Você está na página 1de 12

A nova Administração Pública e o direito administrativo

Gabriela de Carvalho
Advogada da União. Consultora Jurídica da União em Minas Gerais. Mestrado em Direito Público pela FUMEC/MG. Pós-Graduação
em Direito Processual Civil pela UFU/MG. Pós-Graduação em Direito Público pelo Fortium – Centros de Estudos Jurídicos/DF. Pós-
Graduação em Auditoria Interna e Controle Governamental pelo Instituto Serzedello Corrêa/TCU/DF. Pós-Graduação em Advocacia
Pública pelo IDDE/MG. E-mail: <gabriela.carvalho@agu.gov.br>.

Resumo: O presente artigo tem por finalidade a análise do pro- pública segundo outros princípios, favorecendo o
blema da admissibilidade da utilização de formas jurídico-privadas
por parte da Administração Pública: a questão da liberdade de
diálogo da sociedade consigo mesma”.2
escolha das formas de organização jurídico-privadas e a questão Nesse cenário, aponta-se para o surgimento
da liberdade de escolha das respectivas formas de atuação. A de uma Administração Pública dialógica, que con-
ideia de liberdade de escolha implica no reconhecimento de uma
espécie de “arte administrativa” para escolher a forma jurídica trastaria com a Administração Pública monológica,
mais apropriada às situações concretas. Contra o princípio da refratária à instituição e ao desenvolvimento de pro-
liberdade de escolha têm sido apresentados receios ligados à cessos comunicacionais com a sociedade.
ideia de Estado de Direito. Assim, tal liberdade é problemática,
com base em dois fundamentos: gera incerteza jurídica, porque Jean-Pierre Gaudin refere-se à expansão de
o cidadão não sabe quais as formas jurídicas de que a Adminis- uma política de contratualização que ensejaria a con­
tração vai se servir no caso concreto; acaba por atribuir à Admi- tratualização da ação pública. Esclarecendo que na
nistração a possibilidade de escolher quais as regras jurídicas
que regerão a sua atuação. O tema foi explorado a partir de prin- França contratualização e descentralização são fenô-
cípios constitucionais na sucessão das abordagens jurídicas das menos imbricados, afirma que nesse país a difusão
principais correntes de alguns doutrinadores administrativistas e
de métodos contratuais operou-se em um enfoque
constitucionalistas. Os regimes jurídicos público e privado foram
analisados e interpretados segundo a questão das exigências da de dupla renovação: a) formas de participação e
modernidade e pós-modernidade. consulta pública, e b) formas de coordenação en-
Palavras-chave: Formas jurídico-privadas. Administração Pública. tre instituições e atores sociais que participam da
Princípio de liberdade de escolha. Princípio da legalidade. Estado ação pública. Daí a expressão “governar por contra-
Democrático de Direito.
to”, que evocaria a necessidade do Estado continua-
Sumário: 1 Introdução – 2 Princípios da prossecução do inte­ mente estabelecer vínculos com a sociedade, como
resse público – 3 O princípio da legalidade – 4 O princípio da
liberdade de escolha das formas jurídico-privadas – 5 O princípio meio para a melhor consecução de suas ações.
da especialidade das pessoas coletivas públicas – 6 Autonomia Convém ressaltar que vínculos são criados me-
privada da Administração Pública? – 7 O princípio da eficiência
diante um prévio e necessário processo de negocia-
e o novo perfil da Administração Pública – 8 Publicização do
direito privado – 9 Vinculações jurídico-públicas da Administração ção, em que são discutidas as bases sobre as quais
Pública na utilização do direito privado – 10 A execução eventualmente serão firmados acordos e contratos.
associada por contrato e a sinergia da parceria – Espécies de
contratos administrativos – Consensualidade – 11 Princípio da
O conteúdo desses ajustes será o objeto do enten-
participação e da subsidiariedade – 12 Conclusão – Referências dimento, do possível consenso entre as partes; será
o resultado das concessões e dos intercâmbios rea­
lizados no transcurso do processo de negociação
1 Introdução que antecedeu ao compromisso. Por isso, convém
ressaltar que as posturas assumidas pelo Estado
Um tema recorrente, inserido nos movimentos mediador são distintas das posições tradicional-
reformadores e modernizadores do Estado, é o em- mente ostentadas pelo Estado impositor, cuja nota
prego em larga escala de métodos e técnicas nego- característica encontra-se justamente no poder de
ciais ou contratualizadas no campo das atividades impor obrigações, exercido em razão do atributo da
perpetradas pelos órgãos/entidades públicas. Tais autoridade, imanente ao poder político ou estatal.
atividades podem envolver unicamente a participa- A análise do fenômeno do consensualismo
ção de órgãos e entidades públicas, como também que se pretende empreender neste trabalho obvia-
contemplar a sua interação com organizações de mente ultrapassa o emprego do contrato para a
finalidade lucrativa (setor privado) ou desprovidas obtenção de resultados meramente econômicos ou
de finalidade lucrativa (Terceiro Setor). patrimoniais.
Insta afirmar que vem ganhando prestígio mun- O ponto em destaque diz respeito à extensão
dial a discussão acerca de uma cultura do diálogo, e à intensidade com que técnicas consensuais
em que o Estado há de conformar suas ações em vêm sendo empregadas, como soluções preferen-
face das emanações da diversidade social.1 Alude- ciais — e não unicamente alternativas — à utiliza-
se à figura de um Estado “que conduz sua ação ção de métodos estatais que veiculem unilateral

1
BELLOUBET-FRIER; TIMSIT. L’administration en chantiers, p. 303. 2
Ibid., p. 314.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014 ARTIGOS 37
Gabriela de Carvalho

e impositivamente comandos para os cidadãos, extrapolava o momento da gênese do ato, predo-


empresas e organizações da sociedade civil. Por minando por toda a relação por ele instaurada,
isso, uma das linhas de transformação do direito ad- inclusive tornando possível à Administração unila-
ministrativo consiste em evidenciar que, no âmbito teralmente modificá-lo ou mesmo restringir os seus
estatal, em campos habitualmente ocupados pela efeitos.4
imperatividade, há a abertura de consideráveis espa- Entretanto, como bem salienta José Casalta
ços para a consensualidade. Nabais, a ideia de que o direito público, nas rela-
Aplicada ao terreno da Administração Pública, ções entre o indivíduo e o Estado, tem como campo
essa orientação gerou expressões como adminis- de aplicação os atos de autoridade (atos em que
trar por contrato, administrar por acordos, admi- o Estado manifesta o seu imperium e impõe a sua
nistração paritária, administração dialógica e, mais autoridade ao administrado) está, desde há muito
recentemente, administração consensual. Cumpre tempo, ultrapassada.
notar que tal diversidade terminológica acaba ten- Odete Medauar destaca a importância do con­-
do efeitos positivos, principalmente porque evoca sensualismo no âmbito da Administração con­tem-
o fato de que administrar por meio de métodos ou porânea:
instrumentos consensuais não significa, necessa-
riamente, lançar mão da figura clássica do contrato A atividade de consenso-negociação entre Poder
administrativo. Público e particulares, mesmo informal, passa a as-
O sentido das expressões elencadas sinaliza sumir papel importante no processo de identificação
um novo caminho, no qual a Administração Pública de interesses públicos e privados, tutelados pela
passa a valorizar (e por vezes privilegiar) uma forma Administração. Esta não mais detém exclusividade
no estabelecimento do interesse público; a discricio-
de gestão cujas referências são o acordo, a negocia-
nariedade se reduz, atenua-se a prática de imposição
ção, a coordenação, a cooperação, a colaboração,
unilateral e autoritária de decisões. A Administração
a conciliação, a transação. Isso em setores e ati- volta-se para a coletividade, passando a conhecer
vidades preferencial ou exclusivamente reservados melhor os problemas e aspirações da sociedade.
ao tradicional modo de administrar: a Administração A Administração passa a ter atividade de mediação
por via impositiva ou autoritária. para dirimir e compor conflitos de interesses entre
O direito administrativo foi originado nas ba- várias partes ou entre estas e a Administração. Daí
ses do modelo liberal de Estado, vigente a partir do decorre um novo modo de agir, não mais centrado so-
séc. XIX, período em que a imperatividade (noção bre o ato como instrumento exclusivo de definição e
que expressava a autoridade do Estado frente aos atendimento do interesse público, mas como ativida-
de aberta à colaboração dos indivíduos. Passa a ter
indivíduos, decorrente da soberania) acabou por
relevo o momento do consenso e da participação.5
conformar os institutos e categorias desse ramo
jurídico. Em virtude desse poder de império, forjou-se
Em monografia dedicada ao tema, Diogo de
a ação administrativa típica, a qual era manifestada
Figueiredo Moreira Neto assevera que: pela consen-
por meio de atos administrativos, cujos atributos
sualidade, o Poder Público vai além de estimular a
essenciais sujeitavam-se à noção de autoridade. O
prática de condutas privadas de interesse público,
binômio autoridade-liberdade — matizador do direi-
passando a estimular a criação de soluções priva-
to administrativo desde sua origem — tem funda-
das de interesse público, concorrendo para enrique-
mento no surgimento da Administração Pública; é
cer seus modos e formas de atendimento.6
o momento da Administração autoritária, com seus
Odete Medauar apresenta uma síntese dos
traços característicos de a) desigualdade entre a
principais fatores que provocaram a abertura da
Administração e os indivíduos e b) atribuição aos
Administração Pública para as variações consen-
órgãos e entes administrativos de poderes de auto-
ridade sobre os indivíduos. suais como forma de exercício de suas atividades:
Nas palavras de Giorgio Berti, isso ocorreu,
Um conjunto de fatores propiciou esse modo de
sobretudo, com o fito de conferir proteção a um atuar, dentre os quais: a afirmação pluralista, a he-
poder político “que pretendia garantir-se por meio terogeneidade de interesses detectados numa socie-
de uma apropriada e especial juridicidade”.3 E se- dade complexa; a maior proximidade entre Estado
gundo o autor, a configuração do ato imperativo da e sociedade, portanto, entre Administração e so-
Administração Pública não beneficiava ambas as ciedade. Aponta-se o desenvolvimento, ao lado dos
partes segundo a lógica do consensualismo, mas mecanismos democráticos clássicos, de “formas
tinha por referência tão somente a entidade admi- mais autênticas de direção jurídica autônoma das
nistrativa. Tal configuração autoritária e unilateral
4
NABAIS. Contratos fiscais, p. 24
3
BERTI. Il principio contrattuale nell´attività amministrativa. In: 5
MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 257.
GIANNINI. Scritti in onore di Massimo Severo Giannini, v. 2, p. 49. 6
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 236.

38 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014
A nova Administração Pública e o direito administrativo

condutas”, que abrangem, de um lado, a conduta Para Cassese, “passam ao primeiro plano a
do Poder Público no sentido de debater e negociar negociação em lugar do procedimento, a liberdade
periodicamente com interessados as medidas ou re- das formas em lugar da tipicidade, a permuta em lu-
formas que pretende adotar, e de outro, o interesse gar da ponderação”.12 O paradigma bipolar Estado-
dos indivíduos, isolados ou em grupos, na tomada cidadão daria lugar ao paradigma multipolar, e por
de decisões da autoridade administrativa, seja sob a
isso afirma o autor que interesses privados coinci-
forma de atuação em conselhos, comissões, grupos
dentes com interesses públicos comunitários estão
de trabalho no interior dos órgãos públicos, seja sob
em conflito com outros interesses públicos, de natu-
a forma de múltiplos acordos celebrados. Associa-se
o florescimento de módulos contratuais também à
reza nacional. Não há distinção ou oposição entre
crise da lei formal como ordenadora de interesses, público-privado, assim como não há uma superiori-
em virtude de que esta passa a enunciar os objetivos dade do momento público sobre o privado.
da ação administrativa e os interesses protegidos. E inerente ao paradigma multipolar é a presença
E, ainda: ao processo de deregulation; à emersão de múltiplos agentes e interessados na discussão de
de interesses metaindividuais; à exigência de racio- assuntos públicos, fato que eventualmente redunda
nalidade, modernização e simplificação da atividade em acordos, exigindo para tanto “permutas recípro-
administrativa, assim como de maior eficiência e pro- cas, fundadas sobre a negociação”.13
dutividade, alcançados de modo mais fácil quando Configurada a administração consensual e apre­
há consenso sobre o teor das decisões.7 sentados os seus fundamentos dogmáticos, a seguir
serão expostas algumas de suas formas de expres-
Nesse enfoque, Jean Rivero alude a uma for- são e de seus instrumentos de ação.
ma de atividade administrativa “na qual o acordo
contratual ganha um lugar crescente”.8 Embora
2 Princípios da prossecução do interesse
reconhecendo que o recurso a módulos convencio-
público
nais por parte da Administração Pública pode levar
à “colusão e mesmo a situações em que é fácil que No direito administrativo as leis são, muitas ve-
interesses individuais ou de grupo se sobreponham zes, meras molduras, que deixam à Administração
aos interesses da colectividade”,9 Enzo Roppo vis- Pública competência suficiente para definir as condi-
lumbra potencialidades positivas para o emprego do ções de realização dos objetivos fixados, dando-lhe,
consensualimo administrativo, porque a procura e a ainda, um amplo poder de apreciação das situações
promoção do “consenso” dos “administrados” sig- concretas, sobretudo se estivermos diante de solu-
nificam desenvolvimento da sua ativa e consciente ções técnicas que devem suplantar a morosidade
do processo legislativo.
“participação”, na qual, por sua vez, se encontra
O Estado Democrático de Direito envolve a par-
um pressuposto de democracia e, ao mesmo tempo
ticipação crescente do povo no processo decisório
de eficiência do procedimento administrativo. Neste
e na formação dos atos de governo, por meio da
sentido, o contrato, com os valores que exprime,
pluralidade de ideias, culturas e etnias.14
coloca-se, de certo modo, com símbolo e suporte de
A pluralidade desse novo direito pode ser expli-
um novo e mais avançado modelo de relação entre cada por meio de dois mecanismos: a) pluralismo
autoridade e liberdade.10 e b) negociação. O pluralismo apregoa que não é o
Nesse contexto, insta ressaltar a opinião aba- Estado a única fonte produtora de normas, mas as
lizada de Sabino Cassese, quando elenca novos normas produzidas convivem com um conjunto de
paradigmas do Estado, os quais colocam em dis- ordens jurídicas infraestatais, fundadas em solida-
cussão todas as noções, temas e problemas clássi- riedades parciais ou locais, e de ordens jurídicas
cos do direito público, da natureza do Poder Público supraestatais, nascidas da emergência do surgi-
e de sua atuação legal-racional orientada pela supe- mento de comunidades locais (comunidades urbanas
rioridade da lei, do lugar reservado à lei e de suas periféricas) ou regionais (ordem jurídica europeia) ou
implicações (legalidade e tipicidade) para as rela- mundiais (ordem jurídica internacional).
ções público-privadas.11 Como em rede, o pluralismo ganha também
Um desses novos paradigmas é o fortaleci- o direito estatal e a Administração Pública, através
mento da negociação na esfera da Administração do desenvolvimento de centros de autonomia norma-
Pública, expressada por via de acordos. tiva no âmbito do aparelho do Estado, como aqueles
que resultam da extensão do poder regulamentar
local e da instituição de autoridades administrativas
7
MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 259. independentes.
8
RIVERO. Direito administrativo.
9
Ibid., p. 346.
10
Ibid., p. 346-347. 12
Ibid., p. 157.
11
CASSESE. La arena pública: nuevos paradigmas para el Estado. 13
Ibid., p. 106.
In: CASSESE. La crisis del Estado, p. 159. 14
DIAS. Direito administrativo pós-moderno, p. 61 et seq.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014 ARTIGOS 39
Gabriela de Carvalho

O caráter negocial do Direito advém do paradigma A Administração Pública se diferencia da atividade


procedimental do direito proposto pela Teoria discur- privada pelo dever de prosseguir sempre o interesse
siva do direito e da democracia de Habermas, segundo público. O interesse público é indissociável de toda
o qual a força obrigatória da regra jurídica advém do e qualquer atividade administrativa. Nesse sentido,
consenso em torno do qual ela foi elaborada, fruto de Marzuoli16 considera ser pacífico que o interesse pú-
uma permanente tensão entre as autonomias públicas blico diga respeito à atividade de direito privado da
e privadas. Esse consenso supõe que os destinatários Administração Pública.
façam parte do concerto de forças na formação da As expressões gestão privada e gestão pública
regra jurídica, de forma que o direito deva se tornar um significam que, no primeiro caso, a Administração
direito negocial, ao invés de coativo. atua segundo as normas de direito privado; no se-
Nesse sentido, o direito tende a tornar-se uma gundo, conforme as normas de direito público.
espécie de técnica de confluência de condutas, pro- Freitas do Amaral17 afirma que este princípio
duto de um diálogo permanente entre governantes da prossecução do interesse público tem inúmeras
e governados. consequências práticas na Administração Pública e
A ideia de procedimentalidade na Teoria Dis­ enumera oito de seus corolários:
cursiva do direito e da democracia de Habermas é o 1º - Somente a lei pode definir os interes-
elemento prévio e fundante da legitimidade do direito. ses públicos a cargo da Administração
Nesse sentido: Pública, não podendo a Administração
Pública defini-los por si própria em razão
O direito legítimo encerra o círculo entre a autono-
dos princípios da separação dos poderes
mia de seus destinatários tratados igualitariamente
e da legalidade.
e a autonomia pública dos cidadãos que, enquanto
autores igualmente portadores de titularidade da 2º - Quando a lei não define por completo,
ordem jurídica, devem decidir, em última instancia, cabe à Administração Pública interpretar
sobre os critérios de igualdade de tratamento. os princípios e desenvolvê-los dentro dos
limites impostos pela lei.
O outro pilar do direito pós-moderno, a flexi- 3º - Em casos de determinação imprecisa do
bilidade do direito, é dada por dois caracteres: interesse público, a Administração Pú­
a) agilidade e b) adaptabilidade.15 blica recebe um poder discricionário para
A agilidade do direito pós-moderno seria sua determinar a conduta a ser adotada.
capacidade de se adaptar à evolução do real, so- 4º - Obrigatoriedade da prossecução do inte­
bretudo se considerarmos a pluralidade de fontes resse público. “O verdadeiro dever de
de normatividade. Um exemplo evidente dessa nova agir” (Rogério Soares).
necessidade dos ordenamentos jurídicos é o cons- 5º - Princípio da especialidade das pessoas
tante apoio que o direito toma de outras normas de coletivas públicas é o interesse público
conduta, como as normas técnicas, que são nor- que delimita a capacidade e competência
mas consensuais, e não obrigatórias, e sua aplicabi- das pessoas coletivas públicas.
lidade depende dos interessados em seu conteúdo, 6º - Só o interesse público pode constituir o
e ainda das relações entre o direito e a ética. Nesse “motivo principalmente determinante” da
sentido, o direito passa a ser um instrumento de atuação da Administração Pública, caso
guia a serviço de políticas que o ultrapassam e a contrário seria “desvio de poder”.
problemática da regulamentação recai, assim, sobre 7º - Se houver prossecução de verdadeiros
uma visão instrumental do direito, passando para interesses privados em vez de interesses
segundo plano a ideia de imposição/obrigatorieda- públicos então consistiria numa situação
de que estava no cerne da concepção moderna. mais grave, corrupção.
A adaptabilidade, por sua vez, é a caracterís- 8º - Adotar sempre as melhores soluções pos­
tica do direito de se adequar às novas situações síveis. “Dever de boa administração”.
que vão surgindo, de maneira a se tornar um direito A Administração Pública existe sempre para
transitório. prosseguir o interesse público e que a ideia de esse
À medida que a esfera pública se amplia, a interesse público é o seu norte, o seu guia, o seu
necessidade de legitimação do direito também se fim, não podendo deixar de aplicar-se em relação
altera, ou seja, “quanto mais o direito é arrolado
como um meio de direção política e de planejamen-
to social, maior é o ônus de legitimação que recai 16
MARZUOLI. Princípio di legalità e attività di dirirro privato della
pubblica amministrazione, p. 134; ESTORNINHO. A fuga para o
sobre a gênese democrática do direto”. direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito
privado da Administração Pública, p. 168.
17
AMARAL. A responsabilidade da Administração no direito português,
15
DIAS. Direito administrativo pós-moderno, p. 62. v. 2, p. 77.

40 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014
A nova Administração Pública e o direito administrativo

a toda e qualquer atuação administrativa, seja por há a tese intermediária que exige a reserva de lei,
meios jurídicos públicos, seja através das formas não a toda a administração de prestação, mas tão
de organização e atuação do direito privado. só às chamadas “prestações necessárias à existên-
cia”, ou apenas aos atos em que a Administração
3 O princípio da legalidade Pública exerce poder público, apesar de não praticar
ato administrativo.
Na passagem do Estado Liberal para o Estado O conceito de legalidade contém necessaria-
Social de Direito, o princípio da legalidade sofre al- mente uma invocação sociológica. A lei não é um
gumas transformações: produto arbitrário, gerado artificialmente pela von-
1º - A ideia de lei passa para a ideia de direi- tade dos órgãos legislativos. Ela reflete e corporifica
to. Todo o direito, todas as regras e prin- as tendências do meio social da ordem econômica
cípios do direito devem ser levados em e política. Quando, portanto, a legislação determina,
conta na atividade administrativa. expressa ou implicitamente, a finalidade de com-
2º - A lei não é apenas o limite mas o funda- petência administrativa, consulta não somente
mento da atividade administrativa. aquelas razões de moralidade, como, de um modo
No período da monarquia, a Administração amplo, a todos objetivos de interesse público. Não
Pública era limitada pela lei de forma negativa. O é, porém, simplesmente, dessa emanação social,
rei podia fazer tudo o que bem entendesse, mas só que nasce a obediência do administrador aos fins
podia limitar direitos dos particulares se fundamen- preestabelecidos. Essa obrigação jurídica resulta da
tado em lei anterior. Agora, ao contrário, a regra não incorporação desses fins à própria substância da
é esse princípio da liberdade, mas o princípio da lei, adquirindo assim executoriedade. A nulidade do
competência. A Administração só pode fazer o que ato administrativo provém do conflito irreconciliado
a lei permitir. com a essência da norma legal, com o conteúdo do
Atualmente, regem o princípio da legalidade direito positivo. Não é porque seja imoral ou incon-
negativa onde há prevalência da lei e nenhum ato veniente que a manifestação de vontade do agente
de categoria inferior pode contrariar a lei e o princí- deixa de adquirir eficácia jurídica, mas porque viola
pio da legalidade positiva onde há precedência da a lei, ou em sua letra ou em seu espírito. O controle
lei, ou seja — reserva de Lei — o ato é praticado de finalidade é, portanto, dentro do rigor científico,
com fundamento na lei. uma perfeita condição der legalidade, possivelmente
A este propósito, Rogério Soares18 afirma que a a mais importante pelos seus reflexos e pela pro-
ideia de que “a cavalo dado não se olha os dentes” fundidade de suas consequências.20
já não se justifica de maneira nenhuma em relação
à atividade atual da Administração Pública, uma vez 4 O princípio da liberdade de escolha das
que as prestações não são graças ocasionais, mas formas jurídico-privadas
a essência da própria Administração Pública.
A doutrina alemã tem sido favorável a essa
Essas tarefas demandam dinheiro público são
ideia de liberdade de escolha. Segundo a doutrina
impostos coativamente e advém de sacrifícios dos
maioritária tradicional, a Administração tem uma
cidadãos. A Administração faz despesas com funda-
dupla liberdade de escolha, podendo escolher tanto
mento na lei administrativa que por sua vez depende
as formas de organização quanto as formas de atua-
da lei financeira.
ção do direito privado.21
Freitas do Amaral19 conclui que o princípio da
Contra o princípio da liberdade de escolha
legalidade desdobra-se na necessidade de respeitar
têm sido apresentados receios ligados à ideia de
tanto a legalidade administrativa quanto a legalidade
Estado de Direito. Entretanto, para não contrariar
financeira.
o princípio típico do Estado de Direito, entende-se
Em um extremo estão aqueles doutrinadores
que o consentimento jurídico negocial do cidadão
que exigem uma reserva de lei, ou seja, uma ex-
quando da aplicação de técnicas de atuação jurídico-­
pressa previsão legal para todo e qualquer ato da
privadas, não deve dispensar a exigência de uma lei
Administração Pública, quer seja no direito privado,
de autorização para tal atuação.
quer seja no direito público. No outro extremo estão Muitos autores entendem que se pode atuar
aqueles estudiosos que continuam a defender a sob a forma de direito privado, mas com uma vincu-
reserva de lei apenas nos moldes tradicionais, ou lação jurídico-pública.
seja, quando há restrições à liberdade privada. E
20
TÁCITO. Desvio de poder em matéria administrativa, 1951, f. 30;
18
SOARES, Rogério Ehrahardt. Direito administrativo. Coimbra, [s.d.]. 1975, p. 72.
p. 53, 55. Lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídico- 21
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o
Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. estudo da actividade de direito privado da Administração Pública,
19
AMARAL. Princípio da legalidade. Polis, v. 3, p. 976 et seq. 1985. p. 207-221.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014 ARTIGOS 41
Gabriela de Carvalho

Parte-se da ideia de direito público como direito A escolha dos meios não é uma escolha indi-
especial do Estado e das outras entidades públicas ferente, mas terá que ser a do meio conveniente,
e entende que, regra geral, eles devem desempe- aquele capaz de satisfazer integralmente a neces-
nhar as tarefas que lhes são atribuídas por normas sidade final.
de direito público, a não ser que esteja expressa a Se a finalidade de qualquer ato administrativo é
vontade de atuar por meio jurídico-privado. atender ao interesse público, no caso do ato vinculado,
Freitas do Amaral22 afirma não aceitar que vigore tal interesse já foi a priori demarcado pelo legislador,
no nosso direito a presunção legal segundo a qual condicionado de modo preciso à futura conduta do
todo o contrato entre a Administração e um particu- agente administrativo. Ora, se o Administrador, no
lar deve ser considerado, em caso de dúvida, um uso do poder discricionário de que dispõe, deixa de
contrato administrativo. Assim, considera que po- atender ao fim legal a que está indissoluvelmente
dendo a Administração celebrar com os particulares ligado, é claro que exorbita do poder que a lei lhe
tanto contratos administrativos com contratos de conferiu. Daí, o dizer-se com inequívoca precisão que
direito privado, nenhuma razão há para fazer fun- o fim legal é o teto, a baliza, a faixa demarcadora do
cionar aqui uma presunção quer num sentido quer poder discricionário, limite no qual esbarra a discri-
noutro: se a lei e as cláusulas contratuais forem cionariedade. Conhecer esse limite é de importância
omissas, é o exame do objeto e o fim do contrato primordial para cada cidadão, porque aí reside nossa
— e portanto, em última análise, o apuramento da defesa contra a arbitrariedade administrativa.25
sua natureza — que permitirá em caso de dúvida, Se a opção administrativa desatende a essa
definir o regime aplicável. finalidade, deve-se concluir que extralimitou da sua
zona livre, violando uma prescrição jurídica, expressa
5 O princípio da especialidade das ou implícita, o que a transpõe, por definição, para a
pessoas coletivas públicas zona vinculada.26
Em vez de falar de limites do poder discricio-
Para Maria João Estorninho23 esta questão de
nário, em razão de um fim imposto, é mais correto
saber até que ponto vai a liberdade de escolha das
formas de organização e das formas de atuação por dizer que o poder, sendo discricionário quanto ao
parte de uma entidade administrativa pode recondu- objeto e ficando pleno e sem limite discricionário,
zir-se, no fundo, à questão, do âmbito de competên- pode cessar e cessa sempre de ser discricionário,
cia dos próprios órgãos dessas mesmas entidades. para tornar-se vinculado, no que se refere ao fim.27
Marcelo Caetano24 afirmava que, à exceção do
Estado, “todas as pessoas coletivas existem espe- 6 Autonomia privada da Administração
cialmente para aqueles fins em razão das quais a Pública?
personalidade lhes foi reconhecida, nisso se tradu-
O problema da admissibilidade da utilização de
zindo precisamente o tal princípio da especialidade
formas jurídico-privadas por parte da Administração
das pessoas coletivas”. Assim, esse princípio im-
Pública tem sido desdobrado em duas questões
plica, por um lado, a determinação precisa dos fins
diferentes: por um lado, a questão da liberdade de
justificativos do reconhecimento da personalidade
escolha das formas de organização jurídico-privadas
jurídica e, por outro, em ajustamento funcional do
e, por outro, a questão da liberdade de escolha das
exercício da capacidade dos fins a atingir.
respectivas formas de atuação.
A limitação da capacidade da pessoa coletiva
Ehlers,28 a propósito daquela que parece ser a
está principalmente neste dever de só exercer os
poderes para alcançar os fins institucionais, sem posição dominante, afirma que a ideia de liberdade
que deles se possa desviar. Se se desviam dos de escolha implica no reconhecimento de uma es-
fins, os órgãos procedem “ultra vires”, excedem os pécie de “arte administrativa” para escolher a forma
seus poderes. jurídica mais apropriada às situações concretas.
Aquilo que a ordem jurídica pretende é que Contra o princípio da liberdade de escolha têm
a entidade administrativa proceda a uma satisfa- sido apresentados receios ligados à ideia de Estado
ção formal do interesse público pondo em ação os de Direito. Assim, tal liberdade é problemática, com
meios que lhe concedem os poderes jurídicos. base em dois fundamentos: por um lado, gera in-
certeza jurídica, porque o cidadão não sabe quais
22
AMARAL. Princípio da legalidade. Polis, p. 976 et seq.
23
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o
estudo da actividade de direito privado da Administração Pública, 25
CRETELLA JÚNIOR. O desvio de poder na Administração Pública.
p. 199-206. 26
LEAL. Problemas de direito público, p. 285.
24
CAETANO, Marcelo. Competência contenciosa em matéria de con- 27
BONNARD. Précis de droit administratif, p. 67.
tratos administrativos apud ESTORNINHO. A fuga para o direito 28
EHLERS apud ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contribu-
privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado to para o estudo da actividade de direito privado da Administração
da Administração Pública, p. 207 et seq. Pública, p. 192.

42 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014
A nova Administração Pública e o direito administrativo

as formas jurídicas de que a Administração vai se O Código Civil italiano, hoje, reconhece a capaci-
servir no caso concreto; por outro, acaba por atribuir dade geral de direito privado às pessoas coletivas pú-
à Administração a possibilidade de escolher quais blicas e a maioria dos autores passou a admitir que a
as regras jurídicas que vão reger a sua atuação. Administração Pública goza de autonomia privada.32
A escolha entre a obrigatoriedade e a liberdade A Administração Pública que atua sob as formas
de formas deve ser feita tomando necessariamente jurídico-privadas está vinculada pelo princípio da lega-
em conta dois tipos de interesses fundamentais lidade, pelas regras de competência, a propósito das
que têm constituído duas preocupações-chave da quais vale o princípio da especialidade e à prosse-
doutrina das formas de atuação da Administração: cução do interesse público, traduzida nomeadamente
a necessidade de assegurar a proteção do particu- numa vinculação a um vínculo de fim.
lar e a necessidade de permitir à Administração o No exame da legalidade do ato administrativo, o
cumprimento eficiente das suas tarefas. fim é elemento essencial, básico, sujeito à aprecia-
Pestalloza29 defende que, perante qualquer ção dos órgãos judiciários. O conceito de legalidade
atuação jurídico-privada do Estado, há que ultrapas- não existe separado da realidade social, porque a
sar a dupla barreira jurídica de colisão, ou seja, o lei não é simples norma, sem apoio na sociedade
fato de, em certas circunstâncias, ele poder deixar para a qual se elabora. Se a ação humana subordi-
o âmbito do seu direito especial (primeira barreira) na-se a um fim ou alvo, há uma direção, uma pauta,
não significa que lhe seja aberta automaticamente assinalando a linha de desenvolvimento do ato. A
a porta para o terreno do direito privado (segunda expressão dessa pauta de comportamento é o que
barreira). chamamos de norma ou de regra.33
Pode-se dizer, assim, que o ponto de partida
dessa tese de Pestalloza é o ator e não o ato, uma 7 O princípio da eficiência e o novo perfil
vez que a aplicação do direito público a uma deter- da Administração Pública
minada relação acaba por depender do fato de o
Quando se trata acerca de um novo perfil da
Estado nela participar ou não. Ou seja, o que inte-
Administração Pública, são dois os aspectos essen-
ressa é a natureza de quem atua e não a natureza ciais a serem destacados: a) os efeitos da subordi-
da atuação. nação da Administração Pública a uma nova ordem
Para Maria João Estorninho,30 só optando por constitucional, no contexto de um Estado Democrático
um conceito depurado de autonomia, compatível de Direito; e b) o fato de a Administração Pública
com a existência de inúmeras limitações e vincula- estar vinculada a uma nova técnica de legitimação
ções, se poderá eventualmente falar em autonomia de sua atuação: o procedimento ou processualidade
privada da Administração Pública, ou seja, não existe administrativa.
autonomia privada da Administração Pública. Quanto à primeira das questões em relevo,
É inegável que, no contrato moderno, o papel não é desconhecido que a Constituição de 1988
da autonomia da vontade a bem pouco se reduziu, estabeleceu no Brasil um novo paradigma jurídico-­
para não dizer que em muitos casos praticamente constitucional às relações entre o Estado e o indi-
desapareceu. Perante isto, acaba-se por defender víduo. Isso resta demonstrado, sobretudo, em face
que pouco importará que as pessoas possam determi- do destaque estabelecido pelo texto constitucional
nar, livremente, na totalidade ou em parte, o objeto aos direitos fundamentais, tanto como direitos
da relação; mas é essencial que, dado determinado fundamentais de proteção da pessoa em relação
objeto, as pessoas possam ou não vincular-se a ao Estado, quanto como direito fundamentais de
seu respeito. prestação, exigindo do Estado-Administração que as-
Sérvulo Correia31 chama atenção para o fato segure acesso a uma série de bens considerados
de os pressupostos ideológicos da autonomia pri- essenciais a uma vida digna. Esta influência dos di-
vada no Estado Social de Direito já não serem os reitos fundamentais sobre a Administração Pública
do individualismo jurídico, mas o seu fulcro conti- e o direito administrativo, como reflexo do próprio
nuar, todavia, a ser ainda a liberdade de princípio fenômeno denominado de constitucionalização do
da conduta humana, o respeito do poder jurígeno direito, não é exclusivo do direito brasileiro.34
da pessoa, na medida em que se concilie com os Isso implica, de um lado, a mitigação da vi-
interesses da coletividade. são da Administração Pública como titular de prer-
rogativas absolutas em relação ao administrado e
29
PESTALLOZA apud ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contri-
buto para o estudo da actividade de direito privado da Administração 32
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o
Pública, p. 197. estudo da actividade de direito privado da Administração Pública,
30
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo p. 207-221.
da actividade de direito privado da Administração Pública, p. 207-221. 33
REALE. Filosofia do direito, p. 335.
31
CORREIA. Legalidade e autonomia contratual nos contratos admi­- 34
MIRAGEM. A nova Administração Pública e o direito administrativo,
ni­strativos. p. 45.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014 ARTIGOS 43
Gabriela de Carvalho

mesmo da supremacia do interesse público como Tais aspectos integram o conceito jurídico de
princípio com traços de aplicação preferencial, afas- eficiência da Administração Pública e não podem
tando como regra o interesse particular. Da mes- ser desconsiderados. Integram-se, pois, com fun-
ma forma, exige-se da Administração Pública, no damento constitucional, aos métodos de gestão a
seu proceder, uma constante legitimação, à luz do serem exigidos dos agentes públicos, assim como
Estado Democrático de Direito estabelecido, que constituem meios de validação dos resultados a se-
assegure a participação dos cidadãos nas questões rem obtidos no âmbito da gestão pública, o que se
administrativas de interesse geral. coaduna com o novo perfil da Administração Pública
Essa legitimação se estabelece, então: a) pela gerencial e seus desafios atuais no âmbito do direito
exigência de um procedimento administrativo e a brasileiro.
garantia da sua regularidade; e b) pela disciplina
de mecanismos que assegurem aos administrados 8 Publicização do direito privado
o máximo de acesso a informações e efetiva par-
A utilização de formas tipicamente privadas
ticipação no processo de tomada de decisões da
pela Administração Pública não pode significar um
Administração Pública.
afastamento das vinculações jurídico-públicas fun-
A exigência de um regular procedimento admi-
damentais da Administração, sob pena de não se
nistrativo põe em relevo característica já havida pelo
tratar de uma mera “fuga para o direito privado”,
direito administrativo, mas que ora se renova, a que
mas de uma “fuga do ordenamento jurídico”, “fuga
a doutrina nacional denominou processualidade do do direito”. Portanto, qualquer que seja a atividade
direito administrativo. da Administração, ela deve ser limitada pelas vincu-
Conforme refere Odete Medauar, em des- lações jurídico-públicas, sobretudo no que diz res-
tacada monografia sobre o tema, “o exercício do peito aos direitos fundamentais.
poder, em um Estado de Direito que reconhece e Portanto, em resposta a essa “tentativa” de fuga
garante direitos fundamentais, não é absoluto; das vinculações jurídico-públicas da Administração
canaliza-se a um fim, implica deveres, ônus, sujei- através do direito privado, o que ocorre é um pro-
ções, transmuta-se em funções, o que leva o orde- cesso reflexo à privatização, que seja, a publiciza-
namento a determinar o filtro de processualidade ção do direito privado utilizado pela Administração,
em várias situações revestidas de poder”. podendo-se inclusive se falar em um direito priva-
A processualidade pressupõe, além do ade- do especial, o direito privado da Administração.36
quado cotejo dos direitos e interesse em eventual Nessa esteira, surgiu na Alemanha o conceito de
disputa no âmbito da atuação administrativa, tam- Verwaltungsprivatrecht, enquanto direito privado
bém a conformidade desta atuação com os direitos publicizado utilizado pela Administração. A princípio
fundamentais e os deveres de proporcionalidade e atribui-se a H. J. Wolff, juspublicista alemão, a formu-
razoabilidade da conduta da Administração Pública lação inicial desse conceito, mas contemporanea-
e do seu resultado concreto. mente, Wolfgang Siebert, partindo do direito privado,
No tocante à disposição de mecanismos que fez formulação similar. Pouco importa qual dos dois
assegurem o máximo acesso a informações, assim doutrinadores foi o primeiro a definir essa caracterís-
como a participação dos administrados no processo tica sui generis do direito privado da Administração,
de formação da vontade estatal, o princípio democrá- interessante é que, mesmo Wolff partindo de uma
tico que emerge da Constituição vai exigir, em primei- perspectiva de direito público e Siebert partindo
ro lugar, a institucionalização desses mecanismos, do direito privado, ambos chegaram ao ponto em
de modo que não fiquem submetidos à incerteza comum de identificar que os instrumentos jurídico-­
das orientações de governo; da mesma forma que privados utilizados pela Administração Pública eram
os níveis de participação venham acompanhados de necessariamente alvo de um publicização.37
efetivo acesso a informações que permitam a for- A Administração, seja atuando por meio de
mação de convencimento, inclusive técnico, sobre instrumentos tipicamente jurídico-públicos, seja por
as questões em debate; e, por fim, que o resultado instrumentos jurídico-privados, não deixará de assu-
dos processos de participação, e embora não deva mir uma posição diferenciada do particular, estando
necessariamente vincular a decisões do agente pú- cerceada de uma hipotética autonomia privada.
blico, dê causa a um dever de motivação específico, As normas de direito privado, nesse caso, seriam
um ônus de argumentação técnico-jurídica, quando a “complementadas, ultrapassadas e modificadas”
decisão da Administração não convergir para o con- pelas normas de direito público.
teúdo das manifestações trazido no processo de
participação dos administrados.35 36
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo
da actividade de direito privado da Administração Pública, p. 129.
37
BIELSCHOWSKY. Privatização da Administração Pública. Âmbito
35
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 237. Jurídico.

44 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014
A nova Administração Pública e o direito administrativo

Assim, enquanto aspectos dessa publicização, entre grandes grupos de interesses ou de poder;
pode-se destacar, por exemplo, a exigência de au- e, ainda, de relação triangular (não mais binária,
torização legal para a atividade jurídico-privada da Estado-indivíduo) na qual o governo, idealmente
Administração, vinculações especiais na utilização repre­sentante dos interesses nacionais, intervém
dos instrumentos de direito privado (principalmente só na qualidade de mediador, entre as partes so-
no que concerne às vinculações ligadas à proteção ciais, e, no máximo, como garante do cumprimento
de direitos fundamentais) ou mesmo confundir, ou do acordo.39
misturar as atividades da Administração em funções A concertação é um método que consiste na
de soberania com aquelas que não desempenham troca de ideias e negociação entre os interessados,
esse papel. com vista a encontrar uma linha comum de conduta.
É o “regime em que os representantes do Estado
9 Vinculações jurídico-públicas da (ou das coletividades secundárias) se reúnem de
maneira organizada, para trocar as suas informa-
Administração Pública na utilização do
ções, para confrontar as suas previsões e para, em
direito privado
conjunto, ora tomar decisões, ora formular parece-
Qualquer que seja a atuação da Administração res dirigidos ao governo”.40
Pública, será sempre pautada por uma série de O planejamento indicativo (não prescritivo)
valores, de ordem legal e constitucional, que fun- transforma a economia, antes dirigida, em orien-
cionam como modeladores da vida administrativa tada. Na França, o plano indicativo é instrumento
do Estado e entidades públicas. Porém, é possível empregado, sobretudo, no ordenamento do terri-
observar-se diferentes graus de influência dessas tório, nas localizações industriais e no urbanismo.
vinculações dentro da atividade pública. Enquanto, Utilizam-se licitações, encorajamento, prêmios, be-
por exemplo, em um patamar de extrema vinculação nefícios fiscais, subvenções e atrativos financeiros
identifica-se o desempenho de funções de sobera- para que os envolvidos busquem espontaneamente
nia, em outro, como na atuação empresarial estatal alcançar as metas, estas, às vezes, previamente
vê-se menor influência. Todavia, não há como se negociadas. Como exemplo, cita-se a utilização des-
falar em qualquer atuação pública que não observe se método para efeito de obter o reagrupamento
esses limites. de pequenas comunidades, de modo a tornar mais
Assinala-se no modelo sistêmico, em vez de racional a implantação de equipamentos coletivos,
abstenção, o crescimento das intervenções admi- redes de vias públicas, telecomunicações etc.41
nistrativas no setor privado, só que com tendência, A consequência inevitável de todas as evolu-
na medida da democratização, para a utilização de ções é a criação de situações de verdadeira mis-
formas predominantemente consensuais e de cola- celânea, nas quais os direitos público e privado se
boração. Na classificação de Laubadère, as interven- misturam até as últimas consequências.42
ções podem ser: a) diretas e indiretas, hoje optando Assim, por um lado, o direito administrativo
a Administração, sempre que possível, pelas medi- (microcosmos jurídico que tende a abarcar todas as
das indiretas (estímulos fiscais, empréstimos, ação áreas de atuação) abrange hoje a atuação de toda a
sobre o crédito etc...) em lugar de medidas imperati- Administração Pública, e também, em certa medida,
vas, com resultados positivos, aquelas, em setores a atividade das verdadeiras entidades privadas que
como meio ambiente, transportes, comunicações colaboram com a Administração.
e infraestrutura; b) unilaterais (política econômica)
e convencionais (acordos e contratos de colabora- 10 A execução associada por contrato
ção), preferindo-se as últimas. Verifica-se que “para e a sinergia da parceria – Espécies
assegurar o controle de um sector, o Estado, atual- de contratos administrativos –
mente, emprega processos mais maleáveis que a Consensualidade
criação de uma empresa pública propriamente dita;
a conclusão de contratos de colaboração particular- A modalidade de sinergia contratual, por ser
mente estreita permite-lhe realizar associações que estável, produz uma parceria entre o Poder Público
tornam mais relativa que outrora a distinção do sec- e os entes da sociedade, um tipo de relaciona-
tor público e sector privado”.38 mento que gravita em torno de empreendimentos
Falam-se em tendência para a administração de substrato econômico.43
concertada ou pactuada e em um novo contratua-
lismo, caracterizado por tratativas, negociações, 39
LAUBADÈRE. Direito público econômico.
40
BLOCH-LAINÉ apud MOREIRA. Direito administrativo, p. 148 et seq.
transações, compromissos, convenções, acordos 41
LAUBADÈRE apud MOREIRA. Direito administrativo, p. 148 et seq.
42
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo
da actividade de direito privado da Administração Pública, p. 379.
38
MOREIRA. Direito administrativo, p. 148 et seq. 43
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 341 et seq.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014 ARTIGOS 45
Gabriela de Carvalho

Outras modalidades de parceria poderão ser somente se produza em caso de inexistência ou de


também instituídas por atos administrativos, mas, insuficiência da iniciativa individual ou social; tercei-
como resultado óbvio, tais relações serão sempre ro, que mesmo neste caso, a intervenção somente
precárias, não se prestando para empreendimen- se faça na medida indispensável para atender ao
tos associativos de natureza econômica de porte, interesse público legal e legitimamente definido; e
embora sirvam para conciliar o interesse econômico quarto, que se assegure que os outros entes ou
individual de menor monta com o interesse público, órgãos administrativos, maiores ou menores, não
durante algum tempo e em restritas condições. tenham condições de agir com maior eficiência.
As modalidades contratuais de parceria ten- Nessa nova continuidade fenomênica em
cons­trução entre sociedade e Estado, com intensa
dem a se multiplicar no direito administrativo con­tem­
participação das pessoas, individualmente ou por en-
porâneo, e isso em razão da extrema diversidade de
tidades secundárias organizadas, não mais se defi-
situações encontradas na área econômica, como um
nirá uma nítida distinção entre o público e privado e,
simples elenco exemplificativo demonstra: conces-
em consequência, entre categorias de direitos aplicá-
sões de serviços públicos e de uso de bem público, veis sob o critério subjetivo. Mas enquanto o Direito
permissão de serviços públicos, arrendamento por- não se unificar, desfeita a milenar distinção romana,
tuário, arrendamento operacional, franquia pública, permanecerá o critério finalístico para definir qual de
gerenciamento privado de entidade pública, venda seus ramos regerá cada tipo de relações, o público
de bilheteria e contrato de risco. ou o privado.
A administração consensual não deve ser pen- No entanto, na projeção feita, o papel do
sada radicalmente nem ideologicamente. Não deve Estado, longe de diminuir, ganhará em importância,
ser considerada panaceia, nem tomada como regra. já que, fortalecido pela segurança ética que lhe dará
Dela não se esperam milagres, mas o desenvolvi- o princípio de subsidiariedade, concentrará decidida-
mento da confiança e do diálogo, e sempre dentro mente sua ação em seu próprio campo decisional, o
dos limites da legalidade. da finalidade pública, uma vez que esta só pode ser
Sua introdução racional nas atividades da realizada efetivamente com sua ação: “Um Estado
Administração está destinada a acrescentar às po- que agora, sobretudo, regula, vigia, inspeciona, san-
tencialidades de criatividade e de ação da sociedade. ciona. Acentua esse papel vigilante, sem prejuízo de
Bem empregada, adequadamente e sem excessos, que às vezes preste diretamente serviços”.46
ela tem condições de fazer das miríades de organiza- Portanto, em síntese, levando em conta e pon-
derando as mutações em marcha, uma nova classi-
ções sociais leais parcerias do Estado-administrador.
ficação já se pode vislumbrar no horizonte do que
Essa parceria pode revolucionar o próprio con-
admite ser confortavelmente denominado serviços
ceito republicano, valorizando a cidadania, por isso,
públicos em sentido amplo: ter-se-ia, de um lado,
mais importante ainda do que possam ser as pro-
os serviços públicos estatais, de prestação exclusi-
messas de suas muitas potencialidades práticas,
va pelo Estado, que são extra commercium e sujei-
deve-se pensar o consenso na ação do Estado como tos a um regime jurídico exclusivamente público, e,
um grande aperfeiçoamento ético nas relações en- de outro lado, recuperando a velha nomenclatura,
tre os indivíduos e o Estado. O Estado do futuro, agora mais adequada, os serviços de utilidade pú-
assim, poderá ter no exercício do consenso e não blica, que são intra commercium e por isso devem
no da coerção, a primeira das opções relacionais.44 ser prestados pelas entidades da sociedade e, ex-
cepcionalmente, quando se justifique, pelo próprio
11 Princípio da participação e da Estado, porém que, em razão dos interesses públi-
subsidiariedade cos envolvidos e segundo sua predominância em
cada caso, se sujeitam a regimes jurídicos mistos
Atende-se melhormente ao princípio de subsi- de direito público e privado.47
diariedade sempre que a decisão do Poder Público
venha a ser tomada da forma mais próxima possí- 12 Conclusão
vel dos cidadãos a quem se destinem.45 Tal proxi-
midade serve para garantir que o órgão titular do Nessa nova conjuntura vê-se uma permu-
Poder Público considerará sempre, em suas deci- ta de valores e formas entre público e privado.
sões: primeiro que sejam respeitados os direitos e Vinculações classicamente típicas a figuras públi-
iniciativas dos cidadãos e das entidades privadas; cas passam também a reger a atuação de entes
segundo, que qualquer intervenção administrativa
46
REBOLLO, Luis Martín. Servicios públicos y servicios de interés ge-
neral. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Coord.). Uma ava-
44
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 349. liação das tendências contemporâneas do direito administrativo:
45
ORTIZ. La empresa pública. In: GARRIDO FALLA et al. El modelo obra em homenagem a Eduardo García de Enterría. Rio de Janeiro:
economico em la Constitucion espanola apud MOREIRA NETO. Renovar, 2003. p. 111.
Mutações do direito público, p. 377. 47
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 379.

46 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014
A nova Administração Pública e o direito administrativo

particulares, bem como instrumentos tipicamente impulsionador da eficiência da ação do Estado. A


privados tornam-se comuns também à atuação da exigência de uma forma adequada pode disciplinar
Administração Pública. Assim, pode-se falar em com fidelidade e segurança o processo de forma-
uma diluição (ainda que não haja uma eliminação) ção da vontade participativa, ou seja, a processua­
das fronteiras entre esses dois campos, sobretudo, lidade adequada como garantia de instrumento
no que diz respeito à clássica dicotomia entre direito democrático.
público e privado. É inegável que o consenso como forma alter-
Atualmente, a questão da reforma e reestrutu- nativa de ação estatal representa para a Política
ração da Administração Pública se reveste dos valo- e para o Direito uma benéfica renovação e para a
res da competitividade e liberdade de escolha, por ação administrativa, em especial, o consenso pode
poderem potenciar novas práticas e novas formas ser adotado não apenas pela via contratual, como
de bem-estar que vão ao encontro da qualidade, da tradicionalmente se tem feito, mas pela via do acor-
racionalidade e da convergência. do não contratual, ainda incipientemente utilizado
Nesse sentido, alguma discussão se faz pre-
no Brasil, pois quase que restrito a duas modali-
sente quanto ao reconhecimento pelo ordenamento
dades mais familiares, a dos convênios e a dos
jurídico do princípio da liberdade de escolha das for-
contratos.50
mas jurídico-privadas de atuação da Administração
Pela consensualidade, o Poder Público vai
Pública. Naturalmente, a “liberdade” do setor pú-
além de estimular a prática de condutas privadas
blico sempre estará limitada pela legalidade, razão
de interesse público, passando a estimular a cria-
base de qualquer atuação dentro da esfera pública.
ção de soluções privadas de interesse público, con-
Reconhece-se que a atividade administrativa
não só tem limites jurídicos, opostos a seu emprego correndo para enriquecer seus modos e formas de
para evitar abusos, como condicionantes políticos, atendimento.
para que possa alcançar maior eficiência adminis- Assim, um Estado de juridicidade plena (de lega-
trativa. Afirma-se, então, que o princípio da le­galidade lidade, de legitimidade e de licitude), um Estado de
estrita foi substituído pelo princípio da legitimidade Justiça, não pode prescindir dessa interação hori-
ou juridicidade, que caracteriza a moderna concep- zontal e sadia com a sociedade, devendo refletir-­
ção jurídica do “Direito por princípios”. A perspecti- se em sua atuação, de modo que ações suasórias
va que se projeta, tanto ao nível do direito quanto sempre precedam ações dissuasórias e estas, as
ao nível da organização administrativa, é a supera- sancionatórias: a face imperativa do Poder só deve
ção da rigidez lógico-formal.48 aparecer quando absolutamente necessário e no
O setor empresarial público pode, por razões que for absolutamente indispensável.51
de eficiência e persecução do interesse público, Diante disso, a escolha entre a obrigatoriedade
utilizar formas organizativas tipicamente jurídico-­ de formas e a liberdade de formas deve ser feita
privadas para assim atingir melhor seus objetivos, tomando necessariamente em conta dois tipos de
em se considerando sempre ser esta uma “liber- interesses fundamentais que têm constituído duas
dade” condicionada pelos parâmetros de legalidade. preocupações-chave da doutrina das formas de
Assim sendo, não se poderia tratar propriamente de atua­ção da Administração: a necessidade de asse-
um “princípio de liberdade de iniciativa e organiza- gurar a proteção do particular e a necessidade de
ção empresarial pelo setor público”, mas tão so- permitir à Administração o cumprimento eficiente
mente, de uma “liberdade política” do legislador e das suas tarefas.
dos agentes públicos em decidir quais os melhores Nesse contexto, observa-se uma difusão da Ad­
meios e formas para atingir-se o interesse público. mi­nistração Pública através de formas e instrumen-
Embora originariamente, nas sociedades mono­ tos jurídico-privados, podendo identificar inclu­ sive
classe e biclasse, tenha bastado uma participação um fenômeno nomeado “fuga para direi­to privado”.
reduzida à escolha de agentes políticos, parece hoje Se é verdade que a utilização do direito privado pela
fora de dúvida que a complexidade dos problemas
Administração é válida, na medida em que signifi-
e das soluções demanda novas formas de parti-
que sua desburocratização e maior fluência da ati-
cipação voltadas à escolha de políticas públicas
vidade administrativa, por outro lado ela não pode
com grau de diferenciação suficiente para atender
significar uma fuga das vinculações essenciais que
às especificidades dos diversos subgrupos sociais
devem pautar a atuação da Administração Pública,
reivindicantes.49
sob pena de se caracterizar uma real “fuga do
A participação pública nas decisões e a pro-
Direito”.
cessualidade adequada complementam o conteúdo

48
FERRAZ. Direito público moderno, p. 159. 50
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 333.
49
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 332. 51
MOREIRA NETO. Mutações do direito público, p. 348.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014 ARTIGOS 47
Gabriela de Carvalho

Nesse sentido, é notável que o direito privado BERTI, Giorgio. Il principio contrattuale nell´attività amministrativa.
In: GIANNINI, Massimo Severo. Scritti in onore di Massimo
utilizado pela Administração é o mesmo aplicado
Severo Giannini. Milano: Giuffrè, 1988. v. 2.
pelo particular, sofrendo assim influências das vincu-
lações administrativas, havendo portanto um proces- BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Privatização da Administração
Pública. Âmbito Jurídico.
so reflexo à privatização, o da publicização do direito
privado utilizado pela Administração, podendo-se in- BONNARD, Roger. Précis de droit administratif. Paris: Librairie du
Recueil Sirey, 1935.
clusive falar em um direito privado da Administração.
Hoje, muitos são os autores que se pronunciam CASSESE, Sabino. La arena pública: nuevos paradigmas para el
Estado. In: CASSESE, Sabino. La crisis del Estado. Buenos Aires:
no sentido de um alargamento dessa vinculação da Abeledo Perrot, 2003.
Administração Pública às formas jurídico-privadas.
CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual
Mas chama-se atenção para o fato de, em bom ri-
nos contratos administrativos. Coimbra: Almedina, 1987. v. 1.
gor, a atividade da Administração nunca poder ser
CRETELLA JÚNIOR, José. O desvio de poder na Administração
considerada exatamente igual à dos particulares.
Pública. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
Significativo nessa matéria é o fato de que a
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito administrativo pós-moderno.
Administração Pública que atua sob as formas jurí-
Belo Horizonte: Mandamentos, [s.d.].
dico-privadas está vinculada pelo princípio da legali-
dade, pelas regras de competência, a propósito das ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo
para o estudo da actividade de direito privado da Administração
quais vale o princípio da especialidade e a prosse- Pública. Coimbra, 1999. (Coleção Teses).
cução do interesse público, traduzida nomeadamen-
FERRAZ, Luciano. Direito público moderno. Belo Horizonte: Del
te em uma vinculação a um vínculo de fim. Rey, 2003.
Conclui-se, portanto, que mesmo que a Admi­
LAUBADÈRE, André de. Direito público econômico. Trad. Maria
nistração Pública utilize formas de organização de
Tereza Costa. Coimbra: Almedina, 1985
direito privado, essas formas são vinculadas à pros-
LEAL, Vitor Nunes Leal. Problemas de direito público, 1960.
secução do interesse público e, por isso, devem
aplicar um direito privado especial da Administração, MARZUOLI, Carlo. Princípio di legalità e attività di dirirro privato
della pubblica amministrazione. A. Giuffrè.
vinculado aos direitos e princípios constitucionais,
principalmente, à igualdade e imparcialidade. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 15. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

MIRAGEM, Bruno. A nova Administração Pública e o direito admi-


Abstract: This article aims to analyze the issue of the admissibility nistrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
of the use of private legal forms by the Public Administration. On
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público.
the one hand, the question of freedom of choice of legal forms
Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
of organization-private and, secondly, the question of freedom of
choice of their forms of action. The idea of freedom of choice MOREIRA, João Batista Gomes. Direito administrativo. Belo
implies that recognition as a kind of “art administrative” to choose Horizonte: Fórum, 2010.
the most appropriate legal form to concrete situations. Against
the principle of freedom of choice have been presented concerns NABAIS, José Casalta. Contratos fiscais. Coimbra: Coimbra Ed.,
connected with the idea of rule of law. Thus, such freedom 1994.
is problematic, based on two grounds: firstly, creates legal
uncertainty, because the citizen does not know what the legal ORTIZ, Gaspar Arino. La empresa pública. In: GARRIDO FALLA,
forms of management to serve the case, however, turns out to give Fernando et al. El modelo economico em la Constitucion
the Administration the ability to choose which legal rules which will espanola. Madrid: Instituto de Estudios Económicos.
govern its operations. The theme was explored from constitutional
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 3. ed. São Paulo, 1962.
principles, in the succession of legal approaches of mainstream
administrativistas some scholars and constitutionalists. The legal RIVERO, Jean. Direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1981.
public/private were analyzed and interpreted according to the
requirements of the question of modernity and post modernity. TÁCITO, Caio. Desvio de poder em matéria administrativa. Saraiva,
1975.
Key words: Legal forms by Private-Public Administration. Principle
of freedom of choice. Principle of legality. Democratic State. TÁCITO, Caio. Desvio de poder em matéria administrativa. Tese
(Doutorado em Direito Administrativo). Mimeografada, 1951.

Referências
AMARAL, Diogo Freitas do. A responsabilidade da Administração Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002
no direito português, 1972. v. 2. da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
AMARAL, Diogo Freitas do. Princípio da legalidade. Polis, v. 3,
CARVALHO, Gabriela de. A nova Administração Pública e o direito
1985.
administrativo. Fórum Administrativo — FA, Belo Horizonte, ano 14,
BELLOUBET-FRIER, Nicole; TIMSIT, Gérard. L’administration en n. 158, p. 37-48, abr. 2014.
chantiers, 1994.

48 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 158, p. 37-48, abr. 2014

Você também pode gostar