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Direção Geral

Pr. Fernando Brandão


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Editores Matheus Garcia Coelho
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Profa. Dra. Teresa Akil Prof. Danilo Mendes
Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda Revisão
Coordenação Editorial Profa. Cláudia Luiza Boechat Pires de Almeida Sales
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Oliverartelucas

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necessariamente, a opinião da Instituição e seu Conselho Editorial.

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20510-412 – Rio de Janeiro – RJ
Faculdade Batista do Rio de Janeiro Tel: (21) 2107-1819
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil www.seminariodosul.com.br
Apresentação
A filosofia, enquanto tarefa fundamentalmente humana de exer-
cer o pensamento, volta-se sobre os mais diversos assuntos: nature-
za, política, ética, cultura, biologia, mente, linguagem, percepção etc.
Tais aplicações da filosofia a áreas específicas criam subdivisões no
pensamento em geral, compostas pela fórmula “filosofia do/da …”.
É assim com a filosofia do direito, ou a metafilosofia, quando ela
se dobra para pensar sobre si mesma. De todos esses movimentos de
afinar o olhar filosófico para um lugar específico, um dos mais profí-
cuos se dá quando a filosofia se volta para pensar a religião. Nesse
encontro entre o olhar filosófico do sujeito e a religião como objeto
nasce a Filosofia da Religião.
Mesmo que a história da filosofia da religião seja extensa e mar-
cada por grandes discussões próximas ao âmbito acadêmico, pode-
mos dizer que ela também está presente em nossa rotina cotidiana.
Sempre que pensamos reflexivamente, através de nossas referências
histórico-culturais, sobre algum tema ou evento religioso, estamos
fazendo um modo de filosofia da religião.
Quando caracterizamos a postura de certo líder religioso como
violenta, estamos usando categorias já conhecidas para conceituar
um evento novo. Considerando somente esse exemplo, articular-
mos noções como violência, discurso, força, poder etc. O mesmo se
dá quando avaliamos criticamente o ensino bíblico de uma denomi-
nação, para tomarmos outro exemplo. Articulamos noções prévias
como verdade, didática, interpretação, leitura etc. Mesmo que não
estejamos em um âmbito estritamente acadêmico, nesses momentos
já estamos refletindo filosoficamente sobre a religião.
Fazer filosofia da religião, especialmente em um país multi-iden-

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titário como o Brasil, é tarefa cotidiana. Não apenas paramos para
refletir de tal modo, como somos impelidos pela sociedade a nos
posicionarmos sobre eventos específicos que envolvem a temática
da religião. Por isso, o estudo da história da filosofia da religião é tão
importante: não somente para distinguirmos as posições e leituras
já formuladas sobre o assunto, mas também para desenvolvermos a
capacidade de também tomarmos parte nesse debate tão importante
que nos confronta a todo tempo.
Nosso desejo é que este material didático seja de bom proveito
para a instrução em Filosofia da Religião e para a construção do pen-
samento filosófico crítico sobre o tema.

Atenciosamente,
Prof. Danilo Mendes

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Sumário
Apresentação......................................................................................... 3
Introdução............................................................................................. 7
Capítulo 1 – As Relações entre Filosofia e Religião....................... 13
1.1 Filosofia e Religião: Modos de Pensar....................................... 13
1.2 Um pouco de História................................................................. 18
1.3 Os Problemas do Conceito de Religião..................................... 24
Capítulo 2 – A Religião no Idealismo Alemão................................. 28
2.1 I. Kant.......................................................................................... 28
2.2 G. W. F. Hegel............................................................................... 33
2.3 F. Schleiermacher....................................................................... 37
Capítulo 3 – Abordagens Críticas da Religião................................ 43
3.1 L. Feuerbach............................................................................... 44
3.2 K. Marx........................................................................................ 48
3.3 F. Nietzsche................................................................................. 53
3.4 S. Freud....................................................................................... 59
Capítulo 4 – Abordagens Compreensivas da Religião................... 66
4.1 R. Otto......................................................................................... 67
4.2 P. Tillich....................................................................................... 73
4.3 M. Eliade...................................................................................... 80
4.4 R. Alves........................................................................................ 85
Capítulo 5 – A Religião sob o olhar Contemporâneo..................... 93
5.1 S. Kierkegaard............................................................................. 93
5.2 M. Heidegger............................................................................... 99
5.3 E. Levinas.................................................................................. 105
5.4 J. Hick........................................................................................ 110
5.5 R. Girard.................................................................................... 116
5.6 J. Derrida................................................................................... 121
Capítulo 6 – Filosofia Política e Religião....................................... 127
6.1 R. Luxemburgo.......................................................................... 128
6.2 G. Vattimo................................................................................. 131
6.3 A. Badiou................................................................................... 134
6.4 G. Agamben............................................................................... 137
6.5 S. Žižek...................................................................................... 140
6.6 B. Han........................................................................................ 144
Referências ...................................................................................... 149
Introdução
Grande parte das introduções a obras filosóficas trata da primor-
dial questão “o que é Filosofia”? Em mais de 2 mil anos de tradição,
nenhuma definição foi totalmente aceita. Das propostas mais amplas
às mais específicas, não há um conceito estrito de Filosofia que con-
temple o pensamento de todos os filósofos.
Quando modificamos a atmosfera para um material didático de Fi-
losofia da Religião, a questão das definições se complica ainda mais.
Ora, tal qual o termo “filosofia”, também seria preciso encontrar um
conceito compartilhado de religião. E, ainda mais difícil, definir os
significados da partícula “da” que liga a filosofia à religião. O que sig-
nifica dizer que há uma filosofia que é da religião? Que a religião é sua
“dona” em algum sentido? Que é uma filosofia que, ignorando outras
esferas sociais, dedica-se exclusivamente à religião?
Aqui encontramos uma primeira antinomia nessa área: para dizer
o que é filosofia da religião é preciso, filosoficamente, definir religião.
Ora, nesse sentido, é preciso fazer filosofia da religião para saber o
que é filosofia da religião. Consequentemente, tão vastas quanto as
definições de religião de cada pensador que apresentaremos, as no-
ções sobre o que seja filosofia da religião variam.
Ao mesmo tempo em que possuem muitas diferenças e especifi-
cidades, essas definições também possuem coincidências e conver-
gências. Primeiramente, o tema: religião. Mesmo que algumas tratem
de uma religião específica, e outras da experiência religiosa em geral,
essa temática está sempre presente. Em segundo lugar, há tendên-
cias identificáveis entre os autores, de modo que é possível agrupá-
los conforme suas abordagens. Isso não significa que o modo como
concebem a religião se identifica totalmente, nem que haja qualquer

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tipo de filiação entre um grupo de autores. Antes, uma reunião em
torno da abordagem que fazem da religião tem por objetivo sublinhar
aspectos pré-metodológicos como, por exemplo, o objetivo último de
se debruçar sobre a religião. Vejamos o que o teólogo e filósofo Paul
Tillich diz sobre a filosofia da religião:

O tema da filosofia da religião é a religião. Essa definição, apesar


de ser elementar, levanta, desde o princípio, um problema. Trata-
se, em termos gerais, do problema básico da filosofia da religião.
Na religião, a filosofia encontra algo que se resiste a se tornar tema
de sua disciplina, algo que a resiste. Quanto mais forte, pura e ori-
ginal seja uma religião, com maior ênfase pedirá para ser excetua-
da de toda a estrutura conceitual generalizadora. Ideias como “re-
velação” ou “redenção” são manifestamente opostas ao conceito
de religião. Elas expressam ações que ocorrem somente uma vez,
de origem transcendente e cujos efeitos transformam a realidade,
enquanto a palavra “religião” subordina toda uma série de ações
espirituais e criações culturais sob um conceito geral. “Revelação”
se refere a uma ação divina, “religião” a uma ação humana. “Reve-
lação” é um acontecimento (happening) absoluto, singular, exclu-
sivo e autossuficiente; “religião” tem a ver com feitos meramente
relativos, sempre recorrentes e nunca exclusivos. “Revelação” sig-
nifica a entrada de uma nova realidade na vida e no espírito; “re-
ligião” nos remete a uma realidade dada da vida e a uma função
necessária do espírito. “Religião” tem a ver com a cultura; “reve-
lação” com aquilo que está para além da cultura. Por essa razão, a
religião sente que sua essência mais profunda foi violada quando
a denominamos religião. Por essa razão, ela fecha sua mente ao
confrontar-se com a filosofia da religião, e se abre, na melhor das
hipóteses, à teologia, na medida em que essa não é somente uma
“ciência” da revelação. É assim como a filosofia da religião se vê
em uma posição muito peculiar diante da religião. Ela está obriga-
da a dissolver o objeto que deseja captar ou a declarar-se nula e

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vazia. Se não receber e aceitar da religião seu pretendido caráter
revelado, seu objeto escapa e não está mais falando de uma reli-
gião genuína. Se, por outro lado, aceita a revelação, se converte
em teologia (TILLICH, 1973, p. 9-10).

A filosofia da religião se constitui, como percebemos, a partir de


diferentes pressões com as quais deve lidar conforme se constitui.
Primeiramente, a tensão conceitual de instrumentalizar a filosofia em
torno de um objeto específico, por mais que essa disciplina tenha um
caráter universal e polissêmico. Em segundo lugar, ela precisa lidar
com a definição de religião que, além de também possuir diferentes
sentidos, tem seu conceito estabelecido a partir da própria reflexão
filosófica da religião, de modo que o mesmo objeto pressuposto deve
ser o fim de sua atividade. Como terceira pressão elencamos a pro-
blemática estabelecida por Tillich: a religião mesma é um objeto di-
fícil de se capturar, uma vez que, por um lado, sua definição não é
facilmente aceita pelos religiosos e, por outro, se a filosofia abordar
positivamente questões como revelação, ela se confunde com a teo-
logia. Todas essas dificuldades não tornam o estudo da filosofia da
religião algo impossível, mas, pelo contrário, fazem com que conheci-
mento acerca de sua história e de seus temas seja ainda mais impor-
tante e delicioso - como o suco de uma fruta rara.
Nesse material optamos por agrupar os autores conforme sua
abordagem sobre a religião. Isso significa que nosso caminho se
constrói a partir da história dessa disciplina, e não pelas suas temáti-
cas. Antes, todavia, tratamos acerca das relações historicamente es-
tabelecidas entre filosofia e religião, como dois diferentes modos de
abordagem da realidade. Posteriormente, passamos à apresentação
dos autores que se voltaram para o tema da religião sob os mais dife-
rentes ideais e objetivos.
Em primeiro lugar, em nosso percurso histórico, é preciso verifi-
carmos as condições a partir das quais a filosofia da religião surge.

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Isso porque, diferentemente da contemporaneidade, nem sempre a
religião foi facilmente identificada como uma área autônoma da so-
ciedade e passível de ser objeto de estudo. Os primeiros a identificar
a possibilidade de voltar-se para a religião como instituição passível
de pesquisa e crítica foram os idealistas alemães. A partir dessa esco-
la de pensamento tornou-se possível tomar a religião como um lugar
a ser pensado, e não somente um lugar de onde se pensa. Na esteira
dessa escola, diversos pensadores reinterpretam a religião de modo
crítico. Essa abordagem crítica não quer somente investigar a religião
por ela mesma, mas a partir da redução de sua causa a elementos
externos. Assim, a religião não seria causada por um sentimento de
fé ou algo que o valha, mas por questões antropológicas, econômicas
ou psicológicas. Aqui não está em jogo somente a discussão de um
tema, mas o julgamento sobre seu papel na sociedade e nos indiví-
duos.
Ainda que essas abordagens críticas da religião tenham grande
efeito tanto acadêmico quanto social, elas não encerram as possibili-
dades de pesquisa sobre esse objeto. Há, por outro lado, abordagens
compreensivas da religião que, em vez de reduzi-la a um elemento
exterior, buscam estudá-la em seus próprios termos, em sua escala
própria. Nesse ponto, a religião deixa de ter sua origem explicada por
sistemas alheios, mas é enxergada a partir de sua própria complexi-
dade histórica.
Por fim, reunimos alguns importantes pensadores que, com seus
olhares diversos, teceram importantes teorias sobre a religião. Neste
vasto grupo, apresentamos primeiramente aqueles ligados à moder-
nidade e à contemporaneidade filosófica que se dedicaram (alguns
parcialmente e outros completamente) ao tema da religião. No se-
gundo grupo que ajunta olhares diversos, reunimos alguns pensa-
dores da filosofia política que tecem um interessante diálogo entre o
discurso sobre a organização social e a religião. Nesse rico percurso,
buscamos conceituar o que é religião, bem como verificar suas inte-

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rações com aspectos culturais, existenciais e sociais. Por fim, nosso
objetivo é possibilitar os leitores e estudantes a discutir a religião fi-
losoficamente em seus mais diferentes sentidos, formas e aplicações.

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CAPÍTULO 1
AS RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E RELIGIÃO
Um dos primeiros passos para o estudo da Filosofia da Religião,
bem como para a sua atividade intelectual, é definir os termos da re-
lação entre filosofia e religião. Como nosso interesse não é propria-
mente fazer, mas conhecer filosofia da religião, é necessário enten-
dermos como tal relação se constituiu historicamente. Por isso, neste
capítulo abordaremos alguns aspectos históricos e teóricos sobre a
relação entre filosofia e religião, bem como sobre a religião enquanto
conceito a ser estudado.
Nossa trajetória se fará em três etapas: primeiramente apresen-
tando religião e filosofia como modos diferentes de pensamento,
depois demonstrando algumas aproximações e certos afastamentos
históricos entre os dois conceitos e, por fim, exibindo a crítica recente
ao conceito de religião. Com esse caminho, buscamos construir uma
sólida base sob a qual as diversas formas de filosofia da religião po-
derão ser entendidas de modo mais adequado.

1.1 FILOSOFIA E RELIGIÃO: MODOS DE PENSAR


As relações entre filosofia e religião são complexas e diversas ao
longo da história do Ocidente. Antes, todavia, de entrarmos em al-
guns pormenores dessa história, devemos postular os termos nos
quais ela se constrói, isto é, apresentar as categorias a partir das quais
ela se construiu. Por isso, o primeiro passo é relembrarmos como,
desde seu início, a filosofia se encontra ao lado da religião.
Para o filósofo francês Luc Ferry (1951-), a maior especificidade
da filosofia não é meramente o raciocínio crítico ou a elaboração de

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conceitos. Argumenta ele que diversas outras atividades humanas
também se elaboram a partir da criticidade lógico-argumentativa e
da conceituação de fenômenos da realidade. O que define a filoso-
fia, então? Ou, antes, por que se faz filosofia? Para Ferry, a filosofia
é uma busca por salvação. Conceituá-la nesses termos, a princípio,
também não resolve o problema de sua especificidade, uma vez que
as diversas religiões também se constituem a partir de uma busca se-
melhante. Mais do que pontuar semelhanças possíveis entre filosofia
e religião, aqui Ferry aproxima-as como concorrentes. Ora, se tanto
uma quanto a outra buscam uma espécie de salvação, elas se tornam
inimigas no oferecimento de seus caminhos. Antes de verificarmos as
consequências dessa separação, devemos questionar a Ferry qual se-
ria a diferença entre religião e filosofia. Eis sua resposta:

Por não conseguir acreditar num Deus salvador, o filósofo é antes


de tudo aquele que pensa que, se conhecemos o mundo, compre-
endendo a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quan-
to nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e
não por uma fé cega, vencer nossos medos. Em outras palavras,
se as religiões se definem como ‘doutrinas de salvação’ por um
Outro, pela graça de Deus, as grandes filosofias poderiam ser de-
finidas como doutrinas da salvação por si mesmo, sem a ajuda de
Deus (FERRY, 2007, p. 23-24).

Diferentemente do que se poderia imaginar, Ferry não defende


que, porque a filosofia se pretende um exercício de salvação sem
Deus, ela seria necessariamente ateia. Ora, a própria história da filo-
sofia demonstra o contrário: de Agostinho a Vattimo, diversos pensa-
dores se voltaram para a fé como fonte de inspiração para o exercício
filosófico.
Nesse ponto, a tese de Ferry é que, ainda que estejam ligados a al-
guma doutrina ou religião, os filósofos não aceitam que o conjunto de
dogmas preestabelecidos pelas instituições teológicas bastem para

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dar respostas à condição de mortalidade humana. Em segundo lugar,
para Ferry, o filósofo prefere o desconforto da lucidez à certeza cega
da fé. Isto é, o filósofo estaria mais interessado na liberdade radical
que a criticidade traria do que no conforto que a fé estabelece ao pos-
tular certezas imutáveis.
A filosofia, a partir dessa busca, se estabeleceria em duas verten-
tes: a teoria, buscando a compreensão daquilo que é; e a ética, pres-
crevendo um caminho em torno da justiça. Tanto em um quanto em
outro, o fim último é a sabedoria, justamente, o caminho da salvação
sem Deus. Apesar de renunciar a Deus, a filosofia não se coloca como
caminho de salvação contra Deus. Aqui, há uma sutil, mas importan-
tíssima diferença: a religião não deve ser combatida nem endossada,
mas deve ser posta à parte da busca pela sabedoria. Ferry esclarece
essa ideia:

A filosofia - todas as filosofias, por mais divergentes que às vezes


sejam nas respostas que tentam oferecer - promete que podemos
escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as
religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia
impede de viver bem: ela nos impede não apenas de ser felizes,
mas também de ser livres. Temos aí, como eu já lhe havia sugerido
com alguns exemplos, um tema onipresente entre os primeiros fi-
lósofos gregos: não se pode pensar ou agir livremente quando se
está paralisado pela surda inquietação que gera, mesmo quando
se tornou inconsciente, o temor do irreversível. Trata-se, pois, de
chamar os homens à ‘salvação’. Mas, como você já compreendeu,
essa salvação deve vir não de Outro, de um Ser ‘transcendente’
(o que quer dizer ‘exterior e superior’ a nós), mas, na verdade, de
nós mesmos. A filosofia deseja que encontremos uma saída por
nossas próprias forças, pela via da simples razão, se pelo menos
conseguirmos usá-la como necessário: com precisão, audácia e
firmeza (FERRY, 2007, p. 28).

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Nesse ponto, torna-se ainda mais claro que a concorrência que Fer-
ry aponta entre religião e filosofia na busca pela salvação não é uma
competição de sobreposição ou de suplantação, na qual uma tenta
encerrar as possibilidades de existência da outra. Ainda assim, a con-
corrência entre elas se estabelece de modo complexo. A tese de Ferry
é heterodoxa na história da filosofia, mas mesmo assim útil para com-
preendermos as relações entre esse modo de pensamento e a religião.
Como veremos mais adiante, filosofia e religião nunca deixam de
se relacionar. Enquanto a proposta de leitura de Ferry é mais radical,
apostando em um tipo de fratura fundamental entre as duas desde
o início dessa relação, há outras possibilidades de abordagem do
problema que invocam filosofia e religião de modos menos compe-
titivos. Nestas elas não seriam rivais, mas duas irmãs que caminham
por diferentes caminhos e mantêm relações amigáveis. Essa é a tese
de Alessandro Rocha (1973-2019), teólogo e filósofo brasileiro. Para
ele, tanto a filosofia quanto a religião, por meio da teologia, são mo-
dos distintos de crer e conhecer. Sua interpretação histórica dessa
relação se baseia em dois conceitos fundamentais: a univocidade e a
equivocidade. Respectivamente, esses termos dizem respeito à afir-
mação uniforme sobre algo que se coloca como única possibilidade
de tratar do assunto, e a compreensão múltipla sobre aquilo que se
fala, a partir de uma chave metafórica (e não metafísica como na uni-
vocidade). Partindo da distinção entre univocidade e equivocidade,
Rocha determina a relação entre filosofia e teologia, demonstrando
como a metafísica filosófica sustenta a univocidade teológica:

A formação do discurso teológico dogmático deve à filosofia grega


os elementos fundamentais de sua elaboração metodológica. Esta
filosofia, em contraposição à compreensão mítica que acentuava
a equivocidade hermenêutica, valorizando a metáfora como for-
ma adequada de falar de realidades que escapam ao cotidiano,
estabeleceu-se sobre a necessidade de afirmação da univocidade

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da verdade. Porém, o unívoco só poderia ser afirmado a partir de
uma fonte autoritativa que transcendesse as realidades culturais
(que são equívocas). Negando desta forma toda multiplicidade,
considerando-a como não-ser ou apenas sombra de uma realida-
de fundamental, seria possível afirmar uma sentença de abran-
gência universal. A fonte autoritativa que a filosofia grega gestou
para afirmar a univocidade foi a metafísica (ROCHA, 2017, p. 39-40).

Em outras palavras, a leitura de Rocha é que, ao mesmo tempo


em que a religião contribuiu com o pensamento mítico para a equi-
vocidade na filosofia, a filosofia contribuiu com a metafísica para a
univocidade na religião. Aqui, diferentemente do que em Ferry, a in-
terpretação não se baseia em uma relação animosa entre religião e
filosofia, mas em uma mútua troca epistemológica. Esse intercâmbio
não sustenta nenhuma hierarquia lógica, conceitual ou de importân-
cia, isto é, não faz com que religião seja melhor nem pior que filosofia.
Antes, demonstra como houve uma mútua contribuição para a for-
mação desses diferentes discursos a partir de diferentes momentos
históricos. Como veremos a seguir, esse encontro se dá na antiguida-
de perfazendo dois outros momentos históricos: na modernidade, na
qual tanto na religião quanto na filosofia prevaleceu a univocidade;
na pós-modernidade, na qual prevalece a equivocidade. Para que
a filosofia da religião seja justa com o objeto de seu estudo, não é
adequado que, de antemão, considerasse-o como inimigo. Fazê-lo
seria como, por exemplo, pedir para um cientista que tem medo de
ratos fazer experimentos com eles em um laboratório. Quando nos
fundamentamos em uma contraposição irrevogável entre filosofia e
religião, qualquer exercício de filosofia da religião se encontra fadado
ao fracasso. Por isso, a interpretação de Rocha, na qual cada um dos
termos indica um modo diferente de conhecimento que, por fim, po-
dem contribuir mutuamente, parece-nos mais adequada para fazer
filosofia da religião.

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1.2 UM POUCO DE HISTÓRIA
Não há uma data exata de início da filosofia da religião. Esse en-
contro poderia ser datado do encontro entre os primeiros líderes cris-
tãos judeus e gentios, relatado em Atos 15, no qual há uma discussão
filosófica sobre a importância dos costumes judeus para a conversão
ao cristianismo. Aqui, embora ainda dentro de um âmbito teológico,
há uma análise racional de uma questão religiosa que se confronta
com uma questão cultural externa aos seus próprios limites.
Esse movimento de extensão é característico da filosofia da reli-
gião: por um lado, a religião buscando o diálogo com a cultura que
não faz parte de seu ambiente; por outro, a filosofia buscando uma
compreensão crítica acerca dos limites e horizontes dos conceitos
teológicos que a religião articula. Embora o exemplo da narrativa
bíblica aponte importantes elementos para a compreensão do que
seja a filosofia da religião, ele ainda é insuficiente, porque se perfaz
como discussão teológica sobre a cultura. A filosofia da religião não
parte da teologia, mas do próprio constructo racional inerente ao ser
humano.
É frequentemente veiculada a ideia de que a filosofia surge na
Grécia antiga como uma tentativa de superação dos mitos. Para essa
teoria, a crítica à verdade estabelecida nos mitos religiosos a partir
do exercício prático da racionalidade humana foi o estopim da revo-
lução intelectual que se iniciava nos últimos séculos antes de Cristo.
Embora, de fato, haja elementos de superação da lógica mítico-racio-
nalista antiga, a filosofia não rompe totalmente com ela. Inclusive, a
acusação que leva Sócrates à condenação judicial de morte é de que
ele seria um corruptor da juventude com seu ateísmo - posição que o
filósofo nega veementemente.
Na tentativa de começar um novo modo de pensamento em seus
próprios termos, os primeiros filósofos, chamados pré-socráticos,
não apenas dialogavam com elementos religiosos de sua cultura

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como, muitas vezes, se apoiavam neles como fonte para sua própria
filosofia. Um dos precursores do pensamento filosófico, Parmênides,
afirmava uma lei lógica que serviu de base para toda a tradição me-
tafísica da filosofia: “o ser é, e que o não ser não é” (SANTOS, 2001, p.
67). Essa distinção, entretanto, não foi fruto apenas de sua investiga-
ção lógico-racional a partir da experiência sensível, mas surge a partir
de um diálogo com uma deusa não identificada.
De modo semelhante, a partir do relato de Platão, Sócrates é a
todo tempo importunado e inspirado pelo Daímon, uma espécie de
espírito conselheiro que lhe dizia como agir, e fazia com que ele evi-
tasse diversas ações ao longo de sua vida. Em seu julgamento, Sócra-
tes reconheceu a importância de sua relação com tal figura religiosa.
Na Idade Média, a filosofia clássica grega se encontra com a teolo-
gia cristã e, nesse ponto, iniciam-se com maior intensidade, ou mais
explicitamente, as interações entre filosofia e religião. O caso de Agos-
tinho de Hipona talvez seja o mais paradigmático. Astuto debatedor,
Agostinho se converte ao cristianismo depois de uma vida devassa e,
por isso, escreve suas confissões - livro tanto teológico como filosó-
fico. Além de relatar experiências pessoais, nessa obra o autor tece
importantes reflexões sobre a natureza de sua fé, bem como sobre
temas de natureza filosófica e antropológica, como o tempo e a me-
mória. É importante perceber que, com grande influência de Platão e
de Plotino, Agostinho pensa elementos religiosos a partir da filosofia
e temas filosóficos a partir da religião.
No Livro X de suas Confissões, Agostinho chega à questão da me-
mória como ponto fundamental de seu encontro com Deus. A partir
desse encontro, na memória, o autor pôde também desenvolver as
bases de uma teoria do conhecimento. Portanto, a questão da memó-
ria em Agostinho é de suma importância, pois somente através dela
é possível ao ser humano conhecer a si mesmo, a Deus e ao mundo.
Tal santuário imenso e amplo que se chama memória é o ponto de
partida do conhecimento que provém dos sentidos, mas não se limita

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a eles. Sobre os objetos empíricos, diz Agostinho, “residem em mim,
não os próprios objetos, mas as suas imagens” (AGOSTINHO, 2011, p.
224). Isso indica que o conhecimento empírico chega ao ser humano
por meio de imagens que só são conhecidas de fato quando guarda-
das no palácio da memória. Em outras palavras, os objetos em si não
são captados pela memória, apenas suas imagens são.

Agostinho de Hipona (354-430).

Todavia, a memória não pode somente ser pensada como lem-


brança de um conhecimento totalmente empírico: ela é também re-
miniscência. Entretanto, um passo ainda anterior a esse é necessário,
a saber, a postulação da existência de ideias inatas. As ideias mate-
máticas, por exemplo, são desse tipo: elas já se encontram na me-
mória antes mesmo de quaisquer conhecimentos empíricos. Nesse
sentido, Agostinho afirma que “o espírito é a memória” (AGOSTINHO,
2011, p. 228).
Ora, uma vez que há ideias inatas, portanto, possibilidade de co-
nhecimento a priori (para usar termos kantianos), as ideias se encon-
tram disponíveis ao acesso do ser humano na memória, e o inatismo
deve recorrer a ideia de espírito onde estão tais ideias, logicamente,
se segue que espírito é memória. Isso não somente para os conheci-
mentos matemáticos, mas, sobretudo, porque os afetos da alma tam-
bém atingem nossa memória em perturbações. Pressupondo ainda
a total diferença entre corpo e alma, Agostinho afirma que o conhe-

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cimento é ato inerente à segunda, de modo que “as noções não as
alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela
experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou
então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém as entre-
gasse a ela” (AGOSTINHO, 2011, p. 229).
A passagem da memória a Deus, portanto, requer um pequeno
passo no degrau que é a questão do esquecimento. Paradoxalmente,
o esquecimento é um fato inexplicável, para o filósofo africano: pois,
mesmo que ele seja real, sempre é possível lembrar-se dele, de modo
que o esquecimento seja a lembrança do que não se lembra mais.
Como Deus poderia habitar nesse paradoxo? Agostinho afirma que
Deus não pode habitar no esquecimento, mas, como na parábola da
dracma perdida (que é narrada por Jesus juntamente com a estória
da ovelha perdida e do filho pródigo), lembra-se de que algo foi es-
quecido. Entretanto, para que se esqueça é necessário ter conheci-
do anteriormente. Deus, portanto, é uma ideia inata, conhecimento
que o ser humano já possui e precisa se lembrar. Por isso, conhecer é
relembrar. Nisso também se encontra a dependência do pensamen-
to de Agostinho de Platão. Isso se demonstra, por exemplo, quando
o filósofo da patrística afirma que aqueles que buscam a vida feliz a
encontram na verdade e eles “não poderiam amar se não tivessem
na memória qualquer noção de verdade” (AGOSTINHO, 2011, p. 238).
Deus, assim, também reside na memória.
Desse modo, Agostinho possibilita que se construa na memória
uma teoria do conhecimento de profícuas implicações filosóficas. De
certo modo, suas ideias chegam a Descartes por meio da desconfian-
ça do conhecimento por meio dos sentidos, puramente, e da neces-
sidade de afirmação de ideias inatas para a justificação da possibi-
lidade de conhecimento. Todavia, a não radicalidade de Agostinho
quanto a primeira questão apresenta diversos ganhos em relação a
Descartes. Para o filósofo medieval, os sentidos podem enganar e o
corpo não tem parte primordial no conhecimento: quem conhece é

21
o espírito e a memória. Mas tal conhecimento não se dá sem os sen-
tidos e, consequentemente, sem o corpo, uma vez que é por meio
deles que o espírito pode captar as imagens dos objetos e das sen-
sações que ficaram acessíveis no palácio da memória. Assim, ele não
nega direta e ultimamente a validade dos sentidos, mas também não
constrói neles o fundamento último de sua teoria do conhecimento.
O conhecimento passa, para ele, crucialmente pela memória, onde
residem as imagens dos objetos empíricos, onde residem os conheci-
mentos matemáticos, e onde reside Deus, este mais íntimo de nós do
que nós mesmos. Na Idade Média, filosofia e religião estão unidos de
forma quase definitiva.
Um importante aspecto para tratarmos dessa união é verificar a re-
lação entre religião e cultura. Até a Idade Média, a religião era o meio
cultural de maior importância, de modo que todas as esferas da vida
cotidiana dos seres humanos eram mediadas pela religião. Quando
havia uma guerra, por exemplo, as preces eram fonte fundamental de
força para os exércitos. A relação entre os servos, os senhores, os no-
bres e as monarquias se estabelecia a partir de um fundamento reli-
gioso de escolha divina. O sucesso ou o fracasso das colheitas era atri-
buído ao humor de Deus em resposta às atitudes humanas. Em geral,
por mais que estivessem separadas em diferentes esferas (guerras,
organização social, produção agrícola etc.), todos os âmbitos da vida
comunitária medieval estavam influenciados pela lógica religiosa.
Na modernidade, essa lógica foi modificada. Com uma graduação
da laicidade dos Estados, a partir da Reforma Protestante no séc. XVI,
a religião começou a ser relegada a uma esfera dentre outras. Nessa
nova configuração, a cultura assume o papel de mediadora das ativi-
dades humanas e a religião passa a ser uma esfera separada e indivi-
dualizada. Assim como há diferentes âmbitos de nossas vidas, como
a economia, a arte, o esporte, o trabalho etc. A religião é apenas mais
um entre outros âmbitos - sem mérito ou demérito. A esse processo,
chamamos autonomização das esferas sociais. Para além da transfor-

22
mação social e cotidiana que essa autonomização implicou, também
é importante ressaltarmos que ela possibilitou uma radical mudança
no pensamento acadêmico - sobretudo o filosófico. Se antes a filoso-
fia voltava-se apenas para a natureza das relações entre os homens e
a natureza a partir da experiência religiosa amalgamada (conforme
apresentamos sobre a Idade Média), agora a filosofia tem possibili-
dade de pensar a partir de si mesma sobre essas diferentes esferas
sociais. Assim, surge a estética, ramo da filosofia que se volta para a
reflexão sobre o belo e a arte, por exemplo. O mesmo ocorre com a filo-
sofia política e, consequentemente, com a filosofia da religião. Uma vez
que ela não mais media as relações humanas, a religião pode ser obje-
to de estudo a partir de uma área externa de conhecimento: a filosofia.
Por isso, a filosofia da religião deve ser entendida como um fenô-
meno tipicamente moderno e contemporâneo: as condições de pos-
sibilidade desta atividade não estavam dadas nos momentos anterio-
res da história, ainda que se refletisse sobre as relações entre filosofia
e religião. Somente a partir de sua autonomização como esfera social,
a religião passou a ser objeto a ser conhecido, seja pela filosofia, seja
por outras disciplinas acadêmicas que nasciam naquele momento da
história, como a historiografia, a antropologia, a sociologia e a ciência
da religião. Assim, nossa investigação histórica acerca dos debates fi-
losóficos em religião não se inicia com Sócrates, Platão e Aristóteles,
nem com Agostinho e Tomás de Aquino, mas com o idealismo ale-
mão. Somente após as mudanças sociais que possibilitaram a auto-
nomização da religião, a filosofia da religião surge.
Falar em pensamento crítico sobre a religião, entretanto, não im-
plica negativamente um julgamento sobre sua validade. Antes, a crí-
tica aqui tem sentido de avaliação racional sobre seu funcionamento
interno bem como sua interação com outras esferas autonomizadas.
Isso significa que não se pensa filosoficamente a religião a fim de des-
legitimá-la, mas para aprofundar os conhecimentos sobre essa tão
importante parte da vida humana.

23
1.3 OS PROBLEMAS DO CONCEITO DE RELIGIÃO
Neste ponto, deve estar claro o fato de que a filosofia da religião
se inicia na modernidade, a partir do momento em que a religião se
torna autônoma em relação às outras esferas da sociedade. Isso sig-
nifica, em outras palavras, que religião é um conceito recente que diz
respeito a uma atividade humana que se encontra desde a pré-histó-
ria nas mais diversas comunidades.
Quais são as implicações de reconhecer a novidade que esse con-
ceito traz na modernidade? O que significa dizer que certa atividade é
religiosa? Quem delimita o que é religião e o que não é religião? Essas
e outras questões levaram uma série de estudiosos da religião, tam-
bém sob o viés da filosofia, mas, sobretudo, da ciência da religião, a
questionar a validade do conceito de religião como base para seu es-
tudo. Pioneiro nessa atividade crítica, o canadense Wilfred Cantwell
Smith é um dos autores que se posiciona mais radicalmente acerca
da validade do termo religião. Sua proposta é que ele seja abandona-
do. É importante entendermos que ele não propõe que se abandone
as práticas religiosas, mas que se abandone o uso do termo “religião”
na academia.

Wilfred Cantwell Smith (1916-2000).

Dentre os diversos motivos que elenca, primeiramente Smith co-


loca o histórico: não apenas a religião se autonomizou na modernida-

24
de como também a noção que possuímos de religião é moderna: ela
pressupõe uma separação entre poder religioso e poder estatal que
só se estabelece na modernidade. Para sustentar esse argumento, o
autor faz uma revisão dos diferentes sentidos que o termo “religião”
assumiu ao longo da história. Na raiz latina da palavra, religio signifi-
cava uma atitude de respeito, cuidado e dedicação perante um obje-
to ou uma atividade. Tal significado se mantém em variações em toda
antiguidade. Aqui, não há nenhuma referência a instituições religio-
sas ou à coletividade. Esse sentido se desenvolveu em diversos ou-
tros como adoração e rito realizado repetidamente. Em todas essas
noções, o termo religião representa uma atitude prática em relação a
um objeto sagrado.
Já na Idade Média, o termo religião passa a ser usado a partir de
um caráter mais subjetivo e individual. Ficino, por exemplo, usa o
termo pensando em uma espécie de instinto em relação a Deus. Os
reformadores protestantes Lutero e Zwínglio também pensaram so-
bre o termo em chave subjetiva: como fé e como relação individual
com Deus, respectivamente. Calvino, por sua vez, ao escrever suas
Instituições, sistematiza que a religião é uma atitude pessoal interior.
O caráter subjetivo e individual, ou pessoal, da religião ainda é hoje
reconhecido, mas não encerra o que os sentidos que o termo possui
hoje. Somente na modernidade “religião” ganha caráter institucional
e coletivo. Essa passagem tem uma carga extremamente negativa,
pois, segundo Smith, ela nasce de um processo de intelectualização
do termo para designar novos movimentos pejorativamente. Não por
acaso ela surge após os reformadores romperem com a hegemonia
Católica Romana no Ocidente. Eis o caráter pejorativo, conforme Smi-
th:

Para descrever a própria fé, fala-se de algo profundo, pessoal e


orientado ao transcendental. Quando se emprega então o termo
‘religião’, é isto que se pretende espontaneamente. Porém, quan-

25
do se rejeita o que outras pessoas apresentam - em que e por meio
do que não se encontra ou não se vê qualquer orientação trans-
cendental, pelo menos nenhuma que seja válida - então necessa-
riamente se conceitualiza isso em termos de suas manifestações
exteriores, pois essas são tudo de que dispomos. Nossa própria
‘religião’ pode ser piedade, fé, obediência, adoração e uma visão
de Deus. Uma ‘religião’ estranha é um sistema de crenças ou ritu-
ais, um modelo abstrato e impessoal de coisas observáveis. [...]
Religião como entidade sistemática, da forma como surgiu nos
séculos XVII e XVIII, é um conceito da polêmica e da apologética.
Disso surgem dois desdobramentos. Um é o plural ‘religiões’, que
é inviável enquanto pensarmos em algo que acontece no coração
das pessoas, como piedade, obediência, reverência, adoração
(nenhuma dessas palavras tem plural). O plural aparece - ele se
torna padrão a partir de meados do século XVII e comum a partir
do século XVIII - quando observamos de fora, abstraímos, desper-
sonalizamos e reificamos os diferentes sistemas de outras pessoas
nos quais não vemos sentido ou valor e cuja validade nem sequer
cogitamos aceitar (SMITH, 2006, p. 50).

Smith defende que nenhum religioso gosta de se reconhecer como


tal, uma vez que enxerga a própria religião sob o ponto de vista da fé
e da devoção interior, enquanto interpreta a religião do outro a partir
da ótica externa do dogma e do sistema de crenças. Dada a pejora-
tividade do termo, nenhum religioso se reconhece voluntariamente
como tal. Além disso, também afirma o autor que o termo religião
acaba sendo sempre genérico, pois, tentando falar de todas, não fala
de nenhuma especificamente. Isso se demonstra também historica-
mente, uma vez que o plural “religiões” se estabelece com interesse
apologético de defender a própria fé contra outras possibilidades re-
ligiosas. Mesmo em nosso cotidiano, não é raro ouvir que outros têm
religião, enquanto a religião de quem fala é somente uma “fé”.
Em resumo, Smith aborda três argumentos críticos fundamentais

26
contra o conceito “religião”: 1) O conceito é múltiplo: trata de diversas
coisas ao mesmo tempo e por isso é muito esparso; 2) o conceito é
recente: criado na modernidade, não é adequado para tratar de fe-
nômenos antigos e medievais; 3) o conceito é ocidental: pressupõe
um processo de secularização que inviabiliza seu uso para religiões
não-ocidentais.
Assim, a proposta de Smith é que o termo seja completamente
abandonado uma vez que, apesar de seu uso vulgarizado, ele atrapa-
lha mais do que auxilia os estudos de religião. Para ele, tais estudos
deveriam utilizar dois outros termos: fé, para tratar da perspectiva in-
terior da religião, como a adoração, a devoção e a individualidade em
relação à transcendência; e tradição cumulativa, para dizer respeito
à exterioridade como os dogmas, as doutrinas e os ritos práticos das
religiões. A radicalidade de sua proposta é tamanha, que fez com que
ela não fosse totalmente aceita no âmbito acadêmico. Todavia, as crí-
ticas que Smith tece sobre o conceito de religião são de grande valia e
devem, em todo caso, ser mantidas em mente em todo estudo sobre
religião. Sua historicidade é necessária para que nenhuma proposta
filosófica seja tomada como absoluta ou como verdade final: assim
como, no passado, os significados da palavra “religião” se modifica-
ram, podemos projetar que ainda serão outros no futuro - e nenhuma
das posições aqui apresentadas serão eterno consenso.

27
CAPÍTULO 2
A RELIGIÃO NO IDEALISMO ALEMÃO
O Idealismo Alemão foi um movimento filosófico da modernidade
tardia, compreendido entre os séculos XVIII e XIX. Também conhecido
como filosofia clássica alemã, ele reuniu uma série de filósofos que,
pondo fim ao monopólio da oposição entre racionalistas e empiristas,
buscou uma via média para o estabelecimento do pensamento filosó-
fico da época. Ao contrário do que se poderia imaginar, esse idealis-
mo não se prende a abstrações como modo puro de representação do
real, como se o ideal fosse proveniente da mente em contraposição à
precariedade do sensível. Antes, a noção de idealismo pressupõe, em
geral, que as ideias a priori determinam o modo como enxergamos o
sensível - sem, com isso, fazer um juízo de valor normativo.
Apesar de seus principais autores serem Kant, Fichte, Schelling e
Hegel, apresentaremos os pensamentos de Kant, Hegel e Schleierma-
cher, uma vez que neles a religião ocupa maior centralidade. Além
disso, eles são os mais influentes na tradição que se estabelece na
filosofia da religião. É necessário lembrarmos, antes, que a possibi-
lidade de fazer filosofia debruçando-se sobre a religião surge, justa-
mente, nesse período em que ela ganha autonomia junto a outras
esferas sociais.

2.1 I. KANT
Immanuel Kant (1724-1804) marcou a filosofia com seu pensa-
mento epistemológico. Isso porque, na tentativa de unir a tradição ra-
cionalista de Descartes com o empirismo de Hume (que o despertou
de seu sono dogmático, como Kant mesmo diz), estabeleceu novos
fundamentos para o pensamento da filosofia em geral.

28
A importância de sua tese central é comparada à revolução coper-
nicana. Copérnico sugeriu, no campo da astrofísica, que a terra girava
em torno do sol, e não o contrário. De modo análogo, Kant sugere que
não é nosso intelecto mental que se adapta aos objetos da natureza
no processo de compreensão, mas que as percepções desses obje-
tos são moldadas por nossas estruturas mentais. Ou: “os objetos têm
de regular-se por nosso conhecimento” (CRP, B XVI). Para Kant, o co-
nhecimento das coisas em si é impossível. Podemos acessar somente
como elas se mostram para nós, como aparecem: por isso conhece-
mos somente fenômenos.

Immanuel Kant (1724-1804)

Seu pensamento acerca da religião parte dessa matriz fundamen-


tal de sua filosofia transcendental. Por isso, antes de analisar a re-
ligião a partir das instituições sociais que se estabelecem, como as
igrejas, mesquitas e sinagogas, por exemplo, Kant parte para o pen-
samento acerca da teologia natural. Antes de tratar de uma divindade
específica, portanto, esse autor se vê impelido a abordar o que chama
de religião natural. Essa seria uma das estruturas mentais inatas que
todo ser humano possui. Em suma, ela nos possibilitaria, enquanto
critério, o julgamento dos fenômenos que se nos apresentam. Seus
objetivos com tal investigação não são apenas teóricos, mas tam-
bém práticos, uma vez que, para Kant, a religião natural sustenta, na
mente humana, a ideia de moralidade, na qual se incluem todos os
princípios morais. Por isso, ao tratar posteriormente do problema da

29
moralidade, na Crítica da razão prática, Kant postula uma ética do de-
ver extremamente rígida: se os parâmetros de julgamento são univer-
sais (porque estão presentes em todos os seres humanos), também
devem ser universais os preceitos éticos que guiam o agir humano.
Portanto, o interesse de Kant em conhecer tal religião natural é im-
portante porque, somente a partir dela, ele poderá conhecer também
a moralidade humana:

Segundo a religião moral, é um princípio o que se segue: que cada


um deve fazer tanto quanto está nas suas forças para se tornar um
homem melhor; e só quando não enterrou a moeda que lhe foi
dada ao nascer, quando se serviu da disposição originária para o
bem a fim de se tornar um homem melhor, pode esperar que será
contemplado mediante uma cooperação superior o que não está
na sua capacidade, e também não é absolutamente necessário
que o homem saiba em que esta consiste; talvez seja até inevitável
que, se o modo como ela ocorre foi revelado a uma certa época,
homens diferentes façam para si conceitos diversos e, claro está,
com toda a sinceridade. Mas então vale igualmente o princípio:
não é essencial e, portanto, não é necessário a cada qual saber
o que é que Deus faz ou fez em ordem à sua beatitude; mas sim
saber o que ele próprio deve fazer, para se tornar digno dessa as-
sistência (KANT, 2016, p. 57-58)

Para Kant, a teologia natural se divide em duas, uma racional e


uma empírica. Esta se encontra no terreno da revelação, uma vez que
Deus não pode ser objeto dos sentidos.
A primeira, em contraposição, apresenta mais elementos para
a exploração filosófica, uma vez que precisa desse modo de pensa-
mento para se estabelecer. A teologia racional, portanto, é assim por
ele dividida em três: a) teologia transcendental; b) teologia natural; c)
teologia moral. A primeira diz respeito aos conceitos inatos da mente
humana; a segunda aos conceitos físicos usados para pensar Deus; e

30
a terceira aos conceitos morais para fazê-lo. Cada um desses pontos
da classificação kantiana possibilita uma conclusão sobre o conceito
de Deus. A teologia transcendental se conclui na tese de que Deus é o
sumo ente, isto é, o fundamento da possibilidade de que tudo exista.
A teologia natural apresenta Deus como suma inteligência, isto é, au-
tor do mundo e responsável pela coerência interna e funcionamento
do universo. A teologia moral, por fim, diz que Deus é o sumo bem,
aquele que governa o sistema universal de acordo com a moralida-
de. Deus é, portanto, causa, autor e governante do mundo, respec-
tivamente. As lições kantianas sobre a doutrina filosófica da religião
se resumem, então, a analisar o percurso de cada uma dessas áreas
da religião natural que sustenta o discurso sobre quem seja Deus. As
consequências práticas disso se revelam na noção de moralidade que
é sustentada divinamente a partir da teologia moral.
Neste ponto, é importante diferenciar o Deus de que trata Kant e o
Deus da religião cristã. O Deus de que trata a filosofia não é um Deus
pessoal como o descrito nas narrativas bíblicas, por mais que grande
parte da tradição filosófica se assuma cristã. A percepção de Kant so-
bre Deus se insere em uma longa história do pensamento que, desde
Aristóteles, pensa Deus como uma causa necessária para a existência
do universo. Portanto, Ele seria um ente supremo que é necessário
logicamente. As adaptações desse deus filosófico à religião cristã são
realizadas, sobretudo, por Tomás de Aquino, na Alta Idade Média com
a Escolástica.
Nesse momento, também, surgem as tentativas filosóficas de pro-
var a existência de Deus. Embora sejam diversas, a totalidade das
provas se baseia na noção de necessidade, justamente seguindo a
ideia aristotélica: para que tudo seja como é, é necessária também
a existência de Deus. Em tais discussões, as passagens bíblicas que
tratam sobre Deus não chegam a ser citadas como fonte autoritativa
para a discussão teológica: antes, somente a lógica filosófica da rela-
ção entre realidade, necessidade e possibilidade são válidas. Portan-

31
to, o Deus de que trata Kant não é inteiramente o Deus sobre o qual
a teologia sistemática tece seus argumentos, mas uma necessidade
lógica para sustentar a universalidade dos conceitos filosóficos. Essa
diferenciação se demonstra no próprio texto kantiano:

A razão humana necessita de uma ideia da perfeição suprema que


lhe sirva como critério de acordo com o qual possa fazer determi-
nações. [...] O mundo depende de um Ser supremo. As coisas do
mundo, ao contrário, dependem mutuamente umas das outras.
Assumidos conjuntamente, eles constituem um todo completo. O
entendimento sempre tenta constituir uma unidade em todas as
coisas e ir em direção ao máximo. [...] Isso nos conduz à ideia do
Ser supremo. Representamos: 1). Um ser que exclui toda deficiên-
cia (se, por exemplo, imaginamos que uma pessoa é, ao mesmo
tempo, erudita e virtuosa, isto já é, decerto, um alto grau de per-
feição, mas no fim das contas ainda restam muitas deficiências).
2). Um ser que contém em si todas as realidades. Apenas por meio
disso o conceito é determinado precisamente. Este conceito pode
também ser pensado, ao mesmo tempo, como a natureza mais
perfeita na qual tudo que lhe pertence está em mútua combina-
ção (p. ex., entendimento e vontade livre). 3). Um ser que pode
ser considerado como o sumo bem, ao qual convém sabedoria e
moralidade. O primeiro é denominado perfeição transcendental,
o segundo, perfeição física e o terceiro, perfeição prática (KANT,
2019, p. 53-56).

Aqui, o projeto teológico de Kant se demonstra de modo mais cla-


ro: ele não pretende somente afirmar a existência de Deus, mas a sua
necessidade lógica como sumo bem para o estabelecimento da pos-
sibilidade humana de juízo através dos critérios mínimos que a ideia
de Deus enquanto Ser supremo fundamenta. Por exemplo, para jul-
garmos que um prato de comida é melhor do que outro, é necessário
que estabeleçamos critérios objetivos na avaliação dos pratos: sabor,

32
temperatura, textura, quantidade etc. Cada um desses só é possível
se, implícita ou explicitamente pressupormos o que seria perfeito em
cada um desses elementos: levemente picante, 43°C, pastoso e 350g,
respectivamente. A partir desses critérios considerados perfeitos, po-
de-se julgar os pratos: aquele que estiver mais próximo da perfeição
é melhor do que outro. Em todo caso, a ideia de perfeição, conforme
argumenta Kant, é necessária para que o julgamento seja possível.
Assim também na vida moral, natural e transcendental do ser hu-
mano: somente a partir do conceito de perfeição suprema e de Ser
supremo, é possível ao ser humano julgar o mundo que lhe cerca, seja
em suas necessidades básicas, como a escolha dos alimentos com os
quais se nutre, seja em dilemas éticos, como a questão da mentira
em casos extremos. Justamente por isso, diz Kant, “nossa moralida-
de precisa dessa ideia [de Ser supremo] para que lhe seja concedida
expressão” (KANT, 2019, p. 58). Sem a ideia de perfeição suprema, isto
é, de Deus, a religião natural, aquela que está em todos os seres hu-
manos de modo igual, não é possível. Segue-se que, para Kant, sem a
ideia de Deus não há nem moralidade, nem julgamento. Sem religião,
não há vida humana como conhecemos hoje.

2.2 G. W. F. Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um pensador sis-
temático. Isso não apenas significa que ele tinha certa organização
na hora de escrever suas ideias, mas que a própria noção de sistema
ocupa espaço central em sua filosofia. Para ele, a filosofia faz parte de
um caminho que, em constante evolução e gradual progresso, leva ao
saber absoluto.
Prova da centralidade da noção de sistema, é a sua teoria da dialéti-
ca. Em busca de entender tudo aquilo que existe, Hegel encontra a no-
ção de eternidade: mesmo que um objeto para o qual olhamos neste
momento não tenha existido sempre, ele vem de alguma outra coisa
que existiu anteriormente, e assim sucessivamente até a eternidade.

33
Por fim, devemos chegar à conclusão de que há algo que não foi
criado, o início do início de tudo. Hegel chama esse princípio de Uno.
Dele tudo deve poder proceder, uma vez que ele é o princípio de tudo
que há; e nele tudo deve estar contido, para que venha a ser em al-
gum momento. Mesmo que haja coisas contraditórias ou opostas,
ambas devem ter sido idênticas em algum momento, se todas pro-
vieram do Uno.
Se tudo é idêntico, pergunta-se Hegel, como surge o novo? Ele
mesmo responde: através da dialética. A dialética é um movimento
composto por três etapas: tese, antítese e síntese. A tese tem a ver
com a afirmação de algo; a antítese com a negação dessa primeira
afirmação; e a síntese com uma conciliação a partir de tal tensão. A
síntese, entretanto, não é somente um termo exatamente médio en-
tre tese e antítese, mas uma solução entre elas. Como o movimento
dialético é infindável, toda síntese se transforma em uma nova tese
que, por sua vez, será negada e transformada em síntese. E assim su-
cessivamente.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

Embora a dialética seja sua principal teoria, Hegel não iniciou sua
vida acadêmica estudando filosofia, mas teologia. Aos 18 anos, ele
inicia os estudos no seminário protestante de Tubingen para tornar-
se pastor. Sua primeira obra publicada, inclusive, tratava da vida de
Jesus. Alguns anos depois dessa publicação, Hegel é convidado a as-
sumir a cátedra de filosofia na universidade de Jena, na Alemanha.

34
Além dessa universidade, Hegel lecionou em Heidelberg e em Berlin.
Nesse período, o autor se dedica exclusivamente à filosofia, deixando
a teologia em segundo plano. Todavia, o tema da religião não deixa
de ser importante para ele em nenhum momento. Sobretudo quando
elabora seu sistema universal. Nele, a religião ocupa um importante
espaço: ela é o último passo antes do saber absoluto e faz parte da
última síntese antes do espírito absoluto. O sistema se divide em três,
uma vez que é dialético: ideia, natureza e espírito. Dentro desse últi-
mo, já o espírito subjetivo, o espírito objetivo e o espírito absoluto. A
religião ocupa lugar como elemento primordial da história mundial,
dentro do espírito objetivo. Diz Hegel:

A verdadeira religião e a verdadeira religiosidade só derivam da


eticidade, e são a eticidade pensante, isto é, que se torna cons-
ciente da livre universalidade de sua essência concreta. Só por ela,
e a partir dela, a ideia de Deus é sabida como espírito livre; fora
do espírito ético é, portanto, inútil procurar verdadeira religião e
religiosidade [...] A consequência imediata do anterior é que a eti-
cidade é o Estado reconduzido a seu interior substancial, que o
Estado é o desenvolvimento e a efetivação da eticidade; mas que
a substancialidade da eticidade mesma e do Estado é a religião.
Segundo essa relação, o Estado repousa na disposição ética, e
esta, na religiosa. Sendo a religião a consciência da verdade ab-
soluta, o que deve valer como direito e justiça, como dever e lei,
isto é, como verdadeiro, no mundo da vontade livre, só pode valer
enquanto tem parte naquela verdade, está subsumido sob ela, e
resulta dela (HEGEL, 1995, §552).

Aqui, Hegel sublinha a importância da religião tanto na eticida-


de quanto na construção do Estado. Primeiramente, religião é ética:
ela normatiza o modo como o ser humano deve viver e agir. Nesse
sentido, ela está na base da eticidade que constitui a história mun-
dial como história de progressiva libertação rumo ao absoluto. Em

35
segundo lugar, ela é consciência da verdade absoluta, uma vez que
compreende a totalidade dos deveres e da justiça que devem nortear
o Estado e a vida humana. Todavia, a religião tem o conteúdo certo
(verdade absoluta) mas em forma errada, porque ela não é conceitu-
al. Por isso ela é o último estágio antes do saber absoluto, e não cons-
titui o próprio saber. Assim, todo dever e toda lei derivam diretamen-
te da religião. Diz Hegel que “A eticidade do Estado e a espiritualidade
religiosa do Estado são, desse modo, para si, as firmes garantias recí-
procas” (HEGEL, 1995, §552). Há uma intrínseca troca entre religião e
formação do Estado que se demonstra na medida em que a religião
fornece os princípios éticos para o Estado e esse limita os poderes da
instituição religiosa.
Aqui, há uma importante diferença em relação ao pensamento de
Kant sobre a religião: em Hegel, não é preciso fazer teologia para tra-
tar de religião, nem recorrer a uma espécie naturalista desse conheci-
mento. Antes, a religião é também tratada como instituição objetiva
que pode ser observável nos mesmos moldes em que se pesquisa a
história mundial. Nesse sentido, ela não é apenas subjetiva e indivi-
dual, mas uma instituição coletiva que é passível tanto de reflexão
quanto de crítica. Quando Hegel afirma que a religião ainda não tem
todos os elementos que o espírito e o saber absoluto requerem, ele,
implicitamente, estabelece os limites da religião enquanto fenômeno
humano - e não divino. Essa atitude do autor frente à religião é impor-
tante não somente por seu conteúdo dentro do âmbito sistemático
de seu pensamento, mas também pelo modo como lida com tal fenô-
meno. Ora, justamente no momento em que a religião se autonomiza
como esfera na sociedade, deixando de ser mediadora das relações
sociais, culturais e econômicas, a crítica de Hegel estabelece a reli-
gião como uma instituição social ligada à ética, mas, ainda assim, im-
perfeita. Nas palavras de Hegel,

Enquanto na religião a determinação da consciência peculiar do

36
espírito não tem a forma do livre ser-outro, seu ser-aí é distinto de
sua consciência-de-si, e sua efetividade peculiar incide fora da re-
ligião. É, na verdade, um o espírito de ambas, mas sua consciência
não abarca a ambas de uma vez; - e a religião aparece como uma
parte do ser-aí, e do agir e ocupar-se - sendo sua outra parte a vida
em seu mundo efetivo. Como nós agora sabemos que o espírito
no seu mundo, e o espírito consciente de si como espírito - ou o
espírito na religião - são o mesmo, a perfeição da religião consiste
em que os dois espíritos se tornem iguais um ao outro; não apenas
que a efetividade seja compreendida pela religião, mas inversa-
mente, que o espírito - como espírito consciente de si - se torne
efetivo e objeto de sua consciência. Na medida em que o espírito
na religião se representa para ele mesmo, ele é certamente cons-
ciência, e a efetividade incluída na religião é a figura e a roupagem
de sua representação. Mas nessa representação não se atribui à
efetividade seu pleno direito, a saber, o direito de não ser roupa-
gem apenas, e sim um ser-aí livre independente. Inversamente,
por lhe faltar sua perfeição em si mesma, é uma figura determina-
da, que não atinge o que deve apresentar: isto é, o espírito cons-
ciente de si mesmo (HEGEL, 2014, §678).

2.3 F. SCHLEIERMACHER
Friedrich Schleiermacher (1768-1834) foi um importante intelectu-
al no período de Esclarecimento alemão. Dedicou-se tanto à filosofia
quanto à teologia, sendo reconhecido por K. Barth, mais tarde, como
o pai da teologia liberal. Ainda que essa afirmação seja polêmica, ela
é útil para compreendermos a importância de Schleiermacher para a
filosofia da religião e para o pensamento teológico em geral.
Suas contribuições a esses campos se deram, também, sob a for-
ma de divulgação do pensamento clássico, por meio da tradução de
diversos diálogos platônicos para o alemão. Diferentemente de Kant,
esse autor traça paradigmas mais intersubjetivos para a religião: não

37
apenas fonte de moral, a religião é para Schleiermacher um senti-
mento. Aqui, todavia, sentimento não deve ser confundido com um
mero afeto irracional que transpassa momentaneamente o ser huma-
no, como pena, felicidade ou tristeza. A religião é, para ele, um senti-
mento como uma intuição humana pelo infinito.

Friedrich Schleiermacher (1768-1834)

Antes de compreendermos melhor os significados dessa aborda-


gem, é preciso reconhecer a crítica que Schleiermacher tece aos seus
antecessores. Em sua principal obra, intitulada Sobre a religião, o au-
tor distingue a tese iluminista de que a religião seria meramente a
fonte da moral e da noção de metafísica. As atividades humanas po-
deriam ser categorizadas como volitivas, ligadas à ação, e cognitivas,
ligadas ao pensamento. Devido à importância que Schleiermacher
fornece à religião, ele não a acopla nem a uma categoria nem à outra,
mas defende que ela seria uma categoria própria de entendimento
humano. Assim, a religião não poderia ser tomada somente a partir
de um ponto de vista abstrato, isto é, que tratasse dela somente como
fruto das estruturas racionais humanas. Antes, cada religião histórica
e concreta deveria ser valorizada e tomada como importante ponto
de reflexão, uma vez que, nelas, o sentimento religioso se demons-
traria enquanto fenômeno histórico. Contra a tentativa de reduzir a
religião à moral ou à metafísica, Schleiermacher assim responde:

38
Eu vos pergunto, portanto, que tarefa desempenha vossa metafísi-
ca [...]? Ela classifica o universo e o divide em tais e quais seres, in-
vestiga as causas do que existe e deduz a necessidade do real, ela
extrai de si mesma a realidade do mundo e suas leis. A religião não
deve, portanto, aventurar-se nessa região; ela há de recusar a ten-
dência de estabelecer seres e a determinar naturezas, a perder-se
em uma infinidade de razões e deduções, a investigar as últimas
causas e a formular verdades eternas. E que tarefa desempenha
vossa moral? Ela desenvolve a partir da natureza do homem e de
sua relação com o universo um sistema de deveres, ela prescreve
e proíbe ações com um poder ilimitado. Por conseguinte, a reli-
gião tão pouco tem de intentar isto; não deve servir-se do univer-
so para deduzir dever, ela não deve conter nenhum código de leis
(SCHLEIERMACHER, 2000, p. 29-30).

Negando, então, a tese de Kant, para quem a religião seria a fonte


da moral, e a de Fichte, para quem a religião seria a fonte da metafí-
sica, Schleiermacher aproxima a religião do pertencimento a um fe-
nômeno histórico, não meramente abstrato. Com isso, sua definição
de religião se aproxima da noção de infinito: aqui, ela não reflete dire-
tamente um encontro com um outro eterno, infinito etc., mas diz res-
peito a um sentimento individual de conexão com o infinito e o uni-
versal. Em outras palavras, religião diz respeito a um sentimento de
pertencimento ao todo. Aqui, ele faz uma importante distinção entre
religião e religiões: a religião, enquanto sentimento, possui um viés
subjetivo muito forte, marcadamente individual e pessoal. Religiões,
por outro lado, não diz respeito ao acesso subjetivo de sentimento,
mas à historicidade concreta dos fenômenos religiosos que são ob-
serváveis através das mais variadas instituições com seus mitos, ritos,
doutrinas e dogmas. Nesse sentido, há tanto a religião interior quan-
to as religiões posteriores; e a relação entre elas se estabelece a partir
de uma configuração específica. A religião interior, presente em todos
os seres humanos, independente de sua expressa manifestação ou

39
não, sustenta logicamente as religiões exteriores. Em outras palavras,
as religiões exteriores só são possíveis porque existe, precisamente,
uma religião interior. Para Schleiermacher, as religiões históricas são
finitas, já que estão limitadas pelo tempo e pela geografia específica
de seus fenômenos concretos, enquanto a religião em sua essência,
isto é, a religião interior é infinita. Nas palavras do autor,

A religião não é só infinita devido a que a atividade e a passividade


alternem infinitamente; até entre a mesma matéria limitada e o
âmago - vós sabeis que isto constitui a única infinitude da especu-
lação - ela não só é infinita devido a que constitui uma tendência
ilimitada em direção à interioridade, como ocorre com a moral; a
religião é infinita segundo todas as perspectivas, uma infinitude
da matéria e da forma, do ser, de ver e de saber acerca disto. Este
sentimento deve acompanhar quem quer que tenha realmente re-
ligião. Todos devem ser conscientes de que a sua constitui tão só
uma parte do todo, de que, acerca dos mesmos objetos que lhe
afetam religiosamente, existem pontos de vista que são tão piedo-
sos e, todavia, são totalmente distintos dos seus e de que a partir
de outros elementos da religião dimanam intuições e sentimen-
tos relacionados aos que estes, quiçá, carecem completamente de
sensibilidade. [...] Só a tendência de intuição, quando vai dirigida
ao infinito, põe o âmago em um estado de liberdade ilimitada; só
a religião o salva das ataduras mais detestáveis da opinião e do
desejo (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 39-41).

Aqui, é importante ressaltar uma virada fundamental tanto para


a filosofia da religião quanto para os estudos sociais sobre religião.
Contrariando Kant, Schleiermacher deixa de lado o conceito de Deus
como principal temática da filosofia da religião, e adota o conceito de
religião mesma como objeto sobre o qual a filosofia deve se debruçar.
Para ele, toda figura divina individual não é mais que uma projeção
da religião interior. Nesse sentido, a religião e as religiões seriam no-

40
ções mais fundamentais do que a de Deus no estudo da religião. Hoje,
esse ponto pode parecer até mesmo um pleonasmo: a filosofia da re-
ligião pensa sobre a religião. Mas, no ponto alto do Esclarecimento
alemão, a virada que Schleiermacher realiza em seus discursos sobre
a religião é de aguda inovação. Esse se torna um dos pontos chaves
que, mais tarde, separa o estudo da teologia do estudo da ciência da
religião na Alemanha. Enquanto a primeira se ocupa do estudo hu-
mano sobre Deus, o segundo se volta para a religião enquanto fenô-
meno interior ou exterior, mas sempre histórico. A discussão sobre a
hierarquia entre Deus e religião, qual seria mais fundamental ou an-
terior ao outro, não faz mais sentido diante dessa histórica divisão.
Ainda que, por vezes, a filosofia da religião cruze a linha e volte para
seu âmbito antigo, a partir de Schleiermacher ela se estabelece como
um discurso de articulação racional sobre a religião em suas diversas
formas, e não sobre Deus.
Há, no pensamento desse autor, outra interessante perspectiva
que marca muitos autores posteriores a ele dispostos a pensar uma
filosofia da religião. Embora não o afirme categoricamente, Schleier-
macher intui que haja uma relação intrínseca entre teoria e prática no
estudo da religião. Em suas palavras: “não o sei; porém temo que tam-
bém a religião só possa ser compreendida mediante si mesma e que
sua estrutura especial e seu caráter distintivo não vos sejam claros
até que vós mesmos pertençam a alguma delas” (SCHLEIERMACHER,
2000, p. 162). Aqui, há dois aspectos importantes para a compreensão
da filosofia da religião de Schleiermacher. Primeiramente, ele diz que
para estudar a religião adequadamente é preciso pertencer a alguma
de suas manifestações históricas, aderir a um culto ou se aproximar
como participante de alguma instituição religiosa. Em segundo lugar,
ele afirma que a religião só pode ser compreendida mediante si mes-
ma, isto é, em seus próprios termos.
Como veremos adiante, grande parte da história da filosofia da re-
ligião se constitui com a tentativa de entender a religião reduzindo-a

41
a outras esferas sociais autônomas, como a economia ou a psicologia.
Em outras palavras, essa tentativa de categorizar a religião em termos
que não são seus próprios invalida o próprio objeto de estudo e, con-
sequentemente, torna-se um hábito acadêmico, no mínimo, injusto.
Por isso, a filosofia da religião não deve se debruçar sobre ela re-
duzindo-a a um conjunto de crenças e doutrinas como fosse se credo
filosófico. Antes, é preciso buscar entendê-la em sua complexidade
histórica e subjetiva, pensando, como Schleiermacher, tanto seus as-
pectos interiores quanto exteriores.

42
CAPÍTULO 3
ABORDAGENS CRÍTICAS DA RELIGIÃO
O caminho aberto pelo idealismo alemão de novas formas de es-
tudar a religião, desemboca em diferentes tendências ao longo da
modernidade e da contemporaneidade. No debruçar-se sobre a reli-
gião, a filosofia pode muito, inclusive passá-la por uma crítica. Aqui,
todavia, é preciso entender o sentido do termo “crítica”. Diferente-
mente do uso cotidiano da palavra, a crítica não quer aqui apontar
uma carga negativa da religião, difamá-la ou condená-la de modo
previamente estabelecido. Antes, devemos entender a crítica em um
sentido kantiano, isto é, como atividade de refletir sobre os limites
e horizontes de algum fenômeno. Por isso, o interesse dos autores
que apresentaremos a seguir não é meramente “falar mal da religião”,
mas se questionar sobre suas origens no ser humano e sobre sua fun-
ção na sociedade. Há, no entanto, uma particularidade que marca os
autores que se aproximam dessa abordagem: eles tendem a reduzir
a religião a uma esfera que não é a sua. Diferentemente da proposta
de Schleiermacher, para quem a religião deveria ser compreendida
mediante si mesma, os autores apresentados a seguir acreditam que
as explicações mais coerentes sobre a religião não se encontram na
própria religião, mas alhures. Com isso, para eles, não se deve olhar
para o fenômeno religioso para compreender a religião, mas para a
antropologia, a economia, o niilismo e a neurose. Ao se prenderem
aos limites éticos, epistemológicos e ideológicos da religião, os auto-
res que aqui abordamos apontam criticamente as possíveis lacunas
que fizeram surgir a religião historicamente e, alguns deles, apontam
os motivos pelos quais a religião como tal deve ser superada. Ainda
que não seja o principal objetivo, há aqui fortes repreensões ao com-
portamento religioso na sociedade.

43
3.1 L. FEUERBACH
Ludwig Feuerbach (1804-1872), nascido na Alemanha, inicia sua
vida acadêmica estudando teologia, mas larga esse curso para se
aventurar nas aulas de filosofia ministradas por Hegel. Dentre os in-
térpretes e seguidores do pensador do sistema, Feuerbach se desta-
ca como um dos maiores expoentes do que se convencionou chamar
“esquerda hegeliana”. Com algumas incursões também nas ciências
da natureza, Feuerbach publicou livros sobre diversos temas, desde a
questão da imortalidade, até grandes obras sobre a religião, passan-
do por leituras de pequenos momentos históricos, como a história de
Abelardo e Heloísa.
De fato, o tema da religião ocupa lugar de importância dentro de
sua obra como um todo, sendo abordada em diversos assuntos espe-
cíficos, como a obra de Lutero, o cristianismo, a religião em geral e a
teogonia, isto é, um estudo sobre o nascimento/surgimento dos deu-
ses. Dentre os herdeiros diretos da filosofia de Hegel, Feuerbach foi
um dos que mais se voltou a pensar sobre a religião. Por isso, como
veremos a seguir, sua crítica à religião foi reconhecida como última e
definitiva por outros grandes filósofos.

Ludwig Feuerbach (1804-1872)

A obra magna de Feuerbach é intitulada A essência do Cristianismo


e foi publicada em 1841. Nela, o autor tem por interesse argumentar

44
que a essência da religião é antropológica. Para tal, primeiramente o
autor trata sobre a essência do ser humano em geral, afirmando que
ele é a razão. Caracterizar o ser humano é, antes de tudo, diferenciá-lo
do animal a partir do que há de mais específico em sua constituição:
a racionalidade. Essa força do pensamento, da vontade e do coração,
nas palavras de Feuerbach, é um fim em si mesma, isto é, existe para
suprir os seus próprios anseios de razão, amor e livre-arbítrio. Por
isso, um ser humano exemplar é aquele que é consciente de si mes-
mo e de suas vontades mais intrínsecas. A consciência, para o autor,
é a forma mais perfeita do ser humano se auto confirmar, afirmar e
amar a si mesmo, uma vez que só existe em totalidade em um ser
completo. Assim, seguindo Hegel, Feuerbach afirma a importância da
autoconsciência como parte fundamental da própria formação do es-
pírito humano.
Quando conhece a si mesmo, o ser humano também conhece o
seu Deus. Para Feuerbach, aí reside a origem da essência antropoló-
gica da religião. Afirmá-la é dizer que a religião não surge a partir de
uma aparição transcendente ou sobrenatural de algo sagrado. Antes,
para ele, a religião surge de o próprio ser humano. Por isso a insis-
tência no fato de que a religião seria antropológica. O antropós (“ho-
mem” em grego) carrega em si a gênese da religião a partir da ideia de
Deus. Assim, para uma adequada compreensão da origem da religião
é preciso compreender também como o ser humano cria seus deuses.
Nas palavras de Feuerbach:

Como o homem pensar, como for intencionado, assim é o seu


Deus: quanto valor tem o homem, tanto valor e não mais tem o seu
Deus. A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de
si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa; ambos são
a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua
alma e o que é para o homem seu espírito, sua alma, seu coração,
isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pro-

45
nunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene
das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais
íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos
de amor (FEUERBACH, 2007, p. 44).

Em resumo, para ele a essência da religião reside na criação hu-


mana de deuses que são feitos à imagem e semelhança do próprio
ser humano. Quando, então, o ser humano fala de Deus, ele não fala
nada além do que uma superlativização dos predicados que aponta a
si mesmo. Assim, se diz que Deus é amor, quer dizer que o ser huma-
no, em perfeição, é amor. O problema não estaria, portanto, nos pre-
dicados atribuídos a Deus, mas no próprio sujeito a quem se atribui
os predicados.
Por isso, podemos afirmar que, para Feuerbach, a religião é um
tipo de alienação por projeção. Na medida em que o ser humano atri-
bui a Deus a perfeição daquilo que ele mesmo é, ele projeta sua pró-
pria essência em um ser superior. A crítica do autor é tão profunda
que implica pensar que toda religião não passa de idolatria, já que
busca a adoração e a sacralização do próprio ser humano projetado
em Deus. Se ele diz de Deus o que na verdade é sua própria essência,
o ser humano adora a si mesmo, por isso é idólatra. Com isso, a opo-
sição entre o humano e o divino seria meramente uma ilusão, já que
ambos dizem respeito à mesma coisa: a essência do ser humano. As-
sim, todo conteúdo da religião é humano, e não divino. Ou, em outras
palavras, a essência da religião é antropológica. Essa projeção se de-
monstra com maior clareza no exemplo da atribuição do amor como
uma qualidade intrinsecamente divina. Eis como Feuerbach retoma
o exemplo:

Tu crês no amor como uma qualidade divina, porque tu amas; tu


crês que Deus é um ser sábio e bom porque não conheces nada
melhor em ti do que bondade e razão e tu crês que Deus existe,
que Ele é sujeito ou essência (o que existe é essência, seja desig-

46
nado e definido como substância, pessoa ou de qualquer outra
forma) porque tu mesmo existes, porque tu mesmo és um ser. Não
conheces um bem humano mais elevado do que amar, do que ser
bom e sábio e da mesma forma não conheces a felicidade maior
do que existir, do que ser; porque a consciência de todo bem, de
toda felicidade está unida à consciência de ser, de existir. Deus é
para ti algo que existe, um ser, pelo mesmo motivo que é para ti
ser sábio, feliz e bom. A diferença entre as qualidades divinas e a
essência divina é apenas que para ti a essência, a existência não se
manifesta como um antropomorfismo, porque nesta tua existên-
cia está a necessidade que Deus seja para ti um existente, um ser;
mas as qualidades te aparecem como antropomorfismo, porque a
necessidade delas, a necessidade que Deus seja sábio, bom, justo
etc. não é imediata, idêntica à essência do homem, mas sim uma
necessidade que existe por meio da consciência que o homem
tem de si mesmo, por meio da atividade do pensamento (FEUER-
BACH, 2007, p. 49).

Por isso, a crítica de Feuerbach não é meramente um ataque à re-


ligião cristã, mas a todo tipo de crença em geral. O posicionamento
desse autor é reconhecidamente ateu: para ele, na medida em que
o ser humano percebe que constrói seus deuses à sua imagem e se-
melhança, e não o contrário, ele seria livre da alienação religiosa e
autônomo o suficiente para tomar o próprio destino nas mãos. Dessa
forma, a superação da religião seria a única forma de abertura do ser
humano à autoconsciência que, em suas palavras sobre a essência
desse ser, é o modo mais perfeito de existência. A dúvida lançada
sobre os predicados de Deus também implica uma dúvida sobre a
própria existência de Deus. Na lógica de Feuerbach, se ao falarmos
Dele estamos falando de nós mesmos, devemos duvidar não apenas
do que Ele é, mas se Ele, de fato, existe. O autor é tão incisivo nessa
questão que, no limite, chega a propor uma contradição insuperável
entre Deus e amor, apelando para que o ser humano escolha o amor

47
em vez de Deus. Seu apelo, nesse ponto, é claramente em favor de
um ateísmo prático para o ser humano: “Assim como Deus renunciou
a si mesmo por amor, devemos também renunciar a Deus pelo amor;
porque se não renunciamos a Deus por amor, renunciaremos ao amor
em nome de Deus e teremos, ao invés do predicado do amor, o Deus,
a entidade cruel do fanatismo religioso” (FEUERBACH, 2007, p. 80).
O ateísmo de Feuerbach, nesse sentido, se postula a partir de um
fundo ético-político, e não meramente de uma questão lógica. A ine-
xistência de Deus, para o autor, mesmo sem sentido lógico, não tem
por si só peso positivo que assegure um posicionamento antirreligio-
so. Todavia, na medida em que gera alienação e projeção contra o
autoconhecimento humano, a religião deveria ser abandonada para
que o crescimento humano rumo à perfeição se dê de forma efetiva.
Assim, a contraposição entre Deus e o amor que o autor estabelece
não é baseada em uma verdade cientificamente estabelecida que
comprova a inexistência de Deus, mas se fundamenta na impossi-
bilidade de justaposição entre os termos. Em outras palavras, para
Feuerbach, enquanto o ser humano se projeta em Deus, ele não pode
exercer com completude o amor que lhe é característico.

3.2 K. MARX
Karl Marx (1818-1883) foi um dos mais importantes filósofos da
modernidade. Isso não apenas por causa da extensão e do alcance
de seu pensamento, mas pela influência legada a grande parte da fi-
losofia contemporânea. Suas contribuições se mostram, para além da
filosofia, nas áreas da ciência política, da sociologia, do direito e da
economia, principalmente. Embora não tenha escrito nenhuma obra
específica sobre a religião, seu pensamento sobre o tema é de grande
perspicácia e extensão, uma vez que ele traça um interessante diálo-
go com a teoria de Feuerbach.
A questão da religião, em Marx, permeia diversas obras suas, de
modo que, para traçarmos suas linhas de interpretação, é preciso

48
percorrer algumas de suas mais importantes obras filosóficas, como
Crítica da filosofia do direito de Hegel, Teses sobre Feuerbach e A ideo-
logia alemã. Embora sua obra de maior fôlego, O capital, escrita em
três grandes volumes, trate ainda do tema da religião, nela estão re-
petidas as ideias que encontramos melhor formuladas alhures. Marx
possui duas grandes influências religiosas em sua vida pessoal: ape-
sar de ter nascido em família judia, seu pai se converte ao protestan-
tismo durante a infância de Marx. Devido a restrições da época, Hein-
rich Marx não poderia trabalhar como advogado sendo judeu, por
isso batiza-se em uma Igreja Luterana.

Karl Marx (1818-1883)

Dentre o vasto pensamento de Marx, sua tese mais fundamental


é de que “a história de todas as sociedades até hoje é a história das
lutas de classes” (MARX, 2012, p. 185). Isso significa, no conjunto da
obra, que a história se move dialeticamente, como intuiu Hegel, mas
não no movimento do espírito, mas por uma luta de classes. Entre
humano livre e escravizado, patrício e plebeu, senhor e servo feudais,
patrão e empregado sempre houve, para Marx, uma contradição an-
tagônica. De um lado os opressores e seus sistemas de ganho, e do
outro, os oprimidos e sua força de trabalho explorada. Ainda que essa
relação estabelecida por Marx não incida diretamente sobre a reli-
gião, esse tema só pode ser compreendido dentro do âmbito geral da
crítica de Marx ao capitalismo. Isso porque, como fenômeno huma-
no, é preciso compreender o mundo no qual o ser humano vive para
entender a religião. Mas, para além disso, é preciso pensar em como

49
transformar o mundo - e não apenas compreendê-lo. Essa é a mais
conhecida das Teses sobre Feuerbach que Marx postula: “Os filósofos
apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transfor-
má-lo” (MARX, 2012, p. 166). A 11ª e última tese sobre Feuerbach é,
apesar de seu tamanho, um resumo de seu programa para a filosofia:
contra a abstração filosófica moderna, Marx pensa o dever prático da
filosofia frente à luta de classes que move a história. Sua preocupação
não é meramente abstrata, mas prática e concreta: a transformação
do mundo. Por isso sua insurgência contra a crítica religiosa de Feuer-
bach na 6ª tese: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência
humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao
indivíduo singular. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações so-
ciais” (MARX, 2012, p. 165). Em outras palavras, aqui Marx afirma que
a essência humana não é a mera abstração solitária dos indivíduos,
mas está nas relações sociais dos indivíduos com outros indivíduos,
isto é, na coletividade da vida real.
Por isso, em Marx a crítica à religião não pode se basear em uma
projeção individual de si mesmo em Deus, como queria Feuerbach.
Consequentemente, a religião não deve ser explicada a partir da an-
tropologia, uma vez que essa parte de uma individualidade abstrata.
Ora, só é possível pensar em um ser humano fora de suas relações
sociais de modo abstrato, uma vez que, na vida real, concreta, desde
seu nascimento o ser humano está cercado de pessoas e com elas
interage a todo tempo. Assim, a religião não pode ser explicada antro-
pologicamente, mas sociologicamente ou, como veremos, economi-
camente. Por isso, continua Marx na 7ª tese: “Feuerbach não vê, por
isso, que a ‘índole religiosa’ é, ela mesma, um produto social, e que
o indivíduo abstrato, que ele analisa, pertence a uma determinada
forma de sociedade” (MARX, 2012, p. 165). Conclui Marx que a vida so-
cial é prática e não abstrata. Por isso a crítica de Feuerbach não seria
adequada. Qual seria a crítica adequada? Marx diz:

50
O homem, isso é, o mundo do homem: Estado, sociedade. Este
Estado, esta sociedade produzem a religião, uma consciência de
mundo invertida, porque são um mundo invertido. A religião é
a teoria universal deste mundo, seu compêndio enciclopédico,
sua lógica em forma popular, seu point d’honneur [sua questão
de honra] espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu
complemento solene, seu fundamento universal de consolação
e justificação. É a realização fantástica do ser humano, porque o
ser humano não possui nenhuma realidade efetiva verdadeira. A
luta contra a religião é assim, mediatamente, a luta contra aquele
mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa é ora
a expressão da miséria efetivamente real, ora o protesto contra a
miséria efetivamente real. A religião é o suspiro da criatura oprimi-
da, o ânimo de um mundo sem coração, bem como o espírito de
condição dos pobres de espírito. Ela é o ópio do povo. A abolição
da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência de sua
felicidade efetivamente real. A exigência de renunciar às ilusões
sobre sua condição é a exigência de renunciar a uma condição que
demanda ilusões. A crítica da religião é assim, em germe, a crítica
de um vale de lágrimas, cuja auréola é a religião (MARX, 2012, p.
75-76).

Aqui está uma das mais célebres frases de Marx que, na mesma
medida de sua popularização foi deturpada e erroneamente inter-
pretada. A afirmação de que a religião seria o ópio do povo só pode
ser compreendida dentro do contexto mais amplo do pensamento de
Marx. Isso porque a religião não pode ser interpretada como uma dro-
ga letal. Antes, para pensar a religião, segundo esse autor, é preciso
verificar o contexto no qual ela nasce e, consequentemente, reflete.
Primeiramente, Marx chama atenção ao fato de que o ser humano só
pode ser corretamente interpretado a partir de seu ambiente: o Esta-
do e a sociedade que o cercam. A religião seria produzida por esses,
Estado e sociedade, e não pela projeção humana. Há, aqui, uma in-

51
versão da crítica de Feuerbach: se esse olhava para o indivíduo para
conhecer a religião, Marx olha para a sociedade para conhecer a re-
ligião. Nesse sentido, ela é um reflexo popular da lógica que rege o
mundo: a da opressão que gera a luta de classes.
Para Marx, portanto, a religião é um epifenômeno, isto é, um fenô-
meno secundário que não pode ser explicado em si mesmo: é preciso
olhar para outro lugar para que se explique corretamente a religião.
Por isso, não faz sentido lutar contra a religião, pois ela seria somen-
te a expressão de algo maior. As ilusões religiosas são fruto de um
mundo de ilusões, causada pela alienação do trabalhador em relação
ao valor de seu trabalho. A figura do ópio não tem sentido de droga,
portanto, mas de modo ilusório de felicidade que é requerido pela
impossibilidade de uma felicidade plena. Por isso ela é o suspiro dos
oprimidos: na medida em que não pode superar a situação de opres-
são, o oprimido encontra na religião um protesto contra a realidade
estabelecida. Nesse sentido, para Marx, a religião é tanto uma forma
de luta contra a opressão, quanto um modo de respirar em meio a
uma sociedade opressora. Mais uma vez a luta contra a religião não
tem sentido: se ela é um modo ilusório de vida causado pela desi-
gualdade de classes, quando a luta de classes for superada, a religião
necessariamente desaparecerá. Sem opressão não há motivos para
os trabalhadores buscarem essa felicidade ilusória. Ou, nas palavras
do autor:

A verdadeira resolução prática desta fraseologia, a eliminação


destas representações [religiosas] na consciência dos homens,
só se realizará, repetimo-lo, por uma transformação das circuns-
tâncias e não por deduções teóricas. Para a massa dos homens,
isto é, para o proletariado, estas representações teóricas não exis-
tem; portanto, para esta massa já não é preciso resolvê-las e, se
ela alguma vez teve quaisquer representações teóricas tal como
a religião, há já muito tempo que foram dissolvidas pelas circuns-
tâncias (MARX, 1975, p. 91-92).

52
Nesse ponto, revela-se ainda com maior clareza como Marx enten-
de o ambiente no qual se deve abordar a religião. Não bastam elucu-
brações teóricas ou abstratas sobre o problema da crença e apontá-la
como logicamente incoerente para os trabalhadores. Antes, ela é uma
questão objetiva, concreta, real e apenas desaparecerá do horizonte
do proletariado na medida em que as circunstâncias das quais a re-
ligião é efeito também desaparecerem. Aqui, mais especificamente,
a religião também é concebida como uma forma de ideologia, isto é,
uma falsa consciência que limita o horizonte interpretativo das mas-
sas e fornece expectativas extramundanas que frustram os anseios
revolucionários no presente. Em outras palavras, para Marx, na medi-
da em que oferece um ganho após a morte, a religião funciona como
uma instituição legitimadora da estrutura social que fomenta a luta
de classes. Por isso diz o autor que a moral, a metafísica e a religião
são modos de ideologia que não têm autonomia alguma: seu desen-
volvimento é devido ao ser humano que lhe conferem realidade à me-
dida que suas relações materiais se dão de forma inadequadamente
alienada. A consciência que o ser humano possui delas, portanto, não
é outra senão um produto social fruto da situação em que o ser hu-
mano mesmo vive.

3.3 F. NIETZSCHE
Friedrich Nietzsche (1844-1900) apesar de começar sua carreira
como filólogo, ainda figura como um dos mais influentes filósofos
do séc. XIX. A potência e a polêmica de suas obras trouxeram à tona
grandes discussões acerca dos limites da filosofia. No caso específico
de Nietzsche, a questão se acentua porque o autor escreve grande
parte de suas obras em aforismos ou narrativas. Uma de suas mais
famosas obras, Assim falava Zaratustra, é escrita na forma de discur-
sos proféticos de Zaratustra anunciando a aplicação de conceitos que
Nietzsche havia desenvolvido em outras obras. Desse modo, diversos
autores ao longo da tradição filosófica rejeitaram a classificação de

53
Nietzsche como um filósofo, afirmando que ele seria um autor lite-
rário. Suas obras escritas em forma de aforismos também causaram
certo rebuliço quanto à sua posição filosófica.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Nesse ponto reside um indicativo do motivo pelo qual Nietzsche


optou por formas tão distintas à filosofia predominante em seu tem-
po. Há, no autor, a busca por uma coerência interna entre forma e
conteúdo filosófico. Se ele sustentava que a tradição metafísica oci-
dental deveria ser deixada de lado, o modo de fazer filosofia também
deveria ser modificado. Os objetivos de Nietzsche, nesse sentido, não
poderiam ser alcançados se ele não ousasse um tipo de superação da
forma tradicional de fazer filosofia. Portanto, contrariamente a Kant,
por exemplo, Nietzsche não pretendia escrever obras de grande por-
te nas quais um tema seria minuciosamente detalhado. Antes, para
ele era importante seguir certa ordem dos pensamentos e a vivaci-
dade que a precariedade da forma literária traria para a exposição de
suas teses. Todavia, não é por isso que se deva dizer que a filosofia de
Nietzsche segue certo irracionalismo ou seria sem lógica: o autor usa
as armas da razão contra o próprio império da razão estabelecido na
modernidade.
A relação de Nietzsche com a religião é conflituosa: seu pai foi pas-
tor luterano até sua morte, quando o filósofo tinha cinco anos, mas,
mais tarde, o autor empenha-se em diversas críticas à religião. Dife-

54
rentemente de Feuerbach, Marx e Freud, que apresentaremos a se-
guir, Nietzsche não critica a estrutura religiosa em geral, mas ataca
com grande voracidade alguns dogmas básicos do cristianismo e a
história mesma dessa religião. Para ele, o cristianismo precisaria ser
superado para que o ser humano se libertasse novamente para a vida
concreta. Nesse ponto, sua crítica ao cristianismo se confunde com
sua crítica à filosofia. Explica Nietzsche que muitos conceitos que
sustentam a tradição teórica da metafísica são, também, conceitos
teológicos. Por isso, uma de suas passagens mais conhecidas diz res-
peito ao anúncio da morte de Deus. Deus, aqui, não é o Deus pessoal
que o Cristianismo prega, mas a noção teórica que, representando a
realidade última, sustenta a metafísica. Assim, se Deus morreu, não
há mais garantia das verdades últimas que se estabeleciam a partir
dele. Em sua passagem, diz Nietzsche:

Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deu-


ses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o
matamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos?
O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra san-
grou inteiro sob os nossos punhais — quem nos limpará este san-
gue? Com que água poderíamos nos lavar? A grandeza desse ato
não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos
nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca
houve um ato maior — e quem vier depois de nós pertencerá, por
causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história
até então! (NIETZSCHE, 2012, p. 138).

É importante ressaltar, nesse ponto, que a morte de Deus não pode


ser afirmada ultimamente por Nietzsche como uma verdade meta-
fisicamente estabelecida. Se assim o fizesse, o autor incorreria em
uma grave incoerência: se nada pode mais ser afirmado com peso de
eternidade, a morte de Deus também não poderia ocupar esse lugar.
Por isso, Nietzsche recorre à forma da literatura para, na boca de um

55
louco, colocar a morte de Deus como um anúncio. Assim, o sentido
da morte de Deus não deve ser interpretado, primariamente, como
um atestado de ateísmo por parte desse autor, mas um movimento
que gera expectativa para o fim de uma tradição filosófica até então
prevalecente. Por mais provocativa que seja a ideia de um Deus que
morre, Nietzsche ainda não tece nesse ponto uma larga crítica ao cris-
tianismo como faz em outra obra primordial, O anticristo.
Nessa obra, sua crítica é mais enfática e direcionada a diversos
dogmas e ideias fundamentais do cristianismo. Para tal, Nietzsche
começa apresentando uma leitura heterodoxa da Bíblia, sobretudo
do Novo Testamento, para demonstrar que o cristianismo histórico
deixou de seguir as ideias de Jesus para veicular uma doutrina pró-
pria e anticristã: “O ‘reino do céu’ é um estado do coração - não algo
que virá ‘acima da terra’ ou ‘após a morte’ [...] O ‘reino de Deus’ não
é nada que se espere; não possui ontem nem depois de amanhã, não
virá em ‘mil anos’ - é a experiência de um coração; está em toda parte,
está em nenhum lugar” (NIETZSCHE, 2016, p. 41). Aqui, o autor nega
a possibilidade de vida eterna assegurada pelo cristianismo - não por
uma mera crítica, mas por acreditar em uma leitura imanente do rei-
no de Deus. Esse exemplo se repete com diversas noções bíblicas: a
redenção, a morte de Jesus, os milagres etc. Em resumo, Nietzsche
acredita que “os evangelhos são inestimáveis como testemunho da
irresistível corrupção no interior da comunidade inicial” (NIETZSCHE,
2016, p. 50), de modo que ele aprova o que Jesus fez, mas não a re-
cepção da comunidade e seus desenvolvimentos posteriores. Ou, de
maneira ainda mais direta:

Volto atrás, conto agora a história genuína do cristianismo. Já a pa-


lavra ‘cristianismo’ é um mal-entendido - no fundo, houve apenas
um cristão, e ele morreu na cruz. O ‘evangelho’ morreu na cruz. O
que desde então se chamou ‘evangelho’ já era o oposto daquilo
que ele viveu: uma ‘má nova’, um disevangelho. É absurdamente

56
falso ver numa ‘fé’, na crença na salvação através de Cristo, por
exemplo, o distintivo do cristão: apenas a prática cristã, uma vida
tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã… (NIETZS-
CHE, 2016, p. 44).

Fez-se necessária essa diferenciação entre Cristo e cristianismo,


no pensamento de Nietzsche, para entendermos que suas críticas se
dão contra a instituição cristã, e não necessariamente à fé. Por isso
ele não postula impossibilidades para a religião - antes, tece comen-
tários sobre como ela seria possível, como no célebre aforismo “eu
não poderia crer num deus se ele não soubesse dançar” (NIETZSCHE,
2014, p. 52). A crença, portanto, não é ilógica para Nietzsche, mas
a crença no cristianismo é mais maléfica do que benéfica, para ele.
Isso porque, além das interpretações erradas sobre a vida de Jesus,
o cristianismo teria uma relação direta com o platonismo: “niilista e
cristão: duas coisas que rimam, e não apenas rimam…” (NIETZSCHE,
2016, p. 74). Aqui, ele critica a crença na eternidade e no além, como
componentes que, usados por Paulo, matam a vida. Para Nietzsche,
o cristianismo e o platonismo resultam em niilismo, isto é, são falsos
e destinam o ser humano a um nada insuperável, porque prometem
fatos ilusórios retirando a vida das mãos do ser humano. No pensa-
mento do autor, o presente é o único tempo possível para viver, já
que nada é assegurado no futuro. Por isso, é importante que o ser
humano mantenha uma vitalidade e uma posição de afirmação da
vida em suas diversas contradições, alegrias e sofrimentos. Somente
abraçando o próprio destino (como prega na doutrina do amor fati)
é possível ao ser humano superar os próprios medos e inseguranças
que o limitam de viver a vida.
Na medida em que deturpa a possibilidade humana de viver a
própria vida, o cristianismo, para Nietzsche, “é um instrumento ca-
pital na intensificação da decadência, como multiplicador da miséria
e como conservador de tudo que é miserável” (NIETZSCHE, 2016, p.

57
13). Isso se dá, em último caso, porque o “cristianismo é platonismo
para o povo” (NIETZSCHE, 2009, p. 8). A relação entre cristianismo e
platonismo se estabelece, para o autor, no momento em que ambos
confiam em um segundo mundo, extraterreno, que sustenta a reali-
dade imperfeita desse mundo em que vivemos. Para o autor, assim
como Platão postulou a doutrina dos dois mundos, o inteligível no
qual estão as formas perfeitas, e o sensível, no qual vivemos e que
se manifesta através de acidentes imperfeitos; o cristianismo postula
um além no qual reside a perfeição das coisas completas e pelo qual
devemos ansiar e resignar-nos desse mundo. Uma das mais potentes
críticas de Nietzsche à crença no “além”, vem nas palavras de Zara-
tustra:

É deste modo que falo aos que acreditam em além-mundos. Sofri-


mentos e impotência criaram todos os além-mundos, e esse breve
delírio de felicidade que só conhece quem mais sofre. A fadiga que
quer de um salto, de um salto mortal, alcançar seu extremo, essa
pobre fadiga ignorante, que não quer outra vez querer mais: ela
criou todos os deuses e todos os além-mundos. Crede-me, meus
irmãos! Foi o corpo que desesperou do corpo: que apalpou com os
dedos do espírito extraviado as últimas muralhas. Crede, meus ir-
mãos! Foi o corpo que despertou da terra, que ouviu falar o ventre
do ser. Quis então traspassar com a cabeça as últimas muralhas, e
não só a cabeça: quis passar inteiramente ao “outro mundo”. Mas
esse “outro mundo”, oculto aos homens, esse desumanizado e
inumano mundo, é um nada celeste; e as entranhas do ser não fa-
lam ao homem, a não ser que elas falem a própria voz do homem
(NIETZSCHE, 2014, p. 39).

Nesse ponto, fica ainda mais claro o problema que Nietzsche


aponta no cristianismo: a seu ver, a crença em mundos “além” do que
vivemos é uma ilusão que sustenta a negação da vida terrena e castra
o ser humano de viver conforme as potências que possui. Por isso, diz

58
ele, que os outros mundos nada mais são do que nada celestes. Aqui,
o autor recorre a uma explicação: o medo da morte e a impotência de
realizar todos os seus desejos fazem com que o ser humano crie fan-
tasias projetadas em um mundo onde os desejos são possíveis. Dessa
forma, crer nesses outros mundos não seria mais do que deixar-se
levar pelos sentimentos pequenos de medo e insegurança, criando
uma ilusão para suprir essas necessidades. Aqui, cristianismo e pla-
tonismo encontram-se mais conectados ainda: ambos são criações
fantasiosas que retiram do ser humano a possibilidade de viver afir-
mando a própria vida. Para Nietzsche, a vida é o fim último, e o corpo,
a grande razão.

3.4 S. FREUD
Sigmund Freud (1856-1939), apesar de não ter sido um filósofo
propriamente dito, teceu importantes considerações filosóficas sobre
a religião - e por isso deve também aqui ser apresentado. O desen-
volvimento de seus pensamentos na área da psiquiatria deu início à
psicanálise, um campo clínico que investiga a psique humana para-
lelamente à psicologia. Embora estejam próximas, psicologia e psi-
canálise são independentes ainda hoje, como postulou Freud desde
sua criação.
Apesar de ter nascido em uma família judia, Freud desde os pri-
meiros escritos afastou-se da religião e, contra ela, teceu inúmeras
críticas. Como parte integrante e fundamental dos pensadores de sua
época, o pai da psicanálise fez escola e encontrou reconhecimento
científico ainda em vida. Dentre as personalidades mais influencia-
das por seu pensamento, podemos apontar, diretamente, os psicana-
listas Carl Jung e Jacques Lacan, e a escola freudomarxista ligada ao
pensamento social em Frankfurt, como Adorno e Horkheimer. Além
desses, Freud manteve uma intensa correspondência com um pastor
protestante Oskar Pfister, que além de religioso também era psica-
nalista. As cartas entre eles demonstram mais tolerância do que os

59
escritos publicados por Freud em vida, nos quais trata a religião como
uma espécie de doença da humanidade.

Sigmund Freud (1856-1939)

A questão da religião, em Freud, só pode ser entendida dentro do


escopo de seu projeto psicanalítico. Para o autor, o ser humano não é
constituído somente de sua consciência, mas de três diferentes par-
tes: o inconsciente, chamado Id; sua consciência, chamada Ego; e a
autoconsciência, chamada Superego. Diferentemente do assumido
até a época, Freud defendia que o inconsciente é o responsável pe-
los impulsos humanos, de forma geral. Assim, quando uma criança
chora, por exemplo, ela o faz inconscientemente para que algum de
seus desejos seja atendido, já que ela ainda não aprendeu a lidar com
a própria consciência e nem a se comunicar de maneira adequada.
Dessa forma, o Id é movido pelos desejos que temos, mesmo que não
saibamos que os possuímos. O Ego, diferentemente, não é governa-
do pelos desejos, mas pela realidade. O impulso gerado pelo Id pode
nos levar a tentar roubar um objeto que desejamos, por exemplo,
mas o Ego confronta tal desejo com a realidade e relembra que, se o
fizermos, poderíamos ir para a prisão. Nesse sentido, o Ego é racio-
nalmente consciente e julga de acordo com a realidade. O superego,
por fim, se constitui como uma autocrítica da relação entre Id e Ego,
mediando os momentos nos quais a realidade deve se sobrepor ao
desejo e nos quais o contrário deve acontecer. Nesse sentido, ele tam-
bém está ligado à consciência humana e, de modo mais específico, à
autoconsciência.

60
A religião não é analisada por Freud a partir de nenhuma dessas
estruturas da mente humana específica. Isso se dá porque o ponto
de partida de Freud para o tratamento do fenômeno não é subjetivo,
mas objetivo. Assim, a religião é, primordialmente algo externo ao ser
humano que encontra correspondência em suas estruturas internas.
Em Totem e tabu, o autor estipula algumas teorias sobre o comporta-
mento social do ser humano em chave psicanalítica através de uma
relação entre os dois termos que compõem o título de sua obra. Tan-
to totem quanto tabu estão relacionados ao caráter do sagrado em
sociedades antigas (denominadas na época como primitivas). Nas
palavras de Freud,
O que é o totem? Via de regra é um animal, comestível, inofensivo,
perigoso, temido, e mais raramente uma planta ou força da na-
tureza (chuva, água), que tem uma relação especial com todo o
clã. O totem é, em primeiro lugar, o ancestral comum do clã, mas
também seu espírito protetor e auxiliar, que lhe envia oráculos, e,
mesmo quando é perigoso para outros, conhece e poupa seus fi-
lhos. [...] A relação com o totem é o fundamento de todas as obri-
gações sociais para um australiano [aborígene]; ela se sobrepõe
ao fato de pertencer a uma tribo, por um lado e ao parentesco san-
guíneo, por outro lado [...]. O significado de ‘tabu’ se divide, para
nós, em duas direções opostas. Por um lado, quer dizer ‘santo,
consagrado’; por outro, ‘inquietante, perigoso, proibido, impuro’.
O contrário de ‘tabu’, em polinésio, é noa, ou seja, ‘habitual, aces-
sível a todos’. Assim, o tabu está ligado à ideia de algo reservado,
exprime-se em proibições e restrições, essencialmente. A nossa
expressão ‘temor sagrado’ corresponde frequentemente ao senti-
do de ‘tabu’ (FREUD, 2013, p. 8-12).

Para Freud, a relação entre as noções de totem e de tabu, isto é,


uma origem comum que paira sobre a comunidade e o sagrado proi-
bido, configura as bases do que na modernidade se torna o Estado
nacional. Ao mesmo tempo inacessível, protetor e sacralizado, o

61
Estado surge de uma justaposição entre termos que advém de uma
experiência religiosa do povo. Embora a religião não seja a temática
primordial de seu escrito, nele já podemos antever algumas impor-
tantes características de como o psicanalista trata o tema: primeira-
mente como forma de legitimação da estrutura social e de mediação
entre o desejo e a realidade. Ainda que totem e tabu se formem em
um momento incipiente da religião, eles apontam para um fato inegá-
vel em Freud: essa forma que se torna, mais tarde, religião é movida
por um princípio intitulado “onipotência dos pensamentos”. Ela crê
que, somente por pensar e desejar algo, tal coisa se tornará realidade.
Essa noção se aproxima do clássico conceito cristão de fé. Na medida
em que gera uma crença de que seus pensamentos se tornarão ver-
dade, a magia gera um tipo de neurose obsessiva. Para Freud, isso se
inicia na antiguidade na fase animista (relacionada aos povos aborí-
genes e polinésios, por exemplo), mas prossegue na fase “religiosa”
do mundo. Se antes tal onipotência dos pensamentos se explicava
pelo próprio ser humano, agora ela encontra sua origem na ideia de
um Deus que supre a diferença entre desejo e realidade através de
sua onipotência.
A relação entre fases da história humana e fases do desenvolvi-
mento dos seres humanos, para Freud, é total: o animismo corres-
ponde a uma primeira infância, na qual o inconsciente comanda por
impulsos libidinais todas as atitudes; passando à fase religiosa, ain-
da infantil, na qual o pai se torna centro de referência e, consequen-
temente, de castração do ser humano; e a fase científica, que Freud
acreditava haver alcançado, que corresponderia à maturidade rumo
à perfeição e à sabedoria. Essa metáfora também é por ele utilizada
em O futuro de uma ilusão, texto publicado pelo autor em 1927. Nesse
ensaio, Freud se propõe a analisar a religião a partir da história da
cultura/civilização. Para o autor, a história da civilização é uma histó-
ria da renúncia dos desejos do indivíduo em favor da coletividade. Ao
mesmo tempo que o indivíduo se reprime pela cultura, ele também

62
se beneficia, uma vez que adquire senso de pertencimento ao grupo
pelo qual se deixa ser coagido. Tal senso, por sua vez, se compõe por
uma série de elementos psíquicos que a própria cultura impõe ao in-
divíduo. Nestes, a religião tem um lugar especial: “o mais importante
elemento do inventário psíquico de uma cultura: suas ideias religio-
sas no mais amplo sentido - em outras palavras, a serem justificadas
mais adiante, suas ilusões” (FREUD, 2014, p. 245).
A religião, portanto, desde o início deste escrito de Freud é consi-
derada uma ilusão. Por isso, ele se pergunta sobre o valor das ideias
religiosas, isto é, ele reflete sobre os motivos que fazem a religião ser
algo tão comum em muitas culturas ao longo da história. Qual seria
sua função psíquica? Primeiramente, diz Freud, é preciso ter em men-
te que a coerção individual exigida pela sociedade é demasiadamen-
te pesada, de modo que é preciso algum alívio para os indivíduos. Por
isso as religiões apelam para uma figura paterna que seria, ao mesmo
tempo, impositora de limites e protetora. Sobre essa ambivalência
peculiar, Freud diz:

Ele próprio [pai] constitui um perigo, talvez devido à anterior rela-


ção com a mãe. Assim, a criança o teme tanto quanto anseia por
ele e o admira. Os sinais dessa ambivalência da relação com o pai
se acham profundamente gravados em todas as religiões, como
também mostrei em Totem e tabu. Quando o indivíduo em cres-
cimento percebe que está destinado a permanecer uma criança,
que nunca pode prescindir da proteção contra superiores pode-
res desconhecidos, empresta a esses poderes os traços da figura
paterna, cria deuses que passa a temer, que procura cativar e aos
quais, no entanto, confia sua proteção. Dessa maneira, o motivo
do anseio pelo pai equivale à necessidade de proteção contra os
efeitos da impotência humana; a defesa contra o desamparo in-
fantil empresta à reação ao desamparo que o adulto tem de re-
conhecer - que é justamente a formação da religião - seus traços
característicos (FREUD, 2014, p. 258).

63
Aqui, mais uma vez Freud recorre à relação entre infância e reli-
gião, de modo que, para ele, essa cria uma figura paterna para susten-
tar as ilusões de segurança e potência, contra o inegável desamparo
do indivíduo frente à cultura e à sociedade. A partir desse momento,
seu tom passa a ser menos analítico e mais crítico. Se a religião cria
um pai protetor, ela é um modo de fuga da realidade e, consequen-
temente, é uma ilusão, cujo segredo da força duradoura ao longo da
história é o desejo. Na medida em que a religião acredita que os de-
sejos inconscientes podem ser levados à cabo, essa “onipotência do
pensamento”, para retomar o termo de Freud, ela se espalha como
uma espécie de doença que nega a realidade em favor de sua ilusão.
Nas palavras do autor, “a religião seria a neurose obsessiva universal
da humanidade, originando-se, tal como a da criança, do complexo
de Édipo, da relação com o pai” (FREUD, 2014, p. 284). Esse sistema
de ilusões criado pela religião não seria outro que não o próprio re-
púdio à realidade que, ao ser negada pela ilusão do desejo, não tem
mais a palavra final a respeito do indivíduo. Por isso, para o autor, a
religião tem facilidade em se perpetuar e pulverizar através da his-
tória. Sua proposta é que a religião seja negada e extinta, uma vez
que se constitui como uma espécie de doença coletiva na sociedade.
Para tal, diz Freud, é preciso superar a infância da humanidade por
meio de um projeto educacional: “o ser humano não pode permane-
cer eternamente como criança, tem de finalmente sair ao encontro
da ‘vida hostil’. Podemos chamar a isso ‘educação para a realidade’”
(FREUD, 2014, p. 292). Sua crença, portanto, se coloca com bastante
força no poder da ciência como emancipadora da humanidade para
além das ilusões religiosas.
De fato, em O futuro de uma ilusão Freud publica seu mais crítico
estudo acerca da religião - e também de tom mais assertivo de julga-
mento acerca de tal fenômeno. Por isso, para ele, o futuro da religião
(essa neurose obsessiva) deveria ser sua extinção. Pouco tempo de-
pois, Freud modifica seu discurso para um tom mais manso, de con-

64
formidade com a força histórica do fenômeno. Assim, não mais ele
prega a imposição de um fim para a religião. Ainda que não negue os
aspectos prejudiciais da religião para a sociedade, Freud reconhece
a impossibilidade de seu fim e, por isso, em vez de decretar seu fim
como ilusão, diz que ela toma contornos de um “sentimento oceâni-
co”: “com base apenas nesse sentimento oceânico alguém poderia
considerar-se religioso, ainda que rejeitasse toda fé e toda ilusão”
(FREUD, 2011, p. 8). Justamente nesse período acentuam-se seus di-
álogos com pensadores religiosos, como o já citado Oskar Pfister e o
pacifista Romain Rolland.

65
CAPÍTULO 4
ABORDAGENS COMPREENSIVAS
DA RELIGIÃO
A redução do fenômeno religioso a outras esferas, como observa-
mos nas abordagens críticas da religião, não é a única possibilidade
filosófica de tratamento do assunto. Antes, como observamos a partir
desse ponto, a crítica reducionista é uma pequena parte de uma lon-
ga tradição de filosofia da religião. Por isso, vamos observar aborda-
gens compreensivas da religião, isto é, que não apenas colocam-na
como foco de análise filosófica, mas o tentam fazer a partir de seus
próprios termos.
Isso significa que, para eles, mesmo que a religião esteja em cons-
tante diálogo com outras esferas da vida humana, como a economia,
por exemplo, ela não é redutível a tais esferas, mas deve ser interpre-
tada a partir de certo caráter sui generis. Em outras palavras, a reli-
gião é uma unidade básica que não pode ser dividida nem explicada
por outra coisa que não ela mesma. A religião, nessa abordagem, é
olhada em seus próprios termos. A compreensão da religião não diz
somente respeito ao ato de tentar entendê-la, mas a uma atitude pre-
viamente compreensiva em relação ao objeto de estudo.
As abordagens críticas já interpretavam, de antemão, que o valor
da religião frente à sociedade era uma soma de resultado negativo,
de modo que ela deveria ser combatida de algum modo. As aborda-
gens compreensivas, por outro lado, tratam de compreendê-la ten-
do por princípio que a validade ou não de seus conteúdos internos é
indiferente ao seu estudo. Assim, as diferentes filosofias da religião

66
que são apresentadas abaixo, partem de um pressuposto diferente
do que as até então apresentadas. Aqui, religião não é algo a ser su-
perado, mas compreendido. Por isso, aqui as fronteiras entre filosofia
e teologia são abaladas, de modo que, mesmo que a revelação não
seja a base do pensar sobre religião, pensa-se a religião em sua lógica
mais interna e a partir de seus próprios conceitos.

4.1 R. OTTO
Rudolf Otto (1869-1937) foi um importante teólogo e filósofo ale-
mão. Sua principal obra não trata especificamente de uma funda-
mentação filosófica da teologia, mas da categoria geral de religião.
Para tal, Otto desenvolve um conceito com contornos específicos de-
nominado de Sagrado, conceito que dá nome à sua obra O Sagrado.
A fim de compreendermos a profundidade do conceito, entre-
tanto, não basta somente olharmos para seu título, mas, sobretudo,
para seu subtítulo: “os aspectos irracionais na noção do divino e sua
relação com o racional”. Isso porque, para Otto, a religião não pode
ser compreendida somente a partir de seus aspectos mais aproxima-
dos à razão, como as doutrinas e os dogmas. Pelo contrário, a noção
de Sagrado, base da religião, estaria perto dos aspectos irracionais
que constituem o ser humano. Não podemos, entretanto, iniciar uma
apresentação de Otto sem situá-lo historicamente: na Alemanha na
virada do séc. XIX para o XX, era ainda muito influente o pensamento
de Kant, sobretudo sua crítica epistemológica, que postulava novas
bases para o conhecimento a partir do entendimento mental humano
subjetivo. Para Kant, os objetos do conhecimento se regulam de acor-
do com a projeção que a mente humana faz sobre o objeto. Assim,
não é possível conhecer algo em si mesmo, mas somente a partir de
categorias inatas pré-estabelecidas em nossa mente.

67
Rudolf Otto (1869-1937)

Somente a partir do pensamento kantiano, Otto consegue formu-


lar uma nova noção teórica para fundamentar a religião. Todavia, a
religião é fenômeno histórico, social, concreto e, por isso, não pode
ser fundamentado com maior consistência com base na teoria kantia-
na. Ora, a observação da religião não estaria imune às considerações
de que ela estaria sujeita às apreensões mentais que dela fazemos, de
modo que não haveria um estudo científico dela que fosse adequada-
mente último.
Assim, deve haver uma categoria da própria mente humana, isto é,
a priori que seja o fundamento para a religião. Do mesmo modo que
as noções de tempo e espaço são categorias mentais inatas que nos
permitem interpretar os fenômenos com os quais nos deparamos, há
uma categoria que corresponde à noção de religião na mente huma-
na: o Sagrado. Ela funciona, então, como uma espécie de pressupos-
to com o qual todo ser humano nasce e a partir do qual interpreta o
mundo. O Sagrado encontra-se na mente humana e é despertado por
impressões sensoriais, isto é, com nossa interação com o mundo. Nas
palavras de Otto:

O sagrado, no sentido pleno da palavra, é para nós, portanto, uma


categoria composta. Ela apresenta componentes racionais e irra-
cionais. Contra todo o sensualismo e contra todo o evolucionismo,
porém, é preciso afirmar com todo o rigor que em ambos os as-

68
pectos se trata de uma categoria estritamente a priori. [...] O sen-
timento do numinoso é desse tipo. Ele eclode no ‘fundo d’alma’,
de mais profunda base da psique, sem dúvida alguma nem antes
nem sem estímulo e provocação por condições e experiências
sensoriais do mundo, e sim nas mesmas e entre elas. Só que não
emana delas, mas através delas. Trata-se de estímulo e ‘desenca-
deamento’ para que a sensação do numinoso se ative, ao mesmo
tempo em que, inicialmente de forma inadvertida e imediata, se
entrelace e entreteça com o mundano-sensorial, para então em-
preender gradativa purificação, afastando de si este último e co-
locando-o como oposto a si próprio. [...] Ou seja, essas convicções
e sensações apontam para uma ‘razão pura’ no mais profundo
sentido, que pela exuberância dos seus teores também deve ser
distinguida da razão teórica pura e da razão prática pura de Kant,
sendo ainda mais elevada ou profunda. Nós a chamamos de fundo
d’alma (OTTO, 2007, p. 150-151).

Aqui, fica claro o que queremos dizer quando afirmamos que a no-
ção de Sagrado é uma categoria a priori: ela está presente na psique
de todo ser humano e pode, ou não, ser ativada em algum momen-
to por razão de experiências que geram o sentimento de numinoso.
Desse modo, todo ser humano é potencialmente religioso. Isso não
significa que todos são, mas que, para Otto, todos têm a capacidade
de o ser em algum momento, a partir das experiências da vida. Se o
autor recorre à noção de sentimento numinoso é porque, para ele, o
Sagrado não se constitui apenas de elementos racionais, mas tam-
bém irracionais.
É importante, primeiramente, identificar que ao falar de Sagrado,
Otto não está dando outro nome para Deus ou para as divindades.
Antes, ele fala de uma categoria humana, que se encontra dentro da
psique humana e não em qualquer lugar fora dela. Estando dentro do
entendimento humano, o Sagrado é conceituado por Otto, primeira-
mente, como algo irracional. Eis sua definição:

69
Por ‘racional’ na ideia do divino entendemos aquilo que nela pode
ser formulado com clareza, compreendido com conceitos familia-
res e definíveis. Afirmamos então que ao redor desse âmbito de
clareza conceitual existe uma esfera misteriosa e obscura que foge
não ao nosso sentir, mas ao nosso pensar conceitual, e que por
isso chamamos de ‘o irracional’ (OTTO, 2007, p. 97-98).

Aqui, a irracionalidade do Sagrado está ligada diretamente à im-


possibilidade de tratar de forma objetiva de seu conteúdo. Isso não
significa que é impossível falar sobre o Sagrado, mas que há certa
misteriosidade que circunda esse âmbito da mente humana. Assim,
esse âmbito possui traços tanto de racionalidade quanto de irraciona-
lidade. O primeiro se afirma porque é possível reconhecer a categoria
de Sagrado com certa clareza dentro da estrutura mental humana.
Por outro lado, seus contornos irracionais se demonstram na medida
em que são obscuras e misteriosas as experiências que ativam o sen-
timento de numinoso.
Dessa forma, é possível afirmar que há o entendimento de Sagrado
em todos os seres humanos, para Otto, mas não é possível saber exa-
tamente em quais momentos ela será ativada. Do Sagrado também é
possível saber algumas interessantes características: ele é tremendo,
isto é, arrepiante, é avassalador, enérgico, misterioso e fascinante.
Esse último aspecto tem um contorno específico importante: ao mes-
mo tempo em que o numinoso atrai, ele afasta por temor ou medo.
Essa ambiguidade está contida na ideia de fascínio: “é por um lado
aquele aspecto distanciador [...]. Por outro lado, ele também parece
algo atraente, cativante, fascinante, em curiosa harmonia de contras-
te com o elemento distanciador tremendum” (OTTO, 2007, p. 68).
Aqui entra em jogo um aspecto fundamental que o Sagrado gera
na psique humana: o sentimento de criatura. Para Otto, no momento
em que a experiência sensível do ser humano encontra ressonância
no Sagrado, enquanto categoria a priori do entendimento humano,

70
cria-se um sentimento de criatura nele. Isso não significa que se pos-
sa afirmar a existência de um deus criador a partir desse sentimen-
to, mas que, mesmo que seus objetos permaneçam misteriosos por
causa da irracionalidade de tal sentimento, o sentimento de criatura
é identificável objetivamente pelo relato de quem passa por tal expe-
riência. Nas palavras de Otto, em diálogo com Schleiermacher:

Trata-se de um sentimento confesso de dependência que, além de


ser muito mais do que todos os sentimentos naturais de depen-
dência, é ao mesmo tempo algo qualitativamente diferente. Ao
procurar um nome para isso, deparo-me com sentimento de cria-
tura - o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nu-
lidade perante o que está acima de toda criatura. Percebe-se com
facilidade que mesmo essa expressão ‘sentimento de criatura’
não chega a fornecer uma elucidação conceitual da questão. Pois
o que importa aqui não é apenas aquilo que a nova designação
consegue exprimir, ou seja, não só o aspecto do afundamento e
da própria nulidade perante o absolutamente avassalador, mas o
caráter desse poder avassalador. Essa qualidade do poder referido
não é formulável em conceitos racionais; ela é ‘inefável’, somente
pode ser indicada indiretamente pela evocação íntima e apontado
para o peculiar tipo de conteúdo da reação-sentimento, desenca-
deada na psique por uma experiência pela qual a própria pessoa
precisa passar (OTTO, 2007, p. 41-42).

Nesse ponto, a noção de Sagrado ganha um interessante adendo


da parte de Otto. Para o autor, é necessário que o estudioso da re-
ligião já tenha passado por uma experiência religiosa. Retomando,
tal experiência se dá a partir do momento em um contato sensível
do ser humano com o mundo exterior que ativa sua categoria mental
de Sagrado. Diz-nos Otto que para compreender de fato o que seja
a noção de Sagrado deve-se evocar mentalmente algum momento
de excitação religiosa. Caso o leitor não tenha experimentado algum

71
momento assim, pede Otto, não deve continuar a leitura: “pois quem
conseguir lembrar-se das suas sensações que experimentou na pu-
berdade, de prisão de ventre ou de sentimentos sociais, mas não de
sentimentos especificamente religiosos, com tal pessoa é difícil fazer
ciência da religião” (OTTO, 2007, p. 40).
Aqui há dois importantes aspectos a serem ressaltados. Primeira-
mente, Otto compara a experiência religiosa a experiências cotidia-
nas, embora não as equipare posteriormente. De fato, é completa-
mente diferente estudar cientificamente as dores de uma prisão de
ventre e, por outro lado, experimentar em seu próprio corpo como é
tê-las. Do mesmo modo, Otto evoca a experiência estética: estudar a
partitura de uma música é incomparável a escutá-la sendo executada
por uma orquestra. Por isso, ele defende que é inadequado estudar a
religião a partir da categoria de Sagrado sem ter, antes, experimenta-
do o sentimento de criatura que lhe é característico.
O segundo importante aspecto que devemos ressaltar da citação
acima é que, nas palavras de Otto, quem não experimentou a religião
não está apto à ciência da religião. Embora esteja pressuposto na
maior parte de sua tese, Otto ali afirma o objetivo último do desenvol-
vimento da noção de Sagrado: fundamentar filosoficamente o estudo
científico da religião. Ora, retomando Kant, não é possível o acesso
seguro à religião, visto que ela sempre se dá como fenômeno, e nunca
como númeno. Nesse sentido, seria preciso encontrar uma base na
mente humana a partir da qual a experiência religiosa se validasse
e, então, passasse a ser estudada tanto empírica quanto sistematica-
mente em sua objetividade concreta.
Por isso é acertado dizer que o empreendimento levado a cabo por
Otto é um esforço de filosofia da religião: na medida em que pensa
criticamente sobre o conceito de religião, o autor fundamenta ra-
cionalmente suas possibilidades e fornece bases para estudos pos-
teriores. Para tal, não somente Otto estabelece os fundamentos de
sua proposta, mas critica propostas concorrentes que, à época, eram

72
importantes caminhos para que o estudo da religião seguisse, mas,
ao contrário do interesse de Otto, eram demasiadamente redutivis-
tas. Nesse sentido, o objetivo último de Otto ao criar a categoria de
Sagrado era fundamentar filosoficamente a possibilidade de estudo
da religião. Isto é, o autor queria uma base firme, um dado objetivo
para tal. Seu dado primeiro é o Sagrado. Em suas palavras,

A teoria evolucionista de hoje tem todo o direito de tentar ‘expli-


car’ o fenômeno chamado religião, pois esta é de fato a tarefa da
ciência da religião. Mas para poder explicar, é preciso ter um dado
primeiro a partir do qual se possa explicar. Do nada, nada se expli-
ca. Natureza só se pode explicar com base em forças fundamen-
tais naturais já dadas, cujas leis é preciso buscar. Querer explicar
essas, por sua vez, não faz sentido. No plano mental, entretanto,
esse primeiro a partir do qual se apresenta explicação é o próprio
espírito humano com suas características, forças e leis; é preciso
pressupor o espírito humano, o qual em si mesmo não pode ser
explicado (OTTO, p. 151-152)

4.2 P. TILLICH
Paul Tillich (1886-1965) foi um dos mais importantes teólogos da
modernidade e, sem dúvida, um dos mais influentes filósofos e inte-
lectuais de sua época. Foi o primeiro intelectual a se refugiar nos Es-
tados Unidos da América durante o período de ascensão do nazismo
na década de 1930, tendo aberto as portas desse país para que diver-
sos pensadores, inclusive judeus, pudessem manter-se em regime de
liberdade diante da crescente repressão na Alemanha e na Itália, so-
bretudo. Sua influência também se comprova em seu status intelectual
na Alemanha da época: por exemplo, Tillich orientou uma das teses de
doutorado de Theodor Adorno, grande filósofo da teoria crítica.
O trabalho intelectual de Tillich desenvolveu-se em duas grandes
linhas: primeiramente, a teologia sistemática na qual, além de um

73
denso sistema, pensou temas como a fé, a história do protestantismo
e do cristianismo e a cultura; e paralelamente, o trabalho de uma fi-
losofia da religião, pensando também a cultura, o existencialismo, a
justiça, o amor, e a proposta de um socialismo cristão. Dentre essas
temáticas, as mais centrais para conhecer seu pensamento são a in-
terpretação conceitual que Tillich faz acerca da filosofia da religião
e seu conceito de preocupação última, uma criativa apropriação do
existencialismo para pensar a religião.

Paul Tillich (1886-1965)

Para Tillich, há dois diferentes tipos de filosofia da religião. A dis-


tinção que o autor faz deles não é histórica, isto é, não se baseia em
eras ou momentos históricos diferentes para caracterizá-los. Antes,
Tillich aponta para diferenças conceituais que se colocam em relação
a três grandes categorias por ele sublinhadas como as principais no
pensamento da filosofia da religião: Deus, o ser humano e o mundo.
Cada um desses dois tipos, então, se baseia em uma relação espe-
cífica entre os elementos dessa tríade, construindo uma espécie de
pressuposto a partir do qual faz a filosofia da religião. Nesse sentido,
a busca de Tillich não é somente pelo modo como essa tarefa filosófi-
ca se faz. O autor dá um passo atrás e se preocupa com a formação na
qual o fundamento das filosofias da religião se estabelecem.

74
Para explicar sua tese, Tillich propõe a seguinte situação: há duas
formas de um ser humano se aproximar de Deus, a de superar uma
distância e identificar-se com Ele, e a de encontrar alguém que esteve
sempre distante. No primeiro caso, há impressão de que Deus nunca
foi alguém distante, mas um antigo conhecido; na segunda, Deus se-
ria um completo estranho. Analogamente, essas são as configurações
da relação entre Deus, ser humano e mundo possíveis na filosofia da
religião. Para Tillich, há uma tarefa objetiva da filosofia da religião:
impedir o retorno dos “poderes” míticos que impõem medo e opres-
são sobre a sociedade. Esses seriam, para o autor, uma espécie de
legitimação mítico-religiosa das injustiças e opressões que a humani-
dade sofreu ao longo da história. Por isso, diz Tillich assertivamente:
“compete à filosofia da religião, entre outras tarefas, proteger a reli-
gião e a interpretação científica da realidade contra o retorno daque-
les ‘poderes’ que as ameaçam ao mesmo tempo” (TILLICH, 2009, p.
49).
Por um lado, há o tipo ontológico de filosofia da religião, no qual o
ser humano encontra-se alienado diante de Deus. É importante per-
cebermos, nesse momento, que a alienação pressupõe uma união
anterior. Ora, não se pode estar alienado de algo que nunca lhe per-
tenceu em algum sentido. Por isso, o tipo ontológico de filosofia da
religião pressupõe que, mesmo que ser humano e Deus se encontrem
separados, houve anteriormente um momento de união plena entre
eles. Tillich afirma que o filósofo máximo desse paradigma é Agosti-
nho, sobretudo a partir da noção de que Deus seria mais íntimo do
ser humano do que o próprio ser humano. Entre filosofia e religião,
portanto, Agostinho e o tipo ontológico respondem que

O problema dos dois absolutos é resolvido de tal maneira que o


religioso pressupõe qualquer questão filosófica, incluindo a ques-
tão de Deus. Deus é o pressuposto da questão de Deus: eis aí a
resposta ontológica ao problema da filosofia da religião. Deus ja-

75
mais será alcançado se for objeto da busca e não sua base (TILLI-
CH, 2009, p. 50).

Isso significa que, a partir de Agostinho, há um argumento ontoló-


gico para a questão de Deus: só é possível a crença em Deus a partir
do momento em que se encontra com Ele. Há aqui um pensamento
paradoxal de que Deus seria o pressuposto para si mesmo. Na reali-
dade, Deus encontraria em nossa mente ressonância na medida em
que, Nele, correspondem os conceitos inatos de verdade e bem. As-
sim, Ele nunca teria deixado de estar no ser humano por meio de tais
noções. Por isso, quando se encontra com Deus, Agostinho descreve
que havia enfim suprido uma parte que lhe faltava - mas que já havia
ali estado anteriormente. A presença e a ausência de Deus se fazem
ontologicamente necessárias, uma vez que a Ele corresponde o con-
ceito de perfeição, pressuposto para a qualquer julgamento.
Ora, não se pode julgar algo melhor ou pior do que outra coisa se
não há um critério da “coisa perfeita”. A esse corresponderia, justa-
mente, Deus. Por isso, encontrá-lo é encontrar a si mesmo, no seu ín-
timo. Analogamente, para encontrar a perfeição é necessário saber o
que é a perfeição - um paradoxo. Por isso, no argumento ontológico,
repete Tillich, “Deus é o pressuposto da questão de Deus” (TILLICH,
2009, p. 53).
Por outro lado, o argumento cosmológico tem seu ponto máximo
em Tomás de Aquino. Em resumo, diz Tillich: “o caminho racional
para Deus não é imediato, mas mediado. Trata-se de inferência que,
embora correta, não dá certeza incondicional. Precisa ser suplemen-
tado pela autoridade” (TILLICH, 2009, p. 53). Aqui, não há uma íntima
ligação entre o ser humano e Deus que possa ser restaurada. Antes,
há uma impossibilidade de encontro que só pode ser superada a par-
tir de uma autoridade. A autoridade que sugere Aquino é a Bíblia, en-
quanto conjunto de proposições totalmente verdadeiras sobre Deus
e o mundo. Dessa forma, Deus é um totalmente outro que só se dá a

76
conhecer a partir de sua revelação na Bíblia. Postulando, portanto,
sua autoridade, o conhecimento Dele se torna possível, mas, de modo
nenhum é imediato. A Bíblia, portanto, constituiria essa mediação en-
tre ser humano e Deus. Crer e entender, ligados por Santo Agostinho,
tornam-se totalmente diferentes nesse ponto. Explica, então, Tillich:

Segundo Aquino, o mesmo objeto não pode pertencer à fé e ao co-


nhecimento, pois a fé não depende de contato imediato com o seu
objeto. É menor que o conhecimento. ‘Assim como ela não possui
visão, não pode ser incluída na ordem do conhecimento presente
na ciência’; para ele essa visão não era possível na nossa existên-
cia. Vem daí a raiz da deteriorização do termo ‘fé’ que passou a ser
entendido como crença com baixo teor de evidência tornando o
seu uso quase impossível agora. A separação da fé em termos de
sujeição à autoridade, e do conhecimento como ciência, carrega
a ruptura das funções psicológicas que, para Agostinho, expres-
savam a mesma substância física. O intelecto é, então, movido
pela vontade de aceitar conteúdos que lhe são acidentais; sem o
comando da vontade torna-se impossível a aceitação da ciência
transcendental. Com a negação do caráter ontológico imediato, a
vontade preenche o vazio no qual sucumbe o intelecto (TILLICH,
2009, p. 55).

A separação entre fé e conhecimento, portanto, torna a filosofia


da religião, na prática, sem sentido, para Tillich. Ora, uma vez que é
destituída de razão qualquer possibilidade de pensamento de Deus
sem incorrer, por um lado, no impedimento de falar Dele ou, no ou-
tro, na ineficiência em tratar Deles. A racionalidade implicada no tipo
cosmológico de filosofia da religião implica, para o autor, uma retira-
da total dos elementos místicos ontológicos, de modo que qualquer
realidade por eles sustentada passa a ser logicamente impossível. Por
isso, Tillich se posiciona ultimamente a favor do tipo ontológico de
filosofia da religião. Para ele, não apenas esse método é mais ade-

77
quado como também instaura mais férteis possibilidades de apro-
fundamento na temática da religião. Justamente por entender que a
relação entre o ser humano e Deus não se coloca em termos qualita-
tivamente diferentes, mas sob a forma de uma alienação a ser supe-
rada em nome de um encontro originário, Tillich constrói sua filosofia
da religião a partir de um conceito de extrema relevância para esse
campo do saber: a preocupação última. Para defender esse posicio-
namento, Tillich diz:

O método ontológico da filosofia da religião exposto por Agostinho


e seus seguidores, e sua reaparição em diversas formas na história
do pensamento, se for criticamente reinterpretado por nós, é ca-
paz de fazer para a nossa época o que realizou no passado, tanto
para a religião como para a cultura: superar, sempre que possível,
pelo pensamento, a distância entre religião e cultura, reconcilian-
do interesses que não são desconhecidos dessas duas realidades
mas que têm estado separados (TILLICH, 2009, p. 67).

A partir dessa defesa, ele caracteriza o que seria a religião enquan-


to preocupação última, dialogando criticamente com filósofos de seu
tempo. Para ele, um problema latente na interpretação da religião é
que tanto cientistas quanto teólogos definem a religião como uma
relação entre os seres humanos e os seres divinos. A existência desses
seria negada pelos cientistas e afirmadas pelos teólogos.
Diz Tillich que o pressuposto dessas afirmações já está equivoca-
do: “se começamos argumentando em favor ou contra a existência
de Deus, jamais iremos encontrá-lo” (TILLICH, 2009, p. 41). Deus não
pode (nem deve) ser objetivamente provado. Se Ele estaria sempre in-
finito para além de quaisquer definições, tanto sua existência quanto
a falta dela seriam impossíveis de provar. Por isso é preciso pensar na
noção de religião, em vez da de Deus mesmo - mas em chave adequa-
da, e não ainda em relação aos seres divinos. Para tal, também não se
deve partir da exterioridade social humana, mas da sua interioridade,

78
conforme o tipo ontológico agostiniano. Afirma Tillich, então, que “ a
religião é um dos aspectos do espírito humano” (TILLICH, 2009, p. 42).
Seu diálogo, neste ponto, se intensifica com outros filósofos de
seu tempo. Diz ele, religião não é uma função moral, conforme deno-
mina Kant; nem uma função cognitiva, conforme Hegel; nem dimen-
são estética, como afirmava Fichte; nem um sentimento, conforme
Schleiermacher. Em cada um desses casos, Tillich mostra como tais
perspectivas seriam reduções do verdadeiro caráter da religião. Na
definição de Tillich, a religião se manifesta como a preocupação últi-
ma do ser humano, aquilo que ele tem como mais importante, como
último em sua vida. Nesse sentido, ele é universal, ontológico e irre-
primível. Por isso, ele diz que o próprio espírito humano é religioso.
Em suas palavras:

Quando dizemos que a religião é um dos aspectos do espírito hu-


mano, queremos dizer que quando olhamos o espírito humano
a partir de certo ponto de vista, ele se apresenta a nós religioso.
Que ponto de vista é esse? É o que parte das profundezas de nossa
vida espiritual. A dimensão de profundidade presente em todas
as funções. Tal afirmação acarreta enormes consequências para
a interpretação da religião e precisa ser comentada levando-se
em conta os termos usados até aqui. [...] Nesta situação, sem lu-
gar próprio, sem ter onde habitar, de repente a religião percebe
que não precisa de nada disso. Dá-se conta de que já possui seu
lugar próprio em todos os lugares, principalmente nas profunde-
zas das funções da vida espiritual humana. A religião é a dimensão
da profundidade em todas elas. É o aspecto dessa profundidade
na totalidade do espírito humano. Mas que significa a metáfora da
profundidade? Quer dizer que o aspecto religioso volta-se para os
elementos supremos, infinitos e incondicionados da vida espiri-
tual. A religião, no sentido básico e mais abrangente da palavra, é
“preocupação suprema”, manifesta em todas as funções criativas
do espírito bem como na esfera moral na qualidade de seriedade
incondicional que essa esfera exige (TILLICH, p. 42-44).

79
4.3 M. ELIADE
Mircea Eliade (1907-1986) nasceu em Bucareste na Romênia e foi
um profícuo pensador que perpassou por diferentes áreas, como filo-
sofia, ciência da religião, história e literatura. Diferentemente de Otto
e de Tillich, Eliade não desenvolveu longa carreira no âmbito da filo-
sofia, ainda que fizesse ocasionais incursões nesse campo. Todavia,
suas contribuições tanto teóricas quanto específicas para o estudo da
religião merecem destaque.
Com Eliade, um paradigma filosófico de estudo da religião atinge
seu auge, tanto de popularidade quanto de densidade de produção: a
fenomenologia da religião. Embora não tenha sido um precursor des-
se tipo de estudo, Eliade se fundamenta nele para suas análises empí-
ricas e sistemáticas sobre a religião. Apesar de seus grandes avanços
representados pelos insights que teve sobre o tema, Eliade é figura
controversa na ciência da religião contemporânea. Isso se deve, so-
bretudo, a duas questões, uma de caráter biográfico, e uma de cará-
ter teórico. Primeiramente, questiona-se se seu envolvimento com o
fascismo durante sua juventude na Romênia não teria influenciado
parte de sua pesquisa sobre as religiões do mundo, influenciando ne-
gativamente os pressupostos dos quais parte para fazer sua história
das religiões. Em segundo lugar, questiona-se sobre em que medida a
tarefa fenomenológica não é violenta já que, em busca de estruturas
comuns a toda religião, acaba não apenas descrevendo como a reli-
gião é, mas prescrevendo como ela deveria ser.

Mircea Eliade (1907-1986)

80
Antes de aprofundarmos no pensamento específico do autor, é
necessário fazer uma diferenciação: a fenomenologia da religião, da
qual Eliade é um dos representantes, não é um movimento filiado à
fenomenologia de Husserl (que mais tarde será de Heidegger e Merle-
au-Ponty, entre outros). Antes, esses movimentos que nascem quase
simultaneamente, mas com uma grande separação teórica.
A fenomenologia da religião liga-se ao conceito de fenômeno em
Kant que, impossibilitando o acesso às coisas mesmas, volta-se para
o modo como elas se manifestam para a consciência humana. Para
tal, a fenomenologia da religião busca uma estrutura fixa e estática
para chamar de religião por meio da análise comparada da imensa
diversidade de fenômenos. Assim, por exemplo, comparando o maior
número possível de tradições religiosas, poder-se-ia chegar às estru-
turas mínimas que compõem a religião: a crença na sobrenaturali-
dade de certos acontecimentos, a interpretação particular de certos
fenômenos naturais etc. Esse é o âmbito fundamental a partir do qual
Eliade instaura suas pesquisas empíricas, por um lado, e acerca do
qual busca refletir teoricamente, por outro.
O pensamento de Eliade, portanto, se instaura através da análise
mitológica comparada de diferentes religiões. Para tal, duas frentes
são necessárias: primeiramente a análise, de caráter mais empírico,
de tais mitos, pontuando sua narração e função dentro de sua pró-
pria religião, isto é, da tradição a que pertence; e, em segundo lugar,
comparando tais mitos analisados com vistas a encontrar as estrutu-
ras básicas da religião para além de seus fenômenos. A primeira se
demonstra, por exemplo, nos três grandes volumes de História das
crenças e das ideias religiosas, estudo de grande densidade sobre as
diversas religiões e mitos da idade da pedra às reformas protestan-
tes. Nesses, diversos esquemas mitológicos e rituais são apontados e
analisados dentro de seu contexto religioso, verificando a coesão que
fornecem a tais tradições. A segunda frente, mais sistemática, utiliza
em todo tempo os dados obtidos e analisados na primeira frente, mas

81
o faz com caráter mais teórico e menos informativo. Nela, Eliade com-
para as tradições e tenta delinear os traços comuns a elas, com vistas
a formular os dados básicos que as religiões deixam transparecer da
religião em geral.
Essa espécie de sistematização da religião encontra certa resso-
nância no pensamento estruturalista, conforme formulado por C. Lé-
vi-Strauss e F. de Saussure. A investigação de Eliade não se estabelece
de modo simplesmente prático, mas é fundamentada também epis-
temologicamente por ele. Uma interessante analogia que o autor traz
na primeira página de seu Tratado de história das religiões evidencia
alguns pressupostos de sua empreitada intelectual:

A ciência moderna reabilitou um princípio que certas confusões


do século XIX comprometeram gravemente: é a escala que cria o
fenômeno. Henri Poincaré perguntava a si próprio, com ironia: ‘um
naturalista que só tivesse estudado um elefante ao microscópio
acreditaria conhecer completamente este animal’? O microscópio
revela a estrutura e o mecanismo das células, estrutura e meca-
nismo idênticos em todos os organismos pluricelulares. E não há
dúvida de que o elefante é um animal pluricelular. Mas não será
mais do que isso? À escala microscópica podemos conceber uma
resposta hesitante. À escala visual humana, que tem pelo menos
o mérito de nos apresentar o elefante como fenômeno zoológico,
não há hesitação possível. Da mesma maneira, um fenômeno re-
ligioso somente se revelará como tal com a condição de ser apre-
endido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado
à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia,
pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela lin-
guística e pela arte etc., é traí-lo, é deixar escapar precisamente
aquilo que nele existe de único e de irredutível, ou seja, o seu cará-
ter sagrado. É verdade não existirem fenômenos religiosos ‘puros’,
assim como não há fenômeno única e exclusivamente religioso.
Sendo a religião uma coisa humana, é também, de fato, uma coi-

82
sa social, linguística e econômica - pois não podemos conceber o
homem para além da linguagem e da vida coletiva. Mas seria vão
querer explicar a religião por uma dessas funções fundamentais
que definem o homem, em última análise (ELIADE, 2010, p. 1).

Embora Eliade não apresente nesta introdução todos os passos


que dá em sua trajetória, ele apresenta o fundamento mais sólido de
sua pesquisa: é necessário investigar o fenômeno religioso em escala
religiosa - sem reduzi-la a outras esferas. A ilustração acerca do modo
como se investiga um elefante leva aos limites o sentido e a impor-
tância da proposta: do mesmo modo que é vão analisar um elefante
por meio de um microscópio, não há sentido em tratar da religião em
escala não religiosa. Isso não significa que não haja um tanto de ques-
tões econômicas, sociais, linguísticas e psicológicas na religião, mas
que ela não é simplesmente redutível a tais aspectos.
Por isso, retomando o princípio fenomenológico, Eliade se aven-
tura na conceituação morfológica do sagrado. Ora, diz ele que as
categorias básicas de toda religião podem ser interpretadas a partir
de uma contraposição entre sagrado e profano, entre vida religiosa e
vida secular. Enquanto não é possível conhecer o sagrado em si mes-
mo, deve-se, circundo-o, definir sua estrutura mais básica e singular.
Portanto, dando um passo atrás de conceituar a religião de modo últi-
mo, Eliade parte de uma análise de hierofanias. A constituição etimo-
lógica do termo nos ajuda a compreender o que ele é: hieros pode ser
traduzido sagrado; enquanto fania aponta para o ato de aparecer, de
mostrar-se, revelar-se. Nesse sentido, as hierofanias são as manifes-
tações do sagrado ao longo da história da humanidade.
Em O sagrado e o profano, uma de suas mais valiosas obras, ape-
sar do volume reduzido frente a outras, fica clara a busca de Eliade
por uma morfologia do sagrado, a começar pelo subtítulo “a essên-
cia das religiões”. Nessa obra, o autor realiza o esforço sintético de
apresentar as mais fundamentais categorias que, para ele, compõem

83
a morfologia do sagrado através das hierofanias históricas. Redigida
como esforço de divulgação científica, essa obra trata de quatro as-
pectos básicos da religião através de como ela se relaciona com algu-
mas questões: o espaço, o tempo, a natureza e a existência humana.
A cada uma dessas questões, Eliade traça um correspondente que
surge na justaposição entre elas e a religião, respectivamente: a sa-
cralização do mundo, os mitos, a religião cósmica e a vida santificada.
A intenção do autor nesse livro, ressalta ele ao leitor, é diferente das
conclusões de Otto: “propomo-nos apresentar o fenômeno do sagra-
do em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta
de irracional. Não é a relação entre os elementos não-racional e racio-
nal da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalida-
de” (ELIADE, 2018, p. 17).
O objetivo de Eliade, diferentemente, é apresentar as característi-
cas mais essenciais das religiões através de uma análise das manifes-
tações do sagrado. Por exemplo, pensando na importância dos mitos
para a coesão social e religiosa ao longo da história, Eliade volta-se
à questão de tempo e ao modo como o ser humano religioso experi-
menta o tempo. Aqui, suas considerações são exemplares para enten-
dermos o modo como as relações entre religião e sociedade:

O tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido


em que é, propriamente falando, um tempo mítico primordial tor-
nado presente. [...] Por consequência, o tempo sagrado é indefi-
nidamente recuperável, indefinidamente repetível. [...] O homem
religioso vive assim em duas espécies de tempo, das quais a mais
importante, o tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto parado-
xal de um tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eter-
no presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela
linguagem dos ritos. [...] Ora, o que se pode constatar relativamen-
te a um homem não-religioso é que também ele conhece uma cer-
ta descontinuidade e heterogeneidade do tempo. Também para
ele existe o tempo predominantemente monótono do trabalho e o

84
tempo do lazer e dos espetáculos, numa palavra o ‘tempo festivo’.
Também ele vive em ritmos temporais variados e conhece tempos
diferentemente intensos: quando escuta sua música preferida ou,
apaixonado, espera ou encontra a pessoa amada, ele experimen-
ta, evidentemente, um ritmo temporal diferente de quando tra-
balha ou se entedia. Mas, em relação ao homem religioso, existe
uma diferença essencial: este último conhece intervalos que são
‘sagrados’, que não participam da duração temporal que os prece-
de e os sucede, que têm uma estrutura totalmente diferente e uma
outra ‘origem’, pois se trata de um tempo primordial, santificado
pelos deuses e suscetível de tornar-se presente pela festa. Para um
homem não-religioso essa qualidade trans-humana do tempo li-
túrgico é inacessível (ELIADE, 2018, p. 65).

4.4 R. ALVES
Rubem Alves (1933-2014), teólogo, filósofo, escritor e educador
brasileiro, também teve uma relevante contribuição para a filosofia
da religião - sobretudo no Brasil. Sua trajetória enquanto autor é im-
portante para pontuarmos suas contribuições à filosofia da religião
em nosso país. Alves foi pastor presbiteriano e, impactado pelo pen-
samento de seu professor Richard Shaull, fez mestrado e doutorado
em teologia nos Estados Unidos. A segunda parte de sua vida acadê-
mica nesse país foi necessária graças às investigações sobre ele reali-
zadas pelo regime militar, iniciado em 1964, que colocavam sua vida
em perigo. Ao retornar ao Brasil, Alves envereda pela discussão aca-
dêmica da religião, ajudando a fundar o Instituto de Estudos da Reli-
gião (ISER). Aos poucos o autor se aproxima da área da educação e se
torna professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
onde foi colega de Paulo Freire e onde lecionou até o fim de sua car-
reira acadêmica.
A partir do final da década de 90, Alves modifica seu modo de

85
escrita e, deixando o gênero científico, começa a produzir crônicas
sobre o cotidiano e a vida. Embora o rigor de seus textos tenha sido
modificado, a profundidade de sua abordagem permanece a mesma.
O caminho de Alves pode ser interpretado como um longo caminho
de libertação da escrita científica com vistas à beleza da literatura.
Embora suas considerações permaneçam válidas, os textos mais re-
levantes para a filosofia da religião são os de sua chegada ao Brasil
após o doutorado, nos quais pensa a religião em chave filosófica e
sociológica.

Rubem Alves (1933-2014)

Em O Enigma da Religião (1975), Rubem Alves compila alguns en-


saios rigorosos sobre o fenômeno religioso, desenvolvendo e anali-
sando-o a partir de diversos prismas: sociológicos, psicológicos e até
autobiográficos. São, dessa forma, sete os ensaios no livro, sendo três
maiores e quatro menores. Embora a ordem dos ensaios tenha sido
alterada na reedição do livro em 2007, em seu lançamento, o livro se
iniciava com o texto de mesmo nome que o livro.
Neste ensaio, Alves se interessa por debater com grandes filóso-
fos, como Marx e Freud, ressaltando que a crença positivista de que
a religião teria seu fim com o avanço da sociedade tecno-industrial
não se comprovou. A religião está mais forte do que nunca - esse é
seu enigma. Por fim, o autor afirma que “A religião [...] é a voz de uma
consciência que não pode encontrar descanso no mundo, tal como
ele é, e que tem como seu projeto utópico transcendê-lo” (ALVES,

86
1975. p. 25). Dessa forma, Alves defende que para além das críticas
dos mestres da suspeita, o fenômeno religioso tem seu valor diante
da sociedade, pois, se ele é sonho, não é somente ópio - ele é o que
permite aos homens e mulheres imaginar outro mundo possível. Diz
o autor que “a intenção da religião não é explicar o mundo. Ela nasce,
justamente, do protesto contra esse mundo que pode ser descrito e
explicado pela ciência” (ALVES, 1975. p. 25).
O segundo grande ensaio visa dar respostas à teologia da morte de
Deus, tratando, especificamente, dos outros dois filósofos reconheci-
dos como mestres da suspeita: Nietzsche e Feuerbach. Desses, Rubem
Alves não foge ao embate: critica-os acusando o reducionismo que
os toma. Para o autor, o fenômeno religioso não pode ser reduzido à
mera psicologia, isto é, como se ele somente fosse uma ilusão psico-
lógica ou uma doença antropológica. Tal redução é danosa à medida
que desconsidera a priori toda e qualquer experiência religiosa.
Unem-se aqui as críticas a estas quatro leituras sobre a religião:
é comum a todas estas críticas o reducionismo do fenômeno a uma
simples ilusão antropológica, isto é, uma espécie de reprodução do
próprio eu do homem que tenta suprir as faltas ou problemas últimos
de cada um. Tal reducionismo, para Alves, é extremamente prejudi-
cial aos estudos religiosos, pois não considera a possibilidade de re-
lação verdadeira entre o homem e alguma divindade, afirmando em
última instância o ateísmo e a ilusão como chave hermenêutica de
toda experiência religiosa. Defende o autor que “Deus morreu. Mas
ele nasceu também. Nasceu como parte da história do homem, como
símbolo que as culturas criaram para fazer sentido do seu mundo.
Sua morte, portanto, é um evento, não da história dos deuses, mas
da história do próprio homem” (ALVES, 1975. p. 38).
Por fim, em seu último grande ensaio, Rubem Alves se esforça por
entender os elementos e símbolos da conversão de um indivíduo ao
protestantismo. Esse é o maior ensaio do livro. Numa análise que
beira a sociologia da religião, passo a passo, o autor constrói uma

87
interpretação do universo simbólico adquirido no momento da con-
versão, revelando como há uma busca por novos sentidos de vida,
uma nova organização de pensamento, visão de mundo etc. Nesse
universo simbólico encontram-se, por exemplo, os mitos da religião
que, em suas palavras, são vividos “de trás para frente” (ALVES, 1975.
p. 72). É importante também para Alves a relação entre objetividade e
subjetividade neste processo de conversão. Em última instância, para
Alves um mundo de sentido desmorona para que outro mundo possa
começar a ser construído: o mundo dos dogmas e conceitos religio-
sos.
Os outros quatro ensaios menores tratam, respectivamente, da ex-
periência mística de cristãos contemporâneos, de uma representação
autobiográfica, e de duas críticas à tecnologia e sua linguagem. Anali-
sando o dogmático-fundamentalismo, Rubem Alves diz que ele pode
ser tomado como:

uma atitude que atribui caráter último às suas próprias crenças.


O mais importante não é o que o fundamentalista diz, mas como
ele diz. É a atitude dogmática e autoritária com respeito ao seu sis-
tema de pensamento, e inversamente a atitude de intolerância e
inquisitorial ante qualquer tipo de “herege” ou “revisionista” que
o caracteriza. [...] O que importa na caracterização do fundamen-
talismo não são as ideias que ele afirma, mas o espírito com que
ele as afirma. [...] é a estrutura que determina a significação da
mentalidade fundamentalista, e não os itens que constituem o in-
ventário do seu conteúdo (ALVES, 1975 p. 117).

Não é difícil, assim, perceber como Rubem Alves pensa a religião.


Com flertes poéticos-literários, ele prioriza uma descrição analítica
do fenômeno religioso e opta por um debate filosófico acerca de sua
essência e dialoga com tradições hermenêuticas conflitantes. Ele não
acolhe totalmente nenhuma das críticas à religião - das quais não
foge. Antes, parte de seus próprios pressupostos para ancorar suas

88
teses que validam e legitimam a existência do fenômeno religioso e
de sua linguagem.
Ora, se a religião é o ópio do povo, ela também é suspiro dos opri-
midos. Se ela é ilusão da mente humana, ela, justamente, possibilita
que o humano proteste contra a realidade e sonhe com a possibilida-
de de um mundo diferente. A posição de Alves nessa obra é própria de
um filósofo da religião que, para além dos preconceitos apriorísticos,
considera a importância da observação dos fenômenos para consti-
tuir teses e ideias mais justas sobre essa questão fundamental para
os seres humanos, a vida destes em comunidade, a organização das
sociedades, manutenção ou subversão delas: a religião.
Protestantismo e repressão (1979), outra obra seminal, é um dos
mais importantes trabalhos sobre o fenômeno fundamentalista den-
tro das igrejas históricas no Brasil. Tendo sido publicado primeira-
mente pela editora Ática, teve sua republicação pela Loyola no ano
de 2005 sob o título Religião e repressão. Esta mudança se deu pelo
fato de que, apesar da obra apontar para um público específico, sua
crítica pode ser levada em conta em diversos contextos e religiosida-
des. Nesta obra, Alves, sob perceptível influência de Max Weber, forja
um tipo ideal e o analisa sob vários aspectos. Este tipo ideal é por ele
denominado “protestantismo de reta doutrina” (ALVES, 2005. p. 33-
46), o PRD. Mais do que analisá-lo, há em Protestantismo e repressão
uma dissertação sobre a postura dogmático-fundamentalista, sua es-
sência e suas consequências.
O texto, então, é construído em alguns grandes blocos. Após a in-
trodução onde se delimita o tipo ideal a ser analisado, o PRD (Protes-
tantismo de Reta Doutrina), Alves começa analisando as construções
que tornam o protestantismo o que ele de fato é. Para tal, o primeiro
capítulo versa sobre o fenômeno protestante em seu modo de pen-
samento: ele é moderno ou medieval? Sobretudo por meio da socio-
logia, Alves constrói um pensamento crítico que aponta para a farsa
do protestantismo de sua análise: a vanguarda de liberdade que este

89
representava não é mais real. No segundo capítulo Alves descreve o
processo de conversão ao protestantismo. Neste há uma espécie de
aquisição de um mundo simbólico novo que reorganiza a vida do con-
vertido.
Alves analisa, então, como o protestantismo constrói e reconhece
a realidade. O autor reforça o modo como esta religiosidade não só
prioriza a racionalidade, como despreza as emoções. Assim, são inte-
riorizados os fundamentos e verdades da fé: os dogmas. Para Alves,
“o protestantismo não faz distinção entre uma linguagem de símbo-
los e uma linguagem de signos [...] ele reduz os símbolos a signos [...].
[Assim] a linguagem da revelação e a linguagem da ciência têm uma
mesma função: dizer como as coisas são” (ALVES, 2005, p. 144s.).
O capítulo subsequente, intitulado “o mundo que os protestantes
habitam”, diz respeito a como a linguagem é utilizada e constrói a for-
ma de pensar de tal tradição religiosa. O traço característico apontado
pelo autor é o dualismo e a contraposição no pensamento. A leitura
que Alves realiza aqui já não é tão sociológica, mas muito mais ache-
gada a uma perspectiva psicológica: “o critério para a participação
na comunidade é a confissão da reta doutrina, como definida pela
confissão de fé. E como a doutrina é definida de forma rigorosa, qual-
quer desvio intelectual tem de provocar uma ruptura” (ALVES, 2005.
p. 151). Neste sentido, o autor faz uma breve análise sobre a oração
e a doutrina da providência de Deus: “O crente ora se, e somente se,
ele crê que de alguma forma misteriosa, os seus desejos são capazes
de comover uma vontade suprema, que permaneceria impassível se
a voz da oração não fosse articulada” (ALVES, 2005. p. 164).
Em “A ética protestante e a ética social”, o autor mostra como o
individualismo presente no protestantismo disciplina os homens e
mulheres que assumem esta religiosidade, traindo, mais uma vez, o
que se poderia chamar de espírito da reforma. Alves indica, então,
os cinco pecados que são tratados como assunto público na igreja e
merecem ser punidos, na ótica protestante, a todo custo: questões

90
sexuais, desrespeito ao dia sagrado, vícios, roubo e heresias. Assim,
Alves demonstra como o protestantismo vê o mundo a partir do indi-
vidualismo: os problemas sociais, para eles, são problemas morais e
seriam resolvidos pela conversão de todos os indivíduos da socieda-
de. Assim a sociedade teria ordem, por meio da moralidade protes-
tante, e progresso econômico, sinal da bênção de Deus, para eles.
Os dois últimos capítulos dessa obra tratam mais diretamente do
fenômeno fundamentalista que ronda o protestantismo. Tratando
dos inimigos que o protestantismo de reta doutrina adota para si, Al-
ves enumera-os: primeiramente a Igreja Católica, depois o modernis-
mo e o liberalismo teológico, em terceiro lugar o mundanismo, isto
é, a permissão para o prazer natural, e em último lugar o evangelho
social, uma hermenêutica teológica que prioriza o serviço às comuni-
dades ao conversionismo. Aqui, Alves diz que “enquanto os inimigos
estão fora, eles contribuem para a unidade do grupo social. Que ocor-
re quando os próprios membros do grupo começam a falar a lingua-
gem do inimigo? Instaura-se o pânico” (ALVES, 2005. p. 268).
Na última parte do livro, Rubem Alves trata da verdade e do dog-
matismo. O autor defende que o Protestantismo de Reta Doutrina é
obsessivo com a questão da verdade e é justamente essa obsessão
o centro maléfico dessa tradição. Dessa forma, argumenta Alves, os
dogmas estabelecidos não podem ser mudados, pois aqueles que
estão no poder não permitem que isto seja feito. Como complemen-
tação à obra, Alves diz que as questões da ortodoxia e da heresia são
questões sobre quem é o dono do poder: “Não se assustem com a
palavra heresia. Heresia não é algo que se situa no plano da verdade,
como oposição a ela. A heresia se situa no plano do poder” (ALVES,
2004. p. 56). Para ele, então, a luta pela verdade vai além de si mesma:
ela representa uma luta pelo poder, por saber quem tem a verdade
ao seu lado e mais, em suas mãos. Sintetiza, então dizendo que “A
verdade tem de ser intolerante. [...] O amor à verdade, afirmada como
posse, é o lado risonho do seu oposto: a intolerância para com aque-

91
les que sustentam um pensamento divergente” (ALVES, 2005. p. 321)
e “Os que já possuem a verdade estão predestinados a se transforma-
rem em inquisidores. Os que só possuem dúvidas já estão predestina-
dos à intolerância e, talvez, à fogueira” (ALVES, 2005. p. 284).
Desta forma, Alves conclui seu livro: demonstrando como esse tipo
ideal, PRD, trai os princípios protestantes em nome de uma verdade,
como ela exclui homens e mulheres que não rezam os seus dogmas, e
como há um jogo de poder que sustenta todo este edifício de funda-
mentalismo e dogmatismo. Assim, para além de discutir as doutrinas
usando sua lógica interna, função que caberia a um teólogo, Rubem
Alves se preocupa em descrever sociologicamente um grupo e ques-
tioná-lo filosoficamente.
Isto fica claro à medida que ele procura não só mostrar a lógica
que rege este fundamentalismo, mas perceber estruturalmente o po-
der e a busca por poder que orquestra este fenômeno. Para além de
tentar revelar as verdades que conduzem o PRD, Alves tenta enten-
der seu universo simbólico, seus signos e significados, revelando-se,
assim, ocupado não só com o descrever, mas com a reflexão crítica
sobre seu objeto.
Na medida em que Alves se preocupa com a linguagem religiosa
interpretando seus símbolos, para além de sua função social ou an-
tropológica, o autor faz construções próprias de uma filosofia da re-
ligião. Em ambos os livros analisados acima, Rubem Alves não parte
somente de uma crítica teológica, mas de um pensamento propria-
mente filosófico para interpretar e refletir sobre o fenômeno religioso.
Todavia, ele não o faz a partir de posicionamentos abstratos, antes,
parte da concretude histórica: o caso do PRD, a postura dogmático-
fundamentalista etc. Ele percebe a religião, de certa forma, como um
dado, assim, não se preocupa em criar os fundamentos para seu obje-
to de estudo, antes o percebe já estabelecido no mundo e interagindo
com ele.

92
CAPÍTULO 5
A RELIGIÃO SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO
Diferentemente da modernidade, a partir da qual pudemos deli-
near duas diferentes abordagens filosóficas da religião, na contem-
poraneidade encontramos uma pluralidade de aproximações, desde
propostas de interpretação do mundo por meio de uma noção religio-
sa, como a de sacrifício, até a responsabilidade ética que a santidade
do rosto do outro nos impõe. Se as abordagens até então apontadas
se caracterizavam por certa ligação a alguma outra área acadêmica,
como a sociologia, a psicologia, a teologia, a ciência da religião etc.,
agora as abordagens sujeitam-se mais adequadamente à filosofia.
Isso, para além de uma questão institucional, revela um importante
caráter do olhar contemporâneo: a pluralidade de pensamento não é
somente fato a ser reconhecido, mas um valor a ser compartilhado.
Em outras palavras, no contemporâneo não basta apenas aceitar
que há a possibilidade diversas vozes filosóficas dissonantes, mas se
deve acolher essa dissonância em sua mais íntima multiplicidade.
Por isso, ainda que nossa jornada se inicie nas raízes da contempora-
neidade, com Kierkegaard, ela perpassa autores de diferentes lugares
do mundo, filiados a diferentes correntes filosóficas, e que se conec-
tam sob o signo da pluralidade de pensamento filosófico.

5.1 S. KIERKEGAARD
Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) é, ainda hoje, o mais impor-
tante filósofo e teólogo dinamarquês. A profundidade de seu pensa-
mento fez com que ele servisse de inspiração para outros grandes
nomes da tradição filosófica, como Heidegger, Sartre, Adorno, Derri-

93
da etc. Geograficamente fora da rota da história da filosofia, que pri-
vilegia alemães, franceses e ingleses, Kierkegaard destacou-se pela
singularidade de seu pensamento.
Neste ponto, o termo ‘singular’ assume duas conotações diferen-
tes. Primeiramente, o pensamento do autor é singular porque faz
diversas considerações novas, ainda que dialogando criticamente
com a tradição e com os grandes filósofos de seu tempo. Em segundo
lugar, o pensamento de Kierkegaard é singular porque se opõe aos
grandes sistemas filosóficos, dos quais a referência é Hegel, em favor
do pensamento sobre a existência do indivíduo singular e subjetivo.
Nesse sentido, enquanto o filósofo alemão buscava a criação de um
sistema objetivo que englobasse a história através de uma dialética
rumo ao Absoluto, Kierkegaard opôs-se a ele pensando a individuali-
dade de cada sujeito histórico singular.

Søren Kierkegaard (1813-1855)

O ambiente no qual seu pensamento se formou é parte importante


do modo como ele concebeu tais conceitos. Tendo estudado teologia,
Kierkegaard se sentiu impelido a levar em debate público os proble-
mas que enxergava na teologia de sua época, sobretudo no clero di-
namarquês. A Dinamarca havia sido, após as reformas religiosas do
séc. XVI, fortemente influenciada pelo protestantismo alemão que, a
partir de Lutero, abriu as portas para uma relação mais simples en-
tre Igreja e Estado, uma vez que não era mais necessário lidar com a

94
grande estrutura da Igreja Romana. Assim, o protestantismo cresceu
na Dinamarca como um aliado da nobreza, que via em seu crescimen-
to uma oportunidade de fazer maior a sua influência na corte real.
Mesmo sem sê-lo na lei, o protestantismo dinamarquês se tornou
uma religião oficial na prática. Quando Kierkegaard desenvolve seu
pensamento, ele se manifesta contra essa situação específica do pro-
testantismo na Dinamarca pois, em suas palavras, em uma configura-
ção social onde todos são “cristãos desde o berço”, isto é, onde não
há reflexão sobre ser ou não cristão, ninguém verdadeiramente o é.
Por isso, sua preocupação com o tema da religião não é meramen-
te filosófica, mas também teológica. Todavia, suas reflexões, embora
articulem elementos específicos dentro da tradição cristã, não são
somente teológicas. Na medida em que Kierkegaard articula tais con-
ceitos, como fé, revelação, paixão etc., ele não o faz sob o ponto de
vista da revelação como fonte inspiradora - mas da potência da razão.
A tradição teológica do tempo de Kierkegaard era influenciada tam-
bém por Hegel, de modo que sua leitura da Bíblia era sistemática e
não considerava os indivíduos singulares. Por isso, Kierkegaard con-
fidenciou em seus diários a necessidade de uma outra reforma: “uma
reforma que colocasse a Bíblia de lado hoje teria tanto valor quanto
a de Lutero, que colocou o papa de lado. Toda essa atenção à Bíblia
desenvolveu a religiosidade dos eruditos e dos juristas, simples diver-
timento” (KIERKEGAARD, Diários IX A 442, 1848).
Embora critique frontalmente o sistema hegeliano, Kierkegaard
não faz sua filosofia baseada em fragmentos, mas a partir de uma for-
te lógica interna. Essa lógica só pode ser percebida em uma leitura
sinótica de seu projeto, uma vez que ele publicou textos de diversos
gêneros (como sermões, livros filosóficos, filosofia literária, teologia
etc.), assinados sob diversos nomes pseudônimos. Isso torna ainda
mais complexa a proposta de Kierkegaard mas, ao mesmo tempo,
demonstra sua coerência: enquanto Hegel assume para si o nome
de um grande pensador universal, que postulava as bases no qual a

95
história mundial se movia e apontava seu inevitável futuro, Kierke-
gaard utilizava a diversidade como ponto de apoio para fazer chegar
ao público suas críticas à Igreja e à sociedade dinamarquesa. Para o
autor, tão importante quanto a mensagem que sua filosofia pretendia
enviar aos seus contemporâneos, era o modo como se envia tal men-
sagem. Isso abre as portas para entender o cerne de seu pensamento,
uma vez que, para ele, as verdades existenciais são as que realmente
importam. Elas não podem ser objetivamente compartilhadas, pois
dizem respeito sempre ao indivíduo e somente a si mesmo. Por isso,
como um segredo, não se pode concluir por ninguém verdade exis-
tencial alguma: somente o indivíduo pode chegar a ela. O dever do
filósofo é fornecer as possibilidades para que cada indivíduo consiga
fazê-lo. Assim, diz Kierkegaard:

Em termos ético-religiosos, acentua-se outra vez: o como; contu-


do isso não deve ser entendido como decoro, modulação de voz,
desenvoltura oral etc., mas se compreende como a relação da
pessoa existente, em sua própria existência, com aquilo que ela
enuncia. [...] Em seu máximo, esse “como” é a paixão da infinitude,
e a paixão da infinitude é a própria verdade. Mas a paixão da infi-
nitude é justamente a subjetividade, e assim a subjetividade é a
verdade. [...] Só na subjetividade há decisão, contraposto ao que,
querer tornar-se objetivo é a inverdade. A paixão da infinitude é o
decisivo, não seu conteúdo, pois seu conteúdo é, precisamente,
ela mesma. Assim, o “como” subjetivo e a subjetividade são a ver-
dade (KIERKEGAARD, 2013, p. 214).

A verdade subjetiva é, portanto, a verdade que importa à exis-


tência porque dela depende a decisão. O que o ser humano precisa
decidir, poderíamos perguntar a Kierkegaard. Para o autor, todo ser
humano parte de uma questão em sua existência concreta com a qual
precisa lidar: a liberdade. Na medida em que se reconhece livre, o ser
humano se depara com a angústia de poder escolher como quer viver.

96
A angústia não tem conteúdo, uma vez que ela se dá diante do nada,
isto é, do vazio que representa o futuro que será construído a partir de
nossas escolhas em liberdade. Diante disso, é preciso tomar decisões
que, para superar a angústia, devem ser feitas a partir de verdades
existenciais. Isso determina o modo como se vive a vida ou, antes, o
princípio a partir do qual cada indivíduo o faz.
Para Kierkegaard, há três diferentes modos a partir dos quais o
indivíduo pode existir. A esses, ele dá o nome de estádios: estético,
ético ou religioso. A cada um deles, corresponde um bom exemplo
literário que auxilia na compreensão. Ao tratar de um estádio estéti-
co, Kierkegaard diz respeito a um modo de vida no qual o indivíduo
se relaciona inadequadamente com a própria angústia e se relaciona
em chave de contradição com o mundo, negando-o. Assim como Don
Juan, personagem literário sedutor que busca satisfazer seus desejos
eróticos a todo tempo, quem vive a partir do estádio estético busca
experimentar o prazer a todo momento. Como esse é breve, o esteta
se encontra em uma insaciável busca pelo prazer duradouro que não
existe. Dessa forma, a vida estética fracassa ao responder à angústia
humana, porque ela não permite ao indivíduo tomar uma decisão pe-
rante sua própria existência.
O segundo estádio, o ético, não pode ser aproximado pelo mesmo
personagem. Antes, sua melhor demonstração se dá em uma análise
filosófica da situação de Abraão diante do pedido divino de sacrifício
de seu único filho. Ora, sacrificar ou, em outros termos, assassinar
seu próprio filho é uma atitude abominável sob o ponto de vista da
ética, de modo que, se Abraão fosse um indivíduo ético, ele jamais o
faria. O ético, para Kierkegaard, consiste justamente nisso: renunciar
a si mesmo, aos seus prazeres, à própria felicidade em favor de um
universal abstrato sob o qual se coloca. Nesse sentido, há antes um
princípio pré-estabelecido o qual o indivíduo ético adere. Ao fazê-lo,
ele escolhe uma base para as decisões de sua existência, uma refe-
rência lógica externa. Tal decisão é um modo de lidar com a angústia

97
que, uma vez que outras possibilidades não estarão mais presentes,
se esvai a partir dessa decisão. Todavia, o problema desse estádio,
diz Kierkegaard, é que nenhuma verdade existencial pode se basear
em um ponto de vista objetivo, isto é, em um princípio externo ao ser
humano. Nele, Abraão não se tornaria o pai da fé, pois não estaria dis-
posto a sacrificar seu único filho, a abrir mão de seu milagre.
O terceiro estádio, o religioso, é o modo de vida ideal no qual o
indivíduo se relaciona consigo mesmo e com o próprio desespero. A
distinção entre ético e religioso, aqui, é já um grande ganho para a
filosofia da religião. Ora, na medida em que afirma que o ético é uma
coisa e o religioso outra, Kierkegaard já desafia toda a filosofia da reli-
gião de caráter kantiano, para quem a religião interna ao ser humano
era a fonte da moralidade. Aqui, o filósofo dinamarquês quebra com
esse paradigma afirmando que o religioso é uma superação do ético,
porque não se prende existencialmente a normas exteriores, mas a si
mesmo. Ainda que o religioso também respeite tais normas, ele não
se prende ultimamente a elas, mas baseia sua existência em uma re-
lação com o Absoluto por meio da fé. Por isso Abraão tornou-se o pai
da fé: porque diante do eticamente condenável, ele opta pela decisão
religiosa de obediência a sua relação com o Absoluto. Aqui reside a
diferença entre sacrifício e assassinato: o primeiro assume sentido
religioso para o indivíduo, o segundo ético. Quando Deus impede o
sacrifício que Abraão estava disposto a realizar, diz Kierkegaard, ele se
torna o pai da fé, pois estava disposto a abrir mão de tudo, a colocar a
própria existência em jogo em obediência. Somente por meio desta fé o
indivíduo pode colocar-se em relação absoluta com o Absoluto. Somen-
te colocando a própria vida em risco, o indivíduo pode ganhar a vida.
Por isso, o fim último da filosofia de Kierkegaard é o tornar-se a
si mesmo e, mais especificamente, tornar-se cristão. Ora, essa é a
chamada do filósofo para os seus contemporâneos dinamarqueses:
não apenas ser cristão por causa de certa oficialidade da Igreja, mas
tornar-se aquilo que é, adotar um modo de vida para além do ético e

98
do estético. Isso não pode se dar sob o ponto de vista ético, isto é, pe-
rante um convencimento racional da logicidade da proposta kierke-
gaardiana. Não pode haver um enorme acúmulo de conhecimento
histórico que permita a passagem de um estádio a outro. Antes, diz
Kierkegaard, há uma diferença qualitativa que nenhuma quantidade
exacerbada de objetividade permite transpor. O salto é de fé. Por isso,
a decisão existencial deve ser totalmente interior, subjetiva, a partir
da singularidade do indivíduo e somente por ele mesmo. Ninguém
pode escolher pelo indivíduo tornar-se a si mesmo, somente ele dian-
te de sua própria existência e angústia. Portanto, tornar-se cristão é
um salto existencial de fé, rumo à relação absoluta com o Absoluto
por meio de um paradoxo desconhecido:

O que é então o desconhecido? É o limite, ao qual se chega cons-


tantemente e, enquanto tal, quando substituímos a categoria do
movimento pela categoria do repouso, é o que difere, o absolu-
tamente diferente. Mas o diferente absoluto é aquele para o qual
não se tem signo distintivo. Definido como o Absolutamente-Dife-
rente, ele parece estar a ponto de se revelar; mas não é assim; pois
a diferença absoluta, a inteligência não pode nem pensar; pois
esta não pode negar-se de uma maneira absoluta, porém ela usa
a si mesma para tanto, e portanto pensa em si mesma a diferença
que ela pensa por si mesma; e absolutamente não pode passar
por cima de si mesma, e portanto só pensa aquela elevação para
além de si mesma que ela pensa por si mesma. Na medida então
que o desconhecido (o deus) não é apenas limite, a ideia única do
diferente vem a emaranhar-se nas múltiplas ideias do diferente
(KIERKEGAARD, 2011, p. 68).

5.2 M. HEIDEGGER
Martin Heidegger (1889-1976) foi seguramente um dos maiores fi-
lósofos do séc. XX. Sua vasta produção filosófica se concentrou em re-

99
pensar a questão do ser a partir de uma grande releitura da tradição.
Para ele, o ser não foi pensado nos termos corretos até então: antes,
houve uma confusão entre ser e ente, na qual a diferença entre eles
foi reduzida à mera semelhança. Seu projeto passou por diferentes
caminhos para pensar essa questão. Primeiramente pensando o ser
a partir do único ente que pergunta pelo seu ser, o ser humano. Este
foi pensado como Dasein, o ser-aí, isto é, aquele que está no mun-
do e, diante desse fato, deve lidar com a própria existência e com o
seu futuro aberto. Nesse sentido, ele é livre para projetar sobre a pró-
pria vida. Posteriormente, Heidegger escolhe o caminho da lingua-
gem como aproximação privilegiada para pensar a questão do ser de
modo adequado. Sem desconsiderar o Dasein como o único ente que
pergunta pelo próprio ser, a linguagem é condição de possibilidade
para a experiência humana de mundo, de modo que não é possível
estar em relação com os outros e com as coisas fora da linguagem.
Aqui ela não é somente meio de comunicação, mas mediadora da
possibilidade de experiência.

Martin Heidegger (1889-1976)

A questão da religião, embora não seja primordial no projeto hei-


deggeriano, permeia sua filosofia em todo o tempo. Em sua releitura
da tradição, Heidegger diz que a história da metafísica é a história de
uma ontoteologia. Aqui o conceito de Deus está implicado no modo
como se relacionam ser e ente: onto indica ente, teo indica Deus, lo-
gia indica conhecimento. Com tal afirmação, Heidegger diz que Deus
está na base como a filosofia pensou ser e ente. A questão de Deus

100
na ontologia, portanto, é ainda anterior à questão da ética, uma vez
que trata da filosofia em geral que, a seu tempo, dará espaço para o
pensamento da ética. Para compreendermos o traço onto-teo-lógico
da metafísica precisamos perguntar a Heidegger como o Deus e a te-
ologia entram na metafísica. Para tal, primeiramente o autor define a
metafísica como “o fundar que presta contas do fundamento” (HEI-
DEGGER, 2006b, p. 65). Isso significa que o caráter de ‘logia’ é intrínse-
co a essa filosofia, uma vez que ela compreende seu objeto a partir de
seu fundamento, isto é, respectivamente, o ente e o ser do ente. Mas
essa afirmação não indica ainda a totalidade da metafísica, uma vez
que “a metafísica pensa o ser do ente, tanto na unidade exploradora
do mais geral, quer dizer, do que em toda parte é indiferente, como
na unidade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de
tudo” (HEIDEGGER, 2006b, p. 65). O ente supremo que, na metafísica,
é entendido como fundamento, é Deus enquanto causa sui. Na medi-
da em que a metafísica não diferencia ser e ente em sua busca pelo
ser do ente, ela fundamenta o ser em geral num ente que, apesar de
supremo, continua ente. Essa é uma das aproximações de Heidegger
à religião, mais ligada à sua crítica à tradição metafísica: essa tradição
sustenta o ser em um ente supremo, Deus. Esse Deus, entretanto, não
é o Deus cristão, mas um conceito filosófico cujo sentido é apenas
lógico. Em sua crítica direta:

Porque o ser aparece como fundamento, o ente é o fundamenta-


do; mas o ente supremo é o fundamentante no sentido da primei-
ra causa. Pensa a metafísica o ente no que respeita seu fundamen-
to, comum a cada ente enquanto tal, ela é lógica como ontológica.
Pensa a metafísica o ente enquanto tal no todo, quer dizer, no que
respeita o supremo, (que é o) ente que a tudo fundamenta, ela é
lógica como teológica. [...] A constituição onto-teológica da meta-
física emerge do imperar da diferença que sustenta separados e
unidos ser como fundamento e ente como fundado-fundamentan-
te, sustentação que a decisão consuma. [...] Esta é a causa como

101
causa sui. Assim soa o nome adequado para o Deus na filosofia.
A este Deus não pode o homem nem rezar nem sacrificar. Diante
da causa sui, não pode o homem nem cair de joelhos por temos,
nem pode, diante deste Deus, tocar música e dançar (HEIDEGGER,
2006, p. 74-75).

Outra aproximação que o autor traça em relação à religião se deu


em um curso sobre uma Fenomenologia da vida religiosa. Esse curso
foi ministrado não apenas por interesse de Heidegger, mas a pedido
de seu mestre Husserl que, compartimentalizando seu projeto feno-
menológico, distribuiu aos seus alunos partes da vida humana sobre
as quais a fenomenologia poderia inferir. A Heidegger coube a reli-
gião, tema que, embora tenha sido profícuo nesse curso, não foi de
interesse do autor continuar diretamente abordando. Para tal, Heide-
gger opta por realizar uma interpretação fenomenológica das cartas
do Apóstolo Paulo aos Gálatas, e aos Tessalonicenses (ambas). Com
isso, Heidegger pretende apontar algumas características que, para
ele, são originárias da experiência cristã da vida. Na interpretação do
autor, Paulo descreve nas epístolas uma relação singular dos cristãos
com o tempo. Sendo o retorno de Cristo tema fundamental das car-
tas, a ansiosa espera pela parousia faz com que os primeiros cristãos
experimentem um modo de vida diferente do cotidiano, uma vez que
vivem atentos aos sinais da volta de Cristo. Essa esperança, portanto,
fornece novos sentidos à vida fática dos cristãos. A vida fática é a vida
real, vivida concretamente e experimentada pelos seres humanos,
ela é o modo como se experimenta viver. Por isso, as conclusões de
Heidegger são de que

A experiência cristã da vida não modifica propriamente pelo ter-


se-tornado. O sentido referencial da vida cristã é diferente do sen-
tido mundo circundante. Se o sentido referencial do mundo cir-
cundante estivesse autonomamente na experiência cristã da vida,
algumas passagens de Paulo seriam incompreensíveis. O voltar-se

102
para a vida cristã diz respeito à realização. [... Paulo] desiste dos
meios e das significâncias mundanas e, desse modo, lutando, ele
abre caminho. Renunciando à forma mundana de defesa se forta-
lece a necessidade da vida. É praticamente desesperançoso entrar
em tal complexo realizador. O cristão possui a consciência de que
essa facticidade não pode ser alcançada por suas próprias forças,
mas que procede de Deus - fenômeno da ação da graça (HEIDEG-
GER, 2014, p. 108-109).

Esse parece ser o mais vigoroso esforço de Heidegger em pensar


uma filosofia da religião, ou mesmo suas bases. Por isso, não é acu-
rado dizer que o autor possui uma filosofia própria da religião - suas
contribuições filosóficas não são largas o suficiente para sustentar tal
afirmação. Mas, por outro lado, sua fenomenologia da vida religiosa
nos permite interpretar um árduo esforço para pensar a religião em
chave fenomenológica e demonstra, em seus limites, tal possibilida-
de. Assim, não é errôneo inferir que, apesar de não ter uma filosofia
própria da religião, Heidegger postula as bases para que ela seja reali-
zada a partir de seu pensamento. Aqui, devemos voltar ao âmbito ge-
ral de seu projeto reflexivo acerca da questão do ser para afirmar que,
não apenas a fenomenologia da vida religiosa, mas também a ana-
lítica existencial do Dasein e a aproximação à questão da linguagem
podem ser interpretadas como base para uma filosofia da religião a
partir de Heidegger - mas, sublinhamos, não em Heidegger. Essa filo-
sofia da religião não seria meramente analítica nem conceitual-abs-
trata. Nas palavras do autor: “a genuína filosofia da religião não surge
de conceitos previamente elaborados da filosofia da religião, mas,
sobretudo, de uma determinada religiosidade - para nós, a cristã - se-
guida pela possibilidade de sua apreensão filosófica” (HEIDEGGER,
2014, p. 111).
Em fase mais tardia, Heidegger retoma elementos religiosos. Se a
primeira parte de seu pensamento é marcada por Ser e Tempo, a se-

103
gunda se condensa em sua Contribuição à Filosofia, obra de grande
fôlego e, ao mesmo tempo, densa obscuridade redacional. Aproxi-
mando-se de certa tradição mística, o autor redige uma obra em pa-
rágrafos nem sempre conectados e sustenta teses aforisticamente. O
último capítulo dessa obra é intitulado “o último deus”. Aqui, a refe-
rência não é de um Deus cristão, mas dos deuses ainda a serem cria-
dos pelas possibilidades de futuro. Mais uma vez Heidegger recorre a
termos religiosos como fonte de sua filosofia. Tanto nessa, quanto em
outras obras, Heidegger recorre à ideia de deuses que nos anunciam
as possibilidades de um novo futuro. Diz ele: “do domínio sagrado
desses manifesta-se o Deus em sua atualidade ou se retrai em sua
dissimulação” (HEIDEGGER, 2007, p. 129). Em meio aos deuses, es-
ses mensageiros, encontra-se o Deus. Não apenas para nós, mas para
o próprio autor, a figura do Deus possui caráter especial dentro da
quadratura, de modo que “o divino é ‘a medida’ com a qual o homem
confere medida ao seu habitar, à sua morada e demora sobre a ter-
ra, sob o céu” (HEIDEGGER, 2007, p. 172). Por mais que não se possa
afirmar essa correlação com o cristianismo diretamente, apesar de
biograficamente, a evocação do Deus último tem um significado re-
ligioso que está diretamente relacionado com seu pensamento de
uma ética originária. Nas palavras de Heidegger, “o último deus não
é o fim, mas o outro início de possibilidades imensuráveis de nossa
história. Em virtude dele, a história até aqui não deve se fundar, mas
precisa ser trazida ao seu fim” (HEIDEGGER, 2015, p. 398). Isso indica
que o último deus tem, irrevogavelmente, um caráter de abertura ao
futuro que vem e que manifesta um presente inacabado, isto é, o fim
da ultimidade do presencialismo metafísico. O ultimato que o último
deus dá à ontoteologia abre a possibilidade para experiências do sa-
grado não metafísicas dentro e fora do âmbito do cristianismo. Nesse
sentido, o homem que se demora junto a ele conquista a possibilida-
de de habitar poeticamente a terra em um novo sentido ético. Assim,
as possibilidades tanto éticas quanto existenciais para o ser humano

104
encontram correspondência na proveniência mística de um deus últi-
mo que contraria o caráter ontoteológico da metafísica.

5.3 E. LEVINAS
Emmanuel Levinas (1906-1995) foi um dos grandes filósofos da
linhagem da fenomenologia contemporânea. Herdeiro de Husserl
e Heidegger, o objetivo do autor foi pensar a ética e a justiça como
pontos primordiais para a filosofia. Embora a concretude da busca
fenomenológica esteja implícita em suas obras, o caráter abstrato de
sua filosofia em favor de uma não redução do Outro ao mesmo carac-
teriza seu pensamento.
Em linhas gerais, o objetivo da filosofia de Levinas se demonstra
desde sua primeira grande obra, Totalidade e Infinito. Primeiramente,
há um problema a ser resolvido: “a filosofia ocidental foi, na maioria
das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, pela in-
tervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do
ser” (LEVINAS, 1980, p. 30). Em outras palavras, a ética da tradição fez
do Outro uma reprodução do Mesmo, de modo que a alteridade que
deveria marcar a ética é totalmente destruída. Sua proposta, portan-
to, é formular uma filosofia na qual o Outro seja reconhecido como tal
e, a partir disso, a ética chegue à justiça. A virada que o pensamento
de Levinas propõe para a filosofia é de que “A moralidade não é um
ramo da filosofia, mas a filosofia primeira” (LEVINAS, 1980, p. 284). O
pensamento da ética toma, aqui, o lugar de primazia do pensamento
filosófico, de modo que ela não deve ser somente mera consequên-
cia da metafísica e da epistemologia, mas um pensamento próprio e,
nesse sentido de primeiro, originário. Nesse ponto também está pre-
sente a religião, sobretudo na fundamentação da sacralidade do ros-
to do Outro, o aspecto visível e concreto que impõe responsabilidade
ao ser humano, demonstra sua infinita diferença e a impossibilidade
de assegurar um pensamento da totalidade sobre ele.

105
Emmanuel Levinas (1906-1995)

As fontes da filosofia de Levinas, todavia, não se resumem à in-


fluência fenomenológica e ao grande contato que teve com a lite-
ratura russa na juventude. O autor possui ascendência judaica, fato
que marca sua percepção e seu pensamento. Exemplo disso são suas
interpretações filosóficas dos talmudes. Esses livros são a descrição
das interpretações e discussões rabínicas acerca das narrativas e leis
da Tanakh, a Bíblia judaica. Nesse sentido, a herança judaica faz com
que Levinas volte-se não somente para as narrativas sagradas em si,
mas para a interpretação histórica nas sinagogas que as envolve. To-
davia, como apresentamos abaixo, sua leitura não é mera repetição
de dogmas judaicos, mas um desenvolvimento criativo das implica-
ções filosóficas e, sobretudo, éticas das interpretações que analisa.
Aqui, podemos dizer que a filosofia da religião que Levinas desenvol-
ve em seu trabalho tem duas frentes: uma através das interpretações
talmúdicas e outra de sustentação da santidade do rosto do Outro.
Em linhas gerais, tanto um quanto outro caminho tem por objetivo
uma “ontologia aberta à responsabilidade com o próximo” (LEVINAS,
2002, p. 97).
Suas interpretações talmúdicas se espalham por sua obra. Por ve-
zes o autor dedica livros inteiros a elas, outras vezes, insere-as em
argumentações de maior abrangência. Em uma conferência intitula-
da “A vontade do céu e o poder dos homens”, Levinas lê trechos da

106
Michna e da Guemara que tratam sobre a justa punição para aque-
les que desrespeitam as leis. Em síntese, o texto do autor aborda a
relação entre lei humana e lei divina em relação à questão da graça
divina. Para além do próprio âmbito teológico, em Levinas importa o
modo como se estabelece a justiça para iluminar os princípios éticos
que podem ser seguidos. Deve-se lembrar que essa conferência se
deu em 1974, apenas 29 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial
na qual o povo judeu foi levado aos campos de concentração em um
genocídio nazista. Mesmo com os julgamentos que aconteceram nas
décadas após 1945, a questão da justiça permanece central para um
povo que lamentava 6 milhões de mortos. Por isso, esse é o tema da
interpretação de Levinas. Em suas palavras,

A grandeza da justiça de que trata esta parte final da Michna, e


que condiciona uma vida obediente a mandamentos múltiplos, é
também a glória dos tribunais e juízes. Tornar a doutrina gloriosa:
só os juízes, praticando eles próprios os mandamentos múltiplos,
podem formar a gloriosa assembleia em que se quer a vontade de
Deus. O juiz não é somente um juiz especialista em leis, ele obe-
dece às leis que aplica, e o estudo das leis é também a forma es-
sencial dessa obediência. É necessária uma tal situação para que
a violência da flagelação reduza o ‘cerceamento’, para que possam
as responsabilidades de um para com o outro e as estruturas - on-
tologicamente estranhas - assumir, infligindo uma punição, o ser
do outro; somente assim é possível um valor anterior à liberdade
que não destrói a liberdade, o que provavelmente é o primeiro sig-
nificado da palavra excepcional: Deus (LEVINAS, 2002, p. 26).

Por fim, suas considerações não se prendem somente ao texto do


Talmude, mas também à contemporaneidade. Isso porque, para Levi-
nas, a questão da justiça não é uma reflexão acerca do modo como as
leis bíblicas devem ser seguidas à risca, mas como a lei pode refletir o
que é justo ou, antes, em que medida ela já o faz. Nesse sentido, Deus

107
é mais do que aquilo que assegura a lei ou a justiça, mas aquele que
sustenta a justiça anterior à liberdade sem, entretanto, destruir essa
liberdade. Essa noção é contraposta à ética imanentista que, crítica
de toda tradição religiosa, ironiza o caráter metafórico de suas inter-
pretações de mundo como se, também a crítica, não se baseasse em
uma interpretação metafórica do mundo e da experiência humana.
Por isso, a sustentação da justiça frente a liberdade não deve ser afir-
mada como se o direito de um necessariamente se contrapusesse ao
direito dos outros. A relação não é de limite, mas de retirada, cercea-
mento para a liberdade do Outro.
Outra interessante interpretação talmúdica que Levinas traça se
dá em torno do conceito de perdão em “Com respeito ao Outro”. Aqui,
o enfoque do autor diz respeito ao dia do Yom Kipur, o dia em que
os sacrifícios a Deus são oferecidos e Ele, em resposta, perdoa os pe-
cados do povo. Todavia, ressalta Levinas, essa lógica se estabelece
somente com os pecados cometidos contra Deus que, nesse sentido,
é o Outro perfeito e exemplar. Os pecados cometidos contra os outros
seres humanos, ou contra a terra, não dispõe de um esquema ritual
tão claro, objetivo e certo. Isto é, pode ser que os outros imperfeitos
não aceitem qualquer sacrifício realizado em pedido de perdão. Nes-
se ponto reside a problemática de que Levinas trata no texto. Diz o
autor que toda ofensa ao próximo é, necessariamente, uma ofensa ao
próprio Deus, embora o contrário não seja verdadeiro.
Isso indicado, Levinas tenta levar ao limite a experiência do per-
dão - não mais do lado daquele que se sacrifica em nome dele, mas
sob o ponto de vista daquele que é ofendido. Aqui, mais uma vez,
há uma distinção: há aquele que deve ser perdoado e há aquele que
deve ser desculpado. Nesse caso, o ofensor comete um erro contra
o Outro sem ter noção de que o ofende ou erra para com ele. Ainda
que culpado, pode se retirar dele a culpa, isto é, desculpá-lo. Entre-
tanto, quando o ofensor sabe que o erro é erro e, ainda assim, decide
conscientemente por cometê-lo, ele não deve ser desculpado, mas,

108
assumindo a culpa, pode ser perdoado. O ponto determinante, aqui,
é a consciência de saber-se ofensor e, apesar disso, prosseguir com a
ofensa. Pessoalmente, Levinas admite nesse trecho um incômodo em
relação aos posicionamentos nazistas de seu predecessor na fenome-
nologia: “Podem-se perdoar muitos alemães, mas alguns alemães, é
difícil de se perdoar. É difícil perdoar Heidegger” (LEVINAS, 2003, p.
54). Nesse ponto, o tema do perdão é ético, religioso, filosófico e, so-
bretudo, existencial.
Como uma espécie de preâmbulo dessa importante leitura, Levi-
nas indica uma questão sobre Deus que, sob o ponto de vista da filo-
sofia da religião, mostra-se um raciocínio de grande validade e, tam-
bém, de grande fecundidade para esse campo. Deus, para Levinas,
é, além de objeto religioso de devoção, uma noção filosófica e cultu-
ral que está diretamente ligada à moralidade e, portanto, tem muita
validade para o pensamento da ética. Exatamente por isso, falar em
Deus é importante e perigoso: tal nome tem sido objeto de inúmeras
desvirtuações e equívocos. Por isso o autor se esforça por esclarecer
como Deus está pressuposto no pensamento da ética. Diz Levinas:

Considerando-se, porém, que o próprio nome de Deus - o mais fa-


miliar aos homens - permanece também o mais obscuro, exposto
a todos os abusos, tento projetar sobre ele alguma luz que vem
do próprio lugar que ele ocupa nos textos, daquele contexto que
nos é compreensível na medida em que fala da experiência mo-
ral dos homens. Deus - qualquer que seja o significado final e, de
todo modo, sem disfarces - aparece à consciência humana (e so-
bretudo na experiência judaica) ‘vestido’ de valores; e essa veste
não é estranha a sua qualidade natural ou sobrenatural. O ideal,
o racional, o universal, o eterno, o Altíssimo, o transubjetivo etc. -
noções permeáveis à inteligência - são as suas vestes morais. Pen-
so então que, quaisquer que sejam a experiência última do Divino
e sua significação final religiosa ou filosófica, elas não podem se
separar dessas experiências e significados anteriores; elas não po-

109
dem abarcar valores nos quais resplandece o Divino. A experiência
religiosa não pode - ao menos para o Talmud - deixar de ser antes
uma experiência moral (LEVINAS, 2003, p. 33-34).

Justamente por isso, diz Levinas, a responsabilidade que o rosto


do Outro nos impõe é uma responsabilidade sagrada. Um interessan-
te exemplo bíblico para ilustrar a posição do autor, é o ponto em que,
não tendo achado Abel, Deus questiona Caim e ele responde “Sou
guardador do meu irmão”? Diria Levinas que a resposta de Deus, sim,
vem em forma de condenação para Caim. Há, portanto, uma respon-
sabilidade para com todos os irmãos que é sustentada, no limite, pela
própria noção de Deus. Por isso, diz Levinas que “O homem é o ser
que reconhece a santidade e o esquecimento de si. [...] é o ser que já
ouviu e compreendeu o mandamento da santidade no rosto do outro
homem” (LEVINAS, 2014, p. 40). O rosto do Outro tem uma santidade
intrínseca que é sustada por Deus. A figura do rosto do Outro é es-
pecificamente importante para a argumentação levinasiana. Ora, o
Outro enquanto totalidade alheia a mim é impossível de ser captado
ou compreendido. Entretanto, me relaciono com o Outro através de
seu rosto. O rosto é o único âmbito visível por meio do qual me rela-
ciono com o Outro. O rosto serve, nesse ponto, de lembrete de que
não posso reduzir o Outro a qualquer aspecto impessoal. Assim como
o rosto de cada qual é único, única é a totalidade que ele representa
em infinitude e que, só podendo ser interpretada parcialmente, não
pode ser tomada como absoluto. A santidade do rosto do Outro nos
impõe um dever ético de cuidado, de assumir a posição de guardador
dessa santidade.

5.4 J. HICK
John Hick (1922-2002), apesar de ser inglês, também construiu sua
carreira acadêmica nos Estados Unidos, lecionando em universida-
des como Cornell, Princeton e Claremont, e em Cambridge, no Rei-

110
no Unido. Suas contribuições, diferentemente da maioria dos outros
filósofos aqui apresentados, se dão diretamente na filosofia da reli-
gião. Com mais precisão, podemos indicar que Hick se posiciona em
uma linha na fronteira entre filosofia da religião e teologia filosófica.
Por um lado, Hick abordava questões como o pluralismo religioso e
enfrentava problemas como teodiceia, a crença em Deus e a lingua-
gem religiosa a partir de um cabedal de filosofia analítica. Por outro
lado, questionava-se filosoficamente sobre o significado da encarna-
ção divina, da morte, das fronteiras entre fé e ciência, e pensava uma
teologia cristã das religiões. Se, como podemos observar, os temas
de que trata são de grande diversidade, o caminho que Hick escolheu
para enfrentá-los é um só: o da filosofia analítica. A partir dela, o au-
tor buscou trazer clareza aos problemas de modo a resolvê-los e sim-
plificá-los por meio da lógica.

John Hick (1922-2002)

Primeiramente, apresentaremos sua definição de filosofia da re-


ligião, a partir da qual pensa temas como a definição de Deus, os
problemas da crença, da revelação e do destino humano. Posterior-
mente, apresentaremos uma importante leitura que faz sobre a en-
carnação de Deus em Jesus por meio da chave da metáfora.
Para Hick, a filosofia da religião deve se diferenciar da disciplina
apologética. Essa distinção é importante: enquanto a apologética
teria por interesse defender os dogmas e as crenças fundamentais

111
de uma religião, inclusive com argumentos científicos e filosóficos, a
filosofia da religião colocaria à prova, com critérios lógicos, a plausi-
bilidade de tais dogmas e crenças. Portanto, para o autor, a filosofia
da religião não está no âmbito (nem sob o domínio) da religião e das
instituições religiosas. Antes, a filosofia da religião deve ser percebida
como um âmbito da filosofia e, como tal, ser regida por seus princí-
pios crítico-racionais. Em outras palavras, a filosofia da religião não
deve se submeter a argumentos de autoridade, nos quais mais vale
a palavra de alguém em posição hierárquica superior (o Papa, pastor,
bispo etc.) do que o argumento logicamente mais adequado. Na me-
dida em que rejeita o recurso autoritativo, a filosofia da religião esca-
pa à lógica interna das religiões de respeito ao dogma, submetendo-o
ao crivo crítico. Nas palavras de Hick:

Até recentemente, entendia-se, em geral, que a ‘Filosofia da Reli-


gião’ devia significar a defesa filosófica das convicções religiosas.
Era considerada como dedicada ao trabalho de distinguir a ‘teolo-
gia natural’ da ‘teologia revelada’. Seu objetivo era demonstrar ra-
cionalmente a existência de Deus, preparando, assim, o caminho
para as pretensões da revelação. Mas parece melhor denominar
este empenho de ‘teologia natural’ e classificar a mais ampla defe-
sa das crenças religiosas de ‘apologética’. Então podemos reservar
o nome de Filosofia da Religião (por analogia com a filosofia da
ciência, filosofia da arte etc.) para aquilo que representa sua pró-
pria significação, isto é, a reflexão filosófica sobre a religião. Desta
forma, a Filosofia da Religião não é um setor de ensino religioso.
Na verdade, ela não precisa ser tomada sob qualquer aspecto
do ponto de vista religioso. O ateísta e o agnóstico, assim como
o crente, podem e devem filosofar a respeito da religião. Filoso-
fia da religião não é, portanto, um ramo da Teologia (significando
‘Teologia’ a formulação sistemática das crenças religiosas), mas
um ramo da Filosofia. Ela estuda os conceitos e as proposições da
Teologia e o raciocínio dos teólogos, bem como os fenômenos an-

112
teriores da experiência religiosa, e as atividades do culto em que
finalmente a Teologia repousa e do que ela se origina. Filosofia
da Religião é, assim, uma atividade secundária, permanecendo,
até certo ponto, distante de sua própria matéria. Não representa
ela mesma uma parte do campo religioso, mas está relacionada
a ele, da mesma forma que a filosofia do direito está com o do-
mínio dos fenômenos legais, conceitos e argumentos jurídicos,
ou então, na medida em que a filosofia da arte se relaciona com
os fenômenos artísticos e com as categorias e métodos do debate
estético. A Filosofia da Religião está, assim, relacionada com as di-
ferentes religiões e teologias existentes no mundo, tal como a filo-
sofia da ciência se relaciona com as ciências particulares. Procura
analisar conceitos tais como: Deus, o sagrado, a salvação, o culto,
a criação, o sacrifício, a vida eterna etc., e determinar a natureza
das expressões religiosas, em comparação com as formas da vida
quotidiana, com as descobertas científicas, com a moral e com as
expressões imaginativas das artes (HICK, 1970, p. 11-12)

A partir dessas considerações basilares, que permanecem no tra-


balho de Hick como pressupostos, o autor investiga a fundamenta-
ção lógica das principais questões da fé cristã. Especificamente, em
Filosofia da Religião, publicada em 1963, o autor começa tratando
do conceito judaico-cristão de Deus analisando filosoficamente seus
atributos mais específicos, como infinito, criador, individual, amoro-
so e bondoso. Passa, então, a uma revisão lógica dos fundamentos
racionais tanto para a crença em Deus quanto para a descrença em
qualquer transcendente. Aqui, Hick analisa os argumentos ontológi-
cos, cosmológicos, teleológicos, morais e teístas, em geral; mas tam-
bém a teoria sociológica, freudiana e científica da existência de Deus.
O autor prossegue na análise de temas como a imortalidade da
alma humana e o seu destino após a morte, relacionando-os, pos-
teriormente, com o tema da revelação como unidade autoritativa,
os problemas da linguagem religiosa (de Tomás de Aquino a Paul

113
Tillich), e da verificabilidade. Neste, Hick avalia as possibilidades de
afirmação de verdade no âmbito da religião. Ora, as noções de exis-
tência, fato e realidade, para o autor, não devem ser tomadas como
dados objetivos, mas devem também ser investigadas. Se “existir”
significa estar presente em certo momento da história e da geografia,
Deus não existiria em certas noções, uma vez que é onipresente, ou
seja, fora da geografia, e eterno, fora da história. Deus é, mas não exis-
te, nesse sentido. Por isso, a afirmação de que certas crenças seriam
falsas depende de conceitos de realidade e de existência que não são,
a princípio, fáceis de definir. Assim, a verificabilidade na filosofia da
religião depende de uma epistemologia e de uma metafísica bem fun-
damentadas.
A ponte entre a filosofia da religião e a teologia filosófica em Hick
se estabelece por meio do diálogo inter-religioso e a teologia das re-
ligiões que o autor elabora. De certo modo, uma fundamenta a pos-
sibilidade da outra e, consequentemente, a passagem lógica de um
campo ao outro. O fato de que as religiões em sua imensa diversidade
devem dialogar, surge de uma análise do campo mesmo de estudos
dela. Para Hick,

A natureza da religião é um assunto vasto e complexo que pode


ser estudado através de grande variedade de aspectos. Religião
representa um fato para o antropólogo, outro para o sociólogo,
outro para o psicólogo, ainda outro para o psicólogo seguinte, ou-
tro para o marxista, outro para o místico, outro para o zen-budista
e ainda outro para o judeu e o cristão. Como resultado disso tudo,
há grande variedade de teorias antropológicas, sociológicas, psico-
lógicas, naturalistas e religiosas, a respeito da natureza da religião.
Em consequência, não há uma definição de religião que seja univer-
salmente aceita e possivelmente jamais haverá (HICK, 1970, p. 13).

Em outras palavras, Hick assume a impossibilidade de uma defini-


ção sobre o conceito de religião, bem como, consequentemente, um

114
consenso acerca da verdade das religiões. Por isso, estudá-las sob
a chave e a perspectiva da diversidade e do pluralismo é tão essen-
cial. Para tal, é preciso, partindo do cristianismo, sua religião de ber-
ço, reconhecer os limites da própria religião. Isso significa que, para
o autor, o diálogo inter-religioso só pode se dar se cada religião se
reconhecer como uma parcela verdadeira em seu contexto, mas não
verdadeira universalmente. Assim, o proselitismo de afirmar uma re-
ligião melhor do que outra deveria ser deixado de lado em nome de
um reconhecimento do pluralismo como chave para o diálogo e, em
último termo, a paz.
Por isso, uma proposta de teologia filosófica de Hick é reconhecer
a encarnação de Deus em Cristo como uma metáfora. Isto é, Deus não
teria de fato se encarnado em Jesus de Nazaré: essa figura seria uma
metáfora para afirmar a veracidade existencial das palavras de Jesus
e a coerência de sua interpretação e de sua vida dentro da proposta
judaico-cristã. Em suas palavras, reproduzimos a problemática que
Hick aponta no dogma cristão frente à questão do pluralismo e, pos-
teriormente, sua proposta de leitura:

A compreensão cristã tradicional de Jesus de Nazaré afirma que


Ele foi Deus encarnado, tornou-se homem a fim de morrer pelos
pecados do mundo e fundou a Igreja para proclamar esse desígnio.
Se Ele de fato foi Deus encarnado, o cristianismo é a única religião
fundada por Deus em pessoa e deve, como tal, ser incomparavel-
mente superior a todas as outras religiões. [...] a ideia de encarna-
ção divina é melhor compreendida como ideia metafórica, e não
literal - Jesus incorporou, ou encarnou, o ideal da vida humana
vivida em fiel resposta a Deus, de sorte que Deus foi capaz de agir
através dele, e que Ele, por conseguinte, foi a corporificação de
um amor que é reflexão humana do amor divino (HICK, 2000, p. 9).

115
5.5 R. GIRARD
René Girard (1923-2015), além de filósofo francês, foi historiador,
antropólogo, filólogo, crítico literário e cientista social. Essa multipli-
cidade de atividades está diretamente relacionada às suas principais
teorias que, para serem melhor fundamentadas e colocadas à prova,
exigiram que seu pensamento caminhasse entre diversos campos das
humanidades. Sua principal contribuição à história do pensamento
humano se dá em sua teoria do desejo mimético. Para o autor, toda
violência da sociedade se explica por um ponto em comum: a frustra-
ção dos desejos.
Entretanto, ao contrário do que se poderia sugerir, diz Girard, os
desejos humanos não são autônomos: eles provêm da imitação do
desejo dos outros que nos cercam. Por isso sua teoria é intitulada
“desejo mimético”, o desejo que marca ontologicamente o ser huma-
no e gera a violência da sociedade é copiado, mimetizado, dos outros
que nos cercam. Esse aspecto, Girard esclarece, faz com que a relação
do desejo não seja meramente direta, mas triangular: o desejo não se
dá apenas entre sujeito e objeto, mas entre sujeito e objeto com a me-
diação de um segundo sujeito de quem se mimetiza o desejo. Assim,
infinitamente, a sociedade mimetiza o desejo do outro.

René Girard (1923-2015)

O desejo por ser mimético, nesse sentido, é sempre mediado por


um terceiro a quem o indivíduo secretamente admira e de quem co-

116
pia o seu desejo. A relação de mimese, entretanto, gera também ódio.
Ódio primeiramente do indivíduo contra si mesmo, por não ser capaz
de gerar um desejo original, mas somente copiá-lo de alguém a quem
admira. Nas palavras de Girard,

O impulso em direção ao objeto é no fundo impulso na direção


do mediador; na mediação interna, esse impulso é quebrado pelo
próprio mediador já que este mediador deseja, ou talvez possua,
esse objeto. O discípulo, fascinado por seu modelo, vê forçosa-
mente, no obstáculo mecânico que este último lhe opõe, a prova
de uma vontade perversa para com ele. Longe de se declarar vas-
salo fiel, esse discípulo não pensa senão em repudiar os laços da
mediação. Esses laços, no entanto, estão mais sólidos do que nun-
ca, pois a hostilidade aparente do mediador, longe de lhe diminuir
o prestígio, não faz senão aumentá-lo. O sujeito está persuadido
de que seu modelo se julga demasiadamente superior a ele para
aceitá-lo como discípulo. Então, o sujeito experimenta por esse
modelo um sentimento dilacerante formado pela união destes
dois contrários que são a mais submissa veneração e o mais in-
tenso rancor. Eis aí o sentimento que chamamos de ódio. Apenas
o ser que nos impede de satisfazer um desejo que ele próprio nos
despertou é verdadeiramente objeto de ódio. Quem odeia, odeia
primeiramente a si mesmo em razão da admiração secreta que
seu ódio encobre. A fim de esconder dos outros, e de esconder de
si mesmo, essa admiração desvairada, ele não quer enxergar mais
em seu mediador senão um obstáculo. O papel secundário desse
mediador passa desse modo ao primeiro plano e dissimula o pa-
pel primordial de modelo religiosamente imitado. Na disputa que
o opõe a seu rival, o sujeito inverte a ordem lógica e cronológica
dos desejos com o fim de dissimular sua imitação. Ele afirma que
seu próprio desejo é anterior ao de seu rival; logo, se lhe dermos
ouvidos, ele nunca é o responsável pela rivalidade: é o mediador.
Tudo o que provém desse mediador é sistematicamente denigrido

117
apesar de ainda secretamente desejado. O mediador é agora um
inimigo sutil e diabólico, procura despojar o sujeito de suas mais
caras posses; contrapõe-se obstinadamente a suas mais legítimas
ambições (GIRARD, 2009, p. 34-35).

A violência, nos diz Girard, não decorre somente desse ódio a si


mesmo. Ela nasce, todavia, no seio da própria rivalidade que se ex-
põe pela estrutura triangular do desejo mimético. Na medida em que
não se reconhece como imitador, o admirador do desejo do outro cria
uma rivalidade com aquele a quem copia, de modo que, em pouco
tempo, essa disputa pelo objeto desejado gera a violência. Para Gi-
rard, portanto, a violência seria causada pela rivalidade gerada pelo
desejo mimético. A violência social, por exemplo, seria um reflexo do
fato de que diversas pessoas copiam o mesmo desejo e geram uma
mútua rivalidade entre si.
O grande problema da violência, além de toda a problemática in-
trínseca a essa noção, é o fato de que ela não é pontual. Isto é, a vio-
lência não se resolve em um ato singular e isolado, mas em um ciclo
interminável por meio da vingança. Tal ciclicidade, entretanto, não se
dá meramente na repetição de atos de igual proporção, mas é cres-
cente. Nesse sentido, a vingança desencadeia uma espiral crescente
de violência: na medida em que começa em uma rivalidade singu-
lar, mas se espalha por todo o corpo social, a vingança faz expandir
a violência - sobretudo porque a vingança nunca encontra um fim.
Quando um dos lados de uma rivalidade executa um ato de violência,
o outro lado obriga-se a vingar em um ato de violência ainda maior
e assim por diante. Assim, por meio da vingança a violência torna-se
espiral.
O que, então, poderia dar fim ao ciclo da violência? Girard respon-
de histórica e antropologicamente: o artefato que sempre foi usado, o
sacrifício. Em suas palavras, “a função do sacrifício é apaziguar as vio-
lências intestinas e impedir a explosão de conflitos” (GIRARD, 1990,

118
p. 26). Aqui reside a ligação entre violência e sacrifício - e, portanto,
a contribuição de Girard à filosofia da religião. No sacrifício rompe-se
o ciclo da violência por meio da própria violência. Entretanto, trans-
forma-se a direção do alvo da violência: não mais aqueles que estão
em rivalidade direta, mas uma vítima sacrificial é imolada para conter
o ciclo de vingança. Há, portanto, um deslocamento vitimário: a vio-
lência deve não mais se voltar ao conflito mesmo, mas, por meio de
um esquecimento, imolar uma vítima alheia ao conflito. Nesse senti-
do, para Girard, a teologia sacrificial, que sustenta esse rito, fornece
aparência divina a um estatuto, lógica de quebra da violência. O sa-
crifício seria uma exigência de um deus para apaziguar sua ira e seu
descontentamento. Na verdade, diz o autor, quem exige o sacrifício é
a própria sociedade para apaziguar seus próprios ânimos e proteger-
se de si própria.
Em sua análise das sociedades antigas, bem como de grandes ro-
mances da história mundial, Girard revela um tipo preferencial de ví-
tima sacrificial. Ora, se não são os lados de uma rivalidade que devem
ser imolados em sacrifício, quem seria? Na interpretação de Girard, as
vítimas são, preferencialmente, seres que vivem às margens da socie-
dade ou são dela excluídas. Eis os exemplos: prisioneiros de guerra,
escravos, crianças, estrangeiros e bandidos. Isso garante que a estru-
tura do sacrifício continue em voga até os dias de hoje: ainda que os
rituais sacrificiais não ocorram como eventos político-religiosos nos
quais toda a sociedade participa, sua estrutura é atualizada por meio
de linchamentos e assassinatos de pessoas pertencentes a grupos
marginalizados. Ainda que em chave distinta, essas mortes mantêm
o funcionamento psíquico do sacrifício como modo de pacificação da
violência causada pelo desejo mimético. Nas palavras de Girard, “gra-
ças ao mecanismo persecutório, a angústia e as frustrações coletivas
encontram uma satisfação vicária sobre vítimas que facilmente pro-
vocam a união contra elas, em virtude de sua pertença a minorias mal
integradas” (GIRARD, 2004, p. 55). Nesse sentido, o sacrifício continua

119
sendo um modo contemporâneo de uso da religião para apaziguar
a violência social. A relação entre sacrifício e desejo mimético se de-
monstra inclusive nos mitos:

Entre as rivalidades e o sacrifício existe, portanto, uma afinidade


jamais desmentida. Vejo a prova disso no fato de que, assim que
se oferece um sacrifício, pouco importa em que lugar, pouco im-
porta por quem, os deuses se precipitam todos e entram em rivali-
dade por isso. Cada um deles deseja que o sacrifício seja oferecido
somente a ele e que outros deuses fiquem excluídos. Mesmo na
ausência de demônios, ou seja, no grupo dos deuses, assim que
se trata de sacrifício, rivalidades explodem (GIRARD, 2011, p. 55).

No exemplo acima, Girard faz uma leitura de tradições religiosas


orientais e suas histórias sagradas para demonstrar que o desejo mi-
mético é algo tão alastrado, ainda que pouco investigado enquanto
estrutura de relação social, que ele se reflete até mesmo numa estru-
tura “superior” à terrestre. Assim, mesmo o sacrifício que, religiosa-
mente, é oferecido aos deuses pode ser objeto de desejo mimético e
gerar rivalidade. Seguindo a lógica de Girard, para apaziguar a rivali-
dade pelo sacrifício entre os deuses, seria preciso que eles ofereces-
sem algo marginalizado, talvez um filho bastardo, em sacrifício a um
deus superior para que, apaziguando sua ira, a rivalidade fosse posta
em segundo plano e o ciclo de violência e vingança tivesse seu fim.
A necessidade de sacrifícios apontada por Girard também encontra
ressonância no sistema judiciário moderno. A partir desse exemplo o
autor resume a relação entre violência e sacrifício:

Atualmente, julgamos rudimentares os procedimentos curativos


das sociedades primitivas, pois elas representariam simples ‘en-
saios’ para o sistema judiciário, com um objetivo bem visível: não
é o culpado que mais interessa, mas as vítimas não vingadas; é
delas que vem o perigo mais imediato. É preciso oferecer a estas

120
vítimas uma satisfação rigorosamente avaliada, apaziguando seu
desejo de vingança sem despertá-lo em outra parte. Não se trata
de legislar sobre o bem ou o mal, nem de fazer respeitar uma jus-
tiça abstrata, mas de preservar a segurança do grupo eliminando
a vingança, de preferência por meio de uma reconciliação fundada
em um compromisso ou, caso esta reconciliação seja impossível,
por meio de um confronto armado, organizado de forma a impedir
a propagação da violência, este confronto deverá ocorrer em um
campo fechado, segundo regras e entre adversários bem determi-
nados. Deverá se dar de uma vez por todas… (GIRARD, 1990, p. 34).

5.6 J. DERRIDA
Jacques Derrida (1930-2004) foi um dos grandes filósofos france-
ses do século XX. Sua principal contribuição à história do pensamen-
to se deu a partir do programa filosófico que chamou de desconstru-
ção - um modo de abordagem de textos da tradição que visava não
sublimar as diferenças, mas fazê-las aparecer nos lugares onde havia
sido apagada em favor da identidade. Embora seu campo de atuação
tenha sido, principalmente, filosófico, a influência de Derrida se es-
tendeu, ainda em vida, para outras áreas das humanidades, como a
literatura e os estudos culturais.
Em 1968, o autor publicou dois de seus mais importantes livros:
Gramatologia e A escritura e a diferença. Nesses, Derrida desafiou a
tradição estruturalista e a metafísica como um todo por privilegiarem
as identidades e a presença como único tempo possível. Em Grama-
tologia, o autor desafia a noção de que o ato de escrever é um ato se-
cundário, derivado da originalidade da fala. Antes, para ele, é preciso
considerar que a escritura é um modo primeiro e primário de pensa-
mento em si mesmo, e não apenas uma forma derivada. Por isso, ele
retoma o conceito de escritura como central, bem como aponta as
violências implícitas aos paradigmas logocêntricos.

121
Jacques Derrida (1930-2004)

A relação de Derrida com a religião se dá de modo pessoal e inte-


lectual. Primeiramente, pesa o fato de sua hereditariedade judaica -
que Derrida não tratou de modo explícito nos primeiros momentos de
sua obra, mas que, ao longo dela, foi se revelando com cada vez mais
força e propósito. Por isso, embora o autor não se volte exclusivamen-
te para o tema da religião, esse permeia grande parte de suas obras e
está subjacente a outras discussões de maior importância para Der-
rida. Em uma conferência dedicada ao tema da religião, o autor faz
uma desconstrução da clássica obra de Kant (A religião nos limites da
simples razão) buscando articular as duas fontes da religião (fé e sa-
ber) de modo indecidível, isto é, mantendo uma tensão dialética pela
impossibilidade de síntese ou de sobreposição de um ao outro. Seu
ponto de partida é descrito da seguinte forma:

A fim de pensar abstratamente a religião hoje, partiremos dessas


potências de abstração a fim de arriscar, no limite, a seguinte hi-
pótese: em relação a todas essas forças de abstração e dissociação
(desenraizamento, deslocalização, desencarnação, formalização,
esquematização universalizante, objetivação, telecomunicação
etc.), a ‘religião’ encontra-se, ao mesmo tempo, no antagonismo
reativo e na supervalorização reafirmadora. Exatamente onde o
saber e a fé, a tecnociência (‘capitalista’ e fiduciária) e a crença,
o crédito, a fiabilidade, o ato de fé terão estado sempre compro-

122
metidos, no próprio lugar, no cerne da aliança de sua oposição.
Daí a aporia - uma certa ausência de caminho, de via, de saída, de
salvação - e as duas fontes (DERRIDA, 2000, p. 12)

Essa passagem contém, em síntese, o princípio do pensamento


de Derrida sobre a religião. Ora, na medida em que ele aponta uma
ambiguidade da religião, o autor aponta também seu caráter dialé-
tico não-sintético, no sentido de que haja na religião uma espécie de
impossibilidade de absolutização em apenas um dos caráteres apon-
tados: nem antagonismo reativo, nem supervalorização reafirmado-
ra, mas ambos juntos em todo tempo. Por isso, diz Derrida, há uma
aporia entre fé e saber no caso da religião. Há uma impossibilidade
de conclusão - mantendo a tensão dialética em último caso. Devido a
essa impossibilidade, Derrida demonstra que não é ainda adequado
seguir o quadro distintivo demonstrado por Kant, no qual ele apro-
xima religião e moralidade. Primeiramente, essa inadequação se dá
por uma questão ética: Kant emite um juízo de valor demasiadamen-
te tendencioso, no qual a única religião fonte da verdadeira moral se-
ria o cristianismo. Assim, a universalidade do imperativo categórico,
exigida e sustentada por Kant, não seria mais do que a tentativa de
absolutização da experiência cristã, daí sua inadequação.
Se Kant não é mais adequado, o que o seria? Qual paradigma deve
ser usado para entender a religião? Para Derrida, uma outra possibili-
dade é seguir a noção heideggeriana de que a consciência é pré-ética e
pré-religiosa, de modo que a moralidade não viria de religião alguma,
nem de nenhum tipo de experiência religiosa. Essa tentativa também
é inadequada no momento em que não responde de fato à questão
da religião, somente surrupia as possibilidades da fundamentação
da moral kantiana. Por isso, Derrida volta à questão: “Como pensar,
então - nos limites da simples razão -, uma religião que, sem ter volta-
do a ser ‘religião natural’, é hoje efetivamente universal? E que, para
isso, já não se detém no paradigma cristão, nem sequer abraâmico”?

123
(DERRIDA, 2000, p. 25). Sua proposta, nesse ponto, é permanecer na
indecidibilidade do ambíguo, mas partir de uma originariedade ante-
rior à revelação. Para ele, há aqui uma questão lógica: a revelação já
trata diretamente de uma religião específica, de modo que não pode
ser fundamento para pensar a religião em geral. Por isso, apela Der-
rida à revelabilidade, isto é, a possibilidade de revelação antes mes-
mo da própria revelação. A revelabilidade, portanto, seria anterior a
qualquer revelação específica e, portanto, independente de qualquer
religião. Por isso, o lugar de destaque não seria nem uma ilha (na qual
a conferência ocorre e figura que referencia a revelação, como no
Apocalipse), nem a Terra Prometida, mas o deserto:

Em vista de um terceiro que poderia perfeitamente ter sido mais


que o arqui-originário, o lugar mais anárquico e anarquizável pos-
sível, não a ilha nem a Terra Prometida, mas um certo deserto - e
não o deserto da revelação, mas um deserto no deserto, o que tor-
na possível, abre, escava ou infinitiza o outro. Êxtase ou existência
da extrema abstração. O que orientaria aqui ‘nesse’ deserto, sem
rota nem interior, seria ainda, com toda certeza, a possibilidade
de uma religio e de um relegere, mas antes do ‘vínculo’ do religa-
re, etimologia problemática e, sem dúvida, reconstruída, antes do
vínculo entre os homens como tais ou entre o homem e a divin-
dade do deus. [...] refiramo-nos - provisoriamente, insisto nisso, e
com objetivos pedagógicos ou retóricos - por um lado, ao ‘messiâ-
nico’ e por outro, à khora (DERRIDA, 2000, p. 28-29).

Aqui, podemos perceber que Derrida novamente remete à duali-


dade aporética da religião, aqui entre messianismo e khora. O primei-
ro seria a abertura ao futuro como abertura à justiça, mas sem ne-
nhuma definição de como seja, de fato, esse vindouro ou os fatos que
tal justiça estabelecida promoveria. A khora, por outro lado, é uma
reapropriação desconstrutiva do conceito platônico que diz respeito,
justamente, à bifurcação negativa, a um espaço abstrato do pensa-

124
mento no qual toda dualidade é indecidível. Portanto, Derrida, mais
uma vez, resguarda o caráter ambíguo da religião.
Desse ponto de vista, a religião se demonstra como objeto pensá-
vel pela filosofia, de modo que a filosofia da religião não se furta a
pensar as religiões concretas, mas se projeta para além delas - ten-
tando as possibilidades de existência delas e verificando os funda-
mentos do próprio conceito de religião. Todavia, conforme Derrida
mesmo faz, a religião pode servir como fonte de pensamento para
a crítica desconstrutiva de outros objetos de estudo a partir da fi-
losofia. Aqui, dois casos são exemplares no pensamento de Derri-
da: o fundamento místico do direito demonstrado em Força de lei;
e o fundamento da justiça e da alteridade na homenagem Adeus a
Emmanuel Levinas. No primeiro caso, o autor demonstra como a lei
e o direito se fundamentam em um paradigma religioso e, portanto,
o que os sustenta socialmente também é uma atitude religiosa dos
seres humanos, a fé:

A justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. As leis


não são justas como leis. Não obedecemos a elas porque são jus-
tas, mas porque têm autoridade. A palavra ‘crédito’ porta toda a
carga da proposição e justifica a alusão ao caráter ‘místico’ da au-
toridade. A autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhes
concedemos. Nelas acreditamos, eis seu único fundamento. Esse
ato de fé não é um fundamento ontológico ou racional (DERRIDA,
2018, p. 21).

Na conferência em homenagem a seu amigo Levinas, Derrida pen-


sa como a experiência judaica de justiça se demonstrou na própria
vida de seu colega de profissão e companheiro de vida. Publicada
juntamente com essa emocionada fala de Derrida, há um texto sobre
o acolhimento, pensado também em relação com o pensamento le-
vinasiano, no qual a tradição talmúdica é fonte para a filosofia. Apro-
priando-se do mesmo paradigma de seu companheiro, Derrida pensa

125
a ética e a justiça a partir da experiência judaica de mundo e de justiça
no mundo. Em suas palavras, por fim,

A ética impõe uma política e um direito; esta dependência e a


direção desta derivação condicional são tão irreversíveis quan-
to incondicionais. Porém, o conteúdo político ou jurídico assim
conferido permanece, pelo contrário, indeterminado, sempre a
determinar para-além do saber e de toda apresentação, de todo
conceito e de toda intuição possíveis, singularmente na palavra e
na responsabilidade tomadas por cada um, em cada situação, e a
partir de uma análise a cada vez única - única e infinita, única, po-
rém, a priori, exposta à substituição, única e, no entanto, geral, in-
terminável apesar da urgência da decisão (DERRIDA, 2015, p. 135).

126
CAPÍTULO 6
FILOSOFIA POLÍTICA E RELIGIÃO
Podemos notar, majoritariamente ainda no âmbito da filosofia
contemporânea, a reapropriação de elementos da religião para pen-
sar a política. Aqui, também se faz um tipo de filosofia da religião, na
medida em que, a partir de uma crítica de seus conceitos históricos,
se debruçam sobre ela diversos filósofos. Todavia, diferentemente
dos autores apresentados anteriormente, os que seguem não têm
por objetivo o pensamento mesmo da religião. Antes, pensava-se a
religião como um primeiro passo para pensar a política. Esse fenô-
meno se constitui, por um lado, porque tais filósofos identificam na
religião uma linguagem disponível, influente e historicamente rele-
vante para a constituição de novidades políticas. Nesse sentido, a re-
ligião seria uma espécie de objeto a ser apropriado como um recurso,
uma ferramenta que auxilia na promoção de novas ideias e práticas
políticas. Por outro lado, há autores que se voltam para a religião a
fim de identificar historicamente como ela definiu movimentos polí-
ticos contemporâneos. Aqui, a preocupação não é tanto propositiva,
mas histórico-documental, demonstrando como conceitos e noções,
a princípio somente religiosas, se fizeram determinantes e influentes
em discussões políticas.
Ainda que a filosofia contemporânea seja de modo geral bem pró-
xima aos nossos dias, esse movimento de aproximação entre filosofia
da religião e filosofia política é ainda mais: a maioria dos autores que
o fazem estão ainda vivos. Esse fato não demonstra somente uma di-
reção que a filosofia hoje segue, mas aponta a relevância da discus-
são para o cotidiano em suas faces teórica e prática. Mesmo fora do
âmbito acadêmico da filosofia, a aproximação entre religião e política

127
tem ganhado grande destaque e atenção em discussões qualificadas
e leigas. A compreensão dessa relação através da filosofia, portanto,
se faz de grande urgência.

6.1 R. LUXEMBURGO
Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi uma das mais importantes filó-
sofas e economistas polonesas da história. Sua trajetória pessoal foi
marcada pela perseguição política, por sua originalidade filosófica e
pela ácida crítica às estruturas econômicas vigentes. Ao contrário de
muitos de seus companheiros da época, Luxemburgo lutou por um
socialismo libertário, o qual, ao defender, escreveu uma de suas mais
célebres citações: “liberdade somente para os partidários do governo,
somente para os membros de um partido - por mais numerosos que
sejam -, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem
pensa de maneira diferente” (LUXEMBURGO, 2018, p. XIII). As ideias
de Rosa Luxemburgo foram, durante muito tempo, silenciadas em fa-
vor dos aspectos biográficos de sua atuação política. Entretanto, os
escritos e pensamentos filosóficos da autora são demasiadamente
importantes e inovadores para serem relegados a um segundo plano.
Sua atuação política levou à morte precoce, em um brutal assassina-
to promovido pelo governo alemão, pondo fim à sua vida de apenas
48 anos.

Rosa Luxemburgo (1871-1919)

Em um de seus mais relevantes escritos, intitulado “A Igreja e o so-


cialismo”, de 1905, Luxemburgo tece severas críticas às atuações dos

128
padres e clérigos da Igreja Católica polonesa, sobretudo no que diz
respeito à relação do clero com o socialismo. Há, nesse texto específi-
co, uma interessante diferenciação que a autora traz para sua crítica:
de um lado, o clero e a posição oficial da Igreja, de outro, a bíblia e o
cristianismo primitivo. A tese central de sua provocativa opinião ex-
pressa neste ensaio é de que a Igreja se afastou dos posicionamentos
socialistas que seriam presentes na experiência bíblica dos primeiros
cristãos. Primeiramente, há a constatação da situação recorrente na
Polônia do início do séc. XX:

O nosso clero combate os socialistas com uma agressividade parti-


cular, procurando com todas as forças torná-los odiados aos olhos
dos trabalhadores. [...] Em vez de confortarem as pessoas aflitas e
em condições difíceis, que com fé vão à igreja, os padres fulminam
os trabalhadores grevistas ou aqueles que lutam contra o governo;
e ainda mais, os persuadem a suportar com humildade e paciência
a opressão e a miséria, fazendo geralmente da igreja e do púlpito
um lugar de agitação política (LUXEMBURGO, 2018, p. 177-178).

Diante dessa situação, posicionando-se em prol do socialismo,


Rosa Luxemburgo retoma alguns exemplos bíblicos para sustentar a
tese de que os primeiros cristãos também compartilhavam de algum
tipo de socialismo. Entretanto, para a autora, há uma ressalva a ser
feita: o socialismo cristão não compartilhava os meios de produção.
Uma vez que o sistema econômico da época em muito diferia do ca-
pitalismo moderno, o tipo de socialismo que Luxemburgo interpreta
na experiência originária cristã não é o mesmo que ela defende como
aplicável na modernidade. O primeiro se baseava em um comparti-
lhamento dos bens de consumo, de modo que nenhum dos cristãos
da comunidade passava por necessidade, mas isso a partir de um sis-
tema de produção que não considerava o proletariado como a força
de trabalho essencial para o desenvolvimento de riquezas. Ao contrá-
rio desse, Luxemburgo defendia que o socialismo de Estado deveria

129
popularizar os meios de produção, de modo que o proletariado de-
tivesse os modos de gerar riqueza e, consequentemente, superasse
as desigualdades e as necessidades comuns ao povo. Para a autora,
esse segundo modo de socialismo seria mais produtivo que o primei-
ro, uma vez que possibilitaria a manutenção a longo prazo do proces-
so de redução das desigualdades socioeconômicas. Eis os exemplos
bíblicos que Luxemburgo utiliza:

Os sociais democratas propõem-se pôr fim à exploração do povo


pelos ricos. Pensar-se-ia que os servidores da igreja deveriam ter
sido os primeiros a desempenhar-se desta tarefa, mais do que os
sociais democratas. Não é Jesus Cristo (de quem os padres são
servidores) quem ensina que ‘é mais fácil um camelo passar pelo
furo de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus’? Os so-
ciais democratas tentam trazer a todos os países regimes sociais
baseados na igualdade, liberdade e fraternidade de todos os cida-
dãos. Se o clero realmente deseja que o princípio ‘Ama o teu próxi-
mo como a ti mesmo’ seja aplicado na vida real, por que é que não
recebe bem e com entusiasmo a propaganda dos sociais democra-
tas? Os sociais democratas tentam, através de uma luta desespe-
rada e da educação e organização do povo, subtraí-lo à opressão
em que se encontra e oferecer-lhe um melhor futuro para os filhos.
Todos devem admitir que, neste ponto, o clero deveria abençoar
os sociais democratas, pois não é ao clero que eles servem, e sim
a Jesus Cristo, que diz que ‘o que fizeres aos pobres é a mim que o
fazeis’? (LUXEMBURGO, 2018, p. 178-179).

Assim, defendendo sua tese central, Luxemburgo diz que “prague-


jando contra o ‘comunismo’, os padres de hoje na realidade o fazem
contra os primeiros apóstolos do cristianismo. Estes eram então os
mais ardentes comunistas” (LUXEMBURGO, 2018, p. 181). Aqui, pode-
mos perceber que a filosofia da religião de Rosa Luxemburgo é am-
bivalente. Por um lado, ela se volta para o pensamento filosófico e

130
se debruça sobre a religião enquanto fenômeno humano e social, de
modo a julgar suas práticas a partir de uma filosofia política que lhe
é prévia. Por outro lado, a autora se volta para a religião histórica, o
cristianismo primitivo, no caso, para iluminar sua prática política e
sua filosofia. No primeiro caso, a religião é objeto de investigação, no
segundo, ela é inspiração para a filosofia. Independente da validade
da interpretação de Luxemburgo sobre os primeiros cristãos, deve-
mos reconhecer sua grande capacidade analítica e crítica, voltando a
religião contra ela mesma por meio da filosofia.

6.2 G. VATTIMO
Gianni Vattimo (1936-) é um dos mais proeminentes filósofos ita-
lianos da contemporaneidade. A trajetória de seu pensamento, em-
bora tenha sofrido alterações ao longo das décadas, pode ser defi-
nida por uma tentativa de constituir uma filosofia baseada em um
pensamento fraco. Filiado à hermenêutica, Vattimo propõe que há,
na contemporaneidade pós-moderna, uma vocação niilista da filoso-
fia: não se pode mais afirmar qualquer discurso ou verdade como úl-
timo ou permanente. Para tal, toda filosofia deve se reconhecer como
parcial, visto que parte de um ponto de vista específico e, portanto,
não pode conter a totalidade dos fatos. Assim, qualquer discurso só
pode ser tomado como uma interpretação dentre inúmeras outras
possíveis. Por isso, Vattimo tenta criar uma filosofia fraca: sua propos-
ta é uma filosofia que se reconheça sempre como uma interpretação
e não tenha pretensões de afirmar sua força sobre outras filosofias e
interpretações.

Gianni Vattimo (1936-)

131
A religião como tema entra na vida pessoal de Vattimo desde mui-
to cedo, devido à sua criação católica e militância em grupos católi-
cos italianos. Em sua filosofia a religião também ocupa papel central.
Justamente na medida em que a linguagem ocupa certa centralidade
no pensamento hermenêutico, Vattimo interpreta a religião, e a tradi-
ção cristã mais particularmente, como uma mensagem disponível e
apropriável na contemporaneidade. Ora, é inegável o papel que essa
tradição teve na construção do Ocidente. Para o autor, ela não estaria
somente em uma origem histórica do passado, mas articularia ainda
hoje suas noções particulares de modo secularizado. Sua preocupa-
ção nesse âmbito também se demonstra na fundamentação de uma
filosofia fraca: ela não é somente uma questão epistemológica de re-
conhecimento de verdades, mas é também ética, na medida em que
requer um tipo de democracia dentro da própria filosofia.
Em Vattimo, portanto, a vocação niilista da hermenêutica não é
mais que uma tardia correspondência filosófica da encarnação de
Deus em Jesus. Todavia, o que interessa para Vattimo não é somente
a encarnação em si mesma, mas o processo de esvaziamento divino
para que essa encarnação ocorresse, conforme descrito pelo apósto-
lo Paulo na epístola aos Filipenses. Esse processo, descrito pelo ter-
mo grego kenosis, implica um total rebaixamento, esvaziamento ou,
no vocabulário de Vattimo, enfraquecimento do próprio Deus ao fa-
zer-se homem. Mais do que uma metáfora, essa mensagem cristã es-
taria, para o autor, no cerne dos princípios de democracia, laicidade e
solidariedade. Longe de exercer o poder individual para fazer valer a
própria verdade, esses sistemas indicam um esvaziamento em favor
do outro. Nas palavras de Vattimo,

Reconhecer que a hermenêutica pertence à tradição religiosa do


Ocidente não apenas enquanto tal tradição, fundada numa re-
velação escrita, orienta o pensamento para reconhecer o lugar
central da interpretação; nem apenas porque, libertando o pensa-
mento do mito da objetividade, a hermenêutica abre, por sua vez,

132
o caminho para escutar os muitos mitos religiosos da humanida-
de; mas em termos substanciais, de ligação entre ontologia niilista
e Kénosis de Deus significa encontrar também os problemas de
reinterpretação do sentido do cristianismo para nossa cultura. [...]
O niilismo ‘se assemelha’ demasiado à Kénosis para se poder ver
em tal semelhança apenas uma coincidência, uma associação de
ideias. [...] A hermenêutica só pode ser o que é - uma filosofia não
metafísica do caráter essencialmente interpretativo de verdade, e,
portanto, uma ontologia niilista - enquanto herdeira do mito cris-
tão da encarnação de Deus (VATTIMO, 1999, p. 77-82).

Aqui está o cerne da relação entre religião e filosofia política na


contemporaneidade. A ontologia niilista que Vattimo reclama para
a filosofia se desenvolve, por fim, em uma prática política que, se
baseando nessa vocação niilista cristã, também seja uma política
fraca. Por isso, a mensagem cristã não deve ser interpretada como
uma extensão da metafísica grega e da postulação de verdades ab-
solutamente imutáveis e adaptáveis a todos os contextos e situações
históricas. Antes, para ele, a mensagem cristã contida nos princípios
da kénosis e da cáritas é uma mensagem de enfraquecimento das es-
truturas fortes da metafísica e de dissolução das verdades absolutas
em favor de um regime de verdades que considere a interpretação
como mediação fundamental entre o discurso e a realidade, de modo
que a pós-modernidade e a pluralidade que lhe é característica não
é mais que uma resposta à vocação niilista do cristianismo. Em suas
palavras,

A encarnação, isto é, o rebaixamento de Deus ao nível do homem,


aquilo a que o Novo Testamento chama a kénosis de Deus, deverá
ser interpretada como sinal de que o Deus não violento e não ab-
soluto da época pós-metafísica tem com o traço distintivo a mes-
ma vocação para o debilitamento de que fala a filosofia de inspira-
ção heideggeriana (VATTIMO, 1998, p.30)

133
6.3 A. BADIOU
Alain Badiou (1937-) figura como um dos grandes intelectuais da
França contemporânea. Sua filosofia se constrói em profícuo diálogo
com grandes nomes da tradição, como Platão e Heidegger, por exem-
plo, mas também com outras formas de pensamento não filosóficas,
como a matemática. Na filosofia de Badiou, ocupa lugar central a no-
ção de evento: diferentemente da tradição heideggeriana de acon-
tecimento, o evento toma lugar como uma interpretação específica
de momentos de ruptura com a ordem social estabelecida. Também
o tema da verdade e da ética se fundamentam nesse ponto, para o
autor. A verdade nada mais seria do que uma fidelidade a um even-
to - fato que, no limite, também constituiria o sujeito como sujeito.
A ética, ou o comportamento ético, para Badiou, seria o apelo à ra-
dicalidade dessa fidelidade que funda o sujeito. Por isso, sua ética é
situacionista: ao contrário da ética do dever kantiana, por exemplo, o
autor afirma que seguir uma ética “verdadeira” depende dos eventos
que constituíram o sujeito, por isso ela nunca será universal no conte-
údo, somente na forma.

Alain Badiou (1937-)

Uma das aplicações e extensões que Badiou faz do conceito de


evento se coloca no sentido de pensar a filosofia política. Em A hi-
pótese comunista, por exemplo, Badiou tenta refletir sobre eventos
de ruptura com a ordem social que, a seu ver, dão legitimidade no
campo da verdade a uma luta política comunista. Para ele, três even-

134
tos são marcantes na história moderna: a comuna de Paris (1871), a
revolução cultural chinesa (1967-1976) e maio de 1968 com os pro-
testos na França. Cada qual a seu modo demonstra, para ele, como a
suspensão, ainda que provisória, da realidade econômica do capita-
lismo viabiliza as condições de possibilidade para uma reabilitação
do comunismo como modelo social. Como um aprofundamento da
reflexão sobre a hipótese comunista, Badiou se aventura a pensar
um fundamento de maior importância para o comunismo: o univer-
salismo. Aqui, o universalismo diz respeito à radical afirmação de
igualdade entre todos os seres humanos apesar de suas diferenças.
Surpreendentemente, essa origem não se encontra, para o autor, na
tradição filosófica ocidental, mas no cristianismo.
Em São Paulo (2009), Alain Badiou trata, partindo dos escritos e da
história do apóstolo Paulo, da fundação mais radical do universalis-
mo - categoria primordial para o comunismo, do qual o autor é adep-
to. Para ele, voltar aos escritos bíblicos não é uma tarefa religiosa, mas
histórico-cultural: “Na realidade, Paulo não é, para mim, um apóstolo
ou um santo. Eu não tenho a menor necessidade da Nova que ele de-
clara ou do culto que lhe foi consagrado” (BADIOU, 2009. p. 7). Por
outro lado, seu objetivo também não é desprezar ou lutar contra a
religião; antes, perceber nela a possibilidade de inspiração para a luta
por uma sociedade mais fraterna. Em suas análises, Badiou descon-
sidera as epístolas de pseudo autoria, voltando-se somente os textos
de comprovada autoria de Paulo, a saber, Romanos, Gálatas, as cartas
aos Coríntios, Filipenses e a primeira carta aos Tessalonicenses, dis-
pensando os considerados “paulinismo de tradição” e Filemon.
Percorrendo as principais doutrinas paulinas, Badiou demonstra
como existem as mesmas tensões durante os textos-cartas, argumen-
tando que “a via subjetiva da carne [...] organiza o conjunto da lei e das
obras. Enquanto a via do espírito [...] organiza o [conjunto] da graça
e da fé” (BADIOU, 2009, p. 89), sendo este ligado com a vida e aquele
com a morte. Explicando melhor essas vias que se contrapõem (carne

135
e espírito), o autor é contundente em afirmar que a interpretação pla-
tonizada dos escritos de Paulo corromperam seus verdadeiros senti-
dos mais profundos, e perverteram as intenções. Por esta posição, o
filósofo não deixa passar um ponto que, segundo ele, é fundamental:
“a oposição do espírito e da carne não tem nada a ver com a da alma
e do corpo” (BADIOU, 2009, p. 67).
Curiosamente, em suas análises, o autor trata também da questão
feminina nos textos de Paulo, mostrando que não há, como muito se
diz, misoginia por parte do autor, antes, na impossibilidade de trans-
formar radicalmente a sociedade (patriarcal), Paulo iguala o peso da
lei, antes só para mulheres, para os homens. Enfim, Badiou utilizando
o texto de Gálatas 3, 28 fundamenta sua tese, afirmando que “Paulo
é um teórico antifilosófico da universalidade. [...] Paulo mostra deta-
lhadamente como um pensamento universal [...] produz um Mesmo
e o Igual (não há mais nem judeu nem grego etc.) ” (BADIOU, 2009,
p. 126-127.). Desta forma, o filósofo francês mostra a importância de
uma das principais figuras cristãs para uma categoria fundamental do
comunismo: a noção de igualdade baseada na alteridade - fundada
com Paulo. Para Badiou a universalidade como princípio abstrato já
estava determinada matematicamente em pensadores mais antigos
que Paulo, como Arquimedes, por exemplo. A grande diferença que
faz com que o autor atribua ao apóstolo grande inovação, é a funda-
mentação de tal universalidade em uma particularidade específica: o
universal não é mera abstração matemática, mas é possível por causa
de uma afirmação concreta, o fato de que Jesus ressuscitou historica-
mente. Assim, conclui Badiou:

Na realidade, a cesura paulina diz respeito às condições formais


e às consequências inevitáveis de uma consciência-de-verdade
enraizada num puro acontecimento, livre de qualquer atribuição
objetiva às leis particulares de um mundo ou de uma sociedade,
ainda que concretamente destinada a se inscrever num mundo e

136
numa sociedade. O que há de específico em Paulo é ter estabele-
cido que somente há fidelidade a um acontecimento como aquele
com a resilição dos particularismos comunitários e a determina-
ção de um sujeito-de-verdade que indistingue o Um e o ‘para to-
dos’. A cesura paulina não se apoia então, como é ocaso dos pro-
cedimentos de verdade efetivos (ciência, arte, política, amor), na
produção de um universal. Ela se baseia, por meio de um elemen-
to mitológico implacavelmente reduzido a um único ponto, a um
único enunciado (o Cristo ressuscitou), nas leis da universalidade
em geral. Por isso, podemos nomeá-la uma cesura teórica, enten-
dendo que ‘teórico’ não se opõe aqui a ‘prático’, mas a real. Paulo é
fundador, por ser um dos primeiros teóricos do universal (BADIOU,
2009, p. 125-126).

6.4 G. AGAMBEN
Giorgio Agamben (1942-) está entre os mais importantes pensa-
dores da atualidade, sobretudo por suas interpretações de filosofia
política. O fato de que ele tenha começado sua carreira acadêmica
no Direito repercute em toda sua obra filosófica: a questão da lei, do
Estado e dos direitos estão em jogo a todo tempo. Seu principal pro-
jeto filosófico é construído no sentido de pensar o modo de vida do
ser humano sob o domínio do Estado moderno, pensando seus pa-
radigmas e as possíveis fugas dele. Esse é o projeto de Homo Sacer
que Agamben distribui em quatro diferentes etapas: 1) pensando a
noção de vida nua; 2) pensando a relação entre Estado, exceção, lin-
guagem e religião; 3) pensando a questão de Auschwitz; 4) pensando
formas alternativas de vida, como regras monásticas. Seu objetivo é
pensar como, ao longo da história, o “homem sagrado”, aquele a ser
julgado pelos deuses, é percebido pelo Estado e como as formas da
lei se constituem diferentemente para formular uma biopolítica, isto
é, uma política que legisla diretamente sobre o corpo do ser humano.

137
Giorgio Agamben (1942-)

A temática da religião, na obra de Agamben, ocupa grande desta-


que: não apenas ela é fonte para sua filosofia, como também objeto
de minuciosa investigação. Uma vez que a religião é um importante
centro histórico da formação política do Ocidente, ela não pode ser
ignorada ou colocada em segundo plano na filosofia política. Por isso
a tão grande ênfase que Agamben dá ao tema em meio aos seus estu-
dos. Mais uma vez, seu objeto não é proselitista nem apologético. An-
tes, a religião é um dado histórico objetivo a ser observado em suas
articulações conceituais com a política e com os modos de governo
do Estado sobre o ser humano. Nesse sentido, o método filosófico de
Agamben em muito se aproxima de M. Foucault em sua arqueologia
e genealogia: sua filosofia se constitui através da reconstrução de do-
cumentos históricos e da localização histórico-conceitual de compor-
tamentos políticos. Sobre essa relação, Agamben diz que a arqueo-
logia é “aquela prática que, em toda investigação histórica, tem a ver
não com a origem, mas com o ponto de insurgência do fenômeno, e
deve, portanto, se confrontar novamente com as fontes e com a tradi-
ção” (AGAMBEN, 2019, p. 128)
Em Pilatos e Jesus (2014b), o autor descreve como a figura de Pila-
tos - estranhamente inserida no credo constantinopolitano, visto que
se trata de um pagão - e a narrativa bíblica onde o personagem tem
um longo diálogo com Jesus são importantes para uma crítica do pro-
cesso - neste caso, um processo sem conclusão.

138
Agamben percebe na narrativa o grande encontro e embate de
dois mundos completamente diferentes: “o cruzamento entre o tem-
poral e o eterno assumiu a forma de um processo” (AGAMBEN, 2014b,
p. 65). Tal cruzamento, ou embate, é, para o filósofo, ponto crucial
para entender o momento histórico em que a humanidade se encon-
tra. Para além da interpretação bíblica do processo de julgamento de
Jesus, Agamben trata o embate como metáfora para duas ideias im-
portantes da modernidade: “que a história seja um ‘processo’ e que
este processo, enquanto não se concluir em um juízo, esteja em per-
manente estado de crise” (AGAMBEN, 2014b, p. 75).
Insistindo na contraposição de dois mundos, como em Pilatos e
Jesus, Agamben, nos dois textos de O mistério do mal (2015), “O mis-
tério da Igreja” e “Mysterium iniquitatis”, analisa o discurso de grande
recusa do Papa Bento XIV e o texto de 2 Tessalonicenses 2, 1-11, res-
pectivamente. Para fazê-los, o filósofo vai até os primeiros passos de
Ratzinger como teólogo e seus estudos a cerca de Ticônio, teólogo do
séc. IV. Precursor de Agostinho no que se refere às ideias principais de
Cidade de Deus (2012), Ticônio formula a tese “Sobre o corpo biparti-
do do Senhor” - o que leva Agamben a buscar a noção de “mistério”
na carta de Paulo. Tal “mistério” na passagem escolhida (e traduzida
pelo filósofo) relaciona-se com duas figuras importantes: o Anticristo
e katechon (o elemento retardador, em termos escatológicos). A dis-
cussão segue, então, como debate messiânico: o “mistério do mal”
paulino refere-se ao fim da história? A resposta de Agamben é não.
O que se apresenta como “mistério” é a história do fim, que só resti-
tuindo a seu contexto escatológico “uma ação política possa tornar-
se novamente possível, tanto na esfera teológica quanto na profana”
(AGAMBEN, 2015, p. 45). Assim, o filósofo mescla a escatologia com a
economia, o “ainda não” com o “já”, salientando que o fim coincide
com o agora.
Em Altíssima Pobreza (2014a), Giorgio Agamben se debruça em
estudar diversas regras do monasticismo antigo e medieval, obser-

139
vando regras, regulamentos, leis, hábitos e comportamentos. Co-
meçando pelas regras - e por suas encarnações na própria vida - e
pelas primeiras leis - sejam estas acéticas ou sobre o perdão -, sua
pesquisa culmina no monasticismo franciscano, isto é, o movimento
de Francisco de Assis - que segundo o autor “é possível considerá-lo
como tal [movimento], antes ou para aquém do significado religioso
ou econômico social que sem dúvida lhe cabe” (AGAMBEN, 2014a, p.
98) - principalmente em sua discussão sobre uso e propriedade. Ten-
do já considerado a ideia de que as regras monásticas vão além das
leis e, principalmente nos franciscanos, as regras são a própria vida,
em suas palavras, “quando uma vida (a vida de Cristo) fornece o para-
digma da regra, a regra se transforma em vida [...]” (AGAMBEN, 2014a,
p. 113), o filósofo contrapõe e apresenta o debate e a epistemologia
desta linha monástica acerca do uso: “[...] os frades menores efetuam
uma inversão e, ao mesmo tempo, uma absolutização do estado exce-
ção: no estado normal, em que aos homens cabem direitos positivos,
eles não têm direito algum, mas apenas licença de uso” (AGAMBEN,
2014a, p. 120). Desta forma, o autor conclui que esta relação francis-
cana dos frades com a noção de uso, embora falha em alguns termos,
é de grande valia para uma resistência pós-moderna ao modelo capi-
talista - grande incentivador da propriedade privada, isto é, a posse
de algo que implica diretamente na exclusividade de uso. Nas últimas
linhas de sua obra, Agamben reforça a importância da experiência e
das categorias franciscanas nesta resistência: “É, pois, o problema do
nexo essencial entre o uso e forma de vida que, a essa altura, se torna
inadiável” (AGAMBEN, 2014a, p. 147)

6.5 S. ŽIŽEK
Slavoj Žižek (1949-), nascido na Iugoslávia, hoje Eslovênia, é um
dos mais conhecidos filósofos vivos da atualidade. Sua fama se cons-
truiu graças a sua incessante busca de diálogo com a cultura de mas-
sas contemporânea, de modo que seus exemplos e as aplicações de

140
sua filosofia são sempre atuais. Por isso, ganhou o título de filósofo
pop: por pensar uma crítica à sociedade a partir de suas produções
culturais mais diversas, como filmes (de Titanic a Kung Fu Panda),
músicas populares e acontecimentos recentes. Além de sua ativida-
de intelectual, Žižek também se envolveu politicamente, chegando
a ser candidato à presidência de seu país após a dissolução do bloco
socialista que compunha a Iugoslávia. Sua filosofia se constitui como
uma forma específica de interpretar a tradição marxista. Em vez de
uma leitura sincrônica de sua obra, Žižek propõe uma interpretação
diacrônica por meio de Hegel e do psicanalista J. Lacan. Ao último, o
filósofo esloveno deve grande parte de suas teorias e inovações filo-
sóficas. Nesse sentido, Žižek faz uma reinterpretação de Marx através
de Hegel e Lacan.

Slavoj Žižek (1949-)

A aproximação de Žižek com a religião não se dá de maneira direta,


na maior parte das vezes. Assim como um dado cultural, a religião é
para ele uma importante linguagem disponível na sociedade e útil ao
ser humano. Por isso, também ela deve ser reinterpretada de modo a
transformar a sociedade com vistas a um sistema político-econômico
mais justo. Em suma, sua relação com a religião, sobretudo com o
cristianismo, pode ser definida na seguinte frase: “o cristianismo e o
marxismo deveriam lutar do mesmo lado da barricada [...] - o legado
cristão autêntico é precioso demais para ser deixado aos fanáticos
fundamentalistas” (ŽIŽEK, 2015, p 27).
Um dos principais pontos que o autor explora para determinar

141
como tal legado cristão pode ser reapropriado pelo marxismo, Žižek
explora um ponto central do cristianismo: a morte de Jesus. Qual se-
ria seu significado? Primeiramente, o autor percorre o tradicional sig-
nificado do sacrifício no qual há uma troca entre ser humano e Deus
por meio da substituição em Jesus dos pecados humanos. Nesse sen-
tido, a morte de Jesus seria como o preço de um resgate pelos hu-
manos escravizados pelo pecado. Para Žižek, entretanto, essas inter-
pretações metafóricas que se estabeleceram como hegemônicas ao
longo da tradição teológica cristã não passam de interpretações ruins
do sentido da morte de Jesus sob o ponto de vista de sua vida. Ora,
se a vida inteira de Jesus aponta para o fim da lei judaica, como sua
morte pode ser um cumprimento da lei exigida pelo próprio Deus? A
morte de Jesus como sacrifício não tem sentido algum, diz Žižek. Há,
entretanto, outra interpretação que é mais plausível e útil:

Cristo é o primeiro e único Deus completamente ready made na


história das religiões. Ele é inteiramente humano, portanto indis-
tinguível de outro homem comum - não há nada em sua aparição
corpórea que faça Dele um caso especial. [...] Cristo não é Deus
por causa de suas qualidades ‘divinas’ inerentes, mas porque,
precisamente como inteiramente humano, Ele é o filho de Deus.
Por essa razão, a atitude propriamente cristã a propósito da morte
de Cristo não é a de uma fixação melancólica à sua figura morta,
mas a de infinita alegria: o horizonte último da sabedoria pagã é a
melancolia - em última instância, tudo volta ao pó, de modo que
se deve aprender a se desapegar, a renunciar ao desejo -, ao passo
que se já houve uma religião que não é melancólica, essa religião
é o cristianismo, a despeito da falsa aparência da fixação melan-
cólica em Cristo como o objeto perdido. O sacrifício de Cristo é, as-
sim, em sentido radical, sem sentido: não um ato de troca, mas um
gesto supérfluo, excessivo, injustificado, destinado a demonstrar
Seu amor por nós, pela humanidade decaída. É como quando, em
nossa vida cotidiana, queremos mostrar a alguém que realmente

142
o amamos e só podemos fazê-lo através de um gesto supérfluo
de dispêndio. Cristo não ‘paga’ por nossos pecados, como foi es-
clarecido por São Paulo. É essa própria lógica do pagamento, da
troca, que de certo modo é o pecado, e a aposta do ato de Cristo é
nos mostrar que a cadeia de trocas pode ser interrompida. Cristo
redime a humanidade não pagando o preço por nossos pecados,
mas demonstrando que podemos nos libertar do ciclo vicioso de
pecado e pagamento. Em vez de pagar por nossos pecados, Cris-
to, literalmente, apaga-os, retroativamente os ‘desfaz’ através do
amor (ŽIŽEK, 2013, p. 34-35).

Essa releitura da morte de Jesus inaugura, em Žižek, a possibili-


dade de afirmação do legado cristão como um caminho de solidarie-
dade e luta contra as injustiças da terra - inclusive as políticas que
assassinaram Jesus. Nesse sentido, não seriam os dogmas da Igreja
aquilo que guarda a verdadeira mensagem dos Evangelhos, mas as
diferentes formas de luta contra as perversidades do capitalismo ao
longo da história. Aqui, a ênfase de Žižek recai, justamente, sobre a
incoerência lógica entre a vida de Jesus e sua morte enquanto sacri-
fício. Na medida em que, para o autor, o pecado não é o preço a ser
pago, mas justamente a lógica que precifica a humanidade, Jesus não
morre para pagar dívidas divinas, mas para apagar a lógica de débitos
e créditos. Semelhantemente a Alain Badiou, Slavoj Žižek não se pre-
ocupa com a religião em uma espécie de devoção ou fé, mas se de-
bruça sobre ela a partir do ponto de vista de uma mensagem histórica
que pode ser reinterpretada com vistas à atuação político-filosófica
em prol da transformação do mundo. Aqui, mais uma vez, a herança
da crítica de Marx à filosofia moderna se demonstra, no sentido de
que, “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes ma-
neiras; o que importa, contudo, é transformá-lo” (MARX, 2019, p. 91).

143
6.6 B. HAN
Byung-Chul Han (1959-) é um dos mais relevantes filósofos orien-
tais contemporâneos. Apesar de ter nascido na Coréia, fez sua car-
reira acadêmica na Alemanha, onde estudou filosofia e teologia.
Atualmente, Han leciona na Universidade de Artes de Berlin, na ca-
pital alemã. Preocupado em pensar a contemporaneidade, o autor
se preocupa em dialogar com conceitos e pensadores já estabeleci-
dos na filosofia. Em todo tempo podemos perceber, em suas obras,
a presença de importantes referências, como Heidegger e Hegel, ou
pensadores da política, como Foucault e Agamben, com o conceito de
biopolítica. A grande inovação que Han traz para a filosofia contem-
porânea é sair da posição de mero leitor e apresentador de grandes
filósofos. Seus pensamentos se constroem em franco diálogo crítico
com a tradição que lhe é anterior e, assim, torna-se possível a cons-
trução de novas lentes para ler e interpretar os tempos nos quais vive-
mos hoje. A leitura que Han faz das condições capitalistas contempo-
râneas, nesse sentido, são de grande relevância e, sob certo ponto de
vista, urgência - uma vez que ele aponta novos modos de exploração
do indivíduo.

Byung-Chul Han (1959-)

Sua maior contribuição à leitura política da contemporaneidade se


dá na noção de Sociedade do cansaço, título de seu livro mais conhe-
cido. Nele, Han aponta uma mudança de paradigma da modernidade
para a contemporaneidade: da imunologia como enfermidade fun-

144
damental para a violência neuronal; da sociedade disciplinar para a
sociedade de desempenho; da atividade excessiva para o tédio onto-
lógico. Hoje, para Han, não há somente estruturas externas que pres-
sionam e legislam sobre os corpos humanos, como num paradigma
biopolítico. Mais relevantes do que essas superestruturas, diz Han, é
a psicopolítica, na qual cada indivíduo se torna seu próprio chefe, seu
próprio carrasco e cobrador. Por isso, a sociedade contemporânea é a
sociedade do cansaço, no qual o excesso de positividade se converte
em um tipo de auto exploração. Nas palavras de Han,

O sujeito de desempenho da modernidade tardia não se submete


a nenhum trabalho compulsório. Suas máximas não são obedi-
ência, lei e cumprimento do dever, mas liberdade e boa vontade.
Do trabalho, espera acima de tudo alcançar prazer. Tampouco se
trata de seguir o chamado de um outro. Ao contrário, ele ouve a
si mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim ele se
desvincula da negatividade das ordens do outro. Mas essa liber-
dade do outro não só lhe proporciona emancipação e libertação.
A dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em
novas coações (HAN, 2017, p. 83).

A filosofia de Han segue na linha de pensar a relação entre positi-


vidade e negatividade indicando um excesso da primeira na contem-
poraneidade, gerando uma culpa individual que se desdobra num
ferrenho autocontrole e numa autoritária disciplina de si mesmo.
Entretanto, para além dos diagnósticos sobre a contemporaneidade,
Han também aponta possibilidades de filosofia que, colocando-se
contra a metafísica moderna e o desempenho contemporâneo, apre-
sentam um novo modo de pensar e refletir sobre o mundo. Nesse
caso, outras matrizes filosóficas não seriam somente um modo de
nova consciência, mas um novo modelo de prática que poderia mo-
dificar o mundo. Justamente com esse interesse, Han se aproxima da
religião. Ao contrário dos filósofos que apresentamos anteriormen-

145
te, o filósofo sul-coreano não se volta para a tradição judaico-cristã
como fonte renovadora da filosofia, mas para o zen-budismo.
Seu objetivo na obra Filosofia do zen-busdismo não é apenas expli-
citar certos dogmas e práticas dessa religião, mas pensar sobre o zen
-busdismo e com o zen-budismo em aberto diálogo com a tradição
filosófica ocidental. Suas referências nesse diálogo não são “peque-
ninos” da tradição, mas os grandes filósofos que determinaram, cada
qual a seu modo, o pensamento filosófico: Platão, Leibniz, Hegel, Fi-
chte, Schopenhauer, Nietzsche e, uma de suas principais referências
em todas as obras, Heidegger. Para realizar uma espécie de imersão
no mundo zen, Han propõe em meio aos textos alguns haicais clás-
sicos. Esses pequenos poemas de apenas três versos marcam, para
o autor, o estilo de pensamento zen-budista na medida em que cap-
turam, como uma espécie de fotografia, um instante do presente em
suas consequências intermináveis. Com eles, Han pretende criar uma
“disposição de ânimo” no texto, isto é, ambientar na própria tradição
do zen os diálogos que propõe. Han, por exemplo, discorda da inter-
pretação que Hegel faz do budismo, especificamente na interseção
entre nada e Deus. Transcrevemos abaixo o embate:

Hegel interpreta o budismo, portanto, como um tipo de ‘teologia


negativa’. O ‘nada’ expressa a negatividade de Deus, que se furta
a toda determinação positiva. Segundo essa determinação pro-
blemática do nada budista, Hegel expressa o seu estranhamento.
[...] Em sua interpretação do budismo, Hegel opera, de maneira
problemática, com conceitos onto-teo-lógicos como substância,
essência, Deus, poder, soberania e criação, que são todos inade-
quados para o budismo. O nada budista é tudo, menos uma ‘subs-
tância’. [...] Hegel projeta, a saber, a religião cristã, tomada como
religião consumada, para qual a figura da pessoa é constitutiva,
no budismo, e faz com que este pareça, assim, faltoso. Escapa a
ele, desse modo, a alteridade radical da religião budista. Seria
completamente incompreensível para Hegel a exigência do mes-

146
tre zen Linji de matar o Buda: ‘Se encontrarem o Buda, matem o
buda. Então chegarão pela primeira vez à libertação, não serão
mais acorrentados às coisas e penetrarão tudo livremente’. Que
falte ao nada budista a ‘subjetividade excludente’ ou a ‘vontade
consciente’ não é nenhuma ‘falta’ que deve ser corrigida, mas sim
uma força especial do budismo. A ausência de ‘vontade’ ou ‘subje-
tividade’ é, justamente, constitutiva para a paz do budismo (HAN,
2019, p.12-20)

Em relação à tradição filosófica, Han é claro em dizer que não há


prioridade epistemológica de uma mensagem ocidental frente a uma
oriental. Ainda que haja, de fato, uma diferença no modo de pensa-
mento, o zen-budismo não deve ser rejeitado ou relegado a um segun-
do plano frente à filosofia ocidental. Ambos possuem validade lógica
e, nesse sentido, podem conviver sem uma necessária sobreposição.
Por isso, ao discordar da leitura de Hegel, Han demonstra que a filoso-
fia do Ocidente não pode julgar ultimamente um pensamento orien-
tal sem levar a sério seus pressupostos e desenvolvimentos. Fazer
uma caricatura do pensamento do outro sem um aprofundamento
mínimo em sua tradição é, no mínimo, desonesto e, conforme revela
Han, não deve ser feito em uma área que presa pela criticidade. Por
isso, além da acurada leitura da política e da sociedade contemporâ-
nea, Han também se habilita a pensar uma nova filosofia da religião
que, não mais eurocentrada, diz respeito a tradições orientais que,
como tais, devem ser respeitadas como modo válido de pensamento
frente à lógica ocidental.

147
REFERÊNCIAS
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de vida. São Paulo: Boitempo, 2014a.
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