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A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA

PATROCÍNIO APOIO REALIZAÇÃO


Dos cafezais
nasce
um novoBrasil
CONTAR A HISTÓRIA DO CICLO DO CAFÉ NO BRASIL

SIGNIFICA REMEMORAR, SIMULTANEAMENTE, AS

SIGNIFICATIVAS TRANSFORMAÇÕES PELAS QUAIS

PASSOU O PAÍS EM MEADOS DO SÉCULO XIX, COM

IMPACTOS NA ECONOMIA, NA SOCIEDADE E NA

CULTURA. COMO SE NÃO BASTASSE A INCRÍVEL

ADAPTAÇÃO E CONSEQUENTE PRODUTIVIDADE DESTA

CULTURA EM SOLO BRASILEIRO, EM ESPECIAL NAS

TERRAS ROXAS DO OESTE PAULISTA E DO LESTE

PARANAENSE, O DESENVOLVIMENTO DA CULTURA DO

CAFÉ OCORRE EM MEIO À DECADÊNCIA DO SISTEMA

ESCRAVOCRATA E SIMULTANEAMENTE AO

NASCIMENTO E QUEDA DO IMPÉRIO, COM A

POSTERIOR PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA. A

RIQUEZA PROPORCIONADA PELO CAFÉ FINANCIOU O

NASCIMENTO DA INDÚSTRIA NO PAÍS, CUSTEOU A

CONSTRUÇÃO DE FERROVIAS EM TORNO DAS QUAIS

NÚCLEOS URBANOS NASCERAM OU SE

CONSOLIDARAM E ATRAIU CENTENAS DE MILHARES

DE IMIGRANTES, EM ESPECIAL ITALIANOS, MAS

TAMBÉM ESPANHÓIS E JAPONESES. O CAFÉ QUE

REVOLUCIONOU A EUROPA, TRANSFORMANDO-SE NA

BEBIDA PREDILETA DOS GENIAIS ILUMINISTAS,

SOBREVIVEU A DIVERSAS CRISES EM SOLO

BRASILEIRO, E AINDA HOJE FAZ DO BRASIL UM

PROTAGONISTA MUNDIAL NESTE MERCADO, NA

CONDIÇÃO DE MAIOR PRODUTOR E SEGUNDO MAIOR

CONSUMIDOR, ATRÁS APENAS DOS ESTADOS

UNIDOS. POR TUDO ISSO É QUE SE PODE AFIRMAR,

SEM MARGEM DE ERRO, QUE DOS CAFEZAIS, NASCEU

UM NOVO BRASIL. E ESTE É O TEMA DO SEGUNDO

VOLUME DA SÉRIE QUE PRETENDE CONTAR A

HISTÓRIA DOS PRINCIPAIS CICLOS ECONÔMICOS NO

BRASIL E SUA INFLUÊNCIA NA CULTURA E NA

SOCIEDADE.
PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS

REALIZAÇÃO: QUATTRO PROJETOS


RIMOLI ASSOCIADOS

COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER

COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO

CONSULTORIA: HISTORIADOR VOLTAIRE SCHILLING

EDIÇÃO: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA

TEXTOS: RICARDO BUENO E VOLTAIRE SCHLLING (O CAFÉ E O ILUMINISMO)

REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA

PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE

IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

PATROCÍNIO APOIO REALIZAÇÃO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )

B928h Bueno, Ricardo.

A história da economia brasileira e sua inflência na cultura e na sociedade / Ricardo


Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre : Quattro Projetos, 2011–.
2 v. 128p : ils. col. ; 20 x 30 cm.

Conteúdo: v. 1. Dos cafezais nasce um novo Brasil – v. 2.


Seiva amazônica tipo exportação alimenta cultura regional.

ISBN 978-85-64393-02-8

1. Economia - Brasil. 2. Ciclo do café. I. Título. II. Dos cafezais nasce um novo
Brasil. III. Seiva amazônica tipo exportação alimenta cultura regional.

CDU CDU 398(816.5)

Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 – (51)30297042


Certos hábitos estão tão arraigados em nosso
dia a dia que dificilmente conseguimos o
distanciamento necessário para perceber sua ver-
dadeira dimensão sociológica e cultural. Tomar um
cafezinho após as refeições, por exemplo. Ou ser-
vir um café para o visitante que chega, quem sabe
para os clientes com os quais se negocia. Quantas
pessoas sabem que a planta que dá origem a esta
hoje popularíssima bebida foi descoberta provavel-
mente em meados do século XIV, início do XV, ou
seja, há pouquíssimo tempo, em relação à história
da humanidade?
Quantos brasileiros têm a exata noção de que o singelo cafezinho
de todo dia faz parte de um ritual, assim como no Japão e na Ingla-
terra se preserva o costume do chá? Quantos de nós temos a percep-
ção de que o hábito de consumir esta infusão de cor escura há não
muito espalhou-se mundo afora, e que desde o início do século XX
quem mais abastece o planeta são os grãos plantados e colhidos em
território verde-amarelo, há algum tempo o maior produtor mundi-
al, tendo chegado, no alvorecer do século XX, a ser responsável por
nada menos que 75% de tudo o que se produzia na época? Mas
como foi mesmo que chegamos a este importante posto na economia
cafeeira global? Onde tudo começou, por que percalços passamos,
que influências esta atividade deixou na nossa sociedade e na nossa
cultura, a partir dos homens e mulheres que a transformaram em
esteio de transformações econômicas impactantes?
Há tantas e tão ricas perspectivas a partir das quais se pode perce-

uma história que ber e tentar compreender este fenômeno chamado café que editar
um livro sobre o assunto necessariamente significa encarar o comple-
xo desafio da síntese. No volume que agora chega às suas mãos, como
parte da série que pretende recontar a história da economia brasileira

ainda não terminou e sua influência na cultura e na sociedade, nossa pretensão foi a de
recontar os principais aspectos que dizem respeito à introdução do

POR RICARDO BUENO


introdução

cultivo do café no Brasil, a partir da qual se desencadeou um ciclo


econômico de poderosa influência na história do país. Como não pode-
ria deixar de ser, buscamos, complementarmente, situar o leitor, apre-
sentando informações sucintas sobre a origem do grão e, de forma um
pouco mais alentada, no delicioso texto do professor e historiador
Voltaire Schilling, relembrar como foi que os iluministas encontraram
na bebida o combustível para suas geniais produções, ao mesmo tempo
em que as coffee-houses iam tomando o lugar das tavernas como ponto
de encontro das inteligências europeias da época. Por sua vez, o agrô-
nomo e pesquisador Celso Luis Rodrigues Vegro, do Instituto de Eco-
nomia Agrícola, atendendo convite da Associação Brasileira da In-
dústria do Café (Abic), parceira institucional deste projeto, apresenta,
ao final do livro, um artigo em que se propõe a situar o atual momento
do que ele chama de "Os Cafés do Brasil" e suas perspectivas futuras.
O recheio desta história tangencia o século XVII, quando um
certo sargento-mor de sobrenome Palheta traz para o Brasil os pri-
meiros grãos e as mudas que dariam origem à nossa produção, tran-
sita por todo o século XIX, primeiramente no período colonial, de-
pois no primeiro e segundo reinados e, mais ao final, com a procla-
mação da República, chegando ao século XX, que em sua primeira
metade assistiu a uma explosão produtiva sem precedentes, segui-
da da crise devastadora causada justamente pela superprodução,
que desencadeou um desequilíbrio no mercado mundial e a queda
vertiginosa dos preços, levando uns tantos produtores à ruína.
Como força motriz da lavoura que veio a substituir a produção de
pedras preciosas, então em decadência, e a exemplo do que já se
verificara no cultivo extensivo da cana-de-açúcar, foi a mão-de-obra
escrava quem primeiro labutou de sol a sol nos imensos cafezais do
Vale do Paraíba, seja em território fluminense, seja já em terras da
então província de São Paulo. Com o movimento global contrário à
manutenção do trabalho escravo, ao qual o Brasil lenta e tardiamen-
te aderiu, ocorreu aos grandes fazendeiros paulistas a possibilidade
de substituírem a força de trabalho dos negros cativos pela do imi-
grante europeu remunerado, em especial os italianos do Norte, que NEGROS, ITALIANOS, ESPANHÓIS
em seu país enfrentavam dificuldades para conseguir emprego. Foi
com sua chegada, simultânea à vinda de outros tantos milhares de E JAPONESES FORAM ALGUNS DOS
portugueses, espanhóis e japoneses, que dos cafezais nasceu um novo
Brasil. Uma história que ainda não terminou. Boa leitura. BRAÇOS QUE FIZERAM NASCER,

DOS CAFEZAIS, UM NOVO BRASIL


Do Brasil mito
ao Brasil real
A Case New Holland, fabricante de máquinas agrícolas e de construções,
tem grande orgulho de participar há mais de 60 anos da história do desenvolvi-
mento deste imenso território que é a nação brasileira. O que no passado era
motivo de receio, por vezes até de questionamentos, hoje se comprovou ser mo-
tivo de grande destaque no panorama global. O antigo “mito” de celeiro de mundo
se provou realidade. E realidade exemplar, pois o Brasil é hoje o maior produtor
de diversos gêneros alimentícios de primeira necessidade para consumo humano
e animal, com índices de produtividade, tecnologias de primeira linha. Acima de
tudo, é capaz de fazê-lo e ainda expandir-se, sem aumentar desmatamentos e
com técnicas de preservação de ponta.
Mas, como se fosse pouco, sob os nossos pés ainda repousam os maiores
aquíferos do mundo, um bem valioso que abençoa ainda mais esta nação. Aliado
a tudo isso, a cada dia se abrem novos caminhos e se constroem melhorias signi-
ficativas na infraestrutura, tornando realidade um sistema produtivo equilibrado
entre a agricultura e a indústria, capaz de promover um cenário econômico, so-
cial e ambiental referencial para o século XXI.
Quando, há mais de 500 anos, Pero Vaz de Caminha relatou o que via e
vislumbrou um futuro próspero para o novo território, ao escrever na primeira
carta “nesta terra, em se plantando tudo dá”, certamente não imaginava a di-
mensão real de suas sábias palavras.
Por isso, além de participar ativamente do processo de desenvolvimento susten-
tável do Brasil, acreditamos que uma outra parcela de retribuição que devemos ao
“país do futuro e à terra em que tudo dá” são os projetos sociais e culturais que promo-
vemos, valorizando de forma responsável a Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Como no caso dessa coleção sobre a história da economia brasileira e sua
influência na cultura e na sociedade, este ano com o lançamento do livro e da
exposição sobre o café – Dos cafezais nasce um novo Brasil –, retratando a histó-
ria e a importância da cafeicultura no cenário econômico-social da nação brasi-
leira. Um projeto que está levando ao público de todas as camadas sociais e faixas
etárias, de forma gratuita, tanto pela distribuição do livro, quanto pela visitação
à exposição, um contato direto com a história do país.
Estes são alguns dos motivos pelos quais a Case New Holland sente orgulho
de participar do processo de construção não apenas desta nação, mas do futuro
do nosso planeta.
Boa leitura!

VALENTINO RIZZIOLI
PRESIDENTE DA CASE NEW HOLLAND
E VICE-PRESIDENTE EXECUTIVO
DA FIAT PARA A AMÉRICA LATINA
sumário

café:as o café e o o ciclo do o café nas artes


origens iluminismo café no Brasil e na cultura
18 26 50 100

introdução 14 os cafés do Brasil 120 obras consultadas 126


café
as origens

18
café: as origens

Em toda e qualquer publicação que se dedi- A mais famosa lenda, entretanto, teria sido divulgada por
que a contar a história do café, o capítulo inicial, Banésio, escritor do século XVII, segundo a qual um pastor árabe
ou etíope, possivelmente de nome Caldi, estranhou o comporta-
sobre as origens da bebida, é o que carrega mais mento de algumas cabras de seu rebanho. Em determinadas situa-
incertezas. A começar pelo fato de que mapear a ções, os animais pareciam estar agitados demais, inclusive no perío-
descoberta da planta é uma das tarefas, enquan- do da noite. Teria o pastor pedido ajuda a um amigo monge, de um
mosteiro próximo, no sentido de auxiliá-lo a diagnosticar o porquê
to tentar localizar no tempo o momento em que da agitação dos animais. Depois de um breve período de observa-
se descobriu a infusão, nos moldes como é co- ção, veio o surpreendente veredito: as cabras se agitavam após a
ingestão dos frutos ou das folhas de um arbusto, característico das
nhecida hoje, é bem outra. Em meio a documen- montanhas da Abissínia, ao norte da Etiópia, na África.
tos e depoimentos tecnicamente questionáveis, A propósito da Abissínia, há também outra pequena confusão.
do ponto de vista do registro histórico, ainda há Como havia por lá uma província chamada Kaffa, onde os cafeei-
ros eram encontrados em estado selvagem, muito se especulou que
as lendas em profusão que foram passadas de ge- a palavra café teria tido ali sua origem. Em verdade, café vem do
ração em geração, ao longo dos séculos. árabe qahwah, qahua, cahwe ou qahwa (mesma palavra para vi-
nho), todas originárias do turco kaveh, kahvet.
O italiano Pietro Della Valle, por exemplo, nascido em Roma O fato é que, de início, por volta do século XV, o café era
em 11 de abril de 1586, enviou uma carta ao amigo Mario Schipano, consumido apenas em cerimônias religiosas ou indicado por médi-
médico e humanista, na qual defendia a tese de que a poção mis- cos. Era usado para tratar uma grande variedade de problemas,
turada por Helena na bebida servida a Telêmaco, no palácio de como pedras nos rins, gota, varíola, sarampo e tosse. O botânico
Menelau, era café. De outra parte, nos idos de 1700, um certo Prosper Albinus, em um tratado de finais do século XVII, sobre
Paschius imprimiu em Leipzig um tratado em que supunha esta- remédios e plantas do Egito, afirma: “É um excelente remédio contra
A LENDA DAS CABRAS DE CALDI
rem, entre os presentes dados por Abigail a David, cinco medidas a cessação dos fluxos das mulheres, e elas fazem muitas vezes uso
(ABAIXO) E EMPREGADA TURCA
de café, mesmo presente que teria sido dado por Boaz a Ruth, em dele quando o seu fluxo não é tão rápido quanto desejariam”. É
SERVINDO CAFÉ (AO LADO) outra passagem bíblica. também de Alpinus a descrição de como se preparava o café, en-

NO SÉCULO XV, O CAFÉ ERA

UTILIZADO EM CERIMÔNIAS

RELIGIOSAS OU INDICADO

POR MÉDICOS COMO CURA

DE DIVERSAS DOENÇAS

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café: as origens

EM POUCO TEMPO, tão: “A decocção, fazem-na de duas maneiras: uma com a pele ou
o exterior do referido grão, e outra com a própria substância do
O ATO DE BEBER grão. A que é feita com a pele tem maior poder do que a outra.
(...) O grão é colocado em um instrumento de ferro, firmemente
fechado com a tampa; por este instrumento introduzem um espeto
CAFÉ FIXOU-SE por meio do qual o voltam no fogo, até que fique bem torrado;
depois do que, tendo-o amassado até ficar um pó muito fino, se
EM GRANDE PARTE pode fazer uso dele, proporcionalmente ao número de pessoas que
o vão beber: a terça parte de uma colher para cada pessoa, e deite-
DA ARÁBIA, a num copo de água a ferver, juntando também um pouco de açú-
car. E depois de ter fervido um pouco, deve deitá-lo em pires de
ESPALHANDO-SE porcelana ou de qualquer outro tipo e deixar bebê-lo aos poucos, o
mais quente que se possa suportar.”
PARA O OCIDENTE, Da Etiópia, via comerciantes ou mercadores de escravos, a plan-
ta teria chegado à Arábia, e, depois, à Europa. Não sem antes
EGITO E SÍRIA passar por Meca, na Arábia Saudita, a cidade de onde partem
todos os caminhos e que é considerada a mais sagrada do mundo
entre os muçulmanos.
Além de sua posição estratégica, pois ali chegavam inúmeras
caravanas, das mais diferentes regiões da civilização de então, Meca
proporcionava ao café um prestígio incomum, já que Maomé proi-
biu os islâmicos de ingerirem qualquer bebida de álcool. Como
aponta Jane Pettigrew, “à medida que o café tornou-se cada vez
mais popular, salas especiais nas casas dos mais abastados foram
reservadas para se tomar café, e casas de café começaram a apare-
cer nas cidades. A primeira teria sido aberta em Meca, e embora
originalmente fossem lugares de reuniões religiosas, esses amplos
saguões, onde os clientes se sentavam em esteiras de palha ou
colchões sobre o chão, rapidamente tornaram-se centros de músi-
ca, dança, jogos de xadrez, gamão, conversas em locais em que se
faziam negócios”.
Na condição de centro espiritual do mundo muçulmano, as
práticas sociais e culturais de Meca costumavam ser rapidamente
assimiladas em outras paragens. Foi assim que, em pouco tempo, o
ato de beber café fixou-se em grande parte da Arábia, espalhan-
do-se não apenas para o Ocidente, mas também para o Egito (a
cidade do Cairo teria posteriormente relevante papel no comércio
do grão) e Síria. E há ainda quem defenda que o hábito do café
enraizou-se na Pérsia ainda antes de chegar à Arábia. Dizia-se
que os guerreiros persas, quando expulsaram os etíopes, frustrando
AO LADO, BEDUÍNO
sua tentativa de se instalar no Iêmen, não deixaram de apreciar as
PREPARA O CAFÉ bagas de café que cresciam nas árvores plantadas pelos inimigos.
SEGUNDO Desde muito cedo, a maioria das cidades persas abrigava cafeterias
elegantes e espaçosas, situadas nas melhores zonas urbanas.
MÉTODOS
Já na Turquia, as primeiras duas cafeterias teriam surgido por
TRADICIONAIS
volta de 1554, quando um casal sírio montou estabelecimentos
DOS ÁRABES finamente decorados, antecipando-se em oferecer um produto que

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café: as origens

rapidamente cairia nas graças do povo. A propósito, viajantes eu-


ropeus se declararam surpresos com a quantidade de café sorvida
diariamente em Constantinopla. Em residências de famílias abas-
tadas, havia inclusive um funcionário com a tarefa exclusiva de KAFFE-KANTATE
preparar e servir o café. Havia todo um cerimonial a ser cumprido,
A cantata é um gênero de compo-
e não raro o café era servido em tabuleiros de prata ou de madeira
sição musical vocal e instrumen-
pintada. Se nos lares mais simples tornou-se um hábito oferecer tal, estruturado em árias, coros,
café às visitas, sendo considerado má-educação recusá-lo, tam- recitativos e árias de câmara como
bém nos banquetes formais oferecia-se café aos convidados logo duetos, trios etc. Johann Sebastian
que chegavam, e mesmo durante o desenrolar das festas, que em Bach, por volta de 1732-1734,
algumas situações chegavam a durar oito horas. compôs uma cantata muito espi-
rituosa, baseada em um texto satí-
Se há quem defenda a tese de que os cafés vienenses foram os
rico do poeta alemão Christian
primeiros dignos de nota na Europa (confira texto a seguir, assinado Friedrich Henrici (Pseudônimo:
pelo historiador Voltaire Schilling), o fato é que Veneza, na Itália, Picander [1700-1764]), chamada
também cumpriu papel relevante nesta trajetória, uma vez que em Schweigt stille, plaudert nicht (Si-
1600 teria ali desembarcado o primeiro carregamento comercial lêncio! Não conversa!), conheci-
do então chamado “vinho da Arábia”. O café logo passou a ser da por Kaffe-Kantate ou Cantata
do café (BWV211).
opção no cardápio de bebidas oferecidas nas ruas pelos limonáji
A cantata fala da discussão entre pai
(vendedores de limonada que comercializavam também suco de (Schlendrian) e filha (Liesgen) so-
laranja, chocolate e infusões de ervas), e não tardou a conquistar bre o consumo do café. O pai quer a
o paladar dos italianos e viajantes. Há quem atribua ao Café Florian, todo custo que a filha deixe de to-
inaugurado em 1720, a condição de mais famosa cafeteria da Eu- mar café, oferecendo-lhe em troca
ropa. Já o Café Grecco, em Roma, terminou por ser ponto de en- todo o tipo de propostas para que
ela possa deixar de tomá-lo. Esta,
contro da nata da música erudita da época, recebendo visitas re-
porém, tudo recusa, à exceção de
gulares de Mendelssohn, Rosetti, Liszt e Toscanini. um marido, mas como ela mesma
O comércio com os venezianos foi, durante quase um século, diz, tem que ser um marido que lhe
atividade estratégica para mercadores árabes, que vigiavam dia e permita tomar café! A ária mais in-
noite suas plantações de café, além de ferverem ou secar os grãos teressante da cantata é "Ei, wie
colhidos, tentando assim impedi-los de germinar. Buscavam ga- Schmeckt der Coffee süße", na qual
Liesgen expressa seu gosto por café:
rantir a exclusividade do cultivo da planta e do consequente abas-
tecimento da Europa, cada vez mais sequiosa pela bebida. Até fi- Ei! wie schmeckt der Coffee süße,
(Ah! Quão doce é o gosto do café,)
nal do século XVII, os árabes tiveram sucesso, mas então os holan-
deses, maiores comerciantes do globo, com seus navios mercantes, Lieblicher als tausend Küsse,
(Mais amado que mil beijos,)
resolveram que era hora de acabar com o monopólio. E então con-
seguiram que um dos seus roubasse uma muda de café em Mocha Milder als Muskatenwein.
(Mais suave que vinho moscatel.)
e, com orientação de botânicos, levasse a planta intacta para solo
europeu. Coffee, Coffee muss ich haben,
(Café, eu tenho que ter café,)
Em paralelo, os holandeses desenvolviam tentativas de culti-
vo da planta em Java, e por volta de 1690 há registros de que Und wenn jemand mich will laben,
(E se alguém quiser me dar algum
ACIMA, THE COFFEE BOILER, CAFETERIA VIENENSE DE 1840 estavam sendo bem-sucedidos em Sumatra, Timor e Bali. Em
deleite,)
1706, finalmente chega a Amsterdã a primeira remessa de café
Ach, so schenkt mir Coffee ein!
cultivado pelos holandeses em Java. Solenemente, um cafeeiro
(Ah!, Apenas me dê café!)
foi plantado no Jardim Botânico da capital holandesa. Amsterdã
iniciava, assim, sua trajetória como centro comercial do café,
FOI JAMES DOUGLAS QUEM BATIZOU O JARDIM DE inclusive para o Novo Mundo. Foi o dr. James Douglas, cientista
do século XVIII, quem batizou o jardim de Amsterdã como “o
AMSTERDÃ COMO “O BERÇO UNIVERSAL DO CAFÉ” berço universal do café”.

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o café e o
iluminismo

26
o café e o Iluminismo

Nenhum outro grão colhido pelo homem nestes


últimos séculos provocou tamanho impacto na inte-
ligência da Humanidade. Mal sendo ingerido, depois
de devidamente torrado, o café sorvido produz, de
imediato, uma ativação do cérebro. Excita-o a traba-
lhar, a refletir e a divagar, também. Os fatores que o
compõem, como a xantina e a cafeína, têm o com-
promisso de não deixar ninguém ser vencido pelo
sono, e até o cansaço físico ele, por vezes, consegue
impedir, ativando o coração com maior impulso. His-
toricamente, observa-se que sua infusão se tornou a
bebida favorita dos filósofos, dos escritores e dos poe-
tas, da gente criativa e pensante em geral, sendo o
combustível fundamental para a eclosão da Revolu-
ção Iluminista que emergiu a partir do século XVIII.

A ORIGEM DOS CAFÉS EUROPEUS


Ainda que fartamente distribuídos pelo Oriente Médio, denomi-
nados pelos persas como Qahveh Khaneh, os cafés europeus que co-
meçam a ser abertos no século XVII pouco têm em comum com eles.
Fosse em Istambul (onde o primeiro café, denominado Kiva Kan, foi
aberto em 1474), em Damasco, em Jerusalém, em Riad ou no Cairo,
eles se estendiam da porta para a rua, onde os clientes, sentados ao ar
livre, escutavam o som da cornetinha mizmar e da flauta nay, ou joga-
vam em um tabuleiro seus passatempos, gamão ou xadrez, enquanto o
sorviam. Visando entretê-los, havia nos cafés otomanos a presença de
um meddah, contador de histórias que, eventualmente, era interrom-
pido por um dervixe amante dos sermões.
Todavia as autoridades religiosas de Meca, sempre atentas aos peri-
gos do livre pensar, decidiram, entre 1512 e 1526, fechar os cafés, por-
que eram espaços perigosos e, portanto, um desafio à ortodoxia religiosa
da capital do Islã. Coube ao sultão de Istambul fazê-las retroceder.
A quase inexistência de chuva permitia que tudo ocorresse em
céu aberto, bem ao contrário do ambiente europeu, onde, desde o AO LADO,
início, trataram-se os cafés como uma espécie de templo do lazer e VENDEDOR
saudável retiro do corre-corre das grandes cidades. Somente era
AMBULANTE DE
possível colocar mesas e cadeiras na parte da calçada em semanas
muito limitadas, devido ao rigor do frio. Os cafés eram, portanto, CAFÉ PELAS RUAS

um local onde se poderia ficar por horas e horas sem ser perturbado DE ISTAMBUL

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o café e o Iluminismo

NO MEIO DA por ninguém, desde que se solicitasse, ao sentar, uma taça de café,
que era servida com um copo de água.
PARAFERNÁLIA DE
O CERCO DE VIENA
O café tornou-se moda na Europa entre 1670 e 1690, e curiosa-
TAPETES, PRATARIAS, mente foi uma invasão dos turco-otomanos que finalmente o consa-
grou. Viena, capital do Sacro Império Romano-Germano, encontra-
ROUPAS DE SEDA, va-se sitiada por um enorme exército comandado pelo grão-vizir Kara
Mustafá Pachá (supremo ministro e comandante militar do império
DIVÃS, ESPADAS otomano). A Hungria já havia capitulado em 1660-63, e agora era a
vez de a Áustria sentir o peso da potência do Sultão Mehmet VI e do
E MOSQUETES seu belicoso grão-vizir.
No alto verão de 1683, o imperador Leopoldo I, assustado, aban-
ABANDONADOS ÀS donou sua capital e refugiou-se em Passau, com medo dos 90 mil
soldados que os turcos mobilizaram contra ele, sendo que prima-
PRESSAS, UM TANTO damente 10 mil eram os temidos tártaros.
Por detrás das espessas muralhas da capital, quem ficou no coman-
ESQUECIDOS do da defesa foi o conde Ernst Rudiger Von Starhemberg, que tinha a
sua disposição apenas 16 mil homens, mais o apoio da milícia de cida-
dãos e de cerca de 700 estudantes. Bem pouca gente para enfrentar um
POR TODOS dos maiores poderios da Europa e da Ásia Menor daqueles tempos.
Naquelas circunstâncias dramáticas, com a possibilidade de uma
ENCONTRAVAM-SE cidadela cristã capitular frente ao inimigo muçulmano, o papa
Inocêncio IV lançou um apelo aos príncipes europeus, para que acor-
50 SACOS DE ressem a salvar Viena e a dinastia Habsburgo que a governava, visto
que se tratava de uma “Guerra Santa”.
GRÃOS DE CAFÉ Grande parte alegou que estava com problemas internos, ne-
gando qualquer apoio. Todavia, esta não foi a posição do rei da
Polônia, Jan III Sobievski, que passou a comandar uma força de
coalizão na qual contava com bávaros, francônios, suábios e saxões,
além, naturalmente, da sua poderosa cavalaria dos Hussardos.
O cerco que começara em 15 de julho de 1683 estava prestes a
alcançar a vitória no começo de setembro, quando o exército dos cris-
tãos, descendo dos altos de Kahlenberg, nas cercanias de Viena, na
madrugada do dia 12 de setembro de 1683, desbaratou completamente
o exército otomano, matando 10 mil deles e pondo Kara Mustafá em
fuga. Jan Sobievski, vitorioso, enviou então uma carta ao papa, anunci-
ando: “Cheguei, vi, e Deus venceu!!!”. A Europa suspirou aliviada.
O grande botim para os cristãos foi ter encontrado o acampa-
mento turco praticamente intacto. E no meio daquela parafernália
de tapetes, pratarias, roupas de seda, divãs, espadas e mosquetes
abandonados às pressas, um tanto esquecidos por todos encontra- CARICATURA DE CAFETERIA EM VIENA, DE ANDREAS GEIGER (1837)
vam-se 50 sacos de grãos de café.

O PRIMEIRO CAFÉ DE VIENA


Das tantas histórias que corriam a respeito do verdadeiro funda- JAN SOBIESKI, VITORIOSO, ENVIOU ENTÃO UMA CARTA AO
dor do primeiro café vienense, uma delas faz menção a um tal George
Franz Koltschitzky (falecido em 1694), intérprete do rei Jan que te- PAPA, ANUNCIANDO: “CHEGUEI, VI, E DEUS VENCEU!!!”

30 31
o café e o Iluminismo

ria percebido o valor daqueles sacos encontrados, a respeito dos quais MUITOS CAFÉS
ninguém sabia o que fazer. Também são mencionados Isaak de Luca
e o grego Johannes Diodato. Consta que os otomanos, além do con- PASSARAM
sumo pessoal, davam os grãos de café aos seus camelos, para deixá-
los mais dispostos e ativos. Seja como for, ele tornou-se uma dádiva
da última cruzada do Ocidente contra o Islã.
A OFERECER ESPAÇO
Koltschitzky logo aprendeu como lidar com o produto e abriu
uma Kaffeehaus, naquele mesmo ano da fuga otomana – ela teria PARA SEÇÕES
sido inaugurada em 12 de setembro de 1683 –, e imediatamente
teve sucesso. Para atenuar a amargura da bebida, passou a servi-la LITERÁRIAS,
com generosas doses de creme chantilly (o costume de adoçá-lo
com açúcar somente surgiu mais tarde, na França). Mal sabia ele NAS QUAIS JOVENS
que seu estabelecimento estava dando início a uma verdadeira
revolução dos costumes. ESCRITORES E POETAS
Não demorou muito para que a capital dos austríacos ficasse
conhecida pela quantidade e qualidade dos seus cafés, que serviam APRESENTAVAM-SE
a bebida e ofertavam uma variada confeitaria (tortas, bolos e doces
das mais diversas procedências), atraindo uma clientela diversificada,
majoritariamente de pessoas envolvidas com a cultura e com as ar-
tes (escritores, artistas, cantores de ópera, maestros e compositores,
empresários das artes, celebridades da sociedade, sem esquecermos
os poetas e os jornalistas de todos os quadrantes). Durante muito
tempo, mulheres não foram admitidas.

CENTRO DE LEITURAS
Faz parte da lenda dos primeiros cafés vienenses a história de
que coube a um desconhecido fazer do café um ponto de leitura.
Tinha ele o hábito de levar um jornal e deixá-lo sobre a mesa, depois
de pagar a conta. Com o tempo, os demais fregueses, acreditando
ser uma cortesia da casa, passaram a exigir os diários para lê-los
antes de seguir para a vida. Outro efeito do gesto foi atrair gente
atrás de notícias do mundo político ou para ler de perto a crítica
teatral e musical, muito ativa a partir do século XVIII. Como era
inevitável, graças à busca por cultura dos frequentadores, muitos
cafés passaram a oferecer seu espaço para seções literárias, nas quais
jovens escritores e poetas podiam apresentar-se.
Os escritores Stefan Zweig, Theodor Herzl (fundador do sionis-
mo), o inventor Siegfried Marcus (precursor da fabricação do auto-
móvel, em 1883), os ficcionistas Franz Kafka, Herman Broch e Arthur
Schnitzer, este o favorito de Sigmund Freud, faziam e refaziam seus
textos nos cafés da cidade, onde também estavam presentes os pinto-
O CAFÉ SPERL, EM VIENA, EM FOTOGRAFIA DE 1910 res modernistas Egon Schiele e Gustav Klimt. Os arquitetos Adolf
Loos e Otto Wagner (urbanista que reformou Viena no século XIX)
eram assíduos daqueles pequenos mundos, onde quem valia a pena
conhecer quase sempre aparecia. Entre eles, o famoso dramaturgo e
CONSTA QUE OS OTOMANOS DAVAM GRÃOS DE CAFÉ AOS satírico Karl Krauss, que redigia grande parte dos artigos da sua revis-
ta Die Fackel (A Tocha) em uma das mesas do seu café favorito.
SEUS CAMELOS, PARA DEIXÁ-LOS MAIS DISPOSTOS E ATIVOS Se nos começos do século XIX a cidade dispunha de 150

32 33
o café e o Iluminismo

cafeterias, em 1900 saltaram para 600 as Kaffeehäuser, proporcionan- DA TAVERNA AO CAFÉ


AINDA QUE NÃO
do uma excelente qualidade de vida aos súditos da monarquia Ainda que não desconhecessem a existência do café, os in-
Habsburgo. Era um espaço extraordinário de convívio aberto ao pú- gleses do tempo de Shakespeare eram assíduos frequentadores
blico e que se tornara um abelheiro de ideias, uma “usina de so- das tavernas de Londres. A maioria delas estavam espalhadas DESCONHECESSEM A
nhos”, onde também se forjavam partituras musicais para ópera e pelas margens do porto, tendo todas nomes de animais: Cabeça
operetas (como os regentes Strauss, pai e filho, imortalizados pelas de Leão, da Águia, do Falcão, da Raposa etc. Estima-se que EXISTÊNCIA DO CAFÉ,
valsas, e claro, o grande Gustav Mahler), livros, quadros e novas isto se devia ao fato delas serem espelho das antigas tavernas
cenografias teatrais, fazendo de Viena um dos principais núcleos da teutônicas ou saxãs, originalmente frequentadas por caçadores OS INGLESES DO
ACIMA, À cultura ocidental, uma espécie de Paris da Europa central. ou pescadores, que se reuniam depois da labuta para alegrar a
ESQUERDA, Um excelente testemunho da ambientação e da vida cultural vida com canecos de cerveja e vinho ou tragos de aquavita (água- TEMPO DE
produzida nos cafés dos anos 20 e 30 se encontra nos livros autobio- viva, bebida escandinava de altíssimo teor alcoólico equiva-
CAFETERIA
gráficos de Elias Canetti: A língua absolvida (Die gerettete Zunge, 1977); lente à vodka dos russos). Os mais variados espécimes de caça, SHAKESPEARE ERAM
INGLESA DO Uma luz em meu ouvido (Die Fackel im Ohr, 1980) e O jogo dos olhos servidos em largas travessas de madeira, eram então oferecidos
SÉCULO XVII. À (Das Augenspiel, 1985). Era comum, escreveu o Prêmio Nobel de como acompanhamento. ASSÍDUOS DAS
1981, que um mecenas enviasse um mensageiro para, discretamen- O bardo imortalizou a taverna Cabeça de Javali (Boar’s Head
DIREITA, A
te, entregar a um poeta, cujo talento prometia, uma certa importân- Tavern), local preferido pelo bufão sir John Falstaff, que por um
TAVERNAS
CAFETERIA OFFEYS,
cia em dinheiro para ele se desafogar dos desconfortos cotidianos e bom tempo privou da amizade do príncipe Hal, o qual, mais tarde,
DE LONDRES melhor poder entregar-se às musas. quando ascendeu ao trono da Inglaterra como Henrique V, o ig-

34 35
o café e o Iluminismo

COM A FARTURA DE norou. Amante da garrafa e da vida boêmia, Falstaff, um glutão


gorducho e bem-humorado, era o típico frequentador de tavernas,
as quais também acolhiam punguistas, pecadoras profissionais e
BEBIDA E OS ÂNIMOS
ladrões de ocasião, o que não dava boa fama para aquele tipo de
estabelecimento.
EXALTADOS, ERAM Brigas eram comuns: altercações e desaforos terminavam
com facas entrando em ação em meio à intensa fumaceira dos
INEVITÁVEIS GROSSAS cachimbos dos marinheiros e de velhos lobos do mar. Era um
lugar perigoso. Tanto assim que um conhecido autor teatral e
PANCADARIAS poeta, o jovem Christopher Marlowe, amigo e rival de
Shakespeare, terminou sendo assassinado aos 29 anos em uma
E O CHOCAR taverna das docas de Depford, em maio de 1593, sendo que o
próprio Shakespeare morreu na sua cidadezinha natal –
DOS FLORETES Stratford-upon-Avon –, em março de 1616, provavelmente de-
vido ao excessivo abuso de bebida forte, segundo alguns histo-
riadores. Sobre a sua tumba, na Holy Trinity Church, o epitáfio
dizia: “abençoe o homem que preservar estas pedras/amaldiçoe
aquele que tentar tocar nos meus ossos”.
Victor Hugo, por sua vez, registrou no seu Nossa Senhora de
Paris (Notre-Dame de Paris, 1831), romance histórico que se
passa na capital da França medieval, uma viva impressão sobre
uma taverna da época, a Pomo de Eva, na qual “[ela] cheia de
luzes flamejava como uma forja nas sombras: ouvia-se o barulho
dos copos, das comezainas, das pragas, das questões, que saía
pelos vidros partidos (...) ouviam-se gargalhadas sonoras”. Ed-
gar Allan Poe, por sua vez, frequentador assíduo da Court-house
Tavern, em Richmond, na Virginia, usava-lhe o endereço como
referência para receber algum socorro financeiro do amigo John
Allan (correspondência de 1827), e também fez das tavernas o
centro tenebroso de uma série de contos.

TAVERNAS E ESTALAGENS
As tavernas, ao tempo que foram entendidas como as
antepassadas dos atuais pubs ingleses, tinham grande afinidade
com as estalagens. Construídas nas principais vias das cidades gran-
des europeias, elas também proliferavam pelo interior do país. Ainda
que, em geral, fossem abrigo de comerciantes e mercadores via-
jantes, isto não evitava que a violência eclodisse a qualquer mo-
AO LADO,
mento.
Alexandre Dumas, bem no início da sua célebre novela Os três
ILUSTRAÇÃO DE
mosqueteiros (Les Trois Mousquetaires, 1844-46), fez uma perfeita
CAFETERIA ALEMÃ descrição do ambiente onde se dá o desentendimento do jovem
DE 1880 espadachim d’Artagnan com um dos mosqueteiros do cardeal
Richelieu, com quem mais tarde duelou. O clima da estalagem
RESERVADA
era praticamente o mesmo da taverna. Com a fartura de bebida e
APENAS A os ânimos exaltados, era inevitável que grossa pancadaria e o cho-
MULHERES car dos floretes contribuísse para o encerramento de uma noitada.

36
o café e o Iluminismo

O CAFÉ E A SABEDORIA
Não sem razão o primeiro café a ser fundado na Inglaterra, por
um tal de Jacob, em 1650 ou 1652, batizado como O Anjo, instalou-
se em Oxford, nas vizinhanças da célebre universidade. A data co-
incide com o governo dos puritanos de Oliver Cromwell (1648-1658),
que eram profundamente hostis à existência de tavernas – centros
de beberagens e de devassidão, para eles –, assim como de teatros e
outros locais de divertimentos tidos por licenciosos. Os devotos do
ditador não tinham nenhum senso de humor.
O café de Oxford logo tratou de atrair os acadêmicos e estudan-
tes em busca de um espaço livre para as discussões (as universidades
da época não deixavam muita margem para manifestações dos alu-
nos, nem para transgressões dos acadêmicos). Aproveitando-se da
situação favorável à difusão dos cafés, pois os puritanos considera-
vam-nas como espaço dos “virtuosos”, várias coffee-houses foram aber-
tas em Londres, acolhendo basicamente o mesmo tipo de público
BALZAC (ACIMA) DIZIA QUE
mais culto e informado, contando ainda com a presença de políticos
“O BALCÃO DO CAFÉ É O e negociantes da City.
PARLAMENTO DO POVO” Os partidos ingleses, Whigs e Tory, como ocorreu na França na
época da Revolução de 1789, elegeram cada um o seu café preferido
para seus acertos informais, o mesmo ocorrendo com os letrados,
poetas e artistas em geral. Esta função, de serem “centros de
politização”, é que levou Honoré de Balzac a dizer mais tarde que
“o balcão do café é o parlamento do povo”. Exatamente por servirem
como uma área de livre circulação das ideias e das ideologias, o
governo de Carlos II (reinou de 1660 a 1685) decidiu fechar algu-
mas das coffee-houses, em 1675, por entender que abrigavam “pen-
samentos subversivos”, senão que “seminários da sedição”. Houve
forte reação contra isto, obrigando a monarquia a recuar. Desde
então, seus frequentadores passaram a considerá-las como funda-
mentais na conquista das “liberdades inglesas”.
Mas a abertura das coffee-houses não significou que se limitas-
sem a ser um abrigo da inteligência. Modificou igualmente a es-
trutura dos centros urbanos, fazendo com que uma série de outras
edificações importantes surgissem próximas a elas. Sedes de parti-
dos e de clubes masculinos, a famosa Lloyd, a empresa de seguros
de projeção mundial, e até a bolsa de valores da City, de Londres,
assim como a de Nova York, estabeleceram-se nos arredores dos ACIMA, ILUSTRAÇÃO DE AUTOR DESCONHECIDO, DATADA DE 1668, RETRATANDO CAFETERIA INGLESA
cafés. Também serviram, segundo demonstrou Lawrence Klein,
como um dos primeiros núcleos de civilidade fora da vida na Cor-
te, ao tempo em que atraíram, com sua configuração interna (uma
sala para correspondência, outra para reuniões, um espaço para AS COFFEE-HOUSES FORAM UM DOS PRIMEIROS
escritório e a cafeteria propriamente dita), os pequenos comerci-
antes, que lá podiam tranquilamente dar encaminhamento aos NÚCLEOS DE CIVILIDADE FORA DA VIDA NA CORTE,
seus contratos e negócios sem ter que despender dinheiro em alu-
guéis ou compra de escritório. ATRAINDO OS PEQUENOS COMERCIANTES

38 39
o café e o Iluminismo

O CAFÉ E A RAZÃO CLÁSSICA AS COFFEE-HOUSES


Interessa observar que estudos preliminares sobre os efeitos do
café já haviam sido feitos pelo notável filósofo e cientista inglês sir FORAM APELIDADAS
Francis Bacon (falecido em 1626), que decidiu alertar o público, em
um ensaio intitulado Historia Vitae et Mortis, de 1620, para os perigos
DE “UNIVERSIDADES
do seu consumo, ainda que tivesse méritos para a reativação cerebral.
Mesmo assim, graças a um criado turco vindo de Smyrna, chamado
Pasqua Rosee, que fundou seu estabelecimento também no ano de DE UM CENTAVO”,
1652, em Londres (batizado como Cabeça de Turco), as cafeterias
começaram a multiplicar-se notavelmente a partir daquela data, em POIS NELAS SE PODIA
função de outro fenômeno: a emergência do Movimento Racionalista.
Se consideramos sir Francis Bacon como um dos precursores do OBTER MUITO
moderno racionalismo, o século XVII – denominado como O Sé-
culo da Razão Clássica – conheceu ainda outros gigantes do pen- CONHECIMENTO
samento, como Descartes, Baruch Spinoza, Gottfried Leibniz e Isaac
Newton (que simplesmente revolucionou a concepção do Cosmo). AO CUSTO DE UM
A marcada origem turca dos cafés de Londres ensejou que inú-
meras coffee-houses abertas mantivessem denominação que clara- SIMPLES CAFÉ
mente as identificava com a região do Levante. Além de haver 57
Cabeças de Turco, outras se chamavam Jerusalém Coffee-house,
Divã Oriental, Cabeça do Sultão, Sultanesa, Soliman coffee-house,
Morat, o grande, e assim por diante.

DE BACCO A APOLO
A taverna estava umbilicalmente ligada ao álcool e ao
empanturramento, era a morada de Bacco. Por conseguinte, não ser-
via para duelos de inteligência, bem ao contrário das coffee-houses,
refúgio do luminoso Apolo. E assim foi que a Razão finalmente trans-
formou-as em sua morada definitiva. Devido à sua sobriedade, elas
chegaram a ser apelidadas na Inglaterra de "universidades de um
centavo" (penny universities), porque, frequentando-as, era possível se
obter muito conhecimento ao conviver com a elite pensante, ler e
inteirar-se das novidades da época, e tudo pagando-se apenas o valor
de uma porção mínima de café. Esta função, de serem "centros de
politização", é que levou Jonathan Swift a se convencer de que "as
informações que os poderosos possuem não são mais verdadeiras ou
trazem mais luzes do que as discussões políticas de um café".
Deste modo, gradativamente as tavernas entraram em decadên-
cia, sendo superadas por um novo espaço de sociabilidade, muito
mais civilizado e refinado, aberto pelos cafés, tornando muitos deles
símbolos de uma sociedade requintada. As enormes mesas rústicas e
ACIMA, GRAVURA DE CAFETERIA TURCA DO INÍCIO DO SÉCULO XIX os bancos coletivos das tavernas, onde a bebida era servida em
canecos de latão ou estanho, deram lugar aos cafés decorados com
cuidadoso bom gosto. Móveis Thonart, especialmente em Viena,
ORIGEM TURCA DOS CAFÉS DE LONDRES LEVOU À ESCOLHA toalhas de mesa limpas, copos de cristal ou de vidro trabalhado,
taças de porcelana resistente, eram comuns de serem encontrados
DE NOMES QUE REMETIAM À REGIÃO DO LEVANTE nas Kaffeehaus de Munique, de Frankfurt ou de Nice.

40 41
o café e o Iluminismo

Na Alemanha, país de compositores, coube ao romântico Robert suspeito, possível de engendrar um espírito crítico, senão que a pró-
O FATO DE QUE BEBER
Schumann, autor de incontáveis lieder (peças de piano e canção) tor- pria sedição. Hoje, a Alemanha é o terceiro maior mercado consumi-
nar célebre o Zum Arabischer coffe baum, ou simplesmente Coffe Baum dor de café, onde 150 litros de café são bebidos per capita e cerca de
(árvore do café), fundado em 1720, em Leipzig, capital da Saxônia. 500 mil toneladas de grãos de café verde são processadas.
CAFÉ FAZIA COM QUE
Que igualmente contou com a presença de outras celebridades, tais
como o rei Augusto, o Forte, Johann S. Bach, Gotthold E. Lessing, J.F. O COMBUSTÍVEL DO ILUMINISMO OS SÚDITOS FICASSEM
Goethe, E.T.A. Hoffmann, Franz Liszt e Richard Wagner. Em Berlim, “Sapere aude”, ouse saber, respondeu o filósofo alemão E. Kant, ele
a primeira Kaffeehaus teve suas portas abertas em 1721. Todavia, o rei também um admirador inveterado dos efeitos da cafeína, a um amigo que DESPERTOS E
da Prússia Frederico II, o Grande, ordenou, ainda que fosse um mo- lhe perguntara: o que, afinal, era o Iluminismo? Em um pequeno texto
narca esclarecido, que seus vassalos dela se afastassem. que rapidamente foi traduzido e logo circulou no meio culto ocidental, o ATENTOS, COM A
Ele não estava disposto a que os alemães trocassem a cerveja por pensador conclamou a todos que pensassem com sua própria cabeça. Que
um produto importado de tão longe. Mas com o tempo, e mais ain- deixassem de agir apenas cumprindo as ordens dos sacerdotes e dos mo- MENTE AFIADA,
ACIMA, À da com os bons proveitos tributários que advinham do monopólio do narcas e colocassem o cérebro a funcionar por si. O que importava era a
ESQUERDA, TÍPICO arábico, ele voltou atrás. Desde então, como em outras capitais liberdade de pensamento. Segundo suas próprias palavras: ASSUSTOU DIVERSOS
europeias, os cafés berlinenses se transformaram em “centros de co-
CAFÉ ALEMÃO
municação”, onde as pessoas de todas as camadas sociais e grupos “Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade,
PRÍNCIPES ALEMÃES
EM CARICATURA ocupacionais discutiam ao redor de uma chávena de café quente as da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de
DO SÉCULO XIX. questões políticas, econômicas e culturais do momento. seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio
O fato de que beber café fazia com que os súditos deixassem de culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendi-
À DIREITA,
acordar envoltos em uma nuvem de torpor e inércia, e logo ficassem mento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a
KARLSPLATZ,
despertos e atentos, com a mente afiada, assustou diversos outros prín- direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
EM VIENA cipes alemães, que o entenderam como um tipo de licor altamente entendimento, tal é o lema do esclarecimento”. (Was ist Aufklärung?, 1783).

42 43
o café e o Iluminismo

Nenhuma outra fonte de estímulo superou o café naqueles anos NENHUMA OUTRA
em que a Razão passou a ser hegemônica, tornando-se, assim, o
mais recorrente instrumento da vitória da Ilustração contra o Des- FONTE DE ESTÍMULO
potismo e a Superstição. Em suas Confissões, Jean-Jacques Rousseau
comentou: "Voltaire tem a reputação de beber 40 taças de café por
SUPEROU O CAFÉ
dia para permanecer desperto, para pensar e pensar, pensar a manei-
ra de lutar contra os tiranos e os imbecis".
E, como não poderia deixar de ser, fez sucesso de imediato na
QUANDO A RAZÃO
capital da inteligência europeia: Paris. Lá, o precioso líquido chega-
ra vindo de Marselha, o grande porto francês no Mediterrâneo e, PASSOU A SER
desde 1661, o principal importador dos grãos vindos do Egito. A sua
sede principal tornou-se o Café Le Procope (nome derivado do seu HEGEMÔNICA.
proprietário, o siciliano Francisco Procópio, que o fundou em 1686),
até hoje estabelecido na Rue de l’Ancienne Comédie, 13, no bairro TORNOU-SE, ASSIM,
de Saint Germain-des-Prés.
Além dele, como sítio que abrigava a vanguarda intelectual, O MAIS RECORRENTE
existiam o Café de la Régence (no Palais Royal, aberto em 1718) e o
Café Gradot (hoje desaparecido). A história do Procope se identifi- INSTRUMENTO
ca por sua íntima associação com o Iluminismo, pois foi frequentado
por Voltaire, pelo naturalista Buffon, pelo escritor e filósofo Jean-
DA VITÓRIA DA
Jacques Rousseau, pelo matemático D´Alembert e por Dennis
Diderot, o pai da Enciclopédia (edição iniciada em 1750). Também
acolheu os líderes jacobinos George Danton e Paul Marat nos dra-
ILUSTRAÇÃO CONTRA
máticos acontecimentos que sacudiram a capital nos momentos tor-
mentosos da Revolução de 1789. O DESPOTISMO
Foi ainda no Procope que Benjamin Franklin, então embaixador
da jovem república americana, redigiu a minuta do pacto Franco- E A SUPERSTIÇÃO
Americano de apoio do governo de Luis XVI aos revolucionários de
1776. Consta que Thomas Jefferson, quando foi sua vez de ser repre-
sentante diplomático na França, por ocasião da Revolução, teria
feito o esboço das Dez Primeiras Emendas à constituição americana
numa das mesas do Procope, consagrando-o como um dos templos
informais da Razão.

O TESTEMUNHO DE DIDEROT
Além de Voltaire, Denis Diderot também era freguês assíduo
dos cafés da Cidade Luz. Eis aqui um testemunho dele sobre o seu
costume de aparecer no café, depois de flanar pelas ruas da capital:

“Fizesse bom ou mau tempo, era meu hábito sair às cinco da tarde para
AO LADO,
um passeio até o Palais-Royal. Eu ia sempre só (...) entretendo-me comigo
mesmo com a política, o amor, o gosto ou a filosofia. Abandonava meu VENDEDORA DE
espírito a toda libertinagem. Deixava-me levar pela primeira ideia sábia ou CAFÉ EM PARIS,
louca que se me apresentasse. (...) Meus pensamentos são minha distração.
GRAVURA DE M.
Se o tempo estava muito frio eu me refugiava no Café de La Régence. Lá eu
me entretinha a ver jogarem xadrez. Paris é o centro do mundo, e o Café de ENGELBRECHT, DE

la Régence é o sítio de Paris onde se joga o melhor deste jogo.” MEADOS DE 1735

45
o café e o Iluminismo

BALZAC ESCREVEU: “O Interessante também foi a história de Emilie, a marquesa de


Châtelet, nascida em 1706 e amante de Voltaire. Mulher extre-
mamente inteligente e culta, a moça desde muito cedo – para
CAFÉ PÕE O SANGUE
espanto e preocupação da família – se decidira pela ciência e pela
aprendizagem de línguas (dos 12 aos 20 anos dominou o latim e o
EM MOVIMENTO, FAZ grego, além do italiano e do alemão). Era conhecida por estudar
de oito a 12 horas por dia, além de ser admiradora da filosofia
DESPERTAR OS natural de Newton.
Faminta por conhecimento, contratou as boas cabeças da ci-
ESPÍRITOS MOTORES, dade que estavam dispostas a ensiná-la sobre o que dissesse res-
peito às novidades da química, da matemática, da física ou da
EXCITAÇÃO QUE botânica. Entre seus mestres estava o filósofo e matemático Pierre
Louis de Maupertuis, membro da Academia de Ciências, um habitué
PRECIPITA A do Café Gradot. Como aqueles estabelecimentos eram interditos
às mulheres, Emile, antecipando deste modo, com um século de
DIGESTÃO, AFASTA O antecedência, a romancista George Sand (nascida Lucile Aurore
Dupan), não teve receio em se vestir como homem para poder
estar junto com o mestre e participar de suas discussões com os
SONO E PERMITE POR
demais pensadores e cientistas que lá se faziam presentes. Voltaire
disse dela que "era um grande homem que havia nascido mulher!".
UM LONGO TEMPO O Quem, entretanto, usou e abusou da negra bebida foi o roman-
cista Honoré de Balzac: obcecado em retratar a sociedade do seu
EXERCÍCIO DAS tempo, tratou de recorrer a doses impressionantes dela. Ele mesmo
saía pela cidade para comprar, em vários bairros diferentes, os grãos
FUNÇÕES CEREBRAIS." necessários para abastecê-lo. Testemunhos amigos disseram que a
poção preparada pessoalmente por ele parecia tão consistente quan-
to um caldo escuríssimo ou uma sopa. Prestava-se como um infalí-
vel energético, fundamental para ele poder trabalhar de maneira
ininterrupta, de 10 a 14 horas por dia, na sua extensa obra A comé-
dia humana (La comédie humaine), 26 volumes perfazendo mais de
10 mil páginas, que publicou entre 1829 e as vésperas da sua mor-
te, em 1850.
Escritor infatigável, Balzac deixou um ensaio sobre os moder-
nos excitantes: a aquavita, ou álcool em forma de licor, o açúcar, o
chá, o café e o tabaco (in Traité des excitants modernes, 1838). Nes-
te texto, ele inspirou-se em um famoso livro do epicurista francês
J.A. Brillant-Savarin, autor do Fisiologia do gosto (Physiologie du
gout), editado em Paris em 1825. O escritor foi considerado como
um dos fundadores do ensaio gastronômico, onde se encontram
suas preciosas observações sobre o arábico.
Mesmo alertando para os perigos da sua ingestão excessiva,
Balzac enfatiza que a função maior daquela bebida é excitar o ACIMA, O CAFÉ DE FLORE, EM PARIS, QUE DESDE 1933 PREMIA O MELHOR ROMANCISTA DO ANO
despertar dos espíritos (ainda que, disse ele, não faça efeito em
gente aborrecida que, mesmo o sorvendo, continua aborrecida!).
O café, escreveu, "põe o sangue em movimento, faz despertar os
espíritos motores, excitação que precipita a digestão, afasta o sono A MARQUESA DE CHÂTELET VESTIU-SE DE HOMEM PARA
e permite por um longo tempo o exercício das funções cerebrais."
Ele alcança a massa cinzenta "por meio de irradiações imperceptí- PODER ESTAR COM SEU MESTRE NO CAFÉ GRADOT

46 47
o café e o Iluminismo

veis e que escapam a qualquer análise (...) podemos supor que um vem fenômeno das letras norte-americanas, morando na capital AINDA HOJE OS
fluido nervoso é o condutor da eletricidade que libera esta subs- francesa com poucos recursos, confessou, no seu delicioso depoi-
tância que ela encontra e põe em ação dentro de nós." (Traité, pág. mento intitulado Paris é uma festa (A moveable feast, publicado CAFÉS FRANCESES
11). O compositor Giacomo Rossini confessou-lhe que doses de postumamente, em 1964), que gastando apenas uns trocos era pos-
café tomadas com certa regularidade permitiam que ele compu- sível passar as tardes preenchendo a lápis seus inúmeros cadernos
DÃO MOSTRAS DE
sesse uma ópera em apenas 15 ou 20 dias. com anotações que viriam a se transformar nas novelas que, tem-
pos depois, circulariam com sucesso pelo mundo.
O CAFÉ PARISIENSE NO SÉCULO XX Era fácil, desde o século XIX, encontrar nos cafés celebridades
SUA LIGAÇÃO QUASE
Quem de modo mais radical assumiu a tradição dos iluministas do mundo das letras e das artes, tais como o pintor Ingres, o escri-
em sua fidelidade aos cafés foi a geração dos escritores existencialistas tor norte-americano Henry James, que optara por viver na Europa, QUE UNIVERSAL
de Paris do após-1945. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir tor- o poeta e ensaísta Chateaubriand, o fabuloso Picasso, o poeta
ACIMA, À naram célebres os cafés de Flore, Le Deux Magots e Clos de Lilas. O Apollinaire e os revolucionários russos exilados Lenin e Trotsky, COM AS LETRAS E
ESQUERDA, O
famoso casal, invariavelmente, deixava as horas correrem escreven- sempre vistos disputando partidas de xadrez. Como também a pro-
do e trocando ideias naqueles estabelecimentos, onde ainda podi- tetora dos escritores americanos que viviam na capital francesa, a COM A INTELIGÊNCIA
LENDÁRIO LE
am se encontrar com o romancista Albert Camus, o jazzista Boris famosa Gertrude Stein.
PROCOPE. À Vian, a novelista Françoise Sagan e o poeta Paul Eluard. Ainda hoje, muitos deles procuram atrair a freguesia culta pro-
DIREITA, LE DEUX Simone, por sua vez, deixou uma notável descrição do que os porcionando encontros literários ou espaços para declamações de
cafés representavam na vida do seu grupo no seu volumoso Os poemas, sendo que o Café de Flore chegou a instituir, desde 1933,
MAGOTS, UM DOS
Mandarins (Les Mandarins, 1954), livro que lhe proporcionou o Prêmio um prêmio ao melhor romancista do ano. Não há melhor indicador
PREFERIDOS DE Goncourt. da estreita ligação quase que universal dos cafés com as letras e
SARTRE E SIMONE Ernest Hemingway, bem antes, na década de 1920, então jo- com a inteligência.

48 49
o ciclo do
café no Brasil

50
O ciclo do café no Brasil

Não são poucas as singularidades que caracte-


rizam o ciclo da cultura do café em terras brasilei-
ras. A começar por sua perenidade ao longo do
tempo. A rubiácea, como é chamado o grão em
diversos livros de história e economia, chegou ao
Brasil em pleno período colonial, ainda no século
XVII; foi contemporânea da passagem da família
real portuguesa pelo país; assistiu à declaração de
independência da colônia em relação à matriz; cru-
zou os reinados de Pedro I e Pedro II; vivenciou as
transformações geradas pela abolição da escrava-
tura e, finalmente, a partir da instalação do regi-
me republicano (tudo no século XIX), ganhou novo
fôlego, em especial no que diz respeito ao poder da
classe dominante paulista, que a partir de então
passou a ostentar ainda maior grau de autonomia
– até chegar a crise dos anos 30, já no século XX.
Anos depois, a cultura retomou seu vigor, e hoje o
Brasil busca, além da condição de maior produtor
mundial, também o posto de maior consumidor.
O café, talvez como nenhuma outra cultura na história do país,
influenciou e foi influenciado por fatores sociológicos e culturais. Um
dos mais significativos diz respeito à atração de imigrantes europeus,
em substituição à mão-de-obra escrava nas lavouras, visto que os
negros, ao longo de todo o século XIX, acompanharam o movimento
lento e gradual em direção à liberdade formal, até que chegasse a
NA PÁGINA AO LADO,
abolição definitiva, em 1888. Como recurso alternativo, os fazendeiros
ILUSTRAÇÃO COM e governantes paulistas desenvolveram programas para atrair cente-
NOME CIENTÍFICO DO nas de milhares de imigrantes, a maioria vinda do Norte da Itália, os
quais desembarcaram no porto de Santos em busca de uma nova vida.
CAFÉ (COFFEA ARABICA),
E ainda que nem tudo tenha sido flores, com muitos deles retornando
QUE PERTENCE À
para seu país de origem, uma significativa parcela se estabeleceu para
FAMÍLIA DAS RUBIÁCEAS sempre em território brasileiro, colaborando na explosão produtiva do

52
O ciclo do café no Brasil

oeste paulista, e em paralelo absorvendo a cultura do país, ao mesmo HÁ REGISTROS DE QUE


tempo em que a influenciavam, transformando-a e condicionando-a
para sempre, geração após geração.
O SARMENTO-MOR
O começo da saga brasileira daquele que viria a ser conheci-
do como “ouro verde” remonta a 1727, momento associado a um
nome, em particular, mas também a algum mistério, lenda ou
RECEBEU ORDEM
fantasia. O consenso está no fato de que o sargento-mor Francis-
co de Melo Palheta, baseado em Belém, no Pará, foi convocado EXPRESSADE
para uma missão diplomática na Guiana Francesa, então conhe-
cida como Caiena. O Tratado de Utrecht, após uma série de TENTAR TRAZER DE
conflitos fronteiriços, havia sido assinado em 1713, obrigando a
França a reconhecer a soberania portuguesa sobre aquele terri- CAIENA GRÃOS E
tório. Quem cuidava dos interesses franceses na região era o
Governador Geral Claude D'Orvilliers, que em 1723 proibira seus MUDAS DA RUBIÁCEA
compatriotas de cruzarem a fronteira e pisarem em solo brasilei-
ro. A visita de Palheta tinha como objetivo oficial justamente
fiscalizar se o tratado estava sendo cumprido. Até aí, nenhuma
dúvida. A forma como Palheta teria dado conta de alcançar ou-
tros objetivos, não declarados, é que suscita alguma dúvida. Há
registros de que ele recebeu como missão adicional (ou seria a
principal?) trazer para o Brasil mudas ou sementes de café. Mas
como teria procedido para alcançar tal intento?
Conforme apuraram Bruno Bortoloto do Carmo e Pietro Marchesini
Amorim, assistentes de pesquisa do Museu do Café, em Santos, a
versão romanceada da história dá conta que, durante um passeio em
Caiena, Madame D'Orvilliers, mulher do Governador Geral, seduzida
pelos encantos de Palheta, teria sorrateiramente colocado no bolso do
sargento-mor brasileiro algumas sementes de café. Tal possibilidade
até poderia fazer sentido, considerando que há documentos dando
conta que as instruções do oficial seriam as seguintes:

Se acaso entrar em quintal ou jardim ou roça aonde houver


café, com pretexto de provar alguma fruta, verá se pode esconder
algum par de grãos com todo o disfarce e com toda a cautela.

Esta versão romanceada foi publicada em 1868 por Camilo Caste-


lo Branco, sendo intitulada Memórias de frei João de São José Queirós,
bispo do Grão-Pará. O livro narra as visitas pastorais do frei pelo inte-
rior de sua diocese. Em uma das passagens, contava o frei que Palheta,
o governador e sua mulher saíram a passeio e, generosamente, Madame
D'Orvilliers teria colocado no bolso da casaca do oficial brasileiro
ACIMA, A VISÃO DE H. CAVALLEIRO SOBRE O MOMENTO EM QUE PALHETA RECEBIA SUA MISSÃO À GUIANA uma mão cheia de sementes de café – e tudo sob as vistas do marido.
Considerando que o relato do frei é de 36 anos depois da efetiva
entrada do cafeeiro no Pará, deduz-se que ele se baseou na história
contada (ou inventada) pelos velhos agricultores da região.
SEDUZINDO OU NÃO A MULHER DO GOVERNADOR GERAL, FOI O "porém" a ser colocado nesta hipótese reside no fato de que, até
aonde se sabe, em seu retorno ao Brasil Palheta teria pedido que lhe
PALHETA QUEM APRESENTOU O CAFÉ AO BRASIL EM 1727 fossem concedidos 100 casais de escravos e mais 50 indígenas de al-

54 55
O ciclo do café no Brasil

deias vizinhas, de forma a que pudessem cuidar da lavoura de "mil e e muito maior porção de sementes do que as que a tradição attribue LISBOA REGISTRA
poucos pés de café e três mil de cacau". Teria dito ainda o sargento- á fidalga mão dadivosa de Mme. Claude D'Orvilliers. Como, po-
mor que haviam sido trazidas de Caiena rém, não se exalçaria a tradição, se a aformosentasse um gesto EM 1771 A CHEGADA
feminino! [...]
mil e tantas frutas que entregou aos oficiais do senado (verea-
dores da câmara municipal) para que o repartissem com os mora- A PRIMEIRA FASE
DE CAFÉ BRASILEIRO
dores, como também cinco plantas, de que já hoje há muito no Tendo ou não havido jogos de sedução, o ano de 1727 marca a
ACIMA, O ARTISTA Estado. (Francisco de Melo Palheta, 1727) entrada do café no país. Já em 1731 há registros da entrada na alfân- CULTIVADO
PLÁSTICO dega de Lisboa de café brasileiro cultivado no Maranhão. Somente
Como se deduz, algumas poucas sementes furtivamente coloca- por volta de 1760, em razão das enormes distâncias e precários meios NO MARANHÃO
H. CAVALLEIRO
das no bolso de Palheta não poderiam ter dado origem às primeiras de transporte de então, o café teria chegado ao Rio de Janeiro, e daí
IMAGINA O MOMENTO lavouras de café do Brasil. O mito, entretanto, perpetuou-se ao longo para sua entrada na história da economia e da cultura do país, foi um
EM QUE PALHETA TERIA do tempo. Mas em 1927, Basílio de Magalhães esclareceria: passo. Inicialmente também utilizado como planta de quintal pelos
RECEBIDO OS GRÃOS E,
frades barbadinhos, que tinham o costume de usá-lo como ornamen-
A intervenção, lendária ou real, dessa mulher, no caso da tação nas janelas, quem primeiramente produziu café em escala co-
DEPOIS, PLANTANDO A
introducção do café em nossas plagas, [...] seria tão somente um mercial teria sido o holandês João Hoppmann, em uma chácara do
PRIMEIRA MUDA motivo poético. Palheta adquiriu em Cayena cinco pés de cafeeiro arraial de Mata-Porcos (onde hoje fica o bairro do Estácio). Dali, o

56 57
O ciclo do café no Brasil

café teria vivenciado sua expansão, inicialmente em pequenos sítios LAVOURA CAFEEIRA
em Botafogo, Urca, Tijuca, Andaraí e Jacarepaguá.
Por volta de 1790 há registros de que os cafeeiros teriam chegado
REPETE, DE INÍCIO,
um pouco mais longe, mais exatamente à localidade de Areias, distri-
to da Vila de Lorena, e em seguida a Resende, etapa que marcaria o
início de sua trajetória ao longo da margem do rio Paraíba do Sul. A
MODELO DA CANA:
região, mais comumente conhecida como Vale do Paraíba, cobre enor-
mes porções do norte e oeste do Rio de Janeiro, do sul de Minas e CULTURA EXTENSIVA,
estende-se ainda mais a sudoeste, chegando a São Paulo. À época,
tudo mata fechada. MÃO-DE-OBRA
A produção em terras fluminenses, de início, era modesta. Es-
tima-se que em 1800 tenham sido produzidas pouco mais de 55 mil ESCRAVA E A FAZENDA
arrobas do precioso grão. Mas alguns fatores externos viriam a con-
tribuir para que o mercado internacional se abrisse e a cultura COMO UNIDADE
tomasse impulso em território brasileiro. A partir de 1791, com a
revolta da população negra no Haiti, em paralelo à abolição da PRODUTIVA
escravatura nas Antilhas e nas colônias francesas, a produção
mundial de café passaria por drástica redução, uma vez que eram
estes os principais núcleos da lavoura cafeeira. Em paralelo, ocor-
ria na Europa um impressionante aumento do consumo da bebida.
No Brasil, a chegada da família real em 1808, que veio acompa-
nhada de um séquito estimado em 15 mil pessoas, traria mudanças
profundas na economia interna do país, com o florescimento de
novas atividades de comércio para atender demandas até então
inexistentes. O país ainda passava por um período de estagnação
econômica, em razão do encerramento do ciclo do ouro. Havia,
portanto, alguma disponibilidade de recursos, a mão-de-obra es-
crava aí incluída, e o desejo dos capitalistas de encontrarem uma
nova alternativa para seus investimentos. Por essa época, inicia-se
lenta e gradualmente a migração de antigos exploradores das mi-
nas, em direção ao Vale do Paraíba e norte de São Paulo.
Consta que o Príncipe Regente Dom João VI teria incentivado
o plantio de café, tendo inclusive mandado trazer de Moçambique
sementes, que então germinavam em estufas. Nobres portugueses,
franceses exilados, partidários de Napoleão e até mesmo o bispo do
Rio de Janeiro aderem ao cultivo da planta. Na época, chega ao
país um experimentado cafeicultor francês, que tivera plantações
em Santo Domingo e em Cuba. François Lecesne adquire terras
na Gávea e ali instala a Fazenda São Luís, passando a ser um nome
de referência no que diz respeito às melhores técnicas de cultivo
do grão em terras fluminenses. Em 1808, a produção brasileira já
NA PÁGINA AO
teria ultrapassado as 80 mil arrobas.
Estava, assim, se iniciando o primeiro momento da lavoura LADO, OBRA DE

cafeeira no Brasil, que seria marcado pela repetição do modelo FREDERICO BRIGGS,
produtivo da cana-de-açúcar: cultura extensiva, mantida com tra-
INTITULADA
balho escravo, tendo a fazenda como unidade produtiva de refe-
rência. A necessidade de muitos braços para dar conta das lavou- CARREGADORES

ras de café faria aportar em território fluminense um volume con- DE CAFÉ , DE 1845

59
O ciclo do café no Brasil

siderável de escravos, tanto via intensificação do tráfico quanto ção e de uma indústria". E complementa: "O complexo cafeeiro PRODUÇÃO DO INÍCIO
pela mobilidade interna, já que o ciclo do ouro havia se encerrado passa a incluir uma pequena componente que tem como fulcro a
e havia mão-de-obra escrava ociosa em Minas Gerais e no Nor- presença de um trabalho que conjuga ao braço a capacidade de
DO SÉCULO XIX TINHA
deste. As crescentes pressões da Europa pela extinção do tráfico, consumo".
entretanto, colocariam em risco a sobrevivência das lavouras do Bem antes disso ocorrer, a província do Rio de Janeiro seria a
Rio de Janeiro a médio prazo, ameaça que mais tarde viria a se principal protagonista do mercado do café no Brasil. Com vistas a
COMO FOCO PRINCIPAL
confirmar, com a proibição definitiva da importação de escravos, atender ao crescente mercado europeu, o escoamento da produção
em 1850, e efetivamente com a Abolição da Escravatura, em 1888. do Vale do Paraíba se dava estrategicamente pelo porto da capital. O MERCADO EXTERNO
Em sua fase paulista, já próximo do final do século XIX, a cul- Tratava-se de uma tarefa árdua, com o transporte sendo feito de
tura do café encontraria uma alternativa em relação a este dilema forma lenta e penosa, em razão das distâncias e dos terrenos aciden-
enfrentado pelos grandes proprietários de terras do Rio de Janeiro: tados do vale, a serem percorridos em lombos de burros e mulas.
a força de trabalho escrava seria substituída pelo braço do imi- Quem conduzia as tropas eram tropeiros escravos ou um guia, cha-
grante europeu, em atividade remunerada. Estabeleceria-se, as- mado arreador, que percorriam várias vezes por ano os caminhos
ACIMA, A OBRA sim, uma diferença fundamental. Nas palavras de Paula Beigelmann, que iam do Vale do Paraíba à capital. Como aponta Boris Fausto,
"enquanto na economia açucareira o cultivo da cana e o fabrico "embora o hábito de consumir café se generalizasse no Brasil, o mer-
COMBOIO DE CAFÉ,
do açúcar constituem praticamente a atividade essencial única, a cado interno era insuficiente para absorver uma produção em larga
DE AUTORIA DE
economia cafeeira, no auge da expansão, dá nascimento a um com- escala. O destino dos negócios cafeeiros dependia, e ainda hoje
DEBRET (1835) plexo no qual se inserem rudimentos de uma cultura de alimenta- depende, do mercado externo". Foi a classe média, cada vez mais

60 61
O ciclo do café no Brasil

numerosa, nos Estados Unidos e na Europa, quem sustentou duran-


te anos a fama que até hoje o café brasileiro possui.
Se por um lado a produtividade alcançada pelo grão nas terras
do Sudeste brasileiro surpreendia, de outro as técnicas de cultivo
do café eram bastante rudimentares, a tal ponto que enxada e
foice eram considerados os artefatos essenciais para os cuidados
na lavoura. Em decorrência, à medida em que as terras viam re-
duzidas sua capacidade produtiva, pela erosão ou exaustão, a la-
voura extensiva levava à expansão das fronteiras, com a derruba-
da de novas florestas – inclusive a da Tijuca, no Rio de Janeiro,
que perdeu sua cobertura natural, a qual recuperaria só bem mais
tarde, a partir de 1853, com a desapropriação de fazendas, planta-
ções, sítios e chácaras. Foi em decorrência desse movimento
expansionista, rumo ao sudoeste do Rio de Janeiro, que o café
chegou a São Paulo, primeiramente na porção paulista do Vale do
Paraíba, passando por Guaratinguetá, São José dos Campos e
Taubaté, e em seguida à região do planalto, por volta de 1850,
mais especificamente Campinas, Jundiaí e Mogi-Mirim, onde o
grão encontraria condições topográficas bastante privilegiadas - e
então se consolidaria definitivamente como "ouro verde".
De comum em ambas as províncias, registre-se o fato de que, à
época, a posse de terras, do ponto de vista formal, era assunto dos
mais complexos, uma vez que as grandes extensões, herança do mo-
delo de doação de capitanias e sesmarias, seguidamente provoca-
vam rixas em razão de apropriações ilegais. Nas palavras de Boris
Fausto, prevalecia a lei do mais forte: "O mais forte era quem reunia
condições para manter-se na terra, desalojar posseiros destituídos
de recursos, contratar bons advogados, influenciar juízes e legalizar
assim a posse de terras". É de 1850 a Lei de Terras, primeiro instru-
mento legal no sentido de estabelecer a compra como único meio
legítimo de ocupação das chamadas terras devolutas. Mas a falta de
aparelhamento administrativo adequado à fiscalização não logrou
impedir o avanço das ocupações de fato.
Apesar das técnicas rudimentares, é preciso dizer que os in-
vestimentos para se estruturar uma fazenda eram significativos,
pois incluíam a derrubada da mata, o preparo da terra, o plantio,
as instalações e a compra de escravos. Como alerta Boris Fausto,
"se o cafeeiro é uma planta perene – ou seja, o plantio não precisa
ser renovado a curto prazo –, de outra parte as primeiras colheitas
NA PÁGINA
só ocorrem após quatro anos". Segundo o historiador, ao que tudo
indica, os recursos para se implantar uma fazenda se originavam,
AO LADO, A
principalmente, da poupança obtida com a grande expansão do
COLHEITA DO CAFÉ comércio, após a vinda de Dom João VI para o Brasil. "Posterior-
NO INÍCIO DO mente, foram os lucros obtidos com a própria cafeicultura e os
capitais liberados pela extinção do tráfico que se tornaram fonte
SÉCULO XIX,
de investimento", explica Fausto. APESAR DAS TÉCNICAS RUDIMENTARES, ESTRUTURAR
NA VISÃO DE Ao tempo em que as lavouras de café se espalham em territó-
LAURENT DEROY rio paulista, a porção fluminense do Vale do Paraíba segue sua UMA FAZENDA EXIGIA INVESTIMENTOS CONSIDERÁVEIS

62 63
O ciclo do café no Brasil

trajetória vertiginosa de crescimento. Se no decênio 1821-1930 o LAVOURA


café representava 18,4% dos oito principais produtos de exporta-
ção no Brasil (juntamente com açúcar, cacau, erva-mate, fumo,
FLUMINENSE, MESMO
algodão, borracha e couros/peles), na década seguinte este
percentual subiria para 43,8%. No decênio 1851-1960, com a pro-
dução no Rio de Janeiro atingindo seu ápice, o café passaria a DEPOIS DE INICIADA
representar 48,8% do perfil exportador do país, chegando ao seu
ponto máximo no século XIX entre 1891 e 1900, com 64,5%. Não é SUA DECADÊNCIA,
à toa que surgiu a expressão "o Brasil é o vale."
Dizer que a produção do Rio de Janeiro atingiu seu ponto máxi- SEGUIU RECEBENDO
mo por volta de 1860, iniciando a partir daí sua decadência, pode
dar a ideia de que o processo de depauperamento das lavouras e PREMIAÇÕES
consequente empobrecimento dos fazendeiros fluminenses foi re-
pentino e imediato, o que não corresponde à verdade. Rio de Janei- NAS EXPOSIÇÕES
ro e São Paulo, e em escala menor Minas Gerais e Espírito Santo,
estiveram lado a lado, durante muitas décadas, compartilhando a INTERNACIONAIS
riqueza gerada pelo café, ainda que a província fluminense lenta e
gradualmente tenha perdido espaço para a emergente São Paulo.
Até porque, ainda que a incidência de pragas, a exaustão das terras
e a iminente abolição da escravatura de fato tenham contribuído
para a diminuição da produtividade, surgem, a partir da segunda
metade do século XIX, diversas máquinas e equipamentos que, além
de permitirem a dispensa de parte da mão-de-obra escrava, facilita-
vam o beneficiamento do café. Brunidores, ventiladores,
despolpadores e os famosos engenhos Lidgerwood invadiram o mer-
cado brasileiro após 1862, e contribuíram para que o Rio conseguis-
se se manter com alguma dignidade no mercado do café.
Também nessa época foram realizadas grandes exposições, naci-
onais e mesmo internacionais, uma delas na Argentina, em 1882.
Nestas últimas, o Brasil se fez representar por produtos extrativistas
da Amazônia, mas principalmente com a produção da agricultura
de larga escala. Em 1876, por exemplo, o centenário da Indepen-
dência dos Estados Unidos foi festejado com uma grande exposição
na Filadélfia. Nada menos que 1.140 expositores brasileiros se fize-
ram presentes, e por lá também esteve o imperador Dom Pedro II,
que festejou a conquista de dois diplomas especiais: um para o café
e outro para as essências florestais. Além disso, outros 34 prêmios
foram conferidos aos expositores de café brasileiros, dos quais dez
eram do Rio de Janeiro, dez de São Paulo, cinco de Minas Gerais,
três de Santa Catarina e um do Paraná. É curioso constatar que
também na exposição internacional de Amsterdã, em 1883, mesmo
NA PÁGINA AO
com as lavouras fluminenses estando a caminho da extinção, foram
alguns municípios do Rio de Janeiro os melhor sucedidos na avalia- LADO, CASCATA DA

ção de amostras. Todas as medalhas de ouro foram conferidas a fa- TIJUCA, DE LOUIS-
zendeiros do Vale do Paraíba fluminense, enquanto das 11 medalhas
JULES-FRÉDÉRIC
de prata, seis ficaram com produtores do Rio de Janeiro, que ganha-
ram, ainda, oito das 15 de bronze. Paraíba do Sul, Vassouras e Juiz (1835). FLORESTA

de Fora foram os municípios que mais se destacaram. SERIA DEVASTADA

64 65
O ciclo do café no Brasil

AS FAZENDAS montado para atender as necessidades e programas de uma fazenda de AUMENTO DA


Em meio à abundância de recursos, as antigas e modestas sedes café. Todas as atividades da fazenda, cercada por um muro de alvena-
das primeiras fazendas do início do século XIX aos poucos vão sendo ria de pedra, voltavam-se diretamente para os terreiros, e apenas a DEMANDA OBRIGOU
superadas, e surgem residências notáveis, com dez, 12 ou até mais sede era isolada por jardim e pátios. A senzala havia sido construída no
janelas na fachada, muitas delas assobradadas, embasadas em pedra, ponto mais alto, em posição dominante. Na comprida tulha alpendrada,
FAZENDAS A
de solidíssima taipa e pau-a-pique. A partir de 1830, quando o café à direita do terreiro, eram executadas as tarefas de seleção e
toma a dianteira como principal produto na pauta de exportações do armazenamento. Em sua extremidade, um telheiro abrigava os equipa-
Brasil, estes estabelecimentos se transformam em centros quase autô- mentos destinados ao beneficiamento, como uma bateria de pilões, ADOTAREM A
nomos de produção. Surge, assim, a especialização como ferramenta acionada por roda d'água. À esquerda do terreiro localizava-se a resi-
gerencial dos núcleos produtivos. A força de trabalho passa a ser divi- dência do capataz ou administrador, e no mesmo alinhamento haviam ESPECIALIZAÇÃO E
dida em tarefas, como derrubada das matas, destocamento, preparo outros compartimentos de trabalho onde possivelmente se localizavam
NO ALTO, À ESQUERDA,
da terra, cuidado com os viveiros, plantio das mudas e colheita. Um engenhos de serrar, tendas de ferreiro, oficinas e olarias. Nesta fazenda DIVISÃO DO TRABALHO
VISÃO DA PRECURSORA outro grupo se dedicava às operações de lavagem, despolpamento, teria se hospedado o Príncipe D. Pedro, em sua viagem a São Paulo, em
FAZENDA PAU D’ALHO. brunimento, catação, secagem nos terreiros, ensacamento e 1822, ano em que seria declarada a Independência do Brasil. Adqui-
À DIREITA, CASA DE
armazenamento em tulhas. rida pelo Instituto Brasileiro do Café em 1970, a fazenda foi inteira-
Segundo o arquiteto e historiador Luís Saia, a Fazenda Pau d'Alho, mente restaurada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
MÁQUINAS DA FAZENDA
em São José do Barreiro, no alto Vale do Paraíba, teria sido o primeiro tístico Nacional), e nela se pretendia instalar o Museu Nacional do
RESTAURAÇÃO estabelecimento agrícola da Capitania de São Paulo especialmente Café, projeto que não se concretizou.

66 67
O ciclo do café no Brasil

CERCA DE 90 A complexidade das tarefas transformou o braço escravo em es-


teio destas organizações econômicas, que chegaram a reunir 350, 400
FAZENDEIROS e até 600 cativos, como aconteceu nas fazendas Senhora do Carmo e
Fortaleza, do Visconde de Guaratinguetá; do Resgate, do Comendador
Manuel de Aguiar Valim; Boa Vista, do seu sogro, o Comendador
PAULISTAS DE CAFÉ Luciano José de Almeida, em Bananal, e na própria Fazenda Pau
d'Alho, em São José do Barreiro, da família Ferreira de Sousa Airosa.
FORAM DISTINGUIDOS Vem daí a expressão “O Brasil é o café, e o café é o negro”.
A jornada de trabalho de um escravo começava antes de clarear
COM TÍTULOS o dia, por volta de 4 ou 5 da manhã. Às 10h, o sino da fazenda anun-
ciava o almoço, constituído basicamente de feijão, angu e farinha de
NOBILIÁRQUICOS mandioca. Às vezes, um pedaço de abóbora ou inhame, e raramente
um pedaço de carne-seca ou toucinho. Às 13h, novo intervalo para o
ENTRE 1846 E 1889 café, adoçado com rapadura, ou uma dose de cachaça, nos dias chu-
vosos; finalmente, às 16h, jantava-se o que havia sobrado do almoço.
A concessão de títulos de nobreza a fazendeiros, em parale-
lo, representava o reconhecimento de sua importância do pon-
to de vista social. Desta forma, eles passavam a figurar ao lado
de políticos, financistas, banqueiros, comerciantes e, em menor
escala, médicos, professores e escritores, membros do corpo di-
plomático, oficiais do Exército e da Marinha. Alfredo Taunay,
um dos mais destacados historiadores do café, calcula que no
sudeste brasileiro se poderiam contar até 300 titulares entre o
nobiliário imperial, o que corresponderia a cerca de 30% da
nobreza formada pela Coroa, incluindo-se aí lavradores, comis-
sários e banqueiros de fazendeiros.
O primeiro título de nobreza concedido a um fazendeiro paulista
do café teria sido concedido em 1846 ao sargento-mor Manuel
Marcondes de Oliveira e Melo, o Barão de Pindamonhangaba. Co-
mandante da Guarda de Honra de D. Pedro que acompanhou o prín-
cipe em 1822, por ocasião da proclamação da Independência, o barão
foi grande fazendeiro do café em na Fazenda Mombaça, em socieda-
de com seu irmão, o monsenhor Inácio Marcondes de Oliveira Cabral.
Cerca de 90 fazendeiros paulistas de café foram distinguidos com títu-
los nobiliárquicos entre 1846 e 1889.
A respeito da vida nas fazendas, Maria Paes de Barros, filha de
um cafeicultor de meados do século XIX, descreveu os costumes
da época, sob o ponto de vista dos fazendeiros, em um livro chama-
do No tempo de dantes. Segundo a autora, as famílias passavam o
ano na cidade, mas no inverno, na época das colheitas, desloca-
vam-se para as fazendas, carregando remédios, açúcar, farinha,
esteiras, roupas e chapéus. Os jovens iam a cavalo, e as senhoras,
NA PÁGINA AO LADO, de banguê. As crianças levavam uma vida mais solta, apesar de
FAZENDAS EM BANANAL, continuarem com aulas de francês com mademoiselle. A autora
conta que foi trabalhoso convencer o pai a comprar tapetes para a
GUARATINGUETÁ E
fazenda, pois ele achava desnecessário.
PINDAMONHANGABA, NA As famílias ficavam nas fazendas até que se acabasse o plantio e
VISÃO DE DEBRET o alinhamento do café. Enquanto isso, comiam feijão e milho plan-

68 69
O ciclo do café no Brasil

tados no local, carne de porco salgada e bebiam o café torrado e O RIO DE JANEIRO,
socado no pilão pelas escravas. Como os fazendeiros possuíam mais
de um estabelecimento, a família se deslocava de uma para outra
fazenda. Na região de Campinas, antigas fazendas ainda hoje con-
COM 522 MIL
servam sinais de sua glória passada. Os pesados sobrados de então
tinham pouca mobília, grandes mesas de madeira, serviços de por- HABITANTES EM 1890,
celana europeia, da Companhia das Índias, objetos de prata, corti-
nas com tecidos caros, lustres de cristal da Boêmia e chão de largas ERA O NÚCLEO DOS
tábuas de madeira.
DIVERTIMENTOS, BEM
QUE PAÍS ERA AQUELE
Antes de entrarmos na análise mais profunda dos dois fatores que COMO DOS MAIORES
foram determinantes na explosão da produção cafeeira paulista, na
segunda metade do século XIX – o surgimento das ferrovias e a subs- INVESTIMENTOS
tituição da mão-de-obra escrava pelo braço do imigrante europeu –,
é interessante apresentar uma breve radiografia do Brasil à época do
primeiro e segundo reinados. Do ponto de vista da população, os 4,6
milhões de habitantes registrados em 1819 passaram a 9,93 milhões
em 1872 e para 14,33 milhões em 1890. Em 1872, Minas Gerais conti-
nuava a ser a província mais povoada, com aproximadamente 2,1 mi-
lhões de habitantes, seguida da Bahia, com 1,38 milhão. Os mulatos
representavam 42% da população, os brancos ficavam com 38% e os
negros, 20%. Ainda no censo de 1872, apurou-se que somente 16,85%
da população entre 6 e 15 anos frequentava escolas. Havia apenas 12
mil alunos matriculados em colégios secundários, mas em contrapartida
estima-se que 8 mil pessoas tinham educação superior, o que denota o
abismo entre a elite letrada e a massa de analfabetos ou com educa-
ção rudimentar.
À época da chegada da família real, surgiram escolas de medicina
e engenharia na Bahia e no Rio de Janeiro, onde Dom João VI se
estabeleceu. "Mas do ponto de vista da formação da elite, o passo
mais importante foi a fundação da Faculdade de Direito de São Paulo
(1827) e de Olinda/Recife (1828). Delas saíram os bacharéis que,
como magistrados e advogados, formaram o núcleo dos quadros polí-
ticos do Império", assegura Bóris Fausto.
Cabe acrescentar, ainda, que o Rio de Janeiro, com 522 mil habi-
tantes em 1890, era o único grande centro urbano. Ali ficava o núcleo
dos divertimentos, bem como dos investimentos em transportes, ilu-
minação, embelezamento da cidade. A seguir, vinham Salvador, Re-
cife, Belém e só então São Paulo, com modestos 65 mil habitantes. NA PÁGINA AO
São Paulo, entretanto, viria a crescer a taxas geométricas anuais de
LADO, MULHER
3%, entre 1872 e 1886, e de 8%, entre 1886 e 1890.
Voltando-se a 1828, Maria Luiza Marcílio, citada por Mário PILANDO CAFÉ ,
Jorge Pires, explica por que São Paulo, impossibilitada à época de DE JOSÉ WASTH
tornar-se um centro de agricultura de exportação, acabou por trans-
RODRIGUES
EM CAMPINAS, ANTIGAS FAZENDAS AINDA CONSERVAM formar-se em local de depósito para as mercadorias da Europa e,
ao mesmo tempo, entreposto de passagem para os produtos do in- (REVISTA ILUSTRAÇÃO

SINAIS DOS SEUS TEMPOS DE GLÓRIA NO PASSADO terior da província: "Sua excepcional posição geográfica foi-lhe BRASILEIRA , 1927)

70 71
O ciclo do café no Brasil

vantajosa. Pela cidade transitavam as grandes tropas, que dos ter- os nomes por que eram conhecidos. Aparentemente a ordem não SURGIMENTO
ritórios do Viamão e de Curitiba dirigiam-se para os mercados do foi cumprida, pois em 1846, segundo aponta novamente Mário Jor-
Rio de Janeiro e zonas mineiras, das Gerais. A produção de açúcar ge Pires, o Marechal Lima e Silva "recomendou numerar todas as DAS FERROVIAS
das vilas do interior da Capitania (particularmente de Itu, Porto casas e intitular-lhes as ruas, consoante a prática adotada em to-
Feliz, Campinas e Piracicaba) passava pela Capital rumo ao porto das as cidades civilizadas."
TRANSFORMOU
de Santos. No sentido inverso, as mercadorias provenientes de É nesse momento histórico, ou seja, a segunda metade do sécu-
Portugal e de outras partes da Europa chegavam a São Paulo por lo XIX, em que o Rio de Janeiro ainda segue pontificando como
intermédio do Rio ou de Santos: elas eram destinadas, ora à pró- mais importante núcleo urbano do país, que começam a surgir as COMPLETAMENTE
pria cidade, ora à provisão do interior". Mário Jorge Pires acres- ferrovias, as quais transformariam completamente o cenário urba-
centa que, segundo a mesma autora, "esse foi o motivo pelo qual no e econômico do Centro-Sul. A sobrevida do Vale do Paraíba OS CENÁRIOS
acabou desenvolvendo-se na cidade uma classe de mercadores, como centro produtor e exportador de café, por exemplo, se deve
por vezes até poderosa, e assim nasceu o espírito de empresa entre em grande parte à inauguração, em 1858, da primeira estrada de URBANOS DO PAÍS
os habitantes de São Paulo." ferro do país. A Sociedade de Estradas de Ferro Pedro II, que daria
ACIMA, A FAZENDA Curioso apontar também que em 1809, segundo Alcântara Ma- origem à atual Central do Brasil, ligava as fazendas do Vale do
chado, não havia nomenclatura nas ruas e numeração dos prédios Paraíba, do sudeste de Minas Gerais e do norte de São Paulo ao
PARAÍBA DO SUL,
da cidade. Foi nesse ano que, de ordem do Ouvidor Geral e com o porto do Rio de Janeiro. Como aponta Mário Jorge Pires, "as cida-
EM TRABALHO DE
propósito de facilitar o lançamento da décima urbana, a Câmara des formadas à margem do rio Paraíba sempre estiveram mais vin-
H. CLERGET (1861) mandou numerar os prédios e inscrever nos logradouros públicos culadas ao Rio de Janeiro do que a São Paulo, e isto vale não só

72 73
O ciclo do café no Brasil

para Vassouras, Pati do Alferes, Barra do Piraí, em terras fluminenses,


como também para Bananal, Areias, Lorena e tantas outras, já em
território paulista e próximas à capital".
Com a inauguração da ferrovia, primeiramente ligando Barra do
Piraí ao Rio, o vínculo destas localidades com a Corte tornou-se ain-
da mais estreito. O escoamento da produção das cidades paulistas,
que era feito quase que exclusivamente pelos portos do litoral norte
da província, e só depois chegando à então capital do país, para dali
seguir para a Europa, tornou-se ainda mais intenso graças à ferrovia.
Com uma mudança importante, do ponto de vista cultural e social:
como o preço de uma passagem de trem era insignificante e a viagem,
bastante rápida, os fazendeiros do Vale do Paraíba, sediados tanto em
território fluminense quanto paulista, começaram a passar férias no
Rio, fazendo lá suas compras, indo à ópera e comprando ou mesmo
mandando construir residências particulares na sede da Corte.
Fenômeno semelhante se daria em São Paulo, a partir da cons-
trução da São Paulo Railway, em 1866. A estrada de ferro ligava
Santos à capital paulista, e foi resultado de investimento de capi-
tal inglês. Já no ano seguinte, a extensão da ligação da capital até
Jundiaí fomentaria a concentração das atividades urbanas em São
Paulo. Como para os ingleses não havia interesse em prolongar a
ferrovia além daquele ponto, coube a fazendeiros e capitalistas
financiarem novos trechos. Estava nascendo, assim, a Companhia
Paulista, que em 11de agosto de 1872 inaugurava o trecho ligando
ACIMA, DUAS VISÕES DE Jundiaí a Campinas, numa extensão de 45 quilômetros. Os barões
de Itapetininga, de Limeira, de Piracicaba, de Cascalho, de Tietê,
CARLOS LINDE SOBRE A
de Atibaia, de Souza Queiroz, de São João do Rio Claro, de
ESTRADA DE FERRO D. Antonina e de Itatiba, ao lado dos viscondes de Vergueiro e de
PEDRO II. NA PÁGINA AO Indaiatuba, mais Martinho Prado, Luiz Antonio de Souza Barros,
LADO, UMA VISTA GERAL
os irmãos Souza Aranha, Antonio Pompeu de Camargo, Floriano
de Camargo Penteado, entre outros, são nomes que surgem nas
DA IMPERIAL CIDADE DE
reuniões preliminares de fundação da empresa.
SÃO PAULO, EM 1870 A febre de escoamento da produção cafeeira por via férrea
toma conta, por essa época, de toda a província. Em 1873, é inau-
gurada a ferrovia Ituana, ligando Itu a Jundiaí, tendo à frente,
entre outros, os fazendeiros José Elias Pacheco Jordão e o Conde
Parnaíba (Antonio de Queiroz Telles); em 1875, é a vez da
Sorocabana e da Mojiana, a primeira ligando São Paulo a Sorocaba
e a segunda entre Campinas e Mogi-Mirim, por iniciativa das fa-
mílias Souza Aranha e Queiroz Telles. Em paralelo, uma interes-
sante malha rodoviária servia como apoio para que a produção
chegasse mais celeremente até o porto de Santos, que vai suplan-
tando o do Rio de Janeiro ao longo do tempo.
Como bem explicita Mário Jorge Pires, em sua obra Sobrados e
barões da velha São Paulo, "a ferrovia ampliou o comércio de outros
bens e, principalmente, reduziu a distância da capital até a fazen- AS FERROVIAS DIMINUÍRAM AS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO À
da. Antes, as comunicações eram tão precárias que se tornava
difícil para um mesmo proprietário supervisionar duas ou mais la- CAPITAL E INCENTIVARAM O COMÉRCIO DE OUTROS BENS

74 75
O ciclo do café no Brasil

vouras um pouco distantes entre si. Isso obrigava os fazendeiros a


residirem grande parte do tempo nas próprias terras ou nos gran-
des sobrados construídos nas cidades".
Por essa época, como aponta Thomas H. Holloway no impres-
cindível estudo Imigrantes para o café, "o telégrafo, que acompa-
nhou as ferrovias, permitiu que a elite de fazendeiros e comercian-
tes se comunicasse rapidamente, vencendo as distâncias que se-
paravam a fronteira do café, a Capital e o porto de Santos. Jornais
locais e conversas ao pé-de-ouvido, da venda da roça ao Jockey
Club, serviam para estender a rede de comunicação. Mudanças
no preço do café, a abertura de uma nova linha ferroviária, um
contrato do governo estadual para subsidiar mais imigrantes, os
danos da geada na zona da Alta Sorocabana, a escassez de mão-
de-obra da Mogiana, a chegada de um navio de imigrantes – tudo
se tornava parte de um corpo comum de conhecimentos no planal-
to ocidental."
Ademais, a estrada de ferro revolucionou o transporte e ex-
pandiu grandemente a área de fácil acesso à costa. "O oeste de
São Paulo, antes uma selvagem área de fronteira cruzada pelos
bandeirantes, parcamente povoada por índios e lavradores brasi-
leiros, que produziam alimentos, gado e algum açúcar, tornou-se o
centro dinâmico da lavoura cafeeira do Brasil. Do ponto de vista
da escala de produção, a era do Vale do Paraíba empalidece, em
comparação com o desenvolvimento no oeste de São Paulo nas
décadas subsequentes."
O estabelecimento da ligação direta entre São Paulo e Rio de
Janeiro, concluído em 1877, traria impactos que ultrapassariam as
questões produtivas. É importante ressaltar que a possibilidade de
contar com transporte e escoamento mais ágil das safras contri-
buía na melhoria da qualidade do café exportado, com a
consequente valorização dos preços. Acontece que, no plano da
cultura e da sociedade, passa a haver uma mais rápida circulação
de livros, jornais e revistas editados, até então privilégio quase
que exclusivo de quem morava na Corte. Aqueles que se dedica-
vam às artes e aos espetáculos agora podiam deslocar-se em rápi-
das viagens de apenas 15 horas entre Rio e São Paulo, onde podi-
am encontrar novos públicos. Para se ter uma ideia do impacto
cultural que a ligação férrea proporcionou, apenas de 1877 a 1888
a cidade de Pindamonhangaba, então com pouco mais de 15 mil
habitantes, recebeu a visita de uma companhia lírica italiana, uma
companhia espanhola de zarzuelas, uma companhia inglesa de pan-
MAPA DO RIO E DE SÃO PAULO MOSTRA O TRAÇADO DA FERROVIA LIGANDO OS DOIS ESTADOS, ENTÃO PROVÍNCIAS

AQUELES QUE SE DEDICAVAM ÀS ARTES PODIAM DESLOCAR-SE EM VIAGENS DE APENAS 15 HORAS ENTRE RIO E SÃO PAULO

76 77
O ciclo do café no Brasil

tomimas, com 80 crianças, um circo e quatro companhias profissi- extensas e produtivas fazendas de café do mundo. Em Campinas, as ABOLIÇÃO IMINENTE
onais de teatro declamado, fato notável para a época e para uma culturas estendiam-se em largas superfícies uniformes, cobrindo a
pequena localidade como aquela. paisagem a perder de vista e formando os famosos "mares de café". Por DA ESCRAVATURA
ser uma região plana, a cultura cafeeira sofria menos com o esgota-
A ERA PAULISTA E OS IMIGRANTES mento do solo. Na zona de Ribeirão Preto, Francisco Schmidt, que
OBRIGOU
Do ponto de vista da produtividade das lavouras paulistas, chegou ao Brasil em 1858 com nove anos de idade e trabalhou como
Holloway enfatiza que as condições naturais do oeste de São Paulo colono, chegou a possuir 50 fazendas. Sua fortuna só seria fortemente
eram (e ainda são) excelentes para o café. Uma camada de lava diábase, abalada no século XX, com a crise mundial de 1929. Do extremo- FAZENDEIROS DE SÃO
que um dia cobriu grande parte da área, se decompôs num solo poro- oeste paulista, o café chegaria posteriormente também ao Paraná.
so, rico em ferro e potássio, de que a planta do café precisa. Em algu- Ferrovias implantadas e terras produtivas à parte, acontece que a PAULO A BUSCAREM
mas áreas de maior concentração, tal solo adquire uma aparência escravidão no Brasil estava com os dias contados. A partir de 1850,
ACIMA, DUAS VISÕES
purpurina. Essa é a terra roxa, pela qual São Paulo se tornou famoso havia sido proibido o tráfico de escravos da África, e desde 1871 os ALTERNATIVA
DA FAZENDA IBICABA. À entre as regiões cafeeiras do mundo. "Apenas cerca de 2% do planal- filhos de cativos nascidos no Brasil eram considerados libertos (Lei do
ESQUERDA, DESENHO to, no entanto, são cobertos pela verdadeira terra roxa. Uma área Ventre Livre). Com a iminente alteração nas relações de poder entre DE MÃO-DE-0BRA
muito maior tem solos vermelhos, chamados massapê e salmourão, senhores e escravos, o que poderiam fazer os fazendeiros para segui-
LITOGRAFADO. À
quase tão bons quanto a terra roxa. (...) Mesmo nos solos menos fér- rem prósperos e abastados, imaginando-se que perderiam quase que
DIREITA, QUADRO DE teis o clima é favorável ao café". de sopetão a enorme força de trabalho necessária para manter produ-
HENRIQUE MANZO Foi na região da Alta Mogiana, a propósito, que surgiram as mais tivas suas lavouras, a exemplo do que já acontecia no Rio de Janeiro?
O ciclo do café no Brasil

Pois os paulistas encontraram uma solução que não apenas facilitou


a transição do período da escravatura para o da sociedade livre, como
também tornou possível uma tremenda expansão da lavoura cafeeira
nas décadas seguintes. A imigração em massa de trabalhadores vin-
dos especialmente do Norte da Itália para a fronteira ocidental de
São Paulo era esta saída, possibilidade que não era viável para os
fazendeiros fluminenses, por falta de recursos.
O precursor nas experiências com mão-de-obra imigrante havia
sido o senador Nicolau Vergueiro, proprietário da Fazenda Ibicaba,
em Limeira. Foi ele quem, por volta de 1840, contratou, em regime
de parceria, imigrantes portugueses, alemães, suíços e de outras na-
cionalidades, para trabalhar em suas terras. Poderia ter sido o início
bem-sucedido da imigração dirigida para São Paulo, mas nem tudo
deu certo. Dívidas resultantes das despesas de viagem, de compras
de gêneros adquiridos no armazém da fazenda, mediante o paga-
mento de juros, o custo do transporte do café em lombo de burro,
bem como a desorganização, a falta de planejamento e o comporta-
mento autoritário do proprietário nas relações com os colonos, moti-
varam muitas denúncias de uma relação desigual, provocando re-
volta e indignação na Europa, ao ponto de alguns países terem deci-
dido proibir a imigração para o Brasil.
Apesar desta tentativa frustrada, outras iniciativas mais consis-
tentes de fomento à imigração foram surgindo, e isso ainda antes do
anúncio oficial do fim da escravidão. Em agosto de 1871, surgiu em
São Paulo a Associação Auxiliadora da Colonização e Imigração.
Leis provinciais autorizarvam um apoio financeiro de até 900 contos
de réis para apoiar ações que visassem a atrair imigrantes. Já em
1881, a Assembleia Provincial organizou uma comissão para planejar
a instalação de uma hospedaria para receber os imigrantes. O pré-
dio, adquirido no bairro do Bom Retiro, apesar de ter sido remodela-
do em 1883, tinha capacidade para apenas 500 pessoas e estava loca-
lizado em ponto distante das ferrovias. Dois anos depois, foi liberada
nova verba, desta feita de 100 contos de réis, para a construção da-
quela que viria a ser a Hospedaria de Imigrantes, inaugurada em
1888, com capacidade para abrigar 4 mil imigrantes e localizada em
um ponto privilegiado: a junção das estradas de ferro que penetra-
vam na cidade de São Paulo, vindas do Rio de Janeiro e de Santos.
Como desde o início da década de 1880 já havia críticas à ma-
neira como os imigrantes eram tratados no Brasil, inclusive com a
edição de uma circular assinada pelo governo italiano descrevendo
São Paulo como "terreno inóspito e insalubre", em 1886 foi criada a
NA PÁGINA AO LADO,
Sociedade Promotora da Imigração, cujo sucesso se deve em grande
FOTO DA HOSPEDARIA medida a Martinho Prado Júnior, seu primeiro presidente. Senhor de
DE IMIGRANTES, escravos, fazendeiro de café, com simpatias políticas republicanas e
COM 4 MIL VAGAS E
representante da zona da Mogiana, que se encontrava em franca
expansão e, portanto, estava muito necessitada de mão-de-obra, Prado A EXPERIÊNCIA FRUSTRADA DE VERGUEIRO NÃO IMPEDIU
LOCALIZADA EM PONTO
Júnior foi figura-chave na transição para o trabalho livre assalariado.
ESTRATÉGICO Uma das primeiras iniciativas para reverter a imagem ruim do QUE SURGISSEM OUTROS MODELOS DE RELACIONAMENTO

80 81
O ciclo do café no Brasil

ABAIXO, TRANSPORTE Brasil na Europa foi a edição de um folheto de 60 páginas, com capa
DE SACAS DE CAFÉ NO colorida e brilhante, tendo no miolo um grande mapa desdobrável de
São Paulo. Foram impressas nada menos que 80 mil cópias, nas versões
PORTO DE SANTOS. NA
em português, italiano e alemão. Além de afirmar que em São Paulo
PÁGINA AO LADO, "a maneira de vestir, mobiliar as casas e alimentar-se" estava em con-
IMIGRANTES EM FRENTE sonância com os costumes europeus, o material arrolava as facilidades
À HOSPEDARIA
que estariam à disposição dos imigrantes, como transporte do Rio de
Janeiro ou de Santos até São Paulo, comida para até oito dias e aloja-
mento na hospedaria recém-inaugurada, incluindo tratamento médi-
co gratuito e transporte ferroviário também inteiramente custeado
até o destino final dos viajantes, no interior da província.
Como aponta Holloway, as entradas anuais de imigrantes eram
em média inferiores a 6 mil no período entre 1882 e 1886. Com as
medidas anunciadas, chegaram mais de 32 mil deles em 1887, núme-
ro que pulou para quase 92 mil em 1888. Era apenas o começo: "De
1889 ao início do século seguinte, chegaram quase 750 mil estrangei-
ros a São Paulo, dos quais 80% subsidiados. Da abolição à depressão
de 1929, entraram perto de 2,25 milhões de imigrantes na província,
que em 1886 contava com uma população de 1,25 milhão de habitan- DA ABOLIÇÃO À DEPRESSÃO DE 1929, MAIS DE 2
tes", aponta Holloway.
Nem tudo correu às mil maravilhas na hospedaria, como, aliás, MILHÕES DE IMIGRANTES DESEMBARCARAM NO BRASIL
seria de se imaginar, diante de tal volume de viajantes recém-chega-
dos. A desorganização imperava, e não foram poucos os casos de óbi-
O ciclo do café no Brasil

ACIMA, IMIGRANTES TRABALHAM NA COLHEITA. NA PÁGINA AO LADO,

O TRABALHO DE SEPARAÇÃO DOS GRÃOS EM FAZENDA

tos, em especial de crianças, devido às más condições de higiene do


local. Ainda assim a hospedaria cumpriu relevante papel.
Diante do excelente retorno da propaganda feita na Europa,
tecendo loas às condições de vida e perspectivas de trabalho no
Brasil – que encontrou acolhida em especial na Itália, país que
passava por uma forte crise de emprego no final dos século XIX –,
surgiu um dilema: como os fazendeiros poderiam ter certeza de
que os imigrantes que aportavam em Santos ou no Rio de Janeiro
efetivamente seriam produtivos nas lavouras? De que forma pode-
riam assegurar-se, por exemplo, que entre os viajantes não haveria
SUBSÍDIOS PARA cidadãos oriundos de zonas urbanas, em busca de melhores condi-
ções de vida em relação ao que se passava na Europa, de economia
IMIGRANTES QUE deprimida? Na prática, não havia de fato como comprovar se a
declarada profissão de agricultor correspondia à realidade. Foi as-
BUSCAVAM OS sim que se decidiu estabelecer alguns critérios, a partir do atendi-
mento dos quais seriam garantidos aos estrangeiros os subsídios
CONTRATOS DE financeiros prometidos: todos aqueles que pretendessem vir para o
Brasil sob contrato de trabalho deveriam fazer parte de unidades
familiares cuidadosamente definidas. Só eram admitidos, portan-
TRABALHO ERAM
to, casais com menos de 45 anos sem filhos; casais com filhos ou
pupilos, com ao menos um homem em idade ativa por família, e
RESTRITOS ÀQUELES viúvos ou viúvas com filhos ou pupilos, com pelo menos um homem
em idade ativa por família. Entre os dependentes da família que
QUE FAZIAM PARTE DE podiam ser incluídos na passagem subsidiada estavam pais, avós,
irmãos solteiros e cunhados e sobrinhos órfãos do chefe da família.
UNIDADES FAMILIARES Uma vez instalados nas fazendas paulistas, haviam alguns ou-

84
O ciclo do café no Brasil

A CHAMADA tros pontos sensíveis a serem atacados para que a relação de par-
ceria prosperasse. Como salienta Holloway, "a renda monetária do
CLÁUSULA DE CULTIVO trabalhador dependia da produtividade dos pés de café sob seus
cuidados, mas também dos preços do café no mercado. Embora os
contratos previssem que os parceiros dividiriam igualmente as even-
DE ALIMENTOS ERA
tuais perdas na lavoura, na prática apenas em condições muito
severas o dono da terra perdia parte do seu investimento. O par-
UM INCENTIVO PARA ceiro agricultor, bem ao contrário, por mais que se empenhasse,
dificilmente conseguia exceder o nível da subsistência, e logo caía
QUE MAIS E MAIS em débito com os proprietários das terras. Para os recém-chegados
italianos, uma geada violenta ou eventual baixa de preços no mer-
FAZENDAS SURGISSEM cado cafeeiro não significavam apenas lucros menores ou perda de
investimento: eram de fato uma ameaça a seu meio de vida".
Portanto, para que a política de atração de imigrantes efetiva-
mente desse resultados, de pronto os proprietários das fazendas perce-
beram que a lógica de relacionamento com aquela mão-de-obra es-
trangeira teria de ser completamente distinta do modelo escravocrata.
Em lugar de coerção, era preciso investir em uma política de incenti-
vos adequados. Foi assim que uma reivindicação bastante comum
entre os colonos terminou por ser atendida – e ao mesmo tempo esti-
mulou que as fronteiras do café se expandissem continuamente. Como
mencionado anteriormente, os ganhos decorrentes da dedicação ex-
clusiva dos colonos ao café eram instáveis, pois eles estavam perigosa-
mente sujeitos às variações de mercado, oscilações de preço, de clima
etc. Em compensação, se lhes fosse dado o direito de plantar milho e
feijão entre as fileiras de pés de café, poderiam assegurar ao menos
sua subsistência e, quem sabe, algum excedente. Além disso, como
um cafeeiro em geral precisa de quatro anos até a primeira safra,
momento a partir do qual o pé de café passa efetivamente a competir
pelos nutrientes da terra, de tempos em tempos os imigrantes se dispu-
nham, e em alguns casos até mesmo exigiam, mudar de terras, de
maneira a que fosse possível reiniciar o ciclo em outras fazendas que
viessem a ser adquiridas pelos grandes proprietários, onde poderiam
manter novas lavouras de subsistência em meio aos cafezais.
A chamada cláusula de cultivo de alimentos, assim, operava
como incentivo para que os fazendeiros implantassem novos esta-
belecimentos, a fim de seguirem atraindo e mantendo uma força
de trabalho que, mesmo sendo abundante – mais e mais imigran-
tes seguiam chegando a Santos –, era, de outra parte, móvel. Os
trabalhadores do café já instalados no Brasil conheciam a reputa-
ção individual dos fazendeiros, sabendo distinguir aqueles que efe-
NA PÁGINA AO
tivamente cumpriam sua palavra dos que ainda se apegavam ao
LADO, VISÃO DO modelo de coerção do tempo da escravatura, e, assim, não tinham
TERREIRO DE UMA pudores em romper os contratos, caso as condições de trabalho
FAZENDA DE CAFÉ
não fossem as mais adequadas, buscando outros parceiros.
Se de um lado o crescimento da economia cafeeira era visível até
DO INÍCIO DO
mesmo ao observador mais casual, menos óbvia foi uma mudança qua-
SÉCULO XX litativa resultado da experiência imigratória no oeste paulista. Como

86
O ciclo do café no Brasil

descreve Holloway, "ao lado dos brasileiros proprietários de grandes A CONTRIBUIÇÃO DOS
fazendas, a estrutura social rural apresentava um crescente número
de sítios pequenos e médios, adquiridos por imigrantes de primeira
IMIGRANTES NO
geração". Alguns estrangeiros residentes, bem-sucedidos no comér-
cio ou na indústria, adquiriram propriedades rurais, mas também muitos
dos imigrantes que se tornaram proprietários de fazendolas operadas ENRIQUECIMENTO DOS
pelo trabalho começaram provavelmente como colonos do café". Nas-
cia, assim, diferentemente do modelo baseado na mão-de-obra escra- FAZENDEIROS
va, o embrião de um mercado consumidor cuja renda significaria o
fomento de toda a economia da província. Em paralelo ao nascimento PAULISTAS SE DEU
desta classe de pequenos e médios proprietários, uma boa parte dos
imigrantes optou por se dirigir para os núcleos urbanos. TAMBÉM DE FORMA
PARA ALÉM DOS ITALIANOS NAS LAVOURAS MARCANTE NOS
O senso comum costuma associar o fluxo imigratório do final do
século XIX e início do século XX aos italianos, o que não deixa de NÚCLEOS URBANOS
corresponder aos fatos, pois estes se constituíram no maior grupo de
uma única nacionalidade. As estatísticas apontam, entretanto, que
entre 1887 e 1930, os italianos representaram menos da metade de
todos os imigrantes, ainda que fossem o grupo preponderante – eles
eram 46% de todos os imigrantes (percentual fortemente influencia-
do pelo período 1887-1900, quando chegaram a corresponder a 73%
do total). Se contabilizado apenas o período 1900-1930, é possível ve-
rificar que a distribuição das nacionalidades foi mais diversificada.
Os italianos eram 26% do total, enquanto os portugueses eram 23% e
os espanhóis, 22%. As outras nacionalidades alcançaram 28%. Na
última categoria, o mais importante grupo foi o de japoneses, que
começaram chegando em pequeno número, em 1908, e se transfor-
maram em uma corrente contínua, depois de 1917. Entre 1911 e 1930,
cerca de 96 mil japoneses imigraram para São Paulo, juntando-se a
portugueses, espanhóis e italianos no trabalho nas fazendas de café.
Outro grupo com papel relevante foi o dos sírios-libaneses, que
entre 1911 e 1920 chegaram em número de 18 mil a São Paulo. Al-
guns deles sem dúvida trabalharam nas lavouras, mas os sírios eram
mais comumente identificados com o comércio itinerante de miude-
zas. Forneciam boa parte dos utensílios domésticos e outras mercado-
rias que os trabalhadores das fazendas consumiam.
A contribuição de imigrantes de diversas nacionalidades, que
teve como resultado o enriquecimento dos fazendeiros paulistas,
se deu também de forma marcante nos núcleos urbanos, em espe-
cial na capital. Sobretudo a partir da proclamação da República,
MULHERES PENEIRAM O CAFÉ JUNTO AOS CAFEEIROS
em 1889, São Paulo valeu-se da autonomia adquirida a partir dos
conceitos de federação. Assim, a "europeização" da elite paulista,
que já se verificava mesmo antes da inauguração das vias férreas
ligando a capital a Santos ou ao Rio de Janeiro, intensificou-se. A
ESTRUTURA SOCIAL RURAL APRESENTAVA CRESCENTE NÚMERO paisagem urbana passa a sofrer as influências de imigrantes arqui-
tetos, mestres de obras (os capomastri), artífices qualificados de
DE SÍTIOS PEQUENOS E MÉDIOS AO LADO DAS FAZENDAS várias nacionalidades, que afluíram para a cidade.

88 89
O ciclo do café no Brasil

No que tange aos grandes fazendeiros, há registros de que boa de Saint-Cloud para praticar esportes aéreos, efetuando vários voos A MORADIA PASSOU
parte deles costumava passar o inverno na Capital com suas famílias, em balões e aeroplanos.
dispendendo grandes somas naquela que era o centro da vida espiri- É no final do século XIX que nasce a moda de morar com re- A REPRESENTAR O
tual, social e comercial do estado. Lenta e gradualmente, as famílias quinte. Foi o caso de Veridiana Silva Prado, filha do Barão de Iguape,
ricas começam a dedicar mais tempo a São Paulo, em especial filhos e cuja família morava em uma casa de taipa do século XVIII, encosta-
netos dos primeiros barões do café. Com sua presença, a cidade ganha da à igreja da Consolação. Pois em 1884 Veridiana manda construir
SÍMBOLO PELO QUAL
ares mais sofisticados. Como atesta Mário Jorge Pires, "entre os novos um enorme palácio em Higienópolis. "A moradia passou a represen-
hábitos estava o de empregar extensa criadagem estrangeira: tar, de forma saliente, o símbolo pelo qual os fazendeiros expressa- OS FAZENDEIROS
governantas alemãs e francesas, pajens, mordomos, criados para dife- vam sua incontestável posição de elite econômica, social e, pela
rentes e específicas funções. O requintado costume europeu de pas- adoção do novo estilo de vida, também cultural", atesta Pires. E EXPRESSAVAM SUA
ACIMA, À ESQUERDA,
sear a cavalo tinha seus mais frequentes apreciadores em São Paulo complementa: "Alemães, franceses, italianos e demais imigrantes
RESIDÊNCIA DE
entre os netos e bisnetos do Barão de Iguape que, segundo consta, de outras nacionalidades edificaram residências com bases nos mais INCONTESTÁVEL
MARTINHO PRADO JR saíam pela Avenida Higienópolis, subiam a Consolação ou a Avenida variados estilos. (...) São Paulo tornou-se cosmopolita não apenas
EM SÃO PAULO. Angélica, para daí atingirem a Paulista." E acrescenta Pires: "Esse porque nela vivia grande quantidade de imigrantes de várias naci- POSIÇÃO DE ELITE
grupo de Higienópolis introduziu, por meio de seu prestígio social, onalidades, mas porque a aparência da cidade também tornou-se
À DIREITA, O PALÁCIO
várias novidades na cidade, como o ciclismo, o futebol, o automobilis- eclética, dada a variedade arquitetônica que ocorreu, principal- ECONÔMICA E SOCIAL
DE VERIDIANA mo (...) e os esportes aéreos. Antonio Prado Jr. e os filhos do Conde mente, no final do período do café.".
SILVA PRADO Álvares Penteado, Silvio e Armando, tinham um apartamento perto Ainda segundo Mário Jorge Pires, não há dúvida de que muitos

90 91
O ciclo do café no Brasil

descendentes de fazendeiros mudaram-se para bairros como Campos trial teve variantes. Alguns partiram quase do nada, beneficiando-se OS IMIGRANTES
Elíseos e Higienópolis, assim como para a Avenida Paulista, mas o das oportunidades abertas pelo capitalismo em formação em São Pau-
autor argumenta que as três regiões estavam longe de ser um reduto lo e no Rio Grande do Sul. Outros vislumbraram oportunidades na TIVERAM PAPEL
exclusivo dos fazendeiros do café. Especificamente no caso da Aveni- indústria, por serem importadores. Essa atividade facilitava contatos
da Paulista, inaugurada em 8 de dezembro de 1891, Pires assevera para importar maquinaria e era uma fonte de conhecimento sobre
que, desde o início, a avenida manteve a tendência de tornar-se um onde se encontravam as possibilidades de investimento mais lucrati-
DECISIVO TAMBÉM
reduto, não de fazendeiros, mas de todo e qualquer imigrante enri- vo. Os dois maiores industriais italianos de São Paulo – Matarazzo e
ACIMA, À ESQUERDA, A quecido. "Apesar de nela residir em 1903 o então rei do café, Francis- Crespi – começaram como importadores." NAS EMPRESAS
RECÉM-INAUGURADA co Schmidt, considerado, em certa época, o maior produtor de café
do universo, segundo Afonso de Taunay, a avenida abrigou, sobretu- A CRISE DA SUPERPRODUÇÃO MANUFATUREIRAS DA
AVENIDA PAULISTA.
do, as fortunas de estrangeiros e seus descendentes, saídas da indús- A explosão da produção do café nos inícios do século XX era
À DIREITA,
tria, do alto comércio e da prestação de serviços". inevitável, e foi decorrência da incidência de diversos fatores eco- CAPITAL. EM 1893, EM
COMENDADOR LUCIANO Também a respeito dos imigrantes que preferiram os núcleos urba- nômicos e sociais: os grandes proprietários estavam capitalizados e
JOSÉ DE ALMEIDA E nos, atesta Bóris Fausto que "tiveram papel fundamental nas empresas portanto não havia por que deixarem de investir na aquisição de 70% DELAS HAVIA
manufatureiras da capital, nas quais, em 1893, 70% de seus integran- novas terras; o volume de imigrantes que escolhiam o Brasil para
MARIA JOAQUINA DE
tes eram estrangeiros. Na indústria do Rio de Janeiro, a porcentagem trabalhar seguia crescente, garantindo-se, assim, mão-de-obra ESTRANGEIROS
ALMEIDA, EM era menor, mas, mesmo assim, muito expressiva: 39% em 1890". Ainda abundante; o oeste paulista, onde o café encontrou excepcional
RETRATOS DE 1849 segundo Fausto, "o caminho do imigrante para a condição de indus- condição geográfica e climática, seguia oferecendo áreas ainda

92 93
O ciclo do café no Brasil

não exploradas. Com isso, a produção brasileira, que havia pulado


de 3,7 milhões de sacas de 60 quilos, em 1880-81, para 5,5 milhões,
em 1890-91, alcançaria nada menos que 16,3 milhões, em 1901-
02. Nas palavras de Celso Furtado, "as condições excepcionais que
oferecia o Brasil para essa cultura valeram aos empresários brasi-
leiros a oportunidade de controlar três quartas partes da oferta
mundial desse produto. Essa circunstância é que possibilitou a ma-
nipulação da oferta mundial de café".
Mas como seria possível alcançar-se a valorização dos preços,
diante de tão abundante oferta? Furtado acrescenta: "Os empre-
sários brasileiros logo perceberam que (...) tudo de que necessita-
vam eram recursos financeiros para reter parte da produção fora
do mercado, isto é, para contrair artificialmente a oferta. (...) A
ideia de retirar do mercado parte desses estoques amadurece cedo
no espírito dos dirigentes dos estados cafeeiros, cujo poder político
e financeiro fora amplamente acrescido pela descentralização re-
publicana." É neste contexto que surge o famoso Convênio de
Taubaté, celebrado em fevereiro de 1906, quando se definem as
bases da política de "valorização" do produto. Sinteticamente, o
convênio previa que o governo compraria os excedentes da produ-
ção, e que o financiamento dessas compras se faria com emprésti-
mos estrangeiros. O serviço destes empréstimos seria coberto com
um novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café expor-
tada. Por fim, o documento previa que, a fim de solucionar o pro-
blema a longo prazo, os governos dos estados produtores deveriam
desencorajar a expansão das plantações.
Como em um primeiro momento os preços do café voltaram a
patamares atraentes, e considerando que não havia melhor opção
de investimento, os capitalistas brasileiros seguiram aportando re-
cursos na produção de café. E assim criou-se um círculo vicioso.
Com as medidas artificiais de proteção que se sucederam, a pro-
dução exportável de café vivenciou nova explosão. Entre 1925 e
1929, ano da crise mundial, o crescimento foi de quase 100%: au-
mentou de 15,761 milhões de sacas para 28.942 milhões. Uma fes-
ta que duraria pouco, mas ainda assim geraria muita riqueza.
Em meio ao conturbado período, surgiu em Santos, desde fi-
nais do século XIX o maior porto exportador de café do país, a
Bolsa Oficial de Café. O projeto se iniciou em 1914. A Bolsa co-
meçou a operar efetivamente a partir de 28 de abril de 1917, inicial-
mente em salão alugado no centro da cidade. O expediente en-
volvia aspectos ligados à organização e centralização de operações
comerciais, informações e registros de negociações realizadas pe-
NA PÁGINA AO los corretores de café no mercado e serviço de classificação do
LADO, IMAGEM DO produto. O período de funcionamento na parte térrea do edifício
PREGÃO DOS
situado na esquina das ruas XV de Novembro e Santo Antônio
(atual Rua do Comércio) foi de poucos anos. Apenas o suficiente COM AS MEDIDAS ARTIFICIAIS DE PROTEÇÃO, A PRODUÇÃO
NEGÓCIOS NA
para a conclusão das obras da grandiosa sede própria da Bolsa,
BOLSA DE SANTOS inaugurada pelo Governo do Estado de São Paulo em 1922. EXPORTÁVEL DE CAFÉ VIVENCIOU NOVA EXPLOSÃO

94 95
O ciclo do café no Brasil

A construção revela a arquitetura típica do ecletismo que ca- da Bolsa Oficial de Café foi oficialmente tombado pelo Instituto COM GETÚLIO NO
racterizou as mais importantes obras do período. Cúpulas de cobre, do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com fluxo
grandes figuras escultóricas, vitrais, mosaicos de mármore e robus- diário de 600 pessoas e venda de aproximadamente 450 xícaras PODER, TENDÊNCIA À
tas colunatas de granito são expressões de riqueza e prosperidade de café por dia, a Cafeteria do Museu é premiada pela Associa-
do ciclo cafeeiro no país e, ao mesmo tempo, representam a ção Brasileira da Indústria de Café (Abic) com o status Premium,
materialidade do desejo de converter o edifício da Bolsa no "Palá- dentro do programa Circulo do Café de Qualidade, de
CENTRALIZAÇÃO DAS
cio do Porto de Santos". abrangência nacional.
Nos dias atuais, a imponência arquitetônica da edificação se Com a revolução de 30 e a chegada ao poder de Getúlio Vargas, DECISÕES ENCERRA
mantém. Apesar do adensamento urbano ocorrido na região nas de início à frente de um governo provisório, mais tarde na condi-
últimas décadas, a Bolsa segue sendo o edifício mais suntuoso e ção de ditador, o Brasil passa a se debater entre a continuidade do PERÍODO DE
ACIMA, À ESQUERDA,
emblemático da Baixada Santista. A elevada torre do relógio, poder regional e a tendência à centralização das decisões. Apoia-
VISUAL
com mais de 40 metros de altura, se impõe, à frente do porto, do pelos tenentes, Getúlio assume o Poder Executivo e também o AUTONOMIA REGIONAL
CONTEMPORÂNEO DA como importante referência paisagística e temporal da cidade. O Legislativo, ao dissolver ainda em 1930 o Congresso Nacional, os
BOLSA DE SANTOS. edifício passou por restauração, concluída em 1998, a qual tor- legislativos estaduais e municipais. Todos os antigos governadores,
nou o prédio um efetivo monumento histórico. Dentro de uma com exceção do de Minas, foram demitidos, e em seus lugares
AO LADO, A CAFETERIA,
concepção moderna e versátil, o local passou a oferecer instala- foram nomeados interventores federais.
CUJA QUALIDADE É ções adequadas inclusive para o funcionamento do Museu do No que se refere a São Paulo, em maio de 1931 o controle da
RECONHECIDA PELA ABIC Café e de uma cafeteria. No dia 12 de março de 2009, o Palácio política do café passa do Instituto do Café do Estado de São Paulo

96 97
O ciclo do café no Brasil

À ESQUERDA, GRÃOS

COLHIDOS EM MINAS

GERAIS. À DIREITA,

GRAVURA DE 1932

RETRATA CAFÉ SENDO

JOGADO AO MAR

para o Conselho Nacional do Café (CNC), órgão que acabou sendo


extinto em 1933 e substituído pelo Departamento Nacional do Café,
que, este sim, significou a efetiva federalização da política cafeeira.
Antes disso, ainda em 1931, um decreto estabeleceu que o governo
federal compraria todos os estoques existentes no país em 30 de ju-
nho de 1931, ao preço mínimo de 60 mil-réis. Uma parcela do pro-
duto seria destruída fisicamente, a exemplo do que já havia sido
feito na Argentina, com a uva, e na Austrália, com rebanhos de
carneiros. Além de lavouras inteiras terem sido abandonadas e mi-
lhares de pés de cafeeiros arrancados do solo, o café também foi
queimado e jogado ao mar. Como ressalta Bóris Fausto, "o esquema
PRODUÇÃO DE CAFÉ brasileiro teve longa duração, embora alguns de seus aspectos te-
nham sido alterados no correr dos anos. A destruição do café só
ARÁBICA SE terminou em julho de 1944. Em 13 anos, foram eliminados 78,2 mi-
lhões de sacas, ou seja, uma quantidade equivalente ao consumo
CONCENTRA NO mundial de três anos".
Atualmente o Brasil é o maior produtor mundial de café, sendo
responsável por 30% do mercado internacional, volume equivalente
CENTRO-SUL DO PAÍS,
à soma da produção dos outros seis maiores países produtores. É tam-
bém o segundo mercado consumidor, atrás somente dos Estados Uni-
ENQUANTO O CAFÉ dos. As áreas cafeeiras estão concentradas no Centro-Sul do país,
onde se destacam quatro estados produtores: Minas Gerais, São Paulo,
ROBUSTA É CULTIVADO Espírito Santo e Paraná. A região Nordeste também tem plantações
na Bahia, e da região Norte pode-se destacar Rondônia. A produ-
NO ESPÍRITO SANTO ção de café arábica se concentra em São Paulo, Minas Gerais, Paraná,
Bahia e parte do Espírito Santo, enquanto o café robusta é plantado
E EM RONDÔNIA principalmente no Espírito Santo e em Rondônia.

98
o café nas
artes e
na cultura

100
o café nas artes e na cultura

Tendo o café brasileiro ultrapassado os séculos Pois entre os artistas plásticos que foram atraídos para o Brasil
e suas belezas tropicais no século XIX (excetuados os naturalistas,
XVIII, XIX, XX e chegado ao século XXI em pleno obviamente), um dos que deixou maior quantidade de obras rela-
vigor, com altos e baixos, do ponto de vista econô- cionadas ao café foi Antonio Ferrigno. Italiano da região de Salermo,
chegou a São Paulo em 1893, com 30 anos de idade. Pintor feito e
mico, mas sempre perfazendo uma trajetória plena já reconhecido em sua terra-natal, Ferrigno veio à procura de no-
de histórias reais ou fantasiosas, adornada por per- vos temas e paisagens. Depois de pintar algumas obras sobre a ci-
sonagens e tipos os mais interessantes, é de se admi- dade de São Paulo, o italiano recebeu uma encomenda de Manoel
Ernesto da Conceição para pintar a Fazenda Bom Jardim. O qua-
rar que o grão e tudo o que envolve seu cultivo e dro acabou indo para Paris, onde Conceição mantinha uma loja de
comercialização não tenham gerado uma conside- exportação de café. Antes de cruzar o Atlântico, a obra integrou
rável produção artística, em especial na literatura. uma mostra com outros trabalhos que retratavam vistas de cafe-
zais, colheitas e o panorama de uma colônia.
Podem-se contar nos dedos os romances que de al- Atualmente, há seis obras de Ferrigno no Museu do Ipiranga,
guma forma têm o ambiente das lavouras de café representando a Fazenda Santa Gertrudes e todas as fases do tra-
como pano de fundo. Mesmo nas artes plásticas, tamento do café. Os colonos, provavelmente italianos, são retrata-
dos nos mais diversos ambientes, de forma didática, de maneira
não são muitos os nomes de destaque que se dedi- que observando-se as obras tem-se uma exata noção de como se ABAIXO, IMAGEM
caram a pintar o café e seu universo, com exceção, cultivava o café, o tipo de terreno e a disposição das plantas.
DO QUADRO
obviamente, de Cândido Portinari, o maior pintor No Rio de Janeiro, o alemão George Grimm foi um dos maiores
expoentes em pintura de paisagem. Convidado a lecionar na Aca- O LAVADOURO ,
brasileiro em todos os tempos. demia de Belas Artes, inovou, levando seus alunos para pintar ao DE ANTONIO FERRIGNO
o café nas artes e na cultura

ACIMA, COLHEDORES DE CAFÉ , TELA DE CLOVIS GRACIANO (1954). AO LADO, A FAZENDA

SANT'ANNA DO CALÇADO, PINTADA PELO ALEMÃO GEORGE GRIMM, PINTOR DE PAISAGENS

ar livre, o que terminou por resultar em seu afastamento da insti-


tuição. Grimm era encantado pelas paisagens brasileiras, que re-
produzia com grande fidelidade e realismo. Depois que deixou a
academia, mudou-se para Minas, retornando mais tarde à região
cafeeira fluminense, na região de Valença, Bemposta e São José
do Rio Preto. Realizou diversas telas das fazendas com seus cafe-
zais, sedes enormes e amplos terreiros.
Entre os brasileiros, José Wasth Rodrigues faz parte do time de
pintores documentaristas do começo do século XX. Ao retornar
de estudos em Paris, dedicou-se a pintar paisagens realistas do
interior brasileiro, trabalhando com os contrastes de luz e sombra,
cores vivas, especialmente nos verdes e na terra roxa.
GEORGE GRIMM Já Manabu Mabe, o premiadíssimo pintor japonês que se na-
turalizou brasileiro em 1960, é um exemplo típico de como os
INOVOU AO LEVAR japoneses se integraram à cultura brasileira, via lavoura do café,
ainda que esta temática não tenha sido diretamente responsável
por sua consagração. Mabe nasceu em 1924, na localidade de
SEUS ALUNOS PARA Takara, na vila e atual cidade de Shiranui. Quando completou
10 anos, seu pai, Soichi Mabe, em companhia da mulher, Haru, e
PINTAR AO AR LIVRE. dos cinco filhos (Mabe era o primogênito), viajou para o Brasil.
A família inicialmente se instalou em Birigui, interior de São
ACABOU TENDO QUE Paulo, mas logo depois mudou-se para Guararapes, e dois anos
mais tarde, em 1939, para Lins.
SAIR DA ESCOLA "O que nos esperava era um serviço novo e desconhecido. Mas
havia uma missão a cumprir. Nós, imigrantes, buscávamos no Bra-
DE BELAS ARTES sil um mundo novo", escreve Manabu em sua autobiografia. As
o café nas artes e na cultura

plantações de café fizeram parte das paisagens que o garoto admi-


rava e gostava de retratar. "Desde criança sempre gostei de dese-
nhar, e trouxe para o Brasil os crayons que usava na escola primária
do Japão. (...) Voltei a desenhar novamente. Isto era possível ape-
nas nas horas de folga do serviço de cafeicultura, como nos dias de
chuva ou aos domingos".
Manabu relembra que foi apenas em 1945 que teve sua primei-
ra experiência com tinta a óleo. "Naquele ano, uma intensa geada
arruinou toda a plantação de café, e fomos forçados a descansar.
Vi uma caixa de tinta em uma livraria da cidade e não resisti à
vontade de experimentar", recorda o artista. A partir de 1956,
Manabu produz seus primeiros trabalhos não-figurativos, ao mes-
mo tempo em que a administração do cafezal, que havia comprado
em 1948, exigia-lhe demasiada atenção. Decide, então, vender as
terras e mudar-se para São Paulo, onde daria início a uma carreira
consagradora.
Foi um quadro pintado ainda na época da fazenda que abriu-
lhe as portas dos mais importantes salões de exposições da época:
Natureza morta com moinho de café, de 1951. Sobre o trabalho,
Mabe escreveu: "A cidade de Lins fica a 400 km a nordeste de São
Paulo, e a minha fazenda de café ficava a 30 km da cidade. Esta é
a obra que levei à exposição nacional no Rio de Janeiro e foi sele-
cionada. Naquela época, o meu desejo era expor em três exposi-
ções por ano: o Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janei-
ro, o Salão Paulista de Arte Moderna e a Exposição da Colônia, os
dois últimos em São Paulo". Em 1955, com 31 anos, Manabu pinta
sua primeira obra abstrata, e a partir de então sua carreira decola.
Anos mais tarde, na década de 1970, Manubu relata a ale-
gria de passar seu aniversário em família, e recorda seus tempos
na lavoura de café. "No dia 14 de setembro toda família se reú-
ne. É meu aniversário. Esta data me enche de prazer e evoca
recordações sobre a minha vida. Aqui, no hemisfério sul, inva-
riavelmente chove. Quando isso ocorria, nos tempos do cafezal,
não se trabalhava, e eu podia pintar à vontade. Assim, a chuva
deu origem ao pintor Manabu Mabe. Com certeza, é uma dádi-
va ser agraciado por ela no dia do meu aniversário, como sem-
pre acontece. (...) Não me ocorre a lembrança de ter comemo-
rado um aniversário sequer quando trabalhava na lavoura de
café". Manabu Mabe faleceu em 1997, e atualmente sua família
dirige o Instituto Manabu Mabe.

ACIMA, NATUREZA MORTA COM MOINHO DE CAFÉ (1951), QUE ABRIU AS PORTAS DOS GRANDES SALÕES PARA MABE O HOMEM QUE DIZIA TER NASCIDO EM UM PÉ DE CAFÉ
O mais genial de todos os pintores brasileiros teve sua vida
intimamente ligada ao café. Filho de imigrantes italianos, Cândi- NO ALTO, DESENHO
do Portinari nasceu e viveu em meio às lavouras e cafezais, no
SOBRE CAFÉ, OBRA
QUANDO CHOVIA, NÃO ERA POSSÍVEL TRABALHAR NO início do século XX. Paisagens e tipos humanos que compunham
estes cenários condicionaram para sempre sua vida e sua obra. DE MANABU MABE

CAFEZAL. E MANABU MABE APROVEITAVA PARA PINTAR O texto da professora Angela Ancora da Luz, da Universidade REALIZADA EM 1950

106 107
o café nas artes e na cultura

ACIMA, CENA RURAL (1954). AO LADO, DETALHE DA OBRA CAFÉ, PREMIADA NA

EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DO INSTITUTO CARNEGIE, PITTSBURGH, EM 1935

Federal do Rio de Janeiro, faz uma síntese bastante interessante


de como o café esteve presente na vida de Portinari.

"Foi na fazenda de café onde nasceu que Portinari (1903-1962) viu


os tipos que constituíram sua rica fábula dos retirantes, tão caracterís-
tica de sua obra. Na propriedade, localizada em Brodósqui, no interior
de São Paulo, estavam as imagens que povoaram sua infância, marcada
pela presença da lavoura do café – os nordestinos maltrapilhos e fa-
mintos e os leprosos que pediam esmolas. Os retirantes que entravam
na cidade ficavam acampados, à espera de dias melhores, de trabalho
A VIDA RURAL ERA A na lavoura e de alguma comida. Candinho, apelido carinhoso do pin-
tor, gostava de visitá-los, apesar da recomendação materna de não se
GRANDE MOTIVAÇÃO aproximar daquele acampamento. Ali, viu um enterro na rede, obser-
vou as crianças pançudas e sentiu o drama da seca.
DE PORTINARI. ERA Quando a crise econômica mundial atingiu a economia do café, em
fins de 1929, Portinari já havia se dado conta de quanto o produto era
importante para o país. A vida rural era sua grande motivação. Ele
COMO SE OS PÉS DE
sentia o gosto da terra dentro dele, como chegou a afirmar. Era como
se os pés de café e os homens brotassem do chão, nascendo como
CAFÉ E OS HOMENS irmãos. O Brasil de Portinari surge do solo pelos braços dos lavradores.
No desenho Cena Rural, de 1954, ele faz uma síntese dos ele-
BROTASSEM DO CHÃO, mentos que povoam sua alma e lhe dão o sentido de vida. Com traço
rápido e preciso, Portinari constrói os tipos encontrados ao longo de
COMO IRMÃOS sua produção: a nordestina com o filho no colo e a trouxa na cabeça

108
o café nas artes e na cultura

ACIMA, OBRA DE PORTINARI COM A TEMÁTICA DO CAFÉ, REALIZADA

EM 1960 E PINTADA SOB ENCOMENDA DO BANCO DE BOSTON

– que também está em Retirantes –, o cavalo e o carneiro, presentes APESAR DA VISÃO


em muitas outras, e o espantalho, que o acompanhou desde cedo. À
direita, há sacos de café empilhados, tendo ao lado o esboço de uma
figura agachada, e ao fundo, a perder de vista, toda a plantação.
CRUA DA REALIDADE
Todo o desenho apresenta fragmentos de outros trabalhos do artista.
Portinari destaca aqueles que lavram, a mulher que peneira o grão e SOCIAL, PORTINARI
o homem que levanta ou repousa a saca de café. O realismo expres-
sivo do pintor põe em evidência o homem e a terra. Nas três figuras ALCANÇA O
centrais, percebe-se uma atitude de reverência diante do solo de onde
vem a riqueza. HOMEM ALÉM DA
Do ponto de vista da regra de composição, ele se mantém fiel à
tradição, mas na forma se projeta como artista moderno, como APARÊNCIA FÍSICA
expressionista. Ele seguia as regras de composição clássica de acordo
com o espaço perspectivado, mas a forma era trabalhada fora das
proporções exatas, com distorções expressivas, como um artista mo-
derno. Apesar da visão crua da realidade social, ele alcança o homem
além da aparência física. Procura sua interioridade, a expressão das
figuras que se unem à terra através de pés nodosos, planos e tortura-
dos, mostrando tendões e ossos sob a pele. As mãos que seguram a
NO ALTO, OBRA EXECUTADA PARA A EQUITATIVA DOS ESTADOS UNIDOS enxada e a peneira são extremidades reveladoras do interior da alma
DO BRASIL (1951). ACIMA, UM CLÁSSICO: TERREIRO DE CAFÉ, DE 1959
humana.
De igual modo, observamos que ele mantém as mesmas preocupa-
ções do lavrador com a terra na tela Café, premiada na exposição

110 111
o café nas artes e na cultura

internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, Estados Unidos, em mestiços, seus tipos preferidos, na construção dos trabalhadores rurais. SUAS CONVICÇÕES
1935. Esta é uma pintura que lembra as composições renascentistas Suas convicções políticas, reforçadas pelos ideais do líder comunista
dos teóricos da perspectiva no século XV, quando estes iniciaram o Luiz Carlos Prestes (1898-1990), estão implícitas na força do trabalho POLÍTICAS,
processo de construção do espaço em três dimensões. A linha do hori- coletivo como instrumento transformador do mundo. Portinari sonhava
zonte foi elevada acima do limite do quadro. Homens e pés de café se com a reforma agrária anunciada por Prestes e chegou a pertencer ao
REFORÇADAS PELOS
alinham ao longo da composição ocupando este espaço. A paisagem Partido Comunista.
integra todos os elementos da tela, contrapondo o verde do cafezal a Os problemas sociais estão evidentes também em Terreiro de Café,
uma variada gama de cores terrosas, marcando a fase marrom de obra de 1959. Na tela, os homens espalham o café para a secagem dos IDEAIS DO LÍDER
Portinari. grãos, cuidando para que sua distribuição seja uniforme e cobrindo a
É o café que pontua os cromatismos, ou seja, o colorido é ditado terra na área determinada, destacando a importância do trabalho cole- COMUNISTA LUIZ
pela cor do café: mais claros, quase pardos, para os corpos dos traba- tivo. Há também uma grande superfície quase negra, que se recorta do
lhadores; mais acentuados e luminosos nas sacas do grão; com tom vermelho, uma referência ao colorido do solo. As casas, preenchendo CARLOS PRESTES,
vermelho, mais quente, para os pés dos lavradores e para a terra. Nes- alguns espaços no lado direito do quadro, são meros detalhes na com-
te particular, a cor revela a identidade do artista que afirmava ter vindo posição. A evidência está no fundo verde da plantação, que faz o con- ESTÃO IMPLÍCITAS NA
NO ALTO, DA ESQUERDA ‘da terra vermelha e do cafezal’. As figuras parecem esculturas, robus- traste simultâneo com o vermelho da terra, dirigindo nosso olhar para
tas, congeladas na ação do trabalho, com mãos e pés enormes e pele aquele ponto em que é possível captar a extensa área que se perde no FORÇA DO TRABALHO
PARA A DIREITA: PINTURA
rugosa. Os rostos desaparecem sob o peso das sacas, poucos revelam horizonte. No primeiro plano da composição, vários homens e mulhe-
A ÓLEO DE 1940; O seus traços individuais. Sob o olhar do capataz de gesto militar, os ho- res estão executando atividades diversas com as cabeças cobertas por COLETIVO COMO
LAVRADOR DE CAFÉ mens trabalham. A colona sentada, que nos faz lembrar as sibilas que chapéus de palha, panos ou trouxas.
Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina, repousa brevemente, Portinari trabalha com a pincelada solta nesta obra, eliminando a
(1934); COLHEITA INSTRUMENTO
enquanto a riqueza da terra circula pelos braços dos lavradores e pela linha, dando autonomia à cor na construção da imagem. O artista
DE CAFÉ (1960);
imaginação de Portinari. utiliza o branco para iluminar os braços do trabalhador em primeiro
PENEIRANDO CAFÉ (1957) Esta visão social do artista traz a afirmação racial dos negros e plano, ao centro, bem como muitos outros detalhes, como a bandeira, TRANSFORMADOR

112 113
o café nas artes e na cultura

cujo mastro em diagonal acentua a ação do braço humano. É um bran-


co brilhante que dispara a luz nos corpos.
Filho de um casal de imigrantes italianos, Portinari fez apenas o
curso primário. Ainda jovem, veio para Rio de Janeiro estudar na Es-
cola Nacional de Belas Artes, onde iniciou seu aprendizado no final de
1918. No entanto, muito mais do que o ensino formal, o que marcou
mesmo as telas do artista foram as lembranças da infância, que jamais
se apagariam de sua memória.
Já no fim da vida, abreviada pelo contato com o chumbo das tintas
que usava, Portinari escreveu, em um pequeno poema:

Minha memória já não alcança /


aqueles cafezais. Começa /
no passado. Antes há lembranças entrelaçadas /
e sonhos. Mesmo se prolongando /
até lá, vejo esfumaçado.

Os poemas foram publicados em 1964, dois anos após a morte do


pintor. Ele os via esfumaçados, em meio às lembranças. Em outro mo-
mento, fez uma análise de sua vida dizendo que nascera num pé de café
e reafirmou que devia ter vindo por engano, pois o material usado em sua
fabricação provavelmente se destinava a folhas de árvore e água. A terra
avermelhada em que correu e jogou bola se misturou, com o tempo, à
poeira levantada pelos pés dos nordestinos que abandonavam a seca e
chegavam até Brodósqui."

O CAFÉ E A CULTURA POPULAR


O café e o ambiente das lavouras têm servido como tema para
duas iniciativas sociais que utilizam o artesanato e a cultura popu-
lar como ferramenta de inclusão social, uma delas localizada em
São Paulo (Café Igaraí) e outra, no Rio de Janeiro (Toque de Mão).
Distrito do município de Mococa, na região norte de São Pau-
lo, Igaraí tem uma população estimada em apenas 2.500 pessoas na
área urbana (e talvez outras mil nas fazendas em torno). É nesta
pacata localidade que funciona a modesta, mas organizada sala de
uma instituição dedicada ao artesanato. Batizada Café Igaraí, a
associação congrega mulheres que se dedicam ao crochê, ao bor-
dado e à pintura em porcelana para retratar uma histórica ativida-
de econômica da região, explícita em seu nome: o cultivo do café.
Igaraí fica bem na divisa com Minas Gerais, na região que
durante algumas décadas, mais exatamente entre 1898 e 1930, foi
NA PÁGINA AO LADO, protagonista da famosa política do café com leite, que estabeleceu
MESA COMPLETA DE um revezamento entre políticos paulistas, plantadores de café, e
mineiros, produtores de leite, no comando dos rumos do país. Se o
CAFÉ DA MANHÃ,
eixo da produção de café tipo exportação atualmente se deslocou
PRODUZIDA PELAS para o norte de Minas e até para Goiás, ficou a tradição em Igaraí,
ARTESÃS DE IGARAÍ onde muitas fazendas seguem recebendo visitantes, em programa-

114
o café nas artes e na cultura

ções do tipo turismo rural em um roteiro batizado, é claro, "Café NO TINGIMENTO DOS
com Leite". Parte do público que adquire os produtos artesanais
da associação Café Igaraí está justamente neste nicho. TECIDOS, A TÉCNICA
Um aspecto que foi bastante estudado no planejamento do pro-
jeto foi a paleta de cores. Durante a florada do café, entre setem-
UTILIZADA É
bro e outubro, as plantações ficam brancas como a neve. Depois,
os tons mudam para amarelo ou vermelho, dependendo da varie-
dade. Há ainda os tons do terreiro utilizado para secagem dos grãos,
JAPONESA, E INCLUI
e, ainda, as cores da terra propriamente dita. Para o tingimento
dos tecidos, a técnica utilizada é japonesa, e inclui sutilezas como SUTILEZAS COMO
adicionar leite de soja nos panos de algodão, pois a proteína ajuda
na absorção do pigmento. O consultor do Sebrae (Serviço Brasi- ADICIONAR LEITE
leiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas), Renato Imbroisi, foi
quem sugeriu que, aos trabalhos em bordado e crochê, se agregas- DE SOJA NOS PANOS
se a pintura em porcelana, de forma a que se pudesse montar uma
mesa de café da manhã completa, da louça à toalha e descansa- DE ALGODÃO
ACIMA, O BORDADO COM TEMAS DA FAZENDA, DE IGARAÍ. NO ALTO, pratos, passando pelos guardanapos, todos com motivos da região.
PORTINARI COMO INSPIRAÇÃO PARA AS ARTESÃS DO RIO DE JANEIRO Maria Aparecida Arcas Costalonga, a Cida, 64 anos, morou e

116 117
o café nas artes e na cultura

REALIZAR RELEITURAS DE GRANDES PINTORES

É UMA DAS PREFERÊNCIAS DAS ARTESÃS DO RJ

trabalhou em fazendas a vida toda. Viúva, tem 10 filhos e 18 netos.


"Apenas três não ajudei a criar", ela faz questão de enfatizar. Tro-
cou a rotina de carpir, plantar, colher e descascar o café pelo bor-
dado e, basicamente, crochê, que já dominava. Mineira de
Guaxupé, quando voltou a morar em Igaraí dedicou-se ao vagonite,
um tipo de ponto do bordado.
É comum encontrarmos entre as pessoas que se dedicam a uma
atividade artística uma personalidade pincelada com traços de ou-
sadia, irreverência e até mesmo alguma petulância. Quase todo ar-
tista gosta de romper barreiras, ultrapassar limites, derrubar con-
venções. Eunice da Ressurreição Matos, 59 anos, moradora do bair-
ro Santa Teresa, no Rio de Janeiro, talvez até não se considere uma
artista, mas seu trabalho como artesã assim a qualifica. Pois Eunice
não tem o menor pudor em afirmar: "O nosso Abaporu ficou até mais
bonito que o original; tem mais cores, mais volume". Ela se refere
nada mais, nada menos, que à tela pintada por Tarsila do Amaral
em 1928 e que hoje é considerada a obra de arte brasileira mais
importante e mais valiosa em todos os tempos (foi adquirida por um
colecionador argentino por US$ 1,5 milhão). Acontece que o qua-
dro foi "recriado" por Eunice e suas colegas do projeto Toque de
Mão, iniciativa cujo embrião remonta aos anos 2000 e desde então
vem oportunizando a um grupo de mulheres em situação de alta
vulnerabilidade social expressar seus dotes artísticos através da pin-
tura, do bordado e da costura.
Realizar releituras das obras de grandes pintores brasileiros,
em especial em bolsas e almofadas, é uma das preferências das
artesãs. Di Cavalcanti e Candido Portinari, além da já citada Tarsila
do Amaral, são alguns deles. Em novembro de 2010, por exemplo,
as artesãs estavam às voltas com a produção coletiva de uma enor-
me tela inspirada no quadro Café, de Portinari (citada anteriormen-
te). Os grãos da planta que aparecem na imagem, por exemplo,
estavam sendo feitos em rococó. Entre os produtos em exposição
para venda, havia uma almofada inspirada no quadro O mestiço,
também de Portinari.

NA PÁGINA AO LADO, RELEITURA DE O MESTIÇO, EM ALMOFADA DO

PROJETO TOQUE DE MÃO: PORTINARI INSPIRANDO A CULTURA POPULAR

118
Brasil, país do futuro. Este é o título do livro
publicado em 1941 pelo prolífico escritor austría-
co Stefan Zweig, que se radicou em Petrópolis, no
Rio de Janeiro, para se afastar do genocídio da Se-
gunda Guerra Mundial. A expressão acabou se
tornando mundialmente célebre. Sob essa crença,
algumas gerações de brasileiros foram acalentadas.
Porém, décadas se passaram, e esse futuro promis-
sor teimava em não chegar. A imagem do gigante
adormecido em “berço esplêndido” parecia ser mais
apropriada para a nação.
Havia, entretanto, um segmento da economia que exibia en-
tusiasmo ímpar. No agronegócio, os Cafés do Brasil, mesmo sob os
percalços decorrentes da extinção do Instituto Brasileiro do Café
(IBC) e do continuado ciclo de cotações insuficientes para cobrir
os custos com a atividade, vivenciavam período sem igual em sua
longa história de presença no país. Seus protagonistas jamais esti-
veram apáticos ou sonolentos; ao contrário, mantiveram-se ativos
na busca de alternativas que tornassem o segmento ainda mais
vibrante.
A escalada das cotações iniciada em meados de 2010 veio tra-
zer a consagração aos agentes desse negócio. Os cafeicultores pas-
saram a receber “preço justo” pelo esforço de seu trabalho; os in-
dustriais decidiram apostar ainda mais na qualidade do produto e
por em prática inovações que o segmento demandava, apoiando-
se em novas tecnologias; os exportadores se viram diante da possi-
bilidade concreta de fecharem mais e mais negócios com clientes
ávidos por um produto de qualidade; por fim, os apreciadores pu-
deram ser surpreendidos pelo grau de excelência dos Cafés do Brasil.
O promissor cenário que ora se instaura não é obra do acaso.

O momento dos O longo ciclo de preços baixos praticados para o café verde foi
muito bem aproveitado pelos cafeicultores, industriais e exporta-
dores, que se empenharam, ainda mais, em incrementar a produti-
vidade e a qualidade do seu produto ou serviço. A introdução da

Cafés do Brasil
POR CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO
tecnologia de descascamento do café e a redescoberta do Bourbon
Amarelo, verdadeiras maravilhas brasileiras, trouxeram nova re-
putação ao produto, conquista na qual poucos acreditavam. Esses
fenômenos, combinados, conferiram enorme tenacidade aos Cafés

NA PÁGINA AO LADO: EMBARQUE DE CAFÉ NACIONAL EM UM PORTO BRASILEIRO

121
o momento dos
Cafés do Brasil

do Brasil, pois o segmento passou a exibir competitividade em pre-


ços e qualidade difícil de ser suplantada por qualquer outro concor-
rente. Recentemente, o Brasil passou a deter quase a metade das
exportações mundiais de arábica.
A escalada das cotações proporcionará o necessário sanea-
mento financeiro dos cafeicultores ainda endividados. Com a
recapitalização já se processando, pode-se imaginar um cenário em
que a busca por tecnologias se intensificará, trazendo novos ganhos
de produtividade e qualidade. Tais esforços se tornam ainda mais
eficazes dentro de esquemas cooperativos como o implantado pela
Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), que oferece ágio
de preços nas aquisições de café verde dos cafeicultores já formal-
mente certificados.
Esse otimismo com relação ao agronegócio Cafés do Brasil
reflete, em parte, sua estrutura de governança. No âmbito do Con-
selho Deliberativo de Política Cafeeira (CDPC), foram criados pro-
gramas e ações públicas bem-sucedidas, como a de pesquisa e a de
marketing específico para o café. Não há país concorrente capaz de
ombrear a excelência científica da produção brasileira. Novas varie-
dades e métodos de manejo da lavoura, irrigação e mecanização são
tendências irrevogáveis na cafeicultura brasileira. Também não há
nenhum outro lugar no mundo onde ocorram tantos e tão variados
encontros de cafeicultores, locais em que muitas dessas tecnologias
são compartilhadas com seus principais interessados e usuários. No
capítulo do marketing, depois de carregar a pecha de produto infe-
rior, o café brasileiro recupera seu prestígio, voltando a compor par-
cela expressiva do blend médio internacional. O respaldo concedi-
do pelo CDPC aos gestores das políticas públicas na
operacionalização dessas ações foi precioso. Nas duas edições em
que o governo ofereceu ao mercado as opções públicas, o resultado
foi altamente positivo, tanto para os cafeicultores aderentes como
CONCURSOS REGIONAIS, ESTADUAIS E NACIONAL, ESTE ORGANIZADO
para o Tesouro Público que, por meio dessa ação estratégica,
rentabilizou as existências financeiras do Funcafé. PELA ABIC, APRESENTAM CAFÉS COM QUALIDADES INCOMPARÁVEIS
A excepcionalidade do momento atual se confirma com os
resultados dos certames internacionais de qualidade do café. A
origem brasileira surpreende a maior parte dos provadores, e os
lotes oferecidos nesses torneios conquistam posições de desta-
que no ranking dos melhores cafés. Nos concursos regionais, es-
taduais e nacional, o último deles realizado pela Abic, os cafés
têm apresentado qualidades incomparáveis, sendo acirrada a dis-
puta em leilão pelos lotes oferecidos aos torrefadores neles inte-
ressados.

NA PÁGINA AO LADO: PLANTAÇÃO DO CAFÉ TIPO ROBUSTA

122
o momento dos
Cafés do Brasil

NA PÁGINA AO LADO: PROGRAMA DE CAFÉS ESPECIAIS DESENVOLVIDO PELO

INSTITUTO AGRONÔMICO DE CAMPINAS

O Brasil se prepara para amealhar o posto de maior mercado


consumidor de café do globo. Tal título se somará aos de maior
produtor e maior exportador. Essa nova conquista será fruto de
longo trabalho e investimento desenvolvido pela liderança dos
torrefadores, que não se furtaram em assumir, privadamente, des-
de 1989, o programa de controle da pureza do café, até então capi-
taneado pelo IBC. Em 2010, foi superada a barreira dos 5 kg per
capita/ano por habitante, faltando pouquíssimas gramas per capita
para suplantar os estadunidenses na liderança mundial do consu-
mo da bebida. O país caminha para se tornar a mais completa
plataforma em negócios envolvendo o café!
O aceite da Bolsa de Nova Iorque em certificar cafés brasi-
leiros lavados e descascados abrirá ainda mais o campo para negó-
cios, refortalecendo a imagem de excelência do produto verde e
amarelo. Oferecendo alternativa ao produto tradicional aos
torrefadores internacionais, os Cafés do Brasil reassumem sua mais
legítima identidade.
A agenda visando a aprimorar o segmento não se esgotou. Ca-
recemos de mecanismos que protejam os cafeicultores dos riscos
climáticos, e ainda há que se encontrar uma fórmula para assegu-
rar a continuidade da importantíssima indústria da solubilização.
Por sua vez, os industriais da torrefação precisam estruturar seus
negócios valendo-se de transações intermediadas por bolsa de va-
lores, oferecendo liquidez ao mercado de títulos financeiros (es-
pecialmente no de opções) e, por meio dessa iniciativa, preservan-
NO AGRONEGÓCIO DOS CAFÉS DO BRASIL, O FUTURO PROMISSOR do-se das naturais oscilações de preços.
O agronegócio Cafés do Brasil jamais esteve adormecido,
SEMPRE FOI ALGO PALPÁVEL E INVEJÁVEL embalado em berço esplêndido. O êxito das ações envolvendo par-
cerias público-privadas, combinado com a produção de conheci-
mentos e tecnologias situadas na fronteira do conhecimento exis-
tente e com a sagacidade dos agentes econômicos que atuam nes-
se segmento, constitui o alicerce da pujança atual. No agronegócio
Cafés do Brasil, o futuro promissor sempre foi algo palpável e inve-
jável, tanto aqui como por parte de nossos concorrentes.
A grandeza dos Cafés do Brasil permite que se viva o futuro
em pleno presente!

CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO, ENGENHEIRO AGRÔNOMO,


PESQUISADOR DO INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA (IEA)

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