Você está na página 1de 3

As três vias e as três conversões

Qual a necessidade de um curso de “terapia das doenças espirituais”? Onde se


situa o combate aos pecados capitais no caminho de perfeição? O que nos
aguarda depois que começamos a abandonar os pecados da carne?

Nesta aula conclusiva de nosso curso, Padre Paulo Ricardo apresenta um “mapa”
da vida interior para orientar os nossos alunos. A santidade não está simplesmente
em “não pecar”. Há muita coisa para estudar e viver além disso!

_________

Faz parte de uma antiquíssima tradição na Igreja dividir a vida espiritual em três
idades (também chamadas de graus ou vias), correspondentes ao estágio em
que se encontra uma alma no desenvolvimento da virtude da caridade (cf. S. Th.,
II-II, q. 24, a. 9). Há, assim: (i) a via purgativa, dos principiantes; (ii) a via
iluminativa, dos progredidos; e (iii) a via unitiva, dos perfeitos.

O processo de "terapia das doenças espirituais" – descrito ao longo de todo esse


curso – insere-se no esforço dos iniciantes, depois do qual existe todo um
caminho místico, cujas linhas gerais importa pelo menos antever agora, a fim de
iluminar a própria purificação ascética que a antecede.

Para tanto, além de considerar as três idades da vida interior, cabe recorrer à
linguagem do sacerdote dominicano Réginald Garrigou-Lagrange, que fala
também de três conversões a abrir cada uma das fases do caminho de
perfeição.

A primeira conversão acontece quando a pessoa abandona o pecado mortal


para viver na graça de Deus, inaugurando a via purgativa, assim chamada por
tratar-se de um período de purificação do coração. A razão disso é que o pecado
tem as suas consequências: mesmo depois de perdoados, ficam ainda na alma
como que os seus resquícios – que Santo Tomás de Aquino chama de "reliquiae
peccati: relíquias do pecado" (S. Th., III, q. 86, a. 5). O combate a essas
inclinações parte sobretudo da pessoa, que é chamada ao jejum, à penitência e
à oração para ascender ativamente na vida em Deus.

A segunda conversão é a passagem para a via iluminativa e dá início a uma fase


eminentemente mística do caminho de perfeição. A partir de agora, mais do que
uma determinação pessoal, é o penitente quem vai sofrer as ações de Deus.
Também chamada de "noite escura dos sentidos", essa segunda conversão faz
com que a pessoa experimente provações para purificar a sua fé. Estas podem
ser de vários tipos: aridez na oração, enfermidades físicas, perseguições, ou
mesmo fracassos profissionais, tudo para tirar as escoras de sua fé e fazê-la
pender totalmente de Deus. A alma deixa de ter "razões" para crer e a sua razão
passa a ser unicamente Deus mesmo.
Essa segunda conversão é necessária porque, depois de combater os pecados
capitais mais grosseiros – como são, por exemplo, a gula, a luxúria, a ira e a
avareza –, fica na pessoa a tentação da vaidade e da soberba, rainha de todos
os vícios. Quem começa a deixar as obras da carne e progredir nas virtudes
precisa ter consciência clara de sua miséria e de que nada pode operar senão
pela graça de Deus, fugindo da armadilha de procurar a própria glória e a própria
excelência. Depois que, por assim dizer, a pessoa limpou as suas vestes por seu
próprio esforço, agora é Deus quem entra para alvejar e purificá-las.

Não se trata de uma purificação total porque também há grandes padecimentos


que se experimentam na via iluminativa, como comprova a vida dos santos.
Além disso, se Deus permitir, a alma ainda pode passar por uma terceira
conversão, chamada de "noite escura do espírito", e entrar na última das três
idades da vida interior, que é a dos perfeitos. Como só almas verdadeiramente
eleitas realizam essa passagem, não é este o lugar nem o momento apropriado
para esse assunto.

Importa, por fim, fazer uma breve descrição da via iluminativa, cuja característica
fundamental é a manifestação ordinária dos dons do Espírito Santo. Esses dons,
embora já estejam presentes em toda alma em estado de graça, só começam a
aparecer de modo patente e constante na idade dos progredidos, tornando-os
capazes de ações realmente divinas. Não se trata dos mesmos carismas a que
São Paulo faz referência em 1 Cor 12: enquanto estes são concedidos por Deus
para a utilidade comum dos fiéis, aqueles fazem parte do organismo
sobrenatural que é a graça santificante, e que, por si mesma, é muito maior do
que todas as graças gratis datae enumeradas pelo Apóstolo (cf.S. Th., I-II, q.
111, a. 4-5).

Os dons em questão somam sete e seu elenco é extraído das próprias


Escrituras (cf. Is 11, 1-3): são a sabedoria, a inteligência, o conselho, a fortaleza,
a ciência, a piedade e o temor de Deus. Deles, o primeiro a manifestar-se na
alma em processo de santificação é o temor de Deus, considerado pelo Autor
Sagrado "o princípio do saber" (Pr 9, 10). É diferente do escrúpulo, porque este
perturba a alma e a acabrunha, enquanto o temor de Deus verdadeiramente
dispõe a pessoa ao Seu serviço, inspirando o horror de ofendê-Lo. Depois, vão
aparecendo os outros dons, o da piedade, o da fortaleza etc., que vão pouco a
pouco transformando a pessoa em Cristo.

Este, contudo, é tema para aprofundar em um próximo curso, sobre as virtudes e


os dons do Espírito Santo.
Bibliografia

o GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. As 3 Vias e as Três Conversões. 4. ed. São


Paulo: Permanência, 2011.

o ______. Las Tres Edades de la Vida Interior. 3. ed. Buenos Aires: Desclée de
Brouwer, 1944.

o ROYO MARÍN, Antonio. El Gran Desconocido, el Espíritu Santo y sus dones. 6.


ed. Madrid: BAC, 1987.

Você também pode gostar