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Federalismo brasileiro
e projeto nacional:
os desafios da democracia
e da desigualdade
Fernando Luiz Abrucio
resumo abstract
O objetivo deste artigo é analisar como The objective of this article is to analyze how
o desenvolvimento do federalismo the development of Brazilian federalism,
brasileiro, inclusive nos seus dilemas e including its current dilemmas and crisis,
crise atuais, relaciona-se fortemente com is strongly related to the construction of
a construção do Estado em seu aspecto the State in its political and public policy
político e de políticas públicas. Para aspects. To this end, the first part of the text
tanto, a primeira parte do texto discute o discusses the concept of Federation and the
conceito de Federação e a multiplicidade multiplicity of formats in the countries that
de formatos nos países que optaram por opted for this model. In the second part, we
este modelo. Na segunda parte, busca-se seek to map synthetically how the federative
mapear sinteticamente como a questão question was configured from the Empire
federativa se configurou do Império ao to the military regime, highlighting how
regime militar, destacando como suas its variations highlight the type of political
variações ressaltam bem o tipo de pacto pact and State model that was being built
político e de modelo de Estado que estava at each moment. Next, the reconstruction
se construindo a cada momento. A seguir, of federalism based on redemocratization
analisa-se a reconstrução do federalismo is analyzed, in a historical process of great
a partir da redemocratização, num advances for the link between Federation
processo histórico de grandes avanços and democracy. Finally, the more
para a vinculação entre Federação contemporary context of federalism under
e democracia. Ao final, é analisado Bolsonaro is analyzed.
Domínio público/ Wikimedia Commons
torial sofreu várias mudanças ao longo do e garantir o equilíbrio entre os entes são
século XX. Há uma literatura que tentou um desafio vinculado à capacidade de
classificar esses processos de transforma- democratizar o Brasil num sentido polí-
ção basicamente pela dicotomia centra- tico e social.
lização versus descentralização, sendo a
primeira marcada por períodos mais auto- A CONSTRUÇÃO DA FEDERAÇÃO
ritários e a segunda, por distensões demo-
cráticas (Couto e Silva, 1981). Embora
BRASILEIRA: DAS ORIGENS ATÉ
essa dinâmica de “sístoles e diástoles” AS TRANSFORMAÇÕES DA
esteja presente, ela não se reproduz da CONSTITUIÇÃO DE 1988
mesma forma ao longo da trajetória fede-
rativa (Kugelmas & Sola, 1999), havendo
transformações nas formas centralizado- O Brasil não nasceu como uma Fede-
ras e descentralizadoras, bem como na ração, mas sim, como um Estado unitário,
relação entre elas. e assim permaneceu por quase 70 anos.
Mais importante do que a dinâmica Embora o período regencial tenha esfa-
centralização versus descentralização na celado o poder do centro sobre as pro-
construção do federalismo brasileiro está víncias, o Segundo Reinado reconstruiu
a forma como o modelo estatal foi se o modelo centralizador naquele período
alterando ao longo do tempo, especial- que foi o seu auge, com altíssima centra-
mente em duas dimensões: democratização lização tributária administrativa e, sobre-
e combate às desigualdades, especialmente tudo, com um modelo no qual o impe-
em sua feição territorial. São estes dois rador escolhia o governante provincial,
aspectos que explicam melhor as altera- sendo este geralmente alguém de fora da
ções históricas e os desafios presentes na elite local (Abrucio, 1998; Iglesias, 1958).
relação entre Federação e nação. Mesmo tendo vigorado um centralismo
Para terminar esta seção, apresenta- extremado, havia um federalismo latente
-se de novo a pergunta que estruturou no país (Torres, 1961), com um forte sen-
a discussão conceitual do federalismo, timento regionalista em várias partes do
direcionada agora para o caso brasileiro: território e uma enorme dificuldade de se
por que o Brasil é uma Federação? Em governar efetivamente o país a partir da
poucas palavras, porque a nação brasi- capital nacional, o que levava o governo
leira teria muitas dificuldades, talvez até central a ter que aceitar uma forte auto-
a impossibilidade, de governar e construir nomia privada dos senhores locais e até
o país desde o final do século XIX, com mesmo negociar com eles em assuntos
a expansão da ocupação territorial, sem para os quais o Estado brasileiro não teria
que tivesse havido alguma divisão espe- poder para implementar o que a cabeça
cial de poder entre o plano nacional e imperial imaginava ser o melhor caminho
os governos subnacionais. Esse processo (Graham, 1997).
foi muito atribulado e continua complexo, Havia desde a Independência duas hete-
pois manter as salvaguardas federativas rogeneidades constitutivas no Brasil. Uma
O resultado desse modelo bolsonarista foi dar seus direitos. Além disso, conseguiram
o enfraquecimento das políticas sociais, o aprovar projetos favoráveis à alocação des-
fracasso no combate à covid-19, o aumento centralizada de recursos pelo Congresso
da descoordenação federativa e da desigual- Nacional no auge da pandemia e de forma
dade territorial, a perda de capacidade de estrutural com a aprovação do novo Fundeb.
fazer uma integração nacional com a Ama- A despeito disso, o fato é que a polí-
zônia, bem como a busca da desinstitucio- tica federativa de Bolsonaro reduziu o
nalização de canais democráticos de diá- componente democrático e de combate
logo com os governos subnacionais (e com à desigualdade do federalismo brasileiro.
a sociedade) no plano das políticas públicas. Para lidar com a herança do bolsona-
O confronto beligerante e de soma-zero com rismo, a Federação terá de voltar ao seu
governadores e prefeitos tornou-se a marca caminho democrático e de combate à
federativa do governo Bolsonaro. desigualdade que vinha adotando desde
O federalismo brasileiro sofreu com o 1988. No momento em que o país come-
modelo bolsonarista, mas não foi subjugado mora seus 200 anos de Independência, é
por ele. Os estados e municípios conse- necessário frisar que o fortalecimento da
guiram garantir seus direitos no STF, os nação nas próximas décadas vai depen-
governos subnacionais adotaram autono- der de recolocar o pacto federativo no
mamente e em parceria medidas próprias prumo, para então iniciar um novo ciclo
contra a pandemia nos campos da educação de reformas que democratizem o modelo
e da saúde (Peters, Grin & Abrucio, 2021) político-territorial e tornem o Brasil um
e ainda criaram alianças regionais, como país mais equilibrado e igualitário do
o Consórcio do Nordeste, para salvaguar- Oiapoque ao Chuí.