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Contradições do processo
de implementação de políticas
públicas: uma análise
do Programa Bolsa Família
2003 – 2006
Introdução
de autogoverno das esferas subnacionais. não é utilizado, mas, sim, União ou governo
Abrucio (2006) lembra que o poder federal. Como dito anteriormente, os
nacional deriva de um acordo entre as direitos originários dos entes federados
partes e que a formação de uma federação e os instrumentos disponíveis para
não elimina direitos originários dos assegurá-los criam uma relação horizontal
pactuantes subnacionais, sejam estados ou entre eles, em que se pese a existência de
municípios, como no caso do Brasil. “Tais alguma hierarquia, como a prerrogativa do
direitos não podem ser arbitrariamente governo federal em manter o equilíbrio da
retirados pela União” (ABRUCIO , 2006, federação ou o forte grau de autoridade
p. 43). Diante dessa afirmação, o autor que os governos intermediários possuem
elenca os diversos instrumentos políticos sobre os governos locais. Abrucio resume:
que os governos subnacionais têm ao seu
dispor para defender seus interesses e
direitos originários, quais sejam, a existência
de cortes constitucionais; uma segunda casa No Programa
legislativa, como o Senado, que representa
Bolsa Família, o
os interesses regionais; a representação
existente na Câmara dos Deputados, na público alvo passou
qual os estados menos populosos têm a ser a família como
bancadas proporcionalmente maiores;
e um processo decisório baseado em
um todo e não mais
maiorias qualificadas, implicando uma os indivíduos
busca constante de consensos possíveis. separadamente. As
Desse modo, em toda federação, a
autonomia dos governos subnacionais não condicionalidades,
é absoluta, nem poderia ser, já que isso agora integradas,
significaria não uma federação, mas, sim, foram estendidas a
uma confederação, da qual o exemplo mais
comum é a União Européia, que se todos os membros
configura como uma aliança entre nações do grupo familiar
soberanas para a execução de determinado
beneficiário
objetivo comum. Trata-se, pois, de
assegurar, além da autonomia, as relações
de interdependência entre os entes
federados. Apontam-se três desafios para “em poucas palavras, processos de
o estabelecimento da interdependência, barganha afetam decisivamente as relações
também citados por Abrucio (2005). verticais num sistema federal” (2005, p. 43).
O primeiro é o caráter matricial das O segundo desafio é a necessidade de
federações. No federalismo, a interde- checks and balances entre os níveis de governo,
pendência não é estabelecida em uma cujo objetivo é a fiscalização recíproca
abordagem top down, isto é, a partir de pelos entes federados de modo que
determinações do governo central. Aliás, nenhum deles fique com poder além do
Abrucio esclarece que, em um modelo pactuado e acabe com a autonomia dos
federalista, esse termo, governo central, demais. Novamente, aqui, o que está
aos recursos da União. Isso sem falar na populacional, uma vez que não mais se
opção, tantas vezes criticada, da construção tratava de recursos contributivos, como as
de um modelo nacional por meio das formas de garantia de renda aos
Normas Operacionais Básicas (NOBs), a empregados formais. Essas novas medidas
despeito das desigualdades regionais e em de garantia de renda passaram a constituir
detrimento de pactuações mais pontuais. um novo flanco de ações de políticas
Na área de transferência direta de públicas direcionadas ao enfrentamento da
renda, esse federalismo centralizado não pobreza, desvinculada da prévia condição
deixa dúvida quanto à sua existência. Aliás, de trabalho. Até então, na experiência
os programas dessa natureza, implantados brasileira, o requisito para ter acesso a algum
pelo governo federal desde 2001, benefício monetário não era ser origi-
reforçam esse caráter centralizador. Nas nalmente pobre, mas, em primeiro lugar,
palavras de Afonso (2006, p. 4): estar no mercado de trabalho ou ter uma
trajetória de emprego assalariado com
“o governo central passa a pagar carteira assinada. Era o princípio da cida-
benefícios (fora da previdência social) dania regulada que definia a condição de
diretamente aos indivíduos, relegando acesso às políticas sociais e trabalhistas
os governos subnacionais a um papel desenvolvidas fundamentalmente a partir
secundário (para não dizer, ausência de da década de 1930 (SANTOS, 1979).
função no caso dos estados brasileiros Com a Constituição Federal de 1988
em relação ao Programa Bolsa e, posteriormente, com a Lei Orgânica da
Família). Em outras e bem simplórias Assistência Social, novas e diversas medidas
palavras, é rompida a tradicional idéia legais foram aprovadas visando à garantia
de que o pobre pertence ao governo de renda sem prévia contribuição. Esse é
local”. o caso do Benefício de Prestação Conti-
nuada (BPC) destinado aos idosos e às
A seguir, será analisada a implemen- pessoas com deficiências pertencentes a
tação do Programa Bolsa Família sob o famílias de baixa renda. Essa perspectiva
aspecto federativo. de ampliação do campo dos direitos de
cidadania favoreceu a incorporação de
Breve histórico da transferência novos segmentos sociais, até então margi-
de renda no Brasil nalizados das políticas públicas, salvo as
políticas marcadamente assistencialistas.
A adoção de políticas de redistribuição O agravamento do cenário macroeco-
de renda, por intermédio da garantia de nômico, ocasionado pela implementação
um rendimento monetário mínimo das políticas de corte neoliberal, que
desvinculado das relações trabalhistas, é promoveram o aprofundamento da
relativamente recente no Brasil. Remonta exclusão social no Brasil6, desencadeou, no
aos anos 1970, às aposentadorias e pensões início dos anos 90, um amplo debate sobre
aos trabalhadores/as rurais e à Renda políticas públicas de natureza redistributiva
Mensal Vitalícia. de renda. As primeiras iniciativas datam de
Para isso, o orçamento público passou 1995 e fugiram às regras das políticas
a conceder parcela orçamentária no sociais, uma vez que se deram nas esferas
financiamento desse novo contingente municipais e estaduais, conforme
R$ em milhão
2002 a 2005 – valores executados
2006 – PLOA
Fonte: SENARC/MDS
três níveis de governo, ao prever que o benefícios sejam viabilizados para eles.
combate às causas da pobreza e aos fatores Situação muito confortável para a União,
de marginalização e a promoção da que praticamente não necessita de negociar
integração social dos setores desfavo- apoios e estabelecer consensos.
recidos é competência comum da União, Uma das conseqüências desse quadro
estados, Distrito Federal e municípios. foi que os estados e municípios que tinham
Partindo desse preceito constitucional, condição financeira para tal criaram seus
mas apoiado principalmente em aspectos próprios programas de transferência de
de ordem prática e operacional, os renda, gerando mais sobreposições de
programas de transferência de renda ações e clientelas, fracionamento das ações
implantados pelo governo federal, desde e pulverização dos benefícios, dificultando
2001, tinham em seu desenho uma uma ação articulada na área de transfe-
necessária articulação entre a esfera rência de renda que conjugasse as três
nacional e as esferas subnacionais, em esferas de governo. Isso pode ser consta-
especial os municípios. É impensável tado pelo grande número de programas
imaginar que a União seja capaz isola- de transferência de renda implementados
damente de realizar programas dessa por governos subnacionais.
natureza sem que os governos municipais Com a criação do Programa
estivessem dispostos a assumir as tarefas Bolsa Família e tendo em vista a sua
de cadastramento das famílias, de universalização entre as famílias com
acompanhamento das condicionalidades, renda compatível ao critério de
de fiscalização, bem como de atendi- elegibilidade previsto para o programa,
mento da população. a possibilidade de sobreposição de ação
O desafio posto para o sucesso e público ficou mais evidente.
desses programas está em como fazer Mesmo porque, com o crescimento do
com que os governos locais efetivamente programa, mais se exigia dos municípios
participem de um programa federal, em ter mos de desenvolvimento de
levando em consideração que o ônus atividades acerca do programa
financeiro, até então, do cadastramento e (cadastramento de famílias pobres,
demais ações, recaía sobre eles, ao mesmo focalização, controle das condiciona-
tempo em que os ganhos políticos para lidades). Portanto, além da questão da
esses atores são praticamente nulos, uma duplicidade de ação e beneficiários, a
vez que o benefício estava associado ao existência de programas de renda locais
governo federal. Ou seja, aos encargos desarticulados com o federal disputa os
assumidos pelos municípios não corres- parcos recursos humanos e financeiros
ponde o bônus político correspondente dos municípios.
segundo os padrões clássicos de imple- A fim de evitar a competição entre
mentação de políticas sociais até então os programas e a desmobilização dos
vigentes no país (por exemplo, a interme- municípios na implementação de um
diação do governo local na distribuição programa da magnitude do Bolsa
dos recursos). A questão resolve-se na Família, o governo federal utilizou-se de
medida em que a própria população três estratégias. A primeira foi a possibi-
potencialmente beneficiária dos lidade da integração de programas de
programas pressiona para que os transferência de renda locais com o Bolsa
Família. Ou seja, municípios e estados que Importante ressaltar que a União não
se interessassem em participar do estabeleceu uma forma padronizada de
financiamento do benefício podiam cofinanciamento do Programa, permitindo
fazê-lo. Assim, desde 2004, alguns que os entes federados adequassem o
governos subnacionais, na sua maioria desenho de seus programas ao do Bolsa
municípios, contribuem finan- Família. Os termos da integração são,
ceiramente, aumentando o valor do portanto, definidos caso a caso, com cada
montante destinado às famílias. Como ente federado separadamente, e de acordo
forma de incentivar essa participação, o com a capacidade de negociação de cada
cartão magnético de saque do dinheiro é um. Assim, embora todas as famílias
confeccionado com a logomarca dos recebam da União os benefícios segundo
governos participantes. as regras e os critérios estabelecidos nacio-
Apesar do caráter inovador dessa nalmente, cada estado ou município possui
ação, atualmente seu alcance é pouco critérios próprios de complementação: uns
representativo em função do baixo estabeleceram um piso mínimo do
número de pactuações firmadas, bem benefício, como o Acre, outros elevaram
como das metas acordadas, que, na os valores do benefício, como o Distrito
maioria dos casos, não são atingidas. As Federal e Recife. Essa flexibilidade, ao
tabelas 2 e 3 apontam os municípios e mesmo tempo em que cria espaços
estados que possuem Ter mo de importantes de interlocução com os entes
Cooperação em vigor para a comple- federados e estabelece importante coor-
mentação do benefício financeiro das denação cooperativa, também deixa a certo
famílias do Bolsa Família. voluntarismo dos estados e municípios sua
dessa área pelos governos municipais não cumprirão seu papel, que vai além da
é tão isenta assim. O fato de o programa fiscalização da atuação municipal. Não se
no nível federal estar no Ministério de diminui o mérito e a importância disso, mas
Desenvolvimento Social por si só já dava deve-se envolver também a participação dos
um indicativo aos municípios. Além disso, conselheiros na definição de diretrizes do
a sistemática escolhida para as transferências Programa, promovendo a apropriação
de recursos destinados à gestão do de seus valores pela sociedade local.
programa é fundo a fundo: do Fundo Ressaltam-se algumas iniciativas, embora
Nacional de Assistência Social para os tímidas, por meio da realização de eventos,
fundos municipais de assistência social. em parceria com estados e municípios, em
A definição das instâncias de controle todas as unidades da federação, para a
social também responde uma demanda do mobilização desses atores, bem como a
desenho legal do programa, que estabelece vinculação de informativo via Internet
a participação e o controle social na destinado a esse público.
implementação do programa. Novamente, Os estados também passaram por um
a União não definiu qual instância deveria processo de adesão ao Programa Bolsa
ser utilizada para essa tarefa, cabendo ao Família e foram beneficiados com a trans-
município a indicação de um conselho já ferência de recursos da União. No entanto,
existente ou a criação de uma nova estrutura. a adesão dos estados foi mais restrita,
Cerca de 58% dos municípios escolheram apenas ao processo de atualização cadastral
a primeira opção, sendo que 87% dele- deflagrado pelo MDS em julho de 2005.
garam ao conselho municipal de assistência Naquela ocasião, os recursos destinados aos
social o controle social do programa10. estados, na proporção de 10% do que foi
Teoricamente, o estabelecimento desses transferido aos municípios, estava condi-
espaços na estrutura municipal como cionado à adesão ao programa no prazo
possibilidade de participação e controle estabelecido da totalidade dos municípios
social são fundamentais para democratizar de seu território e, ainda, ao número de
e republicanizar a esfera local. Há dúvidas, cadastros válidos atualizados no estado.
no entanto, sobre a efetividade dessa Assim, os municípios, além da pressão da
iniciativa, principalmente por dois motivos. União, também foram tensionados pelos
O primeiro, devido à possível cooptação governos estaduais, tanto para a
dos membros dessas instâncias pelo poder formalização da sua participação no
público, inclusive a partir da nomeação dos programa federal, como também para
próprios conselheiros, o que compromete a realização da atualização cadastral.
a atuação dos mesmos. Nesse sentido, é Obser va-se o absoluto sucesso do
positiva a opção tomada pelos prefeitos de governo federal nessa empreitada: em
delegar essa atribuição a conselhos ou menos de oito meses, 5.560 municípios,
comitês já existentes, com procedimentos dos 5.564, haviam efetivado a sua adesão
já formatados e testados. O segundo, a falta e cerca de 78% do Cadastro Único tinha
de informação, de maneira sistemática, tanto sido atualizado11.
sobre a população beneficiária, mas Atualmente, o governo federal
principalmente sobre o funcionamento do continua repassando recursos financeiros
próprio Programa. Sem que isso se resolva, aos municípios e estados. Para os primeiros,
as instâncias de controle social não foi criado um indicador de qualidade de
Notas
1
Fernando Luiz Abrucio (fabrucio@fgvsp.br) é doutor em Ciência Política pela Universidade
de São Paulo (USP), professor do Programa de Pós-graduação em Administração Pública e Governo
da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), além de lecionar Política Comparada na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
2
Nesse ponto, é importante diferenciar “não centralização” de “descentralização”, termos
muitas vezes utilizados equivocadamente como sinônimos. Um sistema não centralizado significa
a existência de poderes difusos, que não podem ser centralizados sem quebrar a estrutura e o espírito
da constituição. Já a descentralização significa que o poder é transferido do governo central para os
subnacionais, a partir de uma ação voluntária do primeiro.
3
De 1988 até 2006, passamos de 4.189 municípios para 5.564.
4
Abrucio (1998) dá dois exemplos desse comportamento indesejado. Primeiro, em muitos
governos locais, os prefeitos compram ambulâncias para que os cidadãos utilizem os serviços
hospitalares do município vizinho, ao invés de investir diretamente nesses serviços. O outro exemplo
resgata o processo histórico da dívida dos estados. Muito superficialmente, o que ele ressalta é que os
estados endividavam-se e depois barganhavam apoio político da União em troca da rolagem da sua
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