religião é apenas mais
um entre outros âmbitos - sem mérito ou demérito. A esse processo,
chamamos autonomização das esferas sociais. Para além da transfor-
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mação social e cotidiana que essa autonomização implicou, também
é importante ressaltarmos que ela possibilitou uma radical mudança
no pensamento acadêmico - sobretudo o filosófico. Se antes a filoso-
fia voltava-se apenas para a natureza das relações entre os homens e
a natureza a partir da experiência religiosa amalgamada (conforme
apresentamos sobre a Idade Média), agora a filosofia tem possibili-
dade de pensar a partir de si mesma sobre essas diferentes esferas
sociais. Assim, surge a estética, ramo da filosofia que se volta para a
reflexão sobre o belo e a arte, por exemplo. O mesmo ocorre com a filo-
sofia política e, consequentemente, com a filosofia da religião. Uma vez
que ela não mais media as relações humanas, a religião pode ser obje-
to de estudo a partir de uma área externa de conhecimento: a filosofia.
Por isso, a filosofia da religião deve ser entendida como um fenô-
meno tipicamente moderno e contemporâneo: as condições de pos-
sibilidade desta atividade não estavam dadas nos momentos anterio-
res da história, ainda que se refletisse sobre as relações entre filosofia
e religião. Somente a partir de sua autonomização como esfera social,
a religião passou a ser objeto a ser conhecido, seja pela filosofia, seja
por outras disciplinas acadêmicas que nasciam naquele momento da
história, como a historiografia, a antropologia, a sociologia e a ciência
da religião. Assim, nossa investigação histórica acerca dos debates fi-
losóficos em religião não se inicia com Sócrates, Platão e Aristóteles,
nem com Agostinho e Tomás de Aquino, mas com o idealismo ale-
mão. Somente após as mudanças sociais que possibilitaram a auto-
nomização da religião, a filosofia da religião surge.
Falar em pensamento crítico sobre a religião, entretanto, não im-
plica negativamente um julgamento sobre sua validade. Antes, a crí-
tica aqui tem sentido de avaliação racional sobre seu funcionamento
interno bem como sua interação com outras esferas autonomizadas.
Isso significa que não se pensa filosoficamente a religião a fim de des-
legitimá-la, mas para aprofundar os conhecimentos sobre essa tão
importante parte da vida humana.
23
1.3 OS PROBLEMAS DO CONCEITO DE RELIGIÃO
Neste ponto, deve estar claro o fato de que a filosofia da religião
se inicia na modernidade, a partir do momento em que a religião se
torna autônoma em relação às outras esferas da sociedade. Isso sig-
nifica, em outras palavras, que religião é um conceito recente que diz
respeito a uma atividade humana que se encontra desde a pré-histó-
ria nas mais diversas comunidades.
Quais são as implicações de reconhecer a novidade que esse con-
ceito traz na modernidade? O que significa dizer que certa atividade é
religiosa? Quem delimita o que é religião e o que não é religião? Essas
e outras questões levaram uma série de estudiosos da religião, tam-
bém sob o viés da filosofia, mas, sobretudo, da ciência da religião, a
questionar a validade do conceito de religião como base para seu es-
tudo. Pioneiro nessa atividade crítica, o canadense Wilfred Cantwell
Smith é um dos autores que se posiciona mais radicalmente acerca
da validade do termo religião. Sua proposta é que ele seja abandona-
do. É importante entendermos que ele não propõe que se abandone
as práticas religiosas, mas que se abandone o uso do termo “religião”
na academia.
24
de como também a noção que possuímos de religião é moderna: ela
pressupõe uma separação entre poder religioso e poder estatal que
só se estabelece na modernidade. Para sustentar esse argumento, o
autor faz uma revisão dos diferentes sentidos que o termo “religião”
assumiu ao longo da história. Na raiz latina da palavra, religio signifi-
cava uma atitude de respeito, cuidado e dedicação perante um obje-
to ou uma atividade. Tal significado se mantém em variações em toda
antiguidade. Aqui, não há nenhuma referência a instituições religio-
sas ou à coletividade. Esse sentido se desenvolveu em diversos ou-
tros como adoração e rito realizado repetidamente. Em todas essas
noções, o termo religião representa uma atitude prática em relação a
um objeto sagrado.
Já na Idade Média, o termo religião passa a ser usado a partir de
um caráter mais subjetivo e individual. Ficino, por exemplo, usa o
termo pensando em uma espécie de instinto em relação a Deus. Os
reformadores protestantes Lutero e Zwínglio também pensaram so-
bre o termo em chave subjetiva: como fé e como relação individual
com Deus, respectivamente. Calvino, por sua vez, ao escrever suas
Instituições, sistematiza que a religião é uma atitude pessoal interior.
O caráter subjetivo e individual, ou pessoal, da religião ainda é hoje
reconhecido, mas não encerra o que os sentidos que o termo possui
hoje. Somente na modernidade “religião” ganha caráter institucional
e coletivo. Essa passagem tem uma carga extremamente negativa,
pois, segundo Smith, ela nasce de um processo de intelectualização
do termo para designar novos movimentos pejorativamente. Não por
acaso ela surge após os reformadores romperem com a hegemonia
Católica Romana no Ocidente. Eis o caráter pejorativo, conforme Smi-
th:
25
do se rejeita o que outras pessoas apresentam - em que e por meio
do que não se encontra ou não se vê qualquer orientação trans-
cendental, pelo menos nenhuma que seja válida - então necessa-
riamente se conceitualiza isso em termos de suas manifestações
exteriores, pois essas são tudo de que dispomos. Nossa própria
‘religião’ pode ser piedade, fé, obediência, adoração e uma visão
de Deus. Uma ‘religião’ estranha é um sistema de crenças ou ritu-
ais, um modelo abstrato e impessoal de coisas observáveis. [...]
Religião como entidade sistemática, da forma como surgiu nos
séculos XVII e XVIII, é um conceito da polêmica e da apologética.
Disso surgem dois desdobramentos. Um é o plural ‘religiões’, que
é inviável enquanto pensarmos em algo que acontece no coração
das pessoas, como piedade, obediência, reverência, adoração
(nenhuma dessas palavras tem plural). O plural aparece - ele se
torna padrão a partir de meados do século XVII e comum a partir
do século XVIII - quando observamos de fora, abstraímos, desper-
sonalizamos e reificamos os diferentes sistemas de outras pessoas
nos quais não vemos sentido ou valor e cuja validade nem sequer
cogitamos aceitar (SMITH, 2006, p. 50).
26
contra o conceito “religião”: 1) O conceito é múltiplo: trata de diversas
coisas ao mesmo tempo e por isso é muito esparso; 2) o conceito é
recente: criado na modernidade, não é adequado para tratar de fe-
nômenos antigos e medievais; 3) o conceito é ocidental: pressupõe
um processo de secularização que inviabiliza seu uso para religiões
não-ocidentais.
Assim, a proposta de Smith é que o termo seja completamente
abandonado uma vez que, apesar de seu uso vulgarizado, ele atrapa-
lha mais do que auxilia os estudos de religião. Para ele, tais estudos
deveriam utilizar dois outros termos: fé, para tratar da perspectiva in-
terior da religião, como a adoração, a devoção e a individualidade em
relação à transcendência; e tradição cumulativa, para dizer respeito
à exterioridade como os dogmas, as doutrinas e os ritos práticos das
religiões. A radicalidade de sua proposta é tamanha, que fez com que
ela não fosse totalmente aceita no âmbito acadêmico. Todavia, as crí-
ticas que Smith tece sobre o conceito de religião são de grande valia e
devem, em todo caso, ser mantidas em mente em todo estudo sobre
religião. Sua historicidade é necessária para que nenhuma proposta
filosófica seja tomada como absoluta ou como verdade final: assim
como, no passado, os significados da palavra “religião” se modifica-
ram, podemos projetar que ainda serão outros no futuro - e nenhuma
das posições aqui apresentadas serão eterno consenso.
27
CAPÍTULO 2
A RELIGIÃO NO IDEALISMO ALEMÃO
O Idealismo Alemão foi um movimento filosófico da modernidade
tardia, compreendido entre os séculos XVIII e XIX. Também conhecido
como filosofia clássica alemã, ele reuniu uma série de filósofos que,
pondo fim ao monopólio da oposição entre racionalistas e empiristas,
buscou uma via média para o estabelecimento do pensamento filosó-
fico da época. Ao contrário do que se poderia imaginar, esse idealis-
mo não se prende a abstrações como modo puro de representação do
real, como se o ideal fosse proveniente da mente em contraposição à
precariedade do sensível. Antes, a noção de idealismo pressupõe, em
geral, que as ideias a priori determinam o modo como enxergamos o
sensível - sem, com isso, fazer um juízo de valor normativo.
Apesar de seus principais autores serem Kant, Fichte, Schelling e
Hegel, apresentaremos os pensamentos de Kant, Hegel e Schleierma-
cher, uma vez que neles a religião ocupa maior centralidade. Além
disso, eles são os mais influentes na tradição que se estabelece na
filosofia da religião. É necessário lembrarmos, antes, que a possibi-
lidade de fazer filosofia debruçando-se sobre a religião surge, justa-
mente, nesse período em que ela ganha autonomia junto a outras
esferas sociais.
2.1 I. KANT
Immanuel Kant (1724-1804) marcou a filosofia com seu pensa-
mento epistemológico. Isso porque, na tentativa de unir a tradição ra-
cionalista de Descartes com o empirismo de Hume (que o despertou
de seu sono dogmático, como Kant mesmo diz), estabeleceu novos
fundamentos para o pensamento da filosofia em geral.
28
A importância de sua tese central é comparada à revolução coper-
nicana. Copérnico sugeriu, no campo da astrofísica, que a terra girava
em torno do sol, e não o contrário. De modo análogo, Kant sugere que
não é nosso intelecto mental que se adapta aos objetos da natureza
no processo de compreensão, mas que as percepções desses obje-
tos são moldadas por nossas estruturas mentais. Ou: “os objetos têm
de regular-se por nosso conhecimento” (CRP, B XVI). Para Kant, o co-
nhecimento das coisas em si é impossível. Podemos acessar somente
como elas se mostram para nós, como aparecem: por isso conhece-
mos somente fenômenos.
29
moralidade, na Crítica da razão prática, Kant postula uma ética do de-
ver extremamente rígida: se os parâmetros de julgamento são univer-
sais (porque estão presentes em todos os seres humanos), também
devem ser universais os preceitos éticos que guiam o agir humano.
Portanto, o interesse de Kant em conhecer tal religião natural é im-
portante porque, somente a partir dela, ele poderá conhecer também
a moralidade humana:
30
a terceira aos conceitos morais para fazê-lo. Cada um desses pontos
da classificação kantiana possibilita uma conclusão sobre o conceito
de Deus. A teologia transcendental se conclui na tese de que Deus é o
sumo ente, isto é, o fundamento da possibilidade de que tudo exista.
A teologia natural apresenta Deus como suma inteligência, isto é, au-
tor do mundo e responsável pela coerência interna e funcionamento
do universo. A teologia moral, por fim, diz que Deus é o sumo bem,
aquele que governa o sistema universal de acordo com a moralida-
de. Deus é, portanto, causa, autor e governante do mundo, respec-
tivamente. As lições kantianas sobre a doutrina filosófica da religião
se resumem, então, a analisar o percurso de cada uma dessas áreas
da religião natural que sustenta o discurso sobre quem seja Deus. As
consequências práticas disso se revelam na noção de moralidade que
é sustentada divinamente a partir da teologia moral.
Neste ponto, é importante diferenciar o Deus de que trata Kant e o
Deus da religião cristã. O Deus de que trata a filosofia não é um Deus
pessoal como o descrito nas narrativas bíblicas, por mais que grande
parte da tradição filosófica se assuma cristã. A percepção de Kant so-
bre Deus se insere em uma longa história do pensamento que, desde
Aristóteles, pensa Deus como uma causa necessária para a existência
do universo. Portanto, Ele seria um ente supremo que é necessário
logicamente. As adaptações desse deus filosófico à religião cristã são
realizadas, sobretudo, por Tomás de Aquino, na Alta Idade Média com
a Escolástica.
Nesse momento, também, surgem as tentativas filosóficas de pro-
var a existência de Deus. Embora sejam diversas, a totalidade das
provas se baseia na noção de necessidade, justamente seguindo a
ideia aristotélica: para que tudo seja como é, é necessária também
a existência de Deus. Em tais discussões, as passagens bíblicas que
tratam sobre Deus não chegam a ser citadas como fonte autoritativa
para a discussão teológica: antes, somente a lógica filosófica da rela-
ção entre realidade, necessidade e possibilidade são válidas. Portan-
31
to, o Deus de que trata Kant não é inteiramente o Deus sobre o qual
a teologia sistemática tece seus argumentos, mas uma necessidade
lógica para sustentar a universalidade dos conceitos filosóficos. Essa
diferenciação se demonstra no próprio texto kantiano:
32
temperatura, textura, quantidade etc. Cada um desses só é possível
se, implícita ou explicitamente pressupormos o que seria perfeito em
cada um desses elementos: levemente picante, 43°C, pastoso e 350g,
respectivamente. A partir desses critérios considerados perfeitos, po-
de-se julgar os pratos: aquele que estiver mais próximo da perfeição
é melhor do que outro. Em todo caso, a ideia de perfeição, conforme
argumenta Kant, é necessária para que o julgamento seja possível.
Assim também na vida moral, natural e transcendental do ser hu-
mano: somente a partir do conceito de perfeição suprema e de Ser
supremo, é possível ao ser humano julgar o mundo que lhe cerca, seja
em suas necessidades básicas, como a escolha dos alimentos com os
quais se nutre, seja em dilemas éticos, como a questão da mentira
em casos extremos. Justamente por isso, diz Kant, “nossa moralida-
de precisa dessa ideia [de Ser supremo] para que lhe seja concedida
expressão” (KANT, 2019, p. 58). Sem a ideia de perfeição suprema, isto
é, de Deus, a religião natural, aquela que está em todos os seres hu-
manos de modo igual, não é possível. Segue-se que, para Kant, sem a
ideia de Deus não há nem moralidade, nem julgamento. Sem religião,
não há vida humana como conhecemos hoje.
2.2 G. W. F. Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um pensador sis-
temático. Isso não apenas significa que ele tinha certa organização
na hora de escrever suas ideias, mas que a própria noção de sistema
ocupa espaço central em sua filosofia. Para ele, a filosofia faz parte de
um caminho que, em constante evolução e gradual progresso, leva ao
saber absoluto.
Prova da centralidade da noção de sistema, é a sua teoria da dialéti-
ca. Em busca de entender tudo aquilo que existe, Hegel encontra a no-
ção de eternidade: mesmo que um objeto para o qual olhamos neste
momento não tenha existido sempre, ele vem de alguma outra coisa
que existiu anteriormente, e assim sucessivamente até a eternidade.
33
Por fim, devemos chegar à conclusão de que há algo que não foi
criado, o início do início de tudo. Hegel chama esse princípio de Uno.
Dele tudo deve poder proceder, uma vez que ele é o princípio de tudo
que há; e nele tudo deve estar contido, para que venha a ser em al-
gum momento. Mesmo que haja coisas contraditórias ou opostas,
ambas devem ter sido idênticas em algum momento, se todas pro-
vieram do Uno.
Se tudo é idêntico, pergunta-se Hegel, como surge o novo? Ele
mesmo responde: através da dialética. A dialética é um movimento
composto por três etapas: tese, antítese e síntese. A tese tem a ver
com a afirmação de algo; a antítese com a negação dessa primeira
afirmação; e a síntese com uma conciliação a partir de tal tensão. A
síntese, entretanto, não é somente um termo exatamente médio en-
tre tese e antítese, mas uma solução entre elas. Como o movimento
dialético é infindável, toda síntese se transforma em uma nova tese
que, por sua vez, será negada e transformada em síntese. E assim su-
cessivamente.
Embora a dialética seja sua principal teoria, Hegel não iniciou sua
vida acadêmica estudando filosofia, mas teologia. Aos 18 anos, ele
inicia os estudos no seminário protestante de Tubingen para tornar-
se pastor. Sua primeira obra publicada, inclusive, tratava da vida de
Jesus. Alguns anos depois dessa publicação, Hegel é convidado a as-
sumir a cátedra de filosofia na universidade de Jena, na Alemanha.
34
Além dessa universidade, Hegel lecionou em Heidelberg e em Berlin.
Nesse período, o autor se dedica exclusivamente à filosofia, deixando
a teologia em segundo plano. Todavia, o tema da religião não deixa
de ser importante para ele em nenhum momento. Sobretudo quando
elabora seu sistema universal. Nele, a religião ocupa um importante
espaço: ela é o último passo antes do saber absoluto e faz parte da
última síntese antes do espírito absoluto. O sistema se divide em três,
uma vez que é dialético: ideia, natureza e espírito. Dentro desse últi-
mo, já o espírito subjetivo, o espírito objetivo e o espírito absoluto. A
religião ocupa lugar como elemento primordial da história mundial,
dentro do espírito objetivo. Diz Hegel:
35
segundo lugar, ela é consciência da verdade absoluta, uma vez que
compreende a totalidade dos deveres e da justiça que devem nortear
o Estado e a vida humana. Todavia, a religião tem o conteúdo certo
(verdade absoluta) mas em forma errada, porque ela não é conceitu-
al. Por isso ela é o último estágio antes do saber absoluto, e não cons-
titui o próprio saber. Assim, todo dever e toda lei derivam diretamen-
te da religião. Diz Hegel que “A eticidade do Estado e a espiritualidade
religiosa do Estado são, desse modo, para si, as firmes garantias recí-
procas” (HEGEL, 1995, §552). Há uma intrínseca troca entre religião e
formação do Estado que se demonstra na medida em que a religião
fornece os princípios éticos para o Estado e esse limita os poderes da
instituição religiosa.
Aqui, há uma importante diferença em relação ao pensamento de
Kant sobre a religião: em Hegel, não é preciso fazer teologia para tra-
tar de religião, nem recorrer a uma espécie naturalista desse conheci-
mento. Antes, a religião é também tratada como instituição objetiva
que pode ser observável nos mesmos moldes em que se pesquisa a
história mundial. Nesse sentido, ela não é apenas subjetiva e indivi-
dual, mas uma instituição coletiva que é passível tanto de reflexão
quanto de crítica. Quando Hegel afirma que a religião ainda não tem
todos os elementos que o espírito e o saber absoluto requerem, ele,
implicitamente, estabelece os limites da religião enquanto fenômeno
humano - e não divino. Essa atitude do autor frente à religião é impor-
tante não somente por seu conteúdo dentro do âmbito sistemático
de seu pensamento, mas também pelo modo como lida com tal fenô-
meno. Ora, justamente no momento em que a religião se autonomiza
como esfera na sociedade, deixando de ser mediadora das relações
sociais, culturais e econômicas, a crítica de Hegel estabelece a reli-
gião como uma instituição social ligada à ética, mas, ainda assim, im-
perfeita. Nas palavras de Hegel,
36
espírito não tem a forma do livre ser-outro, seu ser-aí é distinto de
sua consciência-de-si, e sua efetividade peculiar incide fora da re-
ligião. É, na verdade, um o espírito de ambas, mas sua consciência
não abarca a ambas de uma vez; - e a religião aparece como uma
parte do ser-aí, e do agir e ocupar-se - sendo sua outra parte a vida
em seu mundo efetivo. Como nós agora sabemos que o espírito
no seu mundo, e o espírito consciente de si como espírito - ou o
espírito na religião - são o mesmo, a perfeição da religião consiste
em que os dois espíritos se tornem iguais um ao outro; não apenas
que a efetividade seja compreendida pela religião, mas inversa-
mente, que o espírito - como espírito consciente de si - se torne
efetivo e objeto de sua consciência. Na medida em que o espírito
na religião se representa para ele mesmo, ele é certamente cons-
ciência, e a efetividade incluída na religião é a figura e a roupagem
de sua representação. Mas nessa representação não se atribui à
efetividade seu pleno direito, a saber, o direito de não ser roupa-
gem apenas, e sim um ser-aí livre independente. Inversamente,
por lhe faltar sua perfeição em si mesma, é uma figura determina-
da, que não atinge o que deve apresentar: isto é, o espírito cons-
ciente de si mesmo (HEGEL, 2014, §678).
2.3 F. SCHLEIERMACHER
Friedrich Schleiermacher (1768-1834) foi um importante intelectu-
al no período de Esclarecimento alemão. Dedicou-se tanto à filosofia
quanto à teologia, sendo reconhecido por K. Barth, mais tarde, como
o pai da teologia liberal. Ainda que essa afirmação seja polêmica, ela
é útil para compreendermos a importância de Schleiermacher para a
filosofia da religião e para o pensamento teológico em geral.
Suas contribuições a esses campos se deram, também, sob a for-
ma de divulgação do pensamento clássico, por meio da tradução de
diversos diálogos platônicos para o alemão. Diferentemente de Kant,
esse autor traça paradigmas mais intersubjetivos para a religião: não
37
apenas fonte de moral, a religião é para Schleiermacher um senti-
mento. Aqui, todavia, sentimento não deve ser confundido com um
mero afeto irracional que transpassa momentaneamente o ser huma-
no, como pena, felicidade ou tristeza. A religião é, para ele, um senti-
mento como uma intuição humana pelo infinito.
38
Eu vos pergunto, portanto, que tarefa desempenha vossa metafísi-
ca [...]? Ela classifica o universo e o divide em tais e quais seres, in-
vestiga as causas do que existe e deduz a necessidade do real, ela
extrai de si mesma a realidade do mundo e suas leis. A religião não
deve, portanto, aventurar-se nessa região; ela há de recusar a ten-
dência de estabelecer seres e a determinar naturezas, a perder-se
em uma infinidade de razões e deduções, a investigar as últimas
causas e a formular verdades eternas. E que tarefa desempenha
vossa moral? Ela desenvolve a partir da natureza do homem e de
sua relação com o universo um sistema de deveres, ela prescreve
e proíbe ações com um poder ilimitado. Por conseguinte, a reli-
gião tão pouco tem de intentar isto; não deve servir-se do univer-
so para deduzir dever, ela não deve conter nenhum código de leis
(SCHLEIERMACHER, 2000, p. 29-30).
39
não, sustenta logicamente as religiões exteriores. Em outras palavras,
as religiões exteriores só são possíveis porque existe, precisamente,
uma religião interior. Para Schleiermacher, as religiões históricas são
finitas, já que estão limitadas pelo tempo e pela geografia específica
de seus fenômenos concretos, enquanto a religião em sua essência,
isto é, a religião interior é infinita. Nas palavras do autor,
40
ções mais fundamentais do que a de Deus no estudo da religião. Hoje,
esse ponto pode parecer até mesmo um pleonasmo: a filosofia da re-
ligião pensa sobre a religião. Mas, no ponto alto do Esclarecimento
alemão, a virada que Schleiermacher realiza em seus discursos sobre
a religião é de aguda inovação. Esse se torna um dos pontos chaves
que, mais tarde, separa o estudo da teologia do estudo da ciência da
religião na Alemanha. Enquanto a primeira se ocupa do estudo hu-
mano sobre Deus, o segundo se volta para a religião enquanto fenô-
meno interior ou exterior, mas sempre histórico. A discussão sobre a
hierarquia entre Deus e religião, qual seria mais fundamental ou an-
terior ao outro, não faz mais sentido diante dessa histórica divisão.
Ainda que, por vezes, a filosofia da religião cruze a linha e volte para
seu âmbito antigo, a partir de Schleiermacher ela se estabelece como
um discurso de articulação racional sobre a religião em suas diversas
formas, e não sobre Deus.
Há, no pensamento desse autor, outra interessante perspectiva
que marca muitos autores posteriores a ele dispostos a pensar uma
filosofia da religião. Embora não o afirme categoricamente, Schleier-
macher intui que haja uma relação intrínseca entre teoria e prática no
estudo da religião. Em suas palavras: “não o sei; porém temo que tam-
bém a religião só possa ser compreendida mediante si mesma e que
sua estrutura especial e seu caráter distintivo não vos sejam claros
até que vós mesmos pertençam a alguma delas” (SCHLEIERMACHER,
2000, p. 162). Aqui, há dois aspectos importantes para a compreensão
da filosofia da religião de Schleiermacher. Primeiramente, ele diz que
para estudar a religião adequadamente é preciso pertencer a alguma
de suas manifestações históricas, aderir a um culto ou se aproximar
como participante de alguma instituição religiosa. Em segundo lugar,
ele afirma que a religião só pode ser compreendida mediante si mes-
ma, isto é, em seus próprios termos.
Como veremos adiante, grande parte da história da filosofia da re-
ligião se constitui com a tentativa de entender a religião reduzindo-a
41
a outras esferas sociais autônomas, como a economia ou a psicologia.
Em outras palavras, essa tentativa de categorizar a religião em termos
que não são seus próprios invalida o próprio objeto de estudo e, con-
sequentemente, torna-se um hábito acadêmico, no mínimo, injusto.
Por isso, a filosofia da religião não deve se debruçar sobre ela re-
duzindo-a a um conjunto de crenças e doutrinas como fosse se credo
filosófico. Antes, é preciso buscar entendê-la em sua complexidade
histórica e subjetiva, pensando, como Schleiermacher, tanto seus as-
pectos interiores quanto exteriores.
42
CAPÍTULO 3
ABORDAGENS CRÍTICAS DA RELIGIÃO
O caminho aberto pelo idealismo alemão de novas formas de es-
tudar a religião, desemboca em diferentes tendências ao longo da
modernidade e da contemporaneidade. No debruçar-se sobre a reli-
gião, a filosofia pode muito, inclusive passá-la por uma crítica. Aqui,
todavia, é preciso entender o sentido do termo “crítica”. Diferente-
mente do uso cotidiano da palavra, a crítica não quer aqui apontar
uma carga negativa da religião, difamá-la ou condená-la de modo
previamente estabelecido. Antes, devemos entender a crítica em um
sentido kantiano, isto é, como atividade de refletir sobre os limites
e horizontes de algum fenômeno. Por isso, o interesse dos autores
que apresentaremos a seguir não é meramente “falar mal da religião”,
mas se questionar sobre suas origens no ser humano e sobre sua fun-
ção na sociedade. Há, no entanto, uma particularidade que marca os
autores que se aproximam dessa abordagem: eles tendem a reduzir
a religião a uma esfera que não é a sua. Diferentemente da proposta
de Schleiermacher, para quem a religião deveria ser compreendida
mediante si mesma, os autores apresentados a seguir acreditam que
as explicações mais coerentes sobre a religião não se encontram na
própria religião, mas alhures. Com isso, para eles, não se deve olhar
para o fenômeno religioso para compreender a religião, mas para a
antropologia, a economia, o niilismo e a neurose. Ao se prenderem
aos limites éticos, epistemológicos e ideológicos da religião, os auto-
res que aqui abordamos apontam criticamente as possíveis lacunas
que fizeram surgir a religião historicamente e, alguns deles, apontam
os motivos pelos quais a religião como tal deve ser superada. Ainda
que não seja o principal objetivo, há aqui fortes repreensões ao com-
portamento religioso na sociedade.
43
3.1 L. FEUERBACH
Ludwig Feuerbach (1804-1872), nascido na Alemanha, inicia sua
vida acadêmica estudando teologia, mas larga esse curso para se
aventurar nas aulas de filosofia ministradas por Hegel. Dentre os in-
térpretes e seguidores do pensador do sistema, Feuerbach se desta-
ca como um dos maiores expoentes do que se convencionou chamar
“esquerda hegeliana”. Com algumas incursões também nas ciências
da natureza, Feuerbach publicou livros sobre diversos temas, desde a
questão da imortalidade, até grandes obras sobre a religião, passan-
do por leituras de pequenos momentos históricos, como a história de
Abelardo e Heloísa.
De fato, o tema da religião ocupa lugar de importância dentro de
sua obra como um todo, sendo abordada em diversos assuntos espe-
cíficos, como a obra de Lutero, o cristianismo, a religião em geral e a
teogonia, isto é, um estudo sobre o nascimento/surgimento dos deu-
ses. Dentre os herdeiros diretos da filosofia de Hegel, Feuerbach foi
um dos que mais se voltou a pensar sobre a religião. Por isso, como
veremos a seguir, sua crítica à religião foi reconhecida como última e
definitiva por outros grandes filósofos.
44
que a essência da religião é antropológica. Para tal, primeiramente o
autor trata sobre a essência do ser humano em geral, afirmando que
ele é a razão. Caracterizar o ser humano é, antes de tudo, diferenciá-lo
do animal a partir do que há de mais específico em sua constituição:
a racionalidade. Essa força do pensamento, da vontade e do coração,
nas palavras de Feuerbach, é um fim em si mesma, isto é, existe para
suprir os seus próprios anseios de razão, amor e livre-arbítrio. Por
isso, um ser humano exemplar é aquele que é consciente de si mes-
mo e de suas vontades mais intrínsecas. A consciência, para o autor,
é a forma mais perfeita do ser humano se auto confirmar, afirmar e
amar a si mesmo, uma vez que só existe em totalidade em um ser
completo. Assim, seguindo Hegel, Feuerbach afirma a importância da
autoconsciência como parte fundamental da própria formação do es-
pírito humano.
Quando conhece a si mesmo, o ser humano também conhece o
seu Deus. Para Feuerbach, aí reside a origem da essência antropoló-
gica da religião. Afirmá-la é dizer que a religião não surge a partir de
uma aparição transcendente ou sobrenatural de algo sagrado. Antes,
para ele, a religião surge de o próprio ser humano. Por isso a insis-
tência no fato de que a religião seria antropológica. O antropós (“ho-
mem” em grego) carrega em si a gênese da religião a partir da ideia de
Deus. Assim, para uma adequada compreensão da origem da religião
é preciso compreender também como o ser humano cria seus deuses.
Nas palavras de Feuerbach:
45
nunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene
das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais
íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos
de amor (FEUERBACH, 2007, p. 44).
46
nado e definido como substância, pessoa ou de qualquer outra
forma) porque tu mesmo existes, porque tu mesmo és um ser. Não
conheces um bem humano mais elevado do que amar, do que ser
bom e sábio e da mesma forma não conheces a felicidade maior
do que existir, do que ser; porque a consciência de todo bem, de
toda felicidade está unida à consciência de ser, de existir. Deus é
para ti algo que existe, um ser, pelo mesmo motivo que é para ti
ser sábio, feliz e bom. A diferença entre as qualidades divinas e a
essência divina é apenas que para ti a essência, a existência não se
manifesta como um antropomorfismo, porque nesta tua existên-
cia está a necessidade que Deus seja para ti um existente, um ser;
mas as qualidades te aparecem como antropomorfismo, porque a
necessidade delas, a necessidade que Deus seja sábio, bom, justo
etc. não é imediata, idêntica à essência do homem, mas sim uma
necessidade que existe por meio da consciência que o homem
tem de si mesmo, por meio da atividade do pensamento (FEUER-
BACH, 2007, p. 49).
47
em vez de Deus. Seu apelo, nesse ponto, é claramente em favor de
um ateísmo prático para o ser humano: “Assim como Deus renunciou
a si mesmo por amor, devemos também renunciar a Deus pelo amor;
porque se não renunciamos a Deus por amor, renunciaremos ao amor
em nome de Deus e teremos, ao invés do predicado do amor, o Deus,
a entidade cruel do fanatismo religioso” (FEUERBACH, 2007, p. 80).
O ateísmo de Feuerbach, nesse sentido, se postula a partir de um
fundo ético-político, e não meramente de uma questão lógica. A ine-
xistência de Deus, para o autor, mesmo sem sentido lógico, não tem
por si só peso positivo que assegure um posicionamento antirreligio-
so. Todavia, na medida em que gera alienação e projeção contra o
autoconhecimento humano, a religião deveria ser abandonada para
que o crescimento humano rumo à perfeição se dê de forma efetiva.
Assim, a contraposição entre Deus e o amor que o autor estabelece
não é baseada em uma verdade cientificamente estabelecida que
comprova a inexistência de Deus, mas se fundamenta na impossi-
bilidade de justaposição entre os termos. Em outras palavras, para
Feuerbach, enquanto o ser humano se projeta em Deus, ele não pode
exercer com completude o amor que lhe é característico.
3.2 K. MARX
Karl Marx (1818-1883) foi um dos mais importantes filósofos da
modernidade. Isso não apenas por causa da extensão e do alcance
de seu pensamento, mas pela influência legada a grande parte da fi-
losofia contemporânea. Suas contribuições se mostram, para além da
filosofia, nas áreas da ciência política, da sociologia, do direito e da
economia, principalmente. Embora não tenha escrito nenhuma obra
específica sobre a religião, seu pensamento sobre o tema é de grande
perspicácia e extensão, uma vez que ele traça um interessante diálo-
go com a teoria de Feuerbach.
A questão da religião, em Marx, permeia diversas obras suas, de
modo que, para traçarmos suas linhas de interpretação, é preciso
48
percorrer algumas de suas mais importantes obras filosóficas, como
Crítica da filosofia do direito de Hegel, Teses sobre Feuerbach e A ideo-
logia alemã. Embora sua obra de maior fôlego, O capital, escrita em
três grandes volumes, trate ainda do tema da religião, nela estão re-
petidas as ideias que encontramos melhor formuladas alhures. Marx
possui duas grandes influências religiosas em sua vida pessoal: ape-
sar de ter nascido em família judia, seu pai se converte ao protestan-
tismo durante a infância de Marx. Devido a restrições da época, Hein-
rich Marx não poderia trabalhar como advogado sendo judeu, por
isso batiza-se em uma Igreja Luterana.
49
transformar o mundo - e não apenas compreendê-lo. Essa é a mais
conhecida das Teses sobre Feuerbach que Marx postula: “Os filósofos
apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transfor-
má-lo” (MARX, 2012, p. 166). A 11ª e última tese sobre Feuerbach é,
apesar de seu tamanho, um resumo de seu programa para a filosofia:
contra a abstração filosófica moderna, Marx pensa o dever prático da
filosofia frente à luta de classes que move a história. Sua preocupação
não é meramente abstrata, mas prática e concreta: a transformação
do mundo. Por isso sua insurgência contra a crítica religiosa de Feuer-
bach na 6ª tese: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência
humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao
indivíduo singular. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações so-
ciais” (MARX, 2012, p. 165). Em outras palavras, aqui Marx afirma que
a essência humana não é a mera abstração solitária dos indivíduos,
mas está nas relações sociais dos indivíduos com outros indivíduos,
isto é, na coletividade da vida real.
Por isso, em Marx a crítica à religião não pode se basear em uma
projeção individual de si mesmo em Deus, como queria Feuerbach.
Consequentemente, a religião não deve ser explicada a partir da an-
tropologia, uma vez que essa parte de uma individualidade abstrata.
Ora, só é possível pensar em um ser humano fora de suas relações
sociais de modo abstrato, uma vez que, na vida real, concreta, desde
seu nascimento o ser humano está cercado de pessoas e com elas
interage a todo tempo. Assim, a religião não pode ser explicada antro-
pologicamente, mas sociologicamente ou, como veremos, economi-
camente. Por isso, continua Marx na 7ª tese: “Feuerbach não vê, por
isso, que a ‘índole religiosa’ é, ela mesma, um produto social, e que
o indivíduo abstrato, que ele analisa, pertence a uma determinada
forma de sociedade” (MARX, 2012, p. 165). Conclui Marx que a vida so-
cial é prática e não abstrata. Por isso a crítica de Feuerbach não seria
adequada. Qual seria a crítica adequada? Marx diz:
50
O homem, isso é, o mundo do homem: Estado, sociedade. Este
Estado, esta sociedade produzem a religião, uma consciência de
mundo invertida, porque são um mundo invertido. A religião é
a teoria universal deste mundo, seu compêndio enciclopédico,
sua lógica em forma popular, seu point d’honneur [sua questão
de honra] espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu
complemento solene, seu fundamento universal de consolação
e justificação. É a realização fantástica do ser humano, porque o
ser humano não possui nenhuma realidade efetiva verdadeira. A
luta contra a religião é assim, mediatamente, a luta contra aquele
mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa é ora
a expressão da miséria efetivamente real, ora o protesto contra a
miséria efetivamente real. A religião é o suspiro da criatura oprimi-
da, o ânimo de um mundo sem coração, bem como o espírito de
condição dos pobres de espírito. Ela é o ópio do povo. A abolição
da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência de sua
felicidade efetivamente real. A exigência de renunciar às ilusões
sobre sua condição é a exigência de renunciar a uma condição que
demanda ilusões. A crítica da religião é assim, em germe, a crítica
de um vale de lágrimas, cuja auréola é a religião (MARX, 2012, p.
75-76).
Aqui está uma das mais célebres frases de Marx que, na mesma
medida de sua popularização foi deturpada e erroneamente inter-
pretada. A afirmação de que a religião seria o ópio do povo só pode
ser compreendida dentro do contexto mais amplo do pensamento de
Marx. Isso porque a religião não pode ser interpretada como uma dro-
ga letal. Antes, para pensar a religião, segundo esse autor, é preciso
verificar o contexto no qual ela nasce e, consequentemente, reflete.
Primeiramente, Marx chama atenção ao fato de que o ser humano só
pode ser corretamente interpretado a partir de seu ambiente: o Esta-
do e a sociedade que o cercam. A religião seria produzida por esses,
Estado e sociedade, e não pela projeção humana. Há, aqui, uma in-
51
versão da crítica de Feuerbach: se esse olhava para o indivíduo para
conhecer a religião, Marx olha para a sociedade para conhecer a re-
ligião. Nesse sentido, ela é um reflexo popular da lógica que rege o
mundo: a da opressão que gera a luta de classes.
Para Marx, portanto, a religião é um epifenômeno, isto é, um fenô-
meno secundário que não pode ser explicado em si mesmo: é preciso
olhar para outro lugar para que se explique corretamente a religião.
Por isso, não faz sentido lutar contra a religião, pois ela seria somen-
te a expressão de algo maior. As ilusões religiosas são fruto de um
mundo de ilusões, causada pela alienação do trabalhador em relação
ao valor de seu trabalho. A figura do ópio não tem sentido de droga,
portanto, mas de modo ilusório de felicidade que é requerido pela
impossibilidade de uma felicidade plena. Por isso ela é o suspiro dos
oprimidos: na medida em que não pode superar a situação de opres-
são, o oprimido encontra na religião um protesto contra a realidade
estabelecida. Nesse sentido, para Marx, a religião é tanto uma forma
de luta contra a opressão, quanto um modo de respirar em meio a
uma sociedade opressora. Mais uma vez a luta contra a religião não
tem sentido: se ela é um modo ilusório de vida causado pela desi-
gualdade de classes, quando a luta de classes for superada, a religião
necessariamente desaparecerá. Sem opressão não há motivos para
os trabalhadores buscarem essa felicidade ilusória. Ou, nas palavras
do autor:
52
Nesse ponto, revela-se ainda com maior clareza como Marx enten-
de o ambiente no qual se deve abordar a religião. Não bastam elucu-
brações teóricas ou abstratas sobre o problema da crença e apontá-la
como logicamente incoerente para os trabalhadores. Antes, ela é uma
questão objetiva, concreta, real e apenas desaparecerá do horizonte
do proletariado na medida em que as circunstâncias das quais a re-
ligião é efeito também desaparecerem. Aqui, mais especificamente,
a religião também é concebida como uma forma de ideologia, isto é,
uma falsa consciência que limita o horizonte interpretativo das mas-
sas e fornece expectativas extramundanas que frustram os anseios
revolucionários no presente. Em outras palavras, para Marx, na medi-
da em que oferece um ganho após a morte, a religião funciona como
uma instituição legitimadora da estrutura social que fomenta a luta
de classes. Por isso diz o autor que a moral, a metafísica e a religião
são modos de ideologia que não têm autonomia alguma: seu desen-
volvimento é devido ao ser humano que lhe conferem realidade à me-
dida que suas relações materiais se dão de forma inadequadamente
alienada. A consciência que o ser humano possui delas, portanto, não
é outra senão um produto social fruto da situação em que o ser hu-
mano mesmo vive.
3.3 F. NIETZSCHE
Friedrich Nietzsche (1844-1900) apesar de começar sua carreira
como filólogo, ainda figura como um dos mais influentes filósofos
do séc. XIX. A potência e a polêmica de suas obras trouxeram à tona
grandes discussões acerca dos limites da filosofia. No caso específico
de Nietzsche, a questão se acentua porque o autor escreve grande
parte de suas obras em aforismos ou narrativas. Uma de suas mais
famosas obras, Assim falava Zaratustra, é escrita na forma de discur-
sos proféticos de Zaratustra anunciando a aplicação de conceitos que
Nietzsche havia desenvolvido em outras obras. Desse modo, diversos
autores ao longo da tradição filosófica rejeitaram a classificação de
53
Nietzsche como um filósofo, afirmando que ele seria um autor lite-
rário. Suas obras escritas em forma de aforismos também causaram
certo rebuliço quanto à sua posição filosófica.
54
rentemente de Feuerbach, Marx e Freud, que apresentaremos a se-
guir, Nietzsche não critica a estrutura religiosa em geral, mas ataca
com grande voracidade alguns dogmas básicos do cristianismo e a
história mesma dessa religião. Para ele, o cristianismo precisaria ser
superado para que o ser humano se libertasse novamente para a vida
concreta. Nesse ponto, sua crítica ao cristianismo se confunde com
sua crítica à filosofia. Explica Nietzsche que muitos conceitos que
sustentam a tradição teórica da metafísica são, também, conceitos
teológicos. Por isso, uma de suas passagens mais conhecidas diz res-
peito ao anúncio da morte de Deus. Deus, aqui, não é o Deus pessoal
que o Cristianismo prega, mas a noção teórica que, representando a
realidade última, sustenta a metafísica. Assim, se Deus morreu, não
há mais garantia das verdades últimas que se estabeleciam a partir
dele. Em sua passagem, diz Nietzsche:
55
louco, colocar a morte de Deus como um anúncio. Assim, o sentido
da morte de Deus não deve ser interpretado, primariamente, como
um atestado de ateísmo por parte desse autor, mas um movimento
que gera expectativa para o fim de uma tradição filosófica até então
prevalecente. Por mais provocativa que seja a ideia de um Deus que
morre, Nietzsche ainda não tece nesse ponto uma larga crítica ao cris-
tianismo como faz em outra obra primordial, O anticristo.
Nessa obra, sua crítica é mais enfática e direcionada a diversos
dogmas e ideias fundamentais do cristianismo. Para tal, Nietzsche
começa apresentando uma leitura heterodoxa da Bíblia, sobretudo
do Novo Testamento, para demonstrar que o cristianismo histórico
deixou de seguir as ideias de Jesus para veicular uma doutrina pró-
pria e anticristã: “O ‘reino do céu’ é um estado do coração - não algo
que virá ‘acima da terra’ ou ‘após a morte’ [...] O ‘reino de Deus’ não
é nada que se espere; não possui ontem nem depois de amanhã, não
virá em ‘mil anos’ - é a experiência de um coração; está em toda parte,
está em nenhum lugar” (NIETZSCHE, 2016, p. 41). Aqui, o autor nega
a possibilidade de vida eterna assegurada pelo cristianismo - não por
uma mera crítica, mas por acreditar em uma leitura imanente do rei-
no de Deus. Esse exemplo se repete com diversas noções bíblicas: a
redenção, a morte de Jesus, os milagres etc. Em resumo, Nietzsche
acredita que “os evangelhos são inestimáveis como testemunho da
irresistível corrupção no interior da comunidade inicial” (NIETZSCHE,
2016, p. 50), de modo que ele aprova o que Jesus fez, mas não a re-
cepção da comunidade e seus desenvolvimentos posteriores. Ou, de
maneira ainda mais direta:
56
falso ver numa ‘fé’, na crença na salvação através de Cristo, por
exemplo, o distintivo do cristão: apenas a prática cristã, uma vida
tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã… (NIETZS-
CHE, 2016, p. 44).
57
13). Isso se dá, em último caso, porque o “cristianismo é platonismo
para o povo” (NIETZSCHE, 2009, p. 8). A relação entre cristianismo e
platonismo se estabelece, para o autor, no momento em que ambos
confiam em um segundo mundo, extraterreno, que sustenta a reali-
dade imperfeita desse mundo em que vivemos. Para o autor, assim
como Platão postulou a doutrina dos dois mundos, o inteligível no
qual estão as formas perfeitas, e o sensível, no qual vivemos e que
se manifesta através de acidentes imperfeitos; o cristianismo postula
um além no qual reside a perfeição das coisas completas e pelo qual
devemos ansiar e resignar-nos desse mundo. Uma das mais potentes
críticas de Nietzsche à crença no “além”, vem nas palavras de Zara-
tustra:
58
ele, que os outros mundos nada mais são do que nada celestes. Aqui,
o autor recorre a uma explicação: o medo da morte e a impotência de
realizar todos os seus desejos fazem com que o ser humano crie fan-
tasias projetadas em um mundo onde os desejos são possíveis. Dessa
forma, crer nesses outros mundos não seria mais do que deixar-se
levar pelos sentimentos pequenos de medo e insegurança, criando
uma ilusão para suprir essas necessidades. Aqui, cristianismo e pla-
tonismo encontram-se mais conectados ainda: ambos são criações
fantasiosas que retiram do ser humano a possibilidade de viver afir-
mando a própria vida. Para Nietzsche, a vida é o fim último, e o corpo,
a grande razão.
3.4 S. FREUD
Sigmund Freud (1856-1939), apesar de não ter sido um filósofo
propriamente dito, teceu importantes considerações filosóficas sobre
a religião - e por isso deve também aqui ser apresentado. O desen-
volvimento de seus pensamentos na área da psiquiatria deu início à
psicanálise, um campo clínico que investiga a psique humana para-
lelamente à psicologia. Embora estejam próximas, psicologia e psi-
canálise são independentes ainda hoje, como postulou Freud desde
sua criação.
Apesar de ter nascido em uma família judia, Freud desde os pri-
meiros escritos afastou-se da religião e, contra ela, teceu inúmeras
críticas. Como parte integrante e fundamental dos pensadores de sua
época, o pai da psicanálise fez escola e encontrou reconhecimento
científico ainda em vida. Dentre as personalidades mais influencia-
das por seu pensamento, podemos apontar, diretamente, os psicana-
listas Carl Jung e Jacques Lacan, e a escola freudomarxista ligada ao
pensamento social em Frankfurt, como Adorno e Horkheimer. Além
desses, Freud manteve uma intensa correspondência com um pastor
protestante Oskar Pfister, que além de religioso também era psica-
nalista. As cartas entre eles demonstram mais tolerância do que os
59
escritos publicados por Freud em vida, nos quais trata a religião como
uma espécie de doença da humanidade.
60
A religião não é analisada por Freud a partir de nenhuma dessas
estruturas da mente humana específica. Isso se dá porque o ponto
de partida de Freud para o tratamento do fenômeno não é subjetivo,
mas objetivo. Assim, a religião é, primordialmente algo externo ao ser
humano que encontra correspondência em suas estruturas internas.
Em Totem e tabu, o autor estipula algumas teorias sobre o comporta-
mento social do ser humano em chave psicanalítica através de uma
relação entre os dois termos que compõem o título de sua obra. Tan-
to totem quanto tabu estão relacionados ao caráter do sagrado em
sociedades antigas (denominadas na época como primitivas). Nas
palavras de Freud,
O que é o totem? Via de regra é um animal, comestível, inofensivo,
perigoso, temido, e mais raramente uma planta ou força da na-
tureza (chuva, água), que tem uma relação especial com todo o
clã. O totem é, em primeiro lugar, o ancestral comum do clã, mas
também seu espírito protetor e auxiliar, que lhe envia oráculos, e,
mesmo quando é perigoso para outros, conhece e poupa seus fi-
lhos. [...] A relação com o totem é o fundamento de todas as obri-
gações sociais para um australiano [aborígene]; ela se sobrepõe
ao fato de pertencer a uma tribo, por um lado e ao parentesco san-
guíneo, por outro lado [...]. O significado de ‘tabu’ se divide, para
nós, em duas direções opostas. Por um lado, quer dizer ‘santo,
consagrado’; por outro, ‘inquietante, perigoso, proibido, impuro’.
O contrário de ‘tabu’, em polinésio, é noa, ou seja, ‘habitual, aces-
sível a todos’. Assim, o tabu está ligado à ideia de algo reservado,
exprime-se em proibições e restrições, essencialmente. A nossa
expressão ‘temor sagrado’ corresponde frequentemente ao senti-
do de ‘tabu’ (FREUD, 2013, p. 8-12).
61
Estado surge de uma justaposição entre termos que advém de uma
experiência religiosa do povo. Embora a religião não seja a temática
primordial de seu escrito, nele já podemos antever algumas impor-
tantes características de como o psicanalista trata o tema: primeira-
mente como forma de legitimação da estrutura social e de mediação
entre o desejo e a realidade. Ainda que totem e tabu se formem em
um momento incipiente da religião, eles apontam para um fato inegá-
vel em Freud: essa forma que se torna, mais tarde, religião é movida
por um princípio intitulado “onipotência dos pensamentos”. Ela crê
que, somente por pensar e desejar algo, tal coisa se tornará realidade.
Essa noção se aproxima do clássico conceito cristão de fé. Na medida
em que gera uma crença de que seus pensamentos se tornarão ver-
dade, a magia gera um tipo de neurose obsessiva. Para Freud, isso se
inicia na antiguidade na fase animista (relacionada aos povos aborí-
genes e polinésios, por exemplo), mas prossegue na fase “religiosa”
do mundo. Se antes tal onipotência dos pensamentos se explicava
pelo próprio ser humano, agora ela encontra sua origem na ideia de
um Deus que supre a diferença entre desejo e realidade através de
sua onipotência.
A relação entre fases da história humana e fases do desenvolvi-
mento dos seres humanos, para Freud, é total: o animismo corres-
ponde a uma primeira infância, na qual o inconsciente comanda por
impulsos libidinais todas as atitudes; passando à fase religiosa, ain-
da infantil, na qual o pai se torna centro de referência e, consequen-
temente, de castração do ser humano; e a fase científica, que Freud
acreditava haver alcançado, que corresponderia à maturidade rumo
à perfeição e à sabedoria. Essa metáfora também é por ele utilizada
em O futuro de uma ilusão, texto publicado pelo autor em 1927. Nesse
ensaio, Freud se propõe a analisar a religião a partir da história da
cultura/civilização. Para o autor, a história da civilização é uma histó-
ria da renúncia dos desejos do indivíduo em favor da coletividade. Ao
mesmo tempo que o indivíduo se reprime pela cultura, ele também
62
se beneficia, uma vez que adquire senso de pertencimento ao grupo
pelo qual se deixa ser coagido. Tal senso, por sua vez, se compõe por
uma série de elementos psíquicos que a própria cultura impõe ao in-
divíduo. Nestes, a religião tem um lugar especial: “o mais importante
elemento do inventário psíquico de uma cultura: suas ideias religio-
sas no mais amplo sentido - em outras palavras, a serem justificadas
mais adiante, suas ilusões” (FREUD, 2014, p. 245).
A religião, portanto, desde o início deste escrito de Freud é consi-
derada uma ilusão. Por isso, ele se pergunta sobre o valor das ideias
religiosas, isto é, ele reflete sobre os motivos que fazem a religião ser
algo tão comum em muitas culturas ao longo da história. Qual seria
sua função psíquica? Primeiramente, diz Freud, é preciso ter em men-
te que a coerção individual exigida pela sociedade é demasiadamen-
te pesada, de modo que é preciso algum alívio para os indivíduos. Por
isso as religiões apelam para uma figura paterna que seria, ao mesmo
tempo, impositora de limites e protetora. Sobre essa ambivalência
peculiar, Freud diz:
63
Aqui, mais uma vez Freud recorre à relação entre infância e reli-
gião, de modo que, para ele, essa cria uma figura paterna para susten-
tar as ilusões de segurança e potência, contra o inegável desamparo
do indivíduo frente à cultura e à sociedade. A partir desse momento,
seu tom passa a ser menos analítico e mais crítico. Se a religião cria
um pai protetor, ela é um modo de fuga da realidade e, consequen-
temente, é uma ilusão, cujo segredo da força duradoura ao longo da
história é o desejo. Na medida em que a religião acredita que os de-
sejos inconscientes podem ser levados à cabo, essa “onipotência do
pensamento”, para retomar o termo de Freud, ela se espalha como
uma espécie de doença que nega a realidade em favor de sua ilusão.
Nas palavras do autor, “a religião seria a neurose obsessiva universal
da humanidade, originando-se, tal como a da criança, do complexo
de Édipo, da relação com o pai” (FREUD, 2014, p. 284). Esse sistema
de ilusões criado pela religião não seria outro que não o próprio re-
púdio à realidade que, ao ser negada pela ilusão do desejo, não tem
mais a palavra final a respeito do indivíduo. Por isso, para o autor, a
religião tem facilidade em se perpetuar e pulverizar através da his-
tória. Sua proposta é que a religião seja negada e extinta, uma vez
que se constitui como uma espécie de doença coletiva na sociedade.
Para tal, diz Freud, é preciso superar a infância da humanidade por
meio de um projeto educacional: “o ser humano não pode permane-
cer eternamente como criança, tem de finalmente sair ao encontro
da ‘vida hostil’. Podemos chamar a isso ‘educação para a realidade’”
(FREUD, 2014, p. 292). Sua crença, portanto, se coloca com bastante
força no poder da ciência como emancipadora da humanidade para
além das ilusões religiosas.
De fato, em O futuro de uma ilusão Freud publica seu mais crítico
estudo acerca da religião - e também de tom mais assertivo de julga-
mento acerca de tal fenômeno. Por isso, para ele, o futuro da religião
(essa neurose obsessiva) deveria ser sua extinção. Pouco tempo de-
pois, Freud modifica seu discurso para um tom mais manso, de con-
64
formidade com a força histórica do fenômeno. Assim, não mais ele
prega a imposição de um fim para a religião. Ainda que não negue os
aspectos prejudiciais da religião para a sociedade, Freud reconhece
a impossibilidade de seu fim e, por isso, em vez de decretar seu fim
como ilusão, diz que ela toma contornos de um “sentimento oceâni-
co”: “com base apenas nesse sentimento oceânico alguém poderia
considerar-se religioso, ainda que rejeitasse toda fé e toda ilusão”
(FREUD, 2011, p. 8). Justamente nesse período acentuam-se seus di-
álogos com pensadores religiosos, como o já citado Oskar Pfister e o
pacifista Romain Rolland.
65
CAPÍTULO 4
ABORDAGENS COMPREENSIVAS
DA RELIGIÃO
A redução do fenômeno religioso a outras esferas, como observa-
mos nas abordagens críticas da religião, não é a única possibilidade
filosófica de tratamento do assunto. Antes, como observamos a partir
desse ponto, a crítica reducionista é uma pequena parte de uma lon-
ga tradição de filosofia da religião. Por isso, vamos observar aborda-
gens compreensivas da religião, isto é, que não apenas colocam-na
como foco de análise filosófica, mas o tentam fazer a partir de seus
próprios termos.
Isso significa que, para eles, mesmo que a religião esteja em cons-
tante diálogo com outras esferas da vida humana, como a economia,
por exemplo, ela não é redutível a tais esferas, mas deve ser interpre-
tada a partir de certo caráter sui generis. Em outras palavras, a reli-
gião é uma unidade básica que não pode ser dividida nem explicada
por outra coisa que não ela mesma. A religião, nessa abordagem, é
olhada em seus próprios termos. A compreensão da religião não diz
somente respeito ao ato de tentar entendê-la, mas a uma atitude pre-
viamente compreensiva em relação ao objeto de estudo.
As abordagens críticas já interpretavam, de antemão, que o valor
da religião frente à sociedade era uma soma de resultado negativo,
de modo que ela deveria ser combatida de algum modo. As aborda-
gens compreensivas, por outro lado, tratam de compreendê-la ten-
do por princípio que a validade ou não de seus conteúdos internos é
indiferente ao seu estudo. Assim, as diferentes filosofias da religião
66
que são apresentadas abaixo, partem de um pressuposto diferente
do que as até então apresentadas. Aqui, religião não é algo a ser su-
perado, mas compreendido. Por isso, aqui as fronteiras entre filosofia
e teologia são abaladas, de modo que, mesmo que a revelação não
seja a base do pensar sobre religião, pensa-se a religião em sua lógica
mais interna e a partir de seus próprios conceitos.
4.1 R. OTTO
Rudolf Otto (1869-1937) foi um importante teólogo e filósofo ale-
mão. Sua principal obra não trata especificamente de uma funda-
mentação filosófica da teologia, mas da categoria geral de religião.
Para tal, Otto desenvolve um conceito com contornos específicos de-
nominado de Sagrado, conceito que dá nome à sua obra O Sagrado.
A fim de compreendermos a profundidade do conceito, entre-
tanto, não basta somente olharmos para seu título, mas, sobretudo,
para seu subtítulo: “os aspectos irracionais na noção do divino e sua
relação com o racional”. Isso porque, para Otto, a religião não pode
ser compreendida somente a partir de seus aspectos mais aproxima-
dos à razão, como as doutrinas e os dogmas. Pelo contrário, a noção
de Sagrado, base da religião, estaria perto dos aspectos irracionais
que constituem o ser humano. Não podemos, entretanto, iniciar uma
apresentação de Otto sem situá-lo historicamente: na Alemanha na
virada do séc. XIX para o XX, era ainda muito influente o pensamento
de Kant, sobretudo sua crítica epistemológica, que postulava novas
bases para o conhecimento a partir do entendimento mental humano
subjetivo. Para Kant, os objetos do conhecimento se regulam de acor-
do com a projeção que a mente humana faz sobre o objeto. Assim,
não é possível conhecer algo em si mesmo, mas somente a partir de
categorias inatas pré-estabelecidas em nossa mente.
67
Rudolf Otto (1869-1937)
68
pectos se trata de uma categoria estritamente a priori. [...] O sen-
timento do numinoso é desse tipo. Ele eclode no ‘fundo d’alma’,
de mais profunda base da psique, sem dúvida alguma nem antes
nem sem estímulo e provocação por condições e experiências
sensoriais do mundo, e sim nas mesmas e entre elas. Só que não
emana delas, mas através delas. Trata-se de estímulo e ‘desenca-
deamento’ para que a sensação do numinoso se ative, ao mesmo
tempo em que, inicialmente de forma inadvertida e imediata, se
entrelace e entreteça com o mundano-sensorial, para então em-
preender gradativa purificação, afastando de si este último e co-
locando-o como oposto a si próprio. [...] Ou seja, essas convicções
e sensações apontam para uma ‘razão pura’ no mais profundo
sentido, que pela exuberância dos seus teores também deve ser
distinguida da razão teórica pura e da razão prática pura de Kant,
sendo ainda mais elevada ou profunda. Nós a chamamos de fundo
d’alma (OTTO, 2007, p. 150-151).
Aqui, fica claro o que queremos dizer quando afirmamos que a no-
ção de Sagrado é uma categoria a priori: ela está presente na psique
de todo ser humano e pode, ou não, ser ativada em algum momen-
to por razão de experiências que geram o sentimento de numinoso.
Desse modo, todo ser humano é potencialmente religioso. Isso não
significa que todos são, mas que, para Otto, todos têm a capacidade
de o ser em algum momento, a partir das experiências da vida. Se o
autor recorre à noção de sentimento numinoso é porque, para ele, o
Sagrado não se constitui apenas de elementos racionais, mas tam-
bém irracionais.
É importante, primeiramente, identificar que ao falar de Sagrado,
Otto não está dando outro nome para Deus ou para as divindades.
Antes, ele fala de uma categoria humana, que se encontra dentro da
psique humana e não em qualquer lugar fora dela. Estando dentro do
entendimento humano, o Sagrado é conceituado por Otto, primeira-
mente, como algo irracional. Eis sua definição:
69
Por ‘racional’ na ideia do divino entendemos aquilo que nela pode
ser formulado com clareza, compreendido com conceitos familia-
res e definíveis. Afirmamos então que ao redor desse âmbito de
clareza conceitual existe uma esfera misteriosa e obscura que foge
não ao nosso sentir, mas ao nosso pensar conceitual, e que por
isso chamamos de ‘o irracional’ (OTTO, 2007, p. 97-98).
70
cria-se um sentimento de criatura nele. Isso não significa que se pos-
sa afirmar a existência de um deus criador a partir desse sentimen-
to, mas que, mesmo que seus objetos permaneçam misteriosos por
causa da irracionalidade de tal sentimento, o sentimento de criatura
é identificável objetivamente pelo relato de quem passa por tal expe-
riência. Nas palavras de Otto, em diálogo com Schleiermacher:
71
momento assim, pede Otto, não deve continuar a leitura: “pois quem
conseguir lembrar-se das suas sensações que experimentou na pu-
berdade, de prisão de ventre ou de sentimentos sociais, mas não de
sentimentos especificamente religiosos, com tal pessoa é difícil fazer
ciência da religião” (OTTO, 2007, p. 40).
Aqui há dois importantes aspectos a serem ressaltados. Primeira-
mente, Otto compara a experiência religiosa a experiências cotidia-
nas, embora não as equipare posteriormente. De fato, é completa-
mente diferente estudar cientificamente as dores de uma prisão de
ventre e, por outro lado, experimentar em seu próprio corpo como é
tê-las. Do mesmo modo, Otto evoca a experiência estética: estudar a
partitura de uma música é incomparável a escutá-la sendo executada
por uma orquestra. Por isso, ele defende que é inadequado estudar a
religião a partir da categoria de Sagrado sem ter, antes, experimenta-
do o sentimento de criatura que lhe é característico.
O segundo importante aspecto que devemos ressaltar da citação
acima é que, nas palavras de Otto, quem não experimentou a religião
não está apto à ciência da religião. Embora esteja pressuposto na
maior parte de sua tese, Otto ali afirma o objetivo último do desenvol-
vimento da noção de Sagrado: fundamentar filosoficamente o estudo
científico da religião. Ora, retomando Kant, não é possível o acesso
seguro à religião, visto que ela sempre se dá como fenômeno, e nunca
como númeno. Nesse sentido, seria preciso encontrar uma base na
mente humana a partir da qual a experiência religiosa se validasse
e, então, passasse a ser estudada tanto empírica quanto sistematica-
mente em sua objetividade concreta.
Por isso é acertado dizer que o empreendimento levado a cabo por
Otto é um esforço de filosofia da religião: na medida em que pensa
criticamente sobre o conceito de religião, o autor fundamenta ra-
cionalmente suas possibilidades e fornece bases para estudos pos-
teriores. Para tal, não somente Otto estabelece os fundamentos de
sua proposta, mas critica propostas concorrentes que, à época, eram
72
importantes caminhos para que o estudo da religião seguisse, mas,
ao contrário do interesse de Otto, eram demasiadamente redutivis-
tas. Nesse sentido, o objetivo último de Otto ao criar a categoria de
Sagrado era fundamentar filosoficamente a possibilidade de estudo
da religião. Isto é, o autor queria uma base firme, um dado objetivo
para tal. Seu dado primeiro é o Sagrado. Em suas palavras,
4.2 P. TILLICH
Paul Tillich (1886-1965) foi um dos mais importantes teólogos da
modernidade e, sem dúvida, um dos mais influentes filósofos e inte-
lectuais de sua época. Foi o primeiro intelectual a se refugiar nos Es-
tados Unidos da América durante o período de ascensão do nazismo
na década de 1930, tendo aberto as portas desse país para que diver-
sos pensadores, inclusive judeus, pudessem manter-se em regime de
liberdade diante da crescente repressão na Alemanha e na Itália, so-
bretudo. Sua influência também se comprova em seu status intelectual
na Alemanha da época: por exemplo, Tillich orientou uma das teses de
doutorado de Theodor Adorno, grande filósofo da teoria crítica.
O trabalho intelectual de Tillich desenvolveu-se em duas grandes
linhas: primeiramente, a teologia sistemática na qual, além de um
73
denso sistema, pensou temas como a fé, a história do protestantismo
e do cristianismo e a cultura; e paralelamente, o trabalho de uma fi-
losofia da religião, pensando também a cultura, o existencialismo, a
justiça, o amor, e a proposta de um socialismo cristão. Dentre essas
temáticas, as mais centrais para conhecer seu pensamento são a in-
terpretação conceitual que Tillich faz acerca da filosofia da religião
e seu conceito de preocupação última, uma criativa apropriação do
existencialismo para pensar a religião.
74
Para explicar sua tese, Tillich propõe a seguinte situação: há duas
formas de um ser humano se aproximar de Deus, a de superar uma
distância e identificar-se com Ele, e a de encontrar alguém que esteve
sempre distante. No primeiro caso, há impressão de que Deus nunca
foi alguém distante, mas um antigo conhecido; na segunda, Deus se-
ria um completo estranho. Analogamente, essas são as configurações
da relação entre Deus, ser humano e mundo possíveis na filosofia da
religião. Para Tillich, há uma tarefa objetiva da filosofia da religião:
impedir o retorno dos “poderes” míticos que impõem medo e opres-
são sobre a sociedade. Esses seriam, para o autor, uma espécie de
legitimação mítico-religiosa das injustiças e opressões que a humani-
dade sofreu ao longo da história. Por isso, diz Tillich assertivamente:
“compete à filosofia da religião, entre outras tarefas, proteger a reli-
gião e a interpretação científica da realidade contra o retorno daque-
les ‘poderes’ que as ameaçam ao mesmo tempo” (TILLICH, 2009, p.
49).
Por um lado, há o tipo ontológico de filosofia da religião, no qual o
ser humano encontra-se alienado diante de Deus. É importante per-
cebermos, nesse momento, que a alienação pressupõe uma união
anterior. Ora, não se pode estar alienado de algo que nunca lhe per-
tenceu em algum sentido. Por isso, o tipo ontológico de filosofia da
religião pressupõe que, mesmo que ser humano e Deus se encontrem
separados, houve anteriormente um momento de união plena entre
eles. Tillich afirma que o filósofo máximo desse paradigma é Agosti-
nho, sobretudo a partir da noção de que Deus seria mais íntimo do
ser humano do que o próprio ser humano. Entre filosofia e religião,
portanto, Agostinho e o tipo ontológico respondem que
75
mais será alcançado se for objeto da busca e não sua base (TILLI-
CH, 2009, p. 50).
76
conhecer a partir de sua revelação na Bíblia. Postulando, portanto,
sua autoridade, o conhecimento Dele se torna possível, mas, de modo
nenhum é imediato. A Bíblia, portanto, constituiria essa mediação en-
tre ser humano e Deus. Crer e entender, ligados por Santo Agostinho,
tornam-se totalmente diferentes nesse ponto. Explica, então, Tillich:
77
quado como também instaura mais férteis possibilidades de apro-
fundamento na temática da religião. Justamente por entender que a
relação entre o ser humano e Deus não se coloca em termos qualita-
tivamente diferentes, mas sob a forma de uma alienação a ser supe-
rada em nome de um encontro originário, Tillich constrói sua filosofia
da religião a partir de um conceito de extrema relevância para esse
campo do saber: a preocupação última. Para defender esse posicio-
namento, Tillich diz:
78
conforme o tipo ontológico agostiniano. Afirma Tillich, então, que “ a
religião é um dos aspectos do espírito humano” (TILLICH, 2009, p. 42).
Seu diálogo, neste ponto, se intensifica com outros filósofos de
seu tempo. Diz ele, religião não é uma função moral, conforme deno-
mina Kant; nem uma função cognitiva, conforme Hegel; nem dimen-
são estética, como afirmava Fichte; nem um sentimento, conforme
Schleiermacher. Em cada um desses casos, Tillich mostra como tais
perspectivas seriam reduções do verdadeiro caráter da religião. Na
definição de Tillich, a religião se manifesta como a preocupação últi-
ma do ser humano, aquilo que ele tem como mais importante, como
último em sua vida. Nesse sentido, ele é universal, ontológico e irre-
primível. Por isso, ele diz que o próprio espírito humano é religioso.
Em suas palavras:
79
4.3 M. ELIADE
Mircea Eliade (1907-1986) nasceu em Bucareste na Romênia e foi
um profícuo pensador que perpassou por diferentes áreas, como filo-
sofia, ciência da religião, história e literatura. Diferentemente de Otto
e de Tillich, Eliade não desenvolveu longa carreira no âmbito da filo-
sofia, ainda que fizesse ocasionais incursões nesse campo. Todavia,
suas contribuições tanto teóricas quanto específicas para o estudo da
religião merecem destaque.
Com Eliade, um paradigma filosófico de estudo da religião atinge
seu auge, tanto de popularidade quanto de densidade de produção: a
fenomenologia da religião. Embora não tenha sido um precursor des-
se tipo de estudo, Eliade se fundamenta nele para suas análises empí-
ricas e sistemáticas sobre a religião. Apesar de seus grandes avanços
representados pelos insights que teve sobre o tema, Eliade é figura
controversa na ciência da religião contemporânea. Isso se deve, so-
bretudo, a duas questões, uma de caráter biográfico, e uma de cará-
ter teórico. Primeiramente, questiona-se se seu envolvimento com o
fascismo durante sua juventude na Romênia não teria influenciado
parte de sua pesquisa sobre as religiões do mundo, influenciando ne-
gativamente os pressupostos dos quais parte para fazer sua história
das religiões. Em segundo lugar, questiona-se sobre em que medida a
tarefa fenomenológica não é violenta já que, em busca de estruturas
comuns a toda religião, acaba não apenas descrevendo como a reli-
gião é, mas prescrevendo como ela deveria ser.
80
Antes de aprofundarmos no pensamento específico do autor, é
necessário fazer uma diferenciação: a fenomenologia da religião, da
qual Eliade é um dos representantes, não é um movimento filiado à
fenomenologia de Husserl (que mais tarde será de Heidegger e Merle-
au-Ponty, entre outros). Antes, esses movimentos que nascem quase
simultaneamente, mas com uma grande separação teórica.
A fenomenologia da religião liga-se ao conceito de fenômeno em
Kant que, impossibilitando o acesso às coisas mesmas, volta-se para
o modo como elas se manifestam para a consciência humana. Para
tal, a fenomenologia da religião busca uma estrutura fixa e estática
para chamar de religião por meio da análise comparada da imensa
diversidade de fenômenos. Assim, por exemplo, comparando o maior
número possível de tradições religiosas, poder-se-ia chegar às estru-
turas mínimas que compõem a religião: a crença na sobrenaturali-
dade de certos acontecimentos, a interpretação particular de certos
fenômenos naturais etc. Esse é o âmbito fundamental a partir do qual
Eliade instaura suas pesquisas empíricas, por um lado, e acerca do
qual busca refletir teoricamente, por outro.
O pensamento de Eliade, portanto, se instaura através da análise
mitológica comparada de diferentes religiões. Para tal, duas frentes
são necessárias: primeiramente a análise, de caráter mais empírico,
de tais mitos, pontuando sua narração e função dentro de sua pró-
pria religião, isto é, da tradição a que pertence; e, em segundo lugar,
comparando tais mitos analisados com vistas a encontrar as estrutu-
ras básicas da religião para além de seus fenômenos. A primeira se
demonstra, por exemplo, nos três grandes volumes de História das
crenças e das ideias religiosas, estudo de grande densidade sobre as
diversas religiões e mitos da idade da pedra às reformas protestan-
tes. Nesses, diversos esquemas mitológicos e rituais são apontados e
analisados dentro de seu contexto religioso, verificando a coesão que
fornecem a tais tradições. A segunda frente, mais sistemática, utiliza
em todo tempo os dados obtidos e analisados na primeira frente, mas
81
o faz com caráter mais teórico e menos informativo. Nela, Eliade com-
para as tradições e tenta delinear os traços comuns a elas, com vistas
a formular os dados básicos que as religiões deixam transparecer da
religião em geral.
Essa espécie de sistematização da religião encontra certa resso-
nância no pensamento estruturalista, conforme formulado por C. Lé-
vi-Strauss e F. de Saussure. A investigação de Eliade não se estabelece
de modo simplesmente prático, mas é fundamentada também epis-
temologicamente por ele. Uma interessante analogia que o autor traz
na primeira página de seu Tratado de história das religiões evidencia
alguns pressupostos de sua empreitada intelectual:
82
sa social, linguística e econômica - pois não podemos conceber o
homem para além da linguagem e da vida coletiva. Mas seria vão
querer explicar a religião por uma dessas funções fundamentais
que definem o homem, em última análise (ELIADE, 2010, p. 1).
83
a morfologia do sagrado através das hierofanias históricas. Redigida
como esforço de divulgação científica, essa obra trata de quatro as-
pectos básicos da religião através de como ela se relaciona com algu-
mas questões: o espaço, o tempo, a natureza e a existência humana.
A cada uma dessas questões, Eliade traça um correspondente que
surge na justaposição entre elas e a religião, respectivamente: a sa-
cralização do mundo, os mitos, a religião cósmica e a vida santificada.
A intenção do autor nesse livro, ressalta ele ao leitor, é diferente das
conclusões de Otto: “propomo-nos apresentar o fenômeno do sagra-
do em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta
de irracional. Não é a relação entre os elementos não-racional e racio-
nal da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalida-
de” (ELIADE, 2018, p. 17).
O objetivo de Eliade, diferentemente, é apresentar as característi-
cas mais essenciais das religiões através de uma análise das manifes-
tações do sagrado. Por exemplo, pensando na importância dos mitos
para a coesão social e religiosa ao longo da história, Eliade volta-se
à questão de tempo e ao modo como o ser humano religioso experi-
menta o tempo. Aqui, suas considerações são exemplares para enten-
dermos o modo como as relações entre religião e sociedade:
84
tempo do lazer e dos espetáculos, numa palavra o ‘tempo festivo’.
Também ele vive em ritmos temporais variados e conhece tempos
diferentemente intensos: quando escuta sua música preferida ou,
apaixonado, espera ou encontra a pessoa amada, ele experimen-
ta, evidentemente, um ritmo temporal diferente de quando tra-
balha ou se entedia. Mas, em relação ao homem religioso, existe
uma diferença essencial: este último conhece intervalos que são
‘sagrados’, que não participam da duração temporal que os prece-
de e os sucede, que têm uma estrutura totalmente diferente e uma
outra ‘origem’, pois se trata de um tempo primordial, santificado
pelos deuses e suscetível de tornar-se presente pela festa. Para um
homem não-religioso essa qualidade trans-humana do tempo li-
túrgico é inacessível (ELIADE, 2018, p. 65).
4.4 R. ALVES
Rubem Alves (1933-2014), teólogo, filósofo, escritor e educador
brasileiro, também teve uma relevante contribuição para a filosofia
da religião - sobretudo no Brasil. Sua trajetória enquanto autor é im-
portante para pontuarmos suas contribuições à filosofia da religião
em nosso país. Alves foi pastor presbiteriano e, impactado pelo pen-
samento de seu professor Richard Shaull, fez mestrado e doutorado
em teologia nos Estados Unidos. A segunda parte de sua vida acadê-
mica nesse país foi necessária graças às investigações sobre ele reali-
zadas pelo regime militar, iniciado em 1964, que colocavam sua vida
em perigo. Ao retornar ao Brasil, Alves envereda pela discussão aca-
dêmica da religião, ajudando a fundar o Instituto de Estudos da Reli-
gião (ISER). Aos poucos o autor se aproxima da área da educação e se
torna professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
onde foi colega de Paulo Freire e onde lecionou até o fim de sua car-
reira acadêmica.
A partir do final da década de 90, Alves modifica seu modo de
85
escrita e, deixando o gênero científico, começa a produzir crônicas
sobre o cotidiano e a vida. Embora o rigor de seus textos tenha sido
modificado, a profundidade de sua abordagem permanece a mesma.
O caminho de Alves pode ser interpretado como um longo caminho
de libertação da escrita científica com vistas à beleza da literatura.
Embora suas considerações permaneçam válidas, os textos mais re-
levantes para a filosofia da religião são os de sua chegada ao Brasil
após o doutorado, nos quais pensa a religião em chave filosófica e
sociológica.
86
1975. p. 25). Dessa forma, Alves defende que para além das críticas
dos mestres da suspeita, o fenômeno religioso tem seu valor diante
da sociedade, pois, se ele é sonho, não é somente ópio - ele é o que
permite aos homens e mulheres imaginar outro mundo possível. Diz
o autor que “a intenção da religião não é explicar o mundo. Ela nasce,
justamente, do protesto contra esse mundo que pode ser descrito e
explicado pela ciência” (ALVES, 1975. p. 25).
O segundo grande ensaio visa dar respostas à teologia da morte de
Deus, tratando, especificamente, dos outros dois filósofos reconheci-
dos como mestres da suspeita: Nietzsche e Feuerbach. Desses, Rubem
Alves não foge ao embate: critica-os acusando o reducionismo que
os toma. Para o autor, o fenômeno religioso não pode ser reduzido à
mera psicologia, isto é, como se ele somente fosse uma ilusão psico-
lógica ou uma doença antropológica. Tal redução é danosa à medida
que desconsidera a priori toda e qualquer experiência religiosa.
Unem-se aqui as críticas a estas quatro leituras sobre a religião:
é comum a todas estas críticas o reducionismo do fenômeno a uma
simples ilusão antropológica, isto é, uma espécie de reprodução do
próprio eu do homem que tenta suprir as faltas ou problemas últimos
de cada um. Tal reducionismo, para Alves, é extremamente prejudi-
cial aos estudos religiosos, pois não considera a possibilidade de re-
lação verdadeira entre o homem e alguma divindade, afirmando em
última instância o ateísmo e a ilusão como chave hermenêutica de
toda experiência religiosa. Defende o autor que “Deus morreu. Mas
ele nasceu também. Nasceu como parte da história do homem, como
símbolo que as culturas criaram para fazer sentido do seu mundo.
Sua morte, portanto, é um evento, não da história dos deuses, mas
da história do próprio homem” (ALVES, 1975. p. 38).
Por fim, em seu último grande ensaio, Rubem Alves se esforça por
entender os elementos e símbolos da conversão de um indivíduo ao
protestantismo. Esse é o maior ensaio do livro. Numa análise que
beira a sociologia da religião, passo a passo, o autor constrói uma
87
interpretação do universo simbólico adquirido no momento da con-
versão, revelando como há uma busca por novos sentidos de vida,
uma nova organização de pensamento, visão de mundo etc. Nesse
universo simbólico encontram-se, por exemplo, os mitos da religião
que, em suas palavras, são vividos “de trás para frente” (ALVES, 1975.
p. 72). É importante também para Alves a relação entre objetividade e
subjetividade neste processo de conversão. Em última instância, para
Alves um mundo de sentido desmorona para que outro mundo possa
começar a ser construído: o mundo dos dogmas e conceitos religio-
sos.
Os outros quatro ensaios menores tratam, respectivamente, da ex-
periência mística de cristãos contemporâneos, de uma representação
autobiográfica, e de duas críticas à tecnologia e sua linguagem. Anali-
sando o dogmático-fundamentalismo, Rubem Alves diz que ele pode
ser tomado como:
88
teses que validam e legitimam a existência do fenômeno religioso e
de sua linguagem.
Ora, se a religião é o ópio do povo, ela também é suspiro dos opri-
midos. Se ela é ilusão da mente humana, ela, justamente, possibilita
que o humano proteste contra a realidade e sonhe com a possibilida-
de de um mundo diferente. A posição de Alves nessa obra é própria de
um filósofo da religião que, para além dos preconceitos apriorísticos,
considera a importância da observação dos fenômenos para consti-
tuir teses e ideias mais justas sobre essa questão fundamental para
os seres humanos, a vida destes em comunidade, a organização das
sociedades, manutenção ou subversão delas: a religião.
Protestantismo e repressão (1979), outra obra seminal, é um dos
mais importantes trabalhos sobre o fenômeno fundamentalista den-
tro das igrejas históricas no Brasil. Tendo sido publicado primeira-
mente pela editora Ática, teve sua republicação pela Loyola no ano
de 2005 sob o título Religião e repressão. Esta mudança se deu pelo
fato de que, apesar da obra apontar para um público específico, sua
crítica pode ser levada em conta em diversos contextos e religiosida-
des. Nesta obra, Alves, sob perceptível influência de Max Weber, forja
um tipo ideal e o analisa sob vários aspectos. Este tipo ideal é por ele
denominado “protestantismo de reta doutrina” (ALVES, 2005. p. 33-
46), o PRD. Mais do que analisá-lo, há em Protestantismo e repressão
uma dissertação sobre a postura dogmático-fundamentalista, sua es-
sência e suas consequências.
O texto, então, é construído em alguns grandes blocos. Após a in-
trodução onde se delimita o tipo ideal a ser analisado, o PRD (Protes-
tantismo de Reta Doutrina), Alves começa analisando as construções
que tornam o protestantismo o que ele de fato é. Para tal, o primeiro
capítulo versa sobre o fenômeno protestante em seu modo de pen-
samento: ele é moderno ou medieval? Sobretudo por meio da socio-
logia, Alves constrói um pensamento crítico que aponta para a farsa
do protestantismo de sua análise: a vanguarda de liberdade que este
89
representava não é mais real. No segundo capítulo Alves descreve o
processo de conversão ao protestantismo. Neste há uma espécie de
aquisição de um mundo simbólico novo que reorganiza a vida do con-
vertido.
Alves analisa, então, como o protestantismo constrói e reconhece
a realidade. O autor reforça o modo como esta religiosidade não só
prioriza a racionalidade, como despreza as emoções. Assim, são inte-
riorizados os fundamentos e verdades da fé: os dogmas. Para Alves,
“o protestantismo não faz distinção entre uma linguagem de símbo-
los e uma linguagem de signos [...] ele reduz os símbolos a signos [...].
[Assim] a linguagem da revelação e a linguagem da ciência têm uma
mesma função: dizer como as coisas são” (ALVES, 2005, p. 144s.).
O capítulo subsequente, intitulado “o mundo que os protestantes
habitam”, diz respeito a como a linguagem é utilizada e constrói a for-
ma de pensar de tal tradição religiosa. O traço característico apontado
pelo autor é o dualismo e a contraposição no pensamento. A leitura
que Alves realiza aqui já não é tão sociológica, mas muito mais ache-
gada a uma perspectiva psicológica: “o critério para a participação
na comunidade é a confissão da reta doutrina, como definida pela
confissão de fé. E como a doutrina é definida de forma rigorosa, qual-
quer desvio intelectual tem de provocar uma ruptura” (ALVES, 2005.
p. 151). Neste sentido, o autor faz uma breve análise sobre a oração
e a doutrina da providência de Deus: “O crente ora se, e somente se,
ele crê que de alguma forma misteriosa, os seus desejos são capazes
de comover uma vontade suprema, que permaneceria impassível se
a voz da oração não fosse articulada” (ALVES, 2005. p. 164).
Em “A ética protestante e a ética social”, o autor mostra como o
individualismo presente no protestantismo disciplina os homens e
mulheres que assumem esta religiosidade, traindo, mais uma vez, o
que se poderia chamar de espírito da reforma. Alves indica, então,
os cinco pecados que são tratados como assunto público na igreja e
merecem ser punidos, na ótica protestante, a todo custo: questões
90
sexuais, desrespeito ao dia sagrado, vícios, roubo e heresias. Assim,
Alves demonstra como o protestantismo vê o mundo a partir do indi-
vidualismo: os problemas sociais, para eles, são problemas morais e
seriam resolvidos pela conversão de todos os indivíduos da socieda-
de. Assim a sociedade teria ordem, por meio da moralidade protes-
tante, e progresso econômico, sinal da bênção de Deus, para eles.
Os dois últimos capítulos dessa obra tratam mais diretamente do
fenômeno fundamentalista que ronda o protestantismo. Tratando
dos inimigos que o protestantismo de reta doutrina adota para si, Al-
ves enumera-os: primeiramente a Igreja Católica, depois o modernis-
mo e o liberalismo teológico, em terceiro lugar o mundanismo, isto
é, a permissão para o prazer natural, e em último lugar o evangelho
social, uma hermenêutica teológica que prioriza o serviço às comuni-
dades ao conversionismo. Aqui, Alves diz que “enquanto os inimigos
estão fora, eles contribuem para a unidade do grupo social. Que ocor-
re quando os próprios membros do grupo começam a falar a lingua-
gem do inimigo? Instaura-se o pânico” (ALVES, 2005. p. 268).
Na última parte do livro, Rubem Alves trata da verdade e do dog-
matismo. O autor defende que o Protestantismo de Reta Doutrina é
obsessivo com a questão da verdade e é justamente essa obsessão
o centro maléfico dessa tradição. Dessa forma, argumenta Alves, os
dogmas estabelecidos não podem ser mudados, pois aqueles que
estão no poder não permitem que isto seja feito. Como complemen-
tação à obra, Alves diz que as questões da ortodoxia e da heresia são
questões sobre quem é o dono do poder: “Não se assustem com a
palavra heresia. Heresia não é algo que se situa no plano da verdade,
como oposição a ela. A heresia se situa no plano do poder” (ALVES,
2004. p. 56). Para ele, então, a luta pela verdade vai além de si mesma:
ela representa uma luta pelo poder, por saber quem tem a verdade
ao seu lado e mais, em suas mãos. Sintetiza, então dizendo que “A
verdade tem de ser intolerante. [...] O amor à verdade, afirmada como
posse, é o lado risonho do seu oposto: a intolerância para com aque-
91
les que sustentam um pensamento divergente” (ALVES, 2005. p. 321)
e “Os que já possuem a verdade estão predestinados a se transforma-
rem em inquisidores. Os que só possuem dúvidas já estão predestina-
dos à intolerância e, talvez, à fogueira” (ALVES, 2005. p. 284).
Desta forma, Alves conclui seu livro: demonstrando como esse tipo
ideal, PRD, trai os princípios protestantes em nome de uma verdade,
como ela exclui homens e mulheres que não rezam os seus dogmas, e
como há um jogo de poder que sustenta todo este edifício de funda-
mentalismo e dogmatismo. Assim, para além de discutir as doutrinas
usando sua lógica interna, função que caberia a um teólogo, Rubem
Alves se preocupa em descrever sociologicamente um grupo e ques-
tioná-lo filosoficamente.
Isto fica claro à medida que ele procura não só mostrar a lógica
que rege este fundamentalismo, mas perceber estruturalmente o po-
der e a busca por poder que orquestra este fenômeno. Para além de
tentar revelar as verdades que conduzem o PRD, Alves tenta enten-
der seu universo simbólico, seus signos e significados, revelando-se,
assim, ocupado não só com o descrever, mas com a reflexão crítica
sobre seu objeto.
Na medida em que Alves se preocupa com a linguagem religiosa
interpretando seus símbolos, para além de sua função social ou an-
tropológica, o autor faz construções próprias de uma filosofia da re-
ligião. Em ambos os livros analisados acima, Rubem Alves não parte
somente de uma crítica teológica, mas de um pensamento propria-
mente filosófico para interpretar e refletir sobre o fenômeno religioso.
Todavia, ele não o faz a partir de posicionamentos abstratos, antes,
parte da concretude histórica: o caso do PRD, a postura dogmático-
fundamentalista etc. Ele percebe a religião, de certa forma, como um
dado, assim, não se preocupa em criar os fundamentos para seu obje-
to de estudo, antes o percebe já estabelecido no mundo e interagindo
com ele.
92
CAPÍTULO 5
A RELIGIÃO SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO
Diferentemente da modernidade, a partir da qual pudemos deli-
near duas diferentes abordagens filosóficas da religião, na contem-
poraneidade encontramos uma pluralidade de aproximações, desde
propostas de interpretação do mundo por meio de uma noção religio-
sa, como a de sacrifício, até a responsabilidade ética que a santidade
do rosto do outro nos impõe. Se as abordagens até então apontadas
se caracterizavam por certa ligação a alguma outra área acadêmica,
como a sociologia, a psicologia, a teologia, a ciência da religião etc.,
agora as abordagens sujeitam-se mais adequadamente à filosofia.
Isso, para além de uma questão institucional, revela um importante
caráter do olhar contemporâneo: a pluralidade de pensamento não é
somente fato a ser reconhecido, mas um valor a ser compartilhado.
Em outras palavras, no contemporâneo não basta apenas aceitar
que há a possibilidade diversas vozes filosóficas dissonantes, mas se
deve acolher essa dissonância em sua mais íntima multiplicidade.
Por isso, ainda que nossa jornada se inicie nas raízes da contempora-
neidade, com Kierkegaard, ela perpassa autores de diferentes lugares
do mundo, filiados a diferentes correntes filosóficas, e que se conec-
tam sob o signo da pluralidade de pensamento filosófico.
5.1 S. KIERKEGAARD
Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) é, ainda hoje, o mais impor-
tante filósofo e teólogo dinamarquês. A profundidade de seu pensa-
mento fez com que ele servisse de inspiração para outros grandes
nomes da tradição filosófica, como Heidegger, Sartre, Adorno, Derri-
93
da etc. Geograficamente fora da rota da história da filosofia, que pri-
vilegia alemães, franceses e ingleses, Kierkegaard destacou-se pela
singularidade de seu pensamento.
Neste ponto, o termo ‘singular’ assume duas conotações diferen-
tes. Primeiramente, o pensamento do autor é singular porque faz
diversas considerações novas, ainda que dialogando criticamente
com a tradição e com os grandes filósofos de seu tempo. Em segundo
lugar, o pensamento de Kierkegaard é singular porque se opõe aos
grandes sistemas filosóficos, dos quais a referência é Hegel, em favor
do pensamento sobre a existência do indivíduo singular e subjetivo.
Nesse sentido, enquanto o filósofo alemão buscava a criação de um
sistema objetivo que englobasse a história através de uma dialética
rumo ao Absoluto, Kierkegaard opôs-se a ele pensando a individuali-
dade de cada sujeito histórico singular.
94
grande estrutura da Igreja Romana. Assim, o protestantismo cresceu
na Dinamarca como um aliado da nobreza, que via em seu crescimen-
to uma oportunidade de fazer maior a sua influência na corte real.
Mesmo sem sê-lo na lei, o protestantismo dinamarquês se tornou
uma religião oficial na prática. Quando Kierkegaard desenvolve seu
pensamento, ele se manifesta contra essa situação específica do pro-
testantismo na Dinamarca pois, em suas palavras, em uma configura-
ção social onde todos são “cristãos desde o berço”, isto é, onde não
há reflexão sobre ser ou não cristão, ninguém verdadeiramente o é.
Por isso, sua preocupação com o tema da religião não é meramen-
te filosófica, mas também teológica. Todavia, suas reflexões, embora
articulem elementos específicos dentro da tradição cristã, não são
somente teológicas. Na medida em que Kierkegaard articula tais con-
ceitos, como fé, revelação, paixão etc., ele não o faz sob o ponto de
vista da revelação como fonte inspiradora - mas da potência da razão.
A tradição teológica do tempo de Kierkegaard era influenciada tam-
bém por Hegel, de modo que sua leitura da Bíblia era sistemática e
não considerava os indivíduos singulares. Por isso, Kierkegaard con-
fidenciou em seus diários a necessidade de uma outra reforma: “uma
reforma que colocasse a Bíblia de lado hoje teria tanto valor quanto
a de Lutero, que colocou o papa de lado. Toda essa atenção à Bíblia
desenvolveu a religiosidade dos eruditos e dos juristas, simples diver-
timento” (KIERKEGAARD, Diários IX A 442, 1848).
Embora critique frontalmente o sistema hegeliano, Kierkegaard
não faz sua filosofia baseada em fragmentos, mas a partir de uma for-
te lógica interna. Essa lógica só pode ser percebida em uma leitura
sinótica de seu projeto, uma vez que ele publicou textos de diversos
gêneros (como sermões, livros filosóficos, filosofia literária, teologia
etc.), assinados sob diversos nomes pseudônimos. Isso torna ainda
mais complexa a proposta de Kierkegaard mas, ao mesmo tempo,
demonstra sua coerência: enquanto Hegel assume para si o nome
de um grande pensador universal, que postulava as bases no qual a
95
história mundial se movia e apontava seu inevitável futuro, Kierke-
gaard utilizava a diversidade como ponto de apoio para fazer chegar
ao público suas críticas à Igreja e à sociedade dinamarquesa. Para o
autor, tão importante quanto a mensagem que sua filosofia pretendia
enviar aos seus contemporâneos, era o modo como se envia tal men-
sagem. Isso abre as portas para entender o cerne de seu pensamento,
uma vez que, para ele, as verdades existenciais são as que realmente
importam. Elas não podem ser objetivamente compartilhadas, pois
dizem respeito sempre ao indivíduo e somente a si mesmo. Por isso,
como um segredo, não se pode concluir por ninguém verdade exis-
tencial alguma: somente o indivíduo pode chegar a ela. O dever do
filósofo é fornecer as possibilidades para que cada indivíduo consiga
fazê-lo. Assim, diz Kierkegaard:
96
A angústia não tem conteúdo, uma vez que ela se dá diante do nada,
isto é, do vazio que representa o futuro que será construído a partir de
nossas escolhas em liberdade. Diante disso, é preciso tomar decisões
que, para superar a angústia, devem ser feitas a partir de verdades
existenciais. Isso determina o modo como se vive a vida ou, antes, o
princípio a partir do qual cada indivíduo o faz.
Para Kierkegaard, há três diferentes modos a partir dos quais o
indivíduo pode existir. A esses, ele dá o nome de estádios: estético,
ético ou religioso. A cada um deles, corresponde um bom exemplo
literário que auxilia na compreensão. Ao tratar de um estádio estéti-
co, Kierkegaard diz respeito a um modo de vida no qual o indivíduo
se relaciona inadequadamente com a própria angústia e se relaciona
em chave de contradição com o mundo, negando-o. Assim como Don
Juan, personagem literário sedutor que busca satisfazer seus desejos
eróticos a todo tempo, quem vive a partir do estádio estético busca
experimentar o prazer a todo momento. Como esse é breve, o esteta
se encontra em uma insaciável busca pelo prazer duradouro que não
existe. Dessa forma, a vida estética fracassa ao responder à angústia
humana, porque ela não permite ao indivíduo tomar uma decisão pe-
rante sua própria existência.
O segundo estádio, o ético, não pode ser aproximado pelo mesmo
personagem. Antes, sua melhor demonstração se dá em uma análise
filosófica da situação de Abraão diante do pedido divino de sacrifício
de seu único filho. Ora, sacrificar ou, em outros termos, assassinar
seu próprio filho é uma atitude abominável sob o ponto de vista da
ética, de modo que, se Abraão fosse um indivíduo ético, ele jamais o
faria. O ético, para Kierkegaard, consiste justamente nisso: renunciar
a si mesmo, aos seus prazeres, à própria felicidade em favor de um
universal abstrato sob o qual se coloca. Nesse sentido, há antes um
princípio pré-estabelecido o qual o indivíduo ético adere. Ao fazê-lo,
ele escolhe uma base para as decisões de sua existência, uma refe-
rência lógica externa. Tal decisão é um modo de lidar com a angústia
97
que, uma vez que outras possibilidades não estarão mais presentes,
se esvai a partir dessa decisão. Todavia, o problema desse estádio,
diz Kierkegaard, é que nenhuma verdade existencial pode se basear
em um ponto de vista objetivo, isto é, em um princípio externo ao ser
humano. Nele, Abraão não se tornaria o pai da fé, pois não estaria dis-
posto a sacrificar seu único filho, a abrir mão de seu milagre.
O terceiro estádio, o religioso, é o modo de vida ideal no qual o
indivíduo se relaciona consigo mesmo e com o próprio desespero. A
distinção entre ético e religioso, aqui, é já um grande ganho para a
filosofia da religião. Ora, na medida em que afirma que o ético é uma
coisa e o religioso outra, Kierkegaard já desafia toda a filosofia da reli-
gião de caráter kantiano, para quem a religião interna ao ser humano
era a fonte da moralidade. Aqui, o filósofo dinamarquês quebra com
esse paradigma afirmando que o religioso é uma superação do ético,
porque não se prende existencialmente a normas exteriores, mas a si
mesmo. Ainda que o religioso também respeite tais normas, ele não
se prende ultimamente a elas, mas baseia sua existência em uma re-
lação com o Absoluto por meio da fé. Por isso Abraão tornou-se o pai
da fé: porque diante do eticamente condenável, ele opta pela decisão
religiosa de obediência a sua relação com o Absoluto. Aqui reside a
diferença entre sacrifício e assassinato: o primeiro assume sentido
religioso para o indivíduo, o segundo ético. Quando Deus impede o
sacrifício que Abraão estava disposto a realizar, diz Kierkegaard, ele se
torna o pai da fé, pois estava disposto a abrir mão de tudo, a colocar a
própria existência em jogo em obediência. Somente por meio desta fé o
indivíduo pode colocar-se em relação absoluta com o Absoluto. Somen-
te colocando a própria vida em risco, o indivíduo pode ganhar a vida.
Por isso, o fim último da filosofia de Kierkegaard é o tornar-se a
si mesmo e, mais especificamente, tornar-se cristão. Ora, essa é a
chamada do filósofo para os seus contemporâneos dinamarqueses:
não apenas ser cristão por causa de certa oficialidade da Igreja, mas
tornar-se aquilo que é, adotar um modo de vida para além do ético e
98
do estético. Isso não pode se dar sob o ponto de vista ético, isto é, pe-
rante um convencimento racional da logicidade da proposta kierke-
gaardiana. Não pode haver um enorme acúmulo de conhecimento
histórico que permita a passagem de um estádio a outro. Antes, diz
Kierkegaard, há uma diferença qualitativa que nenhuma quantidade
exacerbada de objetividade permite transpor. O salto é de fé. Por isso,
a decisão existencial deve ser totalmente interior, subjetiva, a partir
da singularidade do indivíduo e somente por ele mesmo. Ninguém
pode escolher pelo indivíduo tornar-se a si mesmo, somente ele dian-
te de sua própria existência e angústia. Portanto, tornar-se cristão é
um salto existencial de fé, rumo à relação absoluta com o Absoluto
por meio de um paradoxo desconhecido:
5.2 M. HEIDEGGER
Martin Heidegger (1889-1976) foi seguramente um dos maiores fi-
lósofos do séc. XX. Sua vasta produção filosófica se concentrou em re-
99
pensar a questão do ser a partir de uma grande releitura da tradição.
Para ele, o ser não foi pensado nos termos corretos até então: antes,
houve uma confusão entre ser e ente, na qual a diferença entre eles
foi reduzida à mera semelhança. Seu projeto passou por diferentes
caminhos para pensar essa questão. Primeiramente pensando o ser
a partir do único ente que pergunta pelo seu ser, o ser humano. Este
foi pensado como Dasein, o ser-aí, isto é, aquele que está no mun-
do e, diante desse fato, deve lidar com a própria existência e com o
seu futuro aberto. Nesse sentido, ele é livre para projetar sobre a pró-
pria vida. Posteriormente, Heidegger escolhe o caminho da lingua-
gem como aproximação privilegiada para pensar a questão do ser de
modo adequado. Sem desconsiderar o Dasein como o único ente que
pergunta pelo próprio ser, a linguagem é condição de possibilidade
para a experiência humana de mundo, de modo que não é possível
estar em relação com os outros e com as coisas fora da linguagem.
Aqui ela não é somente meio de comunicação, mas mediadora da
possibilidade de experiência.
100
na ontologia, portanto, é ainda anterior à questão da ética, uma vez
que trata da filosofia em geral que, a seu tempo, dará espaço para o
pensamento da ética. Para compreendermos o traço onto-teo-lógico
da metafísica precisamos perguntar a Heidegger como o Deus e a te-
ologia entram na metafísica. Para tal, primeiramente o autor define a
metafísica como “o fundar que presta contas do fundamento” (HEI-
DEGGER, 2006b, p. 65). Isso significa que o caráter de ‘logia’ é intrínse-
co a essa filosofia, uma vez que ela compreende seu objeto a partir de
seu fundamento, isto é, respectivamente, o ente e o ser do ente. Mas
essa afirmação não indica ainda a totalidade da metafísica, uma vez
que “a metafísica pensa o ser do ente, tanto na unidade exploradora
do mais geral, quer dizer, do que em toda parte é indiferente, como
na unidade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de
tudo” (HEIDEGGER, 2006b, p. 65). O ente supremo que, na metafísica,
é entendido como fundamento, é Deus enquanto causa sui. Na medi-
da em que a metafísica não diferencia ser e ente em sua busca pelo
ser do ente, ela fundamenta o ser em geral num ente que, apesar de
supremo, continua ente. Essa é uma das aproximações de Heidegger
à religião, mais ligada à sua crítica à tradição metafísica: essa tradição
sustenta o ser em um ente supremo, Deus. Esse Deus, entretanto, não
é o Deus cristão, mas um conceito filosófico cujo sentido é apenas
lógico. Em sua crítica direta:
101
causa sui. Assim soa o nome adequado para o Deus na filosofia.
A este Deus não pode o homem nem rezar nem sacrificar. Diante
da causa sui, não pode o homem nem cair de joelhos por temos,
nem pode, diante deste Deus, tocar música e dançar (HEIDEGGER,
2006, p. 74-75).
102
para a vida cristã diz respeito à realização. [... Paulo] desiste dos
meios e das significâncias mundanas e, desse modo, lutando, ele
abre caminho. Renunciando à forma mundana de defesa se forta-
lece a necessidade da vida. É praticamente desesperançoso entrar
em tal complexo realizador. O cristão possui a consciência de que
essa facticidade não pode ser alcançada por suas próprias forças,
mas que procede de Deus - fenômeno da ação da graça (HEIDEG-
GER, 2014, p. 108-109).
103
gunda se condensa em sua Contribuição à Filosofia, obra de grande
fôlego e, ao mesmo tempo, densa obscuridade redacional. Aproxi-
mando-se de certa tradição mística, o autor redige uma obra em pa-
rágrafos nem sempre conectados e sustenta teses aforisticamente. O
último capítulo dessa obra é intitulado “o último deus”. Aqui, a refe-
rência não é de um Deus cristão, mas dos deuses ainda a serem cria-
dos pelas possibilidades de futuro. Mais uma vez Heidegger recorre a
termos religiosos como fonte de sua filosofia. Tanto nessa, quanto em
outras obras, Heidegger recorre à ideia de deuses que nos anunciam
as possibilidades de um novo futuro. Diz ele: “do domínio sagrado
desses manifesta-se o Deus em sua atualidade ou se retrai em sua
dissimulação” (HEIDEGGER, 2007, p. 129). Em meio aos deuses, es-
ses mensageiros, encontra-se o Deus. Não apenas para nós, mas para
o próprio autor, a figura do Deus possui caráter especial dentro da
quadratura, de modo que “o divino é ‘a medida’ com a qual o homem
confere medida ao seu habitar, à sua morada e demora sobre a ter-
ra, sob o céu” (HEIDEGGER, 2007, p. 172). Por mais que não se possa
afirmar essa correlação com o cristianismo diretamente, apesar de
biograficamente, a evocação do Deus último tem um significado re-
ligioso que está diretamente relacionado com seu pensamento de
uma ética originária. Nas palavras de Heidegger, “o último deus não
é o fim, mas o outro início de possibilidades imensuráveis de nossa
história. Em virtude dele, a história até aqui não deve se fundar, mas
precisa ser trazida ao seu fim” (HEIDEGGER, 2015, p. 398). Isso indica
que o último deus tem, irrevogavelmente, um caráter de abertura ao
futuro que vem e que manifesta um presente inacabado, isto é, o fim
da ultimidade do presencialismo metafísico. O ultimato que o último
deus dá à ontoteologia abre a possibilidade para experiências do sa-
grado não metafísicas dentro e fora do âmbito do cristianismo. Nesse
sentido, o homem que se demora junto a ele conquista a possibilida-
de de habitar poeticamente a terra em um novo sentido ético. Assim,
as possibilidades tanto éticas quanto existenciais para o ser humano
104
encontram correspondência na proveniência mística de um deus últi-
mo que contraria o caráter ontoteológico da metafísica.
5.3 E. LEVINAS
Emmanuel Levinas (1906-1995) foi um dos grandes filósofos da
linhagem da fenomenologia contemporânea. Herdeiro de Husserl
e Heidegger, o objetivo do autor foi pensar a ética e a justiça como
pontos primordiais para a filosofia. Embora a concretude da busca
fenomenológica esteja implícita em suas obras, o caráter abstrato de
sua filosofia em favor de uma não redução do Outro ao mesmo carac-
teriza seu pensamento.
Em linhas gerais, o objetivo da filosofia de Levinas se demonstra
desde sua primeira grande obra, Totalidade e Infinito. Primeiramente,
há um problema a ser resolvido: “a filosofia ocidental foi, na maioria
das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, pela in-
tervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do
ser” (LEVINAS, 1980, p. 30). Em outras palavras, a ética da tradição fez
do Outro uma reprodução do Mesmo, de modo que a alteridade que
deveria marcar a ética é totalmente destruída. Sua proposta, portan-
to, é formular uma filosofia na qual o Outro seja reconhecido como tal
e, a partir disso, a ética chegue à justiça. A virada que o pensamento
de Levinas propõe para a filosofia é de que “A moralidade não é um
ramo da filosofia, mas a filosofia primeira” (LEVINAS, 1980, p. 284). O
pensamento da ética toma, aqui, o lugar de primazia do pensamento
filosófico, de modo que ela não deve ser somente mera consequên-
cia da metafísica e da epistemologia, mas um pensamento próprio e,
nesse sentido de primeiro, originário. Nesse ponto também está pre-
sente a religião, sobretudo na fundamentação da sacralidade do ros-
to do Outro, o aspecto visível e concreto que impõe responsabilidade
ao ser humano, demonstra sua infinita diferença e a impossibilidade
de assegurar um pensamento da totalidade sobre ele.
105
Emmanuel Levinas (1906-1995)
106
Michna e da Guemara que tratam sobre a justa punição para aque-
les que desrespeitam as leis. Em síntese, o texto do autor aborda a
relação entre lei humana e lei divina em relação à questão da graça
divina. Para além do próprio âmbito teológico, em Levinas importa o
modo como se estabelece a justiça para iluminar os princípios éticos
que podem ser seguidos. Deve-se lembrar que essa conferência se
deu em 1974, apenas 29 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial
na qual o povo judeu foi levado aos campos de concentração em um
genocídio nazista. Mesmo com os julgamentos que aconteceram nas
décadas após 1945, a questão da justiça permanece central para um
povo que lamentava 6 milhões de mortos. Por isso, esse é o tema da
interpretação de Levinas. Em suas palavras,
107
é mais do que aquilo que assegura a lei ou a justiça, mas aquele que
sustenta a justiça anterior à liberdade sem, entretanto, destruir essa
liberdade. Essa noção é contraposta à ética imanentista que, crítica
de toda tradição religiosa, ironiza o caráter metafórico de suas inter-
pretações de mundo como se, também a crítica, não se baseasse em
uma interpretação metafórica do mundo e da experiência humana.
Por isso, a sustentação da justiça frente a liberdade não deve ser afir-
mada como se o direito de um necessariamente se contrapusesse ao
direito dos outros. A relação não é de limite, mas de retirada, cercea-
mento para a liberdade do Outro.
Outra interessante interpretação talmúdica que Levinas traça se
dá em torno do conceito de perdão em “Com respeito ao Outro”. Aqui,
o enfoque do autor diz respeito ao dia do Yom Kipur, o dia em que
os sacrifícios a Deus são oferecidos e Ele, em resposta, perdoa os pe-
cados do povo. Todavia, ressalta Levinas, essa lógica se estabelece
somente com os pecados cometidos contra Deus que, nesse sentido,
é o Outro perfeito e exemplar. Os pecados cometidos contra os outros
seres humanos, ou contra a terra, não dispõe de um esquema ritual
tão claro, objetivo e certo. Isto é, pode ser que os outros imperfeitos
não aceitem qualquer sacrifício realizado em pedido de perdão. Nes-
se ponto reside a problemática de que Levinas trata no texto. Diz o
autor que toda ofensa ao próximo é, necessariamente, uma ofensa ao
próprio Deus, embora o contrário não seja verdadeiro.
Isso indicado, Levinas tenta levar ao limite a experiência do per-
dão - não mais do lado daquele que se sacrifica em nome dele, mas
sob o ponto de vista daquele que é ofendido. Aqui, mais uma vez,
há uma distinção: há aquele que deve ser perdoado e há aquele que
deve ser desculpado. Nesse caso, o ofensor comete um erro contra
o Outro sem ter noção de que o ofende ou erra para com ele. Ainda
que culpado, pode se retirar dele a culpa, isto é, desculpá-lo. Entre-
tanto, quando o ofensor sabe que o erro é erro e, ainda assim, decide
conscientemente por cometê-lo, ele não deve ser desculpado, mas,
108
assumindo a culpa, pode ser perdoado. O ponto determinante, aqui,
é a consciência de saber-se ofensor e, apesar disso, prosseguir com a
ofensa. Pessoalmente, Levinas admite nesse trecho um incômodo em
relação aos posicionamentos nazistas de seu predecessor na fenome-
nologia: “Podem-se perdoar muitos alemães, mas alguns alemães, é
difícil de se perdoar. É difícil perdoar Heidegger” (LEVINAS, 2003, p.
54). Nesse ponto, o tema do perdão é ético, religioso, filosófico e, so-
bretudo, existencial.
Como uma espécie de preâmbulo dessa importante leitura, Levi-
nas indica uma questão sobre Deus que, sob o ponto de vista da filo-
sofia da religião, mostra-se um raciocínio de grande validade e, tam-
bém, de grande fecundidade para esse campo. Deus, para Levinas,
é, além de objeto religioso de devoção, uma noção filosófica e cultu-
ral que está diretamente ligada à moralidade e, portanto, tem muita
validade para o pensamento da ética. Exatamente por isso, falar em
Deus é importante e perigoso: tal nome tem sido objeto de inúmeras
desvirtuações e equívocos. Por isso o autor se esforça por esclarecer
como Deus está pressuposto no pensamento da ética. Diz Levinas:
109
dem abarcar valores nos quais resplandece o Divino. A experiência
religiosa não pode - ao menos para o Talmud - deixar de ser antes
uma experiência moral (LEVINAS, 2003, p. 33-34).
5.4 J. HICK
John Hick (1922-2002), apesar de ser inglês, também construiu sua
carreira acadêmica nos Estados Unidos, lecionando em universida-
des como Cornell, Princeton e Claremont, e em Cambridge, no Rei-
110
no Unido. Suas contribuições, diferentemente da maioria dos outros
filósofos aqui apresentados, se dão diretamente na filosofia da reli-
gião. Com mais precisão, podemos indicar que Hick se posiciona em
uma linha na fronteira entre filosofia da religião e teologia filosófica.
Por um lado, Hick abordava questões como o pluralismo religioso e
enfrentava problemas como teodiceia, a crença em Deus e a lingua-
gem religiosa a partir de um cabedal de filosofia analítica. Por outro
lado, questionava-se filosoficamente sobre o significado da encarna-
ção divina, da morte, das fronteiras entre fé e ciência, e pensava uma
teologia cristã das religiões. Se, como podemos observar, os temas
de que trata são de grande diversidade, o caminho que Hick escolheu
para enfrentá-los é um só: o da filosofia analítica. A partir dela, o au-
tor buscou trazer clareza aos problemas de modo a resolvê-los e sim-
plificá-los por meio da lógica.
111
de uma religião, inclusive com argumentos científicos e filosóficos, a
filosofia da religião colocaria à prova, com critérios lógicos, a plausi-
bilidade de tais dogmas e crenças. Portanto, para o autor, a filosofia
da religião não está no âmbito (nem sob o domínio) da religião e das
instituições religiosas. Antes, a filosofia da religião deve ser percebida
como um âmbito da filosofia e, como tal, ser regida por seus princí-
pios crítico-racionais. Em outras palavras, a filosofia da religião não
deve se submeter a argumentos de autoridade, nos quais mais vale
a palavra de alguém em posição hierárquica superior (o Papa, pastor,
bispo etc.) do que o argumento logicamente mais adequado. Na me-
dida em que rejeita o recurso autoritativo, a filosofia da religião esca-
pa à lógica interna das religiões de respeito ao dogma, submetendo-o
ao crivo crítico. Nas palavras de Hick:
112
teriores da experiência religiosa, e as atividades do culto em que
finalmente a Teologia repousa e do que ela se origina. Filosofia
da Religião é, assim, uma atividade secundária, permanecendo,
até certo ponto, distante de sua própria matéria. Não representa
ela mesma uma parte do campo religioso, mas está relacionada
a ele, da mesma forma que a filosofia do direito está com o do-
mínio dos fenômenos legais, conceitos e argumentos jurídicos,
ou então, na medida em que a filosofia da arte se relaciona com
os fenômenos artísticos e com as categorias e métodos do debate
estético. A Filosofia da Religião está, assim, relacionada com as di-
ferentes religiões e teologias existentes no mundo, tal como a filo-
sofia da ciência se relaciona com as ciências particulares. Procura
analisar conceitos tais como: Deus, o sagrado, a salvação, o culto,
a criação, o sacrifício, a vida eterna etc., e determinar a natureza
das expressões religiosas, em comparação com as formas da vida
quotidiana, com as descobertas científicas, com a moral e com as
expressões imaginativas das artes (HICK, 1970, p. 11-12)
113
Tillich), e da verificabilidade. Neste, Hick avalia as possibilidades de
afirmação de verdade no âmbito da religião. Ora, as noções de exis-
tência, fato e realidade, para o autor, não devem ser tomadas como
dados objetivos, mas devem também ser investigadas. Se “existir”
significa estar presente em certo momento da história e da geografia,
Deus não existiria em certas noções, uma vez que é onipresente, ou
seja, fora da geografia, e eterno, fora da história. Deus é, mas não exis-
te, nesse sentido. Por isso, a afirmação de que certas crenças seriam
falsas depende de conceitos de realidade e de existência que não são,
a princípio, fáceis de definir. Assim, a verificabilidade na filosofia da
religião depende de uma epistemologia e de uma metafísica bem fun-
damentadas.
A ponte entre a filosofia da religião e a teologia filosófica em Hick
se estabelece por meio do diálogo inter-religioso e a teologia das re-
ligiões que o autor elabora. De certo modo, uma fundamenta a pos-
sibilidade da outra e, consequentemente, a passagem lógica de um
campo ao outro. O fato de que as religiões em sua imensa diversidade
devem dialogar, surge de uma análise do campo mesmo de estudos
dela. Para Hick,
114
consenso acerca da verdade das religiões. Por isso, estudá-las sob
a chave e a perspectiva da diversidade e do pluralismo é tão essen-
cial. Para tal, é preciso, partindo do cristianismo, sua religião de ber-
ço, reconhecer os limites da própria religião. Isso significa que, para
o autor, o diálogo inter-religioso só pode se dar se cada religião se
reconhecer como uma parcela verdadeira em seu contexto, mas não
verdadeira universalmente. Assim, o proselitismo de afirmar uma re-
ligião melhor do que outra deveria ser deixado de lado em nome de
um reconhecimento do pluralismo como chave para o diálogo e, em
último termo, a paz.
Por isso, uma proposta de teologia filosófica de Hick é reconhecer
a encarnação de Deus em Cristo como uma metáfora. Isto é, Deus não
teria de fato se encarnado em Jesus de Nazaré: essa figura seria uma
metáfora para afirmar a veracidade existencial das palavras de Jesus
e a coerência de sua interpretação e de sua vida dentro da proposta
judaico-cristã. Em suas palavras, reproduzimos a problemática que
Hick aponta no dogma cristão frente à questão do pluralismo e, pos-
teriormente, sua proposta de leitura:
115
5.5 R. GIRARD
René Girard (1923-2015), além de filósofo francês, foi historiador,
antropólogo, filólogo, crítico literário e cientista social. Essa multipli-
cidade de atividades está diretamente relacionada às suas principais
teorias que, para serem melhor fundamentadas e colocadas à prova,
exigiram que seu pensamento caminhasse entre diversos campos das
humanidades. Sua principal contribuição à história do pensamento
humano se dá em sua teoria do desejo mimético. Para o autor, toda
violência da sociedade se explica por um ponto em comum: a frustra-
ção dos desejos.
Entretanto, ao contrário do que se poderia sugerir, diz Girard, os
desejos humanos não são autônomos: eles provêm da imitação do
desejo dos outros que nos cercam. Por isso sua teoria é intitulada
“desejo mimético”, o desejo que marca ontologicamente o ser huma-
no e gera a violência da sociedade é copiado, mimetizado, dos outros
que nos cercam. Esse aspecto, Girard esclarece, faz com que a relação
do desejo não seja meramente direta, mas triangular: o desejo não se
dá apenas entre sujeito e objeto, mas entre sujeito e objeto com a me-
diação de um segundo sujeito de quem se mimetiza o desejo. Assim,
infinitamente, a sociedade mimetiza o desejo do outro.
116
pia o seu desejo. A relação de mimese, entretanto, gera também ódio.
Ódio primeiramente do indivíduo contra si mesmo, por não ser capaz
de gerar um desejo original, mas somente copiá-lo de alguém a quem
admira. Nas palavras de Girard,
117
apesar de ainda secretamente desejado. O mediador é agora um
inimigo sutil e diabólico, procura despojar o sujeito de suas mais
caras posses; contrapõe-se obstinadamente a suas mais legítimas
ambições (GIRARD, 2009, p. 34-35).
118
p. 26). Aqui reside a ligação entre violência e sacrifício - e, portanto,
a contribuição de Girard à filosofia da religião. No sacrifício rompe-se
o ciclo da violência por meio da própria violência. Entretanto, trans-
forma-se a direção do alvo da violência: não mais aqueles que estão
em rivalidade direta, mas uma vítima sacrificial é imolada para conter
o ciclo de vingança. Há, portanto, um deslocamento vitimário: a vio-
lência deve não mais se voltar ao conflito mesmo, mas, por meio de
um esquecimento, imolar uma vítima alheia ao conflito. Nesse senti-
do, para Girard, a teologia sacrificial, que sustenta esse rito, fornece
aparência divina a um estatuto, lógica de quebra da violência. O sa-
crifício seria uma exigência de um deus para apaziguar sua ira e seu
descontentamento. Na verdade, diz o autor, quem exige o sacrifício é
a própria sociedade para apaziguar seus próprios ânimos e proteger-
se de si própria.
Em sua análise das sociedades antigas, bem como de grandes ro-
mances da história mundial, Girard revela um tipo preferencial de ví-
tima sacrificial. Ora, se não são os lados de uma rivalidade que devem
ser imolados em sacrifício, quem seria? Na interpretação de Girard, as
vítimas são, preferencialmente, seres que vivem às margens da socie-
dade ou são dela excluídas. Eis os exemplos: prisioneiros de guerra,
escravos, crianças, estrangeiros e bandidos. Isso garante que a estru-
tura do sacrifício continue em voga até os dias de hoje: ainda que os
rituais sacrificiais não ocorram como eventos político-religiosos nos
quais toda a sociedade participa, sua estrutura é atualizada por meio
de linchamentos e assassinatos de pessoas pertencentes a grupos
marginalizados. Ainda que em chave distinta, essas mortes mantêm
o funcionamento psíquico do sacrifício como modo de pacificação da
violência causada pelo desejo mimético. Nas palavras de Girard, “gra-
ças ao mecanismo persecutório, a angústia e as frustrações coletivas
encontram uma satisfação vicária sobre vítimas que facilmente pro-
vocam a união contra elas, em virtude de sua pertença a minorias mal
integradas” (GIRARD, 2004, p. 55). Nesse sentido, o sacrifício continua
119
sendo um modo contemporâneo de uso da religião para apaziguar
a violência social. A relação entre sacrifício e desejo mimético se de-
monstra inclusive nos mitos:
120
vítimas uma satisfação rigorosamente avaliada, apaziguando seu
desejo de vingança sem despertá-lo em outra parte. Não se trata
de legislar sobre o bem ou o mal, nem de fazer respeitar uma jus-
tiça abstrata, mas de preservar a segurança do grupo eliminando
a vingança, de preferência por meio de uma reconciliação fundada
em um compromisso ou, caso esta reconciliação seja impossível,
por meio de um confronto armado, organizado de forma a impedir
a propagação da violência, este confronto deverá ocorrer em um
campo fechado, segundo regras e entre adversários bem determi-
nados. Deverá se dar de uma vez por todas… (GIRARD, 1990, p. 34).
5.6 J. DERRIDA
Jacques Derrida (1930-2004) foi um dos grandes filósofos france-
ses do século XX. Sua principal contribuição à história do pensamen-
to se deu a partir do programa filosófico que chamou de desconstru-
ção - um modo de abordagem de textos da tradição que visava não
sublimar as diferenças, mas fazê-las aparecer nos lugares onde havia
sido apagada em favor da identidade. Embora seu campo de atuação
tenha sido, principalmente, filosófico, a influência de Derrida se es-
tendeu, ainda em vida, para outras áreas das humanidades, como a
literatura e os estudos culturais.
Em 1968, o autor publicou dois de seus mais importantes livros:
Gramatologia e A escritura e a diferença. Nesses, Derrida desafiou a
tradição estruturalista e a metafísica como um todo por privilegiarem
as identidades e a presença como único tempo possível. Em Grama-
tologia, o autor desafia a noção de que o ato de escrever é um ato se-
cundário, derivado da originalidade da fala. Antes, para ele, é preciso
considerar que a escritura é um modo primeiro e primário de pensa-
mento em si mesmo, e não apenas uma forma derivada. Por isso, ele
retoma o conceito de escritura como central, bem como aponta as
violências implícitas aos paradigmas logocêntricos.
121
Jacques Derrida (1930-2004)
122
metidos, no próprio lugar, no cerne da aliança de sua oposição.
Daí a aporia - uma certa ausência de caminho, de via, de saída, de
salvação - e as duas fontes (DERRIDA, 2000, p. 12)
123
(DERRIDA, 2000, p. 25). Sua proposta, nesse ponto, é permanecer na
indecidibilidade do ambíguo, mas partir de uma originariedade ante-
rior à revelação. Para ele, há aqui uma questão lógica: a revelação já
trata diretamente de uma religião específica, de modo que não pode
ser fundamento para pensar a religião em geral. Por isso, apela Der-
rida à revelabilidade, isto é, a possibilidade de revelação antes mes-
mo da própria revelação. A revelabilidade, portanto, seria anterior a
qualquer revelação específica e, portanto, independente de qualquer
religião. Por isso, o lugar de destaque não seria nem uma ilha (na qual
a conferência ocorre e figura que referencia a revelação, como no
Apocalipse), nem a Terra Prometida, mas o deserto:
124
mento no qual toda dualidade é indecidível. Portanto, Derrida, mais
uma vez, resguarda o caráter ambíguo da religião.
Desse ponto de vista, a religião se demonstra como objeto pensá-
vel pela filosofia, de modo que a filosofia da religião não se furta a
pensar as religiões concretas, mas se projeta para além delas - ten-
tando as possibilidades de existência delas e verificando os funda-
mentos do próprio conceito de religião. Todavia, conforme Derrida
mesmo faz, a religião pode servir como fonte de pensamento para
a crítica desconstrutiva de outros objetos de estudo a partir da fi-
losofia. Aqui, dois casos são exemplares no pensamento de Derri-
da: o fundamento místico do direito demonstrado em Força de lei;
e o fundamento da justiça e da alteridade na homenagem Adeus a
Emmanuel Levinas. No primeiro caso, o autor demonstra como a lei
e o direito se fundamentam em um paradigma religioso e, portanto,
o que os sustenta socialmente também é uma atitude religiosa dos
seres humanos, a fé:
125
a ética e a justiça a partir da experiência judaica de mundo e de justiça
no mundo. Em suas palavras, por fim,
126
CAPÍTULO 6
FILOSOFIA POLÍTICA E RELIGIÃO
Podemos notar, majoritariamente ainda no âmbito da filosofia
contemporânea, a reapropriação de elementos da religião para pen-
sar a política. Aqui, também se faz um tipo de filosofia da religião, na
medida em que, a partir de uma crítica de seus conceitos históricos,
se debruçam sobre ela diversos filósofos. Todavia, diferentemente
dos autores apresentados anteriormente, os que seguem não têm
por objetivo o pensamento mesmo da religião. Antes, pensava-se a
religião como um primeiro passo para pensar a política. Esse fenô-
meno se constitui, por um lado, porque tais filósofos identificam na
religião uma linguagem disponível, influente e historicamente rele-
vante para a constituição de novidades políticas. Nesse sentido, a re-
ligião seria uma espécie de objeto a ser apropriado como um recurso,
uma ferramenta que auxilia na promoção de novas ideias e práticas
políticas. Por outro lado, há autores que se voltam para a religião a
fim de identificar historicamente como ela definiu movimentos polí-
ticos contemporâneos. Aqui, a preocupação não é tanto propositiva,
mas histórico-documental, demonstrando como conceitos e noções,
a princípio somente religiosas, se fizeram determinantes e influentes
em discussões políticas.
Ainda que a filosofia contemporânea seja de modo geral bem pró-
xima aos nossos dias, esse movimento de aproximação entre filosofia
da religião e filosofia política é ainda mais: a maioria dos autores que
o fazem estão ainda vivos. Esse fato não demonstra somente uma di-
reção que a filosofia hoje segue, mas aponta a relevância da discus-
são para o cotidiano em suas faces teórica e prática. Mesmo fora do
âmbito acadêmico da filosofia, a aproximação entre religião e política
127
tem ganhado grande destaque e atenção em discussões qualificadas
e leigas. A compreensão dessa relação através da filosofia, portanto,
se faz de grande urgência.
6.1 R. LUXEMBURGO
Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi uma das mais importantes filó-
sofas e economistas polonesas da história. Sua trajetória pessoal foi
marcada pela perseguição política, por sua originalidade filosófica e
pela ácida crítica às estruturas econômicas vigentes. Ao contrário de
muitos de seus companheiros da época, Luxemburgo lutou por um
socialismo libertário, o qual, ao defender, escreveu uma de suas mais
célebres citações: “liberdade somente para os partidários do governo,
somente para os membros de um partido - por mais numerosos que
sejam -, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem
pensa de maneira diferente” (LUXEMBURGO, 2018, p. XIII). As ideias
de Rosa Luxemburgo foram, durante muito tempo, silenciadas em fa-
vor dos aspectos biográficos de sua atuação política. Entretanto, os
escritos e pensamentos filosóficos da autora são demasiadamente
importantes e inovadores para serem relegados a um segundo plano.
Sua atuação política levou à morte precoce, em um brutal assassina-
to promovido pelo governo alemão, pondo fim à sua vida de apenas
48 anos.
128
padres e clérigos da Igreja Católica polonesa, sobretudo no que diz
respeito à relação do clero com o socialismo. Há, nesse texto específi-
co, uma interessante diferenciação que a autora traz para sua crítica:
de um lado, o clero e a posição oficial da Igreja, de outro, a bíblia e o
cristianismo primitivo. A tese central de sua provocativa opinião ex-
pressa neste ensaio é de que a Igreja se afastou dos posicionamentos
socialistas que seriam presentes na experiência bíblica dos primeiros
cristãos. Primeiramente, há a constatação da situação recorrente na
Polônia do início do séc. XX:
129
popularizar os meios de produção, de modo que o proletariado de-
tivesse os modos de gerar riqueza e, consequentemente, superasse
as desigualdades e as necessidades comuns ao povo. Para a autora,
esse segundo modo de socialismo seria mais produtivo que o primei-
ro, uma vez que possibilitaria a manutenção a longo prazo do proces-
so de redução das desigualdades socioeconômicas. Eis os exemplos
bíblicos que Luxemburgo utiliza:
130
se debruça sobre a religião enquanto fenômeno humano e social, de
modo a julgar suas práticas a partir de uma filosofia política que lhe
é prévia. Por outro lado, a autora se volta para a religião histórica, o
cristianismo primitivo, no caso, para iluminar sua prática política e
sua filosofia. No primeiro caso, a religião é objeto de investigação, no
segundo, ela é inspiração para a filosofia. Independente da validade
da interpretação de Luxemburgo sobre os primeiros cristãos, deve-
mos reconhecer sua grande capacidade analítica e crítica, voltando a
religião contra ela mesma por meio da filosofia.
6.2 G. VATTIMO
Gianni Vattimo (1936-) é um dos mais proeminentes filósofos ita-
lianos da contemporaneidade. A trajetória de seu pensamento, em-
bora tenha sofrido alterações ao longo das décadas, pode ser defi-
nida por uma tentativa de constituir uma filosofia baseada em um
pensamento fraco. Filiado à hermenêutica, Vattimo propõe que há,
na contemporaneidade pós-moderna, uma vocação niilista da filoso-
fia: não se pode mais afirmar qualquer discurso ou verdade como úl-
timo ou permanente. Para tal, toda filosofia deve se reconhecer como
parcial, visto que parte de um ponto de vista específico e, portanto,
não pode conter a totalidade dos fatos. Assim, qualquer discurso só
pode ser tomado como uma interpretação dentre inúmeras outras
possíveis. Por isso, Vattimo tenta criar uma filosofia fraca: sua propos-
ta é uma filosofia que se reconheça sempre como uma interpretação
e não tenha pretensões de afirmar sua força sobre outras filosofias e
interpretações.
131
A religião como tema entra na vida pessoal de Vattimo desde mui-
to cedo, devido à sua criação católica e militância em grupos católi-
cos italianos. Em sua filosofia a religião também ocupa papel central.
Justamente na medida em que a linguagem ocupa certa centralidade
no pensamento hermenêutico, Vattimo interpreta a religião, e a tradi-
ção cristã mais particularmente, como uma mensagem disponível e
apropriável na contemporaneidade. Ora, é inegável o papel que essa
tradição teve na construção do Ocidente. Para o autor, ela não estaria
somente em uma origem histórica do passado, mas articularia ainda
hoje suas noções particulares de modo secularizado. Sua preocupa-
ção nesse âmbito também se demonstra na fundamentação de uma
filosofia fraca: ela não é somente uma questão epistemológica de re-
conhecimento de verdades, mas é também ética, na medida em que
requer um tipo de democracia dentro da própria filosofia.
Em Vattimo, portanto, a vocação niilista da hermenêutica não é
mais que uma tardia correspondência filosófica da encarnação de
Deus em Jesus. Todavia, o que interessa para Vattimo não é somente
a encarnação em si mesma, mas o processo de esvaziamento divino
para que essa encarnação ocorresse, conforme descrito pelo apósto-
lo Paulo na epístola aos Filipenses. Esse processo, descrito pelo ter-
mo grego kenosis, implica um total rebaixamento, esvaziamento ou,
no vocabulário de Vattimo, enfraquecimento do próprio Deus ao fa-
zer-se homem. Mais do que uma metáfora, essa mensagem cristã es-
taria, para o autor, no cerne dos princípios de democracia, laicidade e
solidariedade. Longe de exercer o poder individual para fazer valer a
própria verdade, esses sistemas indicam um esvaziamento em favor
do outro. Nas palavras de Vattimo,
132
o caminho para escutar os muitos mitos religiosos da humanida-
de; mas em termos substanciais, de ligação entre ontologia niilista
e Kénosis de Deus significa encontrar também os problemas de
reinterpretação do sentido do cristianismo para nossa cultura. [...]
O niilismo ‘se assemelha’ demasiado à Kénosis para se poder ver
em tal semelhança apenas uma coincidência, uma associação de
ideias. [...] A hermenêutica só pode ser o que é - uma filosofia não
metafísica do caráter essencialmente interpretativo de verdade, e,
portanto, uma ontologia niilista - enquanto herdeira do mito cris-
tão da encarnação de Deus (VATTIMO, 1999, p. 77-82).
133
6.3 A. BADIOU
Alain Badiou (1937-) figura como um dos grandes intelectuais da
França contemporânea. Sua filosofia se constrói em profícuo diálogo
com grandes nomes da tradição, como Platão e Heidegger, por exem-
plo, mas também com outras formas de pensamento não filosóficas,
como a matemática. Na filosofia de Badiou, ocupa lugar central a no-
ção de evento: diferentemente da tradição heideggeriana de acon-
tecimento, o evento toma lugar como uma interpretação específica
de momentos de ruptura com a ordem social estabelecida. Também
o tema da verdade e da ética se fundamentam nesse ponto, para o
autor. A verdade nada mais seria do que uma fidelidade a um even-
to - fato que, no limite, também constituiria o sujeito como sujeito.
A ética, ou o comportamento ético, para Badiou, seria o apelo à ra-
dicalidade dessa fidelidade que funda o sujeito. Por isso, sua ética é
situacionista: ao contrário da ética do dever kantiana, por exemplo, o
autor afirma que seguir uma ética “verdadeira” depende dos eventos
que constituíram o sujeito, por isso ela nunca será universal no conte-
údo, somente na forma.
134
tos são marcantes na história moderna: a comuna de Paris (1871), a
revolução cultural chinesa (1967-1976) e maio de 1968 com os pro-
testos na França. Cada qual a seu modo demonstra, para ele, como a
suspensão, ainda que provisória, da realidade econômica do capita-
lismo viabiliza as condições de possibilidade para uma reabilitação
do comunismo como modelo social. Como um aprofundamento da
reflexão sobre a hipótese comunista, Badiou se aventura a pensar
um fundamento de maior importância para o comunismo: o univer-
salismo. Aqui, o universalismo diz respeito à radical afirmação de
igualdade entre todos os seres humanos apesar de suas diferenças.
Surpreendentemente, essa origem não se encontra, para o autor, na
tradição filosófica ocidental, mas no cristianismo.
Em São Paulo (2009), Alain Badiou trata, partindo dos escritos e da
história do apóstolo Paulo, da fundação mais radical do universalis-
mo - categoria primordial para o comunismo, do qual o autor é adep-
to. Para ele, voltar aos escritos bíblicos não é uma tarefa religiosa, mas
histórico-cultural: “Na realidade, Paulo não é, para mim, um apóstolo
ou um santo. Eu não tenho a menor necessidade da Nova que ele de-
clara ou do culto que lhe foi consagrado” (BADIOU, 2009. p. 7). Por
outro lado, seu objetivo também não é desprezar ou lutar contra a
religião; antes, perceber nela a possibilidade de inspiração para a luta
por uma sociedade mais fraterna. Em suas análises, Badiou descon-
sidera as epístolas de pseudo autoria, voltando-se somente os textos
de comprovada autoria de Paulo, a saber, Romanos, Gálatas, as cartas
aos Coríntios, Filipenses e a primeira carta aos Tessalonicenses, dis-
pensando os considerados “paulinismo de tradição” e Filemon.
Percorrendo as principais doutrinas paulinas, Badiou demonstra
como existem as mesmas tensões durante os textos-cartas, argumen-
tando que “a via subjetiva da carne [...] organiza o conjunto da lei e das
obras. Enquanto a via do espírito [...] organiza o [conjunto] da graça
e da fé” (BADIOU, 2009, p. 89), sendo este ligado com a vida e aquele
com a morte. Explicando melhor essas vias que se contrapõem (carne
135
e espírito), o autor é contundente em afirmar que a interpretação pla-
tonizada dos escritos de Paulo corromperam seus verdadeiros senti-
dos mais profundos, e perverteram as intenções. Por esta posição, o
filósofo não deixa passar um ponto que, segundo ele, é fundamental:
“a oposição do espírito e da carne não tem nada a ver com a da alma
e do corpo” (BADIOU, 2009, p. 67).
Curiosamente, em suas análises, o autor trata também da questão
feminina nos textos de Paulo, mostrando que não há, como muito se
diz, misoginia por parte do autor, antes, na impossibilidade de trans-
formar radicalmente a sociedade (patriarcal), Paulo iguala o peso da
lei, antes só para mulheres, para os homens. Enfim, Badiou utilizando
o texto de Gálatas 3, 28 fundamenta sua tese, afirmando que “Paulo
é um teórico antifilosófico da universalidade. [...] Paulo mostra deta-
lhadamente como um pensamento universal [...] produz um Mesmo
e o Igual (não há mais nem judeu nem grego etc.) ” (BADIOU, 2009,
p. 126-127.). Desta forma, o filósofo francês mostra a importância de
uma das principais figuras cristãs para uma categoria fundamental do
comunismo: a noção de igualdade baseada na alteridade - fundada
com Paulo. Para Badiou a universalidade como princípio abstrato já
estava determinada matematicamente em pensadores mais antigos
que Paulo, como Arquimedes, por exemplo. A grande diferença que
faz com que o autor atribua ao apóstolo grande inovação, é a funda-
mentação de tal universalidade em uma particularidade específica: o
universal não é mera abstração matemática, mas é possível por causa
de uma afirmação concreta, o fato de que Jesus ressuscitou historica-
mente. Assim, conclui Badiou:
136
numa sociedade. O que há de específico em Paulo é ter estabele-
cido que somente há fidelidade a um acontecimento como aquele
com a resilição dos particularismos comunitários e a determina-
ção de um sujeito-de-verdade que indistingue o Um e o ‘para to-
dos’. A cesura paulina não se apoia então, como é ocaso dos pro-
cedimentos de verdade efetivos (ciência, arte, política, amor), na
produção de um universal. Ela se baseia, por meio de um elemen-
to mitológico implacavelmente reduzido a um único ponto, a um
único enunciado (o Cristo ressuscitou), nas leis da universalidade
em geral. Por isso, podemos nomeá-la uma cesura teórica, enten-
dendo que ‘teórico’ não se opõe aqui a ‘prático’, mas a real. Paulo é
fundador, por ser um dos primeiros teóricos do universal (BADIOU,
2009, p. 125-126).
6.4 G. AGAMBEN
Giorgio Agamben (1942-) está entre os mais importantes pensa-
dores da atualidade, sobretudo por suas interpretações de filosofia
política. O fato de que ele tenha começado sua carreira acadêmica
no Direito repercute em toda sua obra filosófica: a questão da lei, do
Estado e dos direitos estão em jogo a todo tempo. Seu principal pro-
jeto filosófico é construído no sentido de pensar o modo de vida do
ser humano sob o domínio do Estado moderno, pensando seus pa-
radigmas e as possíveis fugas dele. Esse é o projeto de Homo Sacer
que Agamben distribui em quatro diferentes etapas: 1) pensando a
noção de vida nua; 2) pensando a relação entre Estado, exceção, lin-
guagem e religião; 3) pensando a questão de Auschwitz; 4) pensando
formas alternativas de vida, como regras monásticas. Seu objetivo é
pensar como, ao longo da história, o “homem sagrado”, aquele a ser
julgado pelos deuses, é percebido pelo Estado e como as formas da
lei se constituem diferentemente para formular uma biopolítica, isto
é, uma política que legisla diretamente sobre o corpo do ser humano.
137
Giorgio Agamben (1942-)
138
Agamben percebe na narrativa o grande encontro e embate de
dois mundos completamente diferentes: “o cruzamento entre o tem-
poral e o eterno assumiu a forma de um processo” (AGAMBEN, 2014b,
p. 65). Tal cruzamento, ou embate, é, para o filósofo, ponto crucial
para entender o momento histórico em que a humanidade se encon-
tra. Para além da interpretação bíblica do processo de julgamento de
Jesus, Agamben trata o embate como metáfora para duas ideias im-
portantes da modernidade: “que a história seja um ‘processo’ e que
este processo, enquanto não se concluir em um juízo, esteja em per-
manente estado de crise” (AGAMBEN, 2014b, p. 75).
Insistindo na contraposição de dois mundos, como em Pilatos e
Jesus, Agamben, nos dois textos de O mistério do mal (2015), “O mis-
tério da Igreja” e “Mysterium iniquitatis”, analisa o discurso de grande
recusa do Papa Bento XIV e o texto de 2 Tessalonicenses 2, 1-11, res-
pectivamente. Para fazê-los, o filósofo vai até os primeiros passos de
Ratzinger como teólogo e seus estudos a cerca de Ticônio, teólogo do
séc. IV. Precursor de Agostinho no que se refere às ideias principais de
Cidade de Deus (2012), Ticônio formula a tese “Sobre o corpo biparti-
do do Senhor” - o que leva Agamben a buscar a noção de “mistério”
na carta de Paulo. Tal “mistério” na passagem escolhida (e traduzida
pelo filósofo) relaciona-se com duas figuras importantes: o Anticristo
e katechon (o elemento retardador, em termos escatológicos). A dis-
cussão segue, então, como debate messiânico: o “mistério do mal”
paulino refere-se ao fim da história? A resposta de Agamben é não.
O que se apresenta como “mistério” é a história do fim, que só resti-
tuindo a seu contexto escatológico “uma ação política possa tornar-
se novamente possível, tanto na esfera teológica quanto na profana”
(AGAMBEN, 2015, p. 45). Assim, o filósofo mescla a escatologia com a
economia, o “ainda não” com o “já”, salientando que o fim coincide
com o agora.
Em Altíssima Pobreza (2014a), Giorgio Agamben se debruça em
estudar diversas regras do monasticismo antigo e medieval, obser-
139
vando regras, regulamentos, leis, hábitos e comportamentos. Co-
meçando pelas regras - e por suas encarnações na própria vida - e
pelas primeiras leis - sejam estas acéticas ou sobre o perdão -, sua
pesquisa culmina no monasticismo franciscano, isto é, o movimento
de Francisco de Assis - que segundo o autor “é possível considerá-lo
como tal [movimento], antes ou para aquém do significado religioso
ou econômico social que sem dúvida lhe cabe” (AGAMBEN, 2014a, p.
98) - principalmente em sua discussão sobre uso e propriedade. Ten-
do já considerado a ideia de que as regras monásticas vão além das
leis e, principalmente nos franciscanos, as regras são a própria vida,
em suas palavras, “quando uma vida (a vida de Cristo) fornece o para-
digma da regra, a regra se transforma em vida [...]” (AGAMBEN, 2014a,
p. 113), o filósofo contrapõe e apresenta o debate e a epistemologia
desta linha monástica acerca do uso: “[...] os frades menores efetuam
uma inversão e, ao mesmo tempo, uma absolutização do estado exce-
ção: no estado normal, em que aos homens cabem direitos positivos,
eles não têm direito algum, mas apenas licença de uso” (AGAMBEN,
2014a, p. 120). Desta forma, o autor conclui que esta relação francis-
cana dos frades com a noção de uso, embora falha em alguns termos,
é de grande valia para uma resistência pós-moderna ao modelo capi-
talista - grande incentivador da propriedade privada, isto é, a posse
de algo que implica diretamente na exclusividade de uso. Nas últimas
linhas de sua obra, Agamben reforça a importância da experiência e
das categorias franciscanas nesta resistência: “É, pois, o problema do
nexo essencial entre o uso e forma de vida que, a essa altura, se torna
inadiável” (AGAMBEN, 2014a, p. 147)
6.5 S. ŽIŽEK
Slavoj Žižek (1949-), nascido na Iugoslávia, hoje Eslovênia, é um
dos mais conhecidos filósofos vivos da atualidade. Sua fama se cons-
truiu graças a sua incessante busca de diálogo com a cultura de mas-
sas contemporânea, de modo que seus exemplos e as aplicações de
140
sua filosofia são sempre atuais. Por isso, ganhou o título de filósofo
pop: por pensar uma crítica à sociedade a partir de suas produções
culturais mais diversas, como filmes (de Titanic a Kung Fu Panda),
músicas populares e acontecimentos recentes. Além de sua ativida-
de intelectual, Žižek também se envolveu politicamente, chegando
a ser candidato à presidência de seu país após a dissolução do bloco
socialista que compunha a Iugoslávia. Sua filosofia se constitui como
uma forma específica de interpretar a tradição marxista. Em vez de
uma leitura sincrônica de sua obra, Žižek propõe uma interpretação
diacrônica por meio de Hegel e do psicanalista J. Lacan. Ao último, o
filósofo esloveno deve grande parte de suas teorias e inovações filo-
sóficas. Nesse sentido, Žižek faz uma reinterpretação de Marx através
de Hegel e Lacan.
141
como tal legado cristão pode ser reapropriado pelo marxismo, Žižek
explora um ponto central do cristianismo: a morte de Jesus. Qual se-
ria seu significado? Primeiramente, o autor percorre o tradicional sig-
nificado do sacrifício no qual há uma troca entre ser humano e Deus
por meio da substituição em Jesus dos pecados humanos. Nesse sen-
tido, a morte de Jesus seria como o preço de um resgate pelos hu-
manos escravizados pelo pecado. Para Žižek, entretanto, essas inter-
pretações metafóricas que se estabeleceram como hegemônicas ao
longo da tradição teológica cristã não passam de interpretações ruins
do sentido da morte de Jesus sob o ponto de vista de sua vida. Ora,
se a vida inteira de Jesus aponta para o fim da lei judaica, como sua
morte pode ser um cumprimento da lei exigida pelo próprio Deus? A
morte de Jesus como sacrifício não tem sentido algum, diz Žižek. Há,
entretanto, outra interpretação que é mais plausível e útil:
142
o amamos e só podemos fazê-lo através de um gesto supérfluo
de dispêndio. Cristo não ‘paga’ por nossos pecados, como foi es-
clarecido por São Paulo. É essa própria lógica do pagamento, da
troca, que de certo modo é o pecado, e a aposta do ato de Cristo é
nos mostrar que a cadeia de trocas pode ser interrompida. Cristo
redime a humanidade não pagando o preço por nossos pecados,
mas demonstrando que podemos nos libertar do ciclo vicioso de
pecado e pagamento. Em vez de pagar por nossos pecados, Cris-
to, literalmente, apaga-os, retroativamente os ‘desfaz’ através do
amor (ŽIŽEK, 2013, p. 34-35).
143
6.6 B. HAN
Byung-Chul Han (1959-) é um dos mais relevantes filósofos orien-
tais contemporâneos. Apesar de ter nascido na Coréia, fez sua car-
reira acadêmica na Alemanha, onde estudou filosofia e teologia.
Atualmente, Han leciona na Universidade de Artes de Berlin, na ca-
pital alemã. Preocupado em pensar a contemporaneidade, o autor
se preocupa em dialogar com conceitos e pensadores já estabeleci-
dos na filosofia. Em todo tempo podemos perceber, em suas obras,
a presença de importantes referências, como Heidegger e Hegel, ou
pensadores da política, como Foucault e Agamben, com o conceito de
biopolítica. A grande inovação que Han traz para a filosofia contem-
porânea é sair da posição de mero leitor e apresentador de grandes
filósofos. Seus pensamentos se constroem em franco diálogo crítico
com a tradição que lhe é anterior e, assim, torna-se possível a cons-
trução de novas lentes para ler e interpretar os tempos nos quais vive-
mos hoje. A leitura que Han faz das condições capitalistas contempo-
râneas, nesse sentido, são de grande relevância e, sob certo ponto de
vista, urgência - uma vez que ele aponta novos modos de exploração
do indivíduo.
144
damental para a violência neuronal; da sociedade disciplinar para a
sociedade de desempenho; da atividade excessiva para o tédio onto-
lógico. Hoje, para Han, não há somente estruturas externas que pres-
sionam e legislam sobre os corpos humanos, como num paradigma
biopolítico. Mais relevantes do que essas superestruturas, diz Han, é
a psicopolítica, na qual cada indivíduo se torna seu próprio chefe, seu
próprio carrasco e cobrador. Por isso, a sociedade contemporânea é a
sociedade do cansaço, no qual o excesso de positividade se converte
em um tipo de auto exploração. Nas palavras de Han,
145
te, o filósofo sul-coreano não se volta para a tradição judaico-cristã
como fonte renovadora da filosofia, mas para o zen-budismo.
Seu objetivo na obra Filosofia do zen-busdismo não é apenas expli-
citar certos dogmas e práticas dessa religião, mas pensar sobre o zen
-busdismo e com o zen-budismo em aberto diálogo com a tradição
filosófica ocidental. Suas referências nesse diálogo não são “peque-
ninos” da tradição, mas os grandes filósofos que determinaram, cada
qual a seu modo, o pensamento filosófico: Platão, Leibniz, Hegel, Fi-
chte, Schopenhauer, Nietzsche e, uma de suas principais referências
em todas as obras, Heidegger. Para realizar uma espécie de imersão
no mundo zen, Han propõe em meio aos textos alguns haicais clás-
sicos. Esses pequenos poemas de apenas três versos marcam, para
o autor, o estilo de pensamento zen-budista na medida em que cap-
turam, como uma espécie de fotografia, um instante do presente em
suas consequências intermináveis. Com eles, Han pretende criar uma
“disposição de ânimo” no texto, isto é, ambientar na própria tradição
do zen os diálogos que propõe. Han, por exemplo, discorda da inter-
pretação que Hegel faz do budismo, especificamente na interseção
entre nada e Deus. Transcrevemos abaixo o embate:
146
tre zen Linji de matar o Buda: ‘Se encontrarem o Buda, matem o
buda. Então chegarão pela primeira vez à libertação, não serão
mais acorrentados às coisas e penetrarão tudo livremente’. Que
falte ao nada budista a ‘subjetividade excludente’ ou a ‘vontade
consciente’ não é nenhuma ‘falta’ que deve ser corrigida, mas sim
uma força especial do budismo. A ausência de ‘vontade’ ou ‘subje-
tividade’ é, justamente, constitutiva para a paz do budismo (HAN,
2019, p.12-20)
147
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